Compêndio histórico de Mulheres da Antiguidade, vol. 1 - A presença das mulheres na Literatura e na História [1 ed.] 9786599234354


975 60 10MB

Portuguese Pages 1126 [1129] Year 2021

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Table of contents :
0A. CHMA. Capa
0B. CHMA - Sumário
0C. CHMA. Prefácio e Apresentação
01. AAA
01. CHMA - Mulheres Míticas
02. AAA
02. CHMA - Mesopotâmia
03. AAA
03. CHMA - África e Egito
04. AAA
04. CHMA - Antigo Testamento
05. AAA
05. CHMA - Mulheres Homéricas
06. AAA
06. CHMA - Grécia Arcaica e Clássica
07. AAA
07. CHMA - Poetas Helênicas
08. AAA
08. CHMA - Romance Antigo
09. AAA
09. CHMA - Mulheres Latinas
10. AAA
10. CHMA - Mulheres Guerreiras
11. AAA
11. Autores
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Compêndio histórico de Mulheres da Antiguidade, vol. 1 - A presença das mulheres na Literatura e na História [1 ed.]
 9786599234354

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COMPÊNDIO HISTÓRICO DE MULHERES DA ANTIGUIDADE Vol. 1: A Presença das Mulheres na Literatura e na História

Tempestiva Goiânia, 2021.

Editora Tempestiva, 2021 © Todos os direitos reservados. Capa: Ivan Vieira Neto. Revisão: Semíramis Corsi Silva. Edição/diagramação: Ivan Vieira Neto / Wemerson Romualdo. Imagem de Capa: A Greek Woman. Sir Lawrence Alma-Tadema (1869). Óleo sobre tela. Imagem de domínio público (Wikimedia Commons).

Conselho Editorial Profa. Dra. Aline Dias da Silveira Profa. Dra. Arlete José Mota Profa. Dra. Camila da Silva Condilo Prof. Dr. Carlile Lanzieri Júnior Profa. Dra. Cláudia Beltrão da Rosa Prof. Dr. Fábio Augusto Morales Soares Prof. Dr. Fernando Mattiolli Vieira Prof. Dr. Leonardo B. Antunes Profa. Dra. Liliane Barros de Almeida Prof. Dr. Uiran Gebara da Silva

UFSC UFRJ UnB UFMT UNIRIO UFSC UPE/Petrolina UFRGS PUC Goiás UFRPE

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ________________________________________________________________ SE471 Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História / Semíramis Corsi Silva, Rafael de C. Matiello Brunhara & Ivan Vieira Neto (org.). - Goiânia: Tempestiva, 2021. ISBN 978-65-992343-5-4 1. Enciclopédia. 2. Compêndio. 3. Antiguidade. 4. Gênero. 5. História das Mulheres. I. Silva, Semíramis Corsi. II. Brunhara, Rafael de C. Matiello. III. Vieira Neto, Ivan.

CDD: 930.09[.11] CDU: 936(093)-055.2

Organizadores Semíramis Corsi Silva, Rafael Brunhara & Ivan Vieira Neto

COMPÊNDIO HISTÓRICO DE MULHERES DA ANTIGUIDADE Vol. 1: A Presença das Mulheres na Literatura e na História

Prefácio de Pedro Paulo A. Funari

Tempestiva Goiânia, 2021.

Sumário

As Mulheres, protagonistas na História e na Cultura: Antiguidade a serviço da convivência.................................21 Prefácio de Pedro Paulo A. Funari

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade, I: A Presença das Mulheres na Literatura e na História Apresentação...........................................................................29 Semíramis Corsi Silva, Rafael Brunhara & Ivan Vieira Neto

﴿ Tomo 1 ﴾ §01 Mulheres Míticas..............................................................39 por Flávia Regina Marquetti Musas................................................................................45 por Bruno Palavro Ninfas...............................................................................49 por María Cecilia Colombani Equidna............................................................................57 por Bruno Palavro Dafne................................................................................63 por Pedro Schmidt

Hermafrodite..................................................................71 por Pérola de Paula Sanfelice Psiquê...............................................................................77 por Nádia Maria Weber Santos & Ivan Vieira Neto Pandora............................................................................85 por Marta Mega de Andrade Europa..............................................................................91 por Félix Jácome Neto Pasífae...............................................................................97 por Thirzá Amaral Berquó Esfinge...........................................................................105 por Francisco Marshall Sêmele............................................................................111 por Juarez Oliveira Dânae.............................................................................119 por Renata Cardoso Belleboni Rodrigues Medusa...........................................................................125 por Renata Cardoso Belleboni Rodrigues Andrômeda....................................................................133 por Clara Lacerda Crepaldi Galateia (Mulher de Pigmalião).......................................137 por Leni Ribeiro Leite & Ariane Ribeiro Santana

Aracne............................................................................145 por Iván Pérez Miranda Geropso..........................................................................151 por Carolina Kesser Barcellos Dias Alcmena.........................................................................159 por Ivan Vieira Neto, Jaqueline da Silva & Ana Lina Rodrigues de Carvalho Etra.................................................................................165 por Vander Gabriel Camargo & Thirzá Amaral Berquó Ariadne..........................................................................173 por Ariadne Borges Coelho Eurídice..........................................................................179 por Juarez Oliveira Atalanta..........................................................................187 por Thirzá Amaral Berquó Hipsípile........................................................................195 por Murilo Tavares Modesto Leda................................................................................203 por Lolita Guimarães Guerra Galateia (Nereida).........................................................211 por Júlia Batista Castilho de Avellar Lâmias e Empusas.........................................................223 por Semíramis Corsi Silva

§02 Mulheres na Antiga Mesopotâmia............................233 por Kátia M. P. Pozzer Ku-Baba........................................................................245 por Fábio Vergara Cerqueira Enheduana....................................................................255 por Janaina de Fátima Zdebskyi Tarām-Kūbi & Šimat-Aššur.........................................261 por Anita Fattori Sammu-ramat...............................................................269 por Anita Fattori Semíramis......................................................................277 por Marina Regis Cavicchioli & Henrique Edigton da Costa e Silva Naqi’a.............................................................................285 por Kátia M. P. Pozzer Libbāli-šarrat.................................................................291 por Simone Silva da Silva Deportadas na Assíria.................................................297 por Simone Silva da Silva Nitócris da Babilônia.....................................................303 por Simone Silva da Silva §03 Mulheres na África Antiga............................................311 por Margaret Marchiori Bakos

Neith-iqret (Nitócris do Egito)..................................317 por Wellington Rafael Balém Ahmés Nefertiry............................................................323 por Moacir Elias Santos Hatshepsut.....................................................................331 por Priscila Scoville Tiye.................................................................................337 por Priscila Scoville Nefertiti.........................................................................343 por Gisela Chapot Ankhiry.........................................................................351 por Liliane Cristina Coelho Naunakhte....................................................................357 por Thais Rocha da Silva Makeda (Rainha de Sabá)............................................363 por Raisa Sagredo Ankhnesneferibre........................................................369 por Wellington Rafael Balém Tsenhor.........................................................................375 por Wellington Rafael Balém Arsinoé II.......................................................................381 por Joana Campos Clímaco Berenice II.....................................................................389 por Karine Lima da Costa

Shanakdakhete.............................................................393 por Fábio Amorim Vieira Cleópatra VII................................................................399 por Camilla Ferreira da Silva Paulino Amaniremas..................................................................407 por Fábio Amorim Vieira Amanishaketo...............................................................413 por Raisa Sagredo Amanitare......................................................................419 por Fábio Amorim Vieira Sha-Amun-en-su e ‹Kherima›: as múmias femininas do Museu Nacional........................................................425 por Helinny Machado da Silva §04 Mulheres no Antigo Testamento.....................................433 por Joel Antônio Ferreira Lilith...............................................................................443 por Cauana Hartz Lima & Janaina de Fátima Zdebskyi Eva..................................................................................449 por Sue’Hellen Monteiro de Matos Sara................................................................................455 por Nayara do Vale Moreira & Rosemary Francisca Neves Silva

Rebeca...........................................................................459 por Valmor da Silva Lia...................................................................................465 por Karine Marques Rodrigues Teixeira & Rosemary Francisca Neves Silva Raquel............................................................................471 por Karine Marques Rodrigues Teixeira & Rosemary Francisca Neves Silva Tamar.............................................................................477 por Janaina de Fátima Zdebskyi Judite..............................................................................483 por Victor Passuello Diná...............................................................................489 por Janaina de Fátima Zdebskyi Miriam.........................................................................495 por Nathália Pawlowski Mariano Joquebede e Zípora.......................................................503 por Raquel dos Santos Funari Cinco Filhas de Salfaad...............................................511 por Joel Antônio Ferreira Raab................................................................................517 Sue’Hellen Monteiro de Matos Rute...............................................................................521 por Joel Antônio Ferreira & Gláucia Loureiro de Paula

Débora...........................................................................527 por Nathália Pawlowski Mariano Dalila..............................................................................533 por Luiz Alexandre Solano Rossi Jezabel............................................................................539 por Semíramis Corsi Silva & Tailiny Femi Fabris

﴿ Tomo 2 ﴾ §05 Mulheres na Épica Homérica...........................................547 por Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho Criseida..........................................................................559 por Antonio Orlando Dourado-Lopes Briseida..........................................................................565 por Antonio Orlando Dourado-Lopes Helena............................................................................571 por Ivan Vieira Neto Hécuba...........................................................................581 por Christian Werner Andrômaca....................................................................587 por Christian Werner Calipso...........................................................................595 por Camila Jourdan

Penélope.........................................................................601 por Lilian Amadei Sais Euricleia.........................................................................607 por Teodoro Rennó Assunção Nausícaa........................................................................615 por Rafael de A. Semêdo Arete...............................................................................623 por Rafael de A. Semêdo Circe...............................................................................629 por Dolores Puga Sereias.............................................................................637 por Mary de Camargo Neves Lafer §06 Mulheres na Grécia Arcaica, Clássica e no Mundo Greco-Macedônico........................................................................645 por Fábio de Souza Lessa Artesãs Ceramistas.......................................................653 por Gilberto da Silva Francisco Hetairas.........................................................................661 por Glória Braga Onelley Musicistas......................................................................667 por Fábio Vergara Cerqueira Musicistas atuando em concursos musicais................675 por Fábio Vergara Cerqueira

Musicistas nos Períodos Arcaico e Clássico.................681 por Fábio Vergara Cerqueira Musicistas nos Períodos Helenístico e Imperial.........687 por Fábio Vergara Cerqueira Artemísia I da Cária.....................................................695 por Anderson Zalewski Vargas Cinisa.............................................................................703 por Luis Filipe Bantim de Assumpção Gorgo.............................................................................709 por Luis Filipe Bantim de Assumpção Timéia............................................................................715 por Luis Filipe Bantim de Assumpção Xantipa..........................................................................719 por Miguel Spinelli Neera..............................................................................727 por Daniel Barbo Olímpia de Épiro........................................................731 por Henrique Hamester Pause §07 Poetas Helênicas...............................................................739 por Giuliana Ragusa Safo.................................................................................747 por Giuliana Ragusa

Cleobulina.....................................................................753 por Isabella Demarchi Mírtis..............................................................................759 por Rafael de Carvalho Matiello Brunhara Corina...........................................................................763 por Clara M. Sperb Praxila............................................................................767 por Isabella Demarchi Telesila...........................................................................773 por Thais Rocha Carvalho Ânite de Tégea............................................................777 por Marina Lacerda Machado Erina...............................................................................781 por Clara M. Sperb Mero...............................................................................789 por Thais Rocha Carvalho Nóssis.............................................................................793 por Flavia Vasconcellos Amaral Melino..........................................................................797 por Thais Rocha Carvalho

§08 Mulheres no Romance Antigo.....................................803 por Adriane da Silva Duarte Calírroe.........................................................................811 por Adriane da Silva Duarte Quartila........................................................................817 por Fabrício Sparvoli Fortunata.......................................................................823 por Fabrício Sparvoli Matrona de Éfeso..........................................................829 por Renata Senna Garraffoni Circe (Satyricon).............................................................837 por Fabrício Sparvoli Proselenos....................................................................843 por Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet Ântia...............................................................................849 por Adriane da Silva Duarte Leucipe...........................................................................853 por Lucia Sano Méroe.............................................................................859 por Sarah Silva Tolfo Panfília...........................................................................863 por Nátalle Garcia dos Santos Fótis..............................................................................869 por Sarah Silva Tolfo

Cloé................................................................................873 por Lucia Sano Caricleia........................................................................879 por Lucia Sano §09 Mulheres na Literatura Latina......................................889 por Anderson Martins Dido..............................................................................905 por Paulo Martins Camila............................................................................917 por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa Lavínia...........................................................................923 por Alexandre Agnolon Reia Sílvia......................................................................931 por Caroline Morato Martins Aca Larência..................................................................937 por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa Sabinas...........................................................................945 por Alexandre Agnolon Tanaquil........................................................................953 por Caroline Morato Martins Lucrécia.........................................................................961 por Renata Cerqueira Barbosa Lenas...............................................................................967 por Beatriz Rezende Lara Pinton

Meretrizes......................................................................973 por Charlene Martins Miotti & Beatriz Rezende Lara Pinton Virgo..............................................................................983 por Amy Richlin Syra................................................................................989 por Amy Richlin Lésbia.............................................................................993 por Alexandre Cozer Cíntia............................................................................999 por Paulo Martins Délia.............................................................................1005 por Maria Ozana Lima de Arruda Corina (Ovidiana).......................................................1009 por Guilherme Horst Duque Dipsas...........................................................................1015 por Gabriel Paredes Teixeira Canídia e Sagana........................................................1021 por Semíramis Corsi Silva Medeias Latinas..........................................................1029 por Fernanda Messeder Moura Ericto............................................................................1037 por Anderson Martins & Carlos Eduardo da Costa Campos

§10 Mulheres Guerreiras.......................................................1045 por Mateus Dagios Amazonas....................................................................1051 por Iván Pérez Miranda Hipólita.......................................................................1057 por Paulina Nólibos Pentesileia...................................................................1063 por Ivan Vieira Neto Teuta............................................................................1073 por Paulo Pires Duprat Tômiris........................................................................1081 por Rodrigo dos Santos Oliveira Blenda de Småland....................................................1087 por Renan Marques Birro Hervör..........................................................................1093 por Pablo Gomes de Miranda Lagertha.......................................................................1099 por Pablo Gomes de Miranda Lista de autoras e autores...................................................1106 por ordem alfabética

As Mulheres, protagonistas na História e na Cultura: Antiguidade a serviço da convivência

Prefácio de Pedro Paulo A. Funari

Em muitas situações, expressões como dominação masculina (Bourdieu 1999), patriarcado ou falocentrismo podem induzir a naturalizar e a retirar da História e da cultura a mulher. Submissas, exploradas, subalternas, assassinadas, tudo verdade, mas tudo mentira também, como no caso de pessoas escravizadas, racializadas, presas como loucas ou infames. Verdade, em muitos casos, mentira sempre que isso seja considerado como inevitável e permanente. Uma pessoa morta como resultado dessas explorações nunca deixará de testemunhar o horror do passado no presente, tendo em vista o futuro. Walter Benjamin (1985), produzindo em momento de perseguição extrema suas Teses sobre a História (1940), ressaltava como a chamada civilização, ou sociedade de classe, hierárquica e desigual, era mostra de barbárie, entendida como morte e assujeitamento, frente à vida e ao convívio. Frente ao totalitarismo e à imposição de um homo novus, homem novo, ser humano em sua certeza de si a ponto de exterminar o outro, Benjamin, como outros, se insurgiu. Suas Teses inserem-se nessa revolta, frente à morte, mas também sua pulsão pela vida, presente na forma messiânica e escatológica: frente a um presente tão cheio de destruição e morte, vislumbrava a convivência, o viver, ao mesmo tempo, de diferentes. Lobo e cordeiro (Isaías 11:6) acomunados, no projeto e no desejo, senão na realidade atual, de convívio.

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Frente a tempos tão difíceis, destruidores e obscuros, Benjamin (1965) não deixava de esperar pela convivência, como nós, tantas décadas depois. Não se trata de esperança vã, mas de constatação do protagonismo, mesmo da mais oprimida pessoa, mesmo quando levada à morte. Essa perspectiva não desconhece, portanto, o quanto as mulheres, como todas as demais pessoas, podem ser discriminadas, oprimidas, hostilizadas por suas características ou comportamentos. Duas abordagens complementares têm sido muito solicitadas, diferentes e complementares, uma de matiz mais social e político, outra mais cultural e antropológica ou histórica: estudos subalternos e pós-coloniais (Darder 2019), por um lado, e feminismo e estudo das relações de gênero, por outro (Rago 1998). Em todos os casos, importa ressaltar a busca por superar a evidenciação de limitações, para propor explorar as linhas de fuga (Deleuze; Gattari 2011), a resistência (Hollander; Eisenwoher 2004) e o protagonismo. Em português, protagonismo apresenta algo do termo usual em inglês, «agency», a capacidade de agir: agir primeiro (protagonismo). No grego de origem, «agṓn» apresenta duas conotações adicionais da ação: atividade em conjunto, assembleia (como em «ekklēsía», também na palavra portuguesa «igreja») e em combate (agônico), e mesmo agonia, que se aplica bem à atuação das subalternas. A subordinação e consequente insubordinação presentes nas relações assimétricas entre colonizadores e colonizados levaram à formulação de diversas perspectivas no âmbito da teoria social, como consubstanciado nos Estudos Subalternos. Essas perspectivas inserem-se nas lutas sociais de movimentos diversos, do sindicalismo aos dos direitos civis e humanos, anti-racistas, anti-colonialistas e anti-imperialistas, da juventude e de estudantes, contra guerras e pacifistas, entre muitos outros. Ao mesmo tempo, outros tantos movimentos referentes a comportamentos foram importantes em interrelação com os já 22

A Presença das Mulheres na Literatura e na História

mencionados: feministas, pela diversidade sexual, de costumes e de maneiras de viver. Diversas perspectivas relacionam-se a esses movimentos, como epistemologias feministas, de gênero, queer, entre outras. A emergência das mulheres na sociedade e na academia, em particular, deve ser aqui enfatizada. Nas últimas décadas, as mulheres começaram a estar presentes e a atuar em todos os campos e na academia tornaram-se majoritárias em muitas áreas, algumas delas antes apanágio masculino, como a História ou a Arqueologia. Logo, tornaram-se líderes nessas áreas, no mundo e no Brasil, ao ocupar os postos acadêmicos e administrativos mais relevantes. Esse é um bom exemplo de protagonismo feminino. Neste contexto particular, esta obra constitui uma referência inovadora e necessária. Inovadora, em primeiro lugar. Traz algo novo, uma obra de referência sobre um par de aspectos essenciais do protagonismo feminino: na História e na narrativa ou imaginário. Essa é uma grande novidade: tratar tanto de mulheres que viveram, como daquelas que poderiam ter vivido. Aristóteles (Poética, IX, 50) dizia que a História apresentava o que aconteceu, enquanto a narrativa, ou mito, ao narrar o que poderia ter acontecido, apresentava ressonâncias ainda mais profundas, diríamos perenes, filosóficas. Entre a morte de uma pessoa real, por mais dramática que possa ter sido, e a de um personagem imaginado, há uma distância intransponível. O assassinato de Júlio César, um fato histórico atestado, teve imensas repercussões, mas não tem a relevância universal do parricídio mítico de Laio por Édipo. Ambos foram cometidos por possíveis filhos, Bruto e Édipo, um no mundo real, o outro no imaginário (crença, mito, ou como quer que se defina). Édipo serviu a Freud para interpretar o ser humano em geral, enquanto o parricídio real de Júlio César não lhe inspirou à formulação de sua teoria: não temos o conceito de Complexo de Bruto. Essa a primeira sacada genial deste livro: unir mulheres históricas 23

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

àquelas imaginadas. Sem que se possa saber quando terminam umas e começam as outras. Helena ou Sara existiram? Entre as que viveram entre nós com certeza, como Safo e Agripina, como discernir vida e fama? Seria possível separar realidade e narrativa? Dentre as que existiram e tiveram repercussão, como comparar a vida de Maria, mãe de Jesus, com a Virgem Maria, Mãe de Deus? Da primeira, sabemos muito pouco; a segunda permeia dois mil anos de História, das Filipinas à Árabia, cuja presença no Corão faz da Maria imaginada a personagem talvez mais reconhecida no mundo, por meio das difusões cristãs e muçulmanas. Esta obra é necessária em dois aspectos diversos: em primeiro lugar por ser enciclopédica e de consulta e, em seguida, pela valorização feminina. Em poucas décadas de desenvolvimento da pós-graduação no Brasil, desde os anos 1970 e com maior intensidade desde fins do século passado, o estudo tanto de temas relativos a mulheres, como à Antiguidade, ganhou corpo e difundiu-se. Isso permitiu que fosse esta obra possível, congregando entre seus colaboradores muitas estudiosas brasileiras. O conhecimento do nosso contexto cultural e educacional, por parte das mulheres que contribuíram com verbetes, favorece, de maneira decisiva, que a obra chegue às pessoas em geral e aos estudantes, em particular. Há, pois, uma dimensão propedêutica e educacional relevante, de modo por ela se possa ter acesso a um imenso manancial histórico e cultural, nem sempre de fácil acesso ou compreensão. A profundidade pode servir ao especialista e a clareza permite atingir um público mais amplo. Outro aspecto da necessidade é também de imensa relevância: a valorização feminina. A crescente presença das mulheres em todos os âmbitos, no mundo e no Brasil, tanto mostra uma realidade transformada, como reações contrárias a essas novas realidades. Hoje, as mulheres destacam-se de 24

A Presença das Mulheres na Literatura e na História

maneira evidente, mas reações conservadoras vêm de múltiplos âmbitos e contextos, daí uma necessidade adicional desta obra. Um dos mecanismos mais recorrentes na tentativa de subordinação feminina consiste na naturalização dessa opressão, seja por meio de lógicas tradicionais, como de suposta base científica e racional. No primeiro caso, assenta-se o argumento na tradição religiosa ou cultural, como no caso do uso enviesado da Bíblia, do Corão ou das literaturas confucionistas ou budistas. Este aspecto é muito relevante, pelo apelo popular desse tipo de manipulação misógina da tradição, mundo afora. No contexto brasileiro, esses abusos provêm de leituras da Bíblia, mas também de outras fontes normativas, como a literatura jurídica, de códigos antigos aos modernos e mesmo nacionais. Em paralelo, a naturalização da opressão feminina vem justificada em interpretações enviesadas da biologia, ou mesmo da psicanálise, como se a mulher fosse destinada a certos papéis submissos por motivos não culturais, mas intrínsecos e, portanto, imutáveis. Há leituras diversas e filóginas tanto das tradições como da ciência moderna, e isso está presente nesta obra, a municiar a todas as pessoas com um imenso repertório de valorização feminina. Há, assim, mais este aspecto a ser ressaltado, como contribuição na luta pelo reconhecimento do protagonismo feminino, em particular a partir do mundo antigo e na sua posteridade. Obra inspiradora, serve para lembrar que a cultura, a erudição e a ciência acadêmica podem servir para o convívio e para o acolhimento das diferenças. Referências BENJAMIN, W. 1985. Teses sobre a filosofia da História. In: KOTHE, F. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática. BENJAMIN, W. 1965. Zur Kritik der Gewalt und andere Aufsätze. Frankfurt/M.: Suhrkamp. 25

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

BOURDIEU, P. 1999. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. DARDER, A. 2019. Decolonizing interpretive research: a subaltern methodology for social change. Londres, Routledge. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 1980. Mille Plateaux. Vol. 2: Capitalisme et Schizophrénie. Paris: Les Éditions de Minuit. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. 2011. Mil platôs. Vol. 2: Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34. HOLLANDER, J.; EISENWOHER, R. 2004. Conceptualizing resistance, Sociological Forum 19, 4, 2004, p. 533-554. RAGO, M. 1998. Epistemologia feminista, Gênero e História. In: PEDRO, J. M.; GROSSI, M. (Org.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed. Mulheres. p. 21-42.

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A PRESENÇA DAS MULHERES NA LITERATURA E NA HISTÓRIA Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Apresentação A proposta do Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade, publicado em dois volumes, é apresentar ao público lusófono algumas personagens femininas do mundo antigo, indicando as fontes e o quadro referencial mais básico para o seu estudo, apontando leituras sobre os materiais da Antiguidade e realizando uma análise crítica da documentação a partir dos elementos de construção dessas personagens em termos de poder, com especial atenção às perspectivas dos Estudos de Gênero. O objetivo, portanto, não é apenas apresentar as personagens e as fontes possíveis para a pesquisa histórica, mas levantar problemas sobre a própria elaboração da documentação antiga, trazendo também, quando possível, aspectos de recepção em obras de arte e mesmo na historiografia em contextos posteriores. Portanto, os textos não se limitam a apresentar uma súmula de conhecimentos sobre as personagens e seus respectivos recortes temáticos, espaciais ou temporais, mas historicizam e problematizam esses conhecimentos. Ao apresentar ao público lusófono o Compêndio Histórico, inserimo-nos numa prática acadêmica bastante recorrente em outros países, em especial nas universidades anglófonas, mas ainda tímida no Brasil e em Portugal. No Reino Unido e nos Estados Unidos são comuns «companions» enciclopédicos que versam sobre uma infinidade de assuntos. Nesses países, os Estudos Clássicos beneficiam-se fundamentalmente de títulos que exploram contextos históricos, temáticas e autores antigos por uma perspectiva coletiva: inter, multi e transdisciplinar. Essas obras enciclopédicas adquirem grande importância nas salas de aula e se tornam referências nos processos formativos das novas pesquisadoras e dos novos pesquisadores.

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

A iniciativa que aqui se apresenta foi precedida pela publicação do dicionário Cem Fragmentos Biográficos (Tempestiva, 2020), organizado pelos colegas da área de História Medieval Renata Cristina de S. Nascimento (UEG / UFG / PUC Goiás) e Guilherme Queiroz de Souza (UFPB). Na esteira desta grande contribuição à medievalística brasileira, quisemos propor também o nosso contributo aos Estudos da Antiguidade, envolvendo autoras e autores oriundos das Letras Clássicas, História Antiga, Filosofia Antiga, Arqueologia Clássica e também das Ciências das Religiões. Trata-se, portanto, de um projeto fundamentalmente dialógico. Outra característica deste Compêndio é trazer, além de pesquisadoras e pesquisadores brasileiros, importantes estudiosas e estudiosos internacionais. Neste caso, todos os textos foram traduzidos para o português a fim de chegar mais facilmente ao público lusófono em geral. Em relação aos eixos temporais e às sociedades de inserção e construção das personagens históricas e literárias listadas neste Compêndio, buscamos, nos dois volumes, agregar o máximo possível de sociedades antigas, não privilegiando apenas as tradicionais histórias das antigas Grécia e Roma, muito embora essas sejam de grande valia e importância na construção de um imaginário ocidental sobre as mulheres antigas, ao qual, de alguma forma, adscrevemo-nos. Por esta razão, mulheres africanas, mesopotâmicas, israelitas, persas e celtas fazem-se presentes, junto às famosas personagens da épica homérica e da literatura latina, entre outras. A leitora e o leitor mais atentos observarão na relação das personagens a presença de algumas divindades, como as Musas, e figuras mitológicas, como as Sereias e as Ninfas. Tais personagens integram este Compêndio pois ocuparam lugar de importância na recepção literária e historiográfica, tornando-se símbolos importantes que remetem ao “feminino” e a ele se vincularam desde cedo. 30

A Presença das Mulheres na Literatura e na História

A escolha da temática Mulheres da Antiguidade deveu-se pela importância do debate sobre as questões de gênero numa atualidade paradoxal, neste contexto em que, por um lado, os problemas relacionados ao gênero e às pautas femininas são urgentes, enquanto, por outro, torna-se cada vez mais difícil realizar a discussão necessária sobre os direitos das mulheres e sobre a presença feminina nos espaços de poder. Além disso, se considerarmos que a literatura antiga muitas vezes serviu para a legitimação de discursos conservadores, as pesquisas sobre mulheres e gênero na Antiguidade, à luz das reflexões viabilizadas pelos estudos feministas e de gênero, possibilitam a contestação de alguns pressupostos tradicionalmente aceitos quanto aos papéis das mulheres na sociedade, segundo os quais as mulheres antigas eram sempre seres submissos e resignados. Ao mesmo tempo, este quadro referencial possibilita (re)pensar a construção, fundamentalmente masculina, quanto à atuação feminina na Antiguidade, propondo modelos a serem seguidos e anti-modelos igualmente importantes para a normatização deste gênero e do seu corpo, oportunizando a reflexão sobre a ocorrência de tais construções em nossa própria sociedade. Diante disso, pensar o passado é também um exercício de reflexão sobre nosso presente, mas sempre a partir da perspectiva das diferenças. Seguimos, assim, a ideia já trazida por Michel Foucault, para quem «existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir» (Foucault 2010, 15). No primeiro volume, A Presença das Mulheres na Literatura e na História, procuramos ressaltar que a História das Mulheres ou os Estudos de Gênero não são, como apregoam os detratores do pensamento crítico e emancipatório, modismos de nossos tempos. Desde os primórdios, e mesmo nas fontes mitológicas, constatamos a presença e a agência das mulheres 31

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

na influência das personagens femininas nos enredos mítico, poético e literário, e suas reverberações no devir histórico. A maior contribuição que os Estudos Clássicos e as Humanidades podem oferecer às Ciências e às sociedades do século XXI é o testemunho de que as mulheres não passaram a existir, enquanto sujeitos históricos e agentes políticos, somente após a segunda onda do feminismo, nem depois da publicação d’ O Segundo Sexo (Beauvoir 1949) e nem sequer a partir do ativismo político de Olympe de Gouges e da sua Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã (1791): desde a Antiguidade, as mulheres têm ocupado os espaços de poder e influência, como governantes, militares, comerciantes et cetera. A novidade não está no agir feminino, mas na maneira como os intelectuais e acadêmicos começaram a se referir às suas ações, alterando aquilo que sempre consistiu no principal instrumento de exercício do poder: o discurso (Foucault 1999). Argumentos reacionários que se manifestam em contrário estão prejudicados por uma fragilidade discursiva. Ao atacar o feminismo, o movimento negro ou os militantes LGBTQIA+, os reacionários estão menos preocupados com a emancipação desses respectivos grupos sociais (fato histórico incontornável) e mais tementes à ameaça ao seu tradicional poder simbólico (Bourdieu 2009), eis porque os reacionários se pautam sempre por disputas narrativas: é impossível fugir ao poder do discurso. A História e sua historiografia tradicional constituem uma zona de conforto para quem não consegue acompanhar as passadas largas com que caminham as transformações sociais e menos ainda podem acompanhar com a devida parcimônia a atualização das teorias antropológicas e sociológicas que reiteradamente modificam as lentes de análise empregadas pelos estudiosos das Humanidades e Ciências Sociais. Assim, percebe-se que a verdadeira ameaça que o livre-pensamento e as políticas progressistas impõem ao extremismo reside justamente 32

A Presença das Mulheres na Literatura e na História

na proposição de discursos anti-hegemônicos. Eis porque o reacionarismo é completamente refratário ao pluralismo de ideias, especialmente à diversidade de narrativas, uma vez que não pode se atentar às mudanças das culturas e sociedades ― isto talvez explique sua obsessão com o moinho de vento que os muito reacionários denominam marxismo cultural. Destarte, a presença indicada no título deste volume quer chamar a atenção para a continuidade da ação feminina na construção da História. Sua presença na Poesia, na Literatura, na História e na Filosofia, portanto, afirma uma constância: o feminino não é moderno, ele é tão antigo e presente quanto o masculino. Ele não resultou simplesmente de uma invenção da Modernidade, contexto em que as mulheres começaram (legal e politicamente) a reivindicar direitos historicamente negados. Em sua maioria, os autores antigos foram homens. Portanto, as tradições antigas são fundamentalmente masculinas, e isso explica todos os apagamentos e silenciamentos, assim como as condenações, da agência feminina. Sabemos que não poderia haver poesia ou história sem as mulheres. Sob o pano de fundo de narrativas masculinas e mesmo sob o julgamento do olhar patriarcal, as mulheres sempre transitaram no campo da ação, fosse ação ficcional ou histórica. Enheduana, Miriam, Dalila, Helena, Andrômaca, Dido, Camila, Lavínia, Lucrécia, Makeda (a Rainha de Sabá), Hatshepsut, Safo e todas as outras personagens retratadas nos verbetes deste Compêndio evocam agência, decisão e resistência, algumas dispondo de poderes suficientes para modificar o próprio curso da História. A partir do que foi apresentado, neste primeiro volume, a leitora e o leitor têm diante de si uma obra composta por 147 verbetes alocados em 10 seções apresentadas por grandes especialistas de cada área. Este projeto editorial envolveu 113 pesquisadoras e pesquisadores que contribuíram com um ou mais capítulos introdutórios e/ou verbetes. Desde o início, 33

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

o objetivo do Compêndio Histórico foi mobilizar especialistas brasileiros e estrangeiros a refletir e escrever sobre as diversas personagens reais e imaginadas que deixaram suas marcas na História e no imaginário ocidental. O sucesso desta empreitada é compartilhado com cada uma e cada um que colaborou com nossa proposta ou acreditou o suficiente no seu propósito para tê-la em mãos! Recomendamos ter em conta os dois volumes do Compêndio Histórico, a fim de não perder de vista algumas personagens que, por razões estritamente técnicas e também inexoravelmente arbitrárias, foram separadas em dois tomos. Ao final do segundo volume, constará um índice onomástico com o intuito de facilitar as pesquisas e consultas. As ausências, inevitáveis, poderão ser retomadas em empreitadas futuras... Acreditamos que especialistas em diferentes áreas do saber e o público interessado em geral poderão encontrar neste Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade um rico material sobre as mulheres antigas, sobre os mitos e mitologias e sobre a literatura e os eventos históricos da Antiguidade. Por fim, expressamos a alegria pelo trabalho realizado agradecendo a todas e a todos que nele se envolveram no decurso da sua composição e nas suas subsequentes revisões. Às leitoras e aos leitores, deixamos nossos votos de boas leituras! Santa Maria / Porto Alegre / Goiânia , 23 de dezembro de 2021. Semíramis Corsi Silva Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Rafael de C. Matiello Brunhara Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ivan Vieira Neto Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás) 34

A Presença das Mulheres na Literatura e na História

Referências BEAUVOIR, S. 1970. O Segundo Sexo. São Paulo: DIFEL. BOURDIEU, P. 1998. La domination masculine. Paris: Éditions du Seuil. BOURDIEU, P. 2009. O Poder Simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil. COLE, J. R. 2011. Between the Queen and the Cabby: Olympe de Gouges’s Rights of Woman. Montreal: McGill-Queen’s University Press. DE GOUGES, O. 2020. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Tradução de D. Rocha, E. A. A. Souza, F. P. Silva, K. Garbo e L. H. C. Peteffi, Translatio, Porto Alegre, n. 17, p. 182-189. FOUCAULT, M. 1979. Microfísica do Poder. São Paulo: Graal. FOUCAULT, M. 1999. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola. FOUCAULT, M. 2010. História da Sexualidade. Volume 2: O uso dos prazeres. São Paulo: Graal.

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MULHERES MÍTICAS Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres Míticas

por Flávia Regina Marquetti

Elaborar um trabalho sobre as mulheres míticas implica a consciência de uma dupla necessidade: falar sobre o universo feminino antes da Era Comum e repensar o legítimo lugar ocupado por elas na vida das cidades, buscar não o modelo idealizado de mulher apresentado por filósofos, dramaturgos, estadistas; mas a realidade por trás desses discursos, resgatar a verdadeira importância das mulheres em seus agrupamentos. O levantamento e análise das fontes antigas, as mais diversas, é fator indispensável para obter a visão de qual era o espaço ocupado pelas mulheres nas sociedades da Antiguidade. Os pesquisadores contemporâneos realizam verdadeiras exumações de informações contidas em textos, cerâmicas, estelas funerárias, obras de oratória, peças teatrais a fim de perscrutar o difuso universo feminino da Antiguidade. Os mitos são outra fonte importante, analisá-los é reavaliar o contexto em que foram elaborados. Ao confrontar o silêncio ou o enfoque dado a algumas características conota-se a relação da sociedade com o feminino. Pois o imaginário de uma sociedade se revela por meio das escolhas de suas imagens e de suas palavras. Os estudos sobre o feminino surgiram nas últimas décadas do século XX tanto nas Américas quanto na Europa. Nos Estados Unidos um dos principais grupos foi o Women Studies; na França outro círculo importante surge capitaneado por historiadoras, antropólogas, helenistas, sociólogas e elabora Histoire des Femmes en Occident, abrindo caminho para investigações sobre o gênero humano sob um espectro mais amplo e diversificado. A tônica em todas as pesquisas era as relações entre os sexos, revisando o conjunto temporal que envolve o

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

cotidiano das sociedades e, sobretudo, como o lugar de construção do discurso histórico omitia a relevância do gênero feminino na construção social. Paralelamente ao estudo de gênero, surgem pesquisas sobre temáticas até então desprezadas no âmbito acadêmico: a sexualidade, o erotismo, as variações culturais e históricas das relações afetivas e a constituição dos corpos. A cultura imaterial, fora do espaço tradicional da economia e poder, como os saberes da culinária, da tecelagem e das boticas domésticas, com o uso de beberagens e elixires, também conquistam relevância, demonstrando a importância do cotidiano feminino no esteio social. A infame semente, o belo mau e a elegância da virtude Horácio, poeta romano, assim definiu as Danaides: «a infame semente de Dânaos» (Odes III. 11, 25–26), como ele, muitos autores na Antiguidade qualificaram as personagens míticas femininas como infames, terríveis, assassinas, monstruosas. O que os levou a esse julgamento sobre o feminino foram ações similares às realizadas por homens: o arrojo nas ações, o desejo de poder e vitória, o orgulho de si, a bravura e a coragem no enfrentamento do outro, a ousadia, a inteligência, qualidades atribuídas aos heróis das epopeias, que conjugavam ainda a agressividade, a violência e a falta de compaixão pelo inimigo. O valor guerreiro dos heróis masculinos norteia-se por ferocidade, violência e força, traços que hoje consideraríamos pouco civilizados, mas que no período histórico era o ideal. Porém se o homem/guerreiro deveria seguir esse código, a mulher deveria ser seu oposto. A definição de um ser monstruoso, apresentada pelos dicionários, engloba todas as demais qualificações dadas ao feminino pelos autores clássicos da Antiguidade, variando do 40

A presença das mulheres na Literatura e na História

aspecto repulsivo e por vezes amedrontador, a um ser contrário às leis da natureza, perverso, desmedido etc. Considerando-se o ideal clássico de beleza, herdado dos gregos, a bela aparência está amplamente ligada à nobreza de caráter. Ao serem classificadas como mulheres monstruosas, os poetas e pensadores colocaram-nas fora do universo social aceitável, habitando o espaço da selvageria, da não cultura, do imoral. São personagens sem traços de bondade, empatia ou compaixão, seres violentos, aberrações da natureza e como tal devem ser temidos e impedidos de se moverem em liberdade, pois a qualquer momento podem colocar a sociedade em perigo. Ao deformarem fisicamente essas personagens, os imaginários masculinos do período revelam-nos a sua força. Quando as descrevem com garras de leões, ou águias, cobertas com cabeleiras de serpentes ou investem-nas de força descomunal e características animalescas, aproximam-nas das virtudes épicas dos heróis masculinos, seus atos são igualmente violentos, mas a força, ferocidade e liberdade são «dons» masculinos, jamais aceitos em uma mulher. A mulher mítica monstruosa é a que ousou expor em seu comportamento os atributos masculinos, mas, sobretudo, ousou dominar seu próprio corpo, sua sexualidade, seus desejos, sua vida. Elas se atreveram a ser livres, recusaram o jugo masculino que lhes era imposto. Quando não são descritas como seres horrendos, deformados, violentos, surgem com bela aparência, porém essa imagem atraente dissimula seu real caráter e intenções, elas, invariavelmente, trazem a morte e a dor para seu grupo. A dissimulação, a farsa, o embuste, a fala melíflua e enganosa são características femininas, o belo mau trama ardis. Há, no entanto, um grupo em menor número e paralelo ao das mulheres infames e monstruosas, são as enaltecidas pelos discursos enquanto modelos de virtudes: belas e 41

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

honradas, devotadas e obedientes aos preceitos da sociedade, elas possuem o silêncio como adorno. Nicole Loraux (1981, 85) aponta que a interdição a um corpo/voz é a interdição à vida plena como concebe Aristóteles: capaz de exprimir o justo e o injusto por meio de um discurso articulado. O ánthrōpos (ἄνθρωπος) marca sua superioridade sobre os animais pela fala inteligente e eficaz, que tem, em si mesma, o lugar das armas corporais (Retórica. I, 1355). Em sociedades como a grega, na qual o homem livre é marcado pelo privilégio da linguagem articulada e racional, o feminino é marcado pelo silêncio, pela interdição do falar e mesmo do livre pensar, pois às filhas e esposas legítimas é recomendado que sigam o pensamento do pai/esposo. Delas exigia-se não só a monogamia sexual, como a da fala: uma mulher/esposa só deve dirigir a palavra a seu marido, abstendo-se de, mesmo em situação extrema, dirigir-se a outro homem. Como pondera Giulia Sissa (1987, 77), uma mulher casada só deveria falar a seu marido e por meio de seu marido. A mulher ideal é aquela que se deixa matar e subjugar pelo masculino. É aquela que silenciosamente deixa-se conduzir pelo homem. Sem voz, sem desejo, sem prazeres, sem materialidade real para a sociedade, uma sombra enclausurada no gineceu, uma jarra (πίθος [pithos]) que guarda a semente de seu senhor e a faz crescer. Nesta obra são apresentadas personagens de ambos os grupos: das bárbaras monstruosas às modelos de conduta. No longo espaço que abarca o interior do gineceu e os limites da cidade descortina-se hoje uma rede de saberes e de vida produtiva das mulheres. Os estudos sobre o feminino têm mostrado que, ao contrário do discurso vigente, elas possuíam participação ativa na economia e na religião, ocupavam espaços importantes e transformavam o seu entorno, nos legando conhecimentos em diversas esferas. Repensar o lugar do 42

A presença das mulheres na Literatura e na História

feminino na História é reavaliar não só o passado, mas buscar um equilíbrio e melhor divisão de poder/voz para todos os segmentos da sociedade contemporânea. No século XXI ainda sentimos o peso dos antigos conceitos nas sociedades atuais, nos discursos publicitário, jornalístico e cotidiano. Aprisionando a mulher em um modelo de feminino castrado em sua sexualidade e em sua expressão de sujeito. Falar sobre as mulheres míticas é repensar o lugar e o papel do(s) feminino(s) hoje. Compreender o discurso feito sobre o feminino e pelo feminino ao longo de toda a História é reestruturar o passado e transformar as relações para o futuro, tornando-as mais justas, equânimes e harmoniosas. Fontes históricas ARISTÓTELES. 2011. Retórica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro. HORÁCIO. 2018. Odes. Tradução de Pedro Braga Falcão. Lisboa: Livros Cotovia. Bibliografia geral DUBY, G.; PERROT, M. 1991. Histoire des femmes en Occident. Paris: Plon. 5 vols. LORAUX, N. 1981. Sur la race des femmes et quelque-uns de ses tribos. In: LORAUX, N. Les enfants d’Athéna. Idées athémiennes sur la citoyenneté et la Division des sexes. Paris: La Découverte, p. 17–126. SISSA, G.1987. Les corps virginal. Paris: Librairie Philosophique J. VRIN.

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Μοῦσαι › Musas

por Bruno Palavro

As Musas (Μοῦσαι [Moũsai]) são divindades que presidem a palavra, primordialmente associadas ao canto e à eloquência, posteriormente separadas em esferas mais distintas de atuação nas artes e nas ciências. Entendidas como princípio inaugural e dirigente-constitutivo do canto (Torrano 2017, 21), é com sua invocação que são iniciados os poemas épicos mais antigos da Grécia Arcaica aos quais temos acesso: pelas «Musas Heliconíades» (Hesíodo. Teogonia, 1), em referência ao Monte Hélicon, uma de suas habitações na região da Beócia; pelas «Musas provindas da Piéria» (Hesíodo. Trabalhos e Dias, 1), em referência à região de seu nascimento; e pelas simples designações «musa» (Homero. Odisseia, I. 1) e «deusa» (Homero. Ilíada, I. 1). À parte a realidade mítica de suas habitações, as regiões às quais as Musas são conectadas indicam seus locais de culto. O segmento tradicionalmente conhecido como «Hino às Musas» (Hesíodo. Teogonia, 1–115) é nossa principal fonte de informações a respeito das deusas. Segundo ele, as Musas são nove filhas de Zeus e Memória (Μνημοσύνη [Mnemosýnē]), fruto de nove noites seguidas de coito entre as duas divindades; são agentes tanto da veracidade quanto das mentiras postas em canto; são capazes de dar à voz coisas presentes, futuras e passadas; são parceiras das Graças (Χάριτες [Khárites]) e do Desejo (Ἵμερος [Hímeros]) durante os festejos; foram responsáveis pela iniciação poética do pastor Hesíodo ao pé do monte Hélicon. Seus nomes são, de acordo com a ordem apresentada no poema: Clio (Κλειώ [Kleiṓ], «gloriosa»), Euterpe (Εὐτέρπη [Eutérpē], «a que bem apraz»), Talia (Θάλεια [Tháleia], «vicejante, abundante, festejante»), Melpômene (Μελπομένη

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[Melpoménē], «celebrante»), Terpsícore (Τερψιχόρη [Terpsikhórē], «a do prazer da dança»), Érato (Ἐρατώ [Eratṓ], «amável, atraente»), Polímnia (Πολύμνια [Polýmnia], «a dos muitos hinos»), Urânia (Οὐρανίη [Ouraníē], «celeste») e Calíope (Καλλιόπη [Kalliópē], «a de bela voz »). Esta última é considerada a mais proeminente das nove, pois também acompanha os reis em sua eloquência. Assim como na poesia arcaica, as Musas já aparecem conectadas a Apolo no âmbito mais amplo da música (Hesíodo. Teogonia, 94–95), na Grécia Clássica elas são vinculadas ao deus na condição de μουσηγέτης [mousēgétēs], «líder das Musas» (Platão. Leis, II. 653d). No Período Helenístico, cada deusa recebe um domínio mais definido de atuação: Clio na História, Euterpe nos instrumentos de sopro (referentes à poesia mélica), Talia na comédia, Melpômene na tragédia, Terpsícore na dança coral, Érato na poesia amorosa, Polímnia na poesia hínica, Urânia na astronomia e Calíope na poesia épica; já na tradição romana e posterior, as Musas gregas são assimiladas às Camenas (deidades originalmente associadas às fontes de água), como é atestado, por exemplo, na tradução latina da Odisseia feita por Lívio Andrônico (Smith 2012, 1). Dentre os relatos posteriores sobre tradições paralelas ao cânone hesiódico, destaca-se o do geógrafo e viajante grego Pausânias (c. 110–180), presente em sua obra Descrição da Grécia (IX. 29), segundo o qual teriam existido originalmente apenas três musas: Melete (Μελέτη [Melétē], «diligência, prática»), Mneme (Μνήμη [Mnémē], «memória») e Aedé (Ἀοιδή [Aoidḗ], «canção»). Essas teriam sido substituídas quando Piero, um nobre macedônio (epônimo de uma montanha/cordilheira e, infere-se, da região da Piéria), foi para a cidade de Téspias na Beócia, junto ao Monte Hélicon, e lá estabeleceu o culto das nove; além disso, ainda segundo Pausânias, alguns diziam que o próprio Piero havia gerado nove filhas e lhes dado os 46

A presença das mulheres na Literatura e na História

mesmos nomes das deusas. O viajante também lembra uma afirmação do poeta arcaico Mimnermo, de que a tríade de musas mais velhas fora gerada pelo Céu (Οὐρανός [Ouranós], vernaculizado como «Urano»), enquanto as nove mais jovens eram filhas de Zeus. É desconhecido qualquer paralelo com as Musas nas tradições poéticas do Oriente Próximo; por enquanto, as divindades são consideradas exclusivamente gregas (West 2003, 286). Tampouco há consenso para a etimologia da palavra «musa»: além da possibilidade de origem pré-helênica, pode-se fazer uma conexão vaga com a raiz indo-europeia *men- que justamente forma vocábulos relacionados a processos mentais e mnemônicos (Beekes 2010, 972–973). No português, temos as palavras derivadas «música» e «museu»: a primeira vem do grego μουσική [mousiké], que originalmente designava qualquer arte presidida pelas Musas, mas sobretudo a poesia cantada; a segunda tem origem em μουσεῖον [mouseĩon], que, antes de se referir à preservação e exposição de objetos do passado, designava um local onde qualquer arte relacionada às Musas fosse ensinada e cultivada. Ainda que desvinculada de seu contexto cultual e relegada ao domínio da alegoria ou da alusão poética, a influência das Musas gregas (às vezes conjugadas às Camenas latinas) também se fez presente na longa tradição de poesia lírica moderna europeia (ou baseada nos moldes europeus), que buscava fundamento na antiguidade greco-romana para conferir autoridade às suas novas composições poéticas. Fontes históricas HESIOD. 2006. Theogony; Works and Days; Testimonia. Edited and translated by Glenn W. Most. Cambridge/London: Harvard University Press (Loeb Classical Library). 47

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

HOMER. 1928. The Iliad (vol. I). With an English translation by A. T. Murray. London: William Heinemann LTD / New York: G. P. Putnam’s Sons (Loeb Classical Library). HOMER. 1945. The Odyssey (vol. I). With an English translation by A. T. Murray. Cambridge: Harvard University Press / London: William Heinemann LTD. (Loeb Classical Library). PAUSANIAS. 1903. Pausaniae Graeciae Descriptio (3 vols.) Leipzig: Teubner. Disponível em: https://tinyurl.com/ 4n84hqwn. Acesso em: 20 abr. 2021. PLATO. 1961. Laws (vol. I). With an English translation by R. G. Bury. Cambridge: Harvard University Press/London: William Heinemann LTD. (Loeb Classical Library). Bibliografia geral BEEKES, R. 2010. Etymological dictionary of greek. Leiden: Brill. SMITH, A. C. 2012. “Muses”. The Encyclopedia of Ancient History. Hoboken: Wiley Online Library. Disponível em: https://tinyurl.com/a8y9wob5. Acesso em: 22 mar. 2021. TORRANO, Jaa. 2017. O mundo como função de Musas. In: TORRANO, Jaa (Trad.). Hesíodo, Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, p. 13–97. WEST, M. L. 2003. The east face of Helicon: west Asiatic elements in Greek poetry and myth. Oxford: Clarendon Press.

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Νύμφαι › Ninfas

por María Cecilia Colombani

Na mitologia e na religião gregas, as ninfas eram deusas menores que habitavam ou personificavam vários aspectos da natureza. Acreditava-se que elas eram filhas de Zeus ou de vários titãs. Por exemplo, Atlas era o pai de três grupos de ninfas: as Hespérides, as Híades e as Plêiades. Outros titãs, Tétis e Oceano, eram os progenitores das chamadas Oceânides. Uma classificação subsequente as agrupou em Melíades, Dríades e Hamadríades (ninfas das árvores), Náiades (ninfas dos rios, lagos e correntes de água em geral) e Oréades (ninfas dos montes), et cetera. Embora fossem geralmente consideradas benevolentes, seu poder de sedução era temido, pois, como Pã, elas tinham o poder de levar os homens à loucura ou ao torpor, especialmente por volta do meio-dia. Artistas gregos e romanos as descreveram como belas jovens que viajavam ou tinham relacionamentos românticos com outros deuses. No entanto, os estudiosos têm um dilema quando se trata de discernir se os gregos tinham uma distinção conceitual entre heroínas e ninfas e o que as diferenciava substancialmente, uma vez que o termo nýmphē também poderia se referir a uma mulher, geralmente uma noiva, um conceito muito próximo do inglês bride, que descreve o estado da mulher entre o período anterior e posterior ao casamento. Não necessariamente implicava virgindade; as ninfas às vezes eram matronas, como Penélope na boca de Euricleia na Odisseia. O ponto é que quando uma mortal era chamada de ninfa, isso se referia ao seu caráter de ser sexuado (Larson 2001, 3).

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As fontes clássicas que dão conta de suas histórias e características são: Hino Homérico a Pã, Hino Homérico a Dioniso e Hino Homérico a Afrodite; os Hinos de Calímaco; a Teogonia de Hesíodo, a Ilíada e a Odisseia de Homero e, já em território romano, os Fastos e as Metamorfoses de Ovídio. Em Hesíodo, as chamadas Mélias são filhas de Gaia: «Não foi em vão que escaparam de suas mãos. Pois quantas gotas de sangue respingaram, todas foram reconhecidas por Gaia. E, ao final de um ano, ela deu à luz as poderosas Erínias, os gigantes altos com armas brilhantes, que seguram lanças longas em suas mãos, e as ninfas que eles chamam de Mélias na terra sem limites» (Hesíodo. Teogonia, 182–187). Pensemos no catálogo das Nereidas que Hesíodo nos entrega depois de ter apresentado Nereu, o pai: De Nereu e Dóris de belos cabelos, filha do Oceano, rio perfeito, nasceram filhas adoráveis e​​ divinas no mar estéril: Proto, Eucrante, Sao, Anfítrite, Eudora, Tétis, Galene, Glauce, Cimótoe, Espeio, Toé, a amável Hália, Pasítea, Erato, Eunice de braços róseos, a graciosa Melite, Eulímene, Agave, Doto, Proto, Ferusa, Dinamene, Neseia, Actéa, Protomedeia, Dóris, Pánope, a bela Galateia, a charmosa Hipótoe, Hipônoe de braços rosados, Cimódoce, que apazigua facilmente as ondas no mar sombrio e as rajadas dos fortes ventos, junto com Cimatólega e Anfitrite de belos tornozelos, Cimo , Ione, Halímeda com uma bela coroa, a sorridente Glaucônoma, Pontoporia, Leiágora, Evágora, Laomedeia, Polínoe, Autônoe, Lisiánassa, Evarne de forma encantadora e beleza impecável, Psámate de porte gracioso, a divina Menipa, Neso, Eupompe, Temisto, Prônoe e Nemertes que tem a inteligência de seu pai imortal (Hesíodo. Teogonia, 240–262).

O projeto de transcrever o catálogo, para além de sua extensão, consiste em destacar os adjetivos de cunho positivo e luminoso que caracterizam as Nereidas. Desconsiderando as referências hesiódicas ao tráfego comercial que atravessa o Egeu, típico dos séculos VIII e VII, fixamo-nos no registro de identidade das adoráveis ​​filhas de Nereu. 50

A presença das mulheres na Literatura e na História

A identificação da linhagem positiva a que as Nereidas parecem pertencer se dá a partir de duas linhas de interpretação: de um lado, pelas características luminosas que destacamos em nossa escrita, explicitamente desenvolvidas pelo poeta, mas, em uma segunda leitura, não menos interessante e contundente, pela etimologia dos nomes que algumas delas ostentam, onde a mesma luminosidade toca, por sua vez, duas faces, seja a caracterização, seja a funcionalidade, ligada justamente a esse fundo mercantil marítimo ao qual nos referimos. Exploraremos apenas alguns. Sao é a salvadora, Eudora, aquela que dá prosperidade, Galena, a calma, Pasítea, a muito divina, Erato, a desejável, Eunice, a vitória fácil, Lélite, a doce, Agave, a resplandecente, Doto, a generosa, Dinamene, a poderosa, Dóris, a dadivosa, Pânope, aquela que tudo vê, Hipótoe, a veloz como um cavalo, Hipônoe, a inteligente como um cavalo, Cimatólege, aquela que acalma as ondas, Halímeda, aquela que cuida do mar, Pontoporeia, aquela que permite cruzar o alto-mar, Leiágora, aquela de fala mansa, Laomeda, aquela que cuida das pessoas, Polínoe, aquela que entende muitas coisas, Lisiánassa, a senhora da liberdade, Evarne, a rica em gado, Temiste, a observadora das leis divinas, Prônoe, a previdente, Nemertes, a sem pecha (Pérez Jiménez 1995, 81). Ignoramos a consideração das Nereidas cujos nomes estão relacionados a marcas topológicas, sempre ligadas a um ambiente marítimo: ilhas, promontórios, ondas, cavernas, portos, falésias, mares, areias, etc. Se voltarmos às figuras escolhidas, é possível observar marcas luminosas, em grande parte indicadas pelo prefixo eu, que enfatiza a valência positiva. Doçura, amabilidade, graça, beleza, charme, beleza sem pecha, riso, poder, prosperidade, divindade, inteligência, suavidade, velocidade, deleite, calma, 51

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eloquência são as notas de uma linhagem feminina que pede plena luminosidade quando se identificam às figuras femininas de uma linhagem diurna. Outro aspecto que regula seu pertencimento à citada linhagem é o registro de sua funcionalidade, bem como de suas capacidades; com efeito, algumas delas parecem estar associadas a uma função de cuidar ou acalmar (da cidade, do mar; a arrebentação do mar sombrio ou os ventos fortes) ou a uma função facilitadora (na travessia do alto-mar) ou a uma linha que revela suas capacidades, como ver tudo, compreender, observar as leis, conceder o desfecho, como Eucranta, salvar, dar prosperidade, dar, entender-se como Autônoe. Tétis e Oceano parecem ter gerado uma linhagem interessante para os nossos propósitos interpretativos, especialmente no que diz respeito a um novo coletivo feminino que apresenta personagens semelhantes, do mesmo teor diurno daquelas que observamos em ocasiões anteriores. Lembremos que Oceano era um rio que abraçava a Terra e que corria em volta de si mesmo. Depois de descrever o nascimento dos rios, o poeta nos informa de um nascimento múltiplo: Houve também uma estirpe sagrada de filhas que na terra se encarregam de criar os homens na companhia do soberano Apolo e dos Rios e que receberam de Zeus este destino: Peitó, Admete, Iante, Electra, Dóris, Primno, a divina Urânia, Hipo, Clímene, Ródia, Calírroe, Zeuxo, Clítia, Idía, Peisítoe, Plexaura, a encantadora Galaxaura, Dione, Melóbose, Toé, a bela Polidora, Cerceida de figura graciosa, Pluto de olhos bovinos, , Perseida, Ianeira, Acaste, Iante, a desejável Pétrea, amável Menesto, Europa, Métis, Eurínome, Telesto de peplo de açafrão, Criseia, Ásia, a desejável Calipso, Eudora, Tique, Anfiro, Ocírroe e Estige, aquela que é a mais importante de todas (Hesíodo. Teogonia, 349–361). 52

A presença das mulheres na Literatura e na História

Como o próprio Hesíodo nos informa, essas são as filhas mais velhas do casal. Os mesmos adjetivos que caracterizaram as Nereidas aparecem neste catálogo, devolvendo a imagem positiva das Oceânides: beleza, graça, charme, delicadeza, elas mais uma vez marcam a identidade de um grupo que parece ganhar importância na Teogonia. Como afirma Pérez Jiménez (1995, 86): «os nomes das Oceânides correspondem às mesmas idéias das Nereidas com as quais, em alguns casos, coincidem». Entre elas, duas se distinguem por terem se tornado esposas de Zeus: a primeira, Métis, e a terceira, Eurínome, mãe das Graças. Seguindo a obra de Pérez Jiménez, podemos traçar as marcas de uma linhagem positiva na etimologia de seus nomes, revelando, mais uma vez, a identidade e as funções que sustentam o pertencimento a um sistema luminoso. Algumas carregam referências relacionadas à cor, geralmente em relação à água ou a elementos naturais: Iante é violeta, Electra é âmbar, Urânia é celestial, Ródia é rosa, Galaxaura a da água como leite, Criseia é ouro; outras repetem a gama de valorações positivas. Assim, Peitó é a persuasiva, Clímene, a célebre, Calírroe é aquela com belas correntes, Clítia, a ilustre, Ídia a perita, Peisítoe, a rápida em persuadir, Toé, a rápida, Métis, a astúcia, Telesto, perfeita, às quais se somam as conotações positivas que o próprio Hesíodo insere em sua descrição. Assim, o encanto, a graça, a beleza, o deleite, explicitamente atribuídos pelo poeta em seu breve catálogo, juntam-se a essas atribuições etimológicas do nome como marca de identidade: persuasão, celebração, perícia, rapidez, inteligência, entre outras. Finalmente, por um lado, as capacidades voltam a aparecer como notas identitárias com viés positivo: mais uma vez, Dóris, aquela que dá presentes, Zeuxo, aquela que une, Eudora, aquela que traz prosperidade; ou, por outro lado, 53

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a abundância como nota positiva: Polidora, a de muitos dons, Pluto, que personifica a riqueza, Eurínome, a de um vasto prado, a própria Eudora, representando a prosperidade. Assim, elas compõem um sistema de valoração positiva que regula o pertencimento a um dispositivo diurno com um viés claro e longe de todas as conotações sombrias e tenebrosas. Hesíodo conclui deste modo, passando-as em revista: Essas são as filhas mais velhas que nasceram do Oceano e de Tétis. E ainda existem muitas outras; pois há três mil Oceânides de tornozelo fino que, amplamente distribuídas, guardam igualmente a terra e as profundezas das lagoas, filhas resplandecentes de deusas (Teogonia, 363–367).

Duas funções parecem coroar a «estirpe sagrada» dessas «resplandecentes filhas de deusas»: a criação dos homens, junto com um companheiro luxuoso, Apolo, e a guarda da terra e das profundezas das lagoas. Na realidade, as Ninfas são reconhecidas como kourótrophoi, «nutriz dos jovens» e doadoras de fertilidade às mulheres, o que estabelece uma ligação interessante com o poder, com a capacidade de conduzir e outorgar, nem mais nem menos, que algo tão precioso para as mulheres como a fertilidade.. Tal é, por exemplo, o papel de Hécate, que, «desde o início foi nutriz de jovens» (Hesíodo. Teogonia, 452). Tradução do castelhano para o português: Semíramis Corsi Silva

Fontes históricas HESÍODO. 1995. Teogonía, Trabajo y Días, Escudo. Traducción y notas de Aurelio Pérez Jiménez. Buenos Aires: Planeta Deagostini. 54

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral DIXON-KENNEDY, M. 1998. Encyclopedia of Greco-Roman Mythology. Santa Barbara/Denver/Oxford: B, p. 220–221. LARSON, J. 2001. Greek Nymphs: Myth, Cult, Lore. Oxford: Oxford University Press. NARDO, D. 2006. The Greenhaven Encyclopedia of Ancient Greece. Detroit: Greenhaven Press, p. 231. ROMAN, L.; ROMAN, M. 2010. Encyclopedia of Greek and Roman Mythology. New York: Facts on File. An imprint of Infobase Publishing, p. 340.

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Ἔχιδνα › Equidna

por Bruno Palavro

Equidna (Ἔχιδνα [Ékhidna], «víbora») é uma divindade bestial, quase sempre caracterizada como moça na metade superior de seu corpo e como serpente na metade inferior. Seu nome é normalmente associado à palavra masculina ἔχις - ékhis, também traduzível como «víbora, serpente», embora talvez tenha proveniência pré-helênica (Beekes 2010, 489). Apesar de diversas e contraditórias, as fontes mitológicas têm em comum sua relação com a linhagem de monstros da progressão cosmogônica. A fonte mais antiga a tratar de Equidna e de sua linhagem (Hesíodo. Teogonia, 270-332) nos leva a alguns problemas de interpretação. De acordo com a análise que mais parece se sustentar linguística e teratologicamente (West 1966, 244, 249, 254-255, 256), a cruel, imortal e sempre jovem Equidna foi gerada por Ceto e Fórcis, e gerou, por sua vez, ao unir-se com Tifão (Τυφάων [Typháon], provavelmente o mesmo que Τυφωεύς [Typhoeús]), os cães Orto e Cérbero, bem como a serpentina Hidra de Lerna; seria, ainda segundo essa interpretação, avó da Quimera (Χίμαιρα [Khímaira], «cabra») e bisavó de Fix (Φίξ [Phíx], variante beócia de Σφίγξ [Sphínx], a Esfinge) e do Leão de Nemeia. Sua habitação é uma caverna nos Arimos/entre os arimos (εἰν Ἀρίμοισιν [ein Arímoisin]), embora não saibamos se estes são um povo ou uma cadeia de montanhas, nem sua exata localização. Das especulações existentes (West 1966, 250-251), a mais difundida aponta os arimos como povo epônimo de

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uma cadeia montanhosa da Cilícia, na Ásia Menor, junto à qual se encontrava a gruta Corícia. A palavra era comumente associada ao referido Tifão/Tifeu. Também o famoso Dicionário de Mitologia Grega e Romana (Grimal 2005, 142) localiza Equidna numa caverna da Cilícia, na região dos «Arinos» (sic), mas traz ainda uma habitação alternativa, no Peloponeso, onde teria sido morta por Argo, monstro de cem olhos (i. e., Ἄργος ὁ πανόπτης [Árgos ho panóptes], «Argos, o onividente»); além disso, entende a Quimera, Fix e o Leão de Nemeia também como filhos de Equidna. Essas informações distintas provavelmente se baseiam nos escritos de Pseudo-Apolodoro, que inclui entre as crias de Equidna com Tifão a águia do Cáucaso (conhecida por devorar o fígado de Prometeu), o centicéfalo dragão do jardim das Hespérides (conhecido como Ládon ou Ladão, do grego Λάδων [Ládon]) e a Porca Cromiônia (Apolodoro. Biblioteca, II. 1-5; III. 5. 8; epit. 1). Em outra fonte tardia (Higino. Fábulas, 151), mantêm-se como filhos de Equidna e Tifão o dragão das Hespérides, Cérbero, a Hidra, e Esfinge e a Quimera, mas são adicionados ainda o dragão da Cólquida (que guardava o Velocino de Ouro), Górgon (mãe de Medusa, segundo o autor) e Cila (descrita como mulher na parte superior do corpo, mas com seis cachorros brotados na parte inferior). Apenas parte dessas informações constam no Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Há também versões alternativas de sua ascendência: no lugar de Ceto e Fórcis, aparecem Terra (Γῆ [Gẽ], conhecida pelo vernáculo «Gaia») e Tártaro como genitores de Equidna (Apolodoro. Biblioteca, II. 1. 2); ou Estige e um certo Peiras, «seja lá quem for» (Pausânias. Descrição da Grécia, VIII. 18. 2); ou até mesmo Fanes, divindade primordial da tradição órfica, segundo Atenágoras (fr. 58 Kern). 58

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Há uma história, contada pelos habitantes do Ponto Euxino, que associa «uma víbora biforme» (ἔχιδναν διφυέα [ékhidnan diphyéa]) a Héracles e a toda a linhagem dos citas (Heródoto. Histórias, IV. 8-10): enquanto conduzia seu gado roubado pelo território da futura Cítia, Héracles procurava seus cavalos perdidos; no meio da busca, encontrou numa caverna uma «moça mista», humana das nádegas para cima e serpente da metade para baixo, que prometeu devolver os cavalos de Héracles se este se deitasse com ela. Depois de cumprida a missão, Héracles veio a saber que engendrara três filhos. O herói então deu para a moça um arco e um cinto, e lhe disse que quando os meninos crescessem, o que puxasse o arco e usasse o cinto ficaria com eles e baniria os outros. Foi Cites, o filho mais novo, quem cumpriu a vontade do pai e baniu os irmãos Agatirso e Gelono, tornando-se fundador epônimo dos citas. Representações detalhadas de Equidna são raras. O relato de Pausânias acerca do grande trono de Apolo em Amíclas, na Lacônia, feito por Baticles da Magnésia, menciona as imagens de Equidna e Tifeu à esquerda do trono, sem explicitar as características da divindade (Descrição da Grécia, III. 18. 9-10). Já a referida tradição órfica, diferentemente da meio-moça meio-serpente das descrições de Hesíodo e de Heródoto, a apresentava como uma terrível serpente, apenas com a cabeça de uma bela moça (fr. 58 Kern); Aristófanes, por sua vez, faz uma breve menção às cem cabeças da criatura (As Rãs, 473), o que se aproxima da descrição das cem cabeças serpentinas de Tifeu, conforme Hesíodo (Teogonia, 824-828). De todo modo, estamos diante da concepção geral dos monstros gregos: criaturas híbridas que normalmente unem em si elementos díspares, como o humano e o bestial, 59

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ou combinam espécies distintas, ou envolvem uma multiplicação de características humanas ou animais (Clay 2003, 151). No caso específico de Equidna, o misto de mulher e serpente (bem como a imagem das Górgonas, especialmente de Medusa) incide ainda hoje de formas diversas no imaginário da literatura fantástica e de RPGs afins. Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. The Library (2 vols.). Translated by Sir James George Frazer. London: William Heinemann LTD./ New York: G. P. Putnam’s Sons (Loeb Classical Library). ARISTOPHANES. 1907. Aristophanes Comoediae (vol. 2). Edited by F. W. Hall and W. M. Geldart. Oxford: Clarendon Press. Disponível em: https://tinyurl.com/3ux99jf7. Acesso em: 09 jul. 2021. HERODOTUS. 1928. The Persian Wars (vol. 2). Translated by A. D. Godley. London: William Heinemann LTD./ New York: G. P. Putnam’s Sons (Loeb Classical Library). HESIOD. 2006. Theogony; Works and Days; Testimonia. Edited and translated by Glenn W. Most. Cambridge/ London: Harvard University Press (Loeb Classical Library). HYGINUS, G. I. 1960. The Myths of Hyginus (including the Fabulae and the second book of the Poetica Astronomica). Translated and Edited by Mary Grant. Lawrence: University of Kansas Press, 1960. KERN, Otto (ed.). 1922. Orphicorum fragmenta. Berolini (Berlim): Weidmann. Disponível em: https://tinyurl.com/4k2fa9rn. Acesso em: 09 jul. 2021. PAUSANIAS. 1903. Pausaniae Graeciae Descriptio (3 vols.) Leipzig: Teubner. Disponível em: https://tinyurl.com/ 3t49ysek. Acesso em: 09 jul. 2021. 60

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Bibliografia geral BEEKES, R. 2010. Etymological dictionary of Greek. Leiden: Brill. CLAY, Jenny. 2003. Hesiod’s Cosmos. Cambridge: Cambridge University Press. GRIMAL, Pierre. 2005. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. WEST, M. L. 1966. Hesiod, Theogony: edited with prolegomena and commentary. Oxford: Oxford University Press.

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Δάφνη › Dafne

por Pedro Schmidt

Personagem da mitologia greco-romana, uma ninfa associada ao elemento aquático. Do grego antigo Δάφνη [Dáphnē] e de sua forma latinizada Daphne, que significa «loureiro», a árvore na qual é transformada. O mito de Dafne pode ser dividido em duas vertentes; a mais difundida e canônica (Lightfoot 2000, 12) é a relatada por Ovídio, em que Dafne é desejada e perseguida por Apolo/Febo; a outra versão, encontrada em Partênio de Niceia e em Pausânias, enfatiza o amor de Leucipo por Dafne. Ambas as vertentes localizam o enredo no tempo mítico atemporal. O mais antigo registro escrito supérstite sobre o mito é o de Partênio (séc. I aEC) em Sofrimentos de Amor 15 (Knox 1990, 190; Lightfoot 2009, 599), cujo único manuscrito traz uma anotação mencionando a derivação de sua história a partir das elegias de Deodoro de Eleia —um poeta do qual não consta qualquer outro testemunho— e do livro 15 de Filarco —historiador alexandrino do século III aEC, cujos escritos se perderam para a posteridade. Partênio relata que Dafne era filha de Amiclas, vivia na região da Lacônia, e que, desprezando a vida na cidade e dedicando-se à caça, torna-se pupila da deusa Ártemis. Leucipo se apaixona por Dafne, mas percebendo-a insensível a seus rogos, veste-se como mulher e passa a integrar a comitiva de caça de sua amada. Nessa condição, Leucipo conquista as graças de Dafne, estando sempre em sua companhia e tendo com ela contato físico. O deus Apolo, que também estava apaixonado por Dafne, teve ciúmes dessa relação. Instiga na mente de Dafne o desejo de banhar-se, e quando Dafne e sua comitiva tiram suas roupas

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para se banharem no rio, Leucipo reluta em fazer o mesmo; assim, as caçadoras arrancam a roupa de Leucipo, percebem seu sexo masculino, e imediatamente o matam com suas lanças de caça. Então, Apolo se aproxima de Dafne, mas esta corre em fuga. Quando ela está prestes a ser alcançada pelo deus, faz uma prece a Zeus, para que seja retirada do mundo mortal. Sendo atendida, ela é transformada em loureiro. Pausânias (c. 115–180 EC) apresenta a mesma versão em Descrição da Grécia 8.20. Presumivelmente a fonte de seu relato é também Filarco (Lightfoot 2000, 12), embora Pausânias mencione que a história é tratada pelos «poetas» e diga estar apresentando a versão popular na Arcádia e na Élida, e não a versão contada pelos sírios. A diferença com relação a Partênio é que Pausânias não faz menção aos progenitores de Dafne e situa a ação na Arcádia, às margens do rio Ladão, ao invés da Lacônia. Em outra passagem (10. 7. 8), Pausânias justifica o uso do louro como símbolo da vitória nos Jogos Píticos (realizados em homenagem a Apolo) em função de Apolo ter se apaixonado pela «filha de Ladão», unindo assim a progenitura à geografia de seu relato. Ovídio (43 aEC–17/18 EC), em Metamorfoses (1. 452–567), explora uma variante do mito sem precedentes em registros escritos supérstites. Aqui, Dafne é uma ninfa filha do rio Peneu, localizado na Tessália, onde a história se passa. A narrativa começa com uma altercação entre os deuses Febo e Cupido; Febo zomba de Cupido por este estar carregando flechas e aljava, armas costumeiras de Febo; Cupido retruca que o poder de suas pequenas flechas é maior, e atira contra Febo uma flecha de ouro —que faz brotar na vítima o amor— ao mesmo tempo em que atira em Dafne uma flecha de chumbo —que torna a vítima impassível ao amor. Dafne, portanto, torna-se devota de Diana e recusa todas as propostas de casamento, pedindo a seu pai que viva para sempre virgem, 64

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na condição de caçadora. Febo, entretanto, inflamado de amor, aproxima-se dela e faz-lhe elogios, tentando seduzi-la. Ela se põe a correr, e Febo corre atrás dela, gritando para que ela pare e ceda a suas investidas. Dafne continua a correr, tomada de medo, até que por fim é esgotada pelo cansaço. Percebendo que o deus está prestes a lhe alcançar e violentar, ela faz uma prece a seu pai, o rio Peneu, para que destrua seu belo corpo, fonte de sua infelicidade. Seu pedido é imediatamente atendido, e ela se transforma em loureiro. Febo, porém, continua a desejá-la, mesmo nessa nova forma: acaricia-lhe os troncos, abraça-lhe os ramos, beija-lhe a madeira. O deus toma a palavra e anuncia que o loureiro será doravante sua árvore e a folha de louro estará sempre em sua fronte, em sua cítara e em sua aljava; além disso, o louro será o símbolo do poder perene da casa imperial romana. Para além desses três principais relatos, a personagem Dafne também aparece brevemente mencionada em outras passagens literárias da Antiguidade. Higino (c. 64 aEC–17 EC) sintetiza em duas frases a versão adotada por Ovídio, inclusive com menção a Peneu como pai (Fábulas 203). É provável que a fonte de Higino tenha sido a mesma de Ovídio. Na Tebaida de Estácio (c. 45–96 EC), há uma alusão implícita a Dafne, quando se diz que Ladão foi «quase sogro» de Febo (4. 289–290). Plutarco (c. 46–119 EC), na Vida de Ágis 9.2, discorre sobre um templo de Pasífae na cidade de Tálamas, na Lacônia, e diz que Filarco associa o oráculo de Pasífae a Dafne, filha de Amiclas, que fugiu da investida de Apolo, mas ao tornar-se árvore recebeu do deus o dom da profecia. Filóstrato (c. 170–250 EC), na Vida de Apolônio de Tiana (1.16), menciona um templo de «Apolo Dafneu» nas cercanias de Antioquia, e indica que o povo local, de etnia assíria, havia 65

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se apropriado do mito proveniente da Arcádia; o rio da região passou a ser chamado de Ladão, unificando a progênie ao local de metamorfose de Dafne. Em Dionisíaca de Nono de Panópolis (séc. V EC) há novamente uma alusão à ninfa como filha de Ladão, sem contudo citar-lhe o nome, que escapou ao leito de Febo mas acabou tornando-se a árvore cujos ramos enfeitam o cabelo do deus (42.386–387); a menção encontra-se dentro da fala de Dioniso para Béroe, em que aquele tenta seduzir esta, empregando como argumento um catálogo de exemplos de jovens virgens que relutaram em ceder ao amor de um deus. Sérvio (sécs. IV–V EC), em seu comentário sobre a Eneida de Virgílio, anota sobre a expressão «antigo loureiro» (2.513) um breve relato do mito, em que Dafne é filha de Ladão, o rio da Arcádia, e da Terra; devotou-se à virgindade e à caça, mas ao ser perseguida a acossada por Apolo, faz uma prece à sua mãe, que a atende e a transforma no loureiro. A essa exposição se une um trecho do Progymnasmata 5 de Aftônio (c. séc. IV EC); são os únicos testemunhos que revelam a ascendência materna da ninfa, dado que será incorporado às recepções modernas do mito (Knox 1990, 188). De maneira geral, o mito de Dafne tem a função etiológica de justificar o uso dos ramos do loureiro como símbolo do deus Apolo. Na Beócia do período arcaico, a cada nove anos ocorria a Dafnefória, um festival em homenagem a Apolo, em formato de procissão de jovens, em que se conduzia os ramos do loureiro (Langdon 2001, 595–596). Algumas localidades receberam o nome de Dafne: uma cidade no Egito, próxima ao delta do Nilo; uma fortificação às margens do Danúbio, construída no séc. IV EC, na então província romana da Mésia; e um arrabalde de Antioquia, onde havia o templo para Apolo Dafneu, que incorporou para si a narrativa mítica, variante descrita por Filóstrato e conhecida por Pausânias. Com exceção 66

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desta última, as demais localidades não evidenciam uma ligação aparente com a personagem mítica, tendo provavelmente derivado seu nome a partir da árvore. Escavações arqueológicas identificaram um templo dedicado a «Apolo Dafnéforo» na Eritreia, datado entre os sécs. VII e VI aEC, e Pausânias (Descrição da Grécia, 3. 24.8) menciona um templo a «Ártemis Dafneia» na Lacedemônia. A figura de Dafne e a pungência de sua fuga, de seu medo e de sua transformação têm fornecido inspiração para outros campos da arte para além da literatura. Na escultura, a representação mais famosa é a de Bernini, Apollo e Dafne, terminada em 1625, que transpõe para o mármore o processo de transformação da jovem em loureiro; Daphne (1917/18) de Renée Sintenis enfatiza o sofrimento e a vulnerabilidade da personagem. Na pintura, a cena de perseguição culminando na transformação foi retratada por Antonio del Pollaiuolo (c. 1480), Paolo Veronese (c. 1565), Rubens (c. 1636), Giovanni Battista Tiepolo (c. 1745) e John William Waterhouse (1908). A versão de Ovídio influenciou a ópera mais antiga de que se tem registro (Sonneck 1913), Dafne, cujo libreto foi redigido por Ottavio Rinuccini e musicado por Jacopo Peri e Jacopo Corsi em 1598; o mesmo libreto foi utilizado por Marco da Gagliano em 1608, e depois traduzido do italiano para o alemão em 1627 por Martin Opitz e musicado por Heinrich Schütz; essas óperas se perderam, embora o libreto tenha se conservado. Em 1938, há a primeira encenação da ópera Daphne de Richard Strauss, com libreto de Joseph Gregor, cujo enredo se baseia predominantemente nas exposições de Partênio e de Pausânias (Lightfoot 2000, 13). O nome Daphne é ainda utilizado na botânica para designar um gênero de plantas, ao qual pertencem cerca de 95 espécies, mas o loureiro (Laurus nobilis), a árvore associada à personagem mítica, não se filia a esse gênero. 67

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Fontes históricas APHTHONIUS. 1926. Progymnasmata. Edited by H. Rabe. Leipzig: Teubner. FLAVIUS PHILOSTRATUS. 1870. Opera. Vol. I Edited by C. Kayser. Leipzig: Teubner. HYGINUS. 1934, Fabulae. Edited by H. Rose. Leiden: Sijthoff. MARCUS SERVIUS HONORATUS. 1881. In: Vergilii carmina comentarii. Edited by G. Thilo e H. Hagen. Leipzig: Teubner. NONNOS. 1943. Dionysiaca. Translated by W. Rouse. Cambridge (MA): Harvard University Press (Loeb Classical Library). PARTHENIUS OF NICAEA. 2009. “Sufferings in Love”. In: LIGHTFOOT, J. Hellenistic Collection. Cambridge (MA): Harvard University Press (Loeb Classical Library). PAUSANIAS. 1933. Description of Greece. Vol. III. Translated by W. Jones. Cambridge (MA): Harvard University Press (Loeb Classical Library). PLUTARCH. 1921. Plutarch’s Lives. Transalated by B. Perrin. Cambridge (MA): Harvard University Press (Loeb Classical Library). PUBLIUS OVIDIUS NASO. 2004. Metamorphoses. Edited by R. Tarrant. Oxford: Clarendon Press. STATIUS. 1928. Silvae. Thebaid (1–4). Translated by J. Mozley. New York: Putnam’s Sons. Bibliografia geral KNOX, P. 1990. In Pursuit of Daphne, TAPA, 120, p. 183–202. 68

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LANGDON, S. 2001. Beyond the Grave: Biographies from Early Greece, American Journal of Archaeology, 105 (4), p. 579–608. LIGHTFOOT, J. 2000. The roots of ‘Daphne’, Hermathena, 168, p. 11–19. SONNECK, O. 1913. ‘Dafne’, the First Opera: A Chronological Study, Sammel-bände der Internationalen Musikgesellschaft, 15, p. 102–110.

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Ἑρμαφρόδιτος › Hermafrodite

por Pérola de Paula Sanfelice

Hermafrodite ou Hermafrodito apareceu primeiro na literatura grega por volta do século IV aEC, provavelmente. O mito mais famoso é a história contada por Aristófanes no Banquete de Platão. Segundo Platão (O Banquete, 191d–192b), antigamente a natureza humana era composta de três tipos de seres: os machos, filhos do Sol, as fêmeas, filhas da Terra e os andróginos, filhos da Lua, que, por sua vez, era filha do Sol e da Terra. No mito grego de Platão, o conceito de androginia, que aí encontra sua fonte inspiradora do termo, evoca o saudosismo de uma vivência de completude. Segundo Jorge Leite Junior (2008), através de rituais religiosos de influência oriental (como a troca ritual de roupas entre os sexos) e, principalmente, via representação estética, o mito do andrógino divulgado por Platão, sem foco discursivo algum em sua genitalidade, vai desenvolver-se gradualmente como a imagem de uma pessoa com dois sexos. No entanto, um dos maiores modelos dessa figura com os dois sexos pode ser encontrado no livro Metamorfoses, de Ovídio, escrito entre 8 e 14 EC, no qual o autor narra o, na época já muito antigo, mito do deus Hermafrodito. Conforme Ovídio, do encontro amoroso de Hermes e Afrodite nasce o deus, o menino, tão belo quanto a mãe, criado pelas ninfas na floresta de Ida até completar quinze anos, quando resolveu sair pelo mundo.  Chegando à Cária, perto de Halicarnasso, aproximou-se de um lago de águas límpidas e logo despertou o amor da ninfa que habitava nas proximidades, a bela Salmácis. Assim como Narciso recusará as investidas da ninfa Eco, Hermafrodito recusou as de Salmácis. Fingindo se conformar, a jovem se

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escondeu e espiou os movimentos do rapaz de longe. Quando ele foi se banhar no lago, domínio da ninfa, ela aproveitou a oportunidade e entrou na água também. Com toda a força o agarrou, prendendo-se a ele. Ele tentou se soltar, mas a ninfa pediu aos deuses que os dois corpos não fossem nunca mais separados —e foi prontamente atendida: os corpos de Hermafrodito e Salmácis foram fundidos num só, surgindo um ser de natureza dupla que representou a fusão dos dois. Diante destas histórias surgiram várias interpretações sobre o mito. Marie Delcourt (1961) sugere que esse mito possa ser a percepção dos antigos perante os seres humanos que nasciam com os dois sexos, nesse sentido, o culto do deus deus hermafrodita seria uma tentativa de minar gradualmente o velho terror de maléfica androginia (Delcourt 1961, 45). Contudo, os estudos sobre Hermafrodito são parcos e a evidência literária é escassa, sobretudo a que trata das crenças e experiências religiosas. Por outro lado, as representações artísticas são numerosas, sobretudo, nas pinturas da cidade romana de Pompeia (soterrada em 79 EC), que atestam a popularidade desta divindade em contexto sagrado. Essas representações podem fornecer as maiores evidências das construções artísticas da sexualidade, porque elas podem discursar a respeito das reações dos espectadores. Para o especialista em Pompeia, Antonio Varone (2001) a presença das pinturas e esculturas da divindade em casas romanas, faz menção a um efeito provocado pela imagética do deus, a beleza, delicadeza e sensualidade desta imagem tão contraditória, que é ao mesmo tempo feminina e possui um membro masculino, assume que para os antigos essa duplicidade seria recebida também com estranheza e, por isso, com hilaridade. O historiador da arte, John Clarke (2001), interpreta esta emblemática deidade de outra maneira, para o autor, o espectador que se deparasse com essa figura, ao observá-la 72

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de costas, veria que aparenta ser uma linda mulher, com um belíssimo cabelo, e com curvas sinuosas, mas, quando esse espectador se move em torno da escultura se depararia com um rosto igualmente belo, mas masculino, e se surpreenderia com a combinação de seios e pênis num mesmo corpo.

Fig. 1: Hermafrodito Dormindo (costas). Museu do Louvre (Paris). Foto do Acervo Pessoal de Semíramis Corsi Silva (jan./2013).

Fig. 2: Hermafrodito Dormindo (frente). Museu do Louvre (Paris). Foto do Acervo Pessoal de Semíramis Corsi Silva (jan./2013).

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Para Clarke (2003, 73), este equilibrado conjunto de elementos proporcionaria a reação de «surpresa», sendo esta a principal função tanto das esculturas quanto das pinturas. A surpresa do duplo sentido seria lembrar ao espectador que «nem tudo é o que parece ser», revelando tanto a natureza dual do Hermafrodito quanto a sofisticação do público para a análise dessas representações. É comum na literatura romana e nas discussões modernas ressaltarem o seu poder de virilidade, a potência fálica. No entanto, Hermafrodito, filho de Afrodite, pode ter uma forte relação com a fertilidade, seus seios, fazem alusão a um aspecto nutritivo do seu corpo de mulher transformada (Sanfelice, 2013). A equação dos seios e do falo, além da qualidade de proteção expressa na fusão visual dos gêneros, faz desta entidade mitológica um guardião da fertilidade humana. Portanto, conhecer esta divindade nos permite compreender melhor o significado da sexualidade para a sociedade romana ao focarmos em suas práticas ritualísticas, pois é no culto das divindades que podemos perceber elementos que nos fornecem visões menos normativas desta sociedade, que por anos recebe o rótulo de ‹falocêntrica› e que, por muitas vezes, é recuperada como a origem destes ideais para legitimar certos discursos políticos do nosso presente. Esse olhar libertário para a Antiguidade também foi recuperado pelo filósofo Michel Foucault, ao trabalhar com os dramas biográficos de um/a hermafrodita. No prefácio do livro Herculine Barbin – O diário de uma hermafrodita (1982), Foucault relata o drama vivido por Herculine, revelando a violência de sistemas discursivos (o sistema médico e o sistema jurídico) que reivindicam «a verdade» do sexo em detrimento da ética e do respeito à vontade dos indivíduos. Ao apresentar o manuscrito biográfico, Foucault nos mostra que ela/ele tinha consciência de que nem sempre tal classificação imperou na 74

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sociedade e, assim, Herculine Barbin buscava resgatar da Antiguidade o mito do Hermafrodito como uma tentativa de recuperação da sua dignidade: «[o] que ela [Herculine] evoca do seu passado é o limbo feliz de uma não-identidade» (Foucault 1982, 07). Foucault explicitamente condiciona a felicidade de Herculine Barbin à sua condição hermafrodita em uma cultura que, na época, não oferecia alternativas satisfatórias. Diante de um contexto insatisfatório, Herculine Barbin buscou nos mitos uma inteligibilidade de sua situação sexual, em suas palavras: «Confesso que fiquei particularmente transtornada com a leitura das Metamorfoses de Ovídio. Quem as conhece pode ter uma ideia do que significam [...]» (Foucault 1982, 26). Ou seja, conhecer a potencialidade dessa divindade antiga é uma possibilidade de apreciarmos as múltiplas formas de se existir no mundo e na História. Fontes históricas PLATÃO. 1996. O Banquete. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro. OVIDIO. 1990. Metamorfosis. Traducción de António Ruiz de Elvira. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas Referências bibliográficas CLARKE, J. 2003. Roman Sex: 100 B.C. to A.D. 250. New York: Harry N. Abrams Inc. Publishers. DELCOURT, M. 1961. Hermaphrodite. London: Longacre Press. FOUCAULT, M. 1982. Herculine Barbin: o diário de um hermafrodita. Rio de Janeiro: Francisco Alves. FOUCAULT, M. 2009. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal. 75

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KEULS, E. C. 1988. Il regno della fallocrazia – La politica sessuale ad Atene. Milano: Arnoldo Mondadori Editore S.p.A. LEITE JR., J. 2008. Nossos Corpos Também Mudam: Seco, Gênero e a Invenção das Categorias ‘Travesti’ e ‘Transexual’ no Discurso Científico. Tese de Doutorado em Ciências Sociais defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC. SANFELICE, P. P. 2013. A Arte do Corpo: Incorporando a sexualidade Masculinas e Feminina na Cultura Material de Pompeia, Revista Memorare, vol. 1, p. 1–16. VARONE, A. 2001. Eroticism in Pompeii. Italia: L’Erma do Bretschneider.

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Ψυχή › Psiquê

por Nádia Maria Weber Santos & Ivan Vieira Neto

Escrita no século II EC, a novela Metamorfoses de Apuleio, chamada também de O Asno de Ouro, é uma ampla narrativa sobre as aventuras de Lúcio, jovem viajante que acaba transformado em asno por uma mágica malsucedida. Após enfrentar vários desafios impostos à sua condição animalesca, Lúcio alcança a iniciação nos mistérios da deusa Ísis e, ponto culminante da obra, recupera a sua forma humana. Ao contar a sua história, o narrador-personagem insere outras narrativas, dentre as quais se encontra o mito de Cupido e Psiquê, contado por uma velha beberrona no cativeiro. A narrativa tem origem grega, influenciando sua recepção na forma Eros e Psiquê. Por esta razão, é frequente que os autores se refiram a Eros/ Cupido tanto pelo nome grego quanto por sua versão latina, bem como sua mãe, Afrodite/Vênus. No conto, Psiquê é inicialmente uma jovem mortal, filha de um rei cujo nome não aparece. Tem duas irmãs, mas sua beleza ultrapassa a beleza de todas, sendo descrita como «de beleza tão rara, tão brilhante, tinha tal perfeição que, para celebrá-la com elogio conveniente, era pobre demais a língua humana» (Metamorfoses, IV. 28). Psiquê foi então reconhecida como uma nova Vênus, a deusa do amor e da beleza, nascida da terra, germinada do orvalho, fazendo com que pessoas de toda a parte do mundo viessem admirá-la e adorá-la. Estes fatores despertaram a ira da deusa, pois seus templos foram abandonados a partir da adoração da mortal, bem como fizeram com

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que Psiquê não encontrasse marido, pois todos a adoravam como a uma divindade. A partir daí, desenrola-se a saga de Psiquê. A ofendida Vênus resolve vingar-se da beleza da mortal e pede a seu filho, Cupido, o menino travesso e alado das flechas da paixão, que a faça se apaixonar pelo mais horrendo dos mortais. Concomitante a isto, o pai de Psiquê recebe um oráculo apolíneo dizendo que sua filha deve ser entregue a um casamento de morte com um ser não mortal e monstruoso, junto aos rochedos num precipício. Inconformados, mas obedientes, os pais a escoltam, junto com uma multidão de admiradores, ao rochedo, para suas núpcias com o monstro. Ela sente um vento (Zéfiro) a levar e somente ela percebe onde foi parar: num imenso palácio de jardins suntuosos, com serviçais invisíveis, onde ela foi coberta de mimos e delícias. O conto transcorre ainda sem Psiquê saber que aquela era a morada de Cupido, filho de Vênus, que teria se apaixonado por ela e a arrebatou para si, em segredo. Ao anoitecer, ele sempre vinha deitar-se com a esposa, a cobria de carinhos e pedia-lhe somente que nunca se deixasse cair na tentação de ouvir comentários sobre sua aparência. Em outras palavras, ela não poderia vê-lo e ele sempre desaparecia de dia, após longas noites de amor. Ela acreditava estar para sempre longe dos humanos, embora ali fosse bem tratada. O esposo também a preveniu contra as irmãs que estavam lhe procurando e que ela não ouvisse o que elas tinham a lhe dizer. Em meio a narrativas de momentos felizes e amorosos entre os dois amantes naquele palácio, ele consente, mais de uma vez, que ela receba as irmãs. E as invejosas, ao verem o conforto de Psiquê, saberem de sua gravidez e de todas as maravilhas que o esposo lhe proporcionava, resolvem se vingar e causam um tumulto na vida dela ao 78

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insuflarem em sua mente que ela devia estar casada com um monstro horroroso, espécie de serpente que um dia a mataria. Ela precisava descobrir quem ele era. Assim, movida pela curiosidade e imaginando poder se livrar do monstro, Psiquê, numa noite em que o esposo repousava, acende um candeeiro a óleo e o espia no leito e, finalmente, reconhece Cupido como seu lindo e imortal esposo. Uma gota de óleo cai no ombro dele, que desperta e cumpre o que prometeu: separa-se dela e volta para o Palácio materno, machucado e infeliz. Daí para o final do conto, Psiquê, já sabendo que Cupido foi flechado por suas próprias flechas ao tentar cumprir as ordens da mãe, lá no início da saga, procura o esposo incessantemente por todos os cantos. Vindo a seu favor, deuses menores (da natureza) e maiores (do Olimpo) a ajudam, e ela, por fim, vai até Vênus que, já sabendo do ocorrido, humilha-a, machuca-a e dá-lhe tarefas impossíveis de cumprir —imaginando que com isso a usurpadora da beleza divina sucumbiria. O texto é rico em narrativas que não podemos transcrever em sua inteireza. As tarefas são quatro, que, quase como os trabalhos de Héracles, são impossíveis de serem realizadas por uma mortal: separar milhares de grãos misturados, obter lã de ouro das ovelhas, colher a água do rio Stix (fatal a qualquer ser humano) e, por fim, buscar a caixinha da beleza de Prosérpina no Orco. Em todas estas tarefas Psiquê teve ajuda de seres animados ou inanimados, divinos ou mortais, que se compadeciam de seu sofrimento. E ela conseguia levar cada tarefa cumprida a Vênus, que se enfurecia cada vez mais. Por último, a velha curiosidade de Psiquê a fez abrir a caixa da beleza de Prosérpina e ela caiu no sono, como era de se esperar. Neste momento, Cupido, já recuperado, vai em busca da amada, a encontra desfalecida e a flecha novamente. Ela desperta, ele pede que Zeus interceda por eles e ambos se casam no Olimpo. 79

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Assim, Psiquê torna-se uma deusa a morar no monte ‹sagrado›. Reconciliando-se também com Vênus e com o aval de todos os deuses olimpianos, Psiquê dá à luz Volúpia, sua filha com Cupido. Única obra literária a informar sobre o mito de Eros e Psiquê, Metamorfoses foi escrita por Apuleio, autor madaurense de ascendência itálica que viveu no século II EC. Apuleio foi um advogado, orador, filósofo neoplatônico e escritor romano que entre suas principais obras produziu Metamorfoses ou O Asno de Ouro e Apologia, escrito de teor jurídico no qual o autor se defende de acusações sobre práticas mágicas empregadas para conquistar a bela viúva Aemilia Pudentilla. Apuleio era um homem interessado por magia e seus conhecimentos nesta área lhe renderam suspeitas e acusações que se materializaram num processo judicial, do qual ele finalmente se viu inocentado em 158/159 EC (Silva, 2012). O contexto no qual transcorreu a vida do autor estava dominado pela adesão ao médio-platonismo, vertente filosófica de base platônica com influências estóicas, pitagóricas e mistéricas — pois àquela altura era comum que os homens romanos se iniciassem nos ritos eleusinos, isióticos ou mesmo nos mistérios orientais de Mitra, cultuado em Roma como Sol Inuictus. O interesse religioso perpassa a obra. Baseada num original grego anterior, Lúcio, ou o Asno, com atribuição incerta a Luciano de Samósata, a versão de Apuleio apresenta dois importantes acréscimos: o conto Cupido e Psiquê, ocupando três dos onze livros que compõem o romance e correspondendo a um quinto da narrativa, e o décimo primeiro livro, contendo a solução final por intermédio do sacerdote de Ísis e a participação do asno-Lúcio em seus mistérios, devolvendo-lhe a forma humana. Além de ser o único romance latino que sobreviveu em sua inteireza, Metamorfoses contém o único relato literário do mito de Eros/Cupido e Psiquê, 80

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cuja recepção inspirou um bom número de autores e artistas desde a Antiguidade. Uma importante recepção moderna está na Psicologia, especialmente na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, na qual Eros figura como conceito que remete ao aspecto feminino do psiquismo humano. Psiquê, que em grego significa alma, passou a definir a alma ou mente individual no conjunto de suas características (a psique). Há inúmeras obras de arte que representam Cupido e Psiquê, em variadas aparências e formas. Cupido aparece com asas, jovem, adolescente, com órgãos genitais à mostra, frequentemente hermafrodita, algumas vezes voando sobre uma borboleta que é Psique, outras vezes enamorado por um ser feminino (que pode ser Afrodite/Vênus, sua mãe, ou Psiquê, sua esposa). Destacamos, aqui, como um exemplo, a escultura de Canova, de 1796, exposta no Museu do Louvre em Paris (Fig. 1), na belíssima junção amorosa dos amantes.

Fig. 1: Eros e Psiquê de Canova (1796). Museu do Louvre (Paris). Foto do Acervo Pessoal de Nádia Maria Weber Santos (fev./2005).

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Uma interpretação Psicológica, a partir dos estudos de Marie Louise von Franz, analista junguiana Nos mitos e nos contos de fada, como nos sonhos, exterioriza-se a alma do ser humano e os arquétipos se manifestam em sua relação natural com a psique. Conforme Jung (1992), o arquétipo é a disposição estrutural básica da psique para produzir uma certa narrativa mítica e a imagem arquetípica é a imagem específica sob a qual o arquétipo toma forma. Marie Louise Von Franz (1981, 2014) propõe a hipótese de que cada conto de fada é um sistema fechado, composto por um significado psicológico essencial, expresso numa série de figuras e eventos simbólicos, sendo desvendável através destes. Ela chegou à conclusão de que todos os contos de fadas tentam descrever apenas um fato psíquico que é o Self (a totalidade psíquica proposta por Jung), mas de tão complexo e difícil de representar em seus diferentes aspectos, dá origem a centenas de contos com milhares de versões. No conto Cupido e Psiquê existe um tema típico (arquetípico) presente em inúmeros mitos e contos (Von Franz 1981, 2014), que é a história de uma moça que se casa com um esposo desconhecido de forma animal, que a proíbe de chamar pelo nome ou lhe olhar diretamente; ela o perde por desobediência e, após uma longa e penosa busca, ela o salva e junta-se novamente ao esposo/amor. Em geral, há uma bruxa ou mago que lançam um feitiço. Em Apuleio, foram a deusa Vênus e as irmãs invejosas que assumiram este papel. Para esta autora (von Franz, 1981, 2014), Vênus/Afrodite representa o arquétipo da mãe-anima do homem e Psiquê é sua ‹encarnação›, sua humanização. Este conto seria uma tentativa de individuação da psique masculina, através da integração da anima inconsciente. A mãe é seu primeiro encontro com o feminino e quando ainda indiferenciada, a anima resta no inconsciente 82

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(o Olimpo). O homem só entra em contato com sua anima (alma) quando a mesma é ativada por um drama humano, ou seja, a primeira mulher de um homem, seu primeiro interesse afetivo. A anima, ainda, tem um aspecto inconsciente, que provoca a individuação, o processo de maturação psíquica do ser humano. Ela tem um efeito curativo, através da criatividade —e por isso também Eros, muitas vezes, foi identificado como um deus da cura. Cupido, no conto, decide tomar Psiquê como esposa, ao contrário do que sua mãe lhe disse e queria. Por ela, ele ficaria sempre criança, vivendo com ela em seu castelo, um Puer aeternus. Psiquê, conforme von Franz (1981, 2014), é uma variação do mito de Koré, a donzela virgem ou jovem divina, figura central dos Mistérios de Elêusis. Ela é a deusa-filha, mais próxima da humanidade que a deusa mãe. Psiquê também tem a experiência de morte, mas é salva e vai para o Olimpo, representando, na psique masculina, a integração da anima, deste aspecto feminino de sua personalidade, uma das metas do processo de individuação, segundo Jung (2005). Isso significa que ele estabeleceu uma relação interiorizada com seu princípio feminino, sendo Psiquê a personificação dessa relação. Vênus e Psiquê são os dois aspectos do mesmo arquétipo: a primeira simbolizando a anima ligada à mãe e a segunda, a anima que não é mais contaminada pela imagem materna, levando o homem à uma maturidade emocional. Três momentos são cruciais para este desfecho. Primeiro, a lamparina que queima Cupido: a luz é a consciência e o óleo o unguento da iniciação, ou seja, é o momento em que os dois realizam quem eles mesmos são. Segundo, a desobediência de Psiquê: significa que as ‹leis mitológicas› devem sempre ser transgredidas para que haja história, para que haja drama (lembrar do roubo do fogo dos deuses por Prometeu). Para von Franz (1981, 2014), inclusive, 83

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essa é a essência do romance, tomado em seu conjunto. Quer dizer, quando tudo vai bem, vem uma voz e nos sopra algo e aí nos deparamos com novos problemas, os quais exigem novas posturas e buscas, dando a chance de nossa consciência se alargar e nossa personalidade se ampliar. Terceiro, os «trabalhos de Psiquê»: simbolizam os próprios desafios da vida, que dão sentido a ela e a tornam única e especial. Por fim, após a redenção de Psiquê, ambos se casam e ela dá à luz Volúpia, que significa «amor sensual» (Von Franz, 1984, 2014). Para essa autora, o Olimpo significa, em termos humanos, o inconsciente coletivo. Portanto, embora as tentativas, tudo permanece num plano inconsciente, tudo retorna ao domínio inconsciente da anima. Vale dizer que o problema da anima, do amor interior do homem, da beleza versus o amor espiritual mais profundo, não se resolveu ainda na psique masculina. Portanto, na psique do autor, Lúcio Apuleio. Fontes históricas APULEIO. O Asno de Ouro [Metamorfoses]. 2019. Tradução de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral JUNG, C. G. 2005. Sobre o Amor. São Paulo: Ideias e Letras. JUNG, C. G. 1992. A natureza da Psique. Petrópolis: Vozes. NEUMANN, E. 1990. Amor e Psiquê – Uma contribuição para o desenvolvimento da Psiquê feminina. São Paulo: Cultrix. SILVA, S. C. Magia e Poder no Império Romano: a Apologia de Apuleio. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2012. VON FRANZ, M. L. 1981. L´Âne D´or – Interprétation d´un conte. Paris: La Fontaine de Pierre. VON FRANZ, M. L. 2014. O Asno de Ouro – o romance de Lucio Apuleio na perspectiva da Psicologia Analítica de C. G. Jung. Petrópolis, RJ: Vozes. 84

Πανδώρα › Pandora

por Marta Mega de Andrade

A figura de Pandora se apresenta ao imaginário ocidental como a da primeira mulher na tradição clássica. Envolta em simbolismos pagãos/cristãos, ela existe na mesma medida que existe sua tarefa e seu quinhão de abrir a caixa, ou jarro, que carrega. Maravilha e horror ao olhar masculino, sob seu nome e sua ação de espalhar os males humanos pela terra já se vão milênios de censura e interesse. Mas Pandora se identifica, em potência e ato, como primeira mulher? Quem é ela? Segundo Hesíodo, dela descende a raça das femininas mulheres (Teogonia, v. 591). Ainda segundo Hesíodo, Pandora recebe esse nome por ter ganhado de todos os deuses um dom, «um mal aos homens que comem pão» (Os Trabalhos e os Dias, v. 80–82). Mas o nome de Pandora quer dizer também «toda coberta de presentes», aquela que é «plena de dons», ou aquela que é «toda doação», uma referência que, segundo J. E. Harrison e outros especialistas em religião grega do final do séc. XIX, é pré-hesiódica e vincula Pandora a Gaia (Harrison 1908, 271–285). Embora Harrison analise a figura de Pandora em estreita vinculação à teoria do matriarcado préhistórico —que foge aos objetivos desse verbete— sua busca pela associação à «toda-doadora» terra ajudou estudos posteriores na reflexão sobre a narrativa dos poemas de Hesíodo sob o prisma das escolhas de um autor (Calame 2005; Cantarella 1987). A forma como se configura a história de Pandora em Hesíodo se revelaria, assim, a princípio, como parte de uma escolha possível dentre outras do autor dos poemas.

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No contexto do mito de Prometeu/Pandora nos poemas de Hesíodo, Teogonia e Os Trabalhos e os Dias, onde são narrados pela primeira vez, ao menos por escrito, os eventos da fabricação da mulher, Pandora é tanto um presente (doloso) de todos os deuses, como uma figura feminina toda coberta de presentes dos deuses. Também no contexto da narrativa hesiódica, trata-se de um «mal, reverso de um bem» (Hesíodo. Teogonia, v. 584) e, assim, um dolo parecido com aquele do cavalo de Tróia, que o homem-mortal recebe sem atentar para o perigo. Apesar da constância do dolo como tema, há diferenças nas escolhas feitas pelo poeta entre a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. No primeiro caso, o do poema cosmogônico derivado de uma tradição muito antiga (Vernant 1998, 154–170), a ordem é estabelecida por Zeus, que distribui as partes entre os deuses olímpicos. Nessa história, Prometeu, o titã filho de Jápeto, age como trickster. Representante de potências enfraquecidas pela distribuição da ordem divina, Prometeu pode apenas agir astuciosamente, provocando a inteligência omnisciente de Zeus tendo como moeda de troca os mortais que habitam sobre a terra. No primeiro movimento, ludibriando Zeus no banquete, Prometeu oferece a ele ossos sob vistosa carne. Enraivecido, Zeus retira dos humanos os poderes do fogo, mas Prometeu traz escondido o fogo de volta aos humanos. Esse último passo merece derradeira contrapartida de Zeus. Ele ordena a Hefesto plasmar da terra um incombatível ardil aos homens comedores de pão. Nesse ponto, a narrativa difere entre a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. Enquanto na Teogonia a tônica é colocada na moldagem a partir da terra de uma «bela e recatada forma de virgem» (v. 535–593), nos Trabalhos e os Dias sobressaem-se os dons dos deuses que insuflam nessa escultura humana voz e força e a transformam, assim, em uma espécie de ser humano para a qual a dissimulação 86

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—espírito de cão, dissimulada conduta, mentiras, sedutoras palavras (v. 42–105)— é marca da raça, tribo ou estirpe (génos e phylḗ). Na Teogonia, a escultura não é nomeada; nenhum dos deuses que lhe doam ornamentos agem para torná-la humana. Em contrapartida, trata-se de um «prodígio aos olhos» (v. 577 e seq.). Essa escultura de barro adornada e coroada é levada aos deuses e homens que se espantam. E Hesíodo conclui, então, que dela descende a geração, raça, tribo das mulheres que habitam entre os mortais. As mulheres, todas elas, aparecem no mundo habitado pelos mortais como bela forma de virgem moldada numa estátua de barro. Em Os Trabalhos e os Dias, poema sobre o quinhão humano e a justiça (dikḗ) entre os homens mortais, a chorḗ —bela e recatada forma de virgem— após ser plasmada e adornada recebe um espírito (canino) e humana voz e força. Aí ela recebe nome: Pandora. Aceita por Epimeteu, o irmão imprudente de Prometeu, Pandora se torna sua esposa e abre o píthos que carregava, espalhando o trabalho, as doenças, a fome, enfim, as necessidades diárias dos seres humanos e suas penas, deixando tudo escapar, com exceção da Espera (Elpís), por desígnios de Zeus (v. 95 e seq.). Humanizada por Hesíodo em Os Trabalhos e os Dias (v. 42–105), Pandora, a «toda-doadora», se transforma em Pandora, a que recebeu dons de todos os deuses, dons que são males aos homens. Em outras palavras, no contexto de censura poética, Pandora se torna uma esposa, ela que habita entre os mortais, parceira não da penúria, mas do luxo. Uma pessoa como eu e você, que possui um espírito, uma forma de subjetividade. É importante, contudo, que a predominância da narrativa hesiódica na tradição clássica não nos conduza a ver Pandora somente no espaço delimitado pela moldura da poesia de censura. Nem o nome Pandora, nem a figura feminina moldada em barro (chorḗ) eram desconhecidas 87

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dos gregos na época de Hesíodo, em meados do século VII aEC. A chorḗ, escultura feminina em terracota ou mármore, era uma das dádivas comuns e elemento da paisagem em templos e nos contextos funerários (ver Schmitt 2001); e o nome de Pandora/Anesidora já estava relacionado, em alguns contextos, a Gaia e, em outros, a Deméter (Cantarella 1987). Portanto, em termos de construção da narrativa para uma audiência, Hesíodo aparentemente lidava com um imaginário pleno de simbolismos, ligando, por exemplo, o desejo, o presente e a escultura feminina; Pandora, Gaia, Deméter e a doação da terra (Calame 2005; Zeitlin 1996); os rituais do casamento, etc. Muitas são as histórias a partir daqui, para além dos poemas de Hesíodo. Em outras narrativas, Pandora se casa com Prometeu (Harrison 1908; Loraux 1981); na Biblioteca de Apolodoro, Pandora é esposa de Epimeteu e mãe de Pirra, que, junto com Deucalião (filho de Prometeu), repovoa o mundo após a destruição da raça de Bronze, dando à luz a linhagem dos primeiros soberanos da era humana dos gregos, como Heleno, Anfictião, Chrânaos, etc. Homens e mulheres renascem das pedras atiradas, respectivamente, por Deucalião e Pirra (I, 7, 1–3). Assim, para criar a raça das mulheres, Hesíodo tinha como fabricar o mito a partir de matéria e fórmulas preexistentes e coexistentes, com múltiplas nuances. Pandora não é, então, necessariamente a primeira mulher. Certamente não em uma perspectiva que se reaproxime dos poemas hesiódicos após um escrutínio crítico sobre seu contexto de produção/recepção. Nos poemas, «nós» (plural majestático) «descobrimos» (e guardamos para as gerações futuras cristãs e ocidentais) duas coisas: que a raça das mulheres é um mal escondido por um bem e é diferente, muito diferente da matéria dos homens mortais; e que Pandora, por fim, é dada como esposa e, nessa condição, 88

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libera todos os males aos mortais, conservando a Espera. Por outras fontes, algumas delas iconográficas e outras referências a tradições mitológicas, descobrimos que Pandora é também Anesidora, e que mantém relações com Gaia, Deméter, Choré... Todo um universo que se conecta aos ritos do casamento, à fertilidade da terra e dos homens, mas ainda todo um universo não marcado pelo positivo e pelo negativo do louvor e da censura, respectivamente. Assim como não é necessariamente a primeira mulher, mas se impõe como a primeira de um génos pelas escolhas que fazemos na leitura e na pesquisa, Pandora não é Eva. É importante frisar e repetir. Em um estudo de mitologia comparada, podemos até suspeitar de origens comuns às tradições mediterrânicas. Mas em uma perspectiva de história social e desestabilizando a imagem da fabricação de Pandora como mulher e como esposa no contexto da censura poética, perceberemos que o encontro entre Pandora e «a» Mulher (a primeira de uma raça ou a Mulher para a eternidade) não resiste à pluralização das narrativas e expectativas, embora possa se impor como tradição pela valorização do texto, do escrito, do livro e da literatura clássica. Porém, como todos os dons divinos que causam espanto, Pandora é, e não é, um bem. Fontes históricas APOLODORO. 1921. The Library. Translated by Sir James George Frazer. Cambridge: Harvard University Press. HESÍODO. 1995. Teogonia. Tradução de J. A. A. Torrano. São Paulo, Iluminuras. HESÍODO. 1996. Os Trabalhos e os Dias (primeira parte). Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras. 89

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Bibliografia geral CALAME, C. 2005. La réinterprétation du récit de Pandôra, Masques d’Authorité. Fiction et pragmatique dans la poétique grecque antique. Paris: Les Belles Lettres, p. 95–101. CANTARELLA, E. 1987. Origins of Western misoginy. In: CANTARELLA, E. Pandora’s Daughters: The Role & Status of Women in Greek & Roman Antiquity. Baltimore: John Hopkins, p. 24–37. HARRISON, J. E. 1908. Prolegomena to the study of Greek religion. Cambridge: UP, p. 271–285. LORAUX, N. 1981. Sur la race des femmes et quelques unes de ses tribus. In: LORAUX, N. Les Enfants d’Athèna: idées athéniennes sur la citoyenetté et la division des sexes. Paris: Flammarion, p. 75–117. SCHMITT, J-C. 2001. Ève et Pandora. La création de la première femme. Paris: Gallimard. VERNANT, J. P. 1998. O casamento. O mito prometeico em Hesíodo. In: VERNANT, J. P. Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Brasília: UNB. ZEITLIN, F. 1996. Signifying difference: the case of Hesiod’s Pandora. In: ZEITLIN, F. Playing the Other. Gender and society in classical greek literature. Chicago: UP, p. 53–86.

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Εὐρώπη › Europa

por Félix Jácome Neto

A etimologia da palavra Εὐρώπη [Európē] não está firmemente estabelecida. Ainda que se tenham ventilado aproximações com origens semíticas, é mais provável que o termo guarde relações etimológicas na própria língua grega. A hipótese mais coerente liga este termo a dois lexemas gregos que teriam entrado na composição da palavra: εὐρύϛ [eurýs], que significa «largo» ou «espaçoso», e ὦψ [ops], «olho», «face», «aspecto», de sorte que etimologicamente «Europa» significaria «a de aparência larga ou ampla» (Milani 1986). O aspecto largo pode se referir à «Europa» enquanto um local geográfico ou às personagens intituladas «Europa» na mitologia grega. Quando evocamos «Europa» enquanto personagem feminina da Antiguidade, estamos lidando com um compósito de várias figuras que os gregos nomearam desta maneira. A Europa mais conhecida, que será objeto deste texto, é uma princesa fenícia, filha de Telefassa e Agenor (ou Fênix, segundo Homero. Ilíada, XIV. 321), rei da Fenícia. Zeus apaixona-se pela jovem e, para consumar seu desejo, transfigura-se num touro branco e, sob esta forma, seduz e rapta Europa, que colhia flores na praia, junto com suas companheiras, em Tiro ou Sídon. Europa, atraída por aquele belo animal, começa, então, a brincar com ele, adornando-o com suas flores. Sentindo-se íntima do touro, sobe nas costas do animal. Zeus, com Europa em seu dorso, aproveita a situação para raptar a jovem e levá-la até Gortina, na ilha de Creta. Em Gortina, à sombra de uma árvore, Zeus tem relações sexuais com a donzela. Dessa união nascem três filhos: Minos, Radamante e Sarpédon.

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O mito de Europa remete a três temáticas substanciais: o rapto de mulheres por parte dos deuses, especialmente Zeus; a afirmação do poder e soberania dos descendentes de Zeus e Europa e dos familiares desta; a problemática da geografia, particularmente no que diz respeito à relação entre Oriente e Ocidente, assim como a coincidência do nome «Europa» ser também atribuído a um território. A mitologia grega é pródiga em histórias de seduções, raptos e mesmo estupros de mulheres por deuses. Por exemplo, a famosa Guerra de Troia inicia, do ponto de vista mítico, pelo rapto ou sedução —conforme a versão— de Helena por Páris, ao passo que, por trás da história de Medusa, há uma versão na qual ela é estuprada por Posídon. A menção literária mais antiga do rapto de Europa encontra-se no catálogo dos amores de Zeus contido em Homero (Ilíada, XIV. 321–322), ao passo que a primeira descrição deste evento nós encontramos em Hesíodo (Catálogo das Mulheres fr. 140). Em ambas as versões, Europa é filha de Fênix. Ferecides, século VI aEC, é a primeira referência que temos de um autor que informa Europa enquanto filha de Agenor, uma versão que se tornará bastante difundida com os mitógrafos posteriores, como Apolodoro. Heródoto, nas suas Histórias (I, 2), insere o rapto de Europa como um dos agravos cometidos por gregos contra os «asiáticos». Na versão racionalizada do historiógrafo de Halicarnasso, Europa teria sido levada por helenos sem qualquer participação divina. Ésquilo, por sua vez, encenou Europa na tragédia grega, em uma peça intitulada Carianos, da qual nós legamos apenas dois fragmentos. O fragmento 99 contém uma visão relativamente negativa do rapto e das suas consequências. Nele, a própria Europa revisita o acontecimento, de maneira similar a Creúsa no Íon de Eurípides, e lamenta estar distante dos seus três filhos. Em contraste com Ésquilo, a iconografia da viagem de Europa sobre o dorso de 92

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Zeus disfarçado de touro na pintura de vasos gregos dos séculos VI a IV aEC realça a submissão da jovem ao seu destino e seu consentimento com o rapto, suavizando ou mesmo eliminando as notas de violência (Peeters 2009). Assim, o rapto de Europa desde a Fenícia pode ser pensado como um ato de afirmação de poder: de Zeus sobre os mortais, do masculino sobre o feminino, dos gregos sobre os «orientais». O tema da soberania e poder, com efeito, perpassa a história familiar de Europa. Filha de Agenor, rei de Tiro ou Sídon, seus filhos se destacarão na função de comando tão cara a Zeus, seja jurídica, caso de Radamante, que se casa na Beócia e torna-se notório pela excelência dos seus julgamentos, ou política, a exemplo de Minos, que se tornará rei de Creta e fornecerá o seu nome para a civilização «minoana», além de Sarpédon, rei da Lícia que, se considerarmos a versão de Ésquilo (Carianos fr. 99), é o mesmo herói que aparece na Ilíada, ainda que em Homero ele seja filho de Laodâmia e Zeus. O motivo da soberania está ainda presente na relação de Europa com seu irmão, Cadmo. Na altura do rapto de Europa, Agenor teria ordenado que os seus demais filhos procurassem a jovem então desaparecida. Cadmo, por sua vez, consulta o oráculo de Delfos que o orienta a suspender a busca pela irmã e fundar uma cidade no local onde uma determinada vaca descansasse, depois que ficasse exausta. Este evento ocorre na Beócia e o fenício Cadmo, portanto, funda neste território a cidade de Tebas, originando a linhagem real tebana, que fornece um importante ciclo temático na mitologia grega. Do ponto de vista histórico, as narrativas acerca de Europa contam, de certa maneira e por meio da linguagem simbólica do mito, a história de intercâmbios e relações culturais entre cidades da região da Síria, Creta e Grécia no segundo milênio aEC, quando floresceram as civilizações Minoica e Micênica. Ainda, a ligação de Tebas ao mito de Europa claramente 93

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evidencia um desejo desta cidade em se glorificar por meio dessas narrativas tradicionais ligadas a Zeus, ao poder e ao oráculo de Delfos (Tourraix 2000, 106). O rapto e a viagem da jovem montada no touro da Fenícia a Creta permite, portanto, o deslocamento geográfico do mito do Oriente para o Ocidente. Paradoxalmente, nós temos o caso de uma heroína de origem oriental que, aparentemente, forneceu o nome ao continente europeu. Este paradoxo já intrigava os antigos, como Heródoto (Histórias, IV. 45, 4–5). Esse estado de coisas reflete o ambiente mediterrânico do segundo milênio, bem antes do pensamento grego contemporâneo a Heródoto, que tendia a estruturar dicotomias entre Europa e Ásia; Ocidente e Oriente. Como acontece muitas vezes no estudo da religião grega, um mito possui algum ritual correlacionado. No caso de Europa, nós temos informações vindas de Seleuco de Alexandria, um gramático do século I EC, de que existiria um festival religioso dedicado à Europa em Creta chamado Hellotia (sob este mesmo nome também existia um festival a Atena em Corinto). Neste festival cretense tinha lugar um ritual de procissão, no qual os habitantes de Gortina, em Creta, carregavam os ossos de Europa. Brandt (2006, 45–46) argumenta que a simbologia dos ossos sugere um culto a Europa enquanto heroína e protetora local antes do que como uma deusa. Este tipo de rito pode remeter, com efeito, a um tempo recuado, possivelmente no segundo milênio, no qual Europa seria cultuada no âmbito de um antigo culto cretense, em que entrariam os elementos simbólicos da árvore sob a qual ocorreu a hierogamia entre a jovem e Zeus em sua forma de touro, animal cuja simbologia por excelência é a soberania (Bosch-Veciana 2011, 29). 94

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Europa foi, assim, objeto de culto, bem como tema de vários gêneros literários gregos: epopeias (Eumelo de Corinto teria composto uma Europia no século VIII aEC), tragédias (Carianos de Ésquilo) e mesmo comédias (Hermipo teria apresentado uma comédia chamada Europe no século V aEC). Além disso, o contato de Europa com o touro e sua viagem até Creta foram pintados, esculpidos ou desenhados em diversos suportes visuais na Antiguidade, podendo chegar a mais de duzentas representações que nos foram legadas (Passerini 2002, 12). Já em período de domínio romano, o poeta grego Mosco (século II aEC), com seu epílio Europa, e o poeta latino Ovídio nos seus Fastos (V 603–620), retrabalharam a união de Zeus e Europa e exerceram forte influência sobre os tratamentos medievais e modernos do tema. Recentemente, a construção de uma identidade europeia tem despertado interesse em investigações acerca das origens do termo «Europa» e da correlata imbricação entre nome de personagem e topônimo do continente europeu. A cena de Europa montada sobre o touro, estampada em moedas de dois euros desde 2002, ilustra esta apropriação contemporânea de uma personagem cuja história religiosa remonta às conexões entre o que chamamos de Ocidente e Oriente no Mediterrâneo durante a Idade do Bronze. Fontes históricas AESCHYLUS. 2008. Fragments. Edited and translated by Alan H. Sommerstein. Cambridge: Harvard University Press. HERÓDOTO. 2000. Histórias, Livro IV. Tradução de Maria de Fátima Silva e Cristina Abranches Guerreiro. Lisboa: Edições 70. HERÓDOTO. 2002. Histórias, Livro I. Tradução de José Ribeiro Ferreira e Maria de Fátima Silva. Lisboa: Edições 70. 95

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HESÍODO. 1978. Fragmentos. Traducción de Aurelio Pérez Jiménez y Alfonso Martínez Díez. Madrid: Editorial Gredos. HOMERO. 2005. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia 2005. Bibliografia geral BRANDT, J. R. 2006. Votives and Veneration. Athena, Hellotis, and Europa at Gortyna. In: Mattusch, C.C Donahue A.A.; Brauer, A. (Orgs.). Common Ground: Archaeology, Art, Science and Humanities. Proceedings of the XVIth International Congress of Classical Archaeology, Boston, Aug. 23–26, 2003, Oxford: Oxbow Books. BOSCH-VECIANA, A. 2011. El mite d’Europa. Aproximació al seu logos hel·lènic. In: MONSERRAT, J. et al. (Orgs.) Col·loquis de Vic XV – Europa. Santa Eulàlia de Ronçana: Societat Catalana de Filosofia. MILANI, C. 1986. Note etimologiche su ΕΥΡΩΠΗ, Contributi dell’Istituto di Storia antica dell’Università del Sacro Cuore (CISA), vol. 12, p. 3–11. PASSERINI, L. 2012. Il mito d’Europa: radici antiche per nuovi simboli. Firenze: Giunti editore. PEETERS, M.C. 2009. L’évolution du mythe d’Europe dans l’iconographie grecque et romaine des VIIe–VIe s. avant aux Ve–VIe s. de notre ère : de la «déesse au taureau» au rapt et du rapt au consentement, Dialogues d’Histoire Ancienne, vol. 35, n. 1, p. 61–82. TOURRAIX, A. 2000. L’Orient, mirage grec. L’Orient du mythe et de l’épopée. Paris: Presses Universitaires Franc-Comtoises.

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Πασιφάη › Pasífae

por Thirzá Amaral Berquó

Pasífae, Pasifaa ou Pasiphae é uma heroína grega, filha do deus Hélio e da Oceânide Perseis, sendo irmã de Circe e do rei Eetes da Cólquida. Seu nome significa «aquela que emite toda a luz» (de πασι [pasi], tudo e φάος [pháos], luz). Foi esposa do Rei Minos de Creta (filho de Europa e Zeus e filho adotivo de Astério), com quem teve os filhos Acacallis, Androgeu, Glauco, Deucalião, Catreu e as filhas Fedra, Ariadne e Xenódice. Com o touro sagrado de Poseidon, teve o filho Astério, mais conhecido como Minotauro, relação que lhe concedeu a maior parte de sua fama durante a Antiguidade. Assim, Pasífae é filha, esposa e mãe de touros [respectivamente, de Astério, na qualidade de nora, do touro sagrado de Poseidon e do Minotauro (Jouteur 2006)]. Segundo o mito, Pasífae era a esposa de Minos. Como o marido lhe era infiel, ela o enfeitiçou, fazendo com que ele ejaculasse animais, tais como serpentes, escorpiões e centopeias, matando as suas amantes. Minos enamorou-se de Prócris, uma hábil caçadora, a qual o curou do feitiço e se deitou com ele (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3. 15. 1). Quando da morte de Astério (esposo de Europa), Minos decidiu assumir o poder. Para tanto, pediu o auxílio do deus Poseidon, para que lhe mandasse um sinal na forma de um animal, que ele lhe dedicaria em sacrifício. Poseidon teria enviado um belo touro, utilizado por Minos como sinal de que deveria ascender ao trono. Minos tornou-se um forte soberano, dominando os mares e conquistando seus vizinhos. Diante da beleza do animal, Minos o colocou junto ao seu rebanho e sacrificou outro em seu lugar. Enfurecido, Poseidon tornou o animal selvagem, para

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causar devastação, e fez com que Pasífae se apaixonasse pela besta. Como o animal era selvagem, para poder se aproximar e satisfazer seu desejo, Pasífae procurou o inventor Dédalo, que era um refugiado vindo de Atenas, e lhe pediu ajuda. Dédalo teria construído uma vaca oca de madeira, sobre rodas, coberta com a pele de uma vaca verdadeira. Esse dispositivo, com Pasífae em seu interior, foi colocado no bosque onde o touro de Poseidon costumava ficar. Dessa forma, a vaca falsa foi coberta pelo touro sagrado, possibilitando à rainha a satisfação de sua paixão. Dessa união, Pasífae ficou grávida, dando à luz Astério, chamado Minotauro porque possuía cabeça de touro e corpo humano. Minos ficou furioso ao descobrir a traição quando do nascimento da criança, do que Pasífae se escusou alegando que fora forçada pelos deuses. Minos ordenou a Dédalo a construção de um labirinto impossível de sair, no qual foi posto o Minotauro. O fim de Pasífae não é conhecido. Na literatura, Pasífae consta de fontes recentes, principalmente: 1) Baquílides, frag 26 Campbell; 2) Eurípides (fragmentos de Os Cretenses); 3) Apolônio de Rodes, (Argonáutica, 3, 998–1001); 4) Pseudo-Apolodoro (Biblioteca, 3.1.3–4, 3.15.1); 5) Diodoro Sículo (Biblioteca Historica, 4. 604. e 4. 771–4); 6) Pausânias (Descrição da Grécia, 3. 26. 1, 5. 25. 9, 8. 53. 4); 7) Higino (Fábulas, 40); 8) Virgílio (Bucólicas, 6, 45–60); 9) Ovídio (A Arte de Amar, I, 289–326) e 10) Filóstrato, o Velho (Imagens, 1. 16 Fairbanks). De acordo com Plutarco, Pasífae seria filha de Atlas (Vida de Agis, 9). Segundo Baquílides e Higino, a paixão de Pasífae pelo touro seria obra de Afrodite. Higino afirma que seria uma vingança de Afrodite contra Hélio, por este ter revelado a Hefesto o adultério dela com Ares. O mito de Pasífae remonta à civilização minoica da ilha de Creta, na época do Rei Minos, filho de Europa e de Zeus (este na forma de touro). A Ilha de Creta fica no Mediterrâneo, mais 98

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precisamente no Mar Egeu, situada ao sul da Grécia, ao norte do Egito, a oeste da Ásia Menor e a leste da Itália. Trata-se de uma civilização que ocupou esta ilha desde o período pré-histórico, mas que teve seu ápice durante a Idade do Bronze (c. 3000–1450 aEC). Era uma potência naval, que dominava o comércio com seus vizinhos no Mediterrâneo e que construiu amplos palácios, como, por exemplo, Cnossos. Essa civilização entrou em declínio após a erupção do vulcão da ilha de Thera (hoje Santorini), entre 1650–1450 aEC, que causou um vasto tsunami, seguido de grande destruição e declínio sócio-econômico, possibilitando a conquista de Creta pela civilização micênica (da Grécia continental) em 1450 aEC. A história de Pasífae e do touro sagrado pode remontar a uma antiga tradição religiosa minoica, ligada ao culto do Sol e Lua (Jouteur 2006; Cook 1914). Pasífae, filha do Sol (Hélio), seria uma antiga deusa da lua, que, enquanto rainha, ao assumir a forma de uma vaca, se relacionaria com o touro, um símbolo solar, de fertilidade e de autoridade real, em uma hierogamia, um casamento ritual. Há que se destacar ainda a ligação da figura da vaca com o culto lunar nas tradições egípcia e minoica (Cook 1914). Isso seria reforçado pelo nome do rebento desta relação, Astério, «o estrelado», numa conexão com as estrelas como filhas do sol e da lua. Também importa aqui o culto da constelação de Touro, usada como guia na navegação, o fato de os navios possuírem figuras de proa com formato de cabeça de animais, na tradição mediterrânea antiga, e da existência de um vocabulário náutico em grego antigo que usa metáforas taurinas para se referir à navegação (por exemplo, ὀρθόκραιρος [orthókrairos] para se referir a um navio com duas extremidades longas, ver Laap 2003). O mito, então, seria a lembrança de um culto minoico astral de fertilidade, ligado às figuras do touro e da vaca e da sua correlação com o sol e a lua. 99

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No período da Grécia clássica (séculos V–IV aEC), essas raízes religiosas do mito parecem ter sido há muito esquecidas. O episódio da relação de Pasífae com o touro sagrado de Poseidon foi interpretado de forma literal, ensejando especulações sobre o ponto de vista do adultério e da relação sexual bestial. A peça Os Cretenses, de Eurípedes, nos fragmentos sobreviventes, trata da ira de Minos quando do nascimento do Minotauro e da ausência de responsabilidade de Pasífae, ante ao sacrilégio de Minos contra Poseidon. A paixão de Pasífae pelo touro parece ter sido o objeto de muitas comédias, hoje perdidas (ver Papadopoulos 1994). Em Roma, para Virgílio e Ovídio, a questão da bestialidade e do adultério de Pasífae é enfatizada: para ambos, ela é o símbolo da desmedida do desejo feminino. Em Virgílio, Pasífae é acusada de uma submissão horrível, perante um animal selvagem. Em Ovídio, ela é usada para defender o adultério, com humanos, ao invés de animais, usando o caso dela contra as normas sociais augustanas de fidelidade marital (Jouteur 2006). Segundo Pausânias, em sua Descrição da Grécia (3. 26. 1), em Thalamai, na região da Lacônia, havia um santuário com um oráculo, dentro do qual havia estátuas de Hélio e de Pasífae. Pausânias aduz que Pasífae seria um título de Selene, a Lua, uma deusa que não seria originária de Thalamai. Ele explica que os oráculos seriam recebidos pelas pessoas que dormiam no templo, por meio dos sonhos. Nesse contexto, o nome Pasífae, «aquela que emite toda a luz», poderia ser uma referência ao caráter esclarecedor de suas respostas oraculares (vide Cook 1914). Os dons oraculares de Pasífae podem ser explicados em razão de sua ascendência, como filha do deus solar Hélio e da Oceânide Perseis, união que rendeu diversos filhos com dons especiais e mágicos, notadamente Circe, Eetes e Perses. Pasífae teria dons mágicos, os quais, além do dom da divinação, lhe 100

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possibilitaram controlar a fidelidade de Minos por meio da feitiçaria (este último episódio conforme Pseudo-Apolodoro, Biblioteca, 3. 15. 1). A arte minóica tem muitas representações relacionadas à figura do touro. Chifres de touros aparecem como elementos arquitetônicos proeminentes no palácio de Cnossos, bem como vasos rituais com chifres de touros (ῥυτόν / rhytón, ritão). Cenas rituais envolvendo touros compõem afrescos no palácio de Cnossos, como o do salto sobre o touro, também estão presentes em relevo em anéis de ouro e selos cilíndricos. Há ainda uma vasta iconografia do labirinto, que ocupa principalmente moedas (Cook 1914). Em relação a figuras femininas, há representações de figuras zooantropomórficas femininas, com cabeça de vaca e seios de mulher, bem como cenas figurando vacas e bezerros, estas tanto dentro quanto fora de um contexto de agricultura (Loughlin 2000). De fato, a arte minóica fornece um contexto no qual há predominância de figuras femininas em posições de poder, principalmente ligadas ao caráter ritual. Porém, não há nenhuma cena que possa ser iconologicamente relacionada de forma direta com o mito de Pasífae. Não sobreviveram representações de Pasífae na arte grega antiga, mesmo ela tendo sido personagem de tragédias (como Os Cretenses, de Eurípedes, hoje fragmentária) e de comédias (hoje perdidas). O material sobrevivente é romano e etrusco. Pasífae nunca foi representada nua, tampouco durante a relação sexual com o touro. Na arte romana, ela aparece acompanhada do touro, ou de Epythimia, ou de Dédalo (ordenando a construção ou recebendo a vaca falsa), ou entrando dentro da vaca de madeira. Os meios utilizados são afrescos, principalmente em Pompeia, sarcófagos de mármore, mosaicos, baixos-relevos em gesso e terracota, e jóias (Papadopoulos 1994). Na arte etrusca, os episódios retratam Pasífae acompanhada de Minos, Poliido e Glauco; acompanhada de Dédalo, ou este construindo a vaca 101

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de madeira; Pasífae com o Minotauro; e Minos descobrindo a existência do Minotauro. Uma taça etrusca de figuras vermelhas (c. 450 aEC) seria a representação mais antiga de Pasífae, na qual ela segura o infante Minotauro em seu colo. Os meios artísticos utilizados, além da cerâmica pintada, seriam jóias, urnas funerárias, espelhos de bronze (Papadopoulos 1994). Segundo John Papadopoulos (1994), a cultura material existente sugere que a tradição iconográfica de Pasífae é uma criação romana, com a presença de uma tradição etrusca independente, haja vista a diferença dos temas retratados nestas culturas. Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. Library. Translated by Sir George James Frazer. Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann. Disponível em: http://www.perseus.tufts. edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0021%3atext%3dLibrary. Acesso em: 01 jul. 2016. APOLLONIUS RHODIUS. 1912. Argonautica. Transl. George W. Mooney. London: Longmans, Green. Disponível em: http://www.theoi.com/Text/ApolloniusRhodius1.html. Acesso em: 01 jul. 2016. BACCHYLIDES. 1992 Fragment 26. In: CAMPBELL, D. Greek Lyric, Volume IV, Loeb Classical Library 461, Cambridge: Harvard University Press. DIODORUS SICULUS. Library of History. Disponível em: https://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/ Diodorus_Siculus/4D*.html#60.4. Acesso em: 10 abr. 2021. EURIPIDES. Kretes, fr. 472e Kannicht. P. T. Rourke (transl.). Disponível em: https://diotima-doctafemina.org/translations/ greek/euripides-kretes-fr-472e-k/. Acesso em: 17 abr. 2021. 102

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Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

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Σφίνξ › Esfinge

por Francisco Marshall

A Esfinge (em grego, Σφίγξ [Sphinx]) é um ser híbrido imaginário que povoa a memória cultural do Oriente Próximo desde o terceiro milênio aEC, com variados mitos, formas e funções. As formas icônicas são o Esfinge de Gizé, no Egito, e a Esfinge de Tebas, vencida por Édipo. A forma essencial deste ser é um monstro com corpo de leão e cabeça humana; na Mesopotâmia antiga, acrescentaram-lhe asas, que aparecem também na arte minóico-micênica, e assim os gregos herdaram a imagem. Por vezes aparece também com rabo em forma de serpente; criaturas compósitas, da mesma família, podem apresentar também rosto de carneiro, mãos humanas ou a forma de leão-centauro; grifos e quimeras são seus parentes. O gênero varia, masculino ou feminino, ou em uma zona de ambivalência. O Esfinge de Gizé é o maior, mais importante e mais antigo artefato representando esfinge, obra da 4a dinastia (2.560–2.450 aEC); está junto à pirâmide de Quéops (Khufu), o que assinala seu vínculo com a figura do faraó e com a cultura funerária. Foi frequente a representação do faraó em forma de esfinge, até mesmo por Akhenaton (1.349–1.336 aEC), como se vê em duas estelas (no Museum of Fine Arts of Boston, EUA, e no Kestner Muzeum de Hannover, AL); neste caso, está associada ao culto solar, uma das funções rituais de esfinges no Egito, e reinterpreta Horemakhet, o Hórus do Horizonte, deus solar. Há no MET (NY, EUA) uma esfinge restaurada procedente do templo funerário de Hatshepsut (1.479–1.458 aEC), na 18a dinastia, em Deir el-Bahri, porém neste caso não é possível certificar o gênero representado, pois esta faraó se fazia representar masculinamente.

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Os gregos herdaram esse mito de várias fontes, sobretudo egípcias e assírias, embora haja antecedentes minóicos, em selos e estampas, e micênicos, incluindo-se uma face tradicionalmente identificada como rosto de esfinge, hoje um ícone do Museu Nacional de Arqueologia de Atenas. A mais antiga referência à Esfinge entre os gregos da Idade do Ferro aparece em Hesíodo, na Teogonia (v. 326), onde ela é referida como Phix (Φῖξ, forma beócia); no mesmo contexto (Linhagem do Mar, versos seguintes) ela aparece ao lado do irmão que Ceto gerou com Ortro, o Leão de Neméia. Como é normal no mito grego, há outras teses para a paternidade e maternidade da Esfinge; em Apolodoro (Bibl., 3 [52], 5–8), seu pai é Tífon, e em Pausânias (9, 26, 3), Laio; um escólio a Hesíodo a põe como filha da Quimera. Foi listada também como esposa de Cadmo (Palaiph., 4 Festa). Em todas as ocorrências na literatura grega a Esfinge está relacionada à Beócia, Tebas e a estirpe de Cadmo. A Esfinge aparece em boa quantidade na escultura arcaica grega, geralmente com função funerária, olhando para o lado, para a frente ou para trás, ereta, agachada ou deitada, sozinha ou em pares, por vezes com uma pata dianteira erguida, ora rampante, junto a seres humanos, heróis e várias divindades, sobre colunas e epitáfios, como ornamento na entrada de templos ou como figura aterrorizadora, gravada em escudos; aparece bastante também na iconografia vascular, em relevos, moedas, selos, figurinhas votivas e prótomos. No caso grego, o gênero é sempre feminino, o que aparece nos seios representados nas imagens e nas referências textuais. Na cultura grega, a mais célebre imagem é da Esfinge que ocupou a entrada de Tebas após a morte de Laio, enviada por Hera (ou, em algumas versões, por Ares, Dioniso ou Hades) para vingar a sevícia do pelópida Crisipo por Laio, e que apresentava um enigma a quem quisesse entrar; quem não o decifrasse, era devorado, mas Édipo venceu o desafio e, com isso, a Esfinge jogou-se 106

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em um penhasco, liquidada pelo herói, que assim recebe como prêmio o trono de Tebas e o leito da rainha viúva, Jocasta. Eis a cena de um dos mitos mais fortes da cultura antiga, figuração simbólica e analítica dos tabus do parricídio e do incesto, fonte programática da psicanálise de Freud, conectada ao mito da Esfinge. Há muitas representações do encontro de Édipo com a Esfinge em pinturas de cerâmicas gregas, sendo a mais célebre a guardada no Museu do Vaticano. O enigma dizia: «é bípede sobre a terra e quadrúpede, e trípode, mas tem uma só voz. Só esta criatura, das que vão sobre a terra, céu acima ou para o fundo do mar, transforma sua própria natureza. Mas quando caminha apoiado em múltiplos pés, então tem menos força em seus membros» (de scholio alexandrino a As Fenícias, de Eurípides); outra versão do enigma questiona qual animal na aurora anda em quatro patas, à tarde, em duas, e à noite, em três. Em Sófocles e Eurípides, a Esfinge é referida como donzela, sábia virgem, virgem de garras aduncas e expressões que reforçam o vínculo entre feminilidade, sedução, potência agressiva, sabedoria e poder, traços fundamentais de sua simbologia. A criatura híbrida compõe também animalia, um signo construído no universo das relações entre humanos e animais, com um fluxo de imagens, funções, identidades e atributos, processo característico das culturas míticas do mundo antigo. As funções rituais e a imaginação sobrenatural associadas às esfinges deitam firmes raízes nos mundos paleolítico e neolítico, e inscrevem a crença em esfinges no campo das culturas e mentalidades religiosas primordiais. Desde a mais antiga ocorrência, as imagens de esfinges associam dois campos simbólicos muito intensos, kratos e eros, poder e amor; por isso os artefatos de arte-arqueologia com representações de esfinges podem ter duas grandes funções, também na arquitetura de 107

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palácios e cidades, na vida quotidiana e nas mentalidades: função política e função religiosa. O componente erótico das esfinges é epifenômeno de sua sacralidade. Entre as mais instigantes recepções modernas da Esfinge está a obra do sábio jesuíta Athanasius Kircher, Oedipus Aegyptiacus (1652), onde a leonina e alada donzela aparece no frontispício, sobre um rochedo alto a que Édipo se dirige com gesto (pathosformel) persuasório, compondo a imagem e o ambiente simbólico da inteligência e da argúcia que conduziriam o autor, Athanasius, em seu esforço por decifrar os hieróglifos egípcios. Um século e meio após Kircher, Jean Baptiste Dominique Ingres pintou, entre 1808 e 1827, a tela que se tornaria ícone do encontro entre Édipo e a Esfinge, hoje no Louvre; desta obra, há uma versão diminuta, de 1826, na National Gallery, Londres, e também outra versão menor e tardia, de 1864, hoje no Walters Art Museum, em Baltimore. Encadeada a esta, floresceu a recepção na pintura simbolista da segunda metade e do final do século XIX, a partir da obra de Gustave Moreau, do mesmo ano de 1864, atualmente no Metropolitan Museum of Art, (NY), e, na mesma linhagem erotizante, O beijo da Esfinge (1895), de Franz von Stück, no Museu de Arte Moderna de Budapeste, e As carícias (1896), de Fernand Khnopff, hoje no Museu de Belas Artes de Bruxelas, em que a Esfinge (com corpo de guepardo) e um Édipo efeminado (dito andrógino, o que não está evidente na imagem) aparecem trocando carícias; estas obras, e também a gravura a óleo de František Drtikol, Sphinx [Cleopatra], de 1913, elabora o tema da relação erótica entre o herói tebano e a Esfinge, explorando o enlevo da sedução e, com esta, formulando uma explicação erótica para os poderes do herói, do monstro híbrido, da resolução do enigma e da condição humana simbolizada nesse mito. 108

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Jean Cocteau retoma este tema em seu drama La machine infernale (1934), a única versão do mito de Édipo em que a Esfinge entra em cena (juntamente com o deus egípcio Anúbis), dialoga e age, enamora-se com Édipo e morre após a decifração, no início do drama. A Esfinge é personagem de primeira grandeza na memória cultural da humanidade, da Antiguidade aos dias atuais. Possui exuberante documentação material e literária, enraizada em mitos complexos, capazes de encadear diversas variáveis culturais em sínteses dotadas de assombro. Mitos e imagens exploram as relações de poder, a feminilidade e as condições de gênero, a sexualidade e a condição humana, social, psíquica e cultural. Com esta potência de história, signos e símbolos, a Esfinge reitera a todos em todas as épocas as perguntas cruciais: quem sou eu, quem somos nós, o que é a humanidade? Como enfrentamos os desafios entre gênero e sociedade, sexualidade e poder, a potência das fêmeas, eu e o mundo? Eis, para animar a estas questões, a Esfinge diante de nós, no século XXI. Fontes históricas EURÍPIDES. 2016. As Fenícias. Tradução de Jaa Torrano, Codex, vol. 4, n. 2, p. 112–81. HESÍODO. 1995. A Teogonia. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Ed. Iluminuras. LEXICON ICONOGRAPHICAL MYTHOLOGIAE CLASSICAE (LIMC), 1997, VIII, 1, Zürich: Artemis Verlag, p. 794–817 e 1149–1174. LEXICON ICONOGRAPHICAL MYTHOLOGIAE CLASSICAE (LIMC), Supplementum 2009 – 2, Zürich, Artemis Verlag, p. 220223 e 458–463. 109

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SÓFOCLES. Édipo Tirano. Tradução de Leonardo Antunes. São Paulo: Ed. Todavia, 2019. Bibliografia geral CONNELL, J. 2013. The silence of the Sphinx: Oedipal error and the recovered answer to the riddle, Fragmentum, n. 38, vol. 2. Laboratório Corpus: UFSM, Jul./ Set. p. 15–39. NYS, N. 2018. The Sphinx Unriddled – The sphinx and related composite creatures. A motif of political-religious legitimation during the dynamical period of cultural changes appearing in the Late Bronze (1600–1200 BC) and the Early Iron Age (1200–800 BC) in the Eastern Mediterranean, vols. 1 e 2. Tese de doutorado em Arqueologia defendida na Faculty of Arts and Philosophy of Ghent University e Faculty of Arts of Kuleuven. REGIER, W. G. 2004. Book of the Sphinx. Lincoln: University of Nebraska Press. REVOL-MARZOUK, L. 2011. La sphinx décadente: topos et poetique de la transgression. Nordlit 28, p. 41–53. ZOUZOULA, E. 2007. The fantastic creatures of Bronze age Crete, vols. 1 e 2. Tese de doutorado em Arqueologia defendida na University of Nottingham.

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Σεμέλη › Sêmele

por Juarez Oliveira

Sêmele (Σεμέλη [Semélē]), chamada também de Tione (Θυώνη [Thyṓnē]) e mesmo Dione (Διώνη [Diṓnē]), é filha de Cadmo e da deusa Harmonia, sendo assim também neta dos deuses Ares e Afrodite. É conhecida como a mãe do deus Dioniso, a quem gerou junto a Zeus e pelo qual foi tornada deusa após ser resgatada do mundo dos mortos, o Hades. Seu mito transcorre em Tebas, cidade da região da Béocia, ainda hoje situada no território da Grécia central. Cronologicamente, sua história se passa na Idade dos Heróis. O nome Sêmele não é originalmente grego, mas neofrígio, significando «aos deuses do céu e da terra», de onde se supõe que ela era uma deusa trácio-frígia da terra (cf. Chantraine 1968–1980, 996). Já o nome Tione deriva do verbo θύω [thȳ́ō], no sentido de «saltar, lançar-se com furor», ainda que ele signifique também «ofertar queimando, sacrificar» (cf. Chantraine 1968–1980, 448). Dione, por sua vez, é um nome que deriva do adjetivo διός [diós], cujo sentido é «brilhante», e é relacionado ao radical do nome de Zeus [Δι-/Di-], sendo assim compreendido como uma forma feminina sua, o que apontaria para uma possível identificação de Dione com uma deusa celeste (cf. Chantraine 1968–1980, 285–286, 387; Burkert 1999, 45). Apesar de certas fontes apresentarem Tione e Dione como nomes alternativos para Sêmele na tradição (Tione: Hino Homérico a Dioniso, 1. 12; Safo, fr. 17; Píndaro, Pítica 3, 96–99; Dione: Eurípides, Antígona, fr. 177), outras dizem que Tione seria o nome que Dioniso teria lhe dado após resgatá-la do mundo dos mortos e torná-la deusa (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3. 5. 3; Diodoro Sículo. Biblioteca Histórica, 4. 25. 4).

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Uma outra ainda distingue Sêmele de Tione, afirmando que esta seria a ama de Dioniso e aquela, sua mãe (Paniássis. Heracleia, fr. 5) O mito de Sêmele, Zeus e Dioniso é atestado já entre os séculos VIII a VI aEC, no Período Arcaico. Hesíodo (Teogonia, 940–942) refere-se a Sêmele como Καδμείη ([Kadmeíē], Cadmeia), isto é, filha de Cadmo; diz, ainda, que ela gerou (τέκε [téke]) Dioniso e que ambos são θεοί [theoí] deuses. Homero, na Ilíada (14. 313–328), lista-a no catálogo de amantes que Zeus enuncia à sua esposa Hera, a fim de persuadi-la a deitar -se com ele, dizendo que nenhuma delas lhe inspirou tanto desejo quanto a deusa naquele momento. Nesse contexto (Ilíada 14. 325), também Homero diz que Sêmele gerou (τέκε [téke]) Dioniso. O Hino Homérico a Dioniso, referindo-se a ela como κυσαμένην Σεμέλην [kysaménēn Semélēn], genetriz Sêmele (1. 5), lista os lugares onde ela teria dado à luz (τεκέειν [tekéein]) ao deus, mas diz que, na verdade, foi Zeus quem o gerou longe dos homens mortais, para protegê-lo de Hera (1. 6–7). Além de Safo (fr. 17), que chama Sêmele de Tione, Tirteu (fr. 20) também a menciona, mas o caráter extremamente fragmentário dos versos não permite ler mais que seu nome e uma possível referência a seu cabelo no que parece ser um epíteto poético. No período Clássico, entre os séculos IV e V aEC, encontramos a primeira maior caracterização de Sêmele na peça Bacantes de Eurípides. No prólogo (1–63), enunciado por Dioniso, ela é mencionada nove vezes: quatro como μήτηρ ([mḗtēr]mãe), duas como κόρη/θυγάτηρ ([kórē/thugátēr], filha), e três por seu nome próprio, numa das quais como sujeito do verbo τίκτει ([tíktei], gerou). No restante da peça, é sobretudo o seu papel de mãe que é reiterado. No entanto, Sêmele é acusada por suas irmãs de ter se deitado com um homem mortal e atribuído a Zeus a paternidade de Dioniso, 112

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sendo assim fulminada pelo deus como punição (26–31). Ainda nessa época, outras peças, hoje perdidas ou muito fragmentárias, que tratariam do mito são Sêmele, uma de Ésquilo e outra de Êubolo, Hidróforos de Sófocles, e As dores de parto de Sêmele de Timóteo (cf. Gantz 1993, 474–475). Nas odes Olímpica 2 (25–27) e Pítica 11 (1), Píndaro afirma que Sêmele vive entre os deuses e as deusas, dentre os quais muito a amam: Palas (Atena), Zeus e Dioniso. Além disso, na Olímpica, ela é adjetivada como τανυέθειρα ([tanyétheira], de longos cabelos) e, na Pítica, como Κάδμου κόραι ([Kádmou kórai], filha de Cadmo). Numa outra ode (Pítica 3. 96–99), Píndaro diz que Zeus, a despeito do infortúnio das outras irmãs de Sêmele (chamada aqui de Tione), deitou-se com ela, que é adjetivada como λευκώλενος (de brancos braços). No período Imperial Romano, entre os séculos I aEC. e II EC, seu mito é recontado e escrutinado pelos poetas e prosadores. O historiador Diodoro Sículo, em sua Biblioteca Histórica, fala de Sêmele em pelo menos três de seus livros. No primeiro (1. 23. 1–7), assim como o hino homérico e as Bacantes, o historiador afirma que o nascimento de Dioniso decorrente do enlace entre ela e Zeus é falso. Sêmele seria, na verdade, natural da Tebas egípcia e teria sido φθαρεῖσαν (phthareîsan, violada) por algum homem, dando à luz a um menino com aparência que os egípcios consideravam ser a do deus Osíris. Seu pai Cadmo, então, trata-o como se ele fosse uma epifania do deus e atribui a paternidade a Zeus, para evitar a infâmia da filha violada. Depois, Orfeu, levando os ritos egípcios à Grécia e favorecendo os cadmeus por terem-no acolhido, perpetua ritualmente a filiação de Dioniso a Sêmele e Zeus. Já no terceiro livro (3. 64. 3–4), Diodoro reitera a maternidade de Sêmele, que é dita τῆς Κάδμου ([tē̃s Kádmou], filha de Cadmo), e relata que Hera a engana, sugerindo-lhe pedir que Zeus se apresente em sua forma divina, acarretando 113

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assim sua morte e o aborto de Dioniso. No quarto livro (4. 2. 1–3), em vez do engano de Hera, o historiador diz que Sêmele acreditava que Zeus καταφρονεῖν αὐτῆς [kataphroneîn autē̃s], a menosprezava, por se encontrar com ela às escondidas. Fazendo, então, o mesmo pedido, morre e dá à luz a Dioniso prematuro. Diodoro afirma, ainda, no quinto livro (5.52.2), que Sêmele teria sido κεραυνωθείσης ([keraunōtheísēs], fulminada pelo raio) de Zeus. Pseudo-Apolodoro, em sua Biblioteca (3 .4. 2–4), que caracteriza Sêmele como uma das θυγατέρες ([thygatéres], filhas) de Cadmo, reporta basicamente a mesma versão que Diodoro Sículo, salvo a trama egípcia e a diferença de que a mãe de Dioniso teria morrido διὰ τὸν φόβον ([dià tòn phóbon], por causa do medo) que a situação lhe inspirara. Embora afirme que Dioniso fora resgatado das chamas, Apolodoro nada diz sobre Sêmele ser consumida pelo fogo, mas, seguindo o que parece ser a versão euripidiana, reitera as acusações de suas irmãs, que dizem ainda que ela teria sido morta pelo deus ἐκεραυνώθη [ekeraunṓthē] atingida por um raio. Apesar disso, o mitólogo afirma que Zeus teria matado o mortal Actéon devorado pelos próprios cães por ele ter cortejado Sêmele. Nas Metamorfoses (3. 256–315), Ovídio segue bastante de perto as versões já referidas, com a adição de que, para persuadir Sêmele a demandar a forma divina de Júpiter (Zeus), Juno (Hera) disfarça-se de Béroe, sua ama. O narrador afirma que Juno sofre por Sêmele gravidamque esse (estar grávida). A deusa mesma diz que a mortal furto est contenta (satisfez-se com tal aventura), concipit (está grávida) e manifestaque crimina (ostenta o crime). Contrapondo-se a Sêmele, Juno afirma, ainda, que ela mater uno de Iove vult fieri (aspira a ser mãe apenas de Júpiter), algo que quase não foi possível à própria deusa. Depois de enganada por Juno, Sêmele é dita pelo narrador ignaram Cadmeia (ingênua filha de Cadmo), já que laeta malo 114

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perituraque (feliz com seu mal, está prestes a perecer). Visitada então por Júpiter, que está paramentado com um raio fraco, Sêmele morre, porque seu corpus mortale (corpo mortal) não suporta o furor divino e acaba fulminado. Depois disso, Baco é extraído do ventre genetricis (da mãe). O mito é referido ainda por outras fontes do período Imperial Romano. Higino, em suas Fábulas (167), registra que a gravidez de Sêmele decorreria não do enlace com Zeus, mas dela ter ingerido uma bebida preparada com o coração de Líber (outro nome de Dioniso, além de Baco), depois do que seria enganada por Juno e morta por fulminação. Plutarco (Moralia 565f–566a) atesta apenas que Dioniso foi ao Hades, resgatou Sêmele e conduziu-a para junto dos deuses. Pausânias (2.31.2; 2.37.5), por fim, também relata o resgate, mas afirma crer que Sêmele não teria morrido, já que ela era γυναῖκα (gynaîka, esposa) de Zeus. Uma última fonte, também desse período, serve de síntese à tradição mítica de Sêmele: o Hino Órfico 44, a ela dedicado. Nele, Sêmele é dita κούρη Καδμηίς (koúrē Kadmēís, moça Cadmeia) duas vezes e também παμβασίλειαν ([pambasíleian], senhora de tudo), um epíteto que lhe confere um caráter divino, que será reiterado adiante, quando ela for chamada de θεά ([theá], deusa), já que é recorrente na caracterização de outras deusas, como Reia e Hera (cf. Barbieri 2018, 456). Sêmele tem, ainda, sua compleição exaltada, sendo qualificada como εὐειδῆ ([eueidē], vistosa), ἐρατοπλόκαμον ([eratoplókamon], de lindas tranças) e βαθύκολπον ([bathýkolpon], amplo seio). O hino apresenta brevemente sua fulminação e parto, caracterizando-a como φλεχθεῖσα ([phlekhteîsa], abrasada). Por fim, além de chamá-la de deusa, o hino diz que ela é honrada junto a Perséfone e aos mortais trienalmente, o que parece indicar a possibilidade de que Sêmele e Dioniso fossem cultuados em anos alternados (cf. Barbieri 2018, 457) 115

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Em resumo, nas fontes apresentadas, Sêmele é caracterizada sobretudo como filha, mãe e deusa, tendo destacada sua feminilidade. Tal caracterização evidencia-se pelo léxico geracional, físico e divino a ela aplicados. Quanto às questões de gênero que lhe tocam, pode-se sublinhar a subordinação e mesmo violência (pensando-se na fulgacidade de sua morte e nas perseguições que sofre) à qual é submetida, sendo constantemente referida como filha de Cadmo e amante de Zeus, o que a caracteriza como adúltera e mentirosa. Apesar disso, diferente de outras personagens míticas, tudo pelo que passa, principalmente pelo fato de dar à luz a Dioniso, lhe garante afinal uma posição privilegiada como deusa. Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. The Library. 2 vols. Edited and translated by J. G. Frazer. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press. DIODORO DE SICILIA. 2001. Biblioteca Histórica: libros I–III. Trad. Francisco P. Alasà. Madrid: Gredos. DIODORO DE SICILIA. 2004. Biblioteca Histórica: libros IV–VIII. Trad. Juan José R. Esbarranch. Madrid: Gredos. EURÍPIDES. 1995. Bacas. Tradução de J. A. A. Torrano. São Paulo: Hucitec. HESÍODO. 2013. Teogonia. Trad. Christian Werner. São Paulo: Hedra. HIGINO. Fábulas. 2009. Trad. Javier Del Hoyo & José Miguel G. Ruiz. Madrid: Gredos. HINOS ÓRFICOS. No prelo. Tradição de Rafael Brunhara. Goiânia: Martelo Editorial. HOMERIC HYMNS, HOMERIC APOCRYPHA, LIVER OF HOMER. 2003. Edited and translated by Martin L. West. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press. 116

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HOMERO. 2018. Ilíada. Trad. Christian Werner. São Paulo: Ubu. NAUCK, A. 1889. Tragicorum Graecorum Fragmenta. 2d ed. Leipzig: Teubner. OVÍDIO. 2007. Metamorfoses. Trad. Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Cotovia. PAUSANIAS. 1994. Descripción de Grecia: Libros I–II. Trad. María Cruz Herrero Ingelmo. Madrid: Editorial Gredos. PINDAR. 1997. Olympian Odes, Pythian Odes. Edited and translated by William H. Race. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press. PLUTARCO. 1996. Obras morales y de costumbres (Moralia). Vol. 8. Trad. Rosa M. Aguilar. Madrid: Gredos. SCHOLIA VETERA IN PINDARI CARMINA. 1903–1927. Edited by A. B. Drachmann, 3 vols. Leipzig: Teubner. SAFO. 2017. Fragmentos completos. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral BRUNHARA, R. 2014. As elegias de Tirteu: poesia e performance na Esparta Arcaica. São Paulo: Humanitas. BURKERT, W. 1999. De Homero a los Magos: la tradición oriental en la cultura griega. Barcelona: El Acantilado. CHANTRAINE, P. 1968-1980. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Paris: Klincksieck. GANTZ, T. 1993. Early greek myth. 2 vols. Baltimore & Londres: The John Hopkins University Press. ANTUNES, P. B. 2018. Hinos Órficos: edição, estudo geral e comentários filológicos. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo – USP. 117

Δανάη › Dânae

por Renata Cardoso Belleboni Rodrigues

∆ανάη [Dânae], remete à raiz indo-europeia dānu (água), relacionando-se ao fato de a princesa, junto ao seu filho, o herói Perseu, ter sido lançada ao mar (Brandão 1991, 260). Filha de Acrísio, rei de Argos, e de Eurícide, uma das primeiras da geração dos Lacedemônios, esta formosa princesa, conhecida pelas belas madeixas, não desfrutou, por muito tempo, da companhia de seus pais. Inconformado por não ter um filho varão, Acrísio foi ter com a Pitonisa de Apolo em Delfos, que lhe revelou apenas, sob os auspícios do deus, que seu neto, filho de Dânae lhe mataria. Para não correr este risco, o rei ordenou que no pátio de seu palácio fosse construída uma prisão subterrânea de bronze, onde a encarcerou junto a uma ama, na tentativa de privá-la, definitivamente, da companhia do sexo masculino. No entanto, esta artimanha não impediu que Zeus a visse e se apaixonasse por ela. Sob a forma de chuva de ouro, o deus do Olimpo penetrou a prisão e a engravidou (talvez tomando uma forma humana). Dânae e a ama conseguiram manter toda a gravidez e o nascimento em sigilo, mas Perseu, como toda criança, dava seus gritinhos, que um dia foram ouvidos pelo avô. Após não acreditar nas explicações da ama e mandar matá-la e também não confiar na declaração da filha de que o neto era filho de Zeus, Acrísio ordenou a construção de uma arca de madeira que foi lançada ao mar com a jovem e Perseu dentro. A arca foi encontrada por Díctis, irmão de Polidectes, rei de Serifo. Díctis tornou-se companheiro de Dânae e criou Perseu até que a beleza da princesa também atraiu os olhares do rei. Sempre impedido de se aproximar da protegida de seu irmão,

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Polidectes incumbiu Perseu de trazer-lhe a cabeça de Medusa, acreditando que o feito nunca se realizasse. O mito deste herói nos narra o seu retorno e a petrificação de Polidectes e seus convidados. Díctis tornou-se o rei de Serifo e Dânae retornou a Argos para viver ao lado de sua mãe. Mais conhecida por estar inserida no mito de Perseu, a personagem Dânae pertence à Idade dos Heróis. A maior parte do contexto literário em que foi citada pertence ao período clássico e posterior, especialmente em odes, tragédias e compilações mitológicas. Referências mais gerais a Dânae, citando-a como filha de Acrísio ou como mãe de Perseu ou mesmo fazendo breves menções à tentativa de coibir as investidas de Polidectes podem ser encontradas, durante o Período Arcaico, na Ilíada (14, 319 ss) de Homero (ap. VIII aEC) e em Escudo de Hércules (216 ss) de Hesíodo (ap. VIII aEC). Já no Período Clássico, existiram algumas tragédias de Sófocles, Ésquilo e Eurípedes (hoje perdidas) nas quais Dânae foi a personagem principal. Citamos também as Odes Píticas (12, 8 ss) de Píndaro (VI–V aEC). No Período Helenístico a vemos citada em Apolônio de Rodes (III aEC), em Os Argonautas (IV, 1091). Próximo à era cristã e adentrando a esta, temos referências a Dânae em Diodoro Sículo (I aEC), Biblioteca histórica (IV e VIII); nas Odes XVI de Horácio (I aEC); em Plínio, o Velho (I aEC), História Natural (III, 5,56); Higino (I aEC–I aEC), nas Fábulas (63; 155; 224); e Pausânias (II EC), na obra Descrição da Grécia (16, 3). Ressaltamos, porém, o poema O lamento de Dânae, de autoria de Simônides de Céos (ap. 556–468 aEC), preservado por Dionísio de Halicarnasso (I aEC), em sua obra Da Composição Literária. Neste poema, Simônides retratou a tristeza, a aflição e o pranto da jovem de belos cabelos, abraçada ao seu filho enquanto estava encarcerada no baú levado pelo mar revolto. O poeta representa todo o sofrimento quando coloca 120

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na boca da princesa a súplica para que seu filho, o mar e o mal dormissem. Mas é em Apolodoro, em sua obra Biblioteca (II, 2; II, 4; IV, 3) e em Ovídio (I aEC–I EC), Metamorfoses (IV, 607–616) que encontramos narrada toda a saga desta personagem que foi, por duas vezes, reclusa por ordens paternas devido a questões sagradas: um oráculo e uma metamorfose divina. Dânae também foi e é conhecida por meio das fontes iconográficas. A cena em que Zeus se transforma em chuva de ouro é a mais representada na arte grega. No caso romano, no entanto, há um número expressivo de representações do momento em que antecede a sua prisão na arca. Um exemplo deste momento nos é apresentado em um afresco pompeiano (Casa G. Rufus). No período medieval há algumas tentativas de retomar o mito de forma metafórica: Dânae foi relacionada à imagem da Virgem Maria (donzela e casta) que, por obra divina (Zeus–Espírito Santo), sem a intervenção de um homem, torna-se mãe. Nas imagens do século XV, Dânae está presa em uma torre e a chuva de ouro foi substituída pelos raios solares, alusão ao Espírito Santo (ilustrações feitas para o livro Defensorium inviolate virginitatis Mariae, de autoria de Francisco Retza [1490]). No Renascimento a iconografia também retomará a personagem. Antônio Allegri, conhecido como Corregio, por exemplo, em sua tela intitulada Dânae (1531), acrescenta Eros ajudando a donzela a se despir para receber a chuva de ouro. Jan Mabuse, em 1527, em quadro homônimo, a retratou com um manto azul (associando-a à Virgem Maria), mas ainda retomando elementos da Antiguidade, quando deixa o seio de fora. Em 1554 foi a vez de Ticiano dar novo significado ao mito. Em sua obra, igualmente denominada Dânae, o pintor italiano acrescentou uma criada ajudando a jovem a recolher as moedas de ouro que caem do céu, evidenciando que a 121

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beleza se rendeu ao poder do dinheiro. Este mesmo pintor nos deixou uma segunda obra com a mesma temática. Ainda nesta linha de representação da submissão da jovem ao poder do dinheiro, o holandês Hendrick Goltzius, em seu quadro Dânae recebendo Júpiter como uma chuva de ouro, de 1603, acrescenta outros objetos desse metal ao redor da jovem. Há também a presença de mulheres da aristocracia e anjos. São, portanto, apropriações do mito que se afastaram do sentido da castidade para a avareza. Na obra, de 1630, de Peter Paul Rubens, Dânae e a chuva de ouro, ao contrário, tem a representação da ama de Dânae tentando evitar que tal chuva a alcance, preservando, assim, a ideia da castidade. Ainda podemos citar uma obra de Rembrant Harmenszoon van Rijn, igualmente intitulada Dânae, do período Barroco (1636). Nesta, a jovem está envolta a um cenário luxuoso, sendo observada por sua ama que se esconde atrás de uma cortina. Vários outros pintores retrataram a filha de Acrísio, como François Boucher, (estilo Rococó, século XVIII), Edward Brune-Jones (estilo Pré-Rafaelismo 1872), Gustav Klimt (Modernismo, 1907), Franz Stuck (Expressionismo, 1923) e Ivan Koulakov (Neoexpressionismo, 1998) entre outros. De modo mais geral, os temas tratados nas pinturas oscilam entre a castidade/sexualidade e a avareza, de uma jovem que se resguarda a outra que se rende. Fontes históricas APOLLODORUS.1981. The Library. Tome I. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press. HESIODE. 1971. Théogonie. Paris: Les Belles Lettres. HOMÈRE. 1955. Iliade. Tome I e II. Paris: Les Belles Lettres. OVIDE. 1953. Les Métamorphoses. Tome I e II. Paris: Éditions Garnier Frères. 122

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral BELLEBONI-RODRIGUES, R. 2006. Explicar o inexplicável: interpretando Medusa. Tese de Doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. BRANDÃO, J. 1991. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, volumes I e II. GRIMAL, P. 1996. La Mythologie Grecque. Paris: Presses Universitaires de France. HARVEY, P. 1998. Dicionário Oxford de Literatura Clássica: Grega e Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. KURY, M. G. 1997. Dicionário de Mirologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. MALAGÓN, J. E. P. 2014. El mito de Danae en la pintura: una aproximación desde la literatura comparad, CLIO. History and History teaching, n. 40, s.p. Disponível em: http://clio.rediris. es/n40/articulos/pelaez2014.pdf. Acesso em: 28 mai. 2020. VERNANT, J. P. 2000. O universo, os deuses, os homens. São Paulo: Companhia das Letras.

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Μέδουσα › Medusa

por Renata Cardoso Belleboni Rodrigues

Μέδουσα [Medusa], derivado do particípio presente feminino do verbo médein, (‹comandar, reinar sobre›), de onde Medusa é ‹a que comanda, a que reina›. Para se referenciar a ela, inúmeras vezes os gregos utilizavam Γοργώ [Gorgṓ], a ‹impetuosa, terrível, apavorante› (Brandão 1991, 470). Temida por deuses e homens, nas fontes antigas há diferentes descrições sobre sua aparência e atributos: nascida como uma bela mulher ou como um monstro de olhar terrível, ora alada ora áptera. Filha dos titãs Fórcis e Ceto, dois monstros marinhos descendentes de Gaia, Medusa era facilmente reconhecida por sua cabeça ampliada, arredondada, como a face de um leão; olhos arregalados, olhar fixo e penetrante; cabelos como juba de animal ou guarnecidos de serpentes e orelhas grandes e deformadas, às vezes semelhantes às do boi; o crânio com chifres ou asa; boca aberta num ricto, revelando as fileiras de grandes dentes e presas semelhantes às de um javali; língua saltando fora da boca, queixo peludo ou barbudo e pele por vezes sulcada por rugas profundas. Nas representações iconográficas ainda pode ser um híbrido de cavalo e humano (ânfora beótica em bronze. Perseu decapitando Medusa. Aprox. 660 aEC, Musée du Louvre), ter feições ora masculinas ora mais femininas, até a sua total feminilização como nas imagens da Medusa Rondanini. Seu mito confunde-se com aquele de Perseu, o herói que a decapitou e que era cultuado na região de Argos e Serifo, onde há uma profusão da representação imagética de Medusa.

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As mais antigas referências ao seu mito são, em campo grego, encontradas especialmente na Teogonia de Hesíodo, onde é apresentada sua condição de mortal, sua linhagem materna e paterna e suas irmãs imortais Εὐρυάλη [Euryálē] e Σθενώ [Sthenṓ] (também Γοργόνες [gorgónes]) e as monstruosas Graias. Ainda na Teogonia, temos a informação de que Medusa foi tomada em campo primaveril por Poseidon, tendo gerado o cavalo alado Pégaso e o gigante Crisaor e que foi decapitada pelo herói Perseu. Por fim, a obra localiza sua morada no ínclito Oceano (Hesíodo. Teogonia, 270–286). Hesíodo ainda coloca Medusa no contexto de sua obra Escudo de Heraclés (216–236), no entanto, apenas representada por seu gorgoneion, ou seja, por sua cabeça, onde estão os órgãos que retêm o poder da petrificação: os olhos. Nas obras homéricas também há referências ao gorgoneion. Na Ilíada, a cabeça da górgona é mostrada como um símbolo do medo, um monstro horrível presente na égide de Zeus, flagelo dos mortais, associada a divindades como Derrota, Discórdia, Valentia, Perseguição, Ares e Medo, como também pode ser vista no olhar gorgônico do furioso Heitor (Homero. Ilíada, V, 738–739; VIII, 348–349). Quanto à Odisseia, o gorgoneion está associado à Perséfone, no contexto infernal (Homero. Odisseia, XI, 632). Embora a máscara de Medusa seja referenciada em obras do século VIII aEC, sua descrição será encontrada de forma pormenorizada apenas na Biblioteca, de Apolodoro (aproximadamente 140 aEC), onde vemos a descrição das Górgonas com cabeças cingidas por todos os lados com escamas de dragões, grandes presas semelhantes às de javali, mãos de bronze e asas de ouro, graças às quais voavam (Apolodoro. Biblioteca, II. IV.3). 126

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A personagem Medusa ou seu contexto maior, inserida no mito de Perseu, pertence à Idade dos Heróis, entretanto, no período clássico ela está presente em odes, tragédias e comédias. Há referências a esta górgona em Píndaro (aproximadamente 469 aEC), quando trata da invenção da flauta pela deusa Atena, quando buscava imitar o canto das górgonas (Píndaro. Olímpicas, Pítica XII); em Ésquilo, sua aparência e poderes são lembrados: nas Coéforas (1048–1050), elas são assemelhadas às Erínias, vestindo traje preto com cinto de serpentes. No contexto de uma perseguição, de um delírio de loucura, as Górgonas são a primeira imagem que vem à mente do impuro Orestes. Já nas Eumênides, as Górgonas são descritas como um grupo assombroso de mulheres aladas, mais uma vez associadas às Erínias, aquelas que provocam medo e levam o homem à loucura (Ésquilo. Eumênides, 46–54). Sófocles, por sua vez, buscou semelhanças entre os olhares de Atena e de Medusa em um contexto de guerra: olhar terrificante que lança um violento êxtase (Sófocles. Ájax, 444–455). Ainda no contexto das tragédias, Eurípides também irá referenciar esta personagem: o gorgoneion, representado no escudo de Atena, será usado para afastar as Erínias (Eurípides. Electra, 1249–125); nas Fenícias, Polinices é incentivado por Jocasta a olhar o corpo de seu irmão morto, frisando que ele não verá a cabeça decepada de Medusa. Neste contexto de morte, o personagem teve medo de visualizar o seu próprio futuro, ou seja, a sua morte (Eurípides. As Fenícias, 451–458); Já em Íon, o tragediógrafo altera elementos do mito. Aqui, Medusa é filha de Gaia e é assassinada por Atena que, após o golpe, se veste com a égide do monstro. É também nesta tragédia que foi acrescido poder ao sangue de Medusa: uma gota cura e outra mata (Eurípides. Íon, 988–1015). Adereços de gorgoneions que tilintam de seus guizos o som do medo também aparecem em outra tragédia deste autor (Eurípides, 127

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Reso, 300–309). Dentre a recepção desta personagem nas comédias, destacamos uma de Aristófanes, onde o poder do gorgoneion no escudo de Io Lâmacos será o responsável por despertar o tumulto durante um dos combates da Guerra do Peloponeso (Aristófanes. Os Acárnios, 560–574). Estas e outras passagens que tratam de Medusa ou de seu gorgoneion estão sempre inseridas no campo do medo e da morte. Mas são as obras de Apolodoro e Ovídio que nos fornecem o mito da Górgona em conjunto com as façanhas de Perseu de forma mais completa, mais detalhada, reunindo diferentes versões. Na Biblioteca temos algumas novas informações sobre Medusa: há uma descrição pormenorizada de seus atributos que são: mãos de bronze, escamas de dragão e presas de javali (além dos terríveis olhos e asas que já foram citados). O autor informa que as madeixas colocam um exército para fugir. Ainda é afirmado que o grande herói Héracles sentiu medo desse monstro. É neste texto que temos, pela primeira vez, a descrição do ato de sua decapitação com Perseu fazendo uso de seu escudo como um espelho, para escapar ao olhar direto de Medusa (Apolodoro. Biblioteca, II. III, 2 ao IV, 3; II. V, 12; II. VII, 3; III. X, 3). Embora possamos encontrar muitos episódios descritos por Apolodoro, nas Metamorfoses (43 aEC–18 EC), de Ovídio, há, também, informações complementares: Medusa como monstro de cabeleira de serpente; o olhar que petrificou corais, Atlas e outros monstros; que Medusa teria sido uma bela mulher, com lindos cabelos, que foi tomada por Poseidon dentro de um templo da deusa virgem Atena e que foi transformada em um monstro por este motivo (Ovídio. Metamorfoses, Perseu, Atlas, Andromeda, IV, 604–803). 128

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Em resumo, nas fontes antigas observamos que a figura de Medusa mescla características humanas (feminino e masculino), animais (domesticáveis e selvagens) e divinas (o poder de petrificar quem a olha de frente). Gorgó é híbrida, causa espanto e descontrole. No século XX, historiadores, mitógrafos, arqueólogos, filólogos e outros pesquisadores, buscaram explicar a origem do mito de Medusa ou do seu gorgoneion, estabelecer se foi a Górgona ou sua máscara que surgiu primeiro, salientar o significado deste monstro para o imaginário grego, estabelecer o medo e/ou a morte como seu contexto primordial e, compreender se foi a arte que influenciou a estruturação do mito ou se ela foi influenciada pela mitologia. Entre os vários estudiosos citamos: Frederick Thomas Elworthy, em A Solution of the Gorgon Myth (1902); Howe Feldman, em The Origin and Function of the Gorgon-Head (1954); Elmer George Suhr, em An Interpretation of the Medusa (1965); Edward Phinney Jr, em Perseus’ Battle with the Gorgons (1971); Jean-Pierre Vernant, em La Mort dans les yeux. Figures de l’autre en Gréce ancienne (1985); e Stephen R. Wilk, em Medusa: solving the Mystery of the Gorgon (2000). Perpassando estes estudos, vemos o interesse dos estudiosos voltados para as origens do mito e da representação figurada do monstro indo em direção ao intuito de estabelecer simbologias e funções adentrando, a seguir, no campo dos significados intrínsecos e mentais, textos representativos das discussões que ocorreram e ocorrem nos diversos meios intelectuais. Nestas pesquisas ainda encontramos apontamentos que associaram Medusa aos demônios malignos, aos deuses ou símbolos da fertilidade, aos símbolos apotropaicos, apolíneos, aos fenômenos naturais e a alguns animais, além de divindades de outras culturas como o deus asteca Tonatiuh, o Bes egípcio, o Humbaba mesopotâmico, o Kirtimukkha indiano, 129

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a Daruma japonês, entre outros. bem como estabeleceram associações de suas representações iconográficas com as artes egípcia, hitita e assíria. Mesmo que Medusa seja muito mais que uma cabeça, é na forma do gorgoneion que a encontramos em grande abundância na arte grega (vasos de cerâmica ou em bronze, amuletos, acroteras, antefixas, moedas, jóias e adereços). Em um contexto mais próximo ao nosso, esse símbolo ganhou destaque no óleo sobre tela denominado Medusa, de Caravaggio (1596–7). Fontes históricas APOLLODORUS.1981. The Library. Tome I. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press. ARISTOPHANE. 1983. Les Acharniens. Tome I. Paris: Les Belles Lettres. ESCHYLE. 1949. Agamemnon – Les Choéphores – Les Euménides. Tome II. Paris: Les Belles Lettres. E U R I P I D E . 1 9 6 5 – 6 6 . T h e a t re Co m p l e t e . P a r i s : Garnier-Flammarion. HESIODE. 1971. Théogonie. Paris: Les Belles Lettres. HOMÈRE. 1955. Iliade. Tome I e II. Paris: Les Belles Lettres. HOMÈRE. 1924. L’Odyssée. Tome II. Paris: Les Belles Lettres. OVIDE. 1953. Les Métamorphoses. Tome I e II. Paris: Éditions Garnier Frères. SOPHOCLE. Ajax. Paris: Les Belles Lettres, 1946. Bibliografia geral BELLEBONI-RODRIGUES, R. C. 2006. Explicar o inexplicável: interpretando Medusa. Tese de Doutorado em História Cultural defendida na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. 130

A presença das mulheres na Literatura e na História

BRANDÃO, J. 1991. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, volumes I e II. ELWORTHY, F.T. 1903. A Solution of the Gorgon Myth, Folklore, vol. 14, n. 3, p. 212–242. GRIMAL, P. 1996. La Mythologie Grecque. Paris: Presses Universitaires de France. HOWE FELDMAN, T. P. 1954. The Origin and Function of the Gorgon-Head, American Journal of Archaeology, vol. 58, n. 3, p. 209–221. KURY, M. G. 1997. Dicionário de Mirologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. PHINNEY JR, E. 1971. Perseus’ Battle with the Gorgons, Transactions and Proceedings of the American Philological Association, vol. 102, p. 445–463. HARVEY, P. 1998. Dicionário Oxford de Literatura Clássica: Grega e Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. SUHR, E. G. 1965. An Interpretation of the Medusa, Folklore, vol. 76, n. 2 p. 90–103. VERNANT, J. P. 1991. A Morte nos Olhos. Figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. WILK, S. R. 2000. Medusa: solving the Mystery of the Gorgon. New York: Oxford University.

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Ἀνδρομέδη › Andrômeda

por Clara Lacerda Crepaldi

Andrômeda [Ἀνδρομέδα ou Ἀνδρομέδη] é uma personagem mitológica, filha de Cefeu, rei da Etiópia, e de Cassiopeia. As principais fontes para a sua história são as Metamorfoses de Ovídio, os fragmentos da tragédia Andrômeda de Eurípides, a Biblioteca do Pseudo-Apolodoro, os Catasterismos do Pseudo-Eratóstenes e as Fábulas e o De Astronomica de Higino. Quando amarrada a um penhasco e exposta a um monstro marinho, Andrômeda foi salva por Perseu, com quem depois se casou. O motivo da sua exposição teria sido a vaidade de sua mãe, que pretendera ser mais bela do que as Nereidas. Poseidon então mandou à Etiópia uma enchente e um monstro marinho (Ceto) como castigo à arrogância de Cassiopeia, e o oráculo de Amon profetizou que apenas a exposição de Andrômeda apaziguaria o monstro. Segundo Apolodoro (II. 4. 3), Cefeu teria então sido obrigado pelos etíopes a expor a própria filha. Após o salvamento de Andrômeda, Perseu teria enfrentado alguma oposição ao seu casamento com a princesa. Essa oposição viria ou de Fineu, um irmão de Cefeu a quem Andrômeda teria sido prometida, ou dos próprios pais de Andrômeda. Mas bastou a Perseu usar a cabeça da Górgona para derrotar seus opositores, petrificando-os. Andrômeda então partiu com ele rumo a Argos. De acordo com Heródoto (VII. 61), o nome dos persas é derivado de Perses, um dos filhos de Perseu e Andrômeda. Na versão de Higino, os pais de Andrômeda tentaram, mas não conseguiram dissuadi-la de partir com Perseu. Ele diz também que Cassiopeia havia se vangloriado da beleza de Andrômeda, e não da sua própria, e chama o noivo preterido

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de Agenor (o Fineu da versão mais corrente). Os textos astronômicos contam que tanto Andrômeda, quanto Perseu, Cefeu, Cassiopeia e Ceto foram eternizados em constelações. Os gregos Sófocles e Eurípides e os romanos Lívio Andrônico, Quinto Ênio e Lúcio Ácio escreveram tragédias sobre Andrômeda, mas delas temos apenas fragmentos (mais numerosos no caso de Eurípides). A versão mais completa e mais célebre da história está em Ovídio (Metamorfoses, IV. 668; V. 238). Nela se pode observar influências de Eurípides em vários detalhes: o penhasco do cenário, a imagem de Andrômeda que se assemelha a uma estátua, o motivo do amor à primeira vista, o silêncio pudico da heroína. Certo é que é via Ovídio que a história se celebriza e inspira dramaturgos como Corneille (Andromède) e Calderón de la Barca (Las Fortunas de Perseo y Andrómeda) e artistas como Ticiano, Rubens, Rembrandt e Delacroix Na tragédia grega e na iconografia, o aspecto não grego da caracterização de Andrômeda parece ser enfatizado, seja pelos trajes orientais dos personagens, seja por supostos valores bárbaros, ou até mesmo pela representação dos servos etíopes com a pele escura e os cabelos enrolados (Taplin 2007, 175). Assim como ocorre em outras tragédias tardias de Eurípides (Ifigênia em Táuris e Helena), a Andrômeda devia enfatizar o cenário exótico de uma terra longínqua, a moral de uma heroína não grega e possivelmente a crueldade de um bárbaro (que poderia ser Fineu ou Cefeu). A Andrômeda é o mais perfeito exemplo na mitologia greco-latina do motivo da donzela em apuros, em que uma jovem bela e inocente, que está em perigo à mercê de um monstro ou vilão, acaba sendo resgatada por um herói masculino, com quem ela se casa. O aspecto de vítima passiva de 134

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Andrômeda também parece ter sido bem marcado na tragédia de Eurípides, de modo semelhante ao que acontece com a personagem Helena no início do drama que leva seu nome. Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. The Library, Volume I: Books 1–3.9. Text and translation by James G. Frazer. Loeb Classical Library 121. Cambridge: Harvard University Press. CALDERÓN DE LA BARCA, P. 1991. Fortunas de Andrómeda y Perseo. In: CALDERÓN DE LA BARCA, P. Obras completas (vol. I). Madrid: Aguilar. CORNEILLE, P. 1984. Andromède. In: CORNEILLE, P. Œuvres complètes (Tome II). Paris: Gallimard. EURÍPIDES. 2016. Ifigênia em Táuris. In: EURÍPIDES. Teatro completo (vol. 2). São Paulo: Iluminuras. GIBERT, J. 2004. Andromeda. In: COLLARD, C.; CROOP, M. J.; GIBERT, J. Selected Fragmentary Plays (volume II). Oxford: Aris & Phillips, p. 133–168. HERÓDOTO. 1985. História. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Universidade de Brasília. HYGIN. 1983. L’Astronomie. Texte établi et traduit par André Le Boeffle. Paris: Les Belles Lettres. HYGIN. 1997. Fables. Texte établi et traduit par Jean-Yves Boriaud. Paris: Les Belles Lettres. KLIMEK-WINTER, R. 1993. Andromedatragödien: Sophokles, Euripides, Livius Andronikos, Ennius, Accius (Text, Einleitung und Kommentar). Stuttgart: Teubner. OVÍDIO. 2017. Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34. PSEUDO-ERATOSTHENES. 1897. Pseudo-Eratostheni Catasterismi. Recensuit Alexander Olivieri. Leipzig: Teubner. 135

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Bibliografia geral CREPALDI, C. L. 2015. Helena de Eurípides: estudo e tradução. São Paulo: FFLCH/USP. TAPLIN, O. 2007. Pots and Plays: Interactions between Tragedy and Greek Vase-Painting of the Fourth Century B.C. Los Angeles: The J. Paul Getty Museum.

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Γαλάτεια › Galateia (Mulher de Pigmalião)

por Leni Ribeiro Leite & Ariane Ribeiro Santana

Galateia (Γɑλάθειɑ [Galátheia]), «alva como o leite», só se tornou o nome da companheira de Pigmalião muito recentemente no desenvolvimento mitológico desta personagem. Antes disso, o nome comparece relacionado a outras figuras, mas foi sem dúvida a alvura do marfim, material que Pigmalião, rei de Chipre, teria escolhido para a realização da estátua de uma bela mulher, a responsável pela escolha da designação por parte de Jean-Jacques Rousseau, que em 1763 batizou-a assim em sua scéne lyrique Pygmalion, encenada em 1770 (Hardie 2010, 794). O mito de Pigmalião porém comparece em várias obras da Antiguidade, com algumas variações. A versão antiga mais completa que chegou a nós é a de Ovídio (Metamorfoses, X. 243–297), o que leva Hardie (2010, 793) a afirmar que a história é basicamente uma invenção do autor romano, baseada em um mito anterior de um rei cipriota que se apaixonara por uma estátua de Afrodite. De fato, as demais versões da Antiguidade que nos chegaram são muito mais simples, como as reportadas por Arnóbio (Adversus Nationes VI. 22) e por Clemente de Alexandria (Protréptikos pros Hellénas, IV), ambos por sua vez citando Filostéfano de Cirene, que dizem apenas que Pigmalião, rei do Chipre, teria se apaixonado por uma estátua de Afrodite como se esta fosse uma mulher. Ambos autores, porém, sendo eles cristãos e envolvidos com as polêmicas da idolatria, arrolam Pigmalião apenas como mais um dentre vários exemplos de adoradores de estátuas. Mas, na versão ovidiana, o rei torna-se, ele mesmo, o escultor, e assim a relação entre o autor e a obra se intensificam.

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É esta relação que Ovídio explora no longo episódio, que toma quase cinquenta versos do décimo livro das Metamorfoses. A razão para tão estranho amor é oferecida já nos primeiros versos: Pigmalião havia se afastado completamente da convivência com mulheres, «Porque as havia visto levar a vida entregues ao crime,/ ofendido pelos vícios que a natureza deu em abundância/ à alma feminina.» (Ovídio, Metamorfoses, X. 243–245). Pigmalião então esculpe, de níveo marfim (niveum ebur), sua mulher perfeita —uma mulher com uma beleza com a qual nenhuma mulher poderia nascer (formam... qua femina nasci nulla potest). E, claro, enamora-se dela (operisque sui concepit amorem, Ovídio, Metamorfoses, X. 248–250). Passa a tratá-la por esposa, oferecendo-lhe presentes, beijando-a, deitando-a em sua cama (Ovídio, Metamorfoses, X.260–269), até que, no dia das festividades de Vênus, ele pede à deusa uma esposa como a de marfim, e a deusa transforma sua estátua em uma mulher (Ovídio, Metamorfoses, X. 270–280). O poeta diz ainda que a deusa organizou depois a boda e que, nove meses depois, a esposa teria dado à luz Pafo, de quem a cidade de Pafos teria ganhado o nome (Ovídio, Metamorfoses, X. 295–7). Em todas as fontes antigas, Pigmalião é sempre referido como sendo rei de Chipre, onde de fato o culto à deusa Afrodite era bastante popular na Antiguidade, e em especial a cidade de Pafos é vinculada mitologicamente a Afrodite sob várias formas, sendo considerada por vezes o primeiro local em que ela teria chegado após seu nascimento, e certamente foi um dos mais importantes centros de seu culto no mundo antigo. No entanto, ainda que a ilha de Chipre e a cidade de Pafos sejam sempre os locais de relação com o mito de Pigmalião e Galateia, a forma por que se dá esta vinculação varia: Pseudo-Apolodoro, por exemplo, afirma que Ciniras teria fundado Pafos antes de se casar com Metarme, 138

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filha de Pigmalião (Pseudo-Apolodoro, Biblioteca, III. 14). Estes teriam sido, por sua vez, os pais de Adônis, o que indica que estas personagens habitariam a longínqua Idade dos Heróis hesiódica. Em nenhum momento, porém, as fontes históricas nomeiam a personagem feminina, ou mesmo focam em seu ponto de vista. Mesmo na narrativa ovidiana, a jovem só tem descritas como ações suas três verbos: sentir (os beijos [sensit]), corar (erubuit) e erguer (os olhos [vidit]). De resto, tudo se centra em Pigmalião, seu desejo, sua vontade, sua obra. A primazia é do homem e do artista. Foi deixado à modernidade, como diz Hardie (2010, 793), explorar a psicologia da estátua, da obra, do feminino, e parece significativo que seu próprio batismo só se tenha realizado tantos séculos depois. Antes mesmo de ser nomeada, porém, a imagem da estátua que ganha vida, ou da obra de arte que ilude pelo seu extremo realismo, entra em cena (de forma bastante literal) já às portas da modernidade, na famosa passagem final de The Winter’s Tale (1611), de Shakespeare. Como Martindale e Martindale (1990, 77–82) apontam, a cena final, em que há uma galeria de estátuas, não parece pertencer ao principal modelo usado para a peça, mas ser uma adição ovidiana de Shakespeare, baseada exatamente no episódio de Pigmalião. Após convencer Leontes de que o que ele vê é uma estátua de Hermíone, a própria se move do pedestal em direção a seus braços, numa versão invertida de uma Galateia ainda não-nomeada —a mulher que virou estátua que virou mulher—, que explora várias camadas de sentido e de interrelação entre os conceitos de arte, verossimilhança, real e ilusão. Abriram-se então as portas para a extensa tradição de pinturas e esculturas representando o mito, extensa demais para ser aqui listada, mas da qual podemos citar como exemplo a série de quadros e esculturas de Jean-Léon Gérôme 139

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(1824–1904), em que o objetivo parece ser criar justamente a obra mais próxima do real possível, como em grande parte de sua obra. O mito de Pigmalião e Galateia tornou-se um favorito —principalmente porque as discussões que estão em sua base foram de grande interesse a partir do século XVII. O já mencionado melodrama de Jean-Jacques Rousseau Pygmalion, considerado o primeiro da história ocidental e apresentado no Hôtel de Ville em Lyon enquanto Rousseau ainda estava vivo, foi o que batizou a jovem Galateia, mas seu tema era a dramatização da intensa identificação do artista com sua obra, intensa quase ao ponto da obsessão, esta também uma discussão viva. Já os séculos XIX e XX buscaram em Galateia observar a subjetividade da estátua, e não mais do artista, além da possibilidade de levantar questionamentos sobre a educação e a possibilidade —e a moralidade!— de moldar o outro para uma sociedade ou uma situação. O mito tornou-se tão popular em representações nas artes plásticas e no palco que deu origem a farsas e comédias extremamente bem sucedidas em todo o mundo, como Pygmalion and Galatea de W.S.Gilbert, de 1871. Mas provavelmente uma das mais conhecidas de todas é a peça de Bernard Shaw, Pygmalion, em que uma pobre vendedora de flores é objeto de uma aposta entre dois homens, quando um deles promete ser capaz de transformá-la, na fala e nos modos, em uma dama. A peça, que ganhou versões para o palco em mais de uma dúzia de outros idiomas, é também a origem de uma das representações contemporâneas mais conhecidas de Pigmalião e, consequentemente, de Galateia, em outro meio, o musical My Fair Lady (1956), transformado posteriormente no filme de mesmo nome (1964). O musical conta a história de Eliza Doolittle, uma jovem que almeja ser uma lady apesar de seu sotaque cockney proveniente do East End de Londres. Eliza conhece Henry Higgins, um foneticista que se interessa pelo sotaque da moça e se dispõe a ensiná-la a falar como uma 140

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lady. Ao longo das lições, Eliza começa a desenvolver sentimentos pelo professor, mas Higgins a descarta após decidir que seu experimento havia sido um sucesso e que Eliza finalmente poderia ser considerada da alta sociedade através de sua fala. No entanto, após a partida da jovem, Higgins reflete sobre Eliza e percebe que havia se apaixonado por ela. Assim como Pigmalião, Higgins moldou Eliza Doolittle como queria, e se apaixonou pelo que construiu; no entanto, diferente de Pigmalião, Higgins percebe que gostava de Eliza mesmo com o sotaque cockney e o jeito brusco. A peça de Shaw e suas sucessivas releituras são, de forma geral, um comentário muito mais simpático à estátua, e uma reflexão muito mais preocupada com a subjetividade da personagem feminina, subalternizada em um mundo que não a aceita como ela é. É interessante também observar como a simpatia das plateias à personagem Eliza fez com que algumas montagens da história tentassem mudar o desfecho da história, dando a Eliza um final feliz tradicional, para desgosto de seu autor (Shaw 1920). O século XXI parece mostrar que ainda não esgotamos nosso olhar sobre Galateia. No filme Ruby Sparks: a namorada perfeita (2012), vemos Calvin Weir-Fields, um autor frustrado que, ao dormir, sonha com a garota perfeita, Ruby Sparks. Após Calvin escrever sobre a garota, Ruby toma vida, mas é sempre guiada pelo que Calvin escreve, até que o autor promete ao irmão que não vai mais escrever sobre ela. No entanto, conforme Ruby vai demonstrando desejos de ser independente de Calvin, o autor volta a escrever sobre ela, adicionando elementos que tornam Ruby incapaz de viver sem ele e consequentemente tornando-a extremamente dependente. Calvin continua fazendo mais e mais mudanças, e ao tentar consertar os aparentes erros de Ruby, acaba por deixá-la cada vez mais confusa, culminando com a jovem tendo um colapso. 141

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A própria roteirista Zoe Kazan confirmou em entrevistas que o mito de Pigmalião foi ponto de partida para o filme, mas temos nesta obra uma Galateia escrita por uma mulher, e um artista que se mostra inseguro de si mesmo e inábil para de fato fazer a obra acabada e perfeita, em uma reflexão muito diversa de outras, em que a capacidade artística de Pigmalião nunca é posta em cheque. Fontes históricas APOLLODORUS. 1921.The Library. Translated by Sir James George Frazer. London/New York: William Heinemann; G.P.Putnam’s Sons. ARNOBIUS.1846. Adversus Nationes Libri Septem. Lipsiae: Bernhard Tauchnitz. CLEMENT OF ALEXANDRIA.1968. The Exhortation to the Greeks. Cambridge, Massachussets: HUP. OVÍDIO. 2017. Metamorfoses. Tradução, introdução e notas de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34. RUBY SPARKS: a namorada perfeita. 2012. Direção de Jonathan Dayton Valerie Faris. EUA: Bona Fide Productions (104 min.). Bibliografia geral GRIMAL, P. 1993. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Trad. Victor Jabouille. São Paulo: Bertrand Brasil. HARDIE, P. 2010. Pygmalion. In: GRAFTON, A. et al. (Ed.). The Classical Tradition. Cambridge, Massachussets/London, England: HUP, p. 793–794. MARTINDALE, C.; MARTINDALE, M. 1990. Shakespeare and the Uses of Antiquity: An Introductory Essay. New York: Routledge. 142

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MCHUGH, Dominic. 2012. Loverly: The Life and Times of «My Fair Lady». Oxford: OUP. SHAW, B. 1920. The point of view of a playwright. In: BEERBOHM, M. Herbert Beernohm Tree: some memories of him and of his art. New York: E. P. Dutton.

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Ἀράχνη › Aracne

por Iván Pérez Miranda

Aracne (Ἀράχνη [Aráchnē], Aranha) é uma personagem mitológica que rivalizou com a deusa Atena na arte de tecer em uma história conhecida, fundamentalmente, pela obra de Ovídio (Metamorfoses, VI. 5–145), sendo, portanto, uma personagem de origem tardia na mitologia greco-romana. É apresentada como filha de Idmón, mas não o célebre adivinho argonauta, e sim um humilde tintureiro de Colofon. Aracne gozava de uma grande celebridade por sua habilidade com a lã, chegando a despertar, inclusive, a admiração das ninfas. Sua fama a faz pecar de hybris, de um orgulho desmedido, que a levaria a gabar-se de ser a melhor tecelã, inclusive melhor que a deusa Atena. Essa lhe daria uma oportunidade para redimir-se da queixa. Adotando a aparência de uma mulher idosa, Atena lhe adverte para que tenha cuidado em não ofender os deuses, mas, longe de aceitar o conselho, Aracne o burla, desejando poder celebrar um concurso com a finalidade de averiguar quem das duas, ela ou a deusa, seria capaz de tecer um tapete melhor. A anciã revela, então, sua verdadeira identidade, manifestando-se em todo seu esplendor e aceitando o desafio. Neste concurso, Atena tece a cena de sua vitória sobre seu tio, o deus Poseidon, em sua luta pelo patrocínio de Atenas, e acrescenta também outros concursos nos quais os mortais foram castigados por rivalizar com os deuses; o aviso estava claro. Mas Aracne, por outro lado, escolheu tecer episódios de infidelidades dos deuses disfarçados de animais.

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Atena reconhece a perfeição da obra de sua rival, mas a irreverente escolha do tema representado constitui uma afronta que enfurece a deusa que, conduzida pela ira, destrói o tapete e o tear com sua lança. Arrependida, Aracne tenta se enforcar, mas Atena intervém, a transformando em uma aranha que terá que se pendurar sempre em sua própria teia, condenando também seus descendentes. Este mito explicaría porque a deusa se aboreceria com as aranhas, como mostra Virgílio (Geórgicas, IV. 246–247). Plínio o Velho (Historia Natural, VII. 57), inclue Aracne entre os personagens inventores, apontando que ela concebeu o fio e as redes e acrescentando também a informação sobre sua descendência ao dizer que Clóster, filho de Aracne, foi o inventor do fuso na arte de trabalhar com a lã. Existe também outra versão do mito mencionada pelo desconhecido Teófilo Zenoteo (e trazida no Escolio de Nicandro, Thēriaka 12a) (Ibañez Chacón 2004, 130) na qual Atena transforma Aracne igualmente em aranha, mas por um motivo diferente. Esta Aracne havia vivido na Ática e teria sido a própria deusa que lhe ensinou a arte de tecer, enquanto que seu irmão, Falange (Φάλαγξ [Tarántula]), lhe teria instruído na arte da guerra. Nesta versão, a ofensa cometida não seria o orgulho que a faz rivalizar com os deuses, mas sim o fato de os irmãos terem cometido incesto, algo mais próprio das bestas do que dos humanos, o que provocou a ira da deusa. O castigo seria a transformação em aracnídeos que são devorados pelos seus próprios filhos (Frontisi-Ducroix 2006, 52). Se a versão da Aracne lídia coloca o mito em relação com outros episódios nos quais mortais rivalizam com os deuses (como o caso de Marsias e Apolo, a respeito da habilidade musical, ou o de Níobe e Hera, a respeito da fecundidade), a versão menos conhecida da Aracne ateniense está relacionada com os mitos nos quais o incesto está unido à alelofagia (como 146

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nos casos de Tiestes ou Harpálice). Em ambos, a deusa castiga a mortal que não soube ocupar seu lugar, a meio camino entre os deuses e as bestas selvagens (Pérez Miranda 2018). Ainda que pese o fato do mito de Aracne ser tardio e não ter tido grande incidência no mundo clássico, ainda assim, ele se perdurou no tempo, fazendo parte do imaginário coletivo e nos permitindo refletir sobre os vínculos entre o mundo material e o divino, sobre o valor das artes e das histórias, como as representadas nas tapeçarias do concurso, ou sobre a difícil relação dos artistas com o poder. Aracne serviu de inspiração a artistas de todas as épocas. Desse modo, por estar representado em obras de grande importância, o tema foi magistralmente trazido no afresco da Sala dos Meses do Palácio Schifanoia, em Ferrara, realizado por Francesco del Cossa em Alegoria de março: Triunfo de Minerva (1476); Paolo Veronese utilizou o mito para sua Aracne ou a Dialética (c. 1520) no Palácio Ducal de Veneza e, pouco depois, Tintoretto pintou sua Atena y Aracne (1523) para o Palácio Pitti de Florença. Também o grande mestre Rubens apresentou o mito em Minerva pegando Aracne (1636), obra realizada para a Torre da Parada, incendiada durante a Guerra de Secessão Espanhola. Por sorte se conserva o esboço realizado a óleo pelo próprio Rubens. Essa obra de Rubens mostra de fundo uma reprodução de O rapto de Europa, de Ticiano (1562) e, por sua vez, Minerva pegando Aracne aparece no fundo da qual talvez seja a obra mais influente de todas, A Fábula de Aracne (c. 1657), quadro de Velázquez, popularmente conhecido como As fiandeiras (Sanmartín 2003). Velázquez, ao apresentar a representação da representação de um mito, estabelece um diálogo com seus predecessores e com os mitos, que adquirem novo sentido. 147

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O mito de Aracne serviu de inspiração para escritores de diferentes épocas. Dante a incluiu em seu Purgatório (1316), Bocaccio entre suas mulheres ilustres (Acerca das mulheres ilustres, 17, 1362) e Cristina de Pisano a mencionou na primeira parte de Cidade das Mulheres (1405), assinalando que, além da arte de tecer a lã, fabricar tapetes e cultivar e tecer (Cidade das Mulheres, 1, XXXIX), Aracne seria responsável de outras invenções feitas com fios e nós, como as redes de pesca ou de laços e as armadilhas para caçar. Edmund Spenser imaginou um Aragnoll, descendente de Aracne, que enfrenta o heroi mariposa Clarion em Muiopotmos ou O destino da mariposa (1591) ou, ainda, já no século XIX, Jeremias Gotthelf (pseudônimo de Albert Bitzius) partiu do mito para sua obra A aranha negra (1842), que seria precursora da literatura de ficção bizarra (weird fiction) do século XX, representada por autores como Lord Dunsany e H. P. Lovecraft. A história de Aracne, a mulher transformada em aranha, é uma história sugestiva e que, nos últimos tempos, tem tido um considerável impacto na cultura popular, através da revisão sinistra do mito na literatura fantástica (Alonso Valero 2010), desde a Ella-Laraña de Tolkien (O Senhor dos Anéis, 1954) às acromândulas de J. K. Rowling (Harry Potter, 1997) ou a atualização do mito de Rick Riordan (Percy Jackson, 2005) e, inclusive, nas revistas em quadrinhos de super heróis, na forma dos personagens como a Spiderwoman, a mulher aranha. O cantor de rap Eminem fez referência ao mito em sua canção Rap God (2013), mostrando uma gravura de Aracne feita por Doré para A Divina Comédia de Dante, imagem que já havia sido utilizada como capa do disco Live (2003) do grupo The Mars. Volta, assim, como pano de fundo de suas atuações. 148

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Como a tecelã cuja alma estava encerrada no Purgatório, Eminem ousou comparar-se orgulhosamente aos deuses (no caso do rap) com uma canção cheia de referências que entrou no livro Guinness World Records por seu elevado número de palavras. O mito de Aracne tem pouca presença no mundo antigo, mas tem uma grande influência no mundo das artes ao contar precisamente uma história sobre as artes, sobre a criação e a imitação; é o mito da discípula que tenta superar sua mestra, uma tecelã de histórias que enfrenta ao poder, chegando a rivalizar com os próprios deuses. Seria finalmente a ciência que faria que Aracne ocupasse um lugar nos céus ao nomear um asteroide do cinturão de asteróides, (407) Arachne, não muito longe daquele outro asteroide nomeado em honra à sua rival, (93) Minerva. Tradução do castelhano para o português: Semíramis Corsi Silva

Fontes históricas OVIDIO. 2012. Metamorfosis II. Libros VI–X. Madrid: Editorial Gredos. VIRGILIO. 1990. Bucólicas. Geórgicas. Apéndice virgiliano. Madrid: Editorial Gredos. PLINIO EL VIEJO. 2003. Historia Natural III. Libros VII–XI. Madrid: Editorial Gredos. Bibliografia geral ALONSO VALERO, E. 2010. Ungoliant, Ella-Laraña y la Acromántula: una revisión del mito de Aracné desde lo siniestro, Amaltea. Revista de Mitocrítica, vol. 2, p. 1–18. 149

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FRONTISI-DUCROIX, F. 2006. El hombre-ciervo y la mujer-araña. Figuras griegas de las metamorfosis. Madrid: Abada. IBAÑEZ CHACÓN, Á. 2004. La tela de Aracne: sobre un expemplum myyholoicum en la Manzana de la Discordia y Robo de Helena de Antonio Mira de Amescua y Guillén de Castro, Hesperia: Anuario de Filología Hispánica, n. 7, p. 127–141. PÉREZ MIRANDA, I. 2018. Padres terribles: engaño, incesto y antropofagia en la mitología griega. En: RUBIERA CANCELAS, C. (Ed.). Las edades vulnerables. Infancia y vejez en la Antigüedad. Gijón: Trea, p. 43–59. SANMARTÍN, R. 2003. Velázquez y Aracne, el mito y la época, Éndoxa: Series Filosóficas, n. 17, p. 183–206.

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Γερọφσο › Geropso

por Carolina Kesser Barcellos Dias

Cabelos brancos, rosto enrugado, apenas um dente na boca semi-aberta, olhar cansado, corpo encurvado, muitas marcas na pele. Posicionada atrás de uma figura masculina jovem e esbelta, a idosa figura feminina identificada pela inscrição Γερο̣φσο {Geropso} carrega com a mão esquerda um instrumento musical, e se apoia com a mão direita em um bastão tão torto quanto sua coluna. A figura masculina jovem, de cabelos curtos e encaracolados, coberto por um longo himation, e que segura na mão direita uma longa lança de cabo fino é nomeada hερακ[λες] {Héracles}. A dupla é retratada no skyphos ático de figuras vermelhas (inv. 708), datado entre 475 e 450 aEC, conservado atualmente no Staatliches Museum de Schwerin, Alemanha (Fig. 1). Na outra face do vaso, convencionalmente chamada de «face A», pois entendida como a que porta a cena «principal», são retratadas duas figuras masculinas: à esquerda, sentado em uma cadeira, um homem barbado e de cabelos brancos tocando uma lira; sobre sua cabeça, o nome inscrito: Λι(ν)ος {Linos}. Sentado em um banco de frente para ele, um jovem imberbe de torso nu segura sua lira e o observa atentamente; a inscrição que descende da altura de sua testa o identifica como Ιφικλε[ς] {Íficles}. Entre as duas figuras, uma cítara. Repleto de inscrições (AVI Immerwahr 7466), este skyphos de 15 cm de altura (CVA SCHWERIN I 1972, 19–20, prs. 24–28) traz ainda a identificação de seu produtor com a fórmula/ assinatura Πιστ̣οχσενος | εποιεσεν {Pistóxenos epoiesen} (Beazley. ABV. 862.30). São diversas as informações que este pequeno skyphos carrega: material e tecnicamente, trata-se de

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um objeto feito com um tipo de barro rico em ferro, bastante vermelho, cuja forma é moldada com o auxílio de um torno. Sua pintura, feita com o mesmo barro diluído e usado como tinta, sofrerá alterações químicas após a queima feita em altas temperaturas, o que resultará em uma coloração negra muito brilhante, sobre um fundo muito avermelhado. Essas informações puramente técnicas, contudo, classificam, nomeiam, localizam geograficamente e contextualizam este objeto na importante produção de vasos áticos de figuras vermelhas que conformam uma categoria essencial de documentação sobre a antiguidade da Grécia. A assinatura, ainda, posiciona este recipiente no conjunto de vasos de uma produção identificável e que, portanto, firma uma cronologia mais segura Skyphos é o nome da forma para o consumo de líquidos; é basicamente uma tigela funda, com pé baixo (ou nenhum) e duas alças. Os skyphoi áticos, bastante populares até meados do século IV aEC., têm as cenas pintadas no espaço delimitado pelas alças, possibilitando duas faces decoradas com cenas que podem, ou não, ser complementares. No skyphos de Schwerin, as cenas comuns e cotidianas representadas podem ser entendidas como dois momentos do universo educacional de jovens meninos atenienses mas, devido a nomeação das personagens masculinas, essas cenas são vinculadas também ao plano mitológico (Cerqueira 2019, 139). Na documentação escrita, as três personagens masculinas aparecem juntas durante uma trágica situação contada por Teócrito, em poema do século III aEC: diferente de Íficles, um aluno dedicado e dócil, seu irmão gêmeo, Héracles, foi um aluno muito indisciplinado. Linos, o professor de música, em determinado momento, procura castigar Héracles por sua insubordinação mas, furioso com o professor, o jovem herói o mata (Teócrito. Idílios, XXIV). Linos, Íficles e Héracles têm suas histórias de vida —e morte— narradas por diversos autores 152

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de diferentes gêneros literários, por uma extensa cronologia e, na cerâmica grega, o momento em que Héracles ataca Linos é representado em, ao menos, seis vasos de figuras vermelhas, datados do século V aEC. Contudo, o skyphos de Schwerin traz uma personagem que não está registrada em nenhuma outra documentação, escrita ou material: a figura feminina que acompanha o herói mais conhecido da mitologia grega e que concentra em si informações sobre idade, gênero e etnia. Na iconografia vascular, o esquema cênico da «face B» é bastante comum: duas ou três figuras masculinas, vestidas e estáticas como Héracles, são representadas em um grande número de vasos de figuras vermelhas e consideradas como «de preenchimento» pois, normalmente, não estão associadas ao tema da outra face e não são individualmente identificadas. Aqui, a presença de Geropso não apenas altera essa regra iconográfica de gênero nas figuras de preenchimento, como também da função que ela assume no esquema cênico, a de paidagogos (Plutarco. Vidas Paralelas, Lic., 16–4), um escravo da família, sempre do sexo masculino, que cumpre o papel de preceptor e acompanhante dos filhos de abastados cidadãos atenienses durante sua fase de formação (Cerqueira 2019). Geropso aparece como a acompanhante de Héracles no trajeto para a aula de música e seu status de escrava fica compreendido pela sua função em cena, mas outros indícios em sua figuração reforçam sua situação social e de origem. Os traços escuros e irregulares que aparecem em seus braços, pescoço e pés são tatuagens (Fig. 2) que marcam na pele sua identidade estrangeira, pois na iconografia ática, tatuagens são colocadas sobre os corpos das outras, aquelas a quem gregos dos séculos V e IV aEC. chamavam barbarai. Neste caso, essa estrangeira é muito provavelmente um espólio de guerra, portanto, uma escrava (Rosivach 1999). 153

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Os trácios, povo do Helesponto (Homero. Iliada, II. 845), vizinhos de gregos e macedônios (Estrabão. Geografia, 6. 4; Pausânias. Descrição da Grécia, 1. 9), eram considerados exóticos, selvagens e iletrados pelos atenienses (Heródoto. História, 5.3–16; Tucídides. História da Guerra do Peloponeso, 2.97), e sua representação na cerâmica é abundante desde o século VI aEC. Mas, diferente da iconografia de homens trácios, representados como guerreiros ou cavaleiros e caracterizados por roupas e armamentos, também descritos por Heródoto (História, 7. 75), as mulheres trácias são identificadas pelas marcas no corpo, não necessariamente portando roupas diferentes de outras figuras femininas. Heródoto (História, 5. 6) diz que as tatuagens são um traço de beleza e de nobreza para os trácios, embora sejam percebidas pelos gregos como um sinal de incivilidade. Nas imagens, essas marcas sempre acompanharão as mulheres cuja origem estrangeira queira ser atestada. A arte grega é caracterizada pelo apreço ao corpo jovem e belo e é possível observar certo etarismo na iconografia vascular, pois as imagens de idosos e idosas podem ser caricaturais (Gorzelany 2014), como ocorre em quatro vasos de figuras vermelhas em que Héracles divide a cena com Γερας {Geras}, a personificação da velhice. Geras é representado como um homem bastante magro, pequeno, encolhido e enrugado, de barba e cabelos ralos e brancos; na pelike G234 do Museu do Louvre, Paris (Beazley. ABV. 286. 16), ele aparece segurando uma espécie de bengala para apoiar-se. Assim como em Geras, os traços do envelhecimento de Geropso são muito contundentes: seus cabelos brancos e finos são curtos —mais uma marca iconográfica para seu status de escrava— sua pele é enrugada, e seu corpo é frágil. A inscrição de seu nome, cuja raíz é a mesma da personificação da velhice, a individualiza, tirando do anonimato a existência das mulheres trácias 154

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escravizadas. Ainda, sua presença na decoração do skyphos demonstra que a linguagem visual é fundamental para a construção de narrativas diversas da cosmogonia e da vida cotidiana da antiguidade, servindo não como ilustração, nem complemento da documentação escrita, mas como uma tradição independente, testemunho de diversas componentes identitárias de uma sociedade, assim como de suas alteridades.

Fig. 1: «Face B» do skyphos de figuras vermelhas, atribuído ao Pintor de Pistóxenos. Procedência: Cerveteri (Caere), Etrúria, Itália. Schwerin, Staatliches Museum, inv. 708.

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Fig. 2: Detalhamento da figura feminina, Geropso (inscrição), com destaque para as marcas em seus braços, pés e pescoço (tatuagens).

Desenhos digitais vetorizados por Bruno Menegatti a partir de fotografias, e corrigidos com informações sobre dimensões.

Fontes históricas HERÓDOTO. 2001. História. Estudo crítico por Victor Azevedo; tradução de J. Brito Broca. São Paulo: Ediouro. HOMERO. 2013. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics Cia das Letras. PAUSANIAS. 1918. Description of Greece. Translated by W. H. S. Jones, Litt.D., and HA. Ormerod, M.A. 4 Vol. Cambridge, MA/ London: William Heinemann Ltd./ Harvard University Press. 156

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PLUTARCH. Plutarch’s Lives. 1914. Translated by Bernadotte Perrin. Cambridge, MA/London: William Heinemann Ltd./ Harvard University Press. Strabo. 1924. The Geography of Strabo. Edited by H. L. Jones. Cambridge, MA/London: William Heinemann Ltd./ Harvard University Press. THEOCRITUS. 2015. Idylls. J. M. Edmonds (trad.). In: THEOCRITUS. Moschus. Bion. Edited by Neil Hopkinson. Cambridge, MA/London: William Heinemann Ltd./ Harvard University Press. Loeb Classical Library 28. TUCÍDIDES. 1986. História da Guerra do Peloponeso. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Bibliografia geral BEAZLEY, J. D. 1963. Attic red-figure vase-painters. Oxford: Clarendon Press, 3v. CERQUEIRA, F. V. C. 2019. O vaso na aula. A aula no vaso. In: DIAS, C. K. B.; OGAWA, M. R. A.; SANTOS, D. F. A Universidade vai à Escola: uma experiência de professores universitários no Curso Popular UP. [ Recurso eletrônico ]. Porto Alegre: Casaletras, p. 122–142. GORZELANY, D. 2014. An unwelcome aspect of life: the depiction of Old Age. In: Greek Vase Painting. Symbolae Philologorum Posnaniensium Graecae et Latinae. vol. 24(2), p. 153–177. IMMERWAHR, H. R. AVI 7466. Disponível em: https:// www.avi.unibas.ch/DB/searchform.html?ID=7727/ ROSIVACH, V. J. 1999. Enslaving «Barbaroi» and the Athenian Ideology of Slavery, Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte. Bd. 48, H. 2, p. 129–157. 157

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VON LÜCKEN, G. 1972. Corpus Vasorum Antiquorum. Deutshce Demokratische Republik BAND 1. Schwerin, Staatliches Museum 1, 19–20, PLS.(24, 25, 26, 27, 28) 24.1–2, 25.1, 26.1, 27.1–2, 28. 1–4.

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Ἀλκμήνη › Alcmena

por Ivan Vieira Neto, Jaqueline da Silva & Ana Lina Rodrigues de Carvalho

Ἀλκμήνη [Alcmḗnē] descendia do herói Perseu por parte paterna, pois era filha de Eléctrion, soberano de Tirinto e Micenas, e de sua bela esposa, que segundo as fontes seria Lisídice (Hesíodo. Catálogo das Mulheres, fr. 136 & Plutarco. Vida de Teseu, VII. 1) ou Eurídice (Diodoro. Biblioteca Histórica, IV. 9), ambas filhas de Pélope, ou Anaxo (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, II. 4, 5), sobrinha de Eléctrion, conforme esta versão, filha de Alceu e Astidâmia. Consoante o mito, Περσεύς [Perseús] e Ἀνδρομέδα [Androméda] geraram muitos filhos, entre os quais Eléctrion e Alceu. Quando os filhos do rei Ptérela de Tafos, bisnetos de Mestor, irmão de Alceu e Eléctrion, foram à corte micênica exigir a divisão do reino, o Alcíada Anfitríon se colocou a serviço do tio Eléctrion, recebendo como recompensa por seu apoio a promessa de casamento com Alcmena, cuja venustidade em muito ultrapassava a beleza de qualquer mortal (Hesíodo. Escudo de Héracles). Mas enquanto resgatava o gado roubado pelos descendentes do rei Mestor, Anfitríon acidentalmente matou Eléctrion. Estênelo, outro dos filhos de Perseu, reinava em Argos e julgou o crime cometido pelo sobrinho Anfitríon, ordenando que ele fosse banido de Micenas. Após desposar Alcmena, os dois dirigiram-se para Tebas das Sete Portas, onde o miasma do assassinato foi purificado pelo rei Creonte. A noiva impôs ao marido uma condição antes de entregar-se a ele: ela só se deitaria com ele depois que ele vingasse a morte de seus irmãos na guerra contra os filhos do rei Ptérela. Então, Anfitríon reuniu seus homens e angariou o apoio dos tebanos, assim como reforços vindos de todas as partes da

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Hélade, para avançar contra os filhos de Ptérela em Tafos. Anfitríon precisou recorrer à sedução da princesa Cometo, para que esta arrancasse o fio de cabelo dourado que Posídon implantara na cabeça do rei Ptérela, causando assim a sua morte e a queda de Tafos (Brandão 2014, 52b). Dentre as peças do espólio recebido, Anfitríon escolheu como signo de seu amor por Alcmena a taça do rei Ptérela, levando-o consigo de volta a Tebas. Entretanto, Zeus desejava gerar um filho da linha sanguínea de Perseu, para que este crescesse e se tornasse rei da Argólida. Escolheu, para tanto, a belíssima Alcmena, recorrendo a um estratagema capaz de ludibriar sua fidelidade conjugal (Hesíodo. Escudo de Héracles). Travestindo-se no próprio Anfitríon, o Cronida adiantou-se à chegada do verdadeiro esposo de Alcmena. Ordenou a Apolo que detivesse a carruagem do Sol, e Hélios não subiu à abóbada celeste por três dias. E a Hermes, solicitou que detivesse o regresso do real Anfitríon (Cf. Plauto. Anfitrião). Destarte, uma «longa noite» marcou as núpcias de Zeus e Alcmena. Quando Anfitríon finalmente chegou a Tebas, verificou que Alcmena conhecia todos os detalhes das batalhas travadas contra Ptérela e tinha consigo a taça trazida no botim de Anfitríon. Além de pormenores bélicos, Alcmena descreveu ao marido a longa noite que passaram juntos, causando suspeitas de infidelidade. Anfitríon mandou chamar o adivinho Tirésias, que explicou aos esposos o estratagema de Zeus. Enfurecendo-se, Anfitríon pretendeu queimar viva a esposa que lhe fora desleal, mas por três vezes o númen olímpico interveio, fazendo descer um torvelinho cada vez que o abatido Anfitríon tentava acender a pira. Marido e esposa então se reconciliaram e desfrutaram, finalmente, as suas núpcias amorosas. De Zeus, Alcmena concebeu Ἀλκείδης [Alkeídēs], enquanto de Anfitríon gerou Ἰφικλῆς [Iphiklês]. Consoante Junito de Souza 160

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Brandão, «a primeira noite de núpcias compete ao deus, e é por isso que o primogênito nunca pertence aos pais, mas ao seu Godfather» (Brandão 2015, 96). Portanto, Alcides é uma criatura imortal, enquanto a Íficles, seu gêmeo, foi negada a imortalidade reservada ao irmão. Nesta altura, interessante notar as similaridades e paralelos entre os mitos de Alcmena e Leda. Conforme a cronologia estabelecida pelos mitógrafos da Antiguidade, os mitologemas dos heróis Perseu, Héracles e Teseu antecederam a Guerra de Troia. Pouco antes de eclodir o conflito entre aqueus e dardânios, Leda deu à luz os gêmeos Cástor e Polideuces, o primeiro filho do rei Tíndaro, portanto, mortal, e o segundo filho de Zeus, o que lhe assegurava a imortalidade (Cf. Leda: Guerra 2021, 203-204). Cástor e Polideuces se tornaram famosos no mito de Helena, contraparte feminina de Polideuces (Clitemnestra o sendo de Cástor) a quem os irmãos constantemente resgatavam de sequestradores aventureiros, inclusive Teseu. Os dois eram cultuados em Esparta, na Hélade e em Roma como os Dióscuros, «filhos de Zeus», apesar de somente Polideuces sê-lo. Alcmena também prefigura o atributo distintivo da famosa filha de Leda, Helena (Cf. Helena: Vieira Neto 2021, 572). Em beleza e estatura, Alcmena «superava a raça das mulheres» e quanto à sabedoria, «ninguém competia com ela, entre aqueles nascidos das uniões entre mulheres e homens mortais». Diferentemente de Helena, o poeta nos informa que a beleza [εἶδος] e a sapiência [νόος] de Alcmena são benéficas e conduzem-na, por fim, à virtude, pois ela honrou ao marido «como nenhuma antes o fizera» (Hesíodo. Escudo de Héracles, I. 5–6; 9–10). Os mitemas da castidade e da fidelidade encontraram, no mito de Alcmena, sua forma ideal, caracteres frequentemente mencionados e celebrado pelos autores 161

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antigos. Na Beócia, Alcmena figurava como uma personagem importante, recebendo culto como heroína (Kerényi 2015, 125). Contudo, Alcides tornou-se um herói muito mais prestigiado que a mãe. Tendo Zeus pronunciado a todas as divindades olímpicas que um descendente de Perseu nasceria para reinar sobre a Argólida, despertara os ciúmes da deusa Hera. Esta ordenou a Ἐιλείθυια [Eileíthyia], divindade que preside sobre os partos, que atrasasse o nascimento do filho de Zeus e Alcmena e adiantasse a vinda de Ἐυρυσθεύς [Eurystheús], filho de Estênelo e Nicipe. Antecedendo o nascimento de Alcides, Euristeu herdou a pretensão ao trono de Argos (ou Tirinto). Isto sujeitou o filho de Alcmena à suserania de seu primo. O rebento de Zeus, contudo, estava destinado à fama e à glória. Alcides é o seu nome de nascimento, mas em sua juventude ele recebeu a alcunha Ἡρακλῆς [Hēraklês], possivelmente tomada para amainar a fúria da deusa que via nele o filho adulterino de seu esposo: «glória de Hera». É principalmente nas narrativas sobre os feitos de Héracles que encontramos as referências à sua mãe, a bela Alcmena. Caso do Hino Homérico a Héracles, onde as façanhas do herói estão resumidas a oito versos: É a Héracles, filho de Zeus, que eu vou cantar, ele que é de longe o maior dentre os que habitam a terra. Aquele a quem Alcmena, na Tebas de belos coros, deu à luz, após unir-se ao Crônida de sombrias nuvens. Errou e sofreu, primeiro, sobre a terra e no mar imensos; em seguida triunfou, graças à sua bravura, e, sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis. Agora, habita feliz a bela mansão do Olimpo nevoso e tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos (Hino Homérico a Héracles, V. 1–8. Trad. de Junito de Souza Brandão). 162

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Embora os mitógrafos antigos releguem um papel menor à mãe de Héracles, quer no mitologema deste herói, quer nas narrativas sobre Anfitríon, Alcmena é uma personagem de direito e destaque nas narrativas mitológicas, marcando a cultura helênica e, pontualmente, seu referido culto beócio. Fontes históricas APOLLODORUS. The Library. Volume I. Translated by James G. Frazer. London: William Heinemann & Cambridge, MA: Harvard Uiversity Press, 1921. DIODORUS SICULUS. The Library of History. Translated by C. H. Oldfather. London: William Heinemann & Cambridge, MA: Harvard University Press, 1935. HESIOD. Shield of Heracles. In: HESIOD. Homeric Hymns and Homerica. Translated by Hugh G. Evelyn-White. London: Willaim Heinemann & Cambridge, MA: Harvard University Press, 1914. HESIOD. Catalogue of Women. In: HESIOD. The Shield. Catalogue of Women. Other Fragments. Edited and translated by Glenn W. Most. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2018. PLAUTO. Anfitrião. Tradução de Leandro Dorval Cardoso. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. PLUTARCH. Lives, Volume I: Theseus and Romulus. Lycurgus and Numa. Solon and Publicola. Translated by Bernadotte Perrin. London: William Heinemann & Cambridge, MA: Harvard University Press, 1914. Bibliografia geral BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega. Volumes I–III. Petrópolis: Vozes, 2013–2015. 163

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BRANDÃO, J. S. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 2014. GRIMAL, P. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. GUERRA, L. G. 2021. Leda. In: SILVA, S. C.; BRUNHARA, R.; VIEIRA NETO, I. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História. Goiânia: Tempestiva. p. 203-210. KERÉNYI, K. A Mitologia dos Gregos. Volumes I–II. Petrópolis: Vozes, 2015. VIEIRA NETO, I. 2021. Helena. In: SILVA, S. C.; BRUNHARA, R.; VIEIRA NETO, I. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História. Goiânia: Tempestiva. p. 571-580.

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Aἴθρα › Etra

por Vander Gabriel Camargo & Thirzá Amaral Berquó

Etra é uma figura mítica amplamente conhecida na Antiguidade como a mãe do grande herói ateniense Teseu, sendo filha do rei Piteu de Trezena. Αἴθρα [Aithra], conforme grafado no grego, tem no seu nome mais de um possível significado, pode-se traduzir como «éter», «o ar mais puro e brilhante», e «o céu» (Liddell 1940). As informações sobre sua vida que chegaram até o presente são provenientes de vários documentos da antiguidade, como de poemas épicos e trágicos, em obras de oradores, de mitógrafos, de historiadores e na iconografia das cerâmicas áticas. Etra é uma personagem da Idade dos Heróis, sendo da geração anterior à dos genitores dos guerreiros que batalharam nos campos de Troia. Tendo nascido em Trezena, cidade da parte nordeste do Peloponeso, a personagem passa por várias outras cidades, como Atenas, na Ática, Esparta, também no Peloponeso e Troia, na Ásia Menor, onde passa grande parte da sua velhice.     A primeira menção a Etra dá-se no capítulo três da Ilíada, estimada do século VIII aEC, em que a personagem é uma das criadas que acompanhavam Helena em Troia (Homero. Ilíada, III. 129–145). Seguida dessa menção no épico homérico, as próximas aparições de Etra na documentação grega datam entre as décadas de 520 e 500 aEC, sendo três pinturas sobre cerâmicas áticas (British 1836, 0224.7; Br. 1836, 0224.10 e 1836, 0224.137). Ambas são compostas pela figura de Etra, que veste uma túnica comprida e um manto sobre os ombros, entre dois hoplitas.

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O episódio mítico ao qual se referem as pinturas também se insere no contexto de Troia: trata-se do resgate de Etra da servidão em que era mantida. Por um lado, há a tradição mais antiga que narra o evento, do século IV aEC, em que é mencionado a ida de Acamas, citado como filho de Etra, até Troia para resgatá-la (Demóstenes. Discurso Fúnebre, 60. 29), o que também aparece em um dos poemas de Partênio, do século I aEC, apesar do mesmo não informar se Acamas seria seu filho ou neto (Love Romances, 16). Fontes mais recentes, dos séculos I e II EC, no entanto, evidenciam outra versão para o seu resgate, em que Demofonte e Acamas, seus netos, teriam conduzido a ação para salvar Etra do cativeiro no momento do saque de Troia (Díctis de Creta. Diário da Guerra de Troia, 5. 13; Pseudo-Apolodoro. Epítome, 5; Pausânias, Descrição da Grécia, 10. 25. 8). Antes do episódio em Troia, pode-se averiguar os acontecimentos anteriores de sua vida. Pausânias comenta o episódio no qual Belerofonte vai até Trezena para pedir a Piteu para dar a ele a mão de sua filha, porém, o casamento acabou não acontecendo (Descrição da Grécia, 10. 25. 8). Posteriormente, sabe-se da chegada de Egeu, o rei de Atenas, em Trezena, que seria antecedida da ida desse rei ao Oráculo de Delfos para tentar resolver o problema que havia com a não geração de sua descendência. Piteu, ao compreender a fala profética da Pítia, tenta ajudar Egeu, persuadindo-o a ter relações com sua filha, resultando na concepção de Teseu (Eurípides. Suplicantes, 1–7; Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3.15.6; Plutarco. Teseu, 3). Na verdade, a paternidade de Teseu é disputada em diversas fontes. Já no século V aEC, menciona-se Teseu como filho de Etra e de Posídon, (Baquílides. Ditirambo 17, 29–63), o que também é defendido em outros documentos (Isócrates. Helena, 18; Diodoro Sículo. Biblioteca, 4. 59. 1). Essa versão aparece em cerâmicas áticas do século V aEC, nas quais uma 166

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figura masculina segurando um peixe e/ou um tridente corre atrás de uma figura feminina que carrega um cálato, espécie de cesto, identificada como Etra (vide Vaticani 16554.0.0 e British 1837, 0609.39), tipo de cena que pode denotar a relação amorosa entre os dois. Ainda no século V aEC, Teseu é mencionado como filho de Etra e Egeu (Eurípides. Os Heráclidas, 205–222), também aparecendo em fontes posteriores (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3. 16; Higino. Fábulas, 14. 2, 79 e 270) ou supostamente quando Ateneu comenta que Etra foi uma das esposas de Egeu (Banquete dos Eruditos, 13.4). Plutarco defende a ideia de a paternidade de Posídon ter sido espalhada por Piteu para explicar a gravidez da filha, já que o rei de Atenas havia voltado para sua cidade e Posídon era um dos principais deuses de Trezena (Teseu, 6). Já em Ovídio, cita-se, em tom irônico, que o herói não seria filho de Etra e Egeu, mas das rochas e das profundezas (Heroides, X. 131–134). Há aqueles que reconciliam as narrativas, como se Etra tivesse tido relações amorosas com Egeu e com Posídon na mesma noite (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3.15.6), explicando-se Teseu como filho de ambos (Higino. Fábulas, 37). Para o contexto do século V aEC, a dupla paternidade seria de bom tom para Atenas, já que, por um lado, sendo filho de Egeu, isso implicaria a sucessão legítima, visto que ele se torna rei da cidade; por outro lado, como filho do deus dos mares, o herói personificava o favor divino do domínio naval da cidade (Shapiro 2016, 18).  Após o nascimento de Teseu, comenta-se que Egeu ordenou que Etra mantivesse em sigilo sua identidade, revelando-a somente quando o filho chegasse à maioridade (Plutarco. Teseu, 4). Quando chegou a hora, Etra revelou o local onde estava a rocha sob a qual o ateniense escondeu sua espada e 167

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sandálias (Diodoro Sículo. Biblioteca, 4.59.1), cena que aparece em um lécito de figuras vermelhas, datado entre 470 e 460 aEC (Beazley Archive Pottery Database 212293). Com a recuperação por Teseu dos itens escondidos, conta-se que o herói decidiu partir para Atenas, Etra então o aconselhou a ir pelo mar, suplicando para evitar o caminho terrestre (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3.16; Plutarco. Teseu, 6 e 7). Relacionando-se com esse episódio, algumas cenas em cerâmicas áticas podem representar a partida de Teseu de Trezena, com sua mãe realizando gestos de suplicante (Beazley Archive Pottery Database 204694; Hoff 2014), podendo estar Piteu e Posídon presentes (British 1843,1103.42; Mannack 1995). Em idade mais avançada, Etra aparece como uma das personagens da tragédia As Suplicantes de Eurípides, no tempo em que ela habita em Atenas junto de Teseu, então rei. É ela quem abre a trama, realizando uma prece no Templo de Deméter e Coré, em Elêusis, (1–41), em seguida, persuadindo seu filho a ouvir os pedidos das mães dos guerreiros de Argos que perderam a vida na batalha contra Tebas (Eurípides. As Suplicantes, 297–331). Posteriormente, comenta-se que Helena acaba sob os cuidados de Etra em Afidna, cidade da Ática, após ser raptada por Teseu, sendo de lá resgatada por Cástor e Polux, seus irmãos divinos (Diodoro Sículo, Biblioteca, 4.63.3–5; Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3. 10. 7). Menciona-se que, na mesma ocasião, Etra é levada pelos Dióscuros até Esparta, tornando-se serva de Helena (Higino, Fábulas, 79; Dio Crisóstomo. Discursos 11. 45; Pausânias. Descrição da Grécia, 5. 17–19). Quanto ao episódio em que Helena sai de Esparta com Páris, Etra teria sido conduzida também para a cidade do príncipe, 168

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mantendo-se o seu status de cativa (Díctis de Creta. Diário da Guerra de Troia, 1.3; Dio Crisóstomo. Discursos, 11. 59; Higino. Fábulas, 92; Ovídio. Heroides, XVI. 256–262; XVII. 147–155).  Ao ser resgatada de Troia, sabe-se que ela teria retornado para Atenas, sendo recebida por um novo rei da cidade, não sendo mais seu filho (Díctis de Creta. Diário da Guerra de Troia, 6. 2; Pseudo-Apolodoro. Epítome, 1; Cláudio Eliano. Varia Historia, 4. 5). Ademais, é citado que a vida de Etra veio ao fim por meio de suicídio em razão da descoberta da morte dos filhos (Higino. Fábulas, 243).  Cabe citar que Etra era neta de Pélops e Hipodâmia, portanto prima de Alcmena, a mãe de Héracles (Eurípides. Os Heráclidas, 209; Plutarco. Teseu, 7). Também é comentado a existência de uma irmã de Etra, Henioque (Plutarco. Teseu, 25. 4), e uma filha de Etra, Clímene (Díctis de Creta. Diário da Guerra de Troia, 6. 2). Além dos netos Demofonte e Acamas, filhos de Teseu com Fedra, são mencionados Hipólito, filho de Teseu e da amazona Hipólita (Diodoro Sículo. Biblioteca, 4. 62. 1), Enopião e Estáfilo, ambos filhos de Teseu e Ariadne (Plutarco. Teseu, 20. 2). Etra teria também um bisneto, chamado Minutus, filho de Acamas e Laodice, uma das filhas de Príamo, (Partênio de Niceia. Love Romances, 16). Nota-se que Etra oscila entre Πιτθῆος θυγάτηρ [Pittheos Thugater], filha de Piteu (Homero. Ilíada, III. 144), e a Θησέως μητέρα [Theseos Metéra], mãe de Teseu (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, 3. 10. 7). Essas representações relacionam-se com as acreditadas diferentes etapas da vida da mulher grega, evidenciando-se a transição entre donzela virgem e mãe. Essa perspectiva vincula-se com a Apatouria, festival ateniense que relembrava a narrativa mítica em que Etra vai até a Ilha de Esféria para encontrar Posídon mediante a persuasão de Atena. Em cujo local Etra estabelece um templo para Atena Apatouria, 169

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fundando o rito em que as mulheres dedicariam seus cintos antes do casamento (Pausânias. Descrição da Grécia, 2. 33), demarcando a passagem das etapas da vida (Pantel 2009).  Sobre o aparecimento de Etra em fontes de outros períodos da história, pode-se citar a obra de João Malalas, no séc. VI EC, em que a personagem é colocada como uma grande preocupação de Menelau no episódio em que Páris a raptou de Helena (Cronografia, 5. 95). Já no início do século XX, cita-se a ópera Helena Egípcia, de Hugo von Hofmannsthal, em que Etra é representada como uma feiticeira, filha de um rei egípcio e esposa de Posídon, que usa da sua magia para tentar reatar Menelau e Helena (Brillante 2006).   Fontes históricas AELIAN. 1665. Various Histories. Tradução de Thomas Stanley. Digitalizado pela University of Chicago.  APOLLODORUS. 1921. Library and Epitome. Tradução de James George Frazer. Cambridge, MA/London: Harvard University Press/William Heinemann (Loeb Classical Library). ATHENAEUS. 1854. The Deipnosophists. Traduzido de Henry G. Bohn, York Street, London: Covent Garden. BAQUÍLIDES. 2014. Odes e Fragmentos. Tradução, introdução e comentário de Carlos A. Martins de Jesus. São Paulo: Annablume. DEMOSTHENES. 1939. Funeral Speeches. Tradução de A. T. Murray. Cambridge, MA/London: Harvard University Press/ William Heinemann. DIO CHRYSOSTOM. 1932. Speeches. Tradução de James Wilfred Cohoon and Henry Lamar Crosby. Cambridge, MA/ London: Harvard University Press/William Heinemann. 170

A presença das mulheres na Literatura e na História

DIODORUS SICULUS. 1933. Library. Tradução de Charles Henry Oldfather. Cambridge, MA/London: Harvard University Press/ William Heinemann (Loeb Classical Library). DICTYS CRETENSIS. 1966. From The Trojan War. The Chronicles of Dictys of Crete and Dares the Phrygian. Tradução por Richard McIlwaine Frazer. Indiana University Press. EURÍPIDES. 2015. As Suplicantes. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras. EURÍPIDES. 2016. Os Heráclidas. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras. HOMERO. 1996. Ilíada. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro. HYGINUS. 1960. Fabulae. Traduzido e editado por Mary Grant. University of Kansas Publications in Humanistic Studies, n. 34. ISOCRATES. 1928/1980.  Helen. Tradução de George Norlin.  Cambridge, MA/London: Harvard University Press/William Heinemann (Loeb Classical Library). JOHN MALALAS. 1986. Chronicle. Tradução de Elizabeth Jeffreys, Michael Jeffreys e Roger Scott. Melbourne: Australian Association for Byzantine Studies. PARTHENIUS. 1916. Love Romances. Tradução de Sir Stephen Gaselee Cambridge, MA/London: Harvard University Press/William Heinemann (Loeb Classical Library). PAUSANIAS. 1918. Description of Greece. Tradução de W.H.S. Jones, Litt. D. and H. A. Ormerod, M. A., in 4 Volumes. Cambridge, MA/London: Harvard University Press/William Heinemann (Loeb Classical Library). 171

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PLUTARCH. Lives. 1914. Tradução de Bernadotte Perrin. Cambridge, MA/London: Harvard University Press/William Heinemann (Loeb Classical Library). OVID. Heroides and Amores. 1931. Tradução de Showerman, Grant. Cambridge, MA/London: Harvard University Press/ William Heinemann (Loeb Classical Library). Bibliografia geral BRILLANTE, C. 2006. L’Elena Egizia di Hoffmannsthal: Una riletura del mito greco. In: CAVALLINI, E. Omero Mediatico: Aspetti della ricezione omerica nella civilta contemporanea. D.U. Press. p. 283–205. HOFF, R. 2014. Theseus and Aithra! A Forgotten Fragment and an Old Problem. In: AVRAMIDOU, A.; DEMETRIOU, D. Approaching the Ancient Artifact: representation, narrative e function. Berlin/Boston: Walter de Gruyter GmbH. p.69–76. LIDDELL, H. G.; SCOTT, R.; JONES, H. S & MCKENZIE. 1940. Greek-English Lexicon, A Simplified Edition by Didier Fontaine. Reino Unido: University Press/ Oxford. MANNACK, T. 1995. Theseus’ Visit to the Bottom of the Sea. Oxford Journal of Archeology, vol. 14, (1), p. 109–101. PANTEL, P. 2009.  Aithra et Athéne Apatouria, un rite de passage au féminin  In: PANTEL, P. Aithra et Pandora: Femmes, Genre et Cité dans la Gréce antique. Paris: L’Harmattan. p. 57–71. SHAPIRO, H. 2016. La Famille de Thésée: le héros comme fils, mari et père. In: BAURAIN-REBILLARD, L. Héros Grecs à Traver le Temps: Autour de Persée, Thésée, Cadmos et Bellérophon. Lorraine, Centre de Recherche Universitaire. p. 193–211. 172

Ἀριάδνη › Ariadne

por Ariadne Borges Coelho

Ariadne, heroína cretense, idealiza o fio que marca o caminho percorrido no labirinto e indica a saída. Ἀριάδνη [Ariadne ou Ariadna], a mais pura, puríssima, a mais sagrada, castíssima, tem na etimologia a partícula aumentativa ἀρι [ari], ideia de força e superioridade, junto de ἀδνός [adnós], uma versão cretense para ἁγνός [hagnós], «puro, casto, sagrado». Filha de Pasífae e Minos; irmã de Fedra, Glaucus, Carreus, Acacailles, Deucalion, Xenodice e Androgeus e de mais doze meio-irmãos, dentre eles, o Minotauro: ser mitológico biforme touro e homem que vive no Labirinto. As principais fontes em que Ariadne aparece são: Hesíodo. Teogonia, 947–949; Homero. Ilíada, XVIII. 590–592; Odisseia, XI. 321–326; Virgílio. Eneida, VI. 29–30; Propércio. Elegias, Livro I. elegia III, 01; Livro II. elegia XXIV, 43; Livro II. elegia III, 18; Livro III elegia XVII, 07; Ovídio. Heróides, X; Fastos, III. 449–516; Metamorfoses, VIII. 171–182; Arte de Amar, 527–536; Catulo. Epílio 64, 50–266; Plutarco. Vidas Paralelas Teseu, 19–20; Apolodoro. Biblioteca, Epítome I, 9; Higino. Fábulas, XIV, XLII, XLIII, CCXXXIV, CCLV, CCLXX; Eratóstenes. Catasterismo 5; Pausânias, I, 20; X, 29, 4. A quantidade e fragmentação das fontes do mito fazem com que haja variantes. Na versão mais clássica, Ariadne descobre uma forma de sair do labirinto. Concede o fio e ajuda Teseu em sua escapada. Mas há outras variantes: Ariadne teria emprestado a coroa luminosa que ganhou de Dioniso ou ainda uma espada para a luta contra o Minotauro. Seja através do fio ou da luz, Ariadne encontra e indica o caminho e a saída.

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Na Eneida, o fio é proveniente de Dédalo que se compadece da cega paixão de Ariadne por Teseu. Já nas Metamorfoses o próprio Dédalo, construtor do labirinto, se perde. Em seguida, Ariadne deixa a ilha de Creta junto de Teseu, moças e rapazes atenienses. No retorno para Atenas, há uma parada na Ilha de Naxos (Dia). E neste ponto do mito há divergências sobre o acordar solitário de Ariadne na ilha de Naxos. Teseu teria abandonado Ariadne por achar que não seria conveniente levar uma cretense para Atenas? Mas esta interpretação não considera Fedra, irmã de Ariadne, mais tarde esposa de Teseu. Ariadne estaria grávida e enjoada e por isto desembarcou para repousar na ilha, mas ventos desfavoráveis e tempestades levaram o barco para longe e impediram Teseu de trazer de volta a embarcação. E há a versão Dionisíaca. Dioniso se apaixona por Ariadne, aparece em sonhos para Teseu e ordena que ele deixe Ariadne. A Imortalidade de Ariadne está relacionada com a hierogamia (núpcias sagradas) com Dioniso (Baco). Na Teogonia Ariadne é «esposa florescente e imortal e sem-velhice» (Hesíodo. Teogonia, 948–949), tornada imortal por Zeus. O mito de Ariadne e a descrição da Coronae Borealis aparecem no Catasterismo 5 de Eratóstenes intitulado «Sobre a Coroa». A coroa era um presente para Ariadne proveniente das filhas de Zeus e Thêmis, as Horas, (Eunomia, Irene e Díke) e de Afrodite. No momento da celebração das Bodas com Dioniso, em Naxos, Baco colocou o diadema de Ariadne entre as estrelas e desta forma tornou-a imortal. A coroa, feita por Hefesto, era de ouro com pedras índicas. E teria sido anteriormente fundamental para auxiliar Teseu a sair do labirinto, visto que nesta variante do mito o famoso fio é trocado pela coroa brilhante que iluminou a escuridão do labirinto. 174

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Na versão dos Fragmenta Vaticana, Dioniso teria encontrado Ariadne antes do evento na ilha de Naxos e levado o diadema de ouro feito por Hefesto como presente, a fim de seduzi-la. No entanto, Ariadne teria, ao invés do tradicional fio, fornecido a coroa reluzente para Teseu percorrer e encontrar a saída do labirinto. Em Higino e Ovídio, Pai Líber (Baco) nomeia e chama a Ariadne de Líbera (Higino. Fábulas, CCXXIV; Ovídio. Fastos, III. 512). Nas Metamorfoses de Ovídio, Líber atira a coroa ao céu «para a tornar brilhante qual astro perene» (vv. 177), a coroa que Hefesto fez e deu a Afrodite. Esta, utilizada por Ariadne nas núpcias sagradas com Dioniso, é transformada em constelação, Coronae Borealis, e eterniza o mito e, consequentemente, a heroína no firmamento. A Ariadne de Propércio, mesmo citada em poucos versos, resume grande parte do mito que já foi mostrado pelos outros poetas: o acordar solitário; o abandono; a relação com Dioniso e a sabedoria. A Ariadne romana de Catulo e Ovídio parece ser mais trágica. Em Heróides de Ovídio, na Epístola X, o amor e o sofrimento exagerados são descritos. O amanhecer solitário, questionamentos sobre o que fazer e a constatação da morte solitária marcam a carta de Ariadne para Teseu. Em Vidas Paralelas de Plutarco o fio de Ariadne também não traz o envolvimento de Dédalo. É ainda em Plutarco que lemos uma possibilidade de ginecocracia, com Ariadne no poder de Creta. Após subir ao poder, Ariadne estabelece um tratado e cria laços de amizade entre os atenienses e cretenses. Há em Plutarco várias Ariadnes. A primeira, na versão de Péon de Amatunte, estava com Teseu no barco quando foram arrastados por uma tempestade até Chipre. Por causa do enjoo ela desembarcou sozinha enquanto Teseu regressou ao navio a fim de salvá-lo de uma tempestade e foi arrastado para o alto mar. Então Ariadne foi cuidada pelas mulheres do 175

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local que também a ajudaram na hora do parto. No entanto, nesta variante do mito, Ariadne morre sem ter conseguido dar à luz. Descreve Plutarco o desgosto de Teseu quando retornou e tomou conhecimento dos acontecimentos. Deixou então riquezas e foram instituídos sacrifícios com um jovem sobre um leito imitando gritos e gestos de mulheres no parto, em memória de Ariadne. A segunda Ariadne casou-se com Dioniso em Naxos e teve filhos. Outra Ariadne teria sido deixada por Teseu em Naxos e teria morrido na ilha. Na Odisseia, Ariadne foi morta por Ártemis em Naxos. A despeito da tradição dos estudos até o tempo atual, Ariadne pode ser interpretada como a efetiva idealizadora do fio capaz de conduzir o herói Teseu pelo Labirinto. Desposada por Dionísio, Ariadne é Líbera e conduz e guia junto com o deus do vinho o coro báquico. Sua trajetória narrativa está presente nos tempos atuais, na perspectiva de condutora por labirintos, sendo seu nome diretamente referenciado até em obras do mundo pop, como o filme norte-americano «A Origem» (2010) e a série alemã «Dark» (2017). No cenário brasileiro contemporâneo, Ariadne é personagem de Luís Fernando Veríssimo no romance Os Espiões (2009); é devir em uma série de poemas (posteriormente musicados) de Hilda Hilst intitulada Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio (1974), parte do livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão. É peça teatral por Juliana Veras e Companhia Crisálida de Teatro: Ariadne: Cartografias de um Labirinto e é cordel Ariadne: senhora dos labirintos, escrito por Guilherme Calixto (Quixadá/Ceará). Por fim, é importante ressaltar que a análise da personagem Ariadne também permite localizá-la como uma referência em temas como gênero, protagonismo feminino e autonomia diante da tradição. 176

A presença das mulheres na Literatura e na História

Fontes históricas CATULO. 1996. O livro de Catulo. Tradução de João Ângelo Oliva Neto. São Paulo: Edusp. ERATÓSTENES. 2020. Constelações do Zodíaco. Tradução de Reina Marisol Troca Pereira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. HESÍODO. 2012. Teogonia. Tradução de J. A. A Torrano. São Paulo: Iluminuras. HOMERO. 2014. Odisseia. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Cosac Naify. HOMERO. 2018. Ilíada. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Ubu Editora. OVÍDIO. 2015. Fastos. Tradução de Márcio Meirelles Gouvêa Júnior. Belo Horizonte: Autêntica Editora. OVÍDIO.2016. Heróides. Tradução de Carlos Ascenso André. Lisboa: Livros Cotovia. OVÍDIO. 2017. Metamorfoses. Tradução de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34. PLUTARCO. 2008. Vidas Paralelas: Teseu e Rómulo. Tradução de Delfim F. Leão & Maria do Céu Fialho. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra. PROPÉRCIO. 2014. Elegias. Tradução de Guilherme Flores. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica. VIRGÍLIO. 2016. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral ALVES, D. M. 2013. Ciclos mitológicos nas Fabulae de Higino: tradução e análise. Dissertação de Mestrado em Linguística defendida na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. 177

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

CABRAL, L. A. M. 2013. A Biblioteca do Pseudo Apolodoro e o estatuto da mitografia. Tese de Doutorado em Linguística defendida na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. COELHO, A.; SILVA, F.; VERAS, J. 2021. O Mito de Ariadne: Recepção e Processo de Criação Dramatúrgica. In: PREZOTTO, J.; ARAÚJO, O.; SILVA, R. (Orgs.) Recepção dos Mitos Gregos na Dramaturgia Brasileira. Catu: Bordô-Grená, p.11–28. LYONS, D. 1996. Gender and Immortality: Heroines in Ancient Greek Myth and Cult. Princeton University Press. SOARES, C. 2006. O mito de Ariadna: um arquétipo greco-latino da condição humana, Humanitas, 58, p. 45–51. WEBSTER, T. B. L. 1966. The Myth of Ariadne from Homer to Catullus, Greece and Rome, 1, p. 22–31.

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Εὐρυδίκη › Eurídice

por Juarez Oliveira

Eurídice (Εὐρυδίκη [Eurydíkē]), referida possivelmente (Hermesíanax, fr. 7) também sob a alcunha de Αrgíope (Ἀργιόπη [Argiópē]) ou Agríope (Ἀγριόπη [Agriópē]), é uma dríade, isto é, uma ninfa arbórea, cuja fortuna mítica se subordina à narrativa acerca de sua morte e tentativa de resgate pelo lendário poeta Orfeu, sendo constantemente referida como sua esposa. Em função disso, as paisagens em que figura são a Trácia, região situada ao nordeste da Grécia moderna que abarca também território turco e búlgaro, e o mundo subterrâneo regido pelos deuses Hades e Perséfone (ou Plutão e Proserpina), onde se encontram as almas dos mortos. Sua relação com Orfeu a situa cronologicamente na Idade dos Heróis, já que ele a teria desposado depois da expedição dos argonautas, da qual fez parte. Seu nome, composto pelo adjetivo εὐρύς [eurýs] e pelo substantivo δίκη [díkē], significa «ampla justiça» (Chantraine 1968–1980, 283–284 e 387–388). Já sua alcunha Argíope, baseada no substantivo ὀπή [opḗ] associado ao adjetivo ἀργός [argós], significa «feição brilhante», enquanto a alternativa Agríope, constituída também por ὀπή [opḗ] e pelo adjetivo ἄγριος [ágrios], significa «feição selvagem» (Chantraine 1968–1980, 15, 104–105 e 808). Embora Orfeu já figure na Época Arcaica, a primeira menção ao seu mito com Eurídice nas fontes de que dispomos só se verifica no período Clássico Grego, no século V aEC, possivelmente em uma tragédia perdida de Ésquilo pertencente à tetralogia Licurgo (Gantz 1993, 722), mas certamente na Alceste de Eurípides (357–362). Nesta peça, o rei Admeto

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lamenta não ser capaz, como foi Orfeu, de descer ao mundo dos mortos e encantar seus regentes e guardiões para resgatar Alceste. Ainda nesse período, agora no século IV aEC, Eurídice é também referida no Banquete de Platão (179d–e), onde, em vez de ser mencionada nominalmente, é dita a mulher (γυναικός [gunaikós]) pela qual Orfeu foi ao Hades. A fala em que figura, atribuída a Fedro, afirma que o poeta falhou em resgatá-la por tentar entrar vivo no mundo ínfero ao invés de morrer em nome do Amor (Ἕρως [Érōs]). A partir daí, diversas fontes fizeram referência ao mito através dos séculos da Antiguidade Greco-Romana, mas narrativas detalhadas acerca da morte de Eurídice e de seu resgate só floresceram no período Imperial Romano, entre os séculos I aEC e II E.C., quando Virgílio e Ovídio compuseram, respectivamente, as Geórgicas e as Metamorfoses, muito embora exista a possibilidade de que houvesse também um poema da tradição órfica —chamado Catábase e atribuído por Epígenes, no século IV a.EC., ao pitagórico Cércops— que narrava este episódio (Gantz 1993, 724; West 1983, 9). Nas Geórgicas (455–547), a história principia com Aristeu, um apicultor, buscando orientação oracular e sendo informado de que estava sendo vítima da ira de Orfeu pela morte de sua rapta coniuge (esposa perdida), que é também chamada de moritura puella (jovem que morreria) nessa passagem, em que se narra como Eurídice morre ao fugir do apicultor que queria violá-la e pisa em uma cobra que a mata com uma picada. Além de caracterizada como coetânea das Dríades, a ninfa é então chamada de dulcis coniunx (doce esposa) por Orfeu, enquanto este lamenta sua morte. Assim como nas demais versões, ela é restituída sob ordem de Proserpina, porém Orfeu, tomado por subita dementia (súbita loucura) na partida do Averno, se vira para vê-la, quebra o 180

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pacto que fez com a deusa e refere-se à amada como Eurydicem suam (sua Eurídice). Nesse único momento, a mulher ganha voz e, ao falar que a morte a arrebatava de volta aos ínferos, diz ser non tua (não mais tua), isto é, de Orfeu. A partir daí, os pronomes possessivos não reaparecem e Eurídice é referida apenas como coniuge (esposa) ou por seu nome próprio. Decapitada, a cabeça de Orfeu chama seu nome e refere-se a ela como miseram Eurydicem (pobre Eurídice), momento a partir do qual Eurídice só é mencionada na narrativa mais duas vezes, uma sendo caracterizada como companheira das ninfas no comando dos coros nos bosques sagrados e outra como placatam Eurydicen (aplacada Eurídice), a quem Aristeu deveria sacrificar uma novilha para dar fim à má sorte com suas abelhas. Nesse ponto, ganha destaque o caráter numinoso atribuído à sua figura, que pode ser aproximada de Perséfone/ Proserpina, já que ambas têm seu retorno ao mundo dos vivos frustrado e disso resulta um método ritual que favorece a prosperidade terrena (Johnston 1977, 162). Ovídio, ao narrar o episódio em suas Metamorfoses (10. 1–85), segue a narrativa de que Eurídice morrera vítima de uma picada de cobra, mas nada se fala de seu perseguidor. As primeiras referências a ela são como nupta nova (nova esposa) e, na voz de Orfeu, coniunx (esposa). Eurídice só é nomeada quando o poeta pede que Plutão e Proserpina, que, a contar pela história do rapto, também foram vítimas do amor como o próprio Orfeu diz ser, voltem a tecer o destino dela, que fora cortado antes da hora. Aqui, a narrativa de Ovídio diverge da virgiliana, na qual Eurídice está destinada a morrer. Além disso, é interessante o possível intertexto com o Banquete de Platão, no qual Amor pede não a catábase, mas a própria morte de Orfeu; uma morte à qual, segundo o narrador das Metamorfoses, ele se dispõe, caso os deuses 181

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rejeitem seu apelo. Eurídice é, então, chamada novamente de coniuge (esposa) e também referida pelo seu próprio nome, quando os deuses concedem o pedido de Orfeu e mandam buscá-la. Estando já próximos da superfície, o poeta olha para Eurídice por temer não mais tê-la atrás de si, e ela começa a se distanciar dele, deslizando para trás, tentando agarrar e ser agarrada. Diz-se dela que morre uma segunda vez e não reclama de nada, o que, conforme o narrador, não poderia fazer senão por ser amatam (amada), quando então é de novo referida como coniugis (esposa). No livro seguinte (11. 61–66), no qual Eurídice é sempre referida nominalmente, narra-se um final feliz para o casal após a morte de Orfeu, uma vez que ambos se reencontram no Averno. Nesse contexto, o possessivo que vigorava na narrativa das Geórgicas qualifica pela primeira vez a Eurídice ovidiana, que é dita Eurydicen suam (sua Eurídice), como se, só com a morte definitiva de Orfeu, ele pudesse tê-la de fato, uma tópica recorrente na literatura antiga (Griffin 1997, 83). Ainda no período Imperial Romano, Eurídice é referida por outras quatro obras. A primeira delas é a Biblioteca Mitológica (1. 3. 2), de Pseudo-Apolodoro, que segue o núcleo narrativo de que Eurídice fora morta pela picada de uma cobra e não foi salva porque Orfeu desobedeceu às ordens de Hades, olhando para trás durante o retorno ao mundo dos vivos. Na segunda obra, O Mosquito (268–295), poema pertencente ao chamado Apêndice Virgiliano (um conjunto de obras de autoria debatida atribuídas a Virgílio), Eurídice é apresentada no Averno e dita misera Eurydice (pobre Eurídice). Não indo muito além disso, o poema elogia o respeito de Eurídice aos desígnios de Proserpina ao mesmo tempo em que invectiva Orfeu, que é chamado de crudelis (cruel), não só por violar as ordens dos deuses quanto por fazê-lo em vistas de um beijo. A terceira menção, presente nas Narrativas 182

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do gramático e mitógrafo Cônon (26F1. 45), também reporta o mito, mas não se detém em Eurídice, referindo-se a ela, como outros testemunhos, apenas como esposa de Orfeu. A terceira obra a mencioná-la é a Descrição da Grécia de Pausânias (9.30.6), na qual o periegeta grego reporta uma versão diferente do mito, segundo a qual Orfeu não teria descido aos ínferos, mas ido a um oráculo dos mortos na Tesprótida, região a oeste da Grécia, e, crendo que Eurídice o seguia ao sair e não a encontrando ao se voltar para ela, suicidou-se. Também aqui ela é referida como mulher de Orfeu. No período Helenístico, entre os séculos II e I a.E.C, Eurídice é referida por dois autores. O primeiro, o poeta Mosco, em um poema chamado Lamento por Bíon (122– 125), afirma que o falecido poeta Bíon, assim como Orfeu, também seria capaz de persuadir os deuses ínferos com sua canção e, como Eurídice, ser devolvido à vida. O segundo, o historiador Diodoro da Sicília, em sua obra chamada Biblioteca Histórica (4. 25. 4), refere-se a ela não nominalmente, mas como a mulher de Orfeu. Em resumo, Eurídice tem destacado seu papel como esposa, um papel (isto é, o de esposo) nunca atribuído a Orfeu. Além disso, o reiterado uso dos pronomes possessivos nas fontes latinas em que o mito é mais explorado aponta, de uma perspectiva de gênero, para a relação de posse à qual as mulheres podiam ser submetidas na Antiguidade. No entanto, apesar do destaque que o léxico dá a isso, é possível vislumbrar que Eurídice, em sua relação com Orfeu, constituiu-se como representante da tópica do «amor além da vida», não só pela busca que o lendário poeta empreende por ela, mas pela própria ideia, vigente em algumas das fontes mencionadas, de que só a morte é capaz de reunir dois amantes. 183

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Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. The Library. 2 vols. Translated by J. G. Frazer. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press. DIODORO DE SICILIA. 2004. Biblioteca Historica: Libros IV–VIII. Traducción de Juan José Torres Esbarranch. Madrid: Gredos. EURÍPIDES. 2017. Alceste, Heraclidas, Hipólito. Tradução de Clara L. Crepaldi. São Paulo: Martin Claret. OVÍDIO. 2007. Metamorfoses. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa: Cotovia. PLATÃO. 2017. O Banquete. Tradução de Anderson de Paula Borges. São Paulo: Vozes. POWELL, J U. 1925. Collectanea Alexandrina. Reliquiae minores poetarum Graecorum aetatis Ptolemaicae 323–146 a.C. Oxford: Oxford University Press. PHILITAS; ALEXANDER OF AETOLIA; HERMESIANAX; EUPHORION; PARTHENIUS. 2010. Hellenistic Collection. Edited and translated by J. L. Lightfoot. Loeb Classical Library: Cambridge: Harvard University Press. SANTOS, G. J. 2014. Tradução de Geórgicas IV, de Virgílio, Rónai, vol. 2. n. 1, p. 148–164. JACOBY, F. 1957. Die Fragmente der griechischen Historiker. Vol 1. Leiden: Brill. PAUSANIAS. 2008. Descripción de Grecia: Libros VII–X. Traducción de María Cruz Herrero Ingelmo. Madrid: Editorial Gredos THEOCRITUS, MOSCHUS, BION. 2015. Edited and translated by Neil Hopkinson. Loeb Classical Library. Cambridge: Harvard University Press. 184

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Bibliografia geral CHANTRAINE, P. 1968–1980. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Paris: Klincksieck. GANTZ, T. 1993. Early greek myth. 2 vols. Baltimore & Londres: The John Hopkins University Press. GRIFFIN, A. H. F. 1997. A Commentary on Ovid “Metamorphoses” Book XI. Hermathena. N. 162/163, p. 1–288. JOHNSTON, P. A. 1977. Eurydice and Proserpina in the Georgics, Transactions of the American Philological Association, vol. 107, p. 161–172. POLASTRI, B. E. 2013. Um estudo do intertexto virgiliano no Cvlex. Dissertação de Mestrado em Linguística defendida na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. WEST, M. L. 1983. The Orphic Poems. Oxford: Oxford Claredon Press.

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Ἀταλάντη › Atalanta

por Thirzá Amaral Berquó

Atalanta ou Atalante (em grego antigo, Ἀταλάντη), é uma heroína grega, famosa por suas habilidades como caçadora e atleta, mais especificamente como arqueira, corredora e lutadora. O nome Atalanta pode ser traduzido como «A equivalente», pois é derivado do adjetivo grego (ἀτάλαντος [atálantos]), o qual significa de mesmo peso, equivalente (formado a partir do substantivo τάλαντον [tálanton] balança). Esse adjetivo aparece na épica homérica para referir a semelhança dos heróis com os deuses. Ou seja, Atalanta é a heroína feminina que é igual aos heróis masculinos. Ela faz parte do grupo mais antigo de heróis gregos, da chamada Idade dos Heróis, sendo contemporânea de Jasão, Meléagro, Autólico (avô de Odisseu) e Peleu (pai de Aquiles), anteriores ao ciclo troiano da épica homérica. A Idade dos Heróis é considerada como uma época populada por um tipo superior de humanidade, geradora de muitos mitos. Os heróis e as heroínas são figuras que realizaram feitos notáveis, pelos quais se tornaram conhecidos e foram imortalizados na tradição grega antiga, nas canções, poemas, nas artes visuais e no culto religioso. Ocupavam um status superior ao humano comum e inferior aos deuses, podendo ser objeto de pedidos para obter graças. Para aqueles que não são semideuses, são as empreitadas heroicas que os distinguem, como no caso de Atalanta. Além dos heróis masculinos, em geral ligados a feitos guerreiros, havia muitas heroínas, cuja notoriedade decorria de motivos diversos. Nesse sentido, os feitos da heroína Atalanta são mais próximos da esfera masculina, pois estão relacionados à caça e ao esporte.

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O mito dessa heroína sobrevive desde o século VIII aEC e consta de forma fragmentária em diversos autores gregos e latinos, principalmente: 1) Hesíodo (Catálogo das Mulheres, frags. 47 e 48, tradução de Glenn Most, séc. VIII aEC); 2) Teógnis de Mégara (Teognidea, v. 1287–1294, séc. VI aEC); 3) Íbico (frag. S176, séc. VI aEC); 4) Xenofonte (Sobre Caça, 1.7 e 13.18, séc. IV aEC); 5) Apolônio de Rodes (Argonáutica, 1.768 ss, séc. III aEC); 5) Calímaco (Hino III, v. 206 ss, séc. III aEC); 6) Pausânias (Descrição da Grécia, 8.35.10 e 8.45.2–7, séc. II EC); 7) Pseudo-Apolodoro (Biblioteca, 1.8.2 e 3.9.2, séc. II EC); 8) Higino (Fábulas, CLXXIV, CLXXXV e CCLXXIII, séculos I aEC–I EC); e 9) Ovídio (Arte de Amar, II, 185–193 e III, 775–776; Amores, I, 11–15; III, 29–33, Metamorfoses, VIII, 260–444; X, 560–707; Heroínas, IV, 99–100, séculos I aEC e I EC). O mito de Atalanta possui algumas variantes, relativas aos seus genitores, ao seu local de nascimento, ao nome de seu marido e à paternidade de seu filho. Ela pode ser originária das regiões da Arcádia (Monte Partênio ou Monte Mênalo) ou da Beócia; filha dos reis Esqueneu, Íaso ou Mênalo, e da rainha Clímene, filha de Mínias; esposa de Melânio ou de Hipômenes; e mãe de Partenopeu, com Melânio, ou Hipômenes com o deus Ares. Segundo o comentário do escoliasta a Teócrito, Idílio III, v. 40, haveria duas Atalantas: uma da Arcádia, que era arqueira, e uma da Beócia, que era corredora. Isso, porém, possivelmente consiste em desmembramentos derivados de tradições locais sobre a mesma figura mitológica. Contando de forma breve, Atalanta seria filha de reis, abandonada na floresta porque seu pai desejava um filho homem. Salva pela deusa Ártemis, patrona da caça, que enviou uma ursa para amamentá-la até que ela fosse encontrada por caçadores. Criada entre eles, Atalanta tornou-se exímia caçadora e atleta, sendo excelente no uso do arco, na caça com cães, na corrida 188

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e na luta corpo a corpo. Todas essas habilidades eram consideradas como domínio essencialmente masculino na Grécia antiga. Por possuir esse conjunto específico de habilidades, Atalanta envolveu-se em diversos episódios de reuniões de heróis e de feitos heróicos, notadamente na expedição dos Argonautas para resgatar o Velocino de Ouro, nos jogos funerários do Rei Pélias (nos quais teria vencido Peleu na luta corpo a corpo) e na Caçada do Javali Calidônio. Nesta caçada, os melhores heróis da Grécia se reuniram para enfrentar um javali monstruoso, enviado por Ártemis para punir a cidade em razão de uma ofensa feita pelo rei Eneu. Atalanta era a única heroína mulher do grupo e teria sido a primeira a ferir o javali usando suas flechas, recebendo, por isso, os prêmios da caçada, quais sejam, a cabeça e a pele da fera abatida. Devota da deusa Ártemis, jurou permanecer virgem. Ainda jovem, matou os centauros Reco e Hileu, que haviam tentado estuprá-la, a flechadas. Quando foi reconhecida e acolhida por seu pai, teria sido forçada a aceitar se casar. De acordo com a versão do mito na Biblioteca, de Pseudo-Apolodoro (que faz referência a uma tradição presente já em Hesíodo), Atalanta impôs uma condição para se casar: o pretendente deveria derrotá-la em uma corrida, da qual ela participava armada e, caso perdesse a corrida, o pretendente seria morto por ela. A heroína teria derrotado e matado diversos pretendentes, até que um deles, Melânio (ou Hipômenes) teria apelado à deusa Afrodite, que lhe deu três maçãs douradas. Durante a corrida, sempre que Atalanta ganhava a frente, Melânio jogava uma maçã, o que acabava por fazer a heroína parar para recolhê-la, distraída pela beleza do objeto. Depois de jogar a terceira maçã, com ambos já próximos da linha de chegada, Atalanta deteve-se, distraída, e Melânio venceu a corrida, tornando-se seu noivo. Melânio esqueceu-se que agradecer a Afrodite pela graça obtida, atraindo uma maldição sobre o casal. Já casados, 189

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com o desejo exacerbado por Afrodite, Atalanta e Melânio tiveram relações sexuais no recinto sagrado de um deus (Zeus ou Cibele). Como punição imposta pela divindade ofendida, o casal foi transformado em leões. Antes disso, Atalanta teria tido um filho, chamado Partenopeu, cujo pai seria Melânio, Hipômenes ou o deus Ares. Em razão da metamorfose, não há mito sobre a morte de Atalanta. Atalanta é geralmente ligada às regiões da Arcádia e da Beócia. A Arcádia é uma região do sul da Grécia, muito montanhosa, situada na parte central da Península do Peloponeso. Era considerada um lugar selvagem, habitada pela mais antiga das tribos gregas, mantendo seu dialeto peculiar mesmo após a invasão dórica do Peloponeso durante a Idade das Trevas da Grécia (séculos XII–IX aEC). Seu pico mais alto é o Monte Mênalo. Isso torna mais palpável a ligação da heroína Atalanta com a prática da caça e o uso do arco. A Beócia se situa do outro lado do estreito de Corinto em relação ao Peloponeso, ficando na região central da Grécia. Mínias, o rei de Orcômenos, uma das principais cidades da Beócia, era pai de Clímene, rainha que era considerada a mãe de Atalanta. A heroína Atalanta possui várias representações na tradição iconográfica da Grécia antiga, especialmente na cerâmica pintada fabricada em Atenas. Na iconografia vascular ática, Atalanta aparece em 42 vasos de diversos formatos, em cenas que tratam principalmente a competição de luta entre ela e Peleu (21 vasos, por exemplo, Munich 1541 e DeRidder.818), a Caçada do Javali Calidônio (11 vasos, como Florence 4209, que é o famoso Vaso François), uma caça à cabra selvagem (Basel KA404), composições de Atalanta e Meléagro (05 vasos, como Würzburg 522), a corrida pré-nupcial (03 vasos, como Bologna 300) e uma cena esportiva (Louvre CA2259) (Berquó 2018). Não há nenhuma representação iconográfica vascular de Atalanta junto ao grupo dos Argonautas. Aqui, verifica-se 190

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uma inversão em relação à literatura, enquanto nesta os temas mais relevantes são justamente a viagem dos Argonautas, a Caçada do Javali Calidônio e a corrida pré-nupcial, na tradição imagética ática ganha destaque o episódio da competição de luta de Atalanta e Peleu. Tal inversão se deve, provavelmente, à conotação erótica da luta (πάλε | pále) na tradição ateniense, decorrente do contato corporal dos lutadores (vide a tática de Alcebíades para tentar seduzir Sócrates, em O Banquete, 217c, de Platão), algo que se acentua neste mito, em que os lutadores são sexos diferentes (Berquó 2018). O ponto principal é que, enquanto as representações arcaicas apresentam uma Atalanta de corpo virilizado, muito forte (embora ainda feminino), em cenas agressivas de caçada e de luta, durante o período clássico Atalanta vai sendo gradativamente feminilizada, em cenas passivas com a palestra no ginásio e a companhia masculina. Essa tendência se coaduna com o ideal aristocrático ateniense do período clássico, de reclusão doméstica feminina (Berquó 2018). Há também vasos representando Atalanta provenientes da região da península de Chalcidice, no norte da Grécia, (Caçada do Javali Calidônio [Munich 596]), da Lucânia, na Itália (Taranto 52229). Pausânias, em sua Descrição da Grécia (8.45.4), menciona a existência de uma pintura retratando Atalanta na Caçada do Javali Calidônio em um templo em Tegéia, na Arcádia. Na tradição artística de Roma, Atalanta foi representada em sarcófagos, nas cenas de caçada ao javali, e em cinco afrescos de Pompeia, geralmente em cenas com Meléagro (Santos 2016). Na Etrúria, ela aparece em espelhos de bronze, acompanhada de Meléagro ou de Peleu. A transmissão do mito deve-se principalmente à leitura das Metamorfoses, de Ovídio, e à compilação Genealogia deorum gentilium, de Giovanni Boccaccio (1313–1375) (Santos 2016). Durante o século XVI, 191

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há a presença de Atalanta, por exemplo, em tapeçarias, com modificação no corpo e nas roupas, agora adequadas ao estilo da corte. Na mesma época, a heroína também é representada em gemas preciosas (glípticos). A partir do século XVII, ela passa ser objeto de pinturas a óleo, como nos trabalhos de Jacob Jordaens, Nicolas Colombel, Peter Paul Rubens e Guido Reni, e gravuras, com temas como o recebimento da cabeça do Javali Calidônio e a corrida pré-nupcial. No período contemporâneo, é objeto ainda de pinturas, como A corrida por Atalanta (2003), de David Spears, que usa o mito para discutir temas políticos e ambientais (Santos 2016). Atalanta também aparece como uma amazona no filme Hércules (2014). Fontes históricas APOLLODORUS. Library. 1921. Translated by Sir George James Frazer. Cambridge/London: Harvard University Press/ William Heinemann. Disponível em: http://www.perseus.tufts. edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0021%3atext%3dLibrary. Acesso em: 01 jul. 2016. APOLLONIUS RHODIUS. 1912. Argonautica. Translated by George W. Mooney. London: Longmans, Green. Disponível em: http://www.theoi.com/Text/ApolloniusRhodius1.html. Acesso em: 01 jul. 2016. CALLIMACHUS. Homeric Hymn to Artemis. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a2008.01.0481%3ahymn%3d3. Acesso em: 01 jul. 2016. HELLANICUS. 1995. In: JACOBY, F. Die Fragmente der griechischen historiker. Leiden/New York/Köln: Brill. HESIOD. 2007. The Shield, Catalogue of Women and other fragments. Translated by Glenn W. Most. Cambridge: Harvard University Press. 192

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BRUNHARA, R. C. M. 2017. Uma poética do simpósio: a performance da elegia grega arcaica na Teognidea. Tese de Doutorado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo – USP. SANTOS, D. 2016. O mito de Atalanta: das fontes clássicas à receção na arte ocidental. Dissertação de Mestrado em Estudos Clássicos defendida na Universidade de Coimbra – UC.

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Ὑψιπύλη › Hipsípile

por Murilo Tavares Modesto

Hipsípile é uma personagem mítica das narrativas greco-romanas. Na literatura foi representada de forma central em obras sobre seu próprio mito, seja pela sua participação no massacre dos homens de Lemnos, seja pelo seu envolvimento na morte de Ofeltes, filho do rei de Nemeia. A personagem também estava presente em textos sobre os mitos dos heróis da Argonáutica e dos sete comandantes de Argos em campanha contra Tebas. Os escritores apresentaram particularidades em suas narrativas sobre Hipsípile, principalmente em relação à qual momento da vida da personagem deram foco. Mas, inicialmente, apresentaremos o mito a partir das Fábulas do escritor latino Higino (64 aEC–17 EC), que compôs duas fábulas que relatam linearmente os acontecimentos na vida de Hipsípile. A primeira fábula trata da revolta das mulheres de Lemnos e o que se sucedeu com a personagem nessa ilha (Higino. Fábula, XV. 1–6). Como as lêmnias faltaram com sacrifícios à Vênus, a deusa fez com que seus maridos, vitoriosos em uma batalha na Trácia, tomassem as mulheres trácias como novas esposas. A mesma deusa incitou as lêmnias a matarem todos os homens da ilha quando eles retornaram. Durante o massacre, Hipsípile se recusou a matar seu pai, Toas, o rei de Lemnos, e orquestrou a fuga dele pelo mar. Com o rei dado por morto, Hipsípile foi declarada a rainha. Algum tempo depois do massacre, a expedição dos argonautas chegou em Lemnos e, aconselhada a criar vínculos sagrados de hospitalidade, a rainha os permitiu aportarem. Convidados para ficarem na ilha, os argonautas se relacionaram com as lêmnias. Hipsípile se encontrou com Jasão, com quem

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teve um caso sexual e de quem fica grávida. Depois de algum tempo, os heróis deixaram a ilha, com as mulheres grávidas deles. As lêmnias eventualmente descobriram que a Hipsípile mentiu sobre a morte de seu pai e a atacaram, então a personagem fugiu da cidade. Vagante, Hipsípile foi capturada por piratas e vendida como escrava. Aqui, o texto de Higino tem a particularidade de dizer sobre ela ter sido escravizada para o rei Lico de Tebas (Higino. Fábula, XV. 6). Em outras narrativas, entretanto, a personagem foi servir a família real de Nemeia, como escrevem Eurípides (Hipsípile, fr. 752) e Estácio (Tebaida, V. 39). E mesmo na outra fábula de Higino sobre Hipsípile, ela é apresentada como escravizada em Nemeia, não em Tebas. Essa segunda narrativa é sobre o encontro da personagem com os sete comandantes de Argos que marcham contra Tebas e o que se sucedeu com Hipsípile em Nemeia (Higino. Fábula, LXXIV. 1–3). Escravizada, Hipsípile ficou encarregada de ser a ama de leite do filho do rei, Ofeltes. Um dia, ela se deparou com os guerreiros de Argos que buscavam por água. Respondendo aos pedidos dos argivos, Hipsípile se distraiu dos cuidados de Ofeltes, que acabou sendo comido por uma cobra gigante. Havia um presságio do qual esse bebê não poderia ser colocado no chão até que soubesse andar. Como a criança estava sob seus cuidados, Hipsípile foi posta em julgamento como a culpada da morte. Mas ela foi defendida pelos argivos, que sugeriram a instituição de jogos comemorativos em honra ao falecido. A história de Hipsípile acaba assim nas Fábulas de Higino, mas, em Eurípides (Hipsípile, 757. 43–47) e em Estácio (Tebaida, V. 710–730), o final de seu mito conta sobre a felicidade do reencontro com seus filhos. 196

A presença das mulheres na Literatura e na História

Essa sequência de acontecimentos na vida de Hipsípile, apresentada nas duas fábulas de Higino, mostra uma estrutura geral perceptível também em outras narrativas sobre a personagem, ainda que nem todas as obras sobre essa figura tratem de toda a sua vida. A referência mais antiga conhecida sobre a personagem está em Homero, o que, mesmo sendo uma breve citação, indica que seu mito já circulava por volta do século VIII aEC (Burkert 1970, 14). Na Ilíada, Hipsípile é citada a partir de seu filho com Jasão, Euneu, que enviou navios com vinhos aos aqueus (Homero. Ilíada, VII. 467–469). Alguns dramaturgos gregos do século VI ao III aEC escreveram peças sobre essa personagem e as mulheres de Lemnos, como parece ser o caso de obras de Ésquilo, Sófocles, Aristófanes e Aleixo (Ferri-Benedetti 2003, 13–14). Essas peças, entretanto, estão perdidas ou em estado muito fragmentário, mas alguns scholia, textos de comentários de leitores na Antiguidade, sugerem que a narrativa central dessas obras era o encontro com os argonautas (Ferri-Benedetti 2003, 13–14). Hipsípile de Eurípides (séc. V aEC) é uma das peças com mais excertos disponíveis. Nessa tragédia, a trama inicia no encontro da personagem com os heróis de Argos e segue ao seu julgamento pela rainha Eurídice como culpada da morte de Ofeltes, mas, ao final, é absolvida e reencontra com seus filhos (Eurípides. Hipsípile, fr. 752–759). Hipsípile é apresentada como enlutada por sua condição de exílio e escravização, recusando se esquecer de seu passado feliz no qual era rainha e se envolvia com Jasão e, fixada a tais memórias, era avessa às tentativas de consolação do coro do teatro, conseguindo superar sua tristeza somente ao final da peça, quando se reúne com seus filhos (Chong-Gossard 2009, 12–21). Pela passagem dos argonautas em Lemnos, a personagem também figura em textos sobre essa expedição. A Argonáutica de Apolônio de Rodes (séc. III aEC) é o primeiro poema 197

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épico a detalhar a relação entre Hipsípile e Jasão (Ferri-Benedetti 2003, p. 14), que passam vários dias juntos até que o herói retorna para sua viagem, deixando Hipsípile grávida (Apolônio de Rodes. Argonáutica, I. 607–914). Na Biblioteca de Pseudo-Apolorodo (c. séc. I–II EC) há um breve relato da passagem pela ilha, citando os acontecimentos do massacre e a relação fértil entre a rainha e o argonauta (Pseudo-Apolodoro. Biblioteca, I. 114–115). E a Argonáutica de Valério Flaco (séc. I EC) é um dos poemas que mais detalham o massacre de Lemnos no corpus latino (Ferri-Benedetti 2003, 16–17), narrando também o envolvimento da personagem com o herói durante alguns dias e o sofrimento das mulheres na partida dos argonautas (Valério Flaco. Argonáutica, II. 75–430). Na literatura latina se criou uma imagem típica sobre a relação de Hipsípile com Jasão: era a esposa abandonada que aguardava um retorno impossível (Ferri-Benedetti 2003, 16). Propércio (séc. I aEC–I EC) a cita como exemplo de esposa que espera fielmente por seu marido (Propércio. Elegia, I.15. 17–20). E nas Heroides de Ovídio (séc. I aEC–I EC) há uma elegia epistolar na qual Hipsípile se dirige a Jasão mostrando-se triste por ouvir sobre as aventuras do argonauta a partir de rumores, não diretamente por ele, cobrando sua promessa de casamento e tentando convencê-lo a abandonar Medeia para voltar para ela (Ovídio. Heroides, VI.3. 1–116). Na Tebaida de Estácio (séc. I EC), ainda que haja uma narrativa central sobre os acontecimentos em Lemnos, Hipsípile aparece primeiro pelo encontro com os sete comandantes de Argos (Estácio. Tebaida, IV. 739–843). Nesse poema, a abordagem do massacre dos homens e da morte de Ofeltes (Estácio. Tebaida, V. 1–753) têm um aspecto de aviso sobre as mortes vindouras durante a batalha contra os tebanos, de 198

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forma que Hipsípile estaria dando uma lição sobre o destino dos argivos, mas estes não conseguiram compreendê-la (Vessey 1970, 44–45). O mito de Hipsípile e das mulheres de Lemnos foi analisado por Walter Burkert (1970, p. 3–10), a partir de uma abordagem em que mito e rito se correspondem, para compreender um ritual de fogo em Lemnos, no qual a ilha deveria ser purificada pelo massacre contra os homens ao trazer um novo fogo para a cidade. Nesse ritual, segundo o pesquisador, todo fogo da ilha era extinguido e as famílias eram destituídas, com a população masculina desaparecendo da cidade, enquanto mulheres se encontravam nas ruas e nos santuários. A matança de homens do mito devia ter uma relação ritualística no sacrifício de sangue, provavelmente de carneiros. Ferreiros voltavam à cidade trazendo fogo, que eram distribuídos aos santuários, às casas e às oficinas, sendo a celebração final do rito, em contraparte mítica com a chegada dos argonautas. Assim, a interpretação de Burkert (1970, 6–7, 15–16) é que mito de Hipsípile é a essência do ritual do fogo, pois ambos são marcados pelo primeiro período de deposição da ordem social, para depois voltar à vida normal pela purificação, evitando problemas sociais. Acerca da literatura greco-romana sobre Hipsípile, por fim, percebemos que as obras abordam essa figura em diferentes estágios de seu mito, mas principalmente durante o encontro com os argonautas em Lemnos ou com os argivos em Nemeia. E à Hipsípile houveram atribuições de diversos papéis dependendo do momento de sua narrativa, sendo representada como filha, rainha, amante, mãe, escrava, ama de leite, abandonada, rejeitada, triste e enlutada. 199

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Λήδη › Leda

por Lolita Guimarães Guerra

O nome «Leda» (Λήδη [Lḗdē], Λήδας [Lḗdas]), identificado nos períodos arcaico e clássico, talvez derive do lício «lada» [mulher] e relacione-se com Leto, o nome da mãe de Ártemis e Apolo (Beekes 2010, 855; Càssola, 1975, 572). As narrativas sobre a personagem fazem de Leda uma rainha de Esparta, de origem coríntia ou etólia, esposa do rei Tíndaro e mãe de Helena, Clitemnestra, Cástor e Polideuces. Dentre eles, a alguns é atribuída a paternidade divina. A vasta documentação sobre Leda transmite mitos gregos sobre as famílias do Peloponeso da Idade dos Heróis, da geração das mães e pais de personagens da Guerra de Troia. Tais narrativas tratavam de sua origem, seu casamento, o estupro por Zeus e seus filhos. Quanto ao primeiro ponto, é possível que desde o período arcaico tenham se difundido distintas tradições, preservadas entre os séculos I e II EC por um escólio às Argonáuticas de Apolônio (1. 146), a Biblioteca de Pseudo-Apolodoro (1. 7. 10) e a Descrição da Grécia de Pausânias (3. 13. 8). Segundo essas fontes, Leda pode ter sido filha de Laofonte, Eurítemis, ou Pantidiya com o coríntio Glauco ou com Téstio, rei dos Pleurônios da Etólia. O longo relato de Pseudo Apolodoro (3. 10. 5–7), apresenta o casamento de Leda com o lacedemônio Tíndaro como recompensa por seu apoio a Téstio em uma guerra com vizinhos. A obra sintetiza diferentes tradições sobre a paternidade de seus filhos, documentadas desde o período arcaico: Helena e Polideuces seriam fruto de um encontro de Leda com Zeus, na mesma noite em que, de Tíndaro, foram concebidos Clitemnestra e Cástor.

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Há ainda menções a Timandra, na mesma passagem, e a Febe, em Ifigênia em Áulis de Eurípides (v. 50) e nas Cartas às Heroínas de Ovídio (8. 77). Em Eurípides (Helena, 134–136, 200–202, 688), Leda se suicida enforcando-se por vergonha de Helena. Mas nos documentos mais antigos esta não era necessariamente sua filha. Na Ilíada, uma mesma mãe anônima gera Helena, Cástor e Polideuces (3.238, 426). Só no Catálogo das Mulheres, atribuído a Hesíodo (mas possivelmente do século VI aEC), encontramos a hipótese de Leda ser sua mãe (fr. 66–68), que o autor descarta em favor de uma oceânide. Quanto a Clitemnestra, ela é ali identificada apenas como filha de Tíndaro. Referências explícitas quanto a Leda ser sua mãe ocorrerão no século V aEC, no Agamêmnon de Ésquilo (v. 914), e no século I EC, na versão de Sêneca da tragédia (v. 125). A maternidade de Cástor e Polideuces foi a que primeiramente a documentação atribuiu a Leda (Odisseia, 11. 298–304). Nos Hinos Homéricos 17 e 33, um pouco posteriores (o mais antigo provavelmente do século VI aEC), eles são chamados Διὸς κούρους [Diòs koúrous], «filhos de Zeus». Em um deles, Leda é «dominada» (ὑποδμηθεῖσα [hypodmētheîsa]) pelo deus no monte Taígeto, em Esparta (17.4). No outro, a «união» é indicada pelo particípio do verbo μίγνυμι [mígnymi] (33.5), o qual pode indicar «luta» e apontar para «misturas» desordenadas e relações sexuais ilegítimas ou forçadas (Liddell-Scott, 1889; Mirrione, 2017, 251; Avagianou, 1991, 21, 159, 163). Poetas do século XX construíram versões do mito que retomam o tema. Em Leda and the Swan, de William Butler Yeats (1928), e em Three Women, de Sylvia Plath (1962), a personagem é violentada por um cisne. Os poetas fazem referência a versões do mito em que Zeus se metamorfoseia nesse animal. Parece tratar-se de uma construção do período clássico (na versão arcaica do mito, nos Hinos, o disfarce de Zeus é 204

A presença das mulheres na Literatura e na História

uma bruma escura). No século V aEC, Eurípides mencionará pela primeira vez a forma de cisne (Helena, 19). O tema é bastante conhecido na literatura dos séculos I aEC e I EC, como nas Metamorfoses (6. 109) e Amores (1. 10) de Ovídio e na Biblioteca de Pseudo-Apolodoro (3. 10. 7). Nesses documentos, o encontro sexual de Leda com o deus não é marcado pela violência. A iconografia, por sua vez, aborda o caso de duas maneiras: há cenas que apenas aludem ao episódio e há representações explícitas de sexo. No primeiro grupo destacamos um lutróforo apúlio de figuras vermelhas do século IV aEC (Malibu 86.AE.680), em que Leda abraça e beija um cisne, e um mosaico cipriota do século II ou III EC (Museu de Palaipafos, s/n), no qual o animal apenas a acompanha. No segundo, há peças do período romano com cenas em que Leda está nua e agarrada (ou presa) ao cisne, como em um relevo em mármore encontrado em Argos (Museu Britânico 1973,0302.1) e em uma lamparina em terracota de proveniência desconhecida, na qual um ovo encontra-se aos pés da rainha (Museu Römisch-Germanisches de Colônia 602498). Dentre esses objetos, apenas o lutróforo está inscrito com seu nome. A metamorfose de Zeus e a alusão ao ovo vincula o mito de Leda ao da deusa Nêmesis. Nos séculos III e IV aEC Eratóstenes e Isócrates afirmam ter sido ela a mãe de Helena, concebida de Zeus disfarçado de cisne (Catasterismos, 25; Elogio a Helena, 59). Esta vinculação entre Nêmesis, Helena e a forma animal se encontrava nos Cantos Cíprios (fr. 8), possivelmente do século VII aEC Ali, Nêmesis tenta inutilmente escapar de Zeus tomando a forma de diversos animais. Na versão de Eratóstenes, tanto Nêmesis quanto Zeus se metamorfoseiam em aves ao longo da perseguição, até que a captura ocorre em Ramnunte, na Ática. 205

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É possível que já no período arcaico tenha circulado uma narrativa associando Nêmesis, Helena e Leda. Um breve fragmento de Safo (fr. 166) menciona que Leda encontrou um ovo da cor do jacinto. Fora essa alusão, é bem tardia a consolidação explícita de ambas as tradições sobre a maternidade de Helena. Higino, autor latino da época de Augusto, apresenta na Astronômica (2.8.1–2) um relato sobre o estupro de Nêmesis por Zeus enquanto a deusa dormia. Ao final da gestação ela pôs um ovo, levado por Mercúrio a Leda em Esparta. Do ovo saiu Helena, a quem a rainha considerou como sua própria filha. Higino ainda informa que, segundo outras fontes, foi Leda quem se deitou com o deus metamorfoseado (ele menciona apenas esta versão em sua Fábula, 77). Na mesma época, esta será a variante do mito transmitida por Ovídio e Virgílio (Cartas das Heroínas, 17. 55; Eneida, 1. 648). Tradições duplas que tentavam acomodar ambas as versões foram desenvolvidas na documentação textual e material. Na Biblioteca de Pseudo-Apolodoro, o ovo gerado por Nêmesis foi encontrado por um pastor e levado a Leda, que o guardou em um baú até o nascimento de Helena (3. 10. 7). Pausânias, por sua vez, descreveu uma representação das personagens na base de uma estátua de Nêmesis executada por Fídias, localizada em Ramnunte (1.33.7–8). Ele menciona uma tradição local, segundo a qual Helena teria sido gerada por Nêmesis e amamentada e criada por Leda. Esta versão do mito explicaria a cena na base da estátua, em que Leda conduzia Helena à deusa. Pausânias faz também referência ao ovo, agora posto por Leda: ele estava pendurado do teto de um santuário em Esparta, dedicado a Hilaira e Febe (3.16.1). A ideia de que do ovo de Leda nasceram Helena, Cástor e Polideuces circulou entre autores latinos desde a época de Augusto até o século VI EC (Horácio, Sátiras 2.1.26; Sérvio, Sobre a Eneida 3.328; Fulgêncio, Mitologias 2.13). O tema é 206

A presença das mulheres na Literatura e na História

representado em um desenho de Leonardo da Vinci executado entre 1505 e 1507, no qual Leda, abraçada a um cisne, tem a seus pés dois ovos, dos quais saem seus bebês (Chatsworth House s/n). A versão sobre os dois ovos foi elaborada ainda na Antiguidade. No século III EC, Ateneu de Naucrátis transmitiu algumas narrativas clássicas do mito de Leda e o ovo, incluindo a de Éfiro (séc. IV aEC), segundo a qual ela teria posto dois grandes e brancos «ovos» (ᾠά [ōiá]) (Banquete dos Eruditos, 2. 58B). A ideia chegou aos manuscritos medievais conhecidos como Mitógrafos do Vaticano, dos séculos XII a XIII, nos quais foram recolhidas versões latinas da mitologia clássica. Segundo o primeiro e o segundo dos mitógrafos, de um dos ovos de Leda nasceram Helena e Clitemnestra e, do outro, Cástor e Póllux (nome latinizado de Polideuces) (1. 201; 3. 1. 3). Todavia, na Antiguidade Clássica a representação imagética mais frequente do mito indicava Leda junto a apenas um ovo, depositado sobre um altar. Podemos observá-la na cerâmica de pinturas vermelhas do século V aEC, como em um lécito de Nola, em que há uma criança dentro do ovo (Museu de Pérgamo F2430), e em um cálice de Sorrento, com uma águia e três das personagens do mito, nomeadas: Leda, Clitemnestra e Tíndaro (Museu de Belas Artes de Boston 99. 539). O mito de Leda, construído de diversas maneiras ao longo da Antiguidade, envolve uma série de temas mitológicos de grande apelo artístico e político, interpretados de formas distintas ao longo das eras. Como pudemos ver, o encontro da rainha com Zeus teve um destaque especial. No século XIX, inúmeras esculturas em mármore elaboraram versões românticas do episódio, como a criada por G. F. Fuller. Nela, uma mulher está tranquilamente deitada sobre um cisne com uma menininha adormecida em seus braços. A peça pode ser vista no corredor central do Castelo de São João, no Instituto Ricardo Brennand em Recife, Pernambuco. 207

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Γαλάτεια › Galateia (Nereida)

por Júlia Batista Castilho de Avellar

Galateia (Γαλάτεια [Galáteia]; Γαλάτια [Galátia]; Galatea) é uma ninfa marinha filha de Nereu e Dóris, frequentemente mencionada em listas identificando as nereidas. O nome seria proveniente de uma raiz indo-europeia *ĝel ou *ĝhel, que contém as ideias de clareza ou brancura, numa alusão à claridade do mar quando faz bom tempo (Brandão 2014, 269). Os antigos ainda associavam sua etimologia tanto com o termo γάλα [gála] («leite») quanto com γαλήνη [galḗne] («calmaria»), de modo a relacionar a ninfa com a espuma branca como leite ou com a calma do mar (Gutzwiller 1991, 110). As principais fontes para sua história são: Apolodoro. Biblioteca, I. 2.7; Filóstrato. Imagens, II. 18; Hesíodo. Teogonia, 250; Higino. Fábulas. Prefácio 8.1; Homero. Ilíada, XVIII. 45; Luciano. Diálogos dos deuses marinhos, I; Das narrativas verdadeiras, II. 3; Ovídio. Metamorfoses, XIII. 719–897; Teócrito. Idílios, VI e XI. A personagem ainda é pontualmente referida por diversos autores antigos: Alcifrão. Cartas, I. 22; Antologia Latina, 151–154 (Riese); Apiano. Historia Romana, X. 1.2; Baquílides. Fr. 59 (Campbell); Claudiano. Epitalamium, I. 166; Rapto de Prosérpina, III. 32–33; Estácio. Siluae, II. 2.2; Mosco. Epitáfio de Bios, 58–61; Nono. Dionisíacas, XXXIX. 257; Ovídio. Amores, II. 11.33–34; Fastos, VI. 733; Propércio. Elegias, I. 8.17–18; III. 2.7–8; Sílio Itálico. Punica, XIV. 220–226; Valério Flaco. Argonáuticas, I. 134–136; Virgílio. Bucólicas, VII. 37 e IX. 39–43; Eneida, IX. 102–103.

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Hesíodo confere a Galateia o epíteto de «formosa» (εὐειδὴς [eueid ḕs]), Homero o de «famosa» (ἀγακλειτὴ [agakleitḕ]), e Mosco o de «bela» (καλά [kalá]). Alcifrão considera Galateia e Pánope como as mais belas das nereidas. Beleza e doçura são elementos tradicionalmente associados à ninfa, e um de seus principais atributos de charme é a pele branca. Em Teócrito (Idílios XI. 19), é referida como «branca Galateia» (λευκὰ Γαλάτεια [leukà Galáteia]) e «mais branca que a coalhada» (λευκοτέρα πακτᾶς [leukotéra paktãs]). Em Virgílio (Bucólicas, VII. 37–38), como «mais doce que o timo do Hibla», «mais branca que os cisnes e mais formosa que a alva hera» (thymo dulcior Hyblae; candidior cycnis, hedera formosior alba). Em Ovídio (Metamorfoses, XIII. 789–797), é comparada às penas de cisne e ao leite coalhado, sendo descrita como «mais branca que a folha de alva alfena», «mais reluzente que cristal», «mais brilhante que gelo» (candidior folio niuei ligustri; splendidior uitro; lucidior glacie). Galateia é citada em Hesíodo como pertencente à linhagem do Mar e, enquanto divindade imortal, remonta ao tempo das origens do mundo. As menções nas fontes antigas associam-na ao ambiente marinho, a ponto de Estácio (Siluae, II. 2.2) denominá-la «verde Galateia» (uiridis Galatea), em referência à cor das águas do mar. Seu nome também comparece em elegias do tipo propemptikon, poemas desejando a realização de uma viagem marítima segura (Propércio. Elegias, I. 8.17–18; Ovídio. Amores, II. 11.33–34). A partir do século IV aEC, a personagem passa a ser associada ao ciclope Polifemo, que se apaixona por ela e tenta conquistá-la. Essa nova versão do mito, que introduz na literatura grega o motivo do amor de Polifemo por Galateia, foi inaugurada por Filoxeno de Citera, com o ditirambo Ciclope, hoje fragmentário (Gutzwiller 1991, 63). Segundo Dúris de Samos, Polifemo teria construído um templo para Galateia junto ao Etna por causa da boa pastagem e da abundância de 212

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leite, mas Filoxeno de Citera, pouco crédulo nisso, apresenta como motivo para a construção do templo o amor do ciclope pela ninfa (sch. Theocr. 6. 1). No século II EC, Luciano de Samósata (Das narrativas verdadeiras, II. 3), aproveitando tal tradição, menciona um santuário em honra de Galateia, situado em uma ilha branca feita de queijo coalhado, em meio a um mar de leite. Com isso, ele explora jocosamente a etimologia que vincula o nome da ninfa ao leite e materializa as metáforas que comparavam Galateia à brancura do queijo. O tema amoroso inaugurado por Filoxeno de Citera foi depois explorado em várias comédias do século IV aEC., das quais há somente menções ou fragmentos, como a Galateia, de Nicócares, o Ciclope, de Antífanes, e a Galateia, de Aléxis. Teócrito desenvolveu esse motivo em dois idílios, nos quais Polifemo é representado ainda em tenra idade, como um jovem pastor siciliano que cuida de seu rebanho e, ao ver Galateia colhendo flores perto da montanha, apaixona-se por ela. O idílio XI conta a história por meio de uma canção do próprio Polifemo, que expressa sua ardente paixão pela ninfa e tenta conquistá-la mediante a oferta de presentes, com o convite para partilhar de suas posses e viver em sua caverna. Galateia, porém, é esquiva e foge do pretendente, que, rejeitado, busca consolar o amor não correspondido dedicando-se ao canto e à poesia. Já no idílio VI, um canto amebeu dos pastores Dáfnis e Dametas, é Galateia que corteja Polifemo e tenta seduzi-lo, embora ele a ignore e declare ter outra amante. Essa inversão de papéis, considerada criação de Teócrito, parece repercutir a ideia, expressa no idílio XI, de que o canto é o único remédio para curar-se do amor. A associação das duas personagens introduz no mito o espaço geográfico da Sicília, morada de Polifemo, local caracterizado por escarpas rochosas, relevo montanhoso e presença do monte Etna, num claro contraste com o ambiente 213

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marinho de Galateia, o que reforça a oposição entre ambos e a impossibilidade de concretização amorosa. Além disso, a incorporação do mito ao universo pastoril —Polifemo como um pastor que apascenta ovelhas e canta ao som da flauta, e Galateia como a amada objeto de seu canto— é um traço que perpassará as narrativas futuras do mito e cristalizará o nome Galateia como denominação típica de personagens bucólicas. Essa mesma ambiência é explorada por Filóstrato, o Velho (Imagines, II.18), no século III EC, que descreve uma pintura retratando o mito. Polifemo, desde o alto das montanhas, observa Galateia exercitando-se junto ao mar e prepara-se para executar um canto com sua flauta de pastor, no qual dirá o quão branca, arisca e doce é Galateia. A ninfa foi pintada em companhia das filhas de Tritão, divertindo-se no mar calmo junto de golfinhos. Sobre a cabeça, ela segura um lenço púrpura contra o vento, para proteger-se do sol e servir de vela à sua carruagem. Um de seus pés toca levemente a superfície das águas, e seu olhar é distante e vasto como a extensão do oceano.

Fig. 1: Detalhe do afresco de Boscotrecase. Fonte: Metropolitan Museum of Art, New York [acervo online, Public Domain]. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/250946.

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A descrição de Filóstrato evoca elementos iconográficos presentes em várias obras antigas representando a ninfa e seu mito. O mosaico do julgamento das nereidas (325–350 EC, Casa de Aion, Pafos) e o mosaico de Galateia junto de Tritão e das nereidas (325–350 EC, Musée Archéologique du Hatay, Antakya) trazem a inscrição do nome da ninfa e mostram-na segurando o lenço sobre a cabeça, montada em um animal marinho. O tema dos amores de Polifemo e Galateia foi caro à tradição pictórica antiga, com representações do ciclope tocando flauta junto do rebanho entre as montanhas, enquanto a nereida aparece sobre uma rocha no mar, como ocorre na pintura mural da casa do sacerdote Amandus (Pompeia, I 7,7) ou no afresco da Villa Imperial em Boscotrecase (I aEC, Metropolitan Museum of Art, ver Imagem). Com pequena variação do tema, a pintura mural na Casa de Lívia (I aEC, Roma) mostra o ciclope dentro do mar. Em outro afresco, as personagens se beijam (Museo Archeologico Nazionale), o que remete a uma tradição distinta, em que o amor se concretiza. Com efeito, na versão registrada pelo historiador Apiano (Historia Romana, X. 1.2), Galateia e Polifemo teriam se unido e gerado três filhos, Celto, Ilírio e Galas, os quais migraram da Sicília e governaram, respectivamente, os povos celtas, ilírios e gálatas. A união de Polifemo e Galateia já havia sido atestada antes pelo poeta grego Baquílides (fragmento 59), mas com a menção de apenas um filho, Galas. Entre as versões antigas, a mais extensa e detalhada é a de Ovídio, nas Metamorfoses (XIII. 719–897). Sua primeira inovação consiste no fato de o mito ser narrado na voz da própria Galateia, ao modo de uma narrativa encaixada. Outra novidade é a introdução de Ácis na história, jovem amado por Galateia e ao qual ela se unira. A ninfa repousa nos braços de Ácis, ambos escondidos atrás de uma pedra, enquanto escuta o canto de Polifemo. Depois de proferi-lo, o ciclope, enciumado 215

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e enfurecido pela rejeição, desvaria pelos bosques e montes, até encontrar Ácis e lançar sobre ele, esmagando-o, um fragmento de pedra. Diante da morte do amado, Galateia transforma em águas o sangue derramado e faz com que o jovem assuma a forma de um rio, que recebeu seu nome. Essa versão será referida por Sílio Itálico (Punica, XIV. 220–226) e por Claudiano (Rapto de Prosérpina, III. 32–33), que diz que a ninfa prefere banhar-se nas águas de Ácis a banhar-se no mar. A Antologia Latina contém um ciclo de epigramas sobre Galateia (151–154, Riese); o primeiro deles aborda os amores da ninfa com Ácis. Quanto à recepção posterior, o mito de Galateia obteve bastante sucesso entre os séculos XV e XVIII. No Renascimento italiano, a história é retomada na poesia neolatina de Giovanni Pontano (Lira XIII, Polyphemus ad Galateam [«Polifemo a Galateia»]; Lira XVI, Polyphemus a Galatea spretus conqueritur in litore [«Polifemo desprezado por Galateia lamenta na praia»]) e em La Giostra (I. 118), de Angelo Poliziano. Além disso, Rafael a representa na pintura O triunfo de Galateia (Villa Farnesina, Roma, 1511). A ninfa figura ainda no poema pastoril Polifemo, de Tomaso Stigliani (1600); em Rime e em Adone (XIX. 127–232), de Giovan Battista Marino; no poema «Le grotte di Fassolo», de Gabriello Chiabrera. Em contexto espanhol, o mito serviu de plano de fundo para a novela pastoril A Galateia, de Cervantes (1585), e foi revisitado e desenvolvido na Fábula de Polifemo e Galateia, de Góngora (1612). Em âmbito português, é assunto nos cantos III e V da Ulisseia, de Gabriel Pereira de Castro (1636), e, na literatura brasileira, o poeta árcade Cláudio Manuel da Costa retoma a personagem na Écloga VIII, intitulada «Polifemo», e na Cantata III, denominada «Galateia». O mito não foi menos prolífico na música. Entre suas principais recepções, podem-se citar Pietro Ziani, com a pastoral Galatea (1667); Lully, com a pastoral Acis et 216

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Galatée (1686); Marc-Antoine Charpentier, com a pastoral Les Amours d’Acis et Galatée, hoje perdida; Händel, com a serenata ou cantata dramática Aci, Galatea e Polifemo (1708) e a ópera pastoral Acis and Galatea (1718); Niccolò Porpora, com a ópera Polifemo (1735); e Haydn, com a ópera Acide e Galatea (1763). Fontes históricas ALCIPHRON. 1905. Epistularum libri IV. Edidit M. A. Schepers. Lipsiae: Teubner. APOLLODORUS. 1921. The Library. With an English translation by Sir James George Frazer in 2 Volumes. Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann Ltd. APPIAN. 1912. Appian´s Roman History II. Books VIII Part II–XII. Translated by Horace White. Loeb Classical Library 3. Cambridge: Harvard University Press. BACCHYLIDES. 1992. Greek Lyric, Volume IV: Bacchylides, Corinna, and Others.  Edited and translated by  David A. Campbell. Loeb Classical Library 461. Cambridge: Harvard University Press. CASTRO, G. P. de. 1826. Ulisseia ou Lisboa edificada. Lisboa: Typografia Rollandiana. CHIABRERA, G. 1834. Opere. Milano: Nicolò Bettoni e Comp. CLAUDIAN. 1922. On Stilicho´s Consulship 2–3. Panegyric on the Sixth Consulship of Honorius. The Gothic War. Shorter Poems. Rape of Proserpina. Translated by M. Platnauer. Loeb Classical Library 136. Cambridge: Harvard University Press. COSTA, C. M. da. 1768. Obras. Coimbra: Officina de Luiz Secco Ferreira. 217

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Λᾶμιαι ϗ Ἔμπουσαι › Lâmias & Empusas

por Semíramis Corsi Silva

Lâmias e Empusas têm uma tradição na mitologia antiga e uma grande importância literária como uma espécie de protótipo da mulher vampira (femme fatale). Inicialmente, tomamos contato com essas personagens através da Empusa (Ἔμπουσα [Empousa]) apresentada na Vida de Apolônio de Tiana (IV, 25), do sofista grego Flávio Filóstrato, obra escrita no século III EC. Conta-nos Filóstrato que, certo dia, passeando pelo porto de Corinto, uma bela mulher fenícia aparece ao jovem estudante de filosofia Menipo de Lícia e o seduz. O jovem se apaixona por ela e planeja o casamento, mas o sábio Apolônio de Tiana, protagonista da biografia escrita por Filóstrato, desmascara a noiva para Menipo, mostrando a ele que ela, na verdade, não era uma mulher, mas uma Empusa. Conforme diz Apolônio, pela escrita de Filóstrato, as Empusas eram seres monstruosos que assustavam crianças, seduziam os homens, adoravam os prazeres sexuais e eram também conhecidas como lâmias (λαμίας [lamias]) ou mormolicias (μορμολυκίας [mormolykias]). Tais seres seduziam homens belos e novos para devorar seus corpos e se alimentar de seu sangue porque, por serem jovens, eram mais puros. Por conta dessas personagens serem mostradas como se alimentando do sangue de suas vítimas, a tradução de Christopher Jones (2005) da obra de Filóstrato as chama de vampiras. A versão de Filóstrato tem como intuito apresentar a seus leitores o poder miraculoso de Apolônio de Tiana que consegue desmascarar um fantasma (φάσμα [phasma]). No entanto, o relato nos evidencia a visão da mulher como sedutora, capaz de destruir um homem inocente, mesmo sendo

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ele inteligente. Tal visão está ligada também a um imaginário da mulher como uma serpente pronta para atacar, pois Apolônio diz a Menipo: «—Agora, você é um belo moço, objeto de desejo das mulheres bonitas, acaricia uma serpente e uma serpente a você [...]» (Filóstrato. VA, IV. 25). Além disso, a visão de gênero transmitida com a criação dessa personagem aparece interseccionada ao elemento estrangeiro, a empusa de Filóstrato não é apenas um ser feminino que usa das artimanhas do sexo para conquistar os homens, ela também é o outro não greco-romano, é fenícia, estrangeira. Essa passagem da obra de Filóstrato ficou tradicionalmente conhecida como A Noiva de Corinto. No entanto, ela tem inspiração, inicialmente, em uma personagem já conhecida da mitologia grega, a Lâmia (Λάμια [Lamia]). De acordo com Marina Mortoza (2013, 20), a primeira vez que aparece uma palavra próxima no campo semântico à Lâmia está em uma passagem do Canto X da Odisseia. Nessa passagem (80–135), Odisseu e seus companheiros aportam em Lamo (Λάμος [Lamos]), na Lestrigônia, terra de gigantes devoradores de homens. Mortoza (2013, 20) também explica que: «O nome ‹Lamo› é composto a partir da raiz λαμ-, e a palavra grega λάμος é usada para designar o papo das aves e de alguns insetos.» Nos versos homéricos em questão, já podemos perceber certo eco do elemento devorador de homens que aparecerá nos desdobramentos futuros da personagem da Lâmia. Já Junito de Souza Brandão (2014, 371) informa que o termo «grego Λάμια (Lámia) procede, ao que parece, da raiz *lem, ‹sugar, tragar, devorar›. A relação etimológica com o grego λαμυρός (lamyrós), «‹voraz, ávido›, e com o latim Lemures, ‹espectros e almas dos mortos›, é bem possível.» Steven Stannish e Christine Doran (2013, 116), seguindo outros autores como Walter Burkert, por sua vez, acreditam 224

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que o nome lâmia pode estar relacionado ao Lamashtu, um ser mitológico feminino sumério considerado «comedor de crianças». Outro interessante elemento dessa personagem aparecerá nas obras do comediógrafo Aristófanes, quem menciona a Lâmia como sendo um ser possuidor de testículos, um ser híbrido, portanto. A frase que Aristófanes usa em duas obras é Λαμίας ὄρχεις ἀπλύτους, podendo ser traduzida como «da Lâmia os testículos sujos» (Paz, 758; Vespas, 1035). Aqui, então, temos a personagem como um ser horrendo. Outro elemento para causar a abjeção do leitor em relação à Lâmia é usado por Aristófanes em Vespas (1177). Em tom sarcástico, o comediógrafo mostra que, ao ser raptada por Zeus: «primeiro, por um lado, como a Lâmia, sendo capturada, peidou», na tradução de Mortoza (2013, 21). Será o historiador Diodoro Sículo, que viveu em finais do século I aEC e início do século I EC, que buscará investigar o mito das Lâmias em sua Biblioteca Histórica (20, 41, 3–5). Através de sua atividade crítica como historiador antigo, Diodoro apresenta sua ideia do mito a partir do que seria mais provável, colocando Lâmia como uma rainha da Líbia de beleza incomparável. Após perder todos os filhos que teve, a rainha teria ordenado matar todos bebês recém-nascidos do reino, o que deixou uma memória assustadora sobre seu nome. Além disso, segundo Diodoro, a rainha bebia muito, permitindo que o povo fizesse o que quisesse nesses momentos, o que causava boatos sobre ela ter arrancado seus olhos. A Lâmia ainda aparece em alguns textos como um ser comedor de crianças. Nos versos 339 e 340 da Epístola aos Pisões, escrita na segunda metade do século I aEC, Horácio diz: «No quanto queira, a peça não exija ser acreditada; nem extraia um menino vivo do ventre da lâmia que acabou 225

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de almoçar» (Tradução de Sandra Braga Bianchet et al.). E Apuleio, escritor do século II EC, se refere à feiticeira Méroe e à sua irmã como Lâmias (Lamiae) em O asno de ouro (I, 6–17). Porém, de um ser abjeto e glutão que causava asco e comia criancinhas indefesas, a Lâmia tomou nova roupagem como mulher sedutora e fatal na tradição antiga, como comentamos em relação ao texto de Filóstrato. Isso se deu por sua ligação com a personagem da Empusa. As Empusas eram criaturas mitológicas que acompanhavam Hécate, deusa múltipla e de domínios complexos, mas que, entre seus principais atributos estava a ligação com as práticas mágicas e com as feiticeiras da literatura antiga, como Medeia. Como um ser de múltiplas metamorfoses, acreditava-se que a Empusa podia se transformar em uma cadela, em uma vaca e também em uma jovem encantadora, como podemos ver nos comentários de As Rãs (290–300), de Aristófanes. Tais metamorfoses eram explicadas como forma de atrair suas vítimas (Grimal 1989, 155). Na comédia Lisístrata (1058), também de Aristófanes, uma personagem de mulher idosa é citada comparada a uma Empusa coberta de sangue. Com a característica maléfica que podemos ver na Empusa, a personagem da Lâmia tem uma breve aparição na Vulgata Latina, tradução da Bíblia para o latim, elaborada na Antiguidade Tardia. Em Isaías 34:14, temos a seguinte menção: et occurrent dæmonia onocentauris et pilosus clamabit alter ad alterum ibi cubavit lamia et invenit sibi requiem. Uma tradução sugerida para essa passagem pode ser algo como: «E os demônios se encontrarão com os onocentauros, e um sátiro chamará o outro, a lâmia encontrará um ninho para si e ali repousará» (Tradução nossa). Em traduções da Bíblia de Jerusalém dessa passagem podemos ver a Lâmia sendo trazida como Lilit, uma personagem mítica controversa presente em textos da sabedoria rabínica. 226

A presença das mulheres na Literatura e na História

Uma ressignificação mais presente no imaginário contemporâneo das Lâmias e Empusas pode ser encontrada na literatura entorno da mulher vampira e da femme fatale (a vamp). Assim é o caso da Noiva de Corinto (Die Braut von Korinth), poema de autoria de Johann Wolfgang von Goethe, publicado em 1797. É possível que a inspiração para esse poema tenha sido tanto a personagem sugadora de sangue antiga como a obra Sobre Maravilhas, de Flégon de Trales, um escritor do século II EC, onde uma noiva morta retorna para consumar o amor. Mas a narrativa de Flégon não tem o tom vampírico da noiva descrita por Goethe, o que nos remete mais a Filóstrato e a sua Empusa, nesse aspecto. Também trazendo elementos da personagem de Filóstrato, temos o poema Lamia, escrito em 1819 e publicado em 1820 pelo poeta inglês John Keats no volume Lamia, Isabella, The Eve of St. Agnes and Other Poems. O poema, com várias referências à mitologia clássica, narra a história de uma antiga mulher transformada em serpente, a Lâmia, que ajuda o deus Hermes a encontrar a ninfa mais bonita de todas em troca de receber do deus a forma humana para poder ir atrás de seu amado, um jovem de Corinto chamado Lício. Transformada em uma bela mulher, Lâmia vai para Corinto em busca de Lício que, encantado e perdido de amores por ela, a pede em casamento. No entanto, a serpente é desmascarada durante a festa das bodas pelo sábio Apolônio, o que leva ao seu desaparecimento e à morte de Lício. Diante do que foi apresentado, seguindo as observações de Sandra Gilbert e Susan Gubar (2000, 29–30), sobre a Mulher-Monstro, podemos perceber o mito das Lâmias e Empusas correspondendo a esse estereótipo, que é o inverso da idealização do feminino e pode ser traduzido em algo como um medo da mulher. É assim que podemos ver o desconhecido e o fantasmagórico que permeiam toda produção literária sobre 227

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as Lâmias e Empusas. O medo, então, traduz a imagem que os escritores nos legaram de seu outro, o feminino, assustador quando tomado de algum tipo de controle sobre personagens masculinos e visto como desenfreado e sem limites no que tange ao amor e ao sexo. Fontes históricas APULEIO. 2019. O asno de ouro. Tradução, prefácio e notas de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora 34. ARISTÓFANES. 2007. Comedias II. Introducciones, Traducción y Notas de Luis M. Macía Aparicio. Madrid: Gredos. ARISTÓFANES. 2007. Comedias III. Introducciones, Traducción y Notas de Luis M. Macía Aparicio. Madrid: Gredos. BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2017. São Paulo: Paulus. DIODORUS SICULUS. 1954. Library of History. Volume X: Books 19.66–20. Translated by Russel M. Geer. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library 390). FLÉGON DE TRALES. 2019. História, histórias e paradoxografia: Opera Omnia. Tradução, introdução e comentário de Reina Marisol Troca Pereira. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. GOETHE, J. W. 1994. The Bride of Corinth. In: GOETHE, J. W. Selected Poems. Edited by Christopher Middleton with translations by Aytoun-Martin and Christopher Middleton. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, p. 133–143. PHILOSTRATUS. 2005. The Life of Apollonius of Tyana. Books 1–4. Translated by Cristopher P. Jones. Cambridge, MA: Harvard University Press, vol. I. (Loeb Classical Library 16). KEATS, J. 2001. Complete Poems and Selected Letters of John Keats. Introduction by Edward Hirsch. New York: Modern Library. 228

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral BRANDÃO, J. 2014. Dicionário mítico-etimológico da mitologia. Petrópolis: Vozes. GILBERT, S. M.; GUBAR, S. 2000. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literary Imagination. New Haven: Yale University. GRIMAL, P. 1989. Diccionario de Mitologia Griega y Romana. Barcelona/Buenos Aires: Ediciones Paidós. BIANCHET, S. M.; MACIEL, B.; MONTEIRO, D.; AVELAR, J. (Orgs.). 2013. Epistula ad Pisones. Belo Horizonte: Laboratório de Edição – FALE/UFMG. MORTOZA, M. P. D. 2013. A velha lâmia: um catálogo de fontes antigas de um mito sangrento. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários defendida na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. STANNISH, S.; DORAN, C. 2013. Magic and Vampirism in Philostratus’s Life of Apollonius of Tyana and Bram Stoker’s Dracula, Preternature: Critical and Historical Studies on the Preternatural, vol. 2, n. 2, p. 113–138.

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MULHERES NA ANTIGA MESOPOTÂMIA Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres na Antiga Mesopotâmia

por Katia M. P. Pozzer

A assiriologia, o campo do saber relacionado à antiga Mesopotâmia, surgiu no século XIX e seu nascimento esteve associado aos interesses político-estratégicos das potências mundiais e às suas práticas colonialistas na região do Oriente Médio. Desse contexto, é possível destacar, por exemplo, a magnífica biografia de Gertrude Bell feita por Christel Mouchard (2015), onde ela reconstitui, a partir da correspondência pessoal de G. Bell, o papel desempenhado por esta figura feminina ímpar da burguesia nascente que viveu na região, e as intrincadas relações internacionais da Inglaterra com o Oriente Médio na primeira metade do século XIX. Dessa forma, desde meados do século XIX, os vestígios materiais das grandes civilizações que ocuparam este território foram objeto de sondagens e escavações arqueológicas, levadas a cabo pelos europeus e norte-americanos (Larsen 2001). Atualmente as pesquisas são dirigidas por arqueólogos e historiadores nativos da própria região, por vezes associados a equipes internacionais. Com exceção de alguns relatos de viajantes do período medieval, a história dos povos antigo-orientais foi conhecida, sobretudo, pelos relatos bíblicos e, portanto, dominada por uma visão religiosa judaico-cristã dos eventos históricos desta região do mundo. Assim, o advento da arqueologia científica, juntamente com o desenvolvimento do processo de deciframento da escrita cuneiforme, ao longo dos séculos XIX e XX, proporcionaram a consolidação do campo do saber chamado de assiriologia e permitiram a ampliação do conhecimento histórico do antigo Oriente Próximo (Lion; Michel 2011).

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Quando os estudiosos conseguiram ler e compreender a documentação proveniente destas escavações, uma outra história da antiguidade passou a ser conhecida e contada. As descobertas de construções monumentais e objetos artísticos de grande beleza, que estão na origem dos importantes museus na Europa, atraíram verdadeiras multidões interessadas nesta história. E, a partir dos milhares de tabletes cuneiformes, das inscrições parietais, das esculturas acompanhadas de textos e de uma infinidade de objetos da cultura material, foi possível conhecer, também, a existência de mulheres que deixaram sua marca na história da Mesopotâmia. A história das mulheres na antiga Mesopotâmia é, há muito tempo, um objeto de estudo na assiriologia. Segundo um levantamento realizado por Júlia Asher-Grève e Mary F. Wogec (2002), foram analisadas as publicações referentes ao período entre 1885 e 2001 e concluíram, a partir disso, que a bibliografia sobre mulheres e gênero no antigo Oriente Próximo é abundante e possui mais de um século. Um segundo estudo, organizado por Agnès Garcia-Ventura e Gioele Zisa (2017), deu sequência a este e listou mais de 270 referências publicadas entre 2002 e 2016, destacando ainda que os estudos sobre divindades femininas não foram incluídos nestes levantamentos. Estas duas publicações perfazem mais de uma centena de páginas que evidenciam um grande vigor do tema entre os especialistas. Assim, é possível afirmar que a preocupação com a temática da história das mulheres e/ou de gênero na Mesopotâmia possui larga tradição nos estudos antigo-orientais. Portanto, escrever uma breve apresentação sobre as mulheres na Mesopotâmia se constitui em um grande desafio acadêmico, pois, como bem observa Zainab Bahrani (2001), na introdução de 234

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seu livro Women of Babylon, uma obra de referência, é impossível para qualquer pesquisa histórica realizar um levantamento exaustivo de todas as obras quando o tema é «mulher». Diante disso, mais do que retomar listas exaustivas de referências bibliográficas elaboradas com extremo rigor pelas autoras supracitadas, proponho uma breve reflexão sobre a historicidade dos estudos sobre as mulheres e as investigações sobre gênero no âmbito da Mesopotâmia. Nosso objetivo é sobretudo demonstrar a diversidade do campo e estimular o surgimento de novas pesquisas em território brasileiro, como evidenciam várias publicações de jovens pesquisadoras como: Monika Otterman, Marina Cavicchioli, Simone Dupla, Simone Silva da Silva, Anita Fattori, Janaína Zdebskyi, entre outras. A história das mulheres foi durante muito tempo entendida enquanto narrativa das ações das mulheres inserida no relato mais amplo da história mundial, a qual é, por definição, uma história dos homens. A história das mulheres também foi considerada como uma história escrita por mulheres com preocupações essencialmente femininas, como a reprodução, o cuidado com as crianças, a sexualidade, a emotividade, o espaço econômico e doméstico, os trabalhos artesanais, etc. A maior parte destes estudos definiam que as mulheres estavam confinadas aos espaços domésticos, onde a família era a preocupação central e a ação feminina estava restrita à esfera privada da vida social, enquanto os estudos sobre os homens realçavam o aspecto das relações de trabalho, sua inserção na vida política, onde a esfera pública era domínio masculino. A argumentação que prevalecia era uma explicação naturalizada das diferenças entre os sexos. Adiciona-se a isso a noção de progresso unilinear, da antiguidade ao contemporâneo, onde a história das mulheres era vista como unitária e coerente, começando na Grécia e culminando no Ocidente contemporâneo. Esta noção 235

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está inextricavelmente ligada a uma visão eurocêntrica da História, onde as grandes nações imperialistas e colonialistas dominavam o mundo e onde os processos históricos das regiões ditas periféricas são desconhecidos e negligenciados. Porém, os estudos sobre a história das mulheres conheceram um profundo desenvolvimento nas últimas décadas, evidenciado por inúmeras pesquisas e publicações que daí resultaram (Scott 1992; Brooks 1997). Essa ampliação do campo da História, que incorporou a narrativa das ações das mulheres, ocorreu não apenas nos principais centros de pesquisa da Europa e dos Estados Unidos, mas também na Ásia, Oceania, Oriente Médio e América Latina. As mulheres não se tornaram apenas «objetos de estudo», elas também ganharam notoriedade nas universidades e nas várias instituições de ensino e pesquisa do mundo. Essas mudanças são o resultado de um longo (e inacabado) processo de luta pela igualdade entre homens e mulheres (Bahrani 2001; Asher-Greve 2013; Lion, Michel 2016; Stol 2016, entre outros). A primeira tarefa realizada nesse processo foi desconstruir a compreensão de uma história biológica naturalizada, baseada em uma visão universal do comportamento humano. A crítica feminista, marcada pela polarização entre homens e mulheres, mostrou que sexo e gênero são histórica e culturalmente construídos e que há uma determinação social na constituição do discurso sobre a naturalização das diferenças (Spivak 1979; Soihet 1997). Assim, os estudos sobre as mulheres estão associados ao surgimento dos movimentos feministas, cujo processo histórico pode ser dividido, para fins didáticos, em três momentos distintos, as chamadas três ondas teóricas (Bahrani 2001, 14–25). A primeira onda emergiu dos movimentos políticos feministas dos anos 1960 que combatia o viés androcêntrico e buscava identificar as mulheres na documentação histórica. 236

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O método consistia em rever a narrativa identificando a vida das mulheres, seu papel social e sua contribuição para a história. Isso se deu tanto na História, na História da Arte como na Arqueologia. Os pesquisadores da primeira onda foram responsáveis pelos primeiros esforços de inclusão dos estudos sobre a mulher na academia. Eles tentaram colocar as mulheres na história do mundo, criticavam o patriarcado e defendiam que a visão binária macho/fêmea constituída enquanto diferença biológica, era cultural e socialmente construída. A segunda onda, que iniciou nos anos 1970, deu ênfase na questão da subordinação de gênero, na opressão social e na criação de métodos que definissem as relações de gênero e sociedade. Elas colocaram a questão de gênero como categoria central da análise histórica. Sem dúvida, a definição da noção de gênero enquanto identidade socialmente construída e imposta sobre o sexo biológico foi sua maior contribuição. Ainda durante o período da segunda onda vimos surgir a discussão crítica acerca das noções de opressão e matriarcado. Bahrani (2001, 17) acrescenta que «este feminismo retorna a um matriarcado imaginário, idealizado e naturalizado no antigo Oriente Próximo e na Mesopotâmia» (Tradução nossa). A segunda onda também viu surgir o feminismo marxista, que buscou evidenciar o mundo do trabalho feminino e a inserção das mulheres na história econômica. Neste momento a noção do poder masculino era essencial, ainda que não tenha sido discutida a essência do conceito de masculinidade. Joan Scott (1986; 1995), uma das expoentes da segunda onda teórica, afirmava que duas abordagens históricas predominavam nas pesquisas. Uma era uma categoria descritiva, que não explicava ou atribuía causalidade aos fenômenos e a outra era uma categoria de ordem causal, que estabelecia uma reflexão teórica sobre a natureza dos fenômenos, buscando compreender o como e o porquê. A autora defendia que, para 237

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fazer uma história das mulheres, era preciso examinar atentamente os métodos de análise, clarificar as hipóteses e explicar como as mudanças ocorrem, articulando as inter-relações entre o sujeito individual e a organização social. Em sua definição de gênero, Scott (1995, 86) afirma que ele é o elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e também é uma forma primária de dar significado às relações de poder. Para a autora, o gênero implica em quatro elementos inter-relacionados: os símbolos (presentes na cultura); os conceitos normativos (oposição binária masculino vs. feminino); a concepção de política como referência às instituições e à organização social e a identidade subjetiva (as formas de identidade de gênero são historicamente construídas). A terceira onda data dos anos 1980 e problematizou as estruturas binárias de macho e fêmea e as relações de poder, discutindo conceitos como sexualidade, opressão e identidade branca na classe média. Este movimento incorporou a teoria dos estudos culturais e pós-coloniais, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo e a crítica epistemológica de Michel Foucault (2018 [1976]). As feministas da terceira onda afirmavam que não existia sexo a priori e que este entendimento não estava apartado de uma construção social, isto é, que as normas sociais são generificadas e a noção de sexo enquanto categoria biológica também possuía historicidade. Outras correntes teóricas também contribuíram com a terceira onda, como os estudos sobre a sexualidade, a psicanálise, as teorias queer, entre outras (D’Alleva 2013, 68). Vale destacar os estudos das feministas orientalistas que criticavam o regime epistêmico/ontológico que tomava as noções de sexo, gênero e subjetividades ocidentais modernos como conceitos universais. A partir disso, devemos salientar que a 238

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civilização mesopotâmica é originária de duas grandes culturas: uma suméria e outra acádica. A língua suméria não distinguia gênero, mas tão somente espécie humana e não-humana. Podemos afirmar que os estudos neste campo de investigação ainda necessitam ser ampliados, sobretudo quando nos referimos ao mundo antigo oriental, pois, além das dificuldades com a distância temporal que nos separa do mundo antigo e o acesso à documentação, temos uma herança historiográfica dominada por intelectuais do sexo masculino, formados nos rígidos padrões de comportamento ocidentais do final do século XIX e início do XX. Sabemos que estes fatores são determinantes na maneira de ver e interpretar as fontes antigo-orientais, e também na forma como esse conhecimento foi e continua sendo disseminado (Said 1990). Os primeiros estudos sobre a história da Mesopotâmia já mencionavam a presença de mulheres enquanto figuras históricas, como a princesa Semíramis —que também é o nome de uma das organizadoras deste compêndio e que é aqui homenageada— e Sammuramat, a esposa do rei assírio Šamsi-Adad V (824–811 aEC), que foram identificadas por Henry Rawlinson, ainda em 1854 (Asher-Grève; Wogec 2002, 2). Diferentes temas nortearam as pesquisas sobre a história das mulheres na Mesopotâmia. O objeto das primeiras publicações foi dedicado às mulheres de status social elevado, como rainhas e princesas, as relações familiares e o casamento em seus diversos aspectos legais. Mas, sem dúvida, a bibliografia mais numerosa diz respeito às relações econômicas e aos aspectos religiosos. Os temas de sexualidade e gênero aparecem mais tardiamente, sobretudo a partir dos anos 1970, com o desenvolvimento dos estudos feministas, assim como os estudos sistêmicos acerca da representação da mulher na arte mesopotâmica, que foi, por sua vez, negligenciada durante quase um século após 239

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as primeiras descobertas arqueológicas. A primeira sistematização sobre arte mesopotâmica, realizada por Henri Frankfort, eminente historiador da arte e diretor do Instituto Warburg, em Londres, foi a publicação de The Art and Architecture of the Ancient Orient, em 1950. Já os últimos vinte anos do século XXI (de 2000 até o presente) viram surgir novas temáticas, como a relação das mulheres com a escrita e com o mundo do trabalho (Charpin 2008; Michel 2009; Lion, Michel 2016). A assirióloga francesa Brigitte Lion (2007, 57) afirma que em 1986 houve um ponto de inflexão nos estudos feministas na antiga Mesopotâmia, com a realização em Paris do Encontro Internacional de Assiriologia (Rencontre International d’Assyriologie – RAI) com a temática La femme dans le Proche-Orient antique e cinco anos mais tarde, com a RAI realizada em Helsinki, em 2001, com o tema Sex and Gender in the Ancient Near East. A autora assinala, ainda, a criação, em 2000, da revista internacional NIN Journal of Gender Studies in Antiquity, com o intuito de promover o campo de estudos de gênero no Antigo Oriente Próximo e em áreas relacionadas. Outra iniciativa que merece ser mencionada foi a publicação organizada por Mark W. Chavalas, professor de História da Universidade de Wisconsin-La Crosse, e intitulada Women in the Ancient Near East, em 2014. Trata-se de uma coleção de fontes primárias sobre as mulheres das civilizações da Mesopotâmia e do Oriente Próximo, desde os primeiros textos históricos e literários do terceiro milênio aEC até o fim da autonomia política da Mesopotâmia no século VI aEC. Em sua reflexão sobre os estudos de gênero na assiriologia, Lion (2007, 60) afirma que devemos escapar do que ela chama de «armadilhas metodológicas» quando investigamos a história de gênero na Mesopotâmia. A primeira delas seria evitar a busca de modelos explicativos no mundo islâmico, como se existisse uma mulher oriental ideal e cuja submissão 240

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resistisse a todas as transformações sociais; a segunda armadilha e a mais comum é fazer comparações com o mundo clássico, privilegiando a narrativa de Heródoto, que, equivocadamente, colocou o tema da prostituição como elemento constitutivo da condição das mulheres mesopotâmicas. Outra observação presente em inúmeras investigações é a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de aplicarmos os métodos da teoria feminista contemporânea para o estudo do antigo Oriente Próximo. Existe um verdadeiro consenso de que é preciso desenvolver nosso próprio conjunto de métodos, uma vez que os materiais com que trabalhamos e a nossa relação com eles não é intercambiável com a Modernidade (Justel 2011, 380). Muitos assiriólogos discutem a problemática da identidade de gênero neste passado remoto e propõem que devamos utilizar três categorias analíticas (Bahrani 2001, 26; Breniquet 2016, 8; Lion 2007, 59). A primeira categoria diz respeito à cultura material, acessível através dos dados arqueológicos disponíveis nos relatórios de escavação amplamente publicados. A segunda categoria é baseada nos dados propriamente históricos, a partir do deciframento e leitura dos tabletes cuneiformes e que se constituem na maior parte dos estudos atualmente. A terceira categoria é fundamentada pela História da Arte, com a análise e interpretação das imagens, lembrando que cada uma destas áreas possui métodos de investigação distintos (Pozzer 2019). Os estudos feministas na História da Arte vêm produzindo importantes contribuições para se pensar a questão da representação de gênero e o trabalho de artistas mulheres (Pollock; Parker 1981). Acreditamos que a articulação de referenciais teóricos contemporâneos sobre gênero, juntamente com uma revisita às fontes, sejam elas textuais ou iconográficas, possibilita criarmos novas indagações, desconstruirmos «verdades» e 241

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estabelecermos um olhar interdisciplinar, livre de preconceitos de toda a natureza. Só assim estaremos nos aproximando do passado. Bibliografia geral ASHER-GRÈVE, J. M.; WOGEC, M. F. 2002. Women and Gender in Ancient Near Eastern Cultures: Bibliography 1885 to 2001 ad, NIN Journal of Gender Studies in Antiquity, vol. 3, p. 33–114. ASHER-GRÈVE, J. M. 2013. Women and agency: a survey from Late Uruk to the end of Ur III. In: CRAWFORD, H. (Ed.). The Sumerian World. London/New York: Routledge. p. 359–377. BAHRANI, Z. 2001. Women of Babylon. New York: Routledge. BAHRANI, Z. 2003. The Graven Image – Representation in Babylonia and Assyria. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. BROOKS, A. 1997. Postfeminisms: Feminism, Cultural Theory and Cultural Forms. London: Routledge. BRENIQUET, C. 2016. Weaving, Potting, Churning: Women at work during the Uruk period. In: LION, B.; MICHEL, C. (Eds.). The Role of Women in Work and Society in the Ancient Near East. Boston/Berlin: Walter de Gruyter, p. 8–28. BUDIN, S.; CIFARELLI, M.; GARCIA-VENTURA, A.; ALBÀ, A. M. (Eds.). 2018. Gender and Methodology in the Ancient Near East. Barcelona: Edicions Universitat de Barcelona. CHARPIN, D. 2008. Lire et Écrire à Babylone. Paris: PUF. CHAVALAS, M.W. (Ed.). 2014. Women in the Ancient Near East. London/New York: Routledge. 242

A presença das mulheres na Literatura e na História

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𒆬𒀭𒁀𒌑 › Ku-Baba

por Fábio Vergara Cerqueira

Ku-Baba foi uma rainha de Kiš, cidade reino do Norte da Suméria, região mais tarde conhecida como Acádia no último terço do terceiro milênio antes da Era Comum. Reinou durante o Período Dinástico Primitivo III, que transcorreu entre 2500 e 2350 aEC, quando iniciou o Império Acadiano com Sargão. Apesar da possível origem semita, seu nome era sumério: Kug-dBa-u, daí derivando as variações, Kubau, Ku(g)-Baba e Ku-Baba, onde Ku corresponderia a «sagrado» e d equivale a «dingir», desinência suméria (não verbalizada) que na escrita cuneiforme indicava divindade, de modo que Baba se referiria ao nome de uma deusa suméria (padroeira de Girsu, esposa do deus Ningirsu, conhecida como «mulher bonita» ou «mulher bondosa»), e, por ser o nome de uma deusa, Baba deve ser grafado com maiúscula. É preciso tomar cuidado para se diferenciar a rainha da deusa homônima, cujo culto está bem atestado em contexto hurrita e hitita entre o final do segundo milênio e o primeiro terço do primeiro. J. D. Dawkins (1983, 257) considera a relação entre as duas improvável, por não identificar na documentação ponte cronológica e espacial entre os dois nomes. Outros autores, mais recentemente, acham possível a deusa hurrita, «Senhora de Karkemiš», derivar de uma divinização da própria rainha de Kiš, iniciada talvez pelo filho que a sucedeu. A historicidade da rainha Ku-Baba foi colocada por muito tempo em xeque. D. O. Edzard (1983, 299) considera-a «uma das mais significativas mulheres lendárias da história mesopotâmica» (grifo nosso), circunscrevendo-a ao domínio da lenda, e

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não da História. A principal referência a Ku-Baba se encontra na Lista Real Suméria, produzida em várias versões entre finais do terceiro e início do segundo milênio, com base em material acadiano. A mais antiga é do Período Ur III (2112–2004), da Renascença Suméria, e tinha o escopo de listar os reis que governaram as cidades sumérias e apontar como o nam-lugal, princípio de realeza suprema —de hegemonia de uma cidade e de um rei sobre toda a região—, foi sendo transferido de uma cidade-reino a outra, conforme vontade divina. As diferentes versões convergem quanto à importância da cidade de Kiš, como a primeira a receber a realeza suprema após o período diluviano. Nesta lista, é difícil se verificar a historicidade de boa parte dos soberanos antediluvianos, cujos reinos teriam durado milhares de anos. A duração dos reinos pós-diluvianos é menos longa, mesmo assim, nas primeiras dinastias pode durar mais de uma centena de anos, aspecto lendário inerente às memórias mais recuadas, que não implica a ausência de historicidade destes reis. Segundo versões amoritas menos antigas, entre elas o Prisma de Weld-Blundell —versão mais bem conservada, de c. 1800 aEC, encontrada em Larsa e conservada em Oxford— Ku-Baba teria sido a fundadora e única governante da III Dinastia de Kiš e teria conquistado a supremacia real após ter vencido o reino do Mari, o qual detivera a hegemonia por seis reinados. O Prisma de Oxford, linha 223, relata então que, após essa vitória, «Kug-Bau, a taberneira, que tornou firmes as fundações de Kiš, tornou-se rei (lugal)» (grifo nosso), acrescentando que ela teria governado por cem anos. Algum tempo depois, Kiš teria sido derrotada e a realeza tomada pela cidade de Akšak. Depois de curto período de exercício do nam-lugal (supremacia real) por Akšak, o princípio de hegemonia teria retornado a Kiš, para a «Casa de Ku-Baba», em seguida iniciando o reinado de seu filho, que, junto com o neto, teriam governado 246

A presença das mulheres na Literatura e na História

ao todo por 31 anos, tempo que corresponderia à IV Dinastia de Kiš. Contudo, as listas neo-sumérias mais antigas, do séc. XXI aEC, não apresentam esta interrupção, apontando a existência de um única dinastia, iniciada pela rainha Ku-Baba — em um reino que, com contagem lendária, teria durado um século— que foi sucedida por seu filho Puzur-Suen e seu neto Urzababa, cujos reinados teriam durado respectivamente 25 e 6 anos, dando lugar, a seguir, ao reinado de Sargão, com capital na vizinha Akkad. Ao se falar em rainhas, precisamos diferenciar rainhas consortes (esposas reais com título), rainhas regentes (quando o rei falece deixando um sucessor menor de idade e a esposa ou uma irmã exerce a função real como regente, até que o herdeiro alcance a idade para a coroação) e rainhas de direito e de fato, que governam elas mesmas, sozinhas. Em qual caso Ku-Baba se inseriria? No sumério, as rainhas consortes são designadas ereš, ou seja, esposa do rei governante. Não é este o termo empregado com relação a Ku-Baba. Na lista real, ela é tratada com o título real de lugal, portanto, governante em si. Por essa razão, muitos a têm considerado a primeira mulher governante da história a reinar de modo independente, 500 anos antes de Sobekneferu, faraona do final da XII Dinastia e primeira mulher a comprovadamente governar o Egito. E como compreender a dimensão histórica do poder de Ku-Baba? Importante recuperar alguns fatos que se depreendem da lista. Depois de um período de perda de autonomia de Kiš, ela tem êxito em libertar a cidade do domínio de Uruk, posteriormente recebendo o nam-lugal (princípio de hegemonia real sobre a Mesopotâmia), após derrotar o rei Sharrum-iter do Mari, cidade que havia mantido a realeza por seis reinados. Isso indica duas importantes conquistas militares. No entanto, a Lista Real Suméria aponta que em certo momento Kiš foi derrotada por Akšak, que assim teria conquistado supremacia. 247

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Conforme outra fonte importante, a Crônica da Esagila (assim chamava-se o templo de Marduk), conhecida como Crônica Weidner (ABC 19), a «Casa de Ku-Baba» teria recuperado a realeza. Assim, ao longo de seu reinado, a rainha em certo momento teria precisado disputar o poder regional com Akšak, primeiro sofrendo uma derrota, mas depois revertendo a situação a seu favor. A crônica informa ainda que ela se tornou então «soberana sobre todo o mundo» (no caso, toda a Suméria). Três fatos ainda precisam ser salientados, quanto a seu poderio: primeiro, seu epíteto é o mais longo da lista, o que indica que para os escribas ela era digna de nota; segundo, conforme a lista, ela teria «tornado firmes as fundações de Kiš», de onde se depreende não somente uma boa administração, mas também um reforço das defesas; outro fato a ser ressaltado é a capacidade de uma mulher dar início a uma dinastia e criar as condições para garantir a sucessão por duas gerações. No Egito, três das faraonas conhecidas deram fim às suas dinastias (Sobekneferu da XII Dinastia, Taousert da XIX e Cleópatra VII), a que se associa um estigma de declínio político ou fracasso. Iniciar uma dinastia e ter longo reinado é, portanto, um forte indicador de poder. A combinação entre a Crônica da Esagila e a lista real nos permite interpretar que Ku-Baba teve um governo forte e longo, reinando até idade avançada, quando passou o trono a seu filho. Seguramente não teria governado por 100 anos como quer a lista real, mas é provável que tenha sido um período bem mais longo que o governo dos sucessores, iniciando na juventude e permanecendo por cerca de meio século na função. Podemos inferir outras questões: quem era Ku-Baba para tornar-se uma rainha e como ascendeu ao poder? A tradução do seu epíteto permite pensar tanto em uma taberneira como em uma cervejeira. O termo taberneira é ambíguo do ponto de vista socioeconômico: pode referir a proprietária do 248

A presença das mulheres na Literatura e na História

estabelecimento ou a atendente do bar, garçonete. Por taberna entende-se tanto um local em que se pode comer e beber, quanto uma hospedaria, onde se serve a bebida mais estimada, a cerveja, mas também um lugar que possibilita encontros sexuais, como está bem registrado pela iconografia. A dignidade associada a esta função de taberneira depende de como ela se posiciona frente a estas possibilidades vinculadas à taberna. Se for proprietária ou filha de um casal de proprietários, é uma condição econômica razoável, e não necessariamente mal vista, pois não precisaria fazer o trabalho menos prestigioso. Se for uma atendente, independentemente de prestar ou não serviços sexuais, seria vista como de uma condição inferior. Quanto à possível identificação com uma cervejeira, vale lembrar que na Mesopotâmia antiga era um ofício frequentemente desempenhado por mulheres, e que, segundo alguns autores, desfrutaria de algum prestígio, dado o sentido sagrado da cerveja e sua associação à deusa Inanna-Ištar. Alguns assiriólogos, como Julia Assante (2002), entendem que a taberneira era uma ocupação feminina respeitável na Mesopotâmia antiga. Carole R. Fontaine (2005, 196), baseada nestes fatores, conclui que Ku-Baba «seria não um tipo de prostituta, mas uma bem-sucedida mulher de negócios com associações divinas». Outros estudiosos, como Jerald Jack Starr (2017) consideram um pouco exagerada esta visão da origem social da rainha como uma mulher de condição social elevada, tendendo a associá-la a setores mais populares ou médios, julgando possível sua acepção como uma filha dos proprietários de uma taberna razoavelmente respeitável e, mesmo que não fosse de uma condição completamente subalterna, sua origem poderia ter despertado identificação popular, o que teria contribuído para sua estabilidade como governante e para seu apreço pelos pósteros. Vemos dois modelos antagônicos para interpretar sua origem social: uma mulher mais nobre ou burguesa, o que 249

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teria tornado seu casamento real mais aceitável para as elites, ou uma mulher de família mediana ou do povo, o que despertaria ainda mais dúvidas sobre sua ascensão à condição de rainha. Podemos formular diferentes hipóteses sobre como se tornou rainha, seja ela proprietária ou filha de proprietários de uma taverna, uma garçonete ou uma cervejeira. Pode-se deduzir, na linha de raciocínio de J. J. Starr, que ela ainda jovem se associara à casa governante de Kiš —quando a cidade estava ainda sob domínio do rei Enshakuhanna de Uruk— por meio do casamento não com o rei propriamente, mas com um príncipe, que acaba tornando-se rei (neste casamento ela não seria, no início, necessariamente a esposa principal). Talvez fosse uma jovem muito bela, espécie de Cinderela mesopotâmica, que teria conquistado o príncipe, o qual, falecendo ainda jovem, a teria deixado como rainha, seja na condição de regente, caso este tivesse um sucessor ainda criança, ou, o mais provável, na condição de rainha independente, como viúva de um rei sem herdeiros. Contudo, para a jovem viúva firmar-se no poder era necessário que já tivesse despertado respeitabilidade e aceitação por suas qualidades vinculadas ao universo do poder, marcadamente masculino. Sem dúvida uma mulher excepcional, no sentido de ter rompido as barreiras da falocracia, vista por muitos como a primeira rainha de fato da História. Vale a pena voltarmos à Crônica da Esagila (ABC 19) —texto propagandístico do poder de Marduk e da cidade de Babel, que recua a antiguidade da ascendência deste deus na região— a qual apresenta uma explicação para sua ascensão à realeza, legitimada pelo deus Marduk (algo anacrônico para a época de Ku-Baba). Interessa-nos o argumento apresentado para dar legitimidade divina ao exercício do poder real de direito e como rainha independente. O fato teria ocorrido durante o reino de Puzur-Nirah, rei de Akšak, quando «Kubaba deu pão e água ao pescador de água doce do templo 250

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de Marduk, e fez que este oferecesse peixe ao templo do deus», o qual decidiu favorecer a futura rainha de Kiš: «Marduk confiou a Ku-Baba, a taberneira, a soberania sobre todo o mundo». Ficaria por completo descaracterizada a condição de usurpadora do poder que a propaganda acadiana talvez quisesse associar a ela, para colocar assim Sargão como rei legítimo, ao derrubar do trono o rei do Kiš, Urzababa, neto de Ku-Baba. Essa narrativa também geraria maior proximidade da rainha a um princípio divino, compatível com a possibilidade de que o filho dela, Puzur-Suen, tivesse iniciado um culto em sua homenagem, o qual Sargão teria se empenhado em banir, como quer J. J. Starr. A memória da rainha de Kiš ganha mais tarde componentes místicos, como aponta o «presságio de Ku-Baba», que previa a esterilidade das terras de um reino quando nascia uma criança com genitálias masculinas e femininas, algo que na mentalidade política falocrática das elites assemelharia a uma mulher exercer a função masculina de lugal, palavra que não comporta forma feminina (Fontaine 2005, 19). Essa associação pode ser efeito de uma propaganda sargônica que queria caracterizá-la como usurpadora, fracassando porém em apagar da memória que foi uma grande governante. Entretanto, não dispomos de registros iconográficos da rainha, não se podendo deduzir sua imagem do modelo iconográfico conhecido para representar a deusa hitito-hurrita Kubaba, que tem como atributos uma romã, um espelho e um alto polos (coroa). Na web, erroneamente divulga-se como imagem da rainha de Kiš um relevo hitita da deusa Kubaba. Ku-Baba tem despertado interesse como símbolo de poder político da mulher, dada a influência feminista sobre o olhar da História hoje, retirando-a aos poucos da invisibilidade a que havia sido condenada pela historiografia moderna e colocando-a no honroso lugar de primeira mulher governante 251

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da História, posto recentemente ameaçado por Pu-abi de Ur, que alguns agora advogam a possibilidade de ter governado como rainha independente um século antes. Fonte histórica ABC – Grayson, A. K. 1975. Assyrian and Babylonian Chronicles, n. 19 (The Weidner ʿChronicleʾ). Bibliografia geral ASSANTE, J. 2002. Sex, Magic and the Liminal Body in the Erotic Art and Texts of the Old Babylonian Period. In: PARPOLA, S.; WHITING, R. M. (Eds.) Sex and Gender in the Ancient Near East. Helsinki: Neo-Assyirian Text Project, 1, p. 27–52. CARLY, S. 2020. Kubaba, a Queen Among Kings, ThoughtCo, Aug. 26. Disponível em: thoughtco.com/kubaba-a-queen-among-kings-121164. Acesso em 09 dez. 2021. COTTIER, C. 2021. Queen Kubaba: The Tavern Keeper Who Became the First Female Ruler in History. Some 4,500 years ago, a woman rose to power and reigned over one of the largest civilizations in ancient Mesopotamia, Discovery, The Magazine. Disponível em: https://www.discovermagazine.com/planet-earth/queen-kubaba-the-tavern-keeper-who-became-the-first-female-ruler-in-history. Acesso em 10 dez. 2021. EDZARD, D. O. 1983. Ku(g)-Baba. Reallexikon der Assyriologie und vorderasiatischen Archäologie, vol. 6, p. 299. Disponível em: http://publikationen.badw.de/en/rla/index#6674. Acesso em 10 dez. 2021. 252

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𒂗𒃶𒌌𒀭𒈾 › E

nheduana

por Janaina de Fátima Zdebskyi

A escrita da história ainda é um campo bastante masculino, por ser constituída majoritariamente por homens que falam sobre histórias de homens, porém, existem mulheres que escrevem desde que os sistemas de escrita foram criados. En-ḫedu-ana, com transliteração de seu nome do acádico como en-ḫe2-du7-n-nam, traduzido para En-ḫedu-ana/En-edu-ana e simplificado como Enheduana, escreveu alguns dos textos e poemas mais antigos que podemos ter acesso atualmente. A «invenção» da «escrita» é justamente o processo que marca a divisão dos períodos entre Pré-história (ou que podemos chamar de História Pré-escrita) e História Antiga. Os primeiros sinais de um sistema de escrita aparecem em fontes do Sul da Mesopotâmia no final do quarto milênio, formados por sinais desenhados com um objeto em forma de cunha em tábuas de argila úmida. Chamamos essa escrita de cuneiforme, de cuneus, o latim para cunha (Algaze 2013, 97). A natureza dessa escrita mudou de um sistema logográfico, aquele cujos signos representavam palavras, para um sistema misto, em parte logográgico e em parte fonográfico, de forma que esses sinais, com o tempo, foram se tornando formas mais abstratas (Algaze 2013, 97). No contexto da antiga Mesopotâmia, temos a vigência de duas línguas, o sumério e posteriormente o acádico, sendo que ambas conviveram simultaneamente durante a maior parte do tempo, mas o sumério passou a ser utilizado majoritariamente como língua oficial para escrita de textos sagrados. Atualmente, temos conhecimento

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de um grande compilado de produções de literatura suméria, entre mitos, poemas, hinos, documentos oficiais e presságios astrológicos. Nesse contexto, durante a dinastia Sargônica (2371–2316 aEC), no império sumero-acádico, viveu Enheduana, filha do governante local Sargão I (Ottermann 2006, 4). Enheduana foi nomeada por seu pai como sumo sacerdotisa do templo do deus lunar Nana, na cidade de Ur (Ottermann 2006, 5). Enquanto sacerdotisa, ela dedicou sua vida às práticas religiosas locais, de grande importância para toda a vida social, política e econômica no contexto mesopotâmico. Além disso, Enheduana pode ser considerada como a primeira autora conhecida e ganhou um lugar central na cultura literária do antigo Iraque (Helle 2019, 1), pois também se dedicou a escrever hinos e poemas que nos trazem informações sobre a organização do templo, sobre os cultos atribuídos à deusa tutelar Ištar/Inanna e seus atributos divinos, bem como outras divindades do panteão local, como o próprio Nana. Atualmente, temos acesso a textos que provavelmente foram escritos por Enheduana em um banco de dados de literatura sumeriana, ou seja, textos escritos em língua suméria que foram transliterados e traduzidos para o inglês pelo «The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (ETCSL)», um projeto da Universidade de Oxford que dispõe de um acervo digital com uma seleção de quase 400 composições literárias que vêm da antiga Mesopotâmia (Iraque moderno) e datam do final do terceiro e início do segundo milênio aEC. Dentre esses textos disponíveis no acervo digital, temos quatro composições que na classificação do banco de dados são creditadas a Enheduana, sobretudo por terem seu nome citado em primeira pessoa na narrativa dos poemas. Esses textos são intitulados como «A hymn to Inana (Inana C)»; «A balbale to Nanna (Nanna C)»; «The exaltation of Inana (Inana B)» e «The temple 256

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hymns», tratando-se assim de poemas dedicados à deusa Inanna, divindade do sexo, fertilidade e guerra e ao deus lunar Nanna, além de um poema dedicado ao templo. Nessas narrativas, temos menções em primeira pessoa onde Enheduana se identifica como escritora, executando o feito de assinar um poema como «autora», dizendo: «O compilador dos tablets foi En-ḫedu-ana. Meu rei, algo foi criado que ninguém criou antes» (En-ḫedu-ana. The temple hymns. 543–544) ou «Eu sou En-edu-ana, a sacerdotisa do deus da lua. ......; Eu sou o... de Nanna» (En-ḫedu-ana. A hymn to Inana (Inana C). 219–242), se identificando enquanto sacerdotisa do templo do deus Nanna. Sobre a história de Enheduana como escritora ou escriba, como costumamos chamar a função no contexto mesopotâmico, temos à disposição um curta-metragem em forma de animação em português, chamado «Quem foi o primeiro escritor do mundo?», produzido por Soraya Field Fiorino para o ted.com. Sobre a função exercida por Enheduana enquanto sacerdotisa do templo, em outro poema, dedicado à Inanna, Enheduana fala sobre suas tarefas sacerdotais, de se dispor ao serviço da deusa, carregando a cesta ritual, entoando canções, levando oferendas funerárias e recitando orações para a deusa (En-ḫedu-ana. The exaltation of Inana (Inana B). 66–90). O sacerdócio na Mesopotâmia se constituía como um papel social de grande relevância, uma posição tão elevada que ultrapassava a esfera religiosa, sendo também um cargo político e econômico, o que permitiu que registros de suas atividades ficassem gravados nos textos literários produzidos no período, mas também em outros documentos, inclusive códigos de leis e transações administrativas (Dupla, 2020, 1). É importante precisar que a palavra «sacerdócio» ou «sacerdotisa» é posterior e que, no contexto da Mesopotâmia, havia diferentes denominações utilizadas para classificar a autoridade religiosa encarregada das funções do 257

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templo e de culto de determinada divindade do panteão local, sendo que as denominações sofriam mudanças dependendo de seu nível hierárquico e das funções desempenhadas. O Código de Hammurabi, um compilado de leis e regras do reino babilônico de Hammurabi, nos apresenta a nomenclatura utilizada para diferentes classes de sacerdotisas. No parágrafo 180 consta que se um pai não tiver dado um dote a uma filha que seja nadῑtum de um gagûm ou sekretum, quando o pai morrer a filha receberá bens da casa paterna para usufruir em vida, os quais posteriormente seriam destinados aos seus irmãos (Hammurabi. Código de Hammurabi. §180). Além de mencionar essas diferentes nomenclaturas para uma mulher consagrada ao templo, o código nos enfatiza a legislação sobre aspectos de sua vida, tanto de que a dedicação ao sacerdócio no templo passa pela decisão do pai, quanto a indicação provável de que essas mulheres que serviam no templo não se casavam, considerando o direito à herança paterna por não terem recebido um dote, no sentido de garantir a subsistência dessas mulheres. Essas mesmas questões são enfatizadas em outra lei, nesse caso o parágrafo 181, que também menciona outras nomenclaturas para mulheres consagradas ao templo. Nesse parágrafo consta que um pai pode consagrar sua filha como nadῑtum, qadištum ou kulmašῑtum e estabelece que no caso de essa filha consagrada não ter recebido um dote de presente do pai, ela teria direito de receber um terço dos bens da casa paterna como herança, porém essa herança lhe pertencia somente enquanto vivesse e depois de sua morte seria destinada aos seus irmãos do sexo masculino (Hammurabi. Código de Hammurabi. §181). Emanuel Bouzon coloca em notas explicativas maiores informações a respeito dessas mulheres dedicadas ao culto, afirmando que os parágrafos 180 e 181 são destinados justamente a «regulamentar os meios de subsistência de um grupo 258

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de mulheres, consagradas ao serviço do culto, e que não receberam de seu pai um dote» (Bouzon 1992, 173). O autor também faz discussões a respeito das terminologias, afirmando que o parágrafo 181 trata de três classes diferentes de sacerdotisas, Além de serem diferenciadas em classes de sacerdotisas expressas nas três diferentes terminologias, essas mulheres dedicadas aos serviços do templo também podiam gozar de privilégios dependendo do deus a quem eram consagradas. O §182 do Código de Hammurabi, por exemplo, coloca que se um pai não der um dote à sua filha nadῑtum consagrada ao deus Marduk de Babel, quando ele vier a morrer, mesmo não tendo escrito um documento selado, a filha tem direito a um terço de sua herança que poderá usar como lhe agradar (Hammurabi. Código de Hammurabi. §182). Nesse sentido, tanto as leis do Código de Hammurabi — que destacam a relevância social das sacerdotisas no contexto babilônico e legislam sobre a garantia de direitos reservados a elas — quanto os hinos e poemas, provavelmente escritos por Enheduana e assinados por ela, que chegaram até nós, evidenciam a importância de Enheduana como personagem histórica, tanto para a história social e religiosa da Mesopotâmia, quanto para a história da escrita em suas primeiras formas de registro. Fontes históricas ETCSL. A balbale to Nanna (Nanna C). Disponível em: The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (ox.ac.uk). Acesso em: 8 abr. 2020. ETCSL. A hymn to Inana (Inana C). Disponível em: The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (ox.ac.uk). Acesso em: 8 abr. 2020. 259

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ETCSL. The exaltation of Inana (Inana B). Disponível em: The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (ox.ac.uk). Acesso em: 8 abr. 2020. ETCSL. The temple hymns. Disponível em: The Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (ox.ac.uk). Acesso em: 8 abr. 2020. BOUZON, E. 1992. O Código de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 1992. Bibliografia geral ALGAZE, G. 2013. The end of prehistory and the Uruk period. In: CRAWFORD, H. (Org.). The Sumerian World. London/New York: Routledge. p. 68–94. DUPLA, S. 2020. Sacerdócio Feminino na Antiga Mesopotâmia, NEARCO: Revista Eletrônica de Antiguidade, vol. 12, n. 2, p. 314–333. HELLE, S. 2019. Enheduana and the Invention of Authorship, Authorship, vol. 8, n. 1, p. 1–20. OTTERMANN, M. 2006. Morte e Ressurreição na Suméria: A “Descida ao Inferno” de Inana e de Dumuzi e processos de posse e perda de poderes divinos e humanos, Oracula, vol. 2, n. 3, p. 1–17.

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› Tarām-Kūbi & Šīmat-Aššur

por Anita Fattori

No início do segundo milênio, mais especificamente durante os séculos XIX e XVIII Antes da Era Comum, a cidade de Assur (atual Al-Sharqat, no Iraque), situada à margem ocidental do Rio Tigre, no norte da Mesopotâmia, estava envolvida em uma extensa rede comercial inter-regional de longa distância, ocupando um lugar de destaque no eixo Mesopotâmia-Anatólia. Organizados em firmas familiares, os assírios percorriam cerca de mil quilômetros para comercializar estanho e tecidos em troca de ouro e prata. Tarām-Kūbi e Šīmat-Aššur faziam parte dessas famílias. Essa longa rota continha dezenas de entrepostos comerciais que tanto viabilizaram as longas viagens, como também tinham sua participação na rede comercial. Dentre eles, a relação mais extensa e regular se deu com Kaneš, localizada próxima à atual vila turca de Kültepe, onde membros dessas famílias fixaram residência por longos períodos. Innaya, marido de Tarām-Kūbi, é um exemplo de mercador que viveu por cerca de vinte anos, a maior parte de sua vida adulta, em Kaneš, enquanto a sua esposa permaneceu em Assur. O registro das transações comerciais e das mensagens que eram intercambiadas entre as pessoas (as cartas) eram realizados em pequenos pedaços de argila, os tabletes, escritos em língua acadiana e fazendo uso do sistema de escrita cuneiforme. Junto com as mercadorias, a enorme quantidade de informação gerada, ou seja, a grande quantidade de tabletes cuneiformes produzidos pelas pessoas que participavam dessa

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

complexa rede comercial, era armazenada em depósitos que, em acadiano, recebiam o nome de maknakum-o quarto selado ou maṣṣartum-o depósito vigiado, dentro das casas de Assur e de Kaneš. Graças aos arquivos dos mercadores assírios encontrados em suas casas em Kaneš, conhecemos um pouco sobre a vida e a atuação de Tarām-Kūbi e Šīmat-Aššur nas redes de comércio. Além de documentos que fazem referência aos seus nomes ou a mercadorias enviadas ou recebidas por elas, nossa maior fonte sobre a sua história são as quinze cartas intercambiadas entre essas mulheres e seus maridos, seus filhos, seus irmãos e os representantes e parceiros comerciais deles: onze cartas enviadas ou recebidas por Tarām-Kūbi, três cartas enviadas ou recebidas por Tarām-Kūbi e Šīmat-Aššur juntas, e uma carta enviada por Šīmat-Aššur, que nos possibilita ouvir as suas vozes. Apesar da edição completa (transliteração e tradução) dos documentos conhecidos dos arquivos encontrados nas casas de Innaya e Imdī-ilum em Kaneš (Ichisar 1981; Michel 1991), foi a assirióloga Cécile Michel quem dedicou maior atenção à vida dessas mulheres ao publicar o conjunto de suas cartas no capítulo «Correspondência Feminina», em Correspondance des marchands de Kaniš au début du IIe millénaire avant J.-C. (2001, 464–470). Recentemente, a autora apresentou um retrato sobre as suas vidas no livro Women from Aššur and Kaniš. Writings from the Ancient Word (2020, 426–434). Muitas foram as hipóteses sobre a relação entre essas duas mulheres, sendo a mais aceita a de que seriam filhas de Šu-Labān e irmãs do conhecido mercador Imdī-ilum. Nas cartas que aparecem juntas como remetentes, o nome de Tarām-Kūbi sempre vem em primeiro lugar, nos levando a assumir que ela era a mais velha entre as duas. Sabemos que ela foi casada com Innaya, outro conhecido mercador assírio, e conhecemos o nome de cinco filhos homens do casal. Além 262

A presença das mulheres na Literatura e na História

da relação com sua família de origem, ou seja, com sua irmã Šīmat-Aššur e seu irmão Imdī-ilum, ela se insere em um novo espaço de relações: o da família e das redes de contato comercial de seu marido. Diferente de Tarām-Kūbi, pouco sabemos sobre a vida de Šīmat-Aššur. Elas viveram em Assur durante toda sua vida e atuaram em diferentes segmentos dentro das firmas familiares. Além dos tecidos produzidos para a vestimenta das pessoas que habitavam a unidade doméstica, elas produziam uma grande quantidade de tecidos que eram enviados para Kaneš para serem comercializados na Anatólia. Tarām-Kūbi enviava tecidos de diversas qualidades para o marido e, junto com a irmã Šīmat-Aššur, também enviava tecidos para o irmão Imdī-ilum. Apesar de recibos, contratos e notas de transporte atestarem o recebimento de prata e ouro pelo pagamento dos tecidos, elas enviavam cartas aos homens cobrando o pagamento devido pela produção e também questionando o baixo valor recebido como pagamento. Elas também participavam ativamente das transações comerciais da família. Tarām-Kūbi é responsável por manter Innaya informado sobre as atividades dos representantes e parceiros em Assur, sobre a aquisição de bens, como a compra de uma nova casa, e da tomada de empréstimo junto aos credores. Além de mantê-lo a par dos negócios, ela lida com diversos problemas práticos, que em algumas ocasiões a levam a atuar como representante legal do marido frente à administração central de Assur, por exemplo quando Innaya realiza o comércio fraudulento de lápis-lazúli-ḫusārum e de ferro-aši’um, que tinham sua circulação limitada e controlada pelas autoridades de Assur e de Kaneš, ela se dirige às autoridades para pagar a taxa devida. Também se dirige à administração central para pagar a dívida da firma de um sujeito chamado Adada, um provável parceiro comercial da família. 263

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Tarām-Kūbi cuidava dos arquivos e protegia o acesso aos tabletes e as mercadorias armazenados na sua casa em Assur, também enviava informações detalhadas para o marido sobre quais tabletes foram pegos e por quem. Dentro de um depósito podiam ter centenas, às vezes milhares, de tabletes cuneiformes, inclusive de pessoas que não necessariamente faziam parte da família nuclear. Eles eram organizados e etiquetados em cestas, caixas ou jarros de cerâmica. Esse fato nos leva a pensar na possibilidade de que Tarām-Kūbi dominasse, mesmo que instrumentalmente, a escrita e a leitura dos tabletes, já que tinha responsabilidade no controle da circulação de informações. Além da participação direta nas atividades da firma da família, a partir da inserção nessa extensa rede de relações, Tarām-Kūbi e Šīmat-Aššur realizavam transações de interesses próprios. O acúmulo de bens pessoais se dava não apenas a partir de sua herança (dote), mas também a partir da prata que ganhavam pela venda dos seus tecidos. Com essa prata podiam fabricar mais peças de tecidos e confiar a sua venda aos homens da família ou realizar negócios com outros mercadores, ao mesmo tempo que atuavam como credoras de prata no campo do empréstimo a juros. Em duas ocasiões elas emprestam dinheiro para o seu irmão. Na primeira, aparecem juntas como credoras de um grande empréstimo de 10 quilos de prata e, em uma segunda ocasião, Šīmat-Aššur aparece sozinha como credora de ca. 1,5 quilos de prata. Parte desses empréstimos contraídos pelos representantes de Imdī-ilum foram utilizados para a aquisição de casas. O ganho recebido pela fabricação de tecidos e pelo acúmulo derivado de investimentos autônomos também era usado para a manutenção da unidade doméstica, como a aquisição de provisões para seus filhos e servos. Além de se relacionar com sua irmã, Tarām-Kūbi atuava junto a mulheres de outras famílias. Em um contrato de transporte, ela recebe junto com Lamassī, membro de outra 264

A presença das mulheres na Literatura e na História

família mercadora, cerca de 80 gramas de prata. Essa prata foi enviada de Kaneš para Assur por uma terceira mulher, Tariša, evidenciando a existência de redes de contato e colaborações femininas. O motivo do envio da prata não é especificado no documento. Pouco sabemos sobre a vida das mulheres comuns na antiga Mesopotâmia, já que a maior parte das fontes trata ou sobre a vida das mulheres da elite, como sacerdotisas e rainhas, ou sobre aspectos jurídicos da organização do cotidiano familiar, como os códigos de leis. Nesse sentido, informações sobre o cotidiano de mulheres como Tarām-Kūbi e Šīmat-Aššur são pouco comuns para os estudos assiriológicos. Por muito tempo, estudiosos abordaram a participação dessas mulheres assírias sem se atentarem à sua agência, ou seja, a sua capacidade de ação e transformação de suas experiências no mundo. A sua atuação nas redes de comércio só existiria quando os homens da família se ausentavam e lhes cediam o protagonismo, o lugar da ação. Se por um lado elas só se tornavam sujeitos históricos quando ocupavam lugares pensados como masculinos, atuando em âmbitos considerados públicos, por outro, as tarefas realizadas no domínio doméstico, compreendidas como parte da vida privada, não eram contabilizadas ou pensadas dentro de um quadro amplo das experiências sociais. Ao olharmos para a atuação de Tarām-Kūbi e Šīmat-Aššur a partir do ponto de vista dos estudos de gênero podemos observar uma agência que não se constitui em ações consideradas de protagonismo, devido à ausência dos homens, ou na excepcionalidade do que se considera «natural» em termos de atuação social das mulheres mesopotâmicas. Ao contrário, temos a possibilidade de ver a vida e o cotidiano de mulheres comuns dentro da teia de relacionamentos que faziam parte. 265

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Nesse sentido, as evidências nos permitem considerá-las como verdadeiras mulheres de negócio, expressão empregada pela primeira vez pelo assiriólogo Paul Garelli (1979). Fontes históricas CLAY, A. 1927 Babylonian Inscriptions in the Collection of James B. Nies. Volume 4. Letters and Transactions from Cappadocia. New Haven: Yale University Press, prancha XLI, número 91 = BIN 4, 91. CONTENAU, G. 1920. Tablettes Cappadociennes. Textes cunéiformes, Musée du Louvre, vol. 4. Paris: Librarie Paul Geuthner, prancha 5 = TCL 4, 5. HECKER, K.; KRYSZAT, G.; MATOUŠ, L. 1998. Kappadokische Keilschrifttafeln aus den Sammlungen der Karlsuniversität Prag. Inscriptions Cunéiformes du Kultépé, vol. 4. Praga: Univerzita Karlova, p. 140–141 = ICK 4, 547. ICHISAR, M. 1981. Les Archives cappadociennes du marchand Imdīlum. Paris: Éditions A.D.P.F, p. 339 = LB 1296. LARSEN, M. T. 2018. Ankara Kültepe Tablets or Texts. Volume 6d. Ankara: Türk Tarih Kurumu, p. 46 = AKT 6d, 770. MICHEL, C. 1987. Nouvelles Tablettes Cappadociennes du Louvre. Revue d’Assyriologie et d’Archéologie Oriental, vol. 81, p. 18–19; 24 = RA 81, 7; 15. MICHEL, C. 2020 Women of Assur and Kanesh: Texts from the Archives of Assyrian Merchants. Atlanta: SBL, p. 433–434 = MICHEL 2020, 290. MOREN, S. M. 1981. Four Old Assyrian Tablets in a Private Collection. Orientalia Nova Series, vol. 50, p. 101 = OrNS 50, 101. SMITH, S. 1925. Cuneiform Texts from Cappadocian Tablets in the British Museum, vol. 3. Londres: BMP, prancha 23b; 24; 25 = CCT 3, 23b; 24; 25. 266

A presença das mulheres na Literatura e na História

SMITH, S. 1927. Cuneiform Texts from Cappadocian Tablets in the British Museum, vol. 4. Londres: BMP, prancha 24a = CCT 4, 24a. STEPHENS, F. 1944. Babylonian Inscriptions in the Collection of James B. Nies. Volume 6. Old Assyrian Letters and Business Documents. New Haven: Yale University Press, prancha XVIII, número 46; prancha XXXVII, número 90 = BIN 6, 46; 90 Bibliografia geral GARELLI, P. 1979. Femmes d’affairesen Assyrie. In: KRÁSA, M. (Ed.) Archív Orientální. Quarterly Journal of African and Asian Studies, v. 47. Praga: Oriental Institute p. 42–48. ICHISAR, M. 1981. Les Archives cappadociennes du marchand Imdīlum. Paris: Éditions A.D.P.F. MICHEL, C. 1991. Innāya dans les tablettes paléo-assyriennes. Vol. 1 e 2. Paris: Éditions recherche sur les civilisations. MICHEL, C. 2001. Correspondance des marchands de Kaniš au début du IIe millénaire avant J.-C. Littératures anciennes du Proche-Orient, vol. 19. Paris: Les éditions du Cerf. MICHEL, C. 2020 Women of Assur and Kanesh: Texts from the Archives of Assyrian Merchants. Atlanta: SBL.

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› Sammu-ramat

por Anita Fattori

A figura da rainha é designada nas fontes neoassírias como a mulher do palácio — em sumério mí.é.gal, ou ainda, em acadiano, sēgallu. Ela está presente na história do Império Neoassírio (934–609 aEC) durante praticamente toda a sua extensão cronológica. Mesmo que as mulheres da corte assíria sejam referenciadas nas fontes a partir da sua relação de proximidade com o rei, ao que tudo indica, essa posição era ocupada por uma única mulher e era vitalícia, sendo mantida mesmo após a morte do soberano. Assim, a rainha ocupava um alto status social, desempenhando importantes papéis principalmente no âmbito das cerimônias religiosas (Svärd 2012, 90–93; 2015, 157–160). Associada à lendária Semíramis de Ctésias de Cnido e Diodoro Sículo (cf. «Semíramis»), Sammu-ramat foi uma das rainhas mais emblemáticas desse período. Sammu-ramat foi rainha durante governo de Shamshi-Adad V (823–811 aEC), como nos informa a inscrição votiva dedicada à deusa Ishtar talhada em uma pequena e arredondada ágata em formato de olho (as chamadas «eye-stones»): «para Ishtar, sua senhora, Sammu-ramat, a mulher do palácio, rainha de Shamshi-Adad, rei da Assíria, dá (esta dedicatória) pela sua saúde» (Seymour 2008, 104). Quando seu filho, Adad-nirari III (810–783 aEC), ascendeu ao trono, o Império Assírio enfrentava um período de grande instabilidade política. Também é possível afirmar que ele era muito jovem quando se tornou rei. E é justamente nesse momento, no início do seu reinado, que

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

temos mais pistas sobre o papel ocupado por Sammu-ramat na corte assíria. Deste período conhecemos algumas inscrições, essas encontradas em duas estelas e em duas estátuas idênticas. Assim como a inscrição votiva dedicada a Ishtar, a inscrição da Estela de Assur pertenceu à própria rainha. Encontrada na cidade que ocupou a posição de primeira capital do Império, essa estela é uma ocorrência pouco comum entre as fontes conhecidas do período. Nesse documento ela aparece posicionada em uma ampla relação de pertencimento à realeza, conectada por meio de laços de parentesco a três gerações de reis: «Monumento de Sammu-ramat, a mulher do palácio [de Sham]shi-Adad, rei do universo, rei da Assíria, mãe de Adad-nirari, rei do universo, rei da Assíria, nora de Shalmaneser, rei dos quatro cantos» (Grayson 1996, RIMA 3, A.0.104.2001). As fontes nos mostram que mesmo após a morte de Shamshi-Adad V ela continua sendo referenciada pelo status de rainha e, adicionalmente, passa a ser designada como a mãe do rei. Os dois títulos carregam o mais alto lugar a ser ocupado por uma mulher na corte. Isso se dá, principalmente, porque não é frequente a intersecção dos dois títulos, já que uma rainha não é necessariamente a mãe do príncipe herdeiro. Além de Sammu-ramat, conhecemos o nome de apenas uma outra mulher que ocupou esse duplo papel: Naqi’a, a mãe de Esarhaddon (que governou entre 680–669 aEC). Sammu-ramat também aparece ao lado de um terceiro personagem, o pai de Shamshi-Adad V, o rei Shalmaneser, sendo inserida e legitimada dentro de uma longa linha de sucessão real. Ela é nora, consorte e mãe de reis. Nas duas estátuas de Nabû e na inscrição da Estela de fronteira de Pazarcık a rainha aparece ao lado de seu filho como centro da ação. Na primeira delas, recebem de um alto funcionário da corte, um governador de província, duas estátuas com dedicatórias idênticas ao deus Nabû pelas 270

A presença das mulheres na Literatura e na História

suas vidas. As duas estátuas foram exumadas durante as escavações no templo de Nabû na cidade de Kalhu (atual Nimrud, no Iraque). Talhadas em calcário, elas foram oferecidas pelo governador da cidade, Bel-tarṣi-ilumma, com os dizeres: «(...) pela vida de Adad-nirari III, rei da Assíria, seu senhor, e (pela) vida de Sammu-ramat, a mulher do palácio, sua senhora (...)» (Grayson 1996, RIMA 3, A.0.104.2002.a/b). O retrato de duas figuras reais em uma dedicatória não é prática comum do discurso imperial (Siddall, 2014). Já na Estela de fronteira de Pazarcık, não só encontramos mais uma ocorrência de Sammu-ramat relacionada com três gerações da realeza assíria, mas também vemos a figura de uma mulher retratada de maneira excepcional. Aqui ela aparece associada a uma campanha militar: «Pedra de fronteira de Adad-nirari, rei da Assíria, filho de Shamshi-Adad, rei da Assíria, (e de) Sammu-ramat, a mulher do palácio de Shamshi-Adad, rei da Assíria, mãe de Adad-nirari, rei forte, rei da Assíria, nora de Shalmaneser, rei dos quatro cantos. Quando Ushpilulume, rei dos Kummuhitas, fez com que Adad-nirari, rei da Assíria, e Sammu-ramat, a mulher do palácio, cruzassem o Eufrates. (...)» (Grayson, 1996, RIMA 3, A.0.104.3). Este extraordinário monumento encontrado na cidade de Pazarcık, localizada na província turca de Kahramanmaraṣ (cerca de 100 quilômetros da capital síria, Alepo), retrata a bem-sucedida campanha assíria contra a revolta do reino de Kummuh. Como resultado, temos o estabelecimento da Estela na fronteira dos reinos de Kummuh e Gurgum e o restabelecimento do poder assírio no território. Mesmo que, no momento da batalha, o texto tenha sido registrado na primeira pessoa do singular, indicando que apenas o rei teria participado efetivamente do combate, no início da descrição do episódio vemos que ela e 271

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

seu filho atravessam o Eufrates juntos. Desse modo, a forma como o texto foi construído nos indica sua presença e envolvimento em um episódio de campanha militar. Ao ser retratada como sujeito da ação, sua posição na corte aparece legitimada não apenas pelo relacionamento vitalício que mantém com a figura do soberano. Além do discurso trazido pelas fontes, outras características podem ser somadas para compreendermos o seu papel histórico. Todas as inscrições são de natureza oficial e monumental, talhadas em suportes duráveis e integrando os mecanismos discursivos da manutenção da memória e da continuidade do Império. Ademais, essas fontes foram encontradas em outros dois lugares além da capital, extravasando a sua presença para além do ambiente palaciano de Assur. O que demonstra, portanto, o seu amplo reconhecimento pela administração central, ocupando uma posição de poder e influência no centro do Império. A excepcionalidade das fontes somada à condição geral do Império naquele momento, vale dizer um período de crise e a ascensão de um rei muito jovem ao trono, levou a narrativa assiriólogica a confrontar duas visões completamente distintas sobre Sammu-ramat. Se para alguns as fontes evidenciam que ela teria sido investida do papel de rainha regente durante os anos iniciais do governo de Adad-nirari III, para outros a ausência de um título de «regente» levou ao quase apagamento do seu lugar na história política da Assíria. De fato, é necessário considerarmos que as fontes nunca a colocaram em uma posição institucionalizada de regência. Seja pela inexistência da palavra no vocabulário acadiano, seja pela ausência dessa figura nos ideias de realeza assíria. Entretanto, com a inserção dos Estudos de Gênero nos estudos de Mesopotâmia, esse lugar foi repensado de uma 272

A presença das mulheres na Literatura e na História

maneira mais ampla e menos maniqueísta por autores como Sarah C. Melville (2004), Saana Svärd (2012, 101–105; 2015) e Luis R. Siddall (2013, 86–100; 2014) a partir de uma análise cuidadosa de como ela é referida nos textos, quais são as expectativas de atribuições vinculadas aos títulos que ela detém e como ela surpreende essas expectativas. No imaginário historiográfico a própria ideia de regência feminina carrega consigo a noção de uma mãe ambiciosa e manipuladora. A figura de uma mulher forte que surge na presença de um filho fraco ou incapacitado de governar. Contudo, essa visão pode ser contrastada se olharmos para sua posição dentro das relações de parentesco. Sammu-ramat é uma mãe viúva de um jovem rei e sua presença ao lado do filho existe, antes de tudo, para garantir a estabilidade do Império e, acima de tudo, a continuidade da dinastia na figura de seu filho. Talvez o lugar de fascínio ocupado por Sammu-ramat no imaginário clássico e moderno possa ser melhor compreendido se observarmos com atenção a natureza e os elementos bastante particulares apresentados pelas fontes assírias, a exemplo dos trabalhos de Julia Asher-Greve (2006, 360–363) e Eckart Frahm (2020, 48–49). Apesar da sua posição de prestígio ser determinada a partir da sua relação com uma figura masculina, o rei, tudo indica que ela teve poder político e foi uma peça importante para a manutenção do Império nos primeiros anos do reinado de seu filho, Adad-nirari III. Além disso, ela ocupou papéis que extravasavam as expectativas de gênero, ou seja, aqueles esperados para uma rainha dentro de um ideal masculino de realeza durante o período Neoassírio. 273

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Cf. Verbete Semíramis por Marina Régis Cavicchioli & Henrique Edigton da Costa e Silva. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade, Vol. I [Tomo 1]. p. 277-283.

Fontes históricas GRAYSON, A. K. 1996. Assyrian Rulers of the Early First Millennium BC II (859–745 BC). The Royal Inscriptions of Mesopotamia Assyrian Periods. Volume 3. Toronto: University of Toronto Press, p. 204–205; 226–227. = RIMA 3, A.0.104.3; A.0.104.2001; A.0.104.2002.a/b. SEYMOUR, M. 2008. Babylon’s Wonders of the World: Classical Accounts. In: FINKEL, I.; SEYMOUR, M. (Eds.). Babylon: Myth and Reality, Londres: The British Museum Press, p. 104. Bibliografia geral ASHER-GREVE J. 2006. From ‘Semiramis of Babylon’ to ‘Semiramis of Hammersmith’. In: HOLLOWAY, S. W. (Ed.). Orientalism, Assyriology and the Bible. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, p. 322–373. FRAHM, E. 2020. From Sammu-ramat to Semiramis and Beyond: Metamorphoses of an Assyrian Queen. In: LASSEN, A.; WAGENSONNER, K. Women at the Dawn of History. Yale: Yale Babylonian Collection, p. 46–53. MELVILLE, S. C. 2004. Neo-Assyrian Royal Women and Male Identity: Status as a Social Tool, Journal of the American Oriental Society, vol. 124, n. 1, p. 37–57. SIDDALL, L. R. 2013. The Reign of Adad-nı̄rārı̄ III. Cuneiform Monographs 45, Leiden: Brill. 274

A presença das mulheres na Literatura e na História

SIDDALL, L. R. 2014. Sammu-ramāt: Regent or Queen Mother? In: LIONEL, M. (Ed.). La famille dans le Proche-Orient ancien: réalités, symbolismes, et images. Proceedings of the 55th Rencontre Assyriologique Internationale at Paris 6–9 July 2009. Indiana: Eisenbrauns, p. 497–504. SVÄRD, S. 2012. Power and Women in the Neo-Assyrian Palaces. Tese de Doutorado em Assiriologia defendida na Universidade de Helsinki. SVÄRD, S. 2015. Changes in Neo-Assyrian Queenship, State Archives of Assyria Bulletin, vol. 21. p. 157–171.

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Σεμίραμις › Semíramis

por Marina Regis Cavicchioli & Henrique Edigton da Costa e Silva

Semíramis é uma personagem que transita entre a História e a Mitologia. Para os antigos, medievais e modernos Semíramis era uma realidade histórica. Porém, com o desenvolvimento da arqueologia mesopotâmica e da assiriologia, e com a constatação da ausência de fontes primárias sobre ela, Semíramis passou a ser considerada como uma figura mitológica. Contudo, a inscrição de uma estátua encontrada em 1853, no templo de Nabû em Nimrud, trazia o nome da rainha assíria Sammu-ramat, mesmo nome encontrado em uma estela assíria escavada na cidade de Assur em 1909. Em 1916 uma outra estela foi descoberta em Sabaa, sendo que sua inscrição levou os historiadores a crerem que Sammu-ramat teria sido a regente por cinco anos (Roux 2001,153) e por isso ela foi associada à lendária Semíramis (Asher-Greve 2007, 360; Roux 2001, 151; Waters 2017, 46; Whitmarsh 2018, 163). Sammu-ramat, conforme nos descrevem suas estelas, foi esposa do rei Shamshi-Adad V e mãe de Adad-Nirari III, que teria vivido no final dos 800 e início dos 700 aEC. A estela de Sabaa sugere que, com a morte de seu marido, ela teria assumido o governo do Império de 811 a 806 aEC (Roux 2001, 152–153), fato pouco usual para uma mulher, o que pode ter estimulado o imaginário dos autores antigos que escreveram sobre ela. A principal fonte sobre Semíramis é a Biblioteca Histórica de Diodoro Sículo, escrita no século I aEC. Ela contém o mais longo e completo relato sobre a personagem que sobreviveu até nosso tempo. Diodoro, afirma ter se baseado largamente na Persica (História da Pérsia) de Ctésias de Cnido

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(Biblioteca Histórica, II. 20, 2), escrita em torno do V século aEC. Contudo, não sabemos de fato o quão fiel Diodoro foi aos escritos de Ctésias, lembrando ainda que Diodoro mescla Ctésias com outros autores (Whitmarsh 2018, 162–163). Segundo Diodoro, Semíramis era filha da deusa Dérceto, divindade da cidade de Ascalon, na Síria, com um mortal. Esta união era o fruto da paixão imposta à deusa síria por Afrodite. Assim, envergonhada por ter engravidado de um mortal, a deusa o matou e abandonou a filha em um local deserto, logo após se atirou em um lago, transformando-se em um peixe. A criança sobreviveu graças às pombas que a alimentaram até que pastores acharam o bebê e, notando sua beleza superior, a entregaram ao guardião dos rebanhos reais, Simas. Este a nomeou Semíramis, que derivaria da palavra síria para pombas. Quando ela cresceu e chegou em idade para casar, com sua beleza muito superior à das demais meninas, ela conquistou o coração de Onnes, governador que estava visitando os rebanhos reais, e com ele se casou. Como as demais qualidades dela eram em par com sua beleza, seu marido foi completamente escravizado e, seguindo suas orientações, em tudo obteve êxito (Biblioteca Histórica, II. 4,2–5,2). Pouco depois, Onnes partiu para acompanhar o rei Nino na campanha militar contra Báctria, mas, por sentir saudades devido ao longo cerco à cidade inimiga, mandou que ela a ele viesse. Semíramis, por ser dotada de todas as boas qualidades, criou uma vestimenta que escondia seu sexo e partiu. Ao chegar no cerco notou que a acrópolis inimiga estava desguarnecida e, comandando um grupo de soldados, escalou os morros e a capturou, levando os demais inimigos a se renderem. Nino admirou-se com seus feitos, logo caiu de amores por sua beleza e com isto tentou convencer Onnes a entregar Semíramis para ele. Onnes, desesperado, enforcou-se. Assim, Nino tomou Semíramis como sua esposa e logo tiveram um filho, Ninias. 278

A presença das mulheres na Literatura e na História

O rei Nino, antes de falecer, deixou o controle do império para a jovem rainha que, ao ascender ao trono, ergueu um grande túmulo a Nino. Por sua ambição, ela partiu para fundar uma grande cidade nas margens do Eufrates, na Babilônia. Para isto, mandou trazer artesãos e arquitetos de todos os cantos do império e milhares de homens. Nesta cidade ela ergueu altas muralhas com diversas torres para defesa, um palácio em cada margem do Eufrates e uma ponte na parte mais estreita do rio para conectá-los (Biblioteca Histórica, II. 5, 3–8, 4). Semíramis teria ainda fundado uma série de outras cidades ao longo dos rios Tigre e Eufrates e estabelecido vários postos comerciais que conectavam as regiões vizinhas (Biblioteca Histórica, II. 11, 1–11–5). Após finalizar as inúmeras obras pela Babilônia, ela marchou para a Média, onde gravou, no monte Bagistano, uma imagem de si acompanhada de lanceiros. Em seguida foi à cidade de Caunon, na Média, onde construiu um enorme parque e o desfrutou luxuosamente. Sabiamente, evitava casar-se legalmente para não perder o poder, desfrutava do sexo com os mais bonitos soldados e depois os fazia sumir (Biblioteca Histórica, II. 13, 1–13–4). De Caunon ela partiu para Ecbátana e, por desejar uma rota direta, construiu uma nova estrada. Ao chegar à cidade construiu um canal e uma fonte para irrigá-lo. Viajou por toda a Ásia, ocasião em que ergueu diversos outros monumentos e obras, e depois consultou o oráculo de Amon no Egito, além disso subjugou a Líbia no caminho. No oráculo ela foi informada que seu filho, Ninias, conspirava contra ela e que alguns povos e tribos de toda a Ásia a honrariam para sempre. Em seguida subjugou a maior parte da Etiópia e rumou para a Báctria, onde fez preparativos para a campanha de invasão da Índia (Biblioteca Histórica, II. 13, 5–16,1) 279

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Engenhosamente, ela mandou construir barcos que podiam ser montados e desmontados, facilitando seu transporte até o Rio Indo. Ao reconhecer sua desvantagem perante os elefantes do rei da Índia, reuniu artesãos para que estes criassem grandes bonecos de couro de touro na forma de elefantes capazes de enganar seu inimigo. Terminados seus preparativos, invadiu a Índia. Embora vitoriosa nos combates iniciais, ao cruzar o rio, seu artifício foi revelado por desertores e, num combate com o rei indiano, foi ferida com uma flecha no braço, fato que forçou um movimento de recuada. Ao recuar até a outra margem do Rio Indo, ela destruiu a ponte que havia erguido, impedindo seus inimigos de perseguirem-na. Algum tempo depois ela descobriu a conspiração de seu filho Ninias com os eunucos, mas, lembrando-se do Oráculo de Amon, ela passou o império ao seu filho e desapareceu. Diodoro relata que algumas pessoas acreditaram que ela se transformou em uma pomba, subindo aos céus, e assim foi deificada pelos assírios (Biblioteca Histórica, II. 16, 1–20, 2). Heródoto, contemporâneo de Ctésias, em sua obra Histórias, menciona Semíramis brevemente. Em princípio, a retratou como a construtora de diques no Eufrates (Histórias, I. 184) e, em uma passagem posterior, a mencionou ao tratar de uma ordem de Dario, ao determinar que mil homens avançassem em direção à porta de Semíramis (Histórias, III. 155). Luciano de Samósata, na obra A Deusa Síria, escrita no século II EC, ao narrar sobre a fundação de um templo, relatou que existiam estátuas de Semíramis, e destacou, em especial, a que apontava para uma estátua de Hera (A Deusa Síria, 39). Segundo este autor, Semíramis ordenou aos habitantes da Síria que a cultuassem como uma deusa e que ignorassem as demais divindades. Por essa razão ela foi castigada com dores e doenças e, após abandonar seu erro, colocou teria posto sua estátua no templo apontando para a estátua de Hera, de modo a indicar 280

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a verdadeira deusa (A Deusa Síria, 39). O autor ainda aponta que ela construiu diversas obras por toda a Ásia (A Deusa Síria, 14). Plutarco, outro autor clássico que viveu no século I EC, a mencionou em dois textos. No Diálogo Sobre o Amor, destaca a sua beleza e inteligência ao narrar que ela foi escrava e concubina de um servo do palácio do rei Nino da Assíria, e que quando ele reparou em sua beleza, se apaixonou e se dobrou a ela de tal forma que, ao lhe pedir o trono por um dia, ele satisfez seu pedido. Em tal ocasião, ela deu ordens moderadas para testar a reação dos guardas e, ao confirmar que lhe obedeciam, tomou o poder e ordenou que aprisionassem e matassem Nino. A partir daí ela teve um reinado longínquo e brilhante (Diálogo sobre o Amor, IX. 753E). Já na Moralia, Plutarco argumentou que ela teria deixado duas inscrições em sua tumba, a primeira, do lado de fora, a convidar o rei que precisasse de dinheiro para abrir sua tumba. Já na segunda inscrição, dentro de sua tumba, dizia que sepulcro não contém tesouro algum e repreendia o rei ganancioso que perturbar o local de descanso dos mortos (Moralia, 173C). Em síntese, as narrativas clássicas apresentam Semíramis como grande rainha da Assíria, dotada de uma beleza ímpar, que cativava cegamente os homens, de genialidade militar, ambiciosa, inteligente e engenhosa. Ela tanto foi grande guerreira quanto grande construtora, um modelo de soberana bem-sucedida. Em Diodoro, ela representa a ideia grega de continuidade imperial, elemento chave da gênese do império do Oriente (Stronk 2018, 530), onde Nino era o «pai», aquele que inicia as conquistas na Ásia, e ela era a «mãe», que terminou a conquista do Oriente e estabeleceu as bordas do Império e construindo sua infraestrutura de estradas e cidades. Beringer destaca como estas narrativas silenciam as emoções 281

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

de Semíramis; ela foi objeto das paixões masculinas, mas em nenhum momento indicaram como ela se sentiu ou o que pensava dos demais personagens (Beringer 2016, 37). Neste sentido, podemos considerar sua caracterização nestas narrativas como parte de um imaginário masculino sobre a rainha, escrito por e para homens e, em grande medida, reflexo de suas visões de mundo. Cf. Verbete Sammu-ramat por Anita Fattori. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade, Vol. I [Tomo 1]. p. 269-275.

Fontes históricas DIODORO SÍCULO. 2018. Bibliotheca Historica. In: STRONK, J. P. Semiramis’ Legacy: The History of Persia According to Diodorus of Sicily. Edimburgo: Edinburgh University Press. HERÓDOTO. 2015. Histórias: Livro I – Clio. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro. LUCIANO DE SAMÓSATA. 2013. Luciano [VII]. Tradução do grego, introdução e notas de Custódio Magueijo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. PLUTARCO. 2009. Diálogo Sobre o Amor, Relatos de Amor. Tradução do grego, introdução e notas de Carlos A. Martins de Jesus. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra. PLUTARCO. 1961. Plutarch’s Moralia III. With an english translation by Frank Cole Babbitt. Cambridge: Harvard University Press. Bibliografia geral ASHER-GREVE, J. 2007. From ‘Semiramis of Babylon’ to ‘Semiramis of Hammersmith’ In: HOLLOWAY, S. W. (Ed.). Orientalism, Assyriology and the Bible. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, p. 322–373. 282

A presença das mulheres na Literatura e na História

BERINGER, A. 2016. The Sight of Semiramis: medieval and early modern narratives of the Bablonian queen. Tempe, Arizona: Arizona Center for Medieval and Renaissance Studies. ROUX, G. 2001. Semiramis: The builder of Babylon. In: BOTTÉRO, J. (Ed.). Everyday Life in Ancient Mesopotamia. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, p.141–161. WATERS, M. 2017. Ctesias’ Persica and its Near Eastern context. Wisconsin: The University of Wisnconsin Press. WHITMARSH, T. 2018. Romancing Semiramis. In: WHITMARSH, T. Dirty Love: The Genealogy of the Ancient Greek Novel. Oxford: Oxford University Press, p. 161–168.

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𒊩𒈾𒆠𒀪𒀀 › Naqi’a

por Katia M. P. Pozzer

A rainha Naqi’a (730–668 aEC), também conhecida como Zakūtu, a versão acádica de seu nome, foi esposa de Senaqueribe (704–681 aEC), nora de Sargão II (722–705 aEC), mãe de Asarhaddon (681–669 aEC) e avó de Assurbanipal (669–630 aEC). Não existem informações sobre sua família, exceto por uma menção a uma irmã, chamada Abi-rami (Kwasman; Parpola 1991, 252). Naqi’a teria se tornado esposa de Senaqueribe quando este ainda era um príncipe, contudo nada se sabe dela até 681 aEC, quando seu filho Asarhaddon subiu ao trono do reino assírio. Ela é um caso único de uma rainha assíria que teria assumido atributos e responsabilidades da realeza, sendo representada em imagens dispostas em lugares públicos e mandando construir um palácio para seu filho, uma ação sem precedentes na história assíria (Macgregor 2012, 167). Naqi’a é um nome aramaico que significa «pura, limpa, inocente». Alguns autores sugerem que ela seria estrangeira, provavelmente de Babilônia, outros argumentam que era bastante comum ter um nome oeste semítico durante os séculos VIII e VII aEC. Esse fenômeno seria o reflexo da diversidade linguística do Império Assírio, onde o acádico e o aramaico eram línguas correntes. O nome Naqi’a foi traduzido para o acádico como Zakūtu. O uso dos dois nomes e o epíteto de rainha-mãe sempre acompanharam todas as menções de Naqi’a enquanto esteve no poder. Contudo não sabemos quando ela passou a adotar o nome acádico, mas Macgregor (2012, 159)

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avança a hipótese de que ela o incorporou na tentativa de obter legitimidade política para ela própria e seu filho Asarhaddon, quando este sobe ao trono em 681 aEC. Alguns autores defendem a ideia de que Naqi’a possuía grande influência nas decisões de seu esposo, o rei Senaqueribe, e que teria sido responsável pela promoção de seu filho como sucessor do rei que fora morto por seu irmão, Aššur-nadin-šumi (Melville 2013, 5705). Os títulos mais comuns associados ao nome de Naqi’a foram o de mí.é.gal, literalmente «a mulher do palácio», que era reservado para a consorte do rei, ou destinado a princesas estrangeiras que fossem casadas com o rei da Assíria e era comumente traduzido por esposa. Durante o Império Assírio, a designação šarratu, rainha, era reservada às mulheres que governavam, como as líderes de tribos nômades ou as divindades femininas. Ela ainda foi nomeada como rainha-mãe, através da expressão ama.lugal (Teppo 2007, 389). Conhecemos algumas atividades da rainha Naqi’a a partir dos arquivos epistolares endereçados a ela por diversos personagens da elite assíria, como secretários, escribas, sacerdotisas, oficiais, entre outros (Chavalas 2014, 213). Além disso, encontramos oito textos que fazem referência ao nome dela na correspondência de seu filho, o rei Asarhaddon. Destacamos duas destas missivas e apresentamos a tradução de alguns excertos. A rainha Naqi’a, ora chamada de Zakūtu, faz oferendas de artigos de luxo, como joias de ouro e pedras preciosas, pesando o equivalente a quase 2kg, a importantes divindades pedindo proteção e longa vida ao rei Asarhaddon e a ela própria. Nestes documentos ela é apresentada como esposa de Senaqueribe e nora de Sargão. 286

A presença das mulheres na Literatura e na História

Para a deusa Bēlet-Ninūa, que reside dentro de Emašm, excelente rainha, sua Senhora: Naqi’a, esposa de Senaqueribe, rei da Assíria, nora de Sargão, rei do mundo, rei da Assíria, ofereceu um peitoral de ouro vermelho que era incrustado com pedras preciosas e pesava 3 3/4 minas. Ela ofereceu e dedicou (este objeto) para a preservação da vida de Asarhaddon, rei da Assíria, seu filho e para sua própria vida, para a estabilidade do seu reino (e pelo) bem-estar de seus filhos (Leichty; Novotny 2017, Q003407).

Mas, sem dúvida, um dos textos mais extraordinários é aquele que se refere à comemoração da construção de um palácio em homenagem a Asarhaddon, com oferendas aos deuses e celebração de um banquete: [...] Eu os fiz carregar enxadas e cestos e eles fabricaram tijolos [...]. Eu instalei portas de ciprestes nos seus portões, um presente para meu filho. Eu construí e completei aquela casa e a preenchi com esplendor. Eu convidei os deuses Aššur, Ninurta, Sîn, Šamaš, Adad e Ištar, Nabû e Marduk (e) os deuses que residem em Nínive e ofereci suntuosas e puras oferendas para eles [...] (Leichty; Novotny 2017, Q003405).

A construção do palácio, acompanhada de uma inscrição de fundação, era até então privilégio dos reis e certamente contribuiu para criar uma imagem de Naqi’a associada a uma figura de poder com prerrogativas reais. Além das fontes textuais, temos um documento de caráter iconográfico que associa Naqi’a e seu filho Asarhaddon em atividades religiosas de responsabilidade da realeza (Fig. 1). Trata-se de um fragmento de relevo em bronze, pertencente à coleção de Antiguidades Orientais do Museu do Louvre, onde Naqi’a e Asarhaddon são retratados em um ato de devoção (Thomas 2016, 328). No relevo, Naqi’a segue o rei em uma procissão cerimonial, onde as duas figuras avançam de forma majestosa. Ambos estão representados de perfil, realizando um gesto de prece conhecido como laban appi, literalmente, apertando o nariz. 287

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Asarhaddon e Naqi’a levam um pequeno bastão à região do nariz e da boca, reproduzindo um gesto simbólico de prostração (levar o rosto junto ao chão), provavelmente diante da estátua de uma divindade. Este gesto ritualístico, originário da Babilônia, também foi adotado por Asarhaddon. Acredita-se que o bastão poderia ser um objeto em madeira perfumada, como o cedro. O rei porta os atributos do poder, como a coroa troncônica e o cetro, enquanto sua mãe tem uma coroa decorada com motivos de ameias e segura um espelho na mão esquerda.

Fig. 1: Relevo de Naqi’a. Bronze, época neoassíria (33 X 31 X 6,5 m.). AO 20185, Museu do Louvre, Paris. © 2005 RMN-Grand Palais (Musée du Louvre) / Franck Raux. Disponível em: https://collections.louvre.fr/ark:/53355/cl010120474

O relevo, possivelmente recoberto de ouro, uma vez que subsistem fragmentos deste metal nobre no canto inferior esquerdo, comporta uma inscrição onde se lê: 288

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Eles (os deuses) entraram nos pomares e bosques [...], através da arte dos sábios [a lavagem da boca, a abertura da boca, banho e purificação], foram recitados antes das estrelas da noite: os deuses [Ea, Šamaš], Asallhi, Bēlet-ilī, Kusu e Ningirima. Eu lavei sua boca, [...], exaltada [...] (Leichty; Novotny 2017, Q003412).

Esta inscrição corresponde a outras quatro já conhecidas e descreve um ritual complexo que ocorre ao longo de dois dias, junto ao rio ou nos canais próximos aos pomares e jardins. Fica evidente que se trata de um ritual de purificação de uma imagem de culto. Junto ao ombro esquerdo de Naq’ia vemos a inscrição «Imagem de Naqi’a», identificando-a sem equívoco. De acordo com as versões mais completas da inscrição, acredita-se que o relevo seria um revestimento de um trono ou de um altar no interior do templo dedicado ao deus Ea. O catálogo do Louvre nos indica que o texto comemora a reconstrução da cidade de Babilônia por Asarhaddon, como reparação ao sacrilégio cometido por seu pai quando, em 690 aEC, destruiu a cidade considerada sagrada pela sua importância cultural e religiosa (Thomas 2016, 328). O elmo real de forma troncônica que identifica Asarhaddon como o monarca assírio, passou a ser utilizado por Tiglat-Pileser III (745 à 727 aEC) e recebeu bandas decoradas com rosetas com Sargão II (722–705 aEC). Já os espelhos são objetos particularmente generificados e identificados como atributo da esfera feminina. No III e II milênios aEC os espelhos eram associados às deusas, podendo se constituir em oferendas votivas. Existe um provérbio assírio que diz que o rei é espelho de deus, assim o espelho e a coroa poderiam simbolizar funções políticas e religiosas de grande destaque (Macgregor 2012, 191). 289

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Neste relevo Naqi’a é representada como um duplo do rei, ela o segue e realiza os mesmos gestos, indicando sua posição social elevada e seu eminente poder político. Trata-se de um raro exemplar de representação iconográfica de uma rainha do período assírio, sugerindo que ela foi uma figura ímpar na história política do antigo Oriente Próximo. Fontes históricas KWASMAN, T.; PARPOLA, S. 1991. Legal Transactions of the Royal Court of Nineveh Part I Tiglath-Pileser III Through Esarhaddon. Helsinki: Helsinki University Press. LEICHTY, E.; NOVOTNY, J. 2011–2017. Royal Inscriptions of the Neo-Assyrian Period (RINAP) Project. Munich: Munich Open-access Cuneiform Corpus Initiative. Disponível em: http://oracc.museum.upenn.edu/rinap. Acesso em: 28 mai. 2021. Bibliografia geral CHAVALAS, M.W. (Ed.). 2014. Women in the Ancient Near East. London/New York: Routledge. MACGREGOR, S. L. 2012. Beyond Hearth and Home. Women in the Public Sphere in Neo-Assyrian Society. Helsinki: Publications of the Foundation for Finnish Assyriological Research. State Archives of Assyria Studies XXI. MELVILLE, S. 2013. Queens, ancient Near East. In: BAGNALL, R.; BRODERSEN, K.; CHAMPION, C.; ERSKINE, A.; HUEBNER, S. The Encyclopedia of Ancient History. Hoboken: Blackwell Publishing, p. 5704–5705. TEPPO, S. 2007. Agency and the neo-Assyrian Women of the Palace. Studia Orientalia, vol. 101, p. 381–420. THOMAS, A. 2016. L’histoire commence em Mésopotamie. Lens, Gand: Musée du Louvre, Snoeck Publishers. 290

𒊩𒌷𒊮𒌷𒊬𒋥 › Libbāli-šarrat

por Simone Silva da Silva

Muito sabemos por meio das fontes iconográficas e textuais provenientes da Assíria sobre os reis assírios. Porém, poucas fontes nos permitem estudar as rainhas deste extenso império. Até o momento sabemos os nomes de dez rainhas neo-assírias que foram identificadas. Infelizmente, só temos informações detalhadas sobre três delas: Naqī’a/Zakūtu, Libbāli-šarrat e Sammu-rāmat. Para as outras rainhas, muitas vezes não sabemos nada além de seus nomes (Teppo 2005, 35). É sobre uma delas em especial que escreveremos este texto. Trata-se de Libbāli-šarrat, também identificada como Asšur-šarrat, a rainha consorte de Aššurbanipal, importante rei assírio. Nas fontes textuais é identificada como Libbāli-šarrat, porém em uma única estela, cujos fragmentos estão no Vorderasiatisches Museum der Staatliche Museen zu Berlin, é descrita como Asšur-šarrat. Tudo indica que Libbāli-šarrat e Asšur-šarrat correspondem à mesma rainha. O Império Assírio surge no meio do vale do rio Tigre, território que ocupa atualmente o norte do Iraque. Seu período de maior expansão ocasionou a constituição de um império, denominado Período Neoassírio (934–609 aEC), estendendo-se do século X ao século VII aEC. Essa extensão se deu por toda a Mesopotâmia, assim como o Irã, Anatólia, Palestina e Egito, e como resultado dessa expansão imperial, o Período Neoassírio se compôs por um império multinacional e também multiétnico. O Império Neoassírio é um dos mais documentados da história da Assíria e da Mesopotâmia, pois possui uma imensa documentação, composta por tabletes,

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relevos monumentais e objetos arqueológicos encontrados na área do moderno Iraque. Agrupamos seis grupos de mulheres reais que aparecem nas fontes cuneiformes da Assíria: 1) MÍ.ERIM.ÉGAL (sekret ekalli, ‹concubina›, 2) MÍ.GAR (šakintu, ‹administradora›), 3) DUMU.MÍ. EGAL (marat sărri, ‹filha do rei›), 4) MÍ.NIN LUGAL (ahat šarri, ‹irmã do rei›), 5) MÍ.É.EGAL (issi ekalli/sēgallu, ‹esposa ou consorte› e 6) AMA LUGAL (ummi šarri, ‹mãe do rei›). Para obtermos informações sobre as mulheres reais, devemos consultar diferentes fontes, pois, muitas vezes, as informações são imprecisas. Listaremos abaixo o tipo de fonte onde podemos encontrar informações sobre as rainhas assírias: 1) Canônicas (ex: Lenda de Semíramis), 2) Monumentais (inscrições reais e monumentos públicos), 3) Arquivísticas (textos de leis, textos administrativos e cartas do Período Neoassírio) e 4) Pessoais (inscrições pessoais em itens como tigelas, miçangas e espelhos). Nas inscrições reais, o rei é identificado pelo nome e as demais pessoas são raramente nomeadas. Já em inscrições de cunho arquivístico, a convenção é oposta. Os reis geralmente não são nomeados e as pessoas comuns são. Por isso, é necessário utilizarmos diversos tipos de fontes (Melville 2004, 37–57). Sabe-se que as rainhas assírias viviam no «harém» do palácio. Elas desempenharam um papel ativo na vida social, econômica, religiosa e política da Assíria. Algumas delas eram muito ricas, e poderosas, possuíam terras e tinham seu próprio exército sob seu comando. Elas apoiaram seus maridos e filhos como esposas ou mães. De acordo com as fontes, a maioria das rainhas assírias não era nativa da Assíria. Elas vinham de um país estrangeiro para o palácio assírio por meio do casamento. Elas tinham o título de «mulher do palácio» (em sumério, MÍ.É.GAL e em acadiano, sēgallu). A figura do escorpião que aparece em textos, selos e outros artefatos arqueológicos foi identificada com a rainha (Melville 2004, 37–38). 292

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Sobre Libbāli-šarrat, sabemos que ela seguiu uma tradição real de possuir propriedades em Lahiru, na região de Diyala, atual Iraque. Um tablete de uma transação econômica de um eunuco da rainha identifica a cidade de Lahiru como a cidade da rainha, no ano de 668, quando Aššurbanipal era rei assírio (SAA 14 1). Uma inscrição realizada por Libbāli-šarrat a seu esposo Aššurbanipal dedica dias de estabilidade ao seu governo, ao seu trono, indica que sua fala é boa para seu marido e deseja que os dois estejam juntos até o envelhecer (AR 17: 4–6). Temos uma única estela cujos fragmentos estão no Vorderasiatisches Museum der Staatliche Museen zu Berlin (VA 08847), encontrada no sítio arqueológico de Assur, atual Qal’at Scherqat no Iraque. A estela foi encontrada por uma expedição alemã no sítio de Assur, estava em uma fileira de estelas, e nela existem marcas de fogo, o topo da estela tem forma semicircular e nela há uma inscrição, onde se lê: «Libbāli-šarrat, rainha de Aššurbanipal, rei do universo, rei da Assíria» (Andrae 1913, 6–8, laje X). essa inscrição estava abaixo da imagem da rainha. No centro da estela a rainha aparece sentada em seu trono, e está virada para a direita. Tem sua mão direita levantada, e usa um bracelete em formato de roseta, símbolo que é associado à deusa Ištar (Silva 2011, 35–36), já em sua mão esquerda segura uma flor, provavelmente uma flor de lótus. Ela utiliza na cabeça uma coroa com formatos de muralhas, a coroa murada, fazia parte das insígnias das rainhas assírias. Pode-se ver uma parte de seu cabelo e da túnica que ela veste, assim como o seu rosto que é representado de perfil na estela. Outra provável representação de Libbāli-šarrat é a conhecida cena do banquete no jardim, que foi encontrada na cidade de Nínive pelo arqueólogo William Loftus em 1854. Esta cena pertence à sala S do palácio Norte de Aššurbanipal. Esta é uma rara representação de uma rainha com o rei e 293

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

provavelmente este é o jardim privado da rainha, já que nessa cena do relevo só vemos personagens femininas, com exceção do rei assírio que está reclinado em frente à rainha que bebe algo em uma das mãos e na outra mão segura uma flor, novamente a rainha é representada utilizando uma coroa de muralhas, insígnia das mulheres reais e também de deusas (Macgregor 2012, 93). No entanto a face da rainha está parcialmente mutilada, o que possivelmente se atribui a um ato de iconoclastia realizado na queda de Nínive em 612 aEC (Bahrani 2008). As duas possíveis representações iconográficas de Libbālišarrat vão ao encontro de cartas em tabletes que mencionam seu nome. Na época em que Libbāli-šarrat era apenas a esposa do príncipe herdeiro Assurbanipal (durante o reinado de Esarhaddon), uma carta (SAA 16, no.28) de Šeru’a-etirat (Svärd 2012, 116), a irmã mais velha de Assurbanipal, revela um certo grau de tensão entre os membros femininos da família real. A filha do rei Esarhaddon escreve uma carta e reclama que ela (Libbāli-šarrat) não escreve para ela. A filha do rei lembra ao destinatário que ela tem uma classificação mais elevada do que Libbāli-šarrat (Teppo 2005, 39). Além disso, há evidências textuais de que a rainha tinha seu próprio exército (SAA 14 07). Fontes históricas ANDRAE, W. 1913. Die Stelenreihen in Assur. Leipzig: Hinrichs Verlag: Otto Zeller Verlag. BARNETT, R. D. 1976. Sculptures from the north palace of Ashurbanipal at Nineveh (668–627 B.C). London: The British Museum Publications. KOHLER, J; UNGNAD, A. 1913. Assyrische Rechtsurkunden in Umschrift nd Uebersetzung nebst einem Index der PersonenNamen und Rechtserl. Leipzig. 294

A presença das mulheres na Literatura e na História

LUKKO, M; BUYLAERE, G. V. 2002. The Political Correspondence of Esarhaddon, States Archives of Assyria, 14 e 16. Bibliografia geral BAHRANI, Z. 2008. Rituals of War: the body and violence in Mesopotamia. New York: ZoneBooks. MACGREGOR, S. l. 2012. Beyond hearth and home: Women in the Public Sphere in Neo-Assyrian Society, States Archives of Assyria Studies, vol. XXI, The Neo Assyrian Text Corpus Project. Helsinki. MELVILLE, S. 2004. Neo-Assyrian Royal Women and Male Identity: Status as Social Tool, Journal of the American Society, vol. 124, n. 1, p. 37–57. SILVA, S. S. da. 2011. Deuses e Símbolos: Representações e significados nos relevos Assírios. Trabalho de Conclusão de Curso em História apresentado na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA. SVÄRD, S. 2012. Power and Women in the Neo-Assyrian palaces. Doctoral dissertation. University of Helsinki. TEPPO, S. 2005. Women and Their Agency in the Neo-Assyrian Empire. Doctoral dissertation. University of Helsinki.

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Deportadas na Assíria

por Simone Silva da Silva

Os relevos assírios fazem parte de uma forma de arte pública, assim como os selos cilíndricos que estavam inseridos em documentos que circulavam pelo Império. É nessa documentação narrativa da arte que podemos dimensionar as diversas posições das mulheres na sociedade, em cenas que despertam as noções normativas que o gênero assumia, principalmente nas narrativas bélicas que evidenciavam a noção de masculinidade do Império Assírio (Bahrani 2008). O Império Assírio surge no meio do vale do rio Tigre, território que ocupa atualmente o norte do Iraque. Seu período de maior expansão ocasionou a constituição de um império, denominado Período Neoassírio (934–609 aEC), estendendo-se do século X ao século VII aEC. Essa extensão se deu por toda a Mesopotâmia, assim como o Irã, Anatólia, Palestina e Egito, e como resultado dessa expansão imperial, o Período Neoassírio se compôs por um império multinacional e também multiétnico. Os assírios, durante o período expansionista de seu império, executaram inúmeras políticas imperialistas, dentre elas, destacam-se as deportações em massa das populações dominadas. A expansão imperialista da Assíria desenvolveu-se por meio das constantes guerras, as documentações iconográficas e textuais se encarregam de narrar esses acontecimentos com precisão de detalhes e com informações que nos dão ideia das práticas aplicadas aos povos conquistados, como, por exemplo, a prática da deportação.

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Mas quais seriam os espaços das mulheres na arte narrativa das civilizações assírio-babilônicas? As fontes primárias iconográficas assírias refletem uma exclusão das mulheres no que se diz ao montante das representações na arte monumental. Isso reflete sobre os locais destinados ao gênero na Mesopotâmia, não só pela exclusão das mulheres nos monumentos, mas também nos espaços privados. É assim que percebemos como se construíram as noções de gênero cuja construção está associada à visão de que existiam espaços condicionados para homens e espaços condicionados para mulheres. Nos relevos assírios, as mulheres aparecem em condição de estrangeiras ou de estrangeiras deportadas de terras subjugadas, ou seja, nas paredes dos palácios assírios, as figuras femininas estavam integradas em narrativas de masculinidade, como no espaço da guerra. A exceção é o célebre relevo que representa o banquete real de Aššurbanipal, onde está representada a rainha Libbālišarrat em seu trono, acompanhada de atendentes femininas, assim como musicistas femininas. Porém, esse relevo representa como eram as atuações assírias femininas no palácio, fora do ambiente de guerra (Marcus 2000, 2487–2502). Nas cenas iconográficas de guerra e conquistas, as mulheres deportadas aparecem sobre muralhas com as mãos sobre a cabeça, gesto que, provavelmente, indica lamento, luto ou, talvez, subserviência, como percebemos através da narrativa bíblica e também em pinturas de tumbas egípcias. Quando estão na condição de prisioneiras de guerra, geralmente são escoltadas por soldados assírios, quando estão sozinhas carregam crianças e lhes dão água, lhes beijam e lhes protegem. Essas representações das figuras de mulheres deportadas fazem uma narrativa que humilhava e destituía os povos conquistados. A exibição das mulheres entre botins de guerra representa, além da vitória bélica, uma vitória da masculinidade. 298

A presença das mulheres na Literatura e na História

Ao analisarmos a documentação iconográfica e textual, percebemos que as mulheres deportadas podem ser identificadas com as sekretus (mulheres do palácio), que eram musicistas, cantoras e empregadas, e faziam parte de uma elite deportada para os palácios assírios, conforme a documentação textual. Era muito comum que essas mulheres de elite palaciana ou proveniente de templos, como as sacerdotisas e as cantoras, fossem deportadas para as principais capitais da Assíria. Podemos ligar essas evidências textuais às evidências iconográficas que nos mostram uma diferenciação nos tipos de vestimentas utilizadas por essas mulheres, bem como o uso de adornos (brincos, faixas e ornamentos), ao tipo de transporte (algumas em carroças, montadas em animais). Enquanto grande parte da população civil de mulheres executava o percurso da deportação a pé, as mulheres provenientes da elite recebiam um tratamento diferenciado das demais, sendo transportadas em carroças, sobre mulas ou em embarcações. A maioria das mulheres deportadas era transportada como botim de guerra. As narrativas iconográficas nos mostram essas mulheres deportadas junto de animais, como, por exemplo, bois e ovelhas, o que nos permite analisar que essas mulheres eram tidas como bens, frutos do espólio real. Listas reais contabilizam essas mulheres por tamanho ou peso, sendo que algumas seriam dadas em casamentos. Outras deportadas possuíam profissões como ferreiras, padeiras e escultoras, e o restante da grande maioria trabalharia nas fabricações têxteis e no campo. As diferenciações das estaturas das mulheres deportadas evidenciadas nas fontes iconográficas do Período Neoassírio, provavelmente, relacionam-se a uma diferenciação de idade — aquelas que estão em um tamanho menor são mulheres jovens ou filhas de reis, e as maiores são mulheres mais velhas. 299

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O uso do véu por parte de algumas mulheres deportadas indica algum tipo de resguardo, provavelmente por serem casadas ou estarem em luto por perderem entes queridos. Por fim, cumpre destacar que há uma específica e intencional evidenciação das diversidades étnicas das mulheres deportadas, seja pelo penteado, pelo tipo de cabelo (curto, longo, trançado ou com coque), pela vestimenta, pela ornamentação (brincos, pulseiras e jóias), marcando a diversidade étnica do Império Assírio, que era constantemente reforçada pelas deportações de diversos povos. Era comum a deportação de famílias inteiras, como nos mostram as fontes iconográficas e textuais, que provavelmente estavam ligadas à prática de desvincular os indivíduos dos locais conquistados, possibilitando uma possível «assirianização» dessas famílias (Silva 2017). Fontes históricas BARNETT, R. D. 1976. Sculptures from the north palace of Ashurbanipal at Nineveh (668–627 B.C). London: The British Museum Publications. BARNETT, R. D; BLEIBTREU, E. 1998. Sculptures from the Southwest Palace of Sennacherib at Nineveh. London: The British Museum Publications. BOTTA, P. E.; FLANDIN, E. 1849. Monument de Ninive. Paris: Impre. Nationale, Vols. 1, 2 e 3. GRAYSON, A. K. 1976. Records of the Ancient Near East: Assyrian royal inscriptions. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, Vol. 2. GRAYSON, A. K.; NOVOTNY. 2012. The Royal Inscriptions of Sennacherib, King of Assyria (704–681 BC), part 1. In: THE ROYAL INSCRIPTIONS OF THE NEO-ASSYRIAN PERIOD. Vol. 3/1. Winona Lake: Eisenbrauns. LAYARD, A. H. 1850. Original Drawings.Vol. 1. London: The British Museum. 300

A presença das mulheres na Literatura e na História

LUCKENBILL, D. 1924. The Annals of Sennacherib. Vol. II. Chicago: The University of Chicago Press. LUCKENBILL, D. 1927. Ancient Records of Assyria and Babylonia – ARAB, Vol. II, Historical Records of Assyria from Sargon to the end. Chicago: The University of Chicago Press. LEICHTY, E. 2011. The royal inscriptions of Esarhaddon, king of Assyria (680– 669 BC).In: THE ROYAL INSCRIPTIONS OF THE NEO-ASSYRIAN PERIOD. Vol. 4. Winona Lake, Eisenbrauns. PIEPKORN, A. C. Historical prism inscriptions of Ashurbanipal. Vol. I. Chicago: The University of Chicago. PIEPKORN, A. C. 1933. Historical prism inscriptions of Ashurbanipal. Chicago: University of Chicago Press. Bibliografia geral BAHRANI, Z. 2008. Rituals of War: the body and violence in Mesopotamia. New York: ZoneBooks. MARCUS, M. 2000. Art and ideology in Ancient Western Asia. In: SASSON, J. M. (Ed.). Civilizations of the Ancient Near East. Peabody/Chicago: Hendrickson Publishers/The University of Chicago. SILVA, S. S. da. 2017. Mulheres Deportadas na Assíria. Dissertação de Mestrado em História defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.

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Νίτωκρις › Nitócris (Rainha Babilônica)

por Simone Aparecida Dupla

Nitócris ou Nitókris (em grego: Νίτωκρις [Nítōkris]), aparece como uma rainha mesopotâmica lendária, no primeiro volume da obra de Heródoto (aprox. 484–425 aEC), História. Segundo o relato, ela teria vivido no Período Neobabilônico (626–539 aEC). As narrativas sobre Nitócris a apresentam como sendo uma rainha sábia e empreendedora, construtora de grandes obras e capaz de traçar estratégias. No entanto, não há fontes que atestem, até o momento, a existência de tal rainha, apenas algumas especulações em relação a paralelos com a temporalidade estipulada. A lenda de Nitócris, assim como sua suposta existência, está localizada na região da Antiga Mesopotâmia, território que corresponde ao Iraque e parte da Síria na atualidade. O termo Mesopotâmia também tem origem grega, significa entre rios, ou seja, se refere às culturas que se fixaram entre os rios Tigre e Eufrates. Babilônia se refere à cidade que ficava no coração da Baixa Mesopotâmia e se tornou a capital cultural e política do mundo antigo após a queda do Império de Ur III. A Babilônia ganhou ascensão em torno de 1792 aEC, com Hamurappi, o sexto rei da Primeira Dinastia Babilônica, tornando-se capital do Império sob o mesmo nome. O termo também indica o espaço de tempo em que os reis desta dinastia mantiveram-se em destaque e que a cidade permaneceu como capital imperial. Já o termo neobabilônico marca o retorno do poder e influência da cidade e reis ligados à tal dinastia. Data desses contextos expansões territoriais sob o domínio babilônico, avanços nas ciências matemáticas e na astrologia, edificações de palácios, templos e outras obras urbanísticas,

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como os jardins suspensos, o Portal de Ishtar e o Etemenanki (torre escalonada, que ficou conhecida como Torre de Babel). No período neobabilônico podemos citar governantes como: Nabopolassar (626–605 aEC), Nabucodonosor II (605–563 aEC), Evil-Merodaque (562–560 aEC), Neriglissar (560–557 aEC) e Nabonido (555–539 aEC). No entanto, não há registros de uma mulher governante no sentido estrito do termo, e as menções a Nitócris encontram-se apenas nos relatos de Heródoto. Heródoto destaca em sua obra que irá abordar o que chama de História da Assíria e discorre sobre os reis que construíram grandes obras, dando destaque a duas mulheres: Semíramis e Nitócris. Há poucas referências nas fontes de origem mesopotâmica do Período Neobabilônico sobre as princesas e rainhas. Assim como em outras temporalidades as representações femininas da realeza mesopotâmicas são raramente encontradas, o que dificulta a comprovação da existência de Nitócris. Pese a isto o fato de que, no universo mesopotâmico, as mulheres eram apresentadas pela referência masculina da família, como por exemplo, filhas ou esposas dos governantes. Seus nomes aparecem em um número limitado de inscrições e se restringem a poucas linhas, quando não a apenas uma, além, é claro, de sua assinatura em objetos dedicados aos deuses e, quando possuem certa importância, nas impressões de selos e cilindros pessoais. Nitócris é descrita nos relatos de Heródoto, como tendo vivido cinco gerações após Semíramis; ela é apontada como mais sábia que essa última. Ao longo do texto, Heródoto descreve as obras as quais, segundo ele, esta rainha havia realizado, além do caso de violação de sua tumba pelo rei Dario (550–486 aEC). Ao colocar Semíramis cinco gerações de distância de Nitócris, aponta como possível existência de 304

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tal rainha, o período de Nabucodonossor II (604–562 aEC). É importante observar que Heródoto de Halicarnasso escreveu os relatos entre 440–430 aEC, portanto, tais informações são baseadas em tradições orais, narrativas que já circulavam há quase dois séculos separando a temporalidade do historiador grego daquela em que Nitócris poderia ter vivido. Ao longo do relato, Heródoto descreve as obras que teriam sido executadas por Nitócris: aquedutos, fortificações contra o ataque dos medos, construção de canais desviando o curso do rio Eufrates (História, CLXXXV. 117), a construção das muralhas da cidade, de um lago de grandes dimensões ao norte da Babilônia para receber o excesso das águas do Eufrates durante as cheias. Para este último empreendimento, a rainha teria mandado construir um canal que desviava a água do rio para o lago e cujas características monumentais espantavam o autor em habilidade, grandiosidade e estratégia. Nitócris causou tal admiração em Heródoto que até mesmo a lenda sobre seu túmulo foi descrita pelo autor, visto que tal narrativa demonstrava uma vez mais a engenhosidade e astúcia da rainha. Sob a lápide de Nitócris, erguida sobre um dos portões mais frequentados da Babilônia, haveria uma inscrição aos reis que a sucederam de que se a estes viesse a faltar «dinheiro», poderiam abrir seu sepulcro e fazer uso dos tesouros enterrados com ela, mas caso não tivessem necessidade, abrindo sua sepultura apenas por ganância, acabariam por arrepender-se de tal ato (História, CLXXXVII. 119). O túmulo teria ficado intacto até o reinado de Dario, este teria aberto o sepulcro na tentativa de se apropriar do tesouro, mas apenas encontrou no recinto o corpo de Nitócris acompanhado de uma inscrição que zombava da ganância de seu violador (História, CLXXXVII, 119). Ainda, segundo Heródoto, teria sido contra o filho de Nitócris que o rei Ciro lançou suas tropas. 305

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A construção de obras, principalmente aquedutos, pontes, mudanças de trajetória dos rios (Tigres e Eufrates), ampliação e reparos de templos, estradas e pontos de apoio são uma constante nas fontes cuneiformes, os monarcas marcavam sua presença por meio dessas obras, que contribuíam para sua imagem como benfeitores de seu território e fiéis servos dos deuses. No entanto, não há fontes em sumério ou acádio que citem a rainha Nitócris. Ao menos, até o momento nada foi encontrado. Wolfgang Röllig (1969) lembra que nenhuma mulher reinou efetivamente na Mesopotâmia, embora pudessem ter status elevado como sacerdotisas ou rainhas-mães, mas tais obras citadas por Heródoto não podem ser atribuídas às figuras femininas. O autor aponta ainda que a lenda a respeito da tumba de Nitócris não é mais que uma anedota para ilustrar a ganância dos persas ou daqueles que profanavam os «santuários da Babilônia aludidos pelos aquemênidas» (Rölling 1969, 6), até porque os túmulos babilônicos nunca eram colocados nos portões das cidades (Rölling 1969, 6). Na busca de indícios sobre a existência de tal rainha, encontramos relatos acerca da morte e sepultamento de Adad-guppi, mãe de Nabonido, que aponta a importância dessa personagem. Adad-guppi teria falecido no quinto dia do Nisã de 546 aEC, tal data pode se relacionar à personagem de Heródoto, no entanto, a forma de sepultamento e honrarias não condizem com o relato do historiador (Röllig 1969, 7) Apesar das discrepâncias, para Wolfgang Rölling (1969, 8), Nitócris da Babilônia seria a rainha-mãe Adad-guppi, mãe dos Nabonidos, uma vez que o parentesco com o último rei está correto e que sua relação temporal com Semíramis é aceitável. Quanto às obras, estas podem ser atribuídas a Nabucodonosor II, o que mais uma vez ratificaria que Adad-guppi seria Nitócris. 306

A presença das mulheres na Literatura e na História

O nome de Nitokris encontra paralelo com o egípcio Neith-ʾikr.t, uma figura histórica também citada por Heródoto e que tem sua existência comprovada na VI Dinastia egípcia. As obras citadas por Heródoto como sendo realizadas por Nitócris apontam para as inscrições de obras realizadas por Nabucodonosor II, relacionando novamente Adad-guppi a Nitócris, no entanto, tais informações são especulativas, permanecendo a existência de Nitócris um mistério. Fontes históricas HERÓDOTO. 2006. História. Tradução de Pierre Henri Larcher (1726–1812). Versão para eBook: eBook Brasil. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/ historiaherodoto.pdf. Acesso em: 29 jan. 2021. Bibliografia geral DILLERY, J. 1992. Darius and the Tomb of Nitocris (Hdt. 1.187), Classical Philology, 87 (1), p. 30–38. NOWICKILI, S. 2020. Women in Early Mesopotamian Royal Inscriptions, ASOR, vol. VIII, n. 7. p. 1–7. RÖLLIG, W. 1969. Nitokris von Babylon. In: STIEHLl, R.; STIER, H. E. (Hrsgg.): Beiträge zur Alten Geschichte und deren Nachleben, Festschrift F. Altheim zum 6.10.1968. Berlin: de Gruyter, p. 127–135. STOL, M. 2016. Women in the Ancient Near East. Translated by Helen and Mervyn Richardson. Boston/Berlim: De Gruyte.

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MULHERES NA ÁFRICA ANTIGA

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres na África Antiga

por Margaret Marchiori Bakos

Foi com imensa honra e alegria que recebi o convite da Profa. Semíramis Corsi Silva e seus colegas editores, Prof. Rafael Brunhara e Prof. Ivan Vieira Neto, para fazer o capítulo introdutório da parte «Mulheres na África Antiga» deste Compêndio Histórico, que muito faltava em língua portuguesa. Quando, no início dos anos 1980, concluí o curso de História e escrevi minha primeira monografia acadêmica, sobre a Escravidão no Rio Grande do Sul, já fiz, então, àquela época, do escravizado, perseguido e massacrado, mas lutando por sua vida, o objeto e ponto de partida para o desenvolvimento de investigações que mergulharam no passado brasileiro com vistas a melhor compreender este fenômeno que deixou marcas tão vergonhosas na nossa sociedade. E esse povo vindo do passado, do qual foi surgindo esfarrapado, machucado, sempre protestando, gritando por liberdade, só fez aumentar, ao longo do tempo, meu orgulho e consideração por essa gente que, atualmente, ocupa espaços continentais. Uma das máximas do pensamento gramsciano que vem norteando, em inúmeras ocasiões, minhas reflexões, é a afirmação segundo a qual «todos os homens são intelectuais», independentemente do tipo de trabalho que exerçam, pois, por mais simples e repetitiva que seja a atividade por eles exercida, ela vem sempre acompanhada por algum tipo de elaboração intelectual.

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O que importa, na visão gramsciana, é o espaço em que essa atividade realizada está inserida no âmbito das relações sociais, uma vez que todos os trabalhos comportam esforço, atividade intelectual e possuem relevância social. Assim, as atividades desempenhadas pelos historiadores docentes em direção à educação histórica são um trabalho intelectual: a educação escolarizada é o resultado de um processo de produção socialmente condicionado, ou seja, de uma prática social que comporta um percurso de transformação da matéria-prima, representada pelo conhecimento, em um processo de formação particular, ocorrido em um dado lugar, com indivíduos socialmente organizados. Tais relações, estruturadas a partir da escola, comportam não só uma gama de conhecimentos, mas também o(s) professor(es), os alunos(as), a administração escolar, bem como o conjunto de funções que cada um desempenha nesse processo de produção. Esta perspectiva possibilita melhor entender o percurso de transformação que articula e concebe o ensinar e o aprender como uma operação laboral. Mais importante do que a matéria prima ou o produto, é a prática em um sentido estrito, ou seja, o trabalho responsável pelo processo de transformação: uma atividade de caráter intelectual. Ora, a divisão do trabalho, desde a Antiguidade, no caso do meio rural, vem conferindo habitualmente à mulher as funções de reprodutora, protetora e educadora, de administradora dos bens comestíveis, de justiceira responsável pela mais preciosa das articulações sociais: as relações fraternais, as trocas de mercado e, eventualmente, a agricultura familiar. Em caso de defesa, elas também pegavam em armas. A sua presença provedora de maternidade forneceu a centelha cerebral à comunicação humana e à organização social (Miles 1989, 19). 312

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Na África Ocidental, por exemplo, as mulheres sempre dominaram a economia de mercado, frequentemente se tornando grandes empreendedoras. Esta atividade somente foi suprimida pela colonização branca, passando para os homens, de acordo com padrões ocidentais, o controle do poder (Miles 1989, 216). Minha formação como antiquista também me fez ver que, nas sociedades africanas, as mulheres sempre desempenharam papéis fundamentais como estruturadoras e organizadoras do meio social e doméstico. Desde o início do processo de sedentarização, elas já lá estavam, assumindo as tarefas agrícolas, sendo responsáveis pela sobrevivência física das comunidades (Fonseca 2019,1). Seu papel na agricultura variava de acordo com sua posição no Continente Africano. Focando a bacia do rio Nilo no Sudão, o comportamento dinâmico do rio, com épocas de alto e de baixo volume de águas, transformava áreas previamente férteis em locais totalmente inabitáveis e impróprias para a sedentarização em curto período de tempo (Welsby 2002, 137). Nestas condições de nomadismo, a fome era geral e a exploração feminina poderia ser maior. Segundo Cheik Anta Diop, a organização matriarcal é uma das bases da unidade cultural africana (Fonseca 2019, 1). Em consonância com Diop, Fonseca refere que «[...] Em todas as representações de coroação de soberanos kushitas é possível observar a presença de sua mãe e de sua esposa. Sem elas esta cerimônia não ocorreria, pois são as responsáveis por agitar o sistrum e também oferecer as libações, exercendo as funções de sacerdotisas e inaugurando o governo do novo soberano. A mãe ainda é responsável por realizar um discurso, onde clama por Amon para que conceda a função de governante para seu filho» (Fonseca 2019, 21). 313

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Através de toda a África, os antigos padrões tribais, próximos da natureza e de suas origens, respeitavam os direitos das mulheres e lhes davam liberdades que, no resto do mundo, tinham desaparecido dentro da Mitologia (Miles 1989, 127). O lento ritmo de instalação das mudanças e a continuidade das tradições ancestrais por vezes as favoreciam. Uma festividade exclusivamente feminina, a «Festa do Sal», foi registrada primeiramente por Heródoto, no século V aEC. A importância da mulher na produção, administração e comércio deste bem valioso era tanta, que lhe conferia um status de superioridade (Miles 1989, 127). Segundo Heller, todos são, sem exceção, seres singulares, que, como coletivo, são, em verdade, incapazes de servir como modelos. Se sempre se viveu de forma peculiar, particular, isto se deve a uma única razão: a historicidade de cada um (Heller 1993, 14). Michel de Certeau (1982) afirmou: sigam as pessoas, investiguem as escolhas que as levaram a traçar os seus caminhos e terão suas histórias. Segundo este autor, somente o entrelaçamento dos fios que teceram suas seleções interpessoais, possibilita que se chegue ao seu âmago, batendo a elas palmas, ou jogando na lama suas memórias. Em todas as épocas da história, nas quais os autores deste livro buscaram respostas para seus questionamentos sobre as mulheres africanas, provavelmente encontraram muitos vazios ou estereótipos e, dentre eles, alguns sejam objeto de profunda admiração. Hoje, mais do que antes, tem-se plena ciência de que nunca existiu apenas uma África, apenas uma mesma arte africana e, muito menos, apenas uma mesma mulher africana em qualquer tempo da história deste continente e de qualquer um dos outros. 314

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Curiosamente, ainda que todos, sem exceção, sejam seres singulares, como coletivo, demonstram sua incapacidade de servirem de modelos. E, se nos cantos, vivem de uma forma peculiar, isto se deve, indubitavelmente, reitera-se, à sua historicidade. A história de cada um apenas carrega ou rompe, com sorte, com os limites de seu tempo, das circunstâncias, dos espaços e lugares. Entretanto, quando as ideias e invenções dos seres humanos migram, elas logo são transformadas por quem delas se apropria. A Antropologia chama este fenômeno de transculturação. Fernando Ortiz, ao descobrir e depois ensinar sobre esse efeito das ações e invenções humanas, foi indicado para o prêmio Nobel. Não ganhou, mas deu ao mundo essa lição sobre a singularidade universal, na qual qualquer cópia sempre pressupõe transformação. Na presente obra, muitos autores, certamente, seguiram este caminho, pois inexiste uma fala que ressuscite inteiramente essas mulheres apenas através de seus discursos e práticas, em consonância com a realidade de qualquer continente. Basta folhear estas páginas e sair por aí «abraçando» essas fêmeas singulares, ressuscitadas ao longo do presente livro: todas iguais, com suas diferenças. Mas, essas fêmeas não existem no plural; são todas singulares. Por isso, no tempo presente em que redijo este texto, falo de coração: somos mulheres, simplesmente. Mulheres de mãos dadas, unindo com essas mãos, se preciso, todos os continentes deste mundo globalizado. Bibliografia geral CERTEAU, M. 1982. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária. DUBY, G.; PERROT, M. 1982. Historia de las mujeres, La Antigüedad. Madrid: Taurus. 315

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FONSECA M. B. & OLIVEIRA, F. C. 2019. Áfricas e suas relações de gênero. Rio de Janeiro: Áfricas. GRAMSCI, A. 1978. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. HELLER. A. 1993. Uma teoria da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. MILES, R.1989. The Women’s History of the World. London: Paladin. ORTIZ, F. 1983. El contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco. Cuba: Editorial de Ciencias Sociales.

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𓈖

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-iqret (Nitócris) 𓏏𓂃 𓇋𓂋𓏭𓅆 › Neith por Wellington Rafael Balém

A faraó Neith-iqret, ou Nitócris, como foi registrada pela tradição grega e latina, é uma personagem do Egito do século XXII aEC (2184–2181 aEC) e um mistério para a egiptologia. Seu nome significa «Neith é Excelente», em alusão à ancestral e complexa deusa da criação, da guerra, da maternidade, do pós-vida, protetora do Baixo Egito. Para explicitar a referência à divindade, optamos pela grafia «Neith-iqret» em vez de «Nitiqret», como o nome da rainha também pode ser encontrado na literatura. Não restaram fontes históricas diretas sobre ela, mas foi registrada em listas de reis de períodos posteriores e em documentação estrangeira. Heródoto a descreveu como parte integrante da lista de faraós do Egito, Manetho a situou no final da Sexta Dinastia (2345– 2181 aEC), além de ser citada por diversos outros escritores antigos. Não apenas a cronologia aproximada tem sido matéria de questionamento, como também sua existência real como faraó, como mulher e como personagem da oralidade tardia. Para o egiptólogo Percy Newberry (1943, 53), Neithiqret teria sido, na realidade, a Rainha Neith (2278–2200 aEC), filha mais velha do faraó Pepi I (2321–2287 aEC) e irmã dos futuros soberanos Merenra I (2287–2278 aEC) e Pepi II (2278–2184 aEC). Nesse sentido, ela provavelmente casou-se com Merenra I e, após a morte desse, com Pepi II. Durante a infância deste faraó, ela teria governado como regente. Rainha proeminente em seu tempo, dispondo de uma pirâmide em Saqqara, Neith poderia ter sido a inspiração para a criação das histórias sobre a personagem que mais tarde seria evocada

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como Nitócris. Parece plausível supormos que Neith e Neithiqret sejam a mesma pessoa, mas as evidências em que essa ideia se baseia são frágeis —basicamente um relevo fragmentário da capela da pirâmide de Neith—, sendo mais provável que sejam mulheres diferentes. Uma hipótese mais verossímil é a de que Neith-iqret tenha sido filha de Pepi II e da própria rainha Neith, embora também possa ter como mãe alguma das rainhas mais tardias. Como explica a egiptóloga Maria Thereza David João (2015), a primeira metade do longo reinado de Pepi II se caracterizou por uma série de decretos administrativos que visavam manter a lealdade das elites das províncias, principalmente através da isenção de impostos, da construção de templos para deuses e deusas locais e capelas funerárias. Mas a frágil estabilidade do poder não se perpetuou. Na segunda metade de seu governo, ela foi agravada por problemas ambientais, que tornavam a segurança alimentar uma incógnita e rebeliões populares uma realidade. As fronteiras egípcias eram forçadas por tentativas de invasão por povos estrangeiros, provavelmente também atingidos por instabilidades climáticas. Mudanças na mentalidade religiosa das elites locais começaram a surgir como formas de legitimação de seu poder, o que contribuiu para a corrosão da centralidade do faraonato na então capital, Mênfis. Ao final da Sexta Dinastia, muitos líderes regionais foram proclamados faraós simultaneamente em diversas regiões do país. Os reis que sucederam Pepi II foram classificados pelo historiador Manetho como efêmeros, governando por breves períodos. Essa fragmentação daria origem posteriormente ao que a Egiptologia chamaria de Primeiro Período Intermediário (2160–2055 aEC). É nesse contexto, que certamente foi agravado por problemas sucessórios, já que Pepi II sobreviveu à maioria dos seus herdeiros, que Neith-iqret surge. Sua ascensão 318

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ao poder pode ter se dado através do casamento com seu irmão, ou meio-irmão, Merenra II (c. 2184 aEC), que morreu pouco tempo depois, assumindo ela mesma como faraó. Tradicionalmente é conhecida por ter sido a primeira mulher a ter exercido o poder no Egito antigo como tal, episódio normalmente anunciado com surpresa. Mas, como mostrou a egiptóloga Carolyn Graves-Brown (2010), são conhecidas diversas outras mulheres do Período Dinástico Inicial (3000– 2686 aEC) que também o fizeram, como as rainhas MeritNeith e Neith-Hotep, tendo em comum a adoção do nome da deusa Neith. Diferentemente de suas ancestrais, que possuem monumentos que evidenciam suas existências, mesmo que possam não constar nos cânones reais, não há nenhuma estrutura construída por Neith-iqret encontrada até hoje, o que deu margem para muitas interpretações. Uma delas é que seu complexo funerário, provavelmente situado na região de Saqqara, importante necrópole da Sexta Dinastia, tenha sido destruído ainda na Antiguidade. Outra, proposta pelo egiptólogo Kim Ryholt (2000, 92–93), é a de que Neithiqret simplesmente jamais tenha existido. Para ele, a falta de informações sobre uma grande quantidade de reis dessa época alimentou lendas que teriam se originado de um certo faraó chamado Netjerkare Siptah, figura que pode ser deduzida da análise de listas de reis. Essa personagem teria se consagrado na longa tradição de contos egípcios que remontam ao Reino Antigo, sendo reinterpretada posteriormente por historiadores mediterrânicos. A fonte egípcia mais antiga que menciona Neithiqret é o Cânone Real de Turim (Gardiner 1959) do período raméssida (1295–1069 AEC), ou seja, muito posterior. O documento mostra que a última pessoa a ser governante da Sexta Dinastia foi alguém com o nome de Ntikrti, que pode 319

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ser traduzido como Neith-iqret, que governou por pouco mais do que dois anos. A Lista de Reis de Abidos, da mesma época que a anterior, situa ao final da Sexta Dinastia o nome Netjerkara, tradicionalmente tido como um faraó masculino. Mas, segundo a egiptóloga Christiane Zivie-Coche (1972, 125), os dois nomes são correspondentes e tratam-se muito provavelmente da Neith-iqret histórica. Posteriormente, no início do Período Tardio (664–332 aEC), vigorou um certo arcaísmo nacionalista, em que elementos culturais de períodos ancestrais áureos foram reapropriados, possivelmente como uma espécie de movimento conservador diante da fragmentação interna e invasões estrangeiras. Promoveu-se, assim, a importância do culto da deusa Neith em Sais, de onde os faraós governavam o norte, e o nome de Neith-iqret foi adotado por pelo menos duas Divinas Adoradoras, que, na prática, governavam o sul a partir de Tebas. No século V aEC, o historiador grego Heródoto visita o Egito. Os sacerdotes lhe relataram, entre numerosas gerações, trezentos e trinta nomes de reis, quase todos egípcios, sendo dezoito núbios, e apenas uma mulher, a quem registrou como Nitócris, associando-a com uma personagem babilônica homônima. Ao descrevê-la, relata um complexo estratagema. Para vingar-se dos assassinos de seu irmão, que a antecedera no trono, Nitócris os convocou a uma câmara subterrânea sob o pretexto de lhes oferecer um banquete. Enquanto eles se fartavam, ela ordenou a inundação do local com as águas do Nilo canalizadas, matando a todos. Para evitar ser alvo de vingança, ela tirou a própria vida sufocando-se em um recinto cheio de cinzas (Histórias, II. 100). Embora permita a associação da figura do irmão de Neith-iqret com Merenra II, a narrativa de Heródoto, mesmo que baseada na tradição oral, é provavelmente fantasiosa, exagerada ou fruto da tentativa de retratar a visão grega de uma rainha bárbara. 320

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O sacerdote Manetho (século III aEC) perpetuou o nome herodotiano da rainha Neith-iqret. Nos fragmentos que restaram, ele a descreve como tendo sido a mulher mais bela e corajosa de seu tempo, tendo governado por doze anos, embora saibamos que sua cronologia é problemática e lacunar. Ele, assim como outros autores antigos, como Eratóstenes, Diodoro, Estrabão e Plínio, o Velho, também registra que ela teria a pele clara e que havia construído uma certa «terceira pirâmide». Como mostrou Zivie-Coche (1972), ambas são afirmações que se perpetuaram e acabaram gerando confusão. O fenótipo, ao qual os autores mediterrânicos antigos acrescentam cabelos loiros e faces rosadas, pode ser apenas um recurso de distinção social empregado no texto. Mesmo que princesas estrangeiras pudessem alcançar altas posições na hierarquia egípcia, especialmente da época de Neith-iqret, nada evidencia que ela não fosse nativa. No que se refere à tal pirâmide, muitos autores antigos e modernos consideraram erroneamente que se tratava do complexo funerário de Menkaure (Miquerinos), com base nas lendas tardias da rica cortesã grega que viveu em Náucratis, de nome Rodópis, e que teria mandado construir uma pirâmide para si. A existência histórica de Neith-iqret é questionável, mas não há motivos para duvidar que a personagem foi de fato uma mulher, muito menos para buscar um faraó masculino que tivesse inspirado suas lendas do Período Tardio. Sua vida privada e sua personalidade podem ser apenas supostas. Proveniente de uma época bastante lacunar em termos de fontes históricas, a trajetória de sujeitos como Neith-iqret precisa ser estudada nas entrelinhas da documentação de outros períodos, o que nem sempre é simples. No caso desta soberana do final da Sexta Dinastia, o mistério permanecerá, pelo menos, até a arqueologia encontrar materiais diretamente ligados a ela, ou que resolvam o enigma nas listas de reis. 321

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Ao fim e ao cabo, mesmo que trate-se de uma personagem de origem literária ou da oralidade de longa duração, a rainha não tem sua importância reduzida, pois sua representação traz em si as marcas de seu tempo. Fontes históricas GARDINER, A. 1959. The Royal Canon of Turin. Oxford: Griffith Institute. HERÓDOTO. 2016. Histórias. Livro II Euterpe. Tradução e notas de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro. Bibliografia geral GRAVES-BROWN, C. 2009. Dancing for Hathor: Woman in Ancient Egypt. Nova York: Continuum. JOÃO, M. T. D. 2015. Estado e elites locais no Egito do III Milênio a.C. Tese de Doutorado em História Social defendida na Universidade de São Paulo – USP. NEWBERRY, P. E. 1943. Queen Nitocris of the Sexth Dynasty, The Journal of Egyptian Archaeology (JEA), n. 29 p. 51–54. RYHOLT, K. 2000. The Late Old Kingdom in the Turin King-list and the Identity of Nitocris, Zeitschrift für ägyptische, n.127 p. 92–93. ZIVIE-COCHE, C. 1972. Nitocris, Rhodopis et la troisième pyramide de Giza, Bulletin de l’Institut Français d’Archéologie Orientale (BIFAO), n. 72, p. 115–138.

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𓏏 𓂋 -Nefertiry 𓄟 𓄤 𓇋 𓏭 › Ahméspor Moacir Elias Santos

𓇺

A rainha Ahmés-Nefertiry, em egípcio ı͗ ꜥḥ-ms nfrt-ı͗ ry, que pode ser traduzido como «A bela companheira de Ahmés» (lit.: «Concebido por Iah» — uma divindade lunar), viveu no princípio do Reino Novo (c. 1550–1070 aEC). Casou-se com seu irmão Ahmés I (1550–1525 aEC), portando os títulos de snt-nswt, ou «irmã do rei», e ḥmt-nswt wrt ou «grande esposa real», que foi responsável pelo processo final de reunificação do Egito, dando início à XVIII Dinastia (período que corresponde aos anos de 1550–1307 aEC). Ahmés-Nefertiry, assim como seu irmão-esposo, eram filhos do rei Seqenenra Taa II (c. 1560–1558 aEC) e da rainha Ahhetep I (c. 1560–1530 aEC) (Laporta & Gestoso Singer 2010, p. 8). Ahmés-Nefertiry deu à luz nove crianças (quatro filhos e cinco filhas), sendo que cinco faleceram na infância. O herdeiro do trono, Amonhetep I (c. 1525–1504 aEC), ainda era criança quando sua mãe atuou como regente de seu reinado (Tyldesley 2006, 90). Foi a partir daí que ela utilizou o título de mwt-nswt ou «mãe do rei». Sobre as fontes que nos permitem tratar desta soberana, dispomos de uma estela encontrada no templo de Karnak, conhecida como «Estela da Doação», inscrições de seu nome ao lado de Ahmés I, presentes em pedreiras de calcário (na região de Mênfis) e de calcita (na região de Asyut), em templos (como os de Tebas, Abydos e Serabit el Khadim). Há também inscrições e representações da rainha em tumbas, inúmeras estelas provenientes da vila de Deir el-Medina, com imagens da rainha ao lado de seu filho Amonhetep I, além de estatuetas da soberana.

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Para compreendermos a importância que a rainha Ahmés-Nefertiry teve na consolidação do poder religioso em Tebas, é necessário retrocedermos à XVII Dinastia. Nesta época, a porção oriental do delta do Nilo se encontrava sob domínio dos hicsos, um povo originário da área do Levante, enquanto a região de Elefantina, correspondendo à área ao sul da atual Assuã, estava sob ocupação dos núbios. Os egípcios, portanto, encontravam-se confinados na região de Tebas, pressionados por ambos (Bianchi 1992, 38). Neste contexto, uma das famílias locais iniciou um levante contra os invasores e batalhas ocorreram. A múmia do rei Seqenenra Taa, que se encontra atualmente no Museu Nacional da Civilização Egípcia, em Fustad, possui diversos ferimentos na cabeça que indicam que ele foi capturado durante uma batalha e sacrificado, provavelmente perante os chefes hicsos. Já a rainha Ahhetep I, com a morte de seu marido, teve um importante papel político e militar que pode ser compreendido pela inscrição em uma estela de Karnak e também pelos inúmeros artefatos que foram encontrados junto ao seu corpo, entre os quais está um colar com três moscas de ouro —que representa a honra— atualmente em exposição no Museu de Luxor. Sem dúvida, Ahhetep I foi a grande responsável por auxiliar Kamés, o sucessor de Seqenenra no trono, e Ahmés I, seu filho, na expulsão dos invasores. Ahmés-Nefertiry, acabou seguindo os passos de sua mãe, pois junto com seu irmão-esposo Ahmés I teve um importante papel político e religioso na reconstrução do Egito. Sabemos que ela foi responsável pelo reestabelecimento dos templos, atividade inicialmente feita por meio de um troca de um cargo: o de segundo sacerdote de Amon. Na «Estela da Doação» se lê: «[Eu dei] o ofício de segundo sacerdote de Amon à esposa do deus, grande esposa real, que está unida à beleza da coroa branca, Ahmés-Nefertiry, que ela viva!» (Harari 1959, p. 141) 324

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O título de «segundo sacerdote de Amon» entregava a ela a administração das propriedades do templo, de seus recursos e dos funcionários associados. O texto da estela também nos informa como tais bens permaneceriam como herança para seus descendentes (Tyldesley 2006, 88–89). Já o título de «Esposa do Deus», em egípcio ḥmt-nṯr, que está diretamente associado a Ahmés-Nefertiry, também pode ser encontrado em estelas privadas, como nas que pertencem a coleção do Museu Egípcio de Turim (estelas 50032 e 50037). Nelas a rainha é denominada ḥmt-nṯr nb(t) tꜣwy, «Esposa do deus, Senhora das Duas Terras» (Tosi & Rocatti 1972, 65) e ḥmt-nṯr nt ı͗ mn «Divina esposa do deus Amon» (Tosi; Rocatti 1972, 71), que é reconhecidamente um dos cargos mais altos na hierarquia sacerdotal do Egito antigo. Tal título conferia à rainha uma atuação direta nos templos e garantia a sua participação em todas as etapas do ritual diário. Isto incluía a purificação no lago sagrado, o acesso ao «Santo dos Santos», o oferecimento de víveres e oferendas, a destruição de imagens de inimigos para manter a ordem, o chacoalhar do sistro e o auxílio da divindade em seu poder criador (Laporta & Gestoso Singer 2010, 9). Neste último caso, o título drt-nṯr, ou «mão do deus», faz alusão ao mito de criação heliopolitano no qual Atum, pelo ato da masturbação, deu início ao processo de criação de sua descendência e do próprio mundo. A «Estela da Doação» também apresenta uma cena, na qual se vê o faraó Ahmés I fazendo uma oferenda de um pão cônico com a mão esquerda para Amon, que está em sua frente, enquanto segura com a direita a mão do jovem príncipe Amonhetep I, mostrado nu e com a trança lateral como sinal de infância. Atrás de ambos está Ahmés-Nefertiry com a mão apoiada sobre o ombro do rei, mas representada com a mesma escala. Observa-se que Amon, Ahmés I e Ahmés-Nefertiry, estão de acordo com a norma da isocefalia, numa escala de 325

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tamanho que salienta o fato da rainha possuir o mesma posição que o faraó. Tal imagem, associada a outras representações e inscrições, revelam que a rainha esteve munida de grande autoridade. É certo que ela participou ativamente das construções, visto que as pedreiras foram reabertas e seu nome está diretamente associado ao do rei. As de calcário, por exemplo, que estão situadas próximas a Mênfis, mencionam a extração de rochas para os templos de Ptah e de Amon, em Tebas, no 22° ano do reinado de Ahmés I (Breasted 2001, 12). Sabemos que o faraó consultava a sua esposa, pois em um projeto de construção de um cenotáfio em honra à «mãe de minha mãe, e a mãe de meu pai, a Grande Esposa Real e Mãe do Rei, Tetisheri» , isto é, a sua avó, ele deixou registrada a opinião de Ahmés-Nefertiry (Robins 1996, 44). Com a morte de Ahmés I seu filho, Amonhetep I, foi coroado, contudo o rei era demasiado jovem para assumir o trono. Assim, a rainha Ahmés-Nefertiry atuou como regente, até que ele se tornou apto a governar o Egito sozinho. O jovem faraó não deixou herdeiros, mas sua mãe Ahmés-Nefertiry sobreviveu até o reinado seguinte: o de Tothmés I. Ao falecer a rainha foi devidamente preparada para a vida eterna, pois seu corpo foi submetido a um processo de mumificação e, posteriormente, junto com seus bens, foi inumada na região de Dra Abu el-Naga. Postumamente Ahmés-Nefertiry foi adorada ao lado de seu filho como os fundadores da vila de Deir el-Medina (Bierbrier 2003, 91), onde viviam os trabalhadores que construíram as tumbas reais, no Vale dos Reis e das Rainhas, além de suas próprias «casas da eternidade» nas cercanias. O status póstumo da divindade de Ahmés-Nefertiry pode ser atestado por meio de diversas inscrições e imagens que foram 326

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produzidas entre o reinado de Tothmés III até o final da época Raméssida, que corresponde a um período de ocupação da vila de Deir el-Medina. Vejamos, como exemplo de inscrição, uma fórmula de oferenda da estela de Aapanefu (n. 50073 do Museu de Turim) onde a rainha é nomeada junto aos demais deuses: «Uma oferenda que o rei faz a Amon-Ra, Ptah, Senhor da Verdade, e Ahmés-Nefertiry, para que eles propiciem uma bela existência para o ka do sacerdote-uab Aapanefu» (Tosi; Rocatti 1972, 109). Já entre as imagens podemos destacar as figuras em madeira, que representam a rainha em pé, trajando um vestido justo, com a perna esquerda à frente e o braço esquerdo flexionado, portando um cetro flexível (ou espanta mosca?), enquanto o direito está estendido ao lado do corpo. A face jovial é emoldurada por uma peruca tripartite, com o adorno de abutre, enquanto o topo da cabeça possui uma base para uma coroa hathórica. As inscrições presentes nas figuras apresentam os títulos de Ahmés-Nefertiry e apontam seu caráter votivo. Enquanto era celebrada junto com seu filho em procissões e seu culto era mantido em capelas, Ahmés-Nefertity jamais imaginaria que sua múmia seria danificada e removida de sua tumba. No final do Reino Novo uma série de problemas sociais e econômicos, que incluíam saques de tumbas, levou os sacerdotes de Amon, já durante a XXI Dinastia, a uma busca pelas múmias que ainda se encontravam nas tumbas. Depois de «restauradas» e «reenfaixadas» as múmias restantes foram inumadas coletivamente em uma tumba (DB320), na parte sul de Deir el Bahari, que ficou conhecida como «Primeiro Esconderijo Real». Ahmés-Nefertiry, que se encontrava em seu gigantesco ataúde, dividia o espaço interno com a múmia de Ramsés III, e ao seu redor estavam outras 38 múmias de personalidades 327

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régias e sacerdotais. Tais múmias somente viriam a ser perturbadas em 1871, quando os irmãos Abd el-Rassul descobriram o local e saquearam alguns artefatos. Dez anos depois, os irmãos revelaram para as autoridades o local e a tumba foi «oficialmente» registrada pelo Serviço de Antiguidades. As múmias e peças associadas foram levadas para o Cairo e, desde então, passaram por algumas mudanças e estudos, ainda no museu de Boulaq, onde foram desenfaixadas sob a supervisão de Gaston Maspero, para duas salas no Museu do Cairo (Forbes 1998, 17–49). Em 3 de abril de 2021, Ahmés-Nefertiry e outras 21 múmias reais foram transferidas do Museu do Cairo para uma nova sala no Museu Nacional da Civilização Egípcia, em Fustad. Fontes históricas BREASTED, J. H. 2001. Ancient records of Egypt: the Eighteenth Dynasty. Vol. 2. Urbana and Chicago: University of Illinois Press. HARARI, I. 1959. Nature de la Stèle de donation de fonction du roi Ahmôsis à la reine Ahmès-Nefertari, ASAE, 56, p. 139–201. TOSI, M.; ROCATTI, A. 1972. Stele e altre epigrafi di Deir el Medina: 50001–50262. Torino: Edizioni D’Arte Fratelli Pozzo. Bibliografia geral BIANCHI, R. S. 1992. Some royal women of the Seventeenth and Eighteenfh Dynasties, In: In the tomb of Nefertari: Conservation of the wall paintings. Santa Monica, p. 36–45. BIERBRIER, M. 2003. The tomb-builders of the pharaohs. Cairo: The American University of Cairo Press. 328

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FORBES, D. C. 1998. Tombs, treasures, mummies: seven great discoveries of Egyptian Archaeology. Sebastopol & Santa Fe: KMT Communications, Inc. LAPORTA, V.; GESTOSO SINGER, G. 2010 Life and afterlife of Ahmose Nefertari, i-Medjat, 5, p. 8–10. ROBINS, G. 1996. Women in Ancient Egypt. Cambridge: Harvard University Press. TYLDESLEY, J. 2006 The complete queens of Egypt: from Early Dynastic times to the death of Cleopatra. Londres: Thames & Hudson.

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𓏏 › Hatshepsut 𓏏𓀼 𓏼

𓄂

por Priscila Scoville

Filha de Tothmés I, Hatshepsut (c. 1479–1458 aEC) foi uma entre as quatro mulheres que usufruíram do posto de faraó. Apesar de não ter sido a primeira a ter conquistado tal feito (esse título pertence à rainha Sobekneferu), Hatshepsut é um dos nomes mais comuns atualmente quando pensamos em mulheres do Egito — atrás somente de Cleópatra e, talvez, Nefertiti e Nefertari. Enquanto governante, Hatshepsut teve um longo reinado de vinte e dois anos, conseguindo fazer com que seu nome se perpetuasse pela eternidade. Ela promoveu diversas construções ao longo do território egípcio, como quatro obeliscos e a Capela Vermelha do templo de Karnak, o templo de Speos Artemidos e o seu grande templo funerário em Deir el-Medina. Nas paredes desses e de outros monumentos, Hatshepsut registrou seu legado, suas origens divinas e suas conquistas. A história de Hatshepsut é bastante particular e nos ajuda a compreender a civilização egípcia a partir de diversos aspectos. A rainha nasceu no início da XVIII Dinastia, quando os egípcios estavam consolidando um império na Síria após a expulsão dos hicsos. Seu pai, Tothmés I, conseguiu levar tropas até as margens do rio Eufrates, passando o rio Orontes. Foi nesse momento que o Egito conheceu riquezas e espólios que vinham da região do Levante. Tothmés I não possuía filhos homens com a rainha Ahmose Nefertari e, para garantir uma sucessão pacífica e legítima, casou o filho que teve com uma esposa secundária, com a filha que teve com sua esposa principal — essa filha era

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Hatshepsut. O novo faraó, Tothmés II, teve um reinado breve e morreu, também, sem herdeiros homens. Quem ascendeu ao trono, então, foi seu filho, Tothmés, com uma esposa secundária e, assim como acontecera com seu pai, Tothmés III precisou casar-se com sua meia irmã, filha de Hatshepsut. A morte prematura de Tothmés II colocou seu filho muito jovem no trono e, por isso, uma corregência foi necessária. Como a mãe de Tothmés III não era a esposa principal do rei, Hatshepsut tornou-se a responsável pelo Egito. A prática de regência é bastante comum na história egípcia e não foi uma novidade no período. A diferença da postura de Hatshepsut se dá quando ela assume as insígnias de faraó para si e, assim, deixa de ser apenas uma rainha para se tornar um rei. A julgar pelas estátuas da rainha como mulher sem insígnias ou títulos de rei, Hatshepsut não pretendia tomar o governo para si nos primeiros anos. Ela aparecia da mesma forma que outras mulheres na mesma posição já haviam se representado. Em algum momento entre os 2° e o 7° anos de governo a situação mudou: ela foi coroada faraó e assumiu os títulos e os tradicionais nomes reais, agora adaptados para o feminino. Tal ascensão ao trono foi possível porque a rainha estava em uma boa posição: era filha do faraó que legitimou o poder de seu marido e foi apoiada por grupos poderosos, como o clero de Amon e alto-funcionários. O clero de Amon, representado pelo sumo sacerdote Hapusoneb, foi importante para a confirmação de teogonia, criando o mito de nascimento da rainha. Os alto-funcionários, como o vizir Ahmose, contribuíram para o funcionamento das instituições egípcias, cercando a rainha com mais pessoas confiáveis. Contudo, o maior aliado de Hatshepsut parece ter sido Senenmut, o Fiscal de Obras, Fiscal do Palácio Real e Fiscal do celeiro de Amon. 332

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Senenmut tinha uma origem humilde quando foi nomeado para o cargo, ainda no governo de Tothmés II. Muitas pessoas, desde os tempos faraônicos, especulam que Senenmut era amante de Hatshepsut. Em tumbas da margem oeste de Tebas é possível encontrar grafites que simulam os dois tendo relações sexuais. Em Deir el-Bahari, vê-se o desenho de uma mulher que usa a coroa real curvada sendo penetrada por um homem que porta uma insígnia de fiscal. Apesar de não haver evidências que confirmem a suposição, ela é reforçada por não existir qualquer menção a uma esposa de Senenmut, e por ele possuir regalias e prestígio durante o governo de Hatshepsut. Além dos altos cargos, ele também se tornou tutor de Nefrure, a filha do casal real, colocando-o no círculo interno da família real. Estátuas de Senenmut com Nefrure em seu colo mostram a aproximação com a família. É ele, também, quem assina a autoria, enquanto arquiteto, do templo mortuário de Hatshepsut em Deir el-Bahari. E mais, a câmara mortuária de uma das tumbas de Senenmut não está localizada abaixo da capela, conforme a norma, mas escavada após uma série de túneis que a colocavam perto do templo de Deir el-Bahari. Isso talvez seja uma indicação de que Senenmut pretendia estar próximo ao culto eterno de Hatshepsut, mesmo após sua morte (Cooney 2014, 292). Também conhecido como Djeser Djeseru (lit. maravilha das maravilhas), o templo mortuário ainda nos revela muitas outras questões sobre a vida da rainha-faraó. É lá, por exemplo, que uma versão do mito do nascimento da rainha está representada. Hatshepsut não é o primeiro governante a se declarar filho de um deus, mas é a primeira a representar a cena do nascimento divino em seu templo. A narrativa afirma que o deus Amon, personificado na figura de Tothmés I, deitou-se com a rainha Ahmose e, dessa união, nasceu Hatshepsut. Apesar da imagem de Amon, durante o ato, ser a de Tothmés 333

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I, o deus poderia ser reconhecido pelo seu cheiro divino. Tal cheiro era associado ao seu local de nascimento, que na crença egípcia era Punt (provavelmente na atual Somália ou Etiópia). Punt também é representada em Deir el-Bahari, mas com um foco diferente. Um dos feitos mais celebrados do governo de Hatshepsut é a expedição que promoveu para lá. O trajeto para o local de nascimento dos deuses era difícil e envolvia carregar um barco através do deserto até o Mar Vermelho, de onde partiria para o sul. Nas paredes do templo Djeser Djeseru existem cenas representando a fauna e a flora de Punt, o contato com a rainha local e o pagamento de tributos, que incluem materiais e objetos que são associados à revitalização e à essência da vida, como o incenso. Até hoje, na entrada do templo, é possível encontrar a raiz de uma árvore levada de Punt como presente ao Egito. A jornada para Punt contribuiu, ainda mais, para que Hatshepsut se legitimasse faraó, tendo um papel importante na revitalização do Egito — uma das funções do rei. Contudo, seus atos não pararam por aí. A rainha foi responsável por expandir o culto de Amon, criando uma conexão direta entre os reis e o deus; promoveu campanhas militares, liderando, pelo menos, duas batalhas (ainda que estivesse consciente que, por ser mulher, ela não poderia se igualar aos seus antecessores nesse contexto); e fomentou atividades comerciais e grandes projetos de construção, como templos em Kom Ombo, Hierakopolis, Elefantina e, principalmente, em Tebas. Tebas era o centro do culto de Amon, por isso, não sem razão que muitas contribuições da rainha tenham acontecido nesta região. Entre os quatro obeliscos que ela construiu em Karnak, dois estão desaparecidos, um tombado e outro ainda permanece em sua posição original. Os obeliscos foram feitos em homenagem a Amon, deus de sua devoção, considerado seu pai divino, e a Tothmés I, seu pai terreno. Neles, as inscrições 334

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confirmam a legitimidade de Hatshepsut enquanto herdeira do deus. Em Karnak, a Capela Vermelha igualmente declara sua linhagem divina. A Capela Vermelha ainda apresenta questões sobre sua relação com Tothmés III. Nela, ambos aparecem lado a lado, com o mesmo tamanho, apontando uma paridade em importância. Apesar de não sabermos as razões que levaram Hatshepsut a se tornar faraó, Tothmés III parece ter aceitado bem a posição. Não há evidências de rivalidade nem mesmo tentativas de excluir Tothmés III da vida pública. Também não sabemos quando ela subiu ao trono, mas uma vez coroada, ela não poderia abdicar quando Tothmés III estivesse pronto para governar. Posteriormente, Tothmés III apagou o nome e a imagem de sua madrasta de alguns monumentos. Tais atitudes não aconteceram imediatamente após a morte da rainha —mas cerca de 20 anos depois— e Tothmés III não completou a destruição. Os motivos para se apagar alguns atos de Hatshepsut podem ser: entendeu-se que ela passou dos limites aceitáveis para uma governante mulher; ou se acreditava que era melhor mostrar as ações de Hatshepsut como parte do governo do novo faraó (Graves-Brown 2010, 151). Ainda assim, ao apagar a imagem e cartuchos da rainha, Tothmés III não os substituiu pelo seu próprio nome e figura, mas colocou o de seu filho Amenhotep II — talvez, para estabelecer a linha sucessória. De qualquer modo, não parece haver algum ressentimento contra a rainha, já que ele não quis destruir sua existência e manteve estátuas intactas. Acredita-se que Hatshepsut morreu em 1458 aEC, seus vasos canópicos e seu sarcófago foram encontrados na tumba KV20, mas nenhum corpo estava presente. Posteriormente identificada como Hatshepsut, uma múmia foi encontrada na tumba da enfermeira real, Sitre. A tumba foi descoberta em 1903 por Howard Carter, mas ele não se interessou por 335

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estudá-la. Em 1906, ela foi reaberta, para a retirada do corpo de Sitre. O estudo sobre a múmia de Hatshepsut só começou em 1989, quando Donald P. Ryan decidiu revisitar a tumba e retirou a segunda múmia. Em 2007, exames de DNA revelaram que o corpo anônimo que ainda estava na tumba era a Rainha-faraó. Hoje ela descansa no Museu Nacional da Civilização Egípcia (NMEC). Fontes históricas BREASTED, J. H. 2001. Ancient records of Egypt: the Eighteenth Dynasty. Vol. 2. Urbana and Chicago: University of Illinois Press. LICHTHEIM, M. 2006. Ancient Egyptian Literature. The New Kingdom. Vol. 2. California: University of California Press. Bibliografia geral COONEY, K. 2014. The Woman Who Would be King. Hatshepsut’s Rise to Power in Ancient Egypt. New York: Crown Publishers. DORMAN, P. F. 2006. The Early Reign of Thutmose III: An unorthodox mantel of coregency. In: CLINE, E. H; O’CONNOR, D. (Eds.). Thutmose III. A New Biography. Michigan: Michigan University Press, pp. 39–68. GRAVES-BROWN, C. 2010. Dancing for Hathor. Women in Ancient Egypt. Londres: Continuum. ROEHRIG, C. H. (Ed.). 2005. Hatshepsut. From Queen to Pharaoh. Nova York: The Metropolitan Museum of Art. WATTERSON, B. 2013. Women in Ancient Egypt. Stroud: Amberley.

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𓍘𓇌𓏭 › Tiyepor Priscila Scoville Tiye (também chamada de Tiy, Teye ou Teje) foi a Esposa Principal de Amenhotep III e mãe de Akhenaton. Durante sua vida, essa rainha conseguiu bastante prestígio dentro e fora do Egito. Tiye exerceu uma influência considerável durante o reinado do marido e, posteriormente, do filho. Por isso, sua figura se faz presente nos mais diversos contextos. Ela foi regularmente representada ao lado do marido em esculturas (como a estátua colossal de Medinet Habu — hoje Museu do Cairo); foi deificada e recebeu um templo na Núbia; tem seu nome apresentado em diversos escaravelhos comemorativos (chamados de escaravelhos de casamento); está presente em cenas de tumbas e palácios; e foi a única rainha a receber uma carta oficial (EA26) e a ser nomeada como membro ativo na diplomacia internacional de sua época. Tiye viveu entre c. 1410 e c. 1340 aEC, e se tornou rainha do Egito em c. 1390. Apesar de não ser muito conhecida nos dias atuais, Tiye foi um modelo para as mulheres do Reino Novo. Casada com Amenhotep III, ela viu seu reino crescer e prosperar de modo inédito. Nessa época, a região da SíriaPalestina e da Núbia estavam sob domínio egípcio. Isso significa que a corte de Amenhotep III recebia frequentemente tributos de objetos e substâncias dos locais conquistados. Mais do que isso, foi durante esta época que o Egito se consolidou em um cenário internacional e foi incluído em um sistema diplomático que garantia acesso às rotas comerciais e aos bens

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e materiais das mais diversas culturas e espaços. Tiye e seu marido tiveram acesso ao que existia de melhor no mundo próximo-oriental. Ao que tudo indica, a família de Tiye não tinha qualquer vínculo com a linhagem real. Seus pais eram Yuya e Tuya —ele era um chefe militar e sacerdote do deus Min, ela era sacerdotisa de Min. A relação da família com essa divindade parece ser profunda, uma vez que seu irmão, Anen, também se tornou um sacerdote do deus. Contudo, tal relação é facilmente explicada pelo fato de Tiye ter nascido em Akhmin, cidade central do culto ao deus. Existem debates ainda mais profundos sobre a origem da família: Akhmin era um centro de tecelagem com altas taxas de população asiática, isso, aliado ao nome de Yuya e sua profissão, levantou hipóteses de que eles tenham vindo da Ásia, mas isso nunca foi confirmado. Teorias sinalizam que as representações dessa família possuem traços mais asiáticos do que os egípcios. Ainda, alguns egiptólogos apontam que Tiye possivelmente tinha outro irmão, Ay —que se tornou faraó por um breve momento no final da XVIII Dinastia. Isso porque Ay herdou muitos títulos de Yuya e, ao que parece, também era de Akhmin. O fato é que, apesar da vasta documentação do período, muitas lacunas ainda precisam ser preenchidas. Não sabemos também como o casamento entre Tiye e Amenhotep III foi arranjado. Os dois ainda eram muito jovens na ocasião, tendo cerca de 12 e 15 anos, respectivamente. Por isso, é improvável que fosse uma escolha romântica, ainda assim, são perceptíveis o carinho e o respeito mútuo da relação. O faraó raramente se representava sem Tiye ao seu lado. Fica claro que, durante toda sua vida, essa rainha foi muito estimada tanto na relação pessoal com o marido, como pela total confiança que ele depositava nela ao se tratar de assuntos oficiais. 338

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Nos primeiros onze anos do governo de Amenhotep III, uma série de escaravelhos comemorativos foi criada. Entre os mais de duzentos artefatos, existem cinquenta e seis que são conhecidos como «escaravelhos de casamento» por mencionarem a rainha e evidenciarem sua origem não-real, incluindo o nome e funções de seus pais. As inscrições não tratam especificamente sobre o matrimônio, mas revelam a importância de Tiye e acentuam o papel dela enquanto Grande Esposa Real, uma vez que os escaravelhos foram enviados para diversas regiões, da Síria ao Sudão. Um dos textos mais interessantes desses escaravelhos, revela que, no ano 11, um lago dedicado à Tiye foi construído na cidade de Djarukha (Akhmin). Esse tipo de homenagem era inédito. Mais do que isso, a própria Tiye estabeleceu um novo padrão de autoridade feminina no Egito, assumindo um papel de «quase-rei» (Dodson 2014, 54). Tiye foi incluída no programa real e no culto solar como o «Olho de Rá» no Sudão e esposa da divindade Nebmaatra (nome de trono de Amenhotep III). Quando seu marido foi deificado, ainda em vida, Tiye se uniu às deusas associadas ao princípio feminino — com foco em Tefnut e Hathor. Isso a colocava como a contraparte do rei e a responsável por ajudá-lo a restaurar e manter a maat. Para tanto, ela recebeu seu próprio templo em Sedeinga, na Núbia, onde seria adorada; e foi representada ao lado de Amenhotep III no templo dedicado a ele em Soleb. Além disso, em algumas ocasiões, Tiye aparece na forma de esfinge que protege o cartucho de Amenhotep III e que massacra suas inimigas — uma imagem tipicamente masculina. A relevância de Tiye se torna cada vez maior e mais expressiva com o passar dos anos. Em alguns momentos, ela pode ser vista com o mesmo tamanho que Amenhotep III, apontando sua igual importância (esse é o caso, por exemplo, da estátua colossal de Medinet Habu). Contudo, o papel de 339

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Tiye não se restringe às suas representações, ela é descrita como uma mulher inteligente, poliglota e confiável; e poderia escolher alguns funcionários de sua confiança para o governo. Tiye ainda viveu alguns anos após a morte de seu marido, mas sua influência não parece ter diminuído durante o reinado de seu filho, Akhenaton. Por um lado, o papel desempenhado por Tiye serviu como modelo para a inclusão de Nefertiti no novo padrão político-religioso proposto por Akhenaton. De outro lado, quando seu filho estabeleceu um novo padrão de arte, que direcionava o olhar para a família real (isto é, o rei e sua esposa), Tiye não foi excluída das imagens. Ela continuou sendo representada e ganhou um novo templo solar dedicado a ela — a incluindo no culto amarniano. A construção deste templo está expressa na tumba de um alto-funcionário da época, Huya, onde também estão presentes cenas cotidianas da família real e inscrições que ressaltam a constância de Tiye, de forma mais enfática do que Nefertiti e o próprio Akhenaton. Mais do que um exemplo para Nefertiti, Tiye estabeleceu um padrão de autoridade feminina para as demais rainhas do Reino Novo. Isso aconteceu como uma consequência da expulsão dos hicsos durante o Segundo Período Intermediário, que contou com a participação ativa de três rainhas. No momento que Amenhotep III se tornou faraó, o Egito já não precisava se preocupar com invasões estrangeiras, mas podemos perceber que Tiye espelhou-se naquelas três rainhas e definiu que o papel das esposas reais não seria simplificado ao de consorte. Rainhas tornaram-se cada vez mais ativas. Tiye, particularmente, estendeu seu poder também no momento em que recebeu o título de «Mãe do Rei», no reinado de Akhenaton. Ademais, as fontes confirmam que tal ação feminina não era apenas teórica ou imagética, mas uma realidade concreta. 340

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No campo político, Tiye demonstrou conhecer os assuntos debatidos e acordados com o exterior. Sua importância foi reconhecida por Tushratta, o rei de Mitani, que endereçou uma carta oficial sobre as relações entre os dois reinos diretamente para Tiye (identificada como EA26). Na correspondência, o governante mitânio afirma que a rainha conhecia, melhor do que qualquer outra pessoa, todos os acordos feitos entre ele e Amenhotep III. Mais do que isso, ele pediu para que ela interferisse na forma como Akhenaton estava conduzindo as negociações. Ao mesmo tempo, Tushratta escreve para Akhenaton insistindo para que ele ouça o que Tiye tinha a falar sobre a aliança e relação estabelecida entre Egito e Mitani (EA28 e EA29). Nefertiti, por sua vez, não foi sequer nomeada em nenhuma correspondência. Tiye foi a única rainha a receber esse tipo de carta e a confiança de um rei estrangeiro. Dentro do Egito, as representações de Tiye confirmam sua importância na manutenção da maat, enquanto divindade adorada na Núbia. Tal papel é reforçado por imagens da rainha como esfinge protetora do nome de Amenhotep III e destruidora das inimigas. Ainda, a cabeça de Tiye, hoje exposta no Neues Museum, em Berlim, valoriza seus traços faciais de meia idade, que a associam com sabedoria e conhecimento — esse tipo de representação é o oposto da tradicional, que normalmente valoriza traços joviais e atléticos. Durante praticamente toda sua vida, Tiye exerceu sua influência dentro e fora das fronteiras egípcias. Apesar de não sabermos como ela morreu, muitos pesquisadores acreditam que tenha sido no 12° ano do governo de Akhenaton. A tumba de Tiye até hoje não foi encontrada. É possível que a rainha tenha sido enterrada em Amarna, a cidade criada por Akhenaton, e depois movida para Tebas. Sua múmia estava entre outras dentro da tumba KV35, de Amenhotep II, sendo inicialmente chamada de «Senhora 341

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Idosa». Posteriormente, testes de DNA comprovaram sua identidade. Desde abril de 2021, o corpo de Tiye está sob os cuidados do National Museum of Egyptian Civilization, em Fustad, após participar da «Pharaoh’s Golden Parade» – uma procissão que trasladou vinte múmias reais do Museu Egípcio do Cairo para o novo museu. Fontes históricas MURNANE, W. J. 1995. Texts From The Amarna Period in Egypt, Atlanta: Scholar Press. RAINEY, A. F. 2015. The el-Amarna Correspondence. Leiden: Brill, 2 vol. Bibliografia geral ARNOLD, D. 1997. The Royal Womem of Amarna: Images of Beauty from Ancient Egypt. New York: The Metropolitam Museum of Art. DODSON, A. 2014. Amarna Sunrise. Cairo: The American University in Cairo Press. HAYES, W. C. 1990. The Scepter of Egypt. A background for the study of the Egyptian Antiquities – Part II: The Hyksos Period and the New Kingdom (1675–1080 B.C.). New York: The Metropolitan Museum of Art. KOZLOFF, A. P. 2012. Amenhotep III: Egypt’s Radiant Pharaoh. Cambridge: Cambridge University Press.

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𓄤𓏏𓇍𓍘 › Nefertiti por Gisela Chapot Nefertiti, a mulher cuja imagem foi eternizada no famoso busto hoje exibido no Museu Egípcio de Berlim, foi muito além da beleza proclamada no significado de seu nome. «A mais bela que chegou» teve grande protagonismo atestado nas fontes referentes ao reinado do faraó Amenhotep IV/Akhenaton, de quem se tornou esposa principal durante a Reforma de Amarna (1352–1336 aEC). Neste episódio, o disco solar, Aton, foi elevado à categoria de divindade principal e criadora, atingindo o auge da solarização religiosa, que se materializou na construção de uma nova sede real, Akhetaton. Conhecida por seu nome atual, Tell el Amarna, a cidade dedicada ao disco solar, localizada na região do Médio Egito, não se vinculava a quaisquer outros deuses ou governantes, conforme atestam as fontes. Por isso mesmo, sua arquitetura pensada para Aton, que nasce de uma fenda natural nas montanhas iluminando toda a cidade com sua luz que era a própria vida, como proclamam seus hinos. As tumbas, repletas de cenas de culto, destacam além de Aton, os oficiantes principais, o casal real. Neste sentido, Nefertiti certamente foi a esposa real com maior destaque na história do antigo Egito, sendo retratada enfaticamente na decoração de templos, tumbas, palácios, estelas domésticas e monumentos oficiais em cenas que efetuam ações diversas, que vão da adoração divina à execução de uma inimiga estrangeira em gesto típico de um faraó (Chapot 2015).

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Nefertiti também é mencionada em algumas das principais documentações textuais do período amarniano, como nos grandes monumentos de pedra que delimitavam os limites de Akhetaton, as chamadas estelas de fronteira. Em um decreto real presente na Estela de Fronteira K, Akhenaton proclama as construções que gostaria que fossem erigidas na nova cidade e almejou ser enterrado junto com a esposa na montanha oriental de Akhetaton, onde seria construída a tumba real (Murnane 1995, 77–78). Os antigos egípcios não possuíam um termo para rainha, como rei, nswt, portanto, os títulos mais importantes de Nefertiti se vinculam ao faraó, embora seja possível notar algumas particularidades no que se refere aos seus epítetos e até mesmo aos seus nomes pessoais. Além de «Grande Esposa do Rei», nomenclatura que indicava a esposa principal do faraó, Nefertiti também detinha os títulos de «Senhora do Alto e Baixo Egito», «Senhora de Todas as Terras», «Senhora das Duas Terras» e «Mulher Nobre». Uma gama de epítetos acompanhava os títulos elencados, sendo os mais distintivos aqueles que associam Nefertiti diretamente ao culto divino, como «quem satisfaz o Aton com sua doce voz e com suas mãos que carregam o sistro» (Dodson 2020, 23–25). Por volta do 5° ano de reinado, Nefertiti adicionou ao seu nome Neferneferuaton, «beleza das belezas de Aton», como pode ser observado no proêmio do Grande Hino ao Aton, no qual Neferneferuaton Nefertiti acompanha uma saudação desejando que ela tivesse saúde e que sua juventude fosse eternizada (Grandet 1995, 99). Tal acréscimo ocorreu logo após a modificação do nome pessoal do faraó, que eliminou o nome de Amon e se tornou «efetivo ao disco solar», Akhenaton, determinando, portanto, uma intensificação da reforma. O gesto também indica que Nefertiti estava associada aos 344

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novos preceitos da religião atonista, na qual cumpriu importante papel religioso compondo com Akhenaton e Aton um conjunto divino passível de adoração em Amarna. Embora seja uma das figuras femininas mais famosas da Antiguidade, pouco se conhece a respeito da vida particular de Nefertiti, especialmente no que se refere ao período anterior à ascensão de Amenhotep IV. Temas como parentescos e sua origem, por exemplo, foram particularmente debatidos e geraram algumas teorias que perduraram na Egiptologia. A busca pelas origens de Nefertiti rendeu um longo debate baseado especialmente em seu nome, que além de ser pouco egípcio para alguns estudiosos, indicaria uma vinda de fora (Williamson 2015, 4). Tal fato levou estudiosos a identificá-la com uma princesa de Mitani, teoria com pouca fundamentação e refutada na atualidade (Dodson 2020, 113). Acerca dos genitores, não existe menção aos seus pais, apenas teorias sustentadas por análises de títulos honoríficos. Uma que segue vigente e tem certa aceitação na atualidade associa Nefertiti ao sucessor de Tutankhamon, Ay. Dentre seus inúmeros títulos, Ay portava o de «Pai Divino», o que para alguns estudiosos pode ser entendido na décima oitava dinastia que estamos tratando como «sogro» de Akhenaton, já que há precedentes para o uso do termo desta forma na dinastia, o que colocaria Nefertiti como filha de Ay (Freed et al 1999, 87). Um ponto desfavorável a essa possível filiação é que a esposa de Ay, Tiy, havia sido ama de Nefertiti, cargo que lhe conferia prestígio na corte, contudo não tanto quanto «Mãe da Grande Esposa do Rei», como era habitual, o que pode indicar que Tiy era madrasta de Nefertiti (Dodson 2020, 19). O debate segue em aberto. O que se pode afirmar com alguma plausibilidade é que Nefertiti nasceu durante o longo reinado de Amenhotep III (1390–1352 aEC), período marcado pela diplomacia, 345

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cosmopolitismo e riqueza imperial, certamente um dos mais abastados da história faraônica. Acredita-se que Nefertiti seja oriunda de uma região próxima a Akhmin e, ainda que não tivesse origem real, era membro da elite egípcia, como indica um de seus epítetos, tendo desfrutado de privilégios de corte, como o direito de dispor de ama de leite e tutor, reservados aos filhos e filhas do rei, mas extensivos aos filhos e filhas dos membros da elite (Cooney 2018, 166). Nefertiti também fez parte do harém real, onde possivelmente conheceu Amenhotep IV. Conquanto não seja possível datar o ano da união com o faraó, autores sugerem que a ausência de Nefertiti em cenas de tumbas tebanas referentes ao começo do reinado, nas quais este aparece acompanhado da mãe (TT 192), é um forte indicativo de que a união ainda não havia acontecido, mas que possivelmente ocorreu até o 4° ano, quando Nefertiti recebeu o título de «Grande Esposa do Rei» (Cooney 2018, 168). O festival Sed de Karnak pode ter sido o momento escolhido para o casamento, uma vez que Nefertiti teve grande destaque na festividade que, por sua vez, gerou esforços estatais significativos para erigir grandes construções em Tebas. Dentre estas estavam os «colossos de Karnak», estátuas régias com corpos volumosos que geraram inúmeros debates, inclusive associando-os a possíveis doenças que, na percepção moderna, deformariam os corpos dos soberanos, teses refutadas em favor de explicações religiosas, pois as representações no antigo Egito não eram realistas, mas conceituais e idealizadas, especialmente quando retratavam a realeza. Um dos colossos foi nomeado «assexuado» por apresentar um espaço vazio na região genital, suscitando debates ainda inconclusos, mas com algumas opiniões favoráveis a concebê-lo como um colosso de Nefertiti (Manniche 2010, 54–57). 346

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O novo padrão representativo, carregado de elementos solares, traz como explicação possível a associação com o «primeiro nome didático de Aton», vigente até o 8° ano e que aludia à cosmogonia de Heliópolis, na qual o demiurgo AtumRá, inicia o processo de diversificação da criação ao gerar um casal primevo, Shu e Tefnut, os quais, saídos de Atum, carregavam sua androginia demiúrgica, situação análoga ao caso amarniano, com Akhenaton e Nefertiti agindo como deuses primevos e consubstanciais com Aton. Nefertiti também cumpriu papel da deusa Háthor, encarada como um princípio feminino criador, indispensável para que o mundo fosse gerado e regenerado, bem como desempenhou o papel de Ísis no contexto funerário, decorando o sarcófago de Akhenaton, assumindo uma função regeneradora necessária para garantir a ressurreição do faraó (Arnold 1996, 94). Nefertiti teve seis filhas, todas atestadas na documentação, tanto textual quanto imagética, do período amarniano, as quais também atuaram no culto a Aton de maneira cosmogonal, como sacerdotisas de Háthor, por isso mesmo carregam sistros nas cenas junto de Nefertiti. Nos subúrbios da cidade de Amarna foram erigidos templos conhecidos como «Sombras de Rá», e estavam associados aos aspectos regenerativos das mulheres reais de Amarna permitindo que tais papéis cosmogonais garantissem o renascimento solar, com destaque para o Kom el Nana de Nefertiti (Williamson, 2017). A segunda metade do reinado é marcada por uma mudança no nome de Aton, que elimina as associações heliopolitanas, tornando assim as representações régias menos andróginas, mas ainda diferentes do padrão canônico tradicional, com marcas de idade que revelam uma Nefertiti madura, bem distinta daquela exibida em seu famoso busto ou nos talatats de Karnak (Arnold 1996, 76). 347

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A fase final da reforma de Amarna é extremamente controversa e os especialistas estão constantemente apresentando teorias para explicar a sucessão após a morte de Akhenaton, no 17° ano. Alguns nomes surgem nesse cenário, como um rei Neferneferuaton, que muitos acreditam ser Nefertiti, que possivelmente estava viva no 16° ano e pode ter atuado como corregente do marido e assumido como faraó após seu falecimento. Inscrições revelam que Neferneferuaton governou por pouco tempo, mas cumpriu papel político decisivo na retomada da tradição religiosa de Tebas, onde viveu seus últimos anos preparando terreno para ascensão de Tutankhamon, outrora Tutankhaton, que fez a mudança de nome para se adequar às novas demandas políticas pós-amarnianas. Embora Tutankhamon seja possivelmente filho de Akhenaton, a filiação de Nefertiti ainda é debatida, mas seria plausível que como Neferneferuaton Nefertiti possa ter atuado como corregente do filho, cuja entronização ocorreu com apenas sete anos. Todavia, apesar de atualizações recentes, as discussões não se encerraram (Dodson 2020). O fim da era amarniana determinou o desmantelamento da cidade, cujas construções foram demolidas, representações régias apagadas e os nomes dos governantes não incluídos nas listas régias oficiais. O apagamento da memória relegou Nefertiti à escuridão que os hinos amarnianos proclamavam como sendo a própria morte. As escavações sistemáticas da cidade de Amarna, bem como todo interesse nos muitos debates que o período suscita, permitiram que nos últimos anos a imagem de beleza, maternidade e esposa amável à sombra do marido venha sendo suplantada pela imagem de uma mulher ritualmente importante e com grande destreza política, que soube agir de forma perspicaz — inclusive como faraó do Egito. 348

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Toda obliteração sofrida não impediu que a imagem de Nefertiti, eternizada em seu busto, se tornasse um símbolo de lutas sociais no Egito atual, como o grafite no qual usa máscara de gás na praça Tahrir, cujo artista dedicou às mulheres durante a Primavera Árabe, mostrando que Nefertiti, além de um ícone moderno, permanece como grande protagonista da História, muito além da sua alegada beleza. Fontes históricas FREED, R.; MARKOWITZ, Y. & D’AURIA, S. (Eds.). 1999. Pharaohs of the Sun: Akhenaten, Nefertiti, Tutankhamen. Boston: Museum of Fine Arts. GRANDET, P. 1995. Hymnes de la Religion d’Aton. Paris: Seuil. MURNANE, W. 1995. Texts from the Amarna Period in Egypt. Atlanta: Scholars Press and Society of Biblical Literature. Bibliografia geral ARNOLD, D. 1996. Aspects of the Royal Female Image During the Amarna Period. In: ARNOLD, D. The Royal Woman of Amarna. Images of Beauty from Ancient Egypt. New York: The Metropolitan Museum of Art, p. 85–120. CHAPOT, G. 2015. A Família Real Amarniana e a Construção de Uma Nova Visão de Mundo Durante o Reinado de Akhenaton. Tese de doutorado em História Social defendida na Universidade Federal Fluminense – UFF. COONEY, K. 2018. When women ruled the world: six queens of Egypt. Washington: National Geographic Society. DODSON, A. 2020. Nefertiti, Queen and pharaoh of Egypt: her life and afterlife. Cairo: The American University in Cairo Press. LABOURY, D. 2010. Akhénaton: Les grands pharaons. Paris: Pygmalion. 349

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𓈖𓏛 𓂋 𓏛 Ankhiry 𓋹 𓐍 𓏥 𓇋 𓏭 𓀹por𓏥Liliane 𓁐 › Cristina Coelho Ankhiry foi uma egípcia que viveu no período denominado Reino Novo (c. 1550–1070 aEC), mais especificamente durante a XIX Dinastia (c. 1307–1196 aEC). Ela é conhecida apenas por dois documentos, ambos encontrados em escavações realizadas no início do século XIX, em uma necrópole provavelmente na região de Saqqara: uma carta, escrita por seu marido três anos após a sua morte, e a estatueta de madeira que estava atada a ela (Janssen; Janssen 2007, 190), ambos pertencentes hoje à coleção do Rijksmuseum van Oudheden, em Leiden. A carta do marido a Ankhiry foi escrita nos dois lados de um papiro de excelente qualidade, de uma cor clara. O tipo de escrita presente é a hierática, uma das formas do egípcio antigo, que é comum em documentos dessa natureza e que é uma forma cursiva dos hieróglifos. A tinta utilizada, bem preservada no papiro, é da cor preta, e o texto apresenta diversos erros de ortografia e gramática, tendo sido escrito de uma forma apressada e bastante comprimida no final do documento (Janssen & Janssen 2007, 190). A carta possui 35,5 cm de altura e 19,5 cm de largura e consta com o número AMS 64 na coleção de Leiden (Schulz; Seidel 2001, 488). A estatueta, ao contrário, é de confecção rudimentar, elaborada a partir de duas peças de madeira separadas, uma formando a estatueta em si e a outra a sua base. Representa uma mulher em pé, com 23 cm de altura, trajando um vestido longo e justo ao corpo, com um colar no pescoço e uma peruca longa e tripartite sobre a cabeça. Seu braço direito está estendido ao lado do corpo, enquanto o esquerdo encontra-se

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flexionado, e sua perna esquerda encontra-se à frente da direta, como é típico neste tipo de representação. Está registrada sob o número AH 115 no Museu de Leiden (Schulz; Seidel 2001, 488). É possível que esta peça tenha sido confeccionada às pressas, já que, conforme a carta nos informa, o autor não estava na cidade à época do falecimento da esposa. A ausência de um contexto arqueológico exato para a descoberta da carta não nos possibilita falar de maneira acurada sobre o contexto em que Ankhiry viveu. Contudo, as informações existentes sobre o documento dão conta de que tanto a carta quanto a estatueta faziam parte do inventário original de d’Anastasi que se encontra guardado no Museu de Leiden, mas nenhuma proveniência é descrita (Gardiner; Sethe 1928, 9). O texto da carta nos informa, apenas, que na época da morte da esposa o autor estava acompanhando um faraó não identificado em uma expedição para o Sul —o Alto Egito— o que nos leva a concluir que ele viveu no Norte —o Baixo Egito—, talvez na cidade de Mênfis, que é o local indicado no documento como o de sua chegada antes de pedir uma licença para ir até onde sua esposa estava: «E quando eu segui o Faraó em sua jornada para o Sul, e esta condição (isto é, a morte) aconteceu contigo, eu passei o total de oito meses sem comer ou beber como um homem» (Gardiner; Sethe 1928, 9). Não há indicação, no entanto, sobre que local seria este e se a carta foi deixada na superestrutura ou na infraestrutura da tumba, o que poderia nos informar sobre sua proximidade ou não com a múmia e com ideias relacionadas ao modo como a morta teria acesso à mesma. Ainda de acordo com o texto da carta, Ankhiry e seu marido casaram-se jovens, «eu a fiz uma mulher casada quando eu era jovem» (Gardiner; Sethe 1928, 8), e o papel de Ankhiry parece ter sido o de Senhora da Casa. Este título, nebet per, era o mais comum entre as mulheres egípcias, aparecendo em uma 352

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grande quantidade de estelas funerárias a partir da XII Dinastia (c. 1991–1783 aEC), bem como nas paredes de tumbas, nas legendas que acompanham as representações das esposas dos mortos. Geralmente se aplica às mulheres casadas e está relacionado não apenas ao trabalho doméstico, como preparar alimentos, cuidar da manutenção de pequenos animais, e cuidar com os filhos, caso existam, mas também, por exemplo, à manutenção do culto aos ancestrais e outros ritos religiosos domésticos que garantiriam o bem estar da família (Lesko 1996, 36). Ankhiry e seu marido tinham uma posição social elevada, o que se depreende pelo seguinte trecho: «Agora veja, quando eu estava treinando oficiais para a infantaria e a cavalaria do Faraó, fiz com que viessem e se prostrassem diante de ti, trazendo (todo tipo) de coisas boas para colocar diante de ti, e não escondi nada de ti em teu dia da vida» (Gardiner & Sethe 1928, 8). Dessa forma, as funções de Ankhiry como Senhora da Casa mais possivelmente estavam relacionadas, de acordo com Gay Robins (1996, 101), à supervisão dos serviços domésticos, já que as representações de mulhares nobres em tumbas nunca as apresentam com as mãos sujas. Em um determinado momento de sua vida, Ankhiry acabou adquirindo uma doença sobre a qual não há explicações na carta, mas que mobilizou um médico especialista para seu cuidado a pedido do marido: «E quando adoeceste da doença que sofreste, eu mandei trazer um médico-mestre, e ele te tratou, e ele fez tudo o que disseste ‹faça›» (Gardiner & Sethe 1928, 9). Foi esta a doença que a vitimou, enquanto o marido estava em missão junto ao Faraó. Ao retornar, então, o autor da carta diz ter feito tudo o que estava ao seu alcance para que Ankhiry tivesse um bom enterro: «(Quando) eu cheguei a Mênfis, pedi uma licença ao Faraó, e fui ao lugar onde tu estavas, e chorei muito junto com meus parentes em frente ao 353

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teu corpo. E eu dei panos de linho para te embrulhar, e mandei confeccionar muitas roupas, e não deixei (de fora) nada de bom que deveria ser feito para ti» (Gardiner; Sethe 1928, 9). Vale ressaltar que era responsabilidade do marido providenciar o material funerário para sua esposa, e o autor da carta garante ter cumprido com todas as suas obrigações para com sua esposa, tanto na vida quanto na morte. E foi justamente este o motivo da escrita da carta, já que o marido pensava que sua vida não estava progredindo conforme seus planos devido à influência um tanto quanto maliciosa de Ankhiry (Meskell 2004, 82). Para corroborar esta situação, Janssen e Janssen (2007, 190) afirmam ainda que o final do texto apresenta sinais pequenos e muitos comprimidos, como se revelassem uma reflexão tardia do autor da carta, e que mostram que o marido de Ankhiry não era tão inocente quanto parece. Isso vem de encontro à afirmação de Bakos (2009, 235), que diz que o viúvo não se conformava com sua realidade e culpava a falecida esposa por seus problemas. Diz o texto: «Mas veja, tu não distingues o bem do mal. Alguém vai julgar entre mim e ti. E veja, aquelas irmãs da casa, eu não entrei em nenhuma delas» (Gardiner; Sethe 1928, 9). Esta última frase reflete de maneira implícita a forma como os egípcios se referiam ao ato sexual. Ao dizer que ele não entrou em nenhuma das irmãs da casa, o autor da carta afirma que não teve relações sexuais com outras mulheres depois da morte de Ankhiry, e sua reclamação, então vai justamente neste caminho. Por estar viúvo há três anos, ele acredita que já deveria ter encontrado outra pessoa e que Ankhiry, mesmo que do Mundo dos Mortos, está atrapalhando o desenvolvimento de sua vida no Mundo dos Vivos. 354

A presença das mulheres na Literatura e na História

A Carta de Ankhiry, então, além de nos trazer informações importantes sobre uma mulher comum do Egito antigo, auxilia para o entendimento de questões tanto relacionadas à vida quanto à morte naquela sociedade, mas muito especialmente sobre a interação entre vivos e mortos. O viúvo acreditava que sua vida não estava se desenvolvendo dentro do que era esperado devido à falecida esposa que, de acordo com a visão de mundo dos antigos egípcios, poderia estar interferindo em sua vida mesmo morta. Assim, resolve escrever uma carta para a morta, reafirmando sua boa conduta e exigindo que ela não mais interferisse em seus negócios na terra. Fontes históricas GARDINER, A. H.; SETHE, K. 1928. Egyptian Letters to the Dead. London: The Egypt Exploration Society. Bibliografia geral BAKOS, M. M. 2009. Fatos e Mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUCRS. JANSSEN, R. M.; JANSSEN, J. J. 2007. Growing Up and Getting Old in Ancient Egypt. London: Golden House Publications. LESKO, B. 1996. The Remarkable Women of Ancient Egypt. Providence: B.C. Scribe Publications. MESKELL, L. 2004. Object Worlds in Ancient Egypt: material biographies past and present. New York: Berg. ROBINS, G. 1996. Women in Ancient Egypt. Cambridge: Harvard University Press. SCHULZ, R.; SEIDEL, M. (Eds.). 1997. Egipto: o mundo dos faraós. Colônia: Könemann Verlagsgesellschaft mbH. 355

𓊖 𓈖 𓆱

aunakhte 𓏏𓏤𓐍𓏏𓀜𓍘𓇋𓁐 › N por Thais Rocha da Silva

Naunakhte foi uma mulher que viveu na vila de Deir el-Medina, na antiga Tebas (hoje Luxor), durante o reinado de Ramesses Sehetepenre (Ramses V), faraó da XIX Dinastia (c. 1292–1189 aEC), do qual pouco se sabe, tendo reinado, provavelmente, por apenas quatro anos. As poucas informações que temos sobre a vida dessa mulher chegaram a nós através de textos encontrados em diferentes suportes, como papiros, estelas e grafites. O principal documento é o seu testamento, no qual Naunakhte, já com idade avançada, deserda os filhos que não lhe prestaram os devidos cuidados. A data da morte de Naunakhte é desconhecida e ela não possuía nenhuma titulatura especial, apenas a de mulher livre. Do ponto de vista dos estudos da História das Mulheres e dos Estudos de Gênero, o testamento de Naunakhte figurou entre os documentos mais conhecidos da egiptologia, tendo sido apresentado em diversas coletâneas sobre a vida das mulheres ou sobre o cotidiano (Robins 1993; McDowell 1999). Parte da história de Naunakhte chegou a nós por conta de um conjunto de papiros que contém o seu testamento. Esses textos estão em dois grupos de documentos separados. O primeiro consiste em dois documentos que foram resgatados pelas escavações do Instituto Francês de Arqueologia Oriental (IFAO) em 1928 no sítio arqueológico de Deir el-Medina. O segundo grupo de papiros foi adquirido posteriormente pelo egiptólogo britânico Alan Gardiner no mercado de antiguidades e, possivelmente, foi obtido através de escavações ilegais, portanto, sem informações sobre sua proveniência.

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A vila de Deir el-Medina abrigava os moradores que trabalhavam na construção e na decoração das tumbas do Vale dos Reis e do Vale das Rainhas. A vila foi construída pela administração faraônica e os trabalhadores recebiam suprimentos regulares do governo, como grãos, que serviam de pagamento, água e equipamentos de trabalho, combustível, além de diversos serviços de lavanderia. O assentamento fica em um uadi, limitado pela sua topografia, orientado para nornordeste, e cercado por um muro de tijolos de barro. O seu interior possui passagens estreitas e vielas, sendo que o plano atual reflete a sua última ocupação, durante a XX Dinastia. Em sua extensão máxima, Deir el-Medina tinha cerca de 5.600 m2 em uma planta retangular, abarrotada de casas. Os primeiros vestígios do povoamento datam da XVIII Dinastia e poucos documentos nos informam sobre a vida e o trabalho dos habitantes da aldeia durante este período. Há evidências de cartuchos de Tutmés I (c.1504–1492 aEC) em tijolos de barro na área mais antiga ocupada, o que foi interpretado como uma referência para a fundação da comunidade. Encontramos vestígios da veneração de Amenhotep I e Ahmose-Nefertari pelos habitantes da vila que também indicam que o assentamento possa ter sido fundado por eles. A vila de Deir el-Medina foi abandonada durante o período amarniano (c. 1347–1332 aEC). Foi sugerido que os trabalhadores foram transferidos para a nova capital, Akhetaton, por ordem do faraó Akhenaton (Amenhotep IV) para participar das obras de construção da cidade e das tumbas. Logo após a morte de Akhenaton, o assentamento seria novamente repovoado, sendo totalmente concluído durante o reinado de Horemheb. Durante este período, a vila foi modificada para acomodar mais trabalhadores e suas famílias. Mesmo com o 358

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abandono de Deir el-Medina após o reinado de Ramsés XI (c. 1099–1069 aEC), há evidências de tumbas e habitações sendo usadas continuamente, possivelmente até o século VIII EC. Um dos aspectos importantes a ser destacado é o caráter especial e único da vila de Deir el-Medina do ponto de vista documental. Uma vez que o assentamento abrigava um grupo de trabalhadores altamente especializado, o nível de letramento da comunidade era bastante elevado. Acredita-se que durante a XX Dinastia, cerca de 40% dos habitantes eram letrados e que todos os meninos da vila recebiam instrução para ler e escrever (McDowell 1999, 4). O alto índice de letramento da comunidade e a organização administrativa do governo egípcio deixaram como vestígios uma série de documentos textuais escritos principalmente em hierático, registrados em papiros, óstracos (cacos de cerâmica) e lascas de calcário. Os textos são de diversos tipos, disputas legais, rascunhos, recibos de pagamento e serviços, encantamentos mágicos, cartas, textos literários, entre outros. Os quatro documentos que apresentam o testamento de Naunakhte estão organizados da seguinte forma: o documento I (P.Ashmolean 1945.75) é um papiro perfeitamente preservado que foi originalmente cortado em dois rolos menores, tendo no total 192 cm de comprimento e 43 cm de altura; os documentos II e III (P. Deir el-Medina) consistem em duas folhas pequenas de papiro encontradas com outros fragmentos (Os Ensinamentos de Ani) e que não foram escritos pelo mesmo escriba, mas que possuem conteúdo idêntico; o Documento IV (P.Ashmolean 1945.97) é uma folha única de papiro medindo 20–21 cm de altura e 43 cm de largura e menciona Khaemnun e seus filhos diante da corte confirmando o testamento. O texto com as informações sobre os bens de Naunakhte estão principalmente no Documento I. Naunakhte já era mais velha quando elaborou o testamento e pela idade avançada, tinha 359

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o direito ao apoio material dos filhos. Naunakhte foi casada duas vezes, o primeiro marido foi o escriba Qenherkhepeshef, que deixou seus bens para ela e com quem ela não teve filhos. O segundo casamento foi com o trabalhador Khaemnun, que já tinha oito filhos. Naunakhte criou os filhos do segundo casamento e há menção de que ela tenha dado a eles parte de seus bens quando se casou com Khaemnun. O testamento tem duas partes: a declaração em que ela menciona os filhos que a apoiaram em sua velhice, com os nomes dos que deveriam receber os seus bens (Maaynakhtef, Qenherkhepeshef, Amunnakht, Wosnakhte, Manenakhte); e a lista de filhos que foram excluídos da herança (Neferhotep, Maenahte, Henshene, Khanub). No processo de partilha dos bens, a esposa podia dispor de 1/3 dos bens do marido, sendo que os 2/3 restantes seriam repartidos entre os filhos, herdados diretamente do pai. O documento afirma que os filhos herdaram 2/3 que «era do pai dele» (I 4,3), mas que não herdariam de Qenherkhepeshef (I, 4.9–12) do qual ela tinha direito («meu um terço»). Há outros textos que confirmam a história de Naunakhte. A estela do Museu Britânico BM 278 menciona o filho Qenherkhepeshef adorando Hathor: «o excelente e correto que moldou as imagens de todos os deuses, servo do Lugar da Verdade, Qenherkhepeshef; seu pai, servo do Lugar da Verdade, Khaemnun; sua irmã, dona da casa Tnofre; seu filho Amunnakht, seu filho Kaempiptah». Num outro trecho: «seu filho Nebsote, seu filho Amenemhab; sua filha Naunakhte; sua mãe, a cantora de Amun Naunakhte». O grafite tebano 803 também se refere à Qenherkhepeshef e alguns dos seus filhos. O cólofon do livro dos sonhos Chester Beatty menciona Amunakht, filho de Khaemnun e irmão de Neferhotep, Qenherkhepeshef. 360

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Nos tribunais egípcios, a declaração oral era registrada por escrito por um escriba profissional, que transformava o relato em um documento legal. A corte era formada por quatorze testemunhas que pertenciam ao conjunto de funcionários envolvidos com o trabalho de construção: dois supervisores de trabalho, dois escribas, dois desenhistas, seis trabalhadores, dois oficiais do distrito (não há clareza sobre o que essa atividade consistia). Os nomes das testemunhas são mencionados no texto e há paralelos em outras fontes em Deir el-Medina que atestam a sua existência, como é o caso de Anherkau, supervisor do lado esquerdo da corporação, e que é proprietário da tumba 359. O filho Qenherkhepeshef é destacado no texto e recebe uma bacia de bronze a mais que os outros filhos. Neferhotep, por outro lado, é o mais excluído. Aparentemente, Naunakhte teve que ajuda-lo em vida quando lhe deu recipientes de cobre que foram convertidos em alimentos. Os documentos II e III são posteriores à morte de Naunakhte, pois relatam os filhos indo à casa da mãe para repartir seus bens, que tinham pouco valor, como móveis e utensílios de cozinha. O testamento de Naunakhte foi traduzido pelos egiptólogos Jaroslaw Černy (1945) e Angela McDowell (1999), que realizaram a melhor tradução em língua inglesa do texto. O documento também foi traduzido ao português por Margaret Bakos (2003). O texto apresenta uma mulher que, apesar de sua condição de fragilidade e vulnerabilidade pela idade avançada, reage com autonomia decidindo sobre sua herança. Nesse sentido, há também uma quebra de estereótipos e expectativas, com a figura materna respondendo à ausência dos filhos. O documento mostra que o comportamento dos filhos em relação aos 361

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pais tinha consequências no momento em que os bens fossem ser repartidos e distribuídos, sendo útil para os estudos sobre as relações de parentesco dos egípcios e sobre o seu sistema legal. Fontes históricas Documento I (P.Ashmolean 1945.75). Documento IV (P.Ashmolean 1945.97). Documentos III (P. Deir el-Medina; Documento II tem o mesmo conteúdo). Bibliografia geral BAKOS, M. 2003. Desdobramentos de um desejo. In: FUNARI, P. P.; FEITOSA, L.; SILVA, G. J. (Eds.) Amor, desejo e poder na Antiguidade. Campinas: Editora da Unicamp, p. 29–47. ČERNY, J. 1945. The Will of Naunakhte and the Related Documents, The Journal of Egyptian Archaeology, vol. 31, p. 29–53. HARING, B. 2003. From Oral Practice to Written Record in Ramesside Deir El-Medina, Journal of the Economic and Social History of the Orient, 46, p. 249–272. MCDOWELL, A. 1999. Village life in ancient Egypt: laundry lists and love songs. Oxford: Oxford University Press. MCDOWELL, A. G. 1990. Jurisdiction in the workmen’s community of Deir el-Medîna. Leiden: Nederlands Inst. voor het Nabije Oosten. ROBINS, G. 1993. Women in ancient Egypt. London: British Museum Press.

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› Makeda (Rainha de Sabá)

por Raisa Sagredo

A Rainha de Sabá é uma figura da Antiguidade africana muito complexa, multifacetada, que transita entre o mito e a História e que ficou conhecida por muitos nomes. Entre os etíopes foi chamada de Makeda; na tradição islâmica, Balqis ou Bilqis. A soberana aparece nos livros sagrados das três maiores religiões monoteístas: na Torá do Judaísmo, na Bíblia do Cristianismo e no Alcorão do Islamismo, além de possuir importância fulcral como parte do mito fundador da Etiópia, no livro sagrado Kebra Nagast. O livro etíope —que é melhor entendido como um conjunto de códices— tem datação do século XIV, porém na tradição oral esse mito fundador envolvendo Makeda já se encontrava enraizado (Kebra Nagast, 17). A versão usada aqui é uma tradução para o português feita a partir de uma versão inglesa e de uma jamaicana. A Torá judaica, por sua vez, teria passado à sua forma escrita em torno de 450 aEC. A tradução utilizada aqui possui o texto em hebraico ao lado da tradução em português. A versão escolhida da fonte cristã é a Bíblia de Jerusalém, versão brasileira a partir da francesa escrita pela Escola Bíblica de Jerusalém —o mais antigo centro de pesquisa bíblica e arqueológica de Israel— que traduziu a partir do hebraico, aramaico e grego. O espaço geográfico em que a Rainha de Sabá transitou compreende a África e a região sul da Península Arábica pré-islâmica entre os séculos X e XII aEC. Todavia, não há consenso se o reino de Sabá teria sido localizado no atual Iêmen ou na Etiópia. No contexto da Antiguidade africana, a Etiópia foi palco da fusão entre a cultura cushita (atual Sudão)

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e tribos semíticas migrantes do sul da Arábia. A Rainha não possui uma comprovação de existência arqueológica, porém possui os álibis das fontes e do historiador israelita Flávio Josefo. As três narrativas principais sobre a soberana giram em torno do encontro entre ela —uma rainha poderosíssima, governante de Sabá— e o rei Salomão, rei de Israel. Na historiografia, muito se debateu sobre sua existência real ou não, considerada por muitos séculos apenas como uma figura lendária. Em termos de historiografia árabe, foi feito um esforço para diminuir a grandeza do reino de Sabá e o poder de sua rainha, como o trabalho de ʿAli Ibrahim Hasan, deslegitimando, dentro do possível, esse poder feminino. Após diversos estudos e revisões propondo novos olhares nos campos da literatura, gênero e nas abordagens historiográficas, atualmente é quase um consenso de que a figura legendária teria sim existido. Ela foi fruto de um contexto africano marcado pelo matriarcado e que foi sofrendo, ao longo do tempo e nas diferentes tradições, alterações que camuflaram sua existência. Fica evidente nas fontes como as relações de gênero marcaram esse poder feminino que dela emanava. No Kebra Nagast, pode-se destacar a questão da maternidade e da linhagem; na Torá e no Alcorão, o emaranhado que envolve corpo, poder e religião. É possível perceber, ainda, a oposição binária politeísmo versus monoteísmo através do recorte de gênero. O objetivo da obra Kebra Nagast é bem evidente: dentro da religião do Cristianismo Ortodoxo da Etiópia, narrar a origem da linhagem salomônica dos reis e rainhas etíopes, fundamentando e comprovando a prova da descendência de seus soberanos a partir dos Patriarcas Hebreus e o consequente parentesco de sua linhagem com Jesus Cristo. E a figura central nessa fundamentação é a Rainha Makeda. Na fonte, ela é chamada também de Rainha do Sul e Rainha da 364

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Etiópia, descrita como extremamente rica, possuidora de uma face muito bonita, estatura soberba, possuindo compreensão e inteligência (Kebra Nagast, 40). Ela foi até Jerusalém para escutar e conhecer a sabedoria do Rei Salomão; inicia então uma árdua jornada, levando inúmeros presentes de seu reino. Após um diálogo com o Rei, ela declara que não mais adorará o Sol e sim o Deus de Israel, criador do Sol (Kebra Nagast, 53). A questão da linhagem aparece quando ela e Salomão fazem um juramento, que acaba sendo rompido através de uma pequena trapaça por parte dele, onde ele realiza a sua vontade e ambos dormem juntos (Kebra Nagast, 59). Makeda regressa a seu reino, dando à luz um menino chamado Menelik, que após a abdicação do trono por parte de Makeda, torna-se o primeiro imperador da Etiópia para que apenas a semente de Salomão reinasse. Ela foi a última rainha que obedeceu a uma antiga lei na qual as mulheres reinavam virgens. Essa ênfase na linhagem dada pela fonte faz dela figura central de legitimação política na fundação da nação. Seguindo os passos de Cheikh Anta Diop (2014), é possível também analisar a Rainha de Sabá nos temas sobre matriarcado e estudos de gênero em sociedades africanas antigas. Já no contexto monárquico e patriarcal israelita, há a tese de Maricel M. López (2003), de que a figura sábia do rei Salomão, precisando de legitimação, passou por essa tentativa de transplantação da sabedoria feminina para uma sabedoria em uma figura masculina. Vale destacar também o fato de a Rainha de Sabá ser, no ciclo de Salomão, a mulher estrangeira, estando inserida dentro dos estereótipos presentes nesse tipo de literatura: contendo em sua personalidade autonomia e traços de culturas tribais. Inclusive, nesta fonte judaica, ela aparece relacionada com Lilith. Ela é estrangeira, mas aspectos de seu feminino se entrelaçam no princípio masculino de Salomão. Como figura que abdica de sua fé para converter-se 365

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ao monoteísmo de Israel, ela se mantém como símbolo de fertilidade, vitalidade, sabedoria e magnificência, o que pode trazer a interpretação de que a sua fertilidade e a sua sabedoria —seu corpo e sua mente— são campos de uma batalha simbólica à qual a soberana se submeteu. Por outro lado, ela pode ser interpretada como subversiva, pois mesmo convertendo-se no fim da narrativa do Livro de Reis, o motivo de ela empreender a jornada até Salomão foi no intuito questionador de colocar a sabedoria dele à prova, propondo-lhe enigmas. Na fonte do Alcorão, a mensagem dessa submissão feminina ao poder masculino fica ainda mais destacada: a grandeza de Balqis estaria em reconhecer a superioridade intelectual e espiritual —profana e sagrada— do Rei Suleyman, e em aceitar a conversão a Alá, como mostra o trabalho da marroquina Fatema Mernessi (2006). Nesta fonte, Balqis também pode ser analisada através da chave interpretativa que engloba corpo, poder e religião, como na análise de Mariane Venchi. O poder, no Islamismo, é divino e masculino e, por tal premissa, ela aparece nas fontes islâmicas como uma mulher ardilosa, que assassinou o marido pelo trono de Sabá e que era filha de um homem nobre mortal com uma jinni —entidade sobrenatural. Kate Armstrong (2002) mostra que o contexto de afirmação do Islamismo contra o politeísmo é um ambiente de batalha, onde destaca-se a questão da conversão amparada por diplomacias e por violências. Sendo assim, cabe destacar na narrativa islâmica de Balqis o conflito entre a fé muçulmana e os papéis sociais de gênero que podem ser interpretados como alegorias de conversão religiosa com base em feminilidade/ masculinidade (Venchi 2008, 23). A Rainha de Sabá foi representada na literatura pelos escritores Anatole France, Gérard de Nerval e Victor Hugo. No cinema, foi personagem nos filmes «Salomão e a Rainha de Sabá», de 1959, e «As Mil e Uma Noites», de 1974. 366

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Em interpretações modernas, ela ecoa nos padrões emancipatórios femininos dos séculos XX e XXI, tanto em termos de gênero como em termos de representatividade étnico-racial, na reivindicação de uma rainha negra, como foi o caso, por exemplo, do samba-enredo «Sabá — Soberana da Etiópia, sedutora de Jerusalém», da escola de samba Tradição no Carnaval do Rio de Janeiro em 2018. Revisitar as narrativas em torno da Rainha de Sabá é criticar uma historiografia e uma memória coletiva islâmica que foram construídas de forma misógina, sendo igualmente um convite a pensar na contribuição africana na própria história judaica e islâmica, e nos entrelaçamentos culturais dessas três esferas. Fontes históricas AS MIL E UMA NOITES. 1974. Direção de Pier Paolo Pasolini. Itália/França: Produzioni Europee Associati (PEA)/Les Productions Artistes Associés (125 min.). BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2002. São Paulo: Paulus. KEBRA NAGAST: GLÓRIA DOS REIS. 2012. Edição e tradução de Luísa Andrade de Sousa. Eu & Eu Realidade Rasta. SALOMÃO E A RAINHA DE SABÁ. 1959. Direção de King Vidor.Estados Unidos: Edward Small Productions/Theme Pictures (141 min.). TORÁ. 2006. Tradução do hebraico. São Paulo: Sêfer. TRADUÇÃO DO SENTIDO DO NOBRE ALCORÃO. 2005. Medina: Complexo de Impressão do Rei Fahd. Bibliografia geral ARMSTRONG, K. 2002. Maomé: Uma biografia do Profeta. São Paulo: Companhia das Letras. 367

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DIOP, C. A. 2014. A Unidade Cultural da África Negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica. Lisboa: Pedago. LASSNER, J. 1994. Demonizing the Queen of Sheba: Boundaries of Gender and Culture in Postbiblical Judaism and Medieval Islam. Chicago and London: University of Chicago Press. LÓPEZ, M. M. 2003. A Rainha de Sabá: uma proposta de reconstrução histórica da sabedoria feminina afro-asiática do século X a.C., Revista de Cultura Teológica, vol. 11, n. 42, p. 19–33. MERNESSI, F. 2006. Forgotten queens of Islam. Minneapolis: University of Minnesota Press. VENCHI, M. 2008. Seduções e traições de gênero no Islã: a rainha de Sabá e o corpo feminino circuncidado, cadernos pagu, n. 30, p. 161–197.

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𓈖 𓋹 𓋴 𓇳𓄤𓏋 › Ankhnesneferibre por Wellington Rafael Balém Ankhnesneferibre (595–525 aEC), que em egípcio significa algo como «Viva Para Ela, Belo Coração de Rá», foi sacerdotisa do deus Amon, na cidade de Tebas, no Alto Egito. Entre seus títulos estavam «Esposa do Deus» e «Divina Adoradora», tendo sido o último grande nome de uma dinastia de sacerdotisas com prerrogativas régias na região tebana. Seu nome oficial de entronização foi Heqatneferoumout, que significa «A Mulher Governante da Perfeição/Beleza é Mut». Era filha do faraó Psamético II (595–589 aEC), que governou durante a Vigésima Sexta Dinastia, no século VI aEC. Já sobre sua mãe, sabemos seu nome, Takhuit, e que era a Grande Esposa Real de Psamético II. Com a morte de seu pai, seu irmão Apriés (589–570 aEC) tornou-se faraó, seguido pelo longo reinado de Ahmose II (570–526 aEC). Ankhnesneferibre viveu durante o início do Período Tardio (664–332 aEC) no Egito. O ano de sua morte, 525 aEC, coincidiu com a conquista do território egípcio por Cambises II (530–522 aEC), rei da Pérsia, após a captura do faraó Psamético III (526–525 aEC). Por esse motivo, as fontes a seu respeito são escassas, pois houve uma tentativa sistemática e proposital de apagamento das figuras da realeza egípcia por parte dos conquistadores. Essa ação, motivada pela necessidade de adquirir legitimidade ao governar o reino recém conquistado, agora transformado em satrapia, não alterou significativamente os tentáculos menores da burocracia egípcia. No ano de 1904, o arqueólogo Georges Legrain descobriu uma estátua da Divina Adoradora de Amon junto de uma estela que continha inscrições a

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respeito de sua entronização como Esposa do Deus Amon. O texto da estela foi publicado pelo egiptólogo Gaston Maspero, e uma tradução em língua inglesa foi feita e publicada pelo arqueólogo James Henry Breasted, ambas logo em seguida à descoberta (Leahy 1996). O sarcófago de Ankhnesneferibre foi descoberto no ano de 1832 em um profundo poço perto de Deir el-Medina. O objeto, além de inscrições, contém uma imagem em relevo de Ankhnesneferibre, representada usando longas vestes com pregas e, em suas mãos, carregando insígnias reais, reflexo do importante cargo que ocupou no tempo em que viveu. A Estela de Adoção de Ankhnesneferibre, inicialmente ignorada pela egiptologia, registra a adoção de Ankhnesneferibre como herdeira de Neith-iqret I (656–586 aEC), filha de Psamético I (664–610 aEC), que também exerceu a posição de Esposa do Deus Amon. Ankhnesneferibre se tornou sua sucessora oficial em 586 aEC (Dodson; Hilton 2004, 245–246). Mas adquiriu o título de Esposa do Deus Amon, e os deveres do sacerdócio, muito antes, sendo a primeira mulher egípcia a atingir a alta distinção de Sumo Sacerdote, também chamada de Primeiro Servo do Deus ou Primeiro Profeta de Amon (Ayad 2009, 140). Como as implicações religiosas são também políticas, o título a alçou a uma condição hierárquica superior à frente do colégio sacerdotal de Amon, semelhante ao contexto do apogeu político das Divinas Adoradoras durante a Vigésima Quinta Dinastia, época em que o Egito foi governado por faraós núbios. Mas Ankhnesneferibre assegurava o controle da classe sacerdotal tebana pelos faraós saítas que, após retomarem o poder dos núbios, sofriam constante ameaça na fronteira meridional. Ela recebeu ainda, o título de «Mão do Deus», que diz respeito aos aspectos solares de Amon. Em uma importante versão da cosmologia de Heliópolis, o deus criador Atum, embora fosse predominantemente masculino, tinha aspectos 370

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andróginos, inclusive de fertilidade. Para concretizar a criação ele usou sua mão e realizou uma masturbação cósmica, cujo sêmen expelido deu origem ao ar (personificado no deus Shu) e à umidade (deusa Tefnut). O fato de Neith-iqret I ser mencionada nas incrições de Ankhnesneferibre, entronada aos nove anos, está ligado ao fato dela ser sua mãe adotiva e predecessora. Essa idade de entronização era muito comum, dada às altas taxas de mortalidade infantil na primeira infância no Egito antigo. É necessário destacar ainda que, o papel de mãe adotiva era relacionado ao exercício do sacerdócio e à legitimação da sucessão, não significando a inexistência da mãe biológica de Ankhnesneferibre (Becker; Blobaum; Lohwasser 2017). A adoção de uma sucessora foi vista, muitas vezes, como reflexo do celibato, da impossibilidade de casar ou de ter filhos biológicos. Mas é preciso ter em mente que a virgindade feminina e a vida sexual das mulheres não era um tabu na sociedade egípcia. O celibato da Esposa do Deus e Divina Adoradora significava não formalizar um matrimônio com um homem. Mas, no cumprimento de suas funções políticas e religiosas não havia contradição flagrante na possibilidade dela poder realizar ritos sexuais no templo, manter pessoas como amantes ou usar contraceptivos. Assim, a trajetória de Ankhnesneferibre não é apenas uma experiência que evidencia aspectos de mulheres da realeza do período, mas também do alcance e das contradições das sacerdotisas de Amon enquanto mulheres numa sociedade altamente estratificada e patriarcal. A divindade egípcia Amon teve grande relevância durante a Dinastia Saíta no Egito, a qual pertencia Ankhnesneferibre. Fato que reforça a ideia de que ela exercia, depois do faraó, a relação de culto mais próxima com o deus, numa espécie de responsabilidade compartilhada pela manutenção da ordem cósmica, para os antigos egípcios a 371

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Maat, que assegurava o equilíbrio ao mundo em que viviam. A tradição iconográfica demonstra que a estela foi confeccionada em uma oficina tebana, e que ao receber o mais alto ofício sacerdotal de Esposa de Amon, Ankhnesneferibre tem seu nome completo escrito em um cartucho real (Leahy 1996). Sua iniciação nos mais altos mistérios de Amon implicava em coordenar e executar diariamente rituais da união sagrada com o deus, seu entretenimento, sobretudo com música e dança, com oferendas de alimentos, bebidas e incenso, mas também administrar a imensa riqueza da divindade. As Esposas do Deus e Divinas Adoradoras também desempenhavam na região de Tebas ofícios que em outros lugares do país eram exclusivos do rei, como a construção e consagração de capelas funerárias e a instalação de estátuas e santuários (Ayad 2009). Os dois faraós, Psamético II e Apriés, pai e irmão de Ankhnesneferibre, aparecem nas inscrições dela apenas como pontos de referência. Nenhum deles é representado exercendo papel ativo, mesmo sendo muito provável que o fato de Ankhnesneferibre receber a adoção tenha sido incentivado por parte de seu pai e sancionado por seu irmão. Ao contrário da Estela de Adoção de Neith-iqret I, com grande retórica comemorativa, a Estela de Adoção de Ankhnesneferibre é mais contida, e possuí caráter predominamentemente administrativo, algo que é perceptível em diversos outros tipos de documentação real da época. Porém, ambas possuem em comum a preocupação em assegurar o direito legal das sacerdotisas, inclusive de bens e riquezas. No caso de Ankhnesneferibre, esta recebe a adoção concernente à data de seu nascimento, para lhe garantir o posto de herdeira. Em Karnak, Ankhnesneferibre ampliou construções feitas por Neith-iqret I, aparecendo ao lado do faraó Ahmose II, na capela de Osíris-Wennofer-Neb-djefa, o «Senhor de Oferendas», e construiu o «Edifício da Esposa do 372

A presença das mulheres na Literatura e na História

Deus». Como sua mãe adotiva, Ankhnesneferibre também ergueu edificações em Malqata, dedicado a Osíris Pameres, o «Osíris, que a ama». Além disso, ela mandou construir capelas funerárias em Medinet Habu, próximas da de Ramsés III. Foi para reivindicar seu direito de suceder Neith-iqret I, que ela mandou confeccionar sua estela com data retroativa. Além disso, forneceu à sua mãe adotiva os ritos funerários e culto adequado, ações pelas quais ela também legitimava sua posição de filha e sucessora. Com a invasão persa e a morte de Ankhnesneferibre, há muitas dúvidas se e em que condições sua sucessora Neith-iqret II possa ter desempenhado seus ofícios, já que a instituição da Esposa do Deus foi rapidamente abolida por Cambises para nunca mais ser restabelecida. Assim, para além da sua importância individual como sujeito histórico, Ankhnesneferibre, como a última Esposa do Deus Amon, também representa um legado de uma tradição interrompida. Fontes históricas Estátua de Ankhnesneferibre (595–525 aEC), 26ª Dinastia. Acervo: Museu Núbio, Aswan, Egito. Código: CG 42205. Estela: ʿAdoção de Ankhnesneferibreʾ (595–525 aEC), 26ª Dinastia. Acervo: Museu do Cairo, Cairo, Egito. Código: JE 36907/ K 155. Sarcófago de Ankhnesneferibre (595–525 aEC), 26ª Dinastia. Acervo: Museu Britânico, Londres, Inglaterra. Código: BM EA32. Bibliografia geral AYAD, M. F. 2009. God’s Wife, God’s Servant: The God’s Wife of Amun (c. 740–525 bc). Routledge, Taylor & Francis Group, London and New York. 373

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BECKER, M.; BLOBAUM, A. I.; LOHWASSER, A. L. (Eds.). 2017. Prayer and Power: Proceedings of the Conference on the God’s Wives of Amun in Egypt During the First Millennium BC (Agypten Und Altes Testament). Ugarit Verlag. DODSON, Aidan; HILTON, Dyan. 2004. The Complete Royal Families of Ancient Egypt. Thames & Hudson, pp. 245–246. LEAHY, Anthony. 1996. The Adoption of Ankhnesneferibre at Karnak, The Journal of Egyptian Archaeology, Egypt Exploration Society, vol. 82, London, p. 145–165.

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𓈖

𓌢 𓅃 › Tsenhor 𓏏𓄿 𓏏

por Wellington Rafael Balém

Tsenhor, cujo nome significa «Irmã de Hórus», foi uma mulher de negócios nascida em Tebas, sul do Egito, por volta de 550 aEC. As fontes referentes à sua vida são contratos registrados em papiros (P) guardados pela própria Tsenhor, referentes aos seus ganhos como choachyte, além de contratos de casamento, divisão de herança, compra de escravos e propriedades e de trabalhos realizados por seus filhos. Essas fontes, conhecidas como Papiros Demóticos de Tsenhor, estão preservadas separadamente na Biblioteca Nacional de Paris, no Museu Britânico, no Louvre, no Museu Egípcio de Turim e no Museu de História da Arte de Viena. Foram reunidas, traduzidas, comentadas e publicadas em 1994 por Pieter Willem Pestman no livro Les papyrus démotiques de Tsenhor: Les archives privées d’une femme égyptienne du temps de Darius Ier. Como mostrou Heel (2014), nas entrelinhas dessa documentação burocrática pode-se ver a trajetória de uma mulher egípcia antiga muito diferente das rainhas e ricas damas que conhecemos. Filha de Nesmin e Ituru, seguiu os passos do pai e tornou-se choachyte, isto é, uma prestadora de serviços funerários, assim como seus meio-irmãos por parte paterna Nesamunhotep, Inaros e Burekhef (todos homens, filhos de Nesmin com a primeira esposa Tays). Seu ofício consistia em levar oferendas aos mortos da necrópole na margem oeste do rio Nilo e pode ser descrito também como «derramadora de água», destacando a importância não apenas biológica, mas também ritual dessa substância. Embora a documentação

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explicite muito da vida adulta de Tsenhor, o mesmo não se aplica a respeito de sua infância. Seu nome pode ter sido escolhido como referência ao de uma senhora que, certa feita, contratou os serviços funerários de Nesmin e de quem ele recebeu como pagamento, em 556 aEC, onze aruras de terra (o que equivaleria hoje a quase três hectares) (Heel 2014, 3; P. Louvre E 10935). Já adulta, Tsenhor se casou duas vezes: primeiro com um homem chamado Inaros, por volta de 535 aEC, com quem teve um filho, Peteamunhotep (P. Bibl. Nat. 216); em 517 aEC, depois do falecimento do marido —ou divórcio, não se sabe—, já com trinta e três anos, uma idade considerada avançada, casou-se com Psenese (P. BM EA 10120A), também um choachyte, com quem teve Ruru e Ituru. Ficou viúva por volta de 498 aEC, época em que já tinha cerca de cinquenta e dois anos e já não tinha mais a mesma saúde e vigor para exercer seu ofício; Ruru, sua filha, seguiu com os negócios funerários da família, sendo contratada como choachyte por um oficial de Amon em 497 aEC (P. Louvre E 3231A). As fontes a respeito de Tsenhor cessam após 490 aEC, portanto presume-se que faleceu depois desse ano. Segundo os Papiros Demóticos de Tsenhor, na ocasião de seu segundo casamento, assinou contratos considerados revolucionários para o período (Heel 2014, 96): um distribuindo metade de sua herança a Peteamunhotep, seu primeiro filho (P. Bibl. Nat. 216); outro deixando o restante para Ruru, sua filha com Psenese (P. Bibl. Nat. 217); e, o último, em que Psenese garantia a Ruru parte igual à de seus irmãos —já existentes e os futuros— em sua herança (P. BM EA 10120B). Esse tipo de contrato não era convencional, já que normalmente o direito de herança aos filhos do casal era aplicado ao contrato de casamento; além disso, os filhos geralmente herdavam metade das posses de ambos os pais, contanto que fossem do 376

A presença das mulheres na Literatura e na História

mesmo sangue (Heel 2014, 91). Com os contratos, Tsenhor garantiu não só que ambos os seus filhos recebessem metade de suas posses, como também que os filhos de Psenese de outros relacionamentos não interferissem na herança dos seus filhos com ele. O contrato de herança de Psenese foi substituído por outro em 498 aEC, no qual ela garantia a Ruru metade de suas posses, a outra parte ficando para seu irmão Ituru (P. Turin 2126); assume-se que Psenese faleceu após essa data. Outros contratos colocam Tsenhor como uma mulher de negócios. Em 512 aEC, comprou um terreno ou casa na necrópole de Tebas junto a Psenese (P. Turin 2123). No ano seguinte, mais um terreno foi adquirido pelo casal, ao lado do primeiro (P. Louvre E 7128). Ambas as propriedades foram divididas por igual entre Tsenhor e seu marido, sendo os pagamentos delas realizados por ambos. Em 506 aEC, recebeu do meio-irmão Nesamunhotep sua quarta parte de um edifício adquirido por seu pai, Nesmin (P. Turin 2125), por direito de herança. De Nesamunhotep recebeu também, em 491 aEC, um quarto do valor pelos serviços prestados pela família ao enterro de um oficial egípcio (P. Turin 2127). No Egito antigo, mulheres e homens tinham direito à herança, à propriedade e à justiça, mas, normalmente, os homens tinham mais propriedades do que as mulheres, que também recorriam menos à corte (Graves-Brown 2010, 41–42). Tsenhor se apresenta, então, como uma exceção, que não só acessou a justiça várias vezes —para firmar diversos contratos— como comprou e manteve várias propriedades, as quais recebeu ou adquiriu em parcelas iguais com seus meio-irmãos ou com seu esposo, o que não era usual. Tsenhor viveu durante a primeira metade do Período Tardio (664–332 aEC). Durante sua vida, o Egito passou da Dinastia Saíta para uma dominação persa, mudança que não tem reflexo nos seus escritos. Como explica Lloyd 377

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(2000), o começo do Período Tardio foi marcado pela reunificação do Egito por Psamético I (664–610 aEC), que teve sucesso em neutralizar confrontos com os poderosos sacerdotes tebanos, as dinastias líbias e os inimigos asiáticos e núbios, os quais descentralizaram o poder do faraó. Sua estratégia consistiu, em termos gerais, em reforçar o exército, explorar o comércio com gregos e fenícios e apontar sua filha Neith-iqret como «Esposa do Deus Amon», título importante que significava, na época, ter uma aliada do governo central na região sul do Egito. Além disso, aliou-se aos lídios para rechaçar os assírios do território egípcio. Porém, seus sucessores Necau II (610–595 aEC), Psamético II (595–589 aEC), Apriés (589–570 aEC) e Amósis II (570–526 aEC) tiveram de lidar com as investidas dos caldeus até a ascensão de Ciro II na Pérsia (559 aEC), quando finalmente caldeus e egípcios se aliaram, juntando-se aos lídios e aos espartanos. Ciro destruiu os aliados egípcios (a Lídia em 546 aEC e a Babilônia em 538 aEC) e seu filho Cambises II invadiu o Egito em 525 aEC, capturando o então faraó Psamético III (526–525 aEC). Os primeiros governantes persas Cambises II (525–522 aEC) e seu sucessor, Dario I (522–486 aEC), em busca de apoio, adotaram a participação de nativos egípcios em seus governos (Lloyd 2000). Heródoto pintou um retrato ruim da administração persa no Egito. Segundo o historiador grego, Cambises teria assassinado o Touro Ápis, sagrado em Mênfis, além de ter violado a tumba de Amasis em Saís, profanado e destruído seu corpo mumificado, além de diversas outras arbitrariedades (Histórias, III). Mas na documentação egípcia, mesmo com a transformação do país em satrapia, é perceptível como os soberanos persas se fizeram legitimar como faraós, e como pouco alteraram o cotidiano da religião, da administração e das questões legais, respeitando as tradições locais. Essa 378

A presença das mulheres na Literatura e na História

relação de continuidade transparece nos Papiros Demóticos de Tsenhor. Mas não foi assim para todos ou todas. Como explica Mariam Ayad (2009), desde o início do primeiro milênio aEC, a «Esposa do Deus Amon» exercia grande influência religiosa e política em Tebas, assumindo também a função ritualística de «Divina Adoradora», com prerrogativas régias sobre a região. Até 525 aEC, esse papel era desempenhado pela filha de Psamético II, Ankhnesneferibre, que além dos dois ofícios citados, foi a primeira mulher a ocupar a posição de Primeiro Profeta do Deus, o que a colocava à frente do poderoso sacerdócio de Amon. Essa posição foi abolida por Cambises e jamais retomada. Na História egípcia em geral e no Período Tardio em particular, o mundo dos negócios não era estranho às mulheres, embora no Reino Antigo (2686–2160 aEC) elas tenham tido mais prestígio em suas atividades (Graves-Brown 2010, 79–80). O ofício de choachyte era mais complexo e mais multifacetado do que pode parecer. Propiciava riquezas e propriedades a quem se ocupava das necessidades dos mortos, normalmente de forma organizada, familiar e hereditária, a ponto de gerar uma burocracia para melhor administrá-las. Contratos eram raridade para a imensa maioria da população. O trabalho de Tsenhor também pressupunha uma dimensão religiosa: desde a importância da manutenção do fluxo de oferendas de água, alimentos e outros bens para o sustento do ka dos falecidos, até o elemento ritualístico que esse fazer representava. Ela pertencia a um estrato baixo na organização social da época, o que não significa que fosse pobre, pelo contrário. E mesmo que fosse muito mais rica, não seria facilmente aceita entre as pessoas da elite de seu tempo. Mas a riqueza que herdou, aumentou e legou aos filhos e filhas foi central na maneira como Tsenhor conduziu sua vida. 379

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Fontes históricas HERÓDOTO. 2016. Histórias. Livro III Talia. Tradução e notas de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro. PESTMAN, P. W. (Ed.). 1994. Les papyrus démotiques de Tsenhor: Les archives privées d’une femme égyptienne du temps de Darius Ier. Transcrições hieroglíficas e paleografia estabelecidas por P. W. Pestman e S. P. Vleeming. Leuven: Peeters. Bibliografia geral AYAD, M. F. 2009. God’s Wife, God’s Servant: the God’s Wife of Amun (c. 740–525 BC). Routledge: Nova York. GRAVES-BROWN, C. 2010. Dancing for Hathor: Woman in Ancien Egypt. Nova York: Continuum. HEEL, K. D. V. 2014. Mrs. Tsenhor: a female enterpreneur in Ancient Egypt. Cairo: The American University in Cairo Press. LLOYD, A. B. 2000. The Late Period (664–332 BC). In: SHAW, I. The Oxford History of Ancient Egypt. Oxford: Oxford University Press, p. 364–387.

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Ἀρσινόη Β’ › Arsinoé II

por Joana Campos Clímaco

Filha do Ptolomeu I Sóter e Berenice I, Arsínoe II Filadelfo (317–270 aEC) foi uma rainha da linhagem macedônica dos Ptolomeus, que governou o Egito por trezentos anos, após a divisão territorial entre os generais de Alexandre III (diádocos) iniciada após sua morte (323–321 aEC). Os relatos sobre ela se dividem em duas fases: a primeira é bastante lacunar e cobre sua vida até a ida ao Egito (principalmente Justino, mas Pausânias, Estrabão, Apiano e Polieno oferecem algumas pinceladas). A segunda é mais documentada e aborda sua vivência como rainha do Egito e a consagração como divindade egípcia e grega (em vida e póstuma). Embora as datas sejam ainda incertas, às fontes já mencionadas se somam também a poesia helenística de corte (Calímaco, Teócrito e Posídipo) e inúmeras evidências egípcias (estelas, imagens em templos e inscrições). Alexandre III e seu exército derrotaram o Império Persa e incorporaram seus domínios, ambicionando unificar politicamente diversas regiões do mundo grego até a Ásia. A morte precoce do rei encerrou as pretensões de unidade político-cultural nesse amplo território e deu origem a um contexto de intercâmbios através da consolidação de monarquias híbridas greco–macedônico–orientais e do uso da língua grega como principal veículo de comunicação entre as elites letradas. Antes do casamento com o irmão, Ptolomeu II Filadelfo, com quem governou até a morte (circa 270 aEC), Arsínoe II fora casada com Lísimaco, rei da Trácia (no Mar Negro) e com o meio irmão, Ptolomeu Cerauno, que comandou a Macedônia por um curto período. Sua circulação como rainha de três diferentes cortes revela um ambiente multicultural de intensos

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contatos diplomáticos e disputas monárquicas, além da diluição de fronteiras étnicas, aspectos característicos do chamado Período Helenístico. Ainda que a biografia de Arsínoe II tenha se construído à sombra de Ptolomeu II, a historiografia atual busca entender sua atuação política autônoma. Arsínoe II nasceu no Egito, na recém sede real de Alexandria (fundada em 331 aEC), e levou o nome de sua avó, mãe de Ptolomeu I. Partiu para a Trácia ainda adolescente para uma aliança matrimonial arranjada com Lisímaco, um dos diádocos ao lado de seu pai. Há poucos dados sobre sua atuação como rainha em Lisimáquia, mas é notável seu prestígio na corte e em algumas cidades gregas incorporadas ao reino, como Delos e Éfeso, onde seu nome aparece como benfeitora. Enquanto estava na Trácia, Ptolomeu I tornou o irmão de Arsínoe II corregente no Egito, simbolizando que sua mãe, Berenice, havia vencido a disputa entre as duas linhagens de herdeiros, a partir das esposas reais do rei. Nesse processo, Ptolomeu Cerauno, o primogênito e filho da outra esposa Eurídice, foi descartado para a sucessão (Carney 2013). A consagração do irmão certamente elevou sua posição e a dos filhos externamente, pois além de rainha da Trácia, era agora filha do rei do Egito e irmã do futuro governante. Assim, tal período foi basilar para a formação de sua postura ativa e defensiva, simbolizando o desfecho das disputas dinásticas que vivenciara desde a infância e que culminaram na sua ida ao Egito. Provável herança da realeza macedônica, a poligamia real foi recorrente nesse contexto. Lisímaco tinha esposas e filhos antes do casamento com Arsínoe II, com quem teve três descendentes. Agátocles, o primogênito de Lisímaco, era mais velho que a rainha, ganhara autoridade em diversos domínios do pai e foi assassinado na corte acusado de conspiração. O episódio é envolto em especulações e rumores e diversos relatos acusam a rainha de ter articulado a morte visando a 382

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herança dos filhos. Lisímaco também foi acusado de envolvimento, resultando na sua morte por Seleuco, que depois foi morto por Ptolomeu Cerauno, o meio-irmão de Arsínoe, que tomou o poder na Macedônia na busca por outros reinos após a impossibilidade da sucessão no Egito. Como sua situação se tornou insegura com a morte de Lisímaco, ela buscou refúgio na Macedônia, talvez com a esperança de seu primogênito tornar-se rei. Sua saída de Éfeso é mais um episódio polêmico de sua vida. Polieno relata que ela fugiu disfarçada de mendiga e a camareira usou sua vestimenta real, sendo assassinada em seu lugar (Estratagemas. 8, 57). Ptolomeu Cerauno a pediu em casamento, com a promessa de torná-la rainha e os filhos herdeiros. Arsínoe desconfiou e insistiu que fosse imediatamente proclamada rainha antes de entrar na Macedônia, o que Cerauno consentiu, porém, matou seus dois filhos mais novos. O evento dramático resultou na sua fuga ao Egito, onde foi recebida pelo irmão já proclamado rei e com quem se casou (entre 276 e 274 aEC), tornando-se rainha pela terceira vez. É notável a agência de Arsínoe II nas contendas pelo poder, na defesa pela sucessão dos filhos e da própria vida. As regras de sucessão não eram claras e geravam intrigas políticas e mortes, além de ambições pelo trono e por fama, o que repercutiu na vida privada de homens e mulheres em evidência nas cortes, provocando a circulação de rumores. Logo, deve-se evitar julgamentos binários sobre suas ações e problematizar o retrato extremado nas fontes (oscilando de vilã a vítima) em decorrência desse contexto de perpétua insegurança. Sua chegada ao Egito também é envolta em especulações. A esposa anterior de Ptolomeu II (Arsínoe I) foi exilada em Copto, abrindo caminho para o casamento, mas é provável que o exílio ocorrera antes de sua chegada. Arsínoe I era filha de Lisímaco e a morte do pai poderia ter fragilizado sua posição, o que o rei usaria estrategicamente para se casar novamente. 383

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Ademais, as razões que levaram ao casamento entre os Filadelfos (irmão e irmã amantes) são repletas de indagações. A prática era condenada entre gregos e macedônios e não era recorrente entre egípcios, com exceção de alguns casos documentados no meio real faraônico (Buraselis 2008). É provável que a união visasse a aproximação com as tradições faraônicas, a alcunha adotada e a criação do culto dinástico dos theoì adelphoí («deuses irmãos») evidenciavam a intenção. Embora, tal adoração fosse associada a Alexandre, o casal tinha recinto e sacerdote exclusivos. Para os egípcios, a união poderia espelhar o casal de deuses-irmãos Ísis e Osíris e naturalizar a origem divina da realeza, pois os antigos faraós personificavam divindades. Inscrições em hieróglifos demonstram que sua associação com Ísis se popularizou (Carney 2013 108). Os poetas da corte, Teócrito e Calímaco, comparam a união à de Zeus e Hera no Olimpo, talvez uma forma literária de elevar o estatuto divino do casal e tornar o casamento aceitável para gregos (Teócrito. Encômio a Ptolomeu II Filadelfo. 17, 128; Calímaco. Fragmento 392). Apesar de controversa no primeiro momento, a partir deles o casamento entre irmãos se tornou recorrente na sucessão ptolomaica, pressupondo a aceitação da prática. O reinado de Filadelfo é descrito como o período áureo da dinastia e tal sucesso deve ser em parte atribuído à influência da rainha e à aproximação das tradições egípcias. É difícil desvincular suas ações das de seu marido, pois o casal real foi integrado numa imagem conjunta de monarquia e tal união permaneceu como modelo na memória da dinastia. Ao lado dos reis, as primeiras rainhas foram peças fundamentais desse xadrez para a legitimidade dinástica dos Ptolomeus no Egito. A natureza dupla de sua personalidade (grega e egípcia) foi essencial para sua popularidade e deificação póstuma. Em vida, Arsínoe II foi representada em cenas rituais 384

A presença das mulheres na Literatura e na História

ao lado do rei em diversos templos egípcios e festividades os celebravam dentro e fora de Alexandria. Sua realeza coincide com um importante momento na política externa egípcia, que culminou na vitória egípcia na guerra síria (entre 276 e 274 aEC), tornando o Egito um grande poder naval. A Estela de Píton mostra a rainha acompanhando o rei numa viagem até as fronteiras orientais no Istmo de Suez para pesquisar as defesas egípcias. Após a morte, foi aclamada por navegantes no Egeu e em cidades portuárias da costa mediterrânica como protetora do mar e dos viajantes e símbolo do poder marítimo egípcio. É provável que o rei tenha desfrutado de sua experiência anterior na política externa no mundo grego, resultando numa autoridade sem precedentes para uma mulher nas tradições gregas e mesmo entre egípcios, pois seu marido estava vivo e ativo. Além do culto dinástico aos «deuses irmãos» estabelecido em vida, Ptolomeu II lhe dedicou uma adoração independente após a morte, o da theà philadelphús («deusa-amante do irmão») e estabeleceu um sacerdócio próprio para ela (em Alexandria e Mênfis), além de promover sua adoração ao lado de divindades nativas em templos por todo o Egito. Construiu um Arsinoeum no quarteirão real de Alexandria e estabeleceu um festival em sua homenagem. A Estela de Mendes representa a rainha desencarnada sendo recebida por deuses egípcios e recebendo ritos funerários. Ptolomeu II também mandou erguer santuários independentes para ela, redirecionando recursos de outros templos para sua veneração. Tudo isso foi importante para vincular o sacerdócio nativo à dinastia, que a proclamou «rainha do Alto e Baixo Egito», uma titulação faraônica. Foi também a primeira rainha da dinastia a ter seu nome de trono inscrito em cartuchos reais. Tudo isso evidencia seu papel e sua autonomia como corregente e não somente como cônjuge real e a contrapartida feminina do casal. 385

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A deificação e memória de Arsínoe II foi celebrada durante todo o comando dos Ptolomeu e serviu de inspiração para o reinado da última rainha, Cleópatra VII, cuja fama colaborou para que a imagem de sua antecessora se ofuscasse na posteridade. Tal apagamento também se deve ao casamento visto como incestuoso e da divulgação de seu retrato, sobretudo, pela segunda sofística, gênero que tendia a hostilizar a supremacia macedônica em defesa dos valores do mundo grego clássico, situação que começa a se reverter na historiografia. Fontes históricas APPIAN. 1912–1913. Roman History. Vol. 3. Translated by B. McGing.  London: Harvard University Press. CALLIMACHUS. 1980. Himnos, epigramas y fragmentos. Traducción de L. A. Cuenca e M. B. Sánchez. Madrid: Editorial Gredos. JUSTINO, M. 1995. Epítome de las Historias Filípicas de Pompeyo Trogo. Traducción de J. C. Sánchez. Madrid: Editorial Gredos. PAUSANIAS. 1918. Description of Greece. Vol. I. Translated by W. H. S. Jones. London/Massachusetts: Harvard University Press. POLIENO. 1991. Estratagemas. Traducción de F. M. García. Madrid: Editorial Gredos. POSIDIPPUS. Epigrams Pap. Mil. Vogl. VIII 309. Disponível em: https://chs.harvard.edu/CHS/article/displayPdf/369. Acesso em: 04 mai. 2021. STRABO. 1960. Geography. Vol. VI. Translated by de H. L. Jones. London: Harvard University Press. THEOCRITUS. 2003. Encomium of Ptolemy Philadelphus. Trad. de R. Hunter. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press. 386

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral ALMEIDA, A. S. 2007. Ekthéosis Arsinóes: o culto a Arsinoe II Filadelfo. Dissertação de Mestrado em Arqueologia defendida na Universidade de São Paulo – USP. BURASELIS, K. 2008. The Problem of the Ptolemaic Sibling Marriage: a Case of Dynastic Acculturation? In: MCKECHNIE, P; GUILLAUME, P. (Eds.). Ptolemy II Philadelphus and his World. Leiden, Boston: Brill, p. 291–302. CARNEY, E. 2013. Arsinoë of Egypt and Macedon: A Royal Life. New York: Oxford University Press. SCHENTULEIT, M. 2019. Gender Issues: Women to the Fore. In: VANDORPE, K. (Ed.). A Companion to Greco-Roman and Late Antique Egypt. Hoboken, NJ : John Wiley & Sons, Inc., p. 347–360. ZAVALIS, V. 2019. Entre agência e dominação masculina: O poder de Arsínoe II como Rainha do Alto e Baixo Egito (séc. III aEC). Dissertação de Mestrado em História Social defendida na Universidade Federal Fluminense – UFF.

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Βερενίκη B’ › Berenice II

por Karine Lima da Costa

Berenice II — Βερενίκη Ευεργέτες ([Bereníkē] 267/6–221 aEC) foi rainha de Cirene e rainha do Egito ptolomaico a partir de 246 aEC. Era a única filha da princesa selêucida Apama e do rei Magas de Cirene e foi esposa de Ptolomeu III Evérgeta. Seu nome foi escolhido em homenagem a sua vó, Berenice I e significa «A Vitoriosa». Embora pouco referenciada pela historiografia, Berenice inspirou alguns poetas de sua época, como o grego Calímaco de Cirene. As fontes referentes à história de Berenice são escassas e fragmentadas e recaem em evidências literárias e materiais, nas quais destacamos obras clássicas como Lock of Berenice, de Calímaco; Historiae Philippicae, de Pompeu Trogo; e as obras de Políbio. Demais informações chegaram até nós através de documentos comerciais ou decretos e vestígios arqueológicos, como moedas e inscrições em papiros ou pedras — a maioria como dedicatória para ela e seu marido (Clayman 2014, 6). A escassez de fontes mais completas sobre Berenice II nos impossibilita de formular uma história mais detalhada sobre a sua vida na Antiguidade. Berenice II nasceu em Cirene, uma cidade grega localizada no norte da África, onde atualmente situa-se a Líbia. Foi fundada em 631 aEC por imigrantes que vieram da Ilha de Thera (Clayman 2014, 16) e desde 1982 é considerada Patrimônio Mundial da UNESCO. Berenice II casou-se duas vezes: a primeira, por influência de sua mãe, com Demétrio, o Belo, que era meio-irmão de Antígono Gonato, então rei da Macedônia. Após assassinar o seu marido ao flagrá-lo na cama com sua mãe, ela casou-se

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com Ptolomeu III Evérgeta, seu primo. Esse casamento era um desejo de seu pai, pois uniria os territórios de Cirenaica e do Egito. Ao todo, Berenice teve seis filhos. Entre eles, Ptolemeu II Filadelfos, fruto de seu caso extraconjugal com Ptolomeu I Sóter. O relato do assassinato de Demétrio, o Belo por Berenice pode ser encontrado no epítome de Justin das Histórias Filípicas de Pompeu Trogo (Clayman 2014, 5). Quando Ptolomeu III foi para a Síria durante a Guerra da Laodicéia (246–241 aEC), Berenice II assumiu a regência em Alexandria. Como forma de pedir proteção ao seu marido, ela ofereceu aos deuses uma mecha de seu cabelo, que foi colocada no Templo de Arsínoe/Afrodite, em Zefírio. Esse episódio foi registrado no poema de Calímaco Coma Berenices (Βερενίκης πλόκαµος), um dos únicos fragmentos conhecidos. Segundo a lenda, a mecha de cabelo de Berenice teria desaparecido do templo levada ao céu pela deusa Afrodite, o que originou o nome da moderna constelação do hemisfério celestial norte conhecida como «Coma Berenices» — a única que possui atribuição a uma pessoa. Foi graças a esse episódio que Berenice II foi imortalizada pelas artes modernas. Suas representações mais conhecidas foram encontradas em didracmas (moedas de prata) cirenaicas que apresentavam o seu rosto em um lado e o seu nome no verso — «ΒΕΡΕΝΙΚΗΣ ΒΑΣΙΛΙΣΣΗΣ», que significa «Rainha ou Princesa Berenice» (Ruiter 2015, 45). Também há registros de imagens suas em mnaieias de ouro que a representam jovem e com meia idade. Na cerâmica, Berenice II foi representada em enócoas ptolomaicas (jarras de vinho), associada à abundância e à prosperidade. Algumas esculturas que atualmente se encontram em acervos museológicos sugerem a hipótese da representação de Berenice, mas ainda sem consenso, como uma cabeça feminina de mármore branco do Museu Greco-Romano, 390

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em Alexandria (Ruiter 2015, 55). Já no Museu Real de Mariemont, na Bélgica, há uma cabeça feminina de mármore policromado identificada como de Berenice II. No Egito, uma de suas representações mais famosas é um relevo do «Portão Euergetes», construído no Templo de Khonsu em Tebas (Karnak), no qual Berenice II e Ptolomeu III aparecem ao lado dos deuses. Além de moedas, vasos e esculturas, a imagem de Berenice II estampa um mosaico exposto no Museu Greco-Romano. O reinado de Berenice e Ptolomeu durou vinte e quatro anos e, após a morte de seu marido, o seu filho mais velho, Ptolomeu IV, mandou assassinar a mãe para assumir o poder. Através de seu epíteto «Euergetis», Berenice II ficou reconhecida por sua bondade e generosidade. Fontes históricas MARINONE, N. 1997. Berenice da Callimaco a Catullo. Testo critico, traduzione e commento. Nuova edizione ristrutturata, ampliata e aggiornata. Testi e manuali per l’insegnamento universitario del latino 49. Bologna: Pàtron. YARDLEY, J. 1994. Justin: Epitome of the Philippic History of Pompeius Trogus. Atlanta, GA: Scholars Press. Bibliografia geral ADAMS, N. 2003. A New Portrait of Berenike II from the Temple of Apollo at Cyrene?, Libyan Studies, 33, p. 29–44. BARBER, E. 1936. The Lock of Berenice: Callimachus and Catullus. In: MURRAY, G.; BAILEY, C. (Eds.). Greek Poetry and Life: Essays Presented to Gilbert Murray on His Seventieth Birthday. Oxford: Clarendon Press, p. 342–363. CLAYMAN, D. 2014. Berenice II and the Golden Age of Ptolemaic Egypt. Oxford: Oxford University Press. 391

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𐦚𐦁𐦑𐦝𐦖𐦊𐦓 › Shanakdakhete

por Fábio Amorim Vieira

Shanakdakhete/Shanakdakheto (Šnkdkḫete) foi uma governante de Kush no século II aEC, sendo considerada a primeira rainha a ocupar o governo kushita em Meroé. Seu papel político em Kush atesta-se a partir de representações iconográficas e epigráficas meroítas remanescentes em sua pirâmide no cemitério real ao Norte de Begarawya, bem como no templo F em Naqa. Após a ascensão da XXV dinastia kushita de Napata ao trono egípcio no século VII aEC e posterior retirada a partir de ataques assírios no Egito, pontuais transformações marcaram o estado de Kush, cujos domínios e áreas de influência estenderam-se gradativamente por todo o vale do Nilo médio (Edwards 2004, 143). Talvez a mais expressiva destas transformações tenha sido a transferência do centro político de Napata para Meroé, mais a Sul em relação ao Egito, entre a quinta e a sexta cataratas do Nilo, a prevenir ataques pela fronteira egípcia, como os empreendidos por Psamético II contra Kush em 591 aEC. Napata permaneceu como centro religioso e sua necrópole real, Nuri, manteve-se como espaço de sepultamento dos reis kushitas até o fim do século IV aEC, quando se iniciou a realização de enterramentos dos governantes em cemitérios reais meroítas, bem como a edificação de templos na região (Leclant 2011, 282). É neste contexto de contínuas transições que Shanakdakhete ascende ao poder de Meroé no século II aEC, iniciando um novo período de reinados dirigidos por rainhas meroítas e co-regências masculinas e femininas com prováveis raízes

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núbias locais. Seu antecessor, anônimo nas inscrições, deixou na necrópole de Begarawya uma pirâmide inacabada (Beg. N. 10) e provavelmente não utilizada em seu funeral real, a sinalizar prováveis conturbações e descontinuidades na transição de poder e posterior ascensão de Shanakdakhete. Assim como seu predecessor, sua filiação permanece oculta nas documentações. Shanakdakhete, todavia, legou sua presença régia em registros pictóricos e epigráficos emblemáticos para a compreensão de seu reinado, cujo destaque apresenta-se desde o nome real escolhido pela rainha, isento de menções a Amani/Amon, divindade comumente referenciada na nomenclatura de reis kushitas anteriores. Atribui-se à sua época a pontual ascensão da escrita meroíta, variante ao egípcio hieroglífico e executada a partir de 23 sinais hieroglíficos ou cursivos aplicados à fonética local (Eide et al 1996, 359). No templo F em Naqa, situado entre os rios Nilo, Atbara e Nilo Azul e dedicado aos deuses tebanos Amon, Mut e Khonsu, além das divindades núbias Apedemak e Amesemi, estão presentes as inscrições meroítas mais antigas que se tem notícia, compostas por citações nominais a Shanakdakhete em meroíta hieroglífico. Nelas, a governante é reverenciada com os títulos faraônicos de Filho de Rá/SꜢ-RꜤ e Senhor das Duas Terras/Nb-TꜢwy (Eide et al 1996, 660–1), demonstrando a permanência parcial das titulaturas egípcias utilizadas por reis egípcios e kushitas anteriores, em um contexto de legitimação de poder por meio de apropriações. Nos variados relevos do templo, Shanakdakhete é apresentada junto às divindades, seguida por uma figura masculina de proporção menor à dela, cujo tamanho e proximidade à rainha e aos deuses indicam possivelmente ser um jovem integrante da realeza. Relevos semelhantes de Shanakdakhete puderam ser observados na capela de sua pirâmide (Beg. N. 11) no cemitério Norte de Begarawya, a maior dentre as demais e com 394

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singular decoração e arquitetura, a mesclar elementos de matrizes egípcias, helenísticas e núbias. Coincidentes à mescla artística cosmopolita, chamam a atenção na parede Leste da capela os relevos de guerreiros de origem estrangeira a serviço de Shanakdakhete, possivelmente mercenários mediterrânicos, expressando a abertura das relações exteriores de Meroé com o Egito e a região do Mediterrâneo no período (Zach 1998, 458). Nas imagens régias da capela, Shanakdakhete apresenta-se com coroa e indumentária típicas dos reis kushitas, seguida pela mesma figura masculina de tamanho inferior a portar diadema e vestes simples, cuja mão direita, a variar entre os relevos, toca as serpentinas da coroa da rainha, ou a própria coroa, sugerindo ser, a partir de iconografias egípcias e kushitas prévias, um membro real pretendente ao trono possivelmente já falecido a conferir legitimação de poder à governante (Eide et al 1996, 661–2). O mesmo gesto pode ser visto em um grupo de estátuas (CG 684) atualmente exibidas no Museu Núbio de Aswan e com provável procedência na capela funerária de Shanakdakhete em Begarawya. Nelas, a rainha é retratada junto a um homem sem insígnias reais a tocar sua coroa. No relevo presente na parede Norte da capela, destaca-se a representação de Shanakdakhete entronizada sob um baldaquino mortuário a usar uma coroa com chifres encimada por um adorno com a forma da deusa Ísis-Selket, simbolizando a maternidade. O jovem membro real acompanha-a novamente sob o mesmo baldaquino, possibilitando interpretá-lo como um filho seu previamente falecido (Zach 1998, 452–3). A frequente presença desta jovem figura masculina real a legitimar o poder de Shanakdakhete atesta a urgência de validação de um reinado marcado por transformações e rupturas. Há também a sugestão de que o jovem príncipe retratado não dispusesse de idade suficiente para governar, cabendo à rainha o papel de ascender ao trono como regente. Diante da 395

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incógnita em torno do papel do jovem ao longo do reinado de Shanakdakhete, é inegável a importância dele nas representações e legitimações de seu destacado poder na monumentalidade religiosa e funerária. Pontua-se emblematicamente a contemporaneidade do reinado de Shanakdakhete à regência da primeira governante feminina do Egito ptolomaico, Cleópatra II Filómetor Soter, de forma a conjecturar eventuais influências ptolomaicas à ascensão de governos femininos meroítas a partir dos pontuais reflexos da abertura kushita a elementos mediterrânicos. Tal hipótese contrapõe-se, ou pelo menos equipara-se, à suposição do poder feminino em Kush fundado em tradições núbias locais. De um jeito ou de outro, é irrevogável que Shanakdakhete adquiriu o status de primeira governante feminina em Meroé em um contexto de expressivas transformações baseadas na continuidade como legitimação e na ruptura como realidade. Fontes históricas EIDE, T. et. al (Eds.). 1996. Fontes Historiae Nubiorum: Textual Sources for the History of the Middle Nile Region between the Eighth Century BC and the Sixth Century AD. Vol II – From the mid-fifth to the first century BC. Bergen: University of Bergen. Bibliografia geral EDWARDS, D. 2004. The Nubian Past: An Archaeology of Sudan. London: Routledge. LECLANT, J. 2011. O Império de Kush: Napata e Méroe. In: MOKHTAR, G. (Ed.). História Geral da África: A África antiga. São Paulo: Cortez, p. 273–295. TÖRÖK, L. 1997. The Kingdom of Kush. Handbook of the Napatan-Meroitic Civilization. London: Brill. 396

A presença das mulheres na Literatura e na História

ZACH, M. 1998. Sanakdaḫete. In: KENDALL, T. (Ed.). Proceedings of the Ninth Conference of the International Society of Nubian Studies. Boston: Northeastern University, p. 449–464.

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Κλεοπάτρα Ζ’ › Cleópatra VII

por Camilla Ferreira Paulino da Silva

Cleópatra Filopátor (Κλεοπάτρᾱ Φιλοπάτωρ) ou Cleópatra VII foi a última rainha do Egito, que, após o fim de seu reinado, foi transformado em uma província romana. Nascida em 69 aEC e falecida em 30 aEC, Cleópatra pertencia à dinastia Ptolomaica, fundada em 323 aEC por Ptolomeu Sóter, um dos generais macedônicos de Alexandre, o Grande. Conforme a tradição egípcia, era cultuada em vida como deusa, como demonstrado pelos títulos utilizados pela rainha, o de Thea Filopator, a deusa que ama o pai, e o de Thea Neotera, a deusa jovem/deusa renovada (Kleiner 2005, 137). Não há certeza sobre a identidade da mãe de Cleópatra, possivelmente alguém da elite egípcia ou mesmo Cleópatra VI, primeira esposa de seu pai, Ptolomeu Auletes (Roller 2010, 165). É uma das soberanas mais conhecidas do mundo antigo, sendo famosa por suas relações político-amorosas com dois líderes romanos, Júlio César e Marco Antônio, e por ter representado uma ameaça ao domínio de Roma no Mediterrâneo. Foi apropriada e disputada em diversos tipos de mídias e obras artísticas no decorrer dos séculos, sendo representada, por exemplo, na literatura (e.g. A Lenda de Cleópatra, no poema Lenda das boas mulheres, de Chaucer, do século XV, Vida e época de Cleópatra, de Carlo Maria Franzero, de 1957 e a trilogia As memórias de Cleópatra, de Margaret George, publicadas em 1997), na pintura (e.g. as pinturas em óleo A morte de Cleópatra, de Guido Cagnacci, de 1658 e Cleópatra e César, de Jean-León Jeróme, de 1866), no teatro (e.g. Antônio e Cleópatra, de Shakespeare, de 1607), na música (e.g. as óperas Giulio Cesare in Egito, de Händel, de 1723 e Cléopâtre,

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de Jules Massenet, de 1914 e as canções Cleopatra, do Weezer, de 2014 e Cleopatra, dos The Lumineers, de 2016), em filmes (e.g. Cleopatra, dirigido por Gordon Edwards, estrelando Theda Bara, em 1917 e Cleopatra, dirigido por Joseph Mankiewicz, estrelando Elizabeth Taylor, em 1963) em séries (e.g. Rome, da HBO, de 2005–2007), além de servir como marca e inspiração para vários produtos mercadológicos. Não dispomos de biografia legada pelo mundo antigo que trate especificamente sobre a rainha, sendo a Vida de Antônio, de Plutarco, escrita no início do século II EC, mais de um século após o falecimento de Cleópatra, a fonte com maiores detalhamentos sobre a vida dela ao lado de Antônio, cujas informações foram recolhidas de testemunhos da época da rainha, como os escritos de Olimpo, médico pessoal de Cleópatra (Vida de Antônio, 82. 2). Também temos menções mais substanciais à rainha na História de Roma, de Dio Cássio, escrita cerca de duzentos anos após Cleópatra, nos capítulos em que o historiador trata sobre a época de César até a ascensão de Augusto ao poder. Outro biógrafo da Antiguidade que menciona a rainha é Suetônio, nas Vidas dos Doze Césares, nas vidas de César e Augusto; outros historiadores são Apiano, nas Guerras Civis, Estrabão, na Geografia e Flávio Josefo, em A Guerra Judaica e nas Antiguidades Judaicas. Da produção escrita contemporânea ou temporalmente mais próxima à rainha temos algumas menções em passagens de Cícero (Cartas a Ático, 14. 8, 20; 15. 1, 4, 15 e 17) e de César (A Guerra Civil, 3. 103, 107), sendo esses dois os únicos autores que de fato conheceram a rainha. Também temos poemas produzidos no período augustano que ajudaram a imortalizar a imagem de Cleópatra, a vituperando como uma mulher sedutora, fatal e ambiciosa, inimiga dos romanos. Como os poetas latinos foram constantemente lidos na longa duração que separa nossos tempos dos de Cleópatra, marcando e influenciando 400

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gerações do mundo ocidental, a imagem que criaram da rainha é a que influenciou a maioria dos artistas e autores posteriores, proporcionando a fama que ainda hoje ela possui. Alguns epítetos empregados para imortalizá-la e condená-la foram Aegyptia coniunx, cônjuge egípcia (Virgílio. Eneida, 8. 688); fatale monstrum, monstro fatal (Horácio. Ode, 1. 37. 21), incesti meretrix regina, rainha puta fruto de incesto (Propércio. 3. 11. 38) e romanique ducis coniunx Aegypta, cônjuge egípcia do comandante romano (Ovídio. Metamorfoses, 15. 826). A recepção dessa caracterização negativa já aparece na geração poética posterior, com Lucano, que a representa seguindo o arquétipo produzido pelos poetas augustanos, retratando-a como uma rainha insana e lasciva que ousa opor os deuses egípcios aos deuses romanos (Lucano. Farsália 8. 542–5; 10. 68–9), sintetizada no epíteto dedecus Aegypti, desgraça do Egito (Lucano. Farsália 10. 59). Sua voz pode ser captada por meio das representações oficiais que chegaram até nossos dias por meio das representações iconográficas, como é o caso das suas moedas, estelas e baixos-relevos. Também temos algumas reproduções da rainha legada pelas artes pictóricas egípcia, grega e romana. Em suma, as informações da Antiguidade sobre a vida de Cleópatra são bastante dispersas, presentes em obras de temporalidades, materiais, geografias e línguas diferentes. Não dispomos de muita informação sobre a infância e juventude da rainha, que em 51 aEC ascende ao trono do Egito junto ao seu irmão e consorte Ptolomeu XIII, que possuía cerca de 10 anos na época, herdando ambos uma enorme dívida com a República romana contraída pelo pai, Ptolomeu XII Auletes (Plutarco. Vida de César, 48. 8). Graças a um complô palaciano, Cleópatra foi deposta do trono egípcio em 48 aEC, ao qual retornou graças à intervenção e ajuda de Júlio César. Ptolomeu XIII acabou falecendo na Batalha do Nilo, 401

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em 47 aEC. Júlio César permaneceu um período no Egito e acabou por ter um caso com a rainha (Dio Cássio. História Romana, 42. 4–8). Após essa estada de César no Egito, Cleópatra deu à luz a um menino, nomeando-o Ptolomeu Cesário (Plutarco. Vida de César, 49. 10). Em 46 aEC, Cleópatra e Cesário foram a Roma, a convite de César, onde permaneceram até o assassinato deste, em março de 44 aEC (Suetônio. Vida de César, 52 .1–2; Cícero. Cartas a Ático, 14.8). Quando as reviravoltas políticas de Roma levaram Marco Antônio e Otávio a unirem-se na guerra contra Bruto e Cássio pelo assassinato de César, um representante de Cleópatra no Chipre, Serapião, acabou por enviar navios e recursos para ajudar Bruto e Cássio. Com a derrota destes, Marco Antônio convocou Cleópatra a prestar esclarecimentos em Tarso, em 41 aEC, onde a rainha apareceu em um navio luxuoso, de modo a exibir o poderio do Egito e conseguir estabelecer uma aliança com Antônio; este acaba por permanecer o inverno com a rainha no Egito. Após essa estadia, Cleópatra teve um casal de gêmeos, Alexandre Hélio e Cleópatra Selene, reconhecidos por Antônio em 37 aEC, quando voltam a se reencontrar, renovando sua aliança política, na Antioquia (Plutarco. Vida de Antônio, 26; Dio Cássio. História Romana, 51. 21. 8). Após esse encontro, em 37 aEC, o casal teve mais um filho, Alexandre Filadelfo e Cleópatra forneceu recursos para as campanhas militares de Antônio. Em 34 aEC ocorreram as famosas Doações de Alexandria, quando Antônio teria concedido uma vastidão de territórios à rainha e aos seus filhos, segundo o que foi veiculado em Roma por Otávio, e algo que foi prontamente execrado (Plutarco. Vida de Antônio, 54. 3–6). Com essa informação Otávio consegue declarar guerra formalmente contra Cleópatra (e não Antônio), em 32 aEC. 402

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Em 31 aEC ocorreu a Batalha de Ácio, na qual Otávio e seu legado Agripa enfrentaram e derrotaram as forças de Marco Antônio e Cleópatra, que fugiram para o Egito, onde acabaram sendo cercados pelas forças inimigas. Antônio cometeu suicídio. Após reinar por 21 anos, derrotada por Otávio e de modo a não ser levada a Roma como presa de guerra e ser exibida no triunfo do general (Dio Cássio. História Romana, 51. 14. 6), a rainha cometeu suicídio no ano de 30 aEC, supostamente com a picada de uma serpente (Propércio. 3. 11. 53–4; Horácio Ode 1. 37. 25–30). A partir de então, o Egito deixou de ser um reino independente e passou a ser uma província romana. Cesário foi assassinado por Otávio e os demais filhos de Cleópatra com Antônio foram levados a Roma, onde foram criados sob tutela de Otávio e de sua irmã Otávia (Tyldesley 2008, 197–204). Cleópatra passou desde então a ser condenada pela literatura de seus inimigos romanos por ter representado uma ameaça à Vrbs, porém permaneceu sendo cultuada por séculos no Egito, pelo menos até 373 EC, quando Petesenufe escreve sobre como ele havia coberto de ouro uma imagem de Cleópatra em Filas (Ashton 2008, 132). Plutarco (Vida de Antônio, 86. 4) conta que, embora Antônio tenha sofrido damnatio memoriae, tendo suas estátuas derrubadas, as estátuas de Cleópatra em Roma ainda permaneciam expostas. Dio Cássio (História Romana, 51. 22) relata que, ainda na época dele, ou seja, no final do século II e início do século III EC, Cleópatra permanecia sendo cultuada, registrando haver adereços seus em templos romanos e mesmo uma estátua de ouro da rainha no templo de Vênus. Houve, ainda, uma tradição alexandrina medieval que conservou a memória de Cleópatra como a de uma rainha culta e excelente administradora, como vemos preservada nas obras do bispo copta João de Nikiou e do historiador-geógrafo árabe Al-Masudi (Ashton 2008, 403

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22). Essa tradição pode ressoar elementos do próprio mundo antigo, como a passagem de Apiano (Guerra Civil, 5. 11) que relata como Cleópatra costumava frequentar templos, escolas e sessões de diálogos entre estudiosos gregos e a de Plutarco (Vida de Antônio, 27), que relata o talento oratório da rainha, ressaltando que ela falava diversas línguas, incluindo o egípcio falado pelos habitantes de seu reino, tendo sido a primeira soberana ptolomaica a fazer isso; essa habilidade facilitava na recepção e transações com estrangeiros em seu reino, posto que não necessitaria de um intérprete para compreendê-los. Não existiu, portanto, somente construções e descrições negativas sobre a rainha, principalmente em passagens e relatos que não a reduzem a uma amante, mas dizem respeito à sua formação e atuação como soberana frente ao reino egípcio. Fontes históricas APPIAN. 2020. Roman History, Volume V. Translated by Brian McGing. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). CAESAR. 2016. Civil war. Translated by Cynthia Damon. Cambridge: Harvard University Press Loeb Classical Library). CASSIUS DIO. 1917. Roman History, Volume V. Translated by Earnest Cary and Herbert B. Foster. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). CASSIUS DIO. 1917. Roman History, Volume VI. Translated by Earnest Cary and Herbert B. Foster. Cambridge: Harvard University (Loeb Classical Library). CICERO. 1999. Letters to Atticus, Volume IV.  Translated by D. R. Shackleton Bailey. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). CLEOPATRA. 1917. Direção de J. Gordon Edwards. Estados Unidos: Fox Film (125 min.). 404

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CLEOPATRA. 1963. Direção de Joseph L. Mankiewicz. Estados Unidos: 20th Century Fox (248 min.) HORACIO. 1893. Odes, Epodos e Poema Secular. Tradução de Francisco Antonio Picot. Paris: Librairies-Imprimeries Réunies. JOSEPHUS. 1943. Jewish Antiquities, Volume V. Translated by Ralph Marcus. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). JOSEPHUS. 1943. Jewish Antiquities, Volume VI. Translated by Ralph Marcus, Allen Wikgren. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). JOSEPHUS. 1927. The War of the Jews, Volume I. Translated by H. St. J. Thackeray. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). LUCAN. 1952. The Civil War. Translated by James D. Duff . Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). PLUTARCH. 1920. The Parallel Lives: Demetrius and Antony, Pyrrhus and Gaius Marius. Translated by Bernadotte Perrin. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). PLUTARCH. 1919. The Parallel Lives: Demosthenes and Cicero. Alexander and Caesar. Translated by Bernadotte Perrin. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). PROPÉRCIO. Elegias. 2014. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Autêntica. ROME, first season [Seriado]. 2005. Direção: Michael Apted et al. Produção: Bruno Heller, John Melfi, Anne Thomopoulos, William J. McDonald e John Milius. Estados Unidos/Reino Unido: HBO/BBC. 405

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ROME, second season [Seriado]. 2007. Direção: Michael Apted et al. Produção: Bruno Heller, John Melfi, Anne Thomopoulos, William J. McDonald e John Milius. Estados Unidos/Reino Unido: HBO/BBC. STRABO. 1932. The Geography, Vol. 8. Translated by Horace L. Jones. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library). SUETONIUS. 1979. The lives of the Caesars. Tradução de J. C. Rolfe.Cambridge: Harvard University Press Loeb Classical Library) VIRGÍLIO. 2014. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral ROLLER, D. W. 2010. Cleopatra: a biography. Oxford: Oxford University. ASHTON, S. A. 2008. Cleopatra and Egypt. Malden: Blackwell. KLEINER, D. E. E. 2005. Cleopatra and Rome. Cambridge: Belknap Press of Harvard University. TYLDESLEY, J. A. 2008. Cleopatra: Last Queen of Egypt. London: Profile Books.

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𐦱𐦡𐦫𐦢𐦩𐦯𐦠 › Amaniremas

por Fábio Amorim Vieira

Amaniremas/Amanirenas/Amaniras (Amnirense) foi uma rainha meroíta de Kush no século I aEC, consorte do rei Teriteqas e regente de Meroé. Sua atuação política como rainha e governante é apresentada em registros epigráficos e imagéticos meroítas, bem como sugere-se ser ela a candace a fazer frente aos romanos na literatura greco-romana. Amaniremas e Teriteqas situam-se em um conturbado período da história kushita, no qual os meroítas travaram intensos conflitos e disputas com o controle romano na região da Núbia. Diante do domínio de Otávio Augusto sobre o Egito, na segunda metade do século I aEC, levantes contrários às taxações de impostos executadas por Cornelius Gallus, prefeito romano do Egito, emergiram na fronteira Sul egípcia, com provável participação meroíta, sob anseios de dominação da Núbia setentrional. Uma estela erigida em Philae, a mando de Gallus narra o ocorrido, descrevendo as insurgências seguidas por um contra-ataque de seu exército e posterior tomada romana do Norte núbio, o qual ficaria, a partir de então, sob o governo de um chefe local tutelado por Roma (Török 1997, 448). Por volta de 25 aEC, forças meroítas cruzam a primeira catarata do rio Nilo e atacam as cidades egípcias de Philae, Syene e Elephantine, capturando prisioneiros e saqueando estátuas de Augusto. Tal ocorrido, narrado pela literatura romana, atesta-se com a representativa descoberta de uma grande cabeça de bronze do imperador romano sob uma escada de templo em Meroé, ocorrida no início do século

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XX. Gaius Petronius, prefeito romano do Egito e sucessor de Gallus, empreendeu uma expedição punitiva na Núbia, descrita pelo historiador Strabo como vitoriosa a partir da instalação de uma guarnição romana permanente em Qasr Ibrim a garantir o impedimento aos ataques no Norte núbio por Meroé, que foi reconhecido como Estado independente em um tratado de paz (Leclant 2011, 286). Documentações deste contexto de disputas atestam nominalmente a presença de Amaniremas. Situadas em uma coluna no templo de Dakka, nas proximidades da primeira catarata do Nilo, estão presentes inscrições meroítas cursivas a mencionarem os nomes do rei/qore Teriteqas, de Amaniremas, referida como candace/kdke, e Akinidad, com a titulatura pqr, conferida aos príncipes meroítas. Embora a coluna esteja sem decorações ou evidências artísticas que possibilitem datações mais precisas, é possível se pensar neste registro epigráfico situado no contexto de ocupação meroíta do Norte da Núbia, abrindo a possibilidade interpretativa do controle do rei de Meroé naquela região em 25 aEC (Eide et al 1996, 716). O título meroíta atribuído a Amaniremas em Dakka, candace/kdke, apresenta-se novamente à rainha em uma estela no templo M em Meroé, na qual Teriteqas é representado junto à deusa Ísis e, abaixo dos dois, novamente estão referidos em inscrições cursivas o rei/qore Teriteqas, a kdke Amaniremas e Akinidad. A titulatura kdke, atribuída também a outras rainhas meroítas, permanece em debate entre os estudiosos, podendo ser interpretada como «rainha mãe», «mãe do rei» ou «irmã do rei» (Eide et al 1996, 510). Seu sentido, portanto, é de Amaniremas enquanto consorte vinculada a Teriteqas, o governante vigente. Sugere-se que pouco tempo depois do registro no templo de Dakka, Teriteqas tenha falecido em meio às disputas de poder com os romanos na Núbia, legando o trono meroíta 408

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a Amaniremas. Tal hipótese se atesta a partir dos emblemáticos registros deste episódio na literatura greco-romana, nos quais o título kdke transforma-se no nome Candace, atribuído por Strabo à rainha, repulsivamente descrita por ele como de aparência viril e com um olho só, a governar e conduzir os generais meroítas, referidos como etíopes, frente a Petronius (Leclant 2011, 286). Registros meroítas endossam o cenário de Amaniremas como regente sucessora à morte de Teriteqas. No templo T em Kawa, entre a terceira e a quarta cataratas do Nilo núbio, registra-se uma inscrição em bronze na qual o nome de Amaniremas é acompanhado dos títulos kdke/candace e qore/ governante, sem menções a Teriteqas. A mesma ocorrência se dá em uma estela descoberta em um dos lados da entrada de um pequeno templo em Hamadab, dois quilômetros a Sul da cidade de Meroé. Danificada na porção superior, sua superfície apresenta uma cena dupla contendo representações da rainha e do príncipe Akinidad do lado esquerdo, em frente a uma divindade, provavelmente Amon. Do lado direito da cena, rainha e príncipe, este a segurar um cetro, estão em frente a uma deusa, possivelmente Mut. Amaniremas e Akinidad estão nos dois lados vestidos com túnicas sobrepostas por mantos, ela a usar sandálias, ele descalço. No texto da estela, Amaniremas é referenciada com os títulos de kdke e qore, rainha e governante. Seu filho, Akinidad, é referenciado com a indefinida titulatura de qore-yi, também a abarcar a palavra meroíta qore e a sugerir um período de co-regência. Ele também é referido como pqr, príncipe, e pesto, com possível interpretação a denotar um título administrativo na região da Baixa Núbia (Eide et al 1996, 674). O texto que se segue pode ser interpretado como um registro do confronto de Kush (Qes) contra os exércitos de Roma (Arme) no sul egípcio (Welsby 1996, 21). Entre o texto e 409

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as imagens, é apresentada uma fileira de prisioneiros com os braços atados às costas deitados ao chão, endossando a derrota inimiga (Eide et al 1996, 722). Embora o nome de Amaniremas, uma alusão ao deus Amon Rá, não esteja mencionado em qualquer inscrição presente nas necrópoles meroítas, acredita-se ter sido a pirâmide Bar. 4 o seu espaço funerário, cujos relevos da capela mortuária exibem uma governante feminina não identificada a usar coroas em estilo egípcio e kushita. Alguns dos elementos encontrados dentro do espaço tumular, como fragmentos de vidro típicos do período romano contemporâneo a Amaniremas, reforçam a hipótese de ter sido ela a kdke qore ali sepultada, expondo também o dinamismo comercial e cultural à época entre Meroé e o Mediterrâneo. Amaniremas destacou-se como emblemática personagem da história meroíta, imersa em um complexo cenário político dentro do qual exerceu papeis de poder para além da posição de esposa do governante. Sua expressiva liderança contra as forças romanas, atestada na epigrafia meroíta sob os títulos qore e kdke, ressoou nos controversos escritos de autores clássicos que, apesar das aversivas descrições, corroboraram na perspectiva de uma regente atuante na defesa da integridade e autonomia de Meroé. Sugere-se que o alcance de sua atuação política nestes textos, como a candace a confrontar Petronius, tenha inspirado também a narrativa bíblica da conversão ao cristianismo, feita pelo apóstolo Felipe a um eunuco etíope, descrito como alto funcionário de candace, rainha da Etiópia (At 8, 27). Fontes históricas EIDE, T. et. al (Eds.). 1996. Fontes Historiae Nubiorum: Textual Sources for the History of the Middle Nile Region between 410

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the Eighth Century BC and the Sixth Century AD. Vol II – From the mid-fifth to the first century BC. Bergen: University of Bergen. Bibliografia geral EDWARDS, D. 2004. The Nubian Past: An Archaeology of Sudan. London: Routledge. LECLANT, J. 2011. O Império de Kush: Napata e Méroe. In: MOKHTAR, G. (Ed.). História Geral da África: A África antiga. São Paulo: Cortez, p. 273–295. TÖRÖK, L. 1997. The Kingdom of Kush. Handbook of the Napatan-Meroitic Civilization. London: Brill. WELSBY, D. The Kingdom of Kush: The Napatan and Meroitic Empires. London: British Museum Press.

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𐦉𐧶𐦂𐦊𐦝𐦓𐦚 › Amanishaketo por Raisa Sagredo Amanishaketo, grafado Amanishakto, Amanishakheto ou Amanishakete, foi uma candace — ou kandake em meroítico. Ela governou o reino de Kush no período Meroíta, quando da transferência da capital para Méroe, chamado também nesse contexto de Reino de Méroe. Seu reinado é datado entre os anos 41 aEC e 12 aEC, datação um tanto imprecisa, pois conta com a dificuldade de que a escrita meroítica todavia não foi completamente decifrada. O título de candace é uma transcrição do título meroíta kdk ou ktke, a partir de sua latinização, constituindo-se da nomeação para as chefes de governo, rainhas, e significando «rainha-mãe», além das interpretações «irmã do rei» e «irmã real» (Harkless 2006, 147). Também se encontraram alusões a ela como «Amnsheto qore», sendo o termo meroíta qore masculino ou feminino usado para designar o governante, que passou a ser usado a partir do desenvolvimento da escrita meroítica (Harkless 2006, 147). Ela aparece em três fontes romanas: História Romana de Dião Cássio, datada do século III EC e compondo-se de oitenta livros; Geografia de Estrabão, escrita no século I EC; e História Natural de Plínio, o Velho, datada do século I EC e que consiste em 37 livros. Esta candace viveu no espaço geográfico de Méroe, parte do Reino de Kush, correspondendo ao atual Sudão, durante ou logo após a transição governamental do Egito Ptolomaico para o Egito Romano. Tal fato fez com que essa rainha de Méroe ficasse conhecida pelos romanos, além de ter levado a cabeça de bronze do imperador romano Augusto para Méroe como espécie de prêmio (Loban 2004, 23). Vale ressaltar que não

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há consenso sobre se a candace representada nessas três narrativas teria sido Amanishaketo ou sua predecessora, Amanirenas, pois referiram-se à rainha apenas pelo termo «Candace», utilizando-o como se fosse um nome próprio. Amanishaketo —ou Amanirenas— deixou sua marca no mundo romano clássico por ter tido um embate com o Império Romano de Augusto, desafiando-o em um episódio de negociação com os romanos. Acabou ficando conhecida também por seu tesouro funerário: uma coleção de joias em ouro, pedras preciosas, escudos, amuletos e outros objetos deixados em sua pirâmide em Méroe, cujo saque, no ano de 1834 (Fanusati 2012, 197), impactou o mundo ao revelar a riqueza deste reino africano. A prosperidade do período em que governou está atestada nas construções que levam seu nome em cartuchos, no templo de Amon em Kawa e no palácio localizado em Wad Ban Naqa, além da chamada Grande Pirâmide Nº 6 e sua capela funerária, localizada em Méroe. Na gravura em relevo da pirâmide Nº 6, ela foi representada vestindo roupas cerimoniais e ferindo seus inimigos amarrados com uma lança, o que revela aspectos de igualdade com a figura de um rei na cultura meroíta (Fanusati 2012,196). Também possui, na mesma pirâmide, uma gravura onde é possível perceber três cicatrizes abaixo de seu olho esquerdo —detalhe importante para tentar identificar essa candace em uma das fontes escritas pelos romanos, retratando-a como uma rainha de apenas um olho. Fernanda C. de Oliveira fez uma análise bem completa e densa acerca das representações da força feminina de Amanishaketo através da cultura material. Analisando as vestimentas usadas por ela e por outras candaces, revela que existiu uma aproximação dos trajes usados pelos soberanos homens quando essas mulheres iam alcançando mais destaque e influência no poder político. Em períodos anteriores às mudanças 414

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políticas que fizeram com que mulheres ascendessem ao trono —razões estas ainda desconhecidas—, as representações dessas mulheres da realeza constituíam-se em cenas relacionadas à legitimação política ligada à família e cenas fortemente relacionadas às funções sacerdotal e religiosa. Dentre as fontes escritas, Geografia do historiador e geógrafo Estrabão (63 aEC–24 EC), é a mais detalhada. Ela menciona uma candace que desafiou o Império Romano quando o governante do Egito era Caius Petronius. É descrito então, de forma detalhada, o avanço das tropas romanas para conquistar Psekchis e Premnis, localizadas no sul do Egito, após os kushitas (descritos na fonte pelo termo Aithiopians) terem invadido Syene e Elefantina, escravizando os nativos e derrubando estátuas do imperador pelo motivo de terem sido (segundo eles) enganados pelos oficiais de finanças dos distritos (Gerografia, 831). Sobre esse mesmo episódio, Dião Cássio (150 EC–231 EC) escreveu de forma sucinta em sua obra História Romana que a líder dos etíopes era Candace e que Petronius teria obrigado Candace a negociar e fazer um acordo com ele (Roman History, VI. 293, 295). Já a fonte escrita por Plínio, História Natural, relata, igualmente de forma breve, que os viajantes enviados por Nero, que registraram informações sobre a geografia do local, também relataram que uma mulher, cujo nome era Candace, era a governante da cidade de Méroe, nome que passava de rainha a rainha (História Natural, 35). Atentando-se aos elementos textuais que constituem essas narrativas, abre-se a possibilidade para se pensar Amanishaketo sob o aspecto da identidade de gênero. Esse filtro de gênero, já elucidado por estudiosos que se debruçaram sobre narrativas romanas diversas onde existe a presença de figuras femininas estrangeiras de poder, aparece em Estrabão, ao descrever a governante de Méroe como uma mulher «viril» (manly woman) que perdera um de seus olhos (Geografia, 831). Mesmo sendo 415

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uma descrição curta por parte de Estrabão, parece ser o suficiente para demonstrar a dificuldade dele em lidar com a alteridade no reconhecimento da candace como uma mulher líder política e militar de um reino. Os identificadores masculino e feminino funcionaram como esses próprios autores concebiam o papel social das mulheres em sua própria sociedade e isso implica em uma visão masculinizada. Além disso, há a questão da representação de mulher estrangeira na relação de poder romano versus estrangeiro. O detalhe de cicatrizes no olho esquerdo de uma das iconografias da candace Amanishaketo em sua pirâmide seria uma prova de que teria sido ela a que lutou e negociou com Roma. No entanto, Estrabão se refere ao filho da Candace, o que faz com que muitos relacionem a mulher de um olho só com Amanirenas. Ainda sobre a questão das representações iconográficas, intelectuais eurocentristas acabaram descrevendo as candaces como mulheres com corpos obesos. Este termo igualmente pode ser problematizado como uma construção social e cultural, além de ignorar os próprios valores de culturas africanas antigas, por exemplo, em que representações iconográficas com formas abundantes representam valores como fertilidade, abundância, saúde e riqueza. Através de um olhar despido de oposições antagônicas, as iconografias representando a candace Amanishaketo podem também ser interpretadas não como uma oposição entre o poder masculino e feminino, mas como forças e simbologias complementares (Oliveira 2019, 133). Na iconografia presente em seus anéis com selo de ouro que haviam sido saqueados no século XIX, aparecem representações que foram interpretadas como o nascimento divino da soberana, sua eleição como governante e inclusive sua coroação, sendo legitimada pelo deus Amon, além de chamar atenção o aspecto do poder materno na gravura (Oliveira 2019, 133–135). Logo, a iconografia referente à 416

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candace Amanishaketo abre portas para discutir a concepção da legitimação do poder em Kush, pois os soberanos homens, quando coroados, também utilizavam na iconografia figuras femininas para legitimação de seu poder. Recentemente, Amanishaketo foi representada no universo da moda, a partir da figura da célebre cantora Beyoncé, no evento anual Wearable Art Gala, na Califórnia, durante o recebimento do Humanitarian Award em 2018. Os designers Falguni e Shane Peacock se inspiraram na rainha guerreira na confecção do figurino para a ocasião, utilizando elementos para simbolizar sua realeza e imitar o formato das armaduras núbias. Esse aspecto guerreiro e bélico das candaces é bem explorado em livros didáticos de História ao abordar a temática de História de África e do Reino de Kush. O fato de Amanishaketo ser uma das poucas candaces de que nos chegaram registros abre também um leque para discutir a problemática do conceito de candace, através de seus atributos iconográficos, seu caráter sagrado, materno, militar, bélico e a independência soberana desta governante através da abordagem de gênero. Além de permitir problematizar discussões sobre alteridade, fica o convite a investigar mais a fundo como funcionava a linha sucessória no reino de Méroe, como a discussão trazida por Elikia M’bokolo, mostrando que o sistema parece ter sofrido modificações em certos períodos, onde o protagonismo feminino foi sofrendo alterações (M’bokolo 2009). Isso revela, no mínimo, uma lógica de funcionamento complexa e diferente das sucessões mais conhecidas tidas muitas vezes por normativas. Explorar esse contato entre Méroe e Roma é também contribuir nos estudos africanos em uma historiografia renovada, pós-colonial, que concebe o continente africano aberto, com fronteiras permeáveis e contatos. 417

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Fontes históricas CASSIUS DIO. 1955. Dio’s Roman History. Vol VI. Translated by Earnest Cary. Loeb Classical Library Edition. PLINY, THE ELDER. 2006. The Natural History. Ed. by John Bostock; Henry T. Riley; Karl Friedrich Theodor Mayhoff. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?lookup=Plin.+Nat.+toc. Acesso em: 16 jun. 2021. STRABO. 1998. Geography. Book XVII. In: EIDE, T. et alli. Fontes Historiae Nubiorum: Textual Sources for the History of the Middle Nile Region between the Eighth Century BC and the Sixth Century AD. Paperback, p. 828–835. Bibliografia geral FANUSATI, E. 2012. Amanishaketo. In: AKYEAMPONG, E; GATES, H. L.; NIVEN, S. J. Dictionary of African Biography. New York: Oxford University Press, vol.1, p. 196–197. HARKLESS, N. 2006. Nubian Pharaohs and Meroitic Kings: The Kingdon of Kush. Bloomington: AuthorHouse. LECLANT, J. 2010. O Império de Kush: Napata e Méroe. In: MOKHTAR, G. (Org). História Geral da África II: África Antiga. Brasília: UNESCO, p.275–295. LOBBAN, R. 2004. Historical Dictionary of Ancient and Medieval Nubia. Maryland: Scarecrow Press. M’BOKOLO, E. 2009. África Negra. História e Civilizações (até o século XVIII). Tomo I. Salvador: EDUFBA. OLIVEIRA, F. 2019. Senhoras da Núbia: as Candaces na cultura material em Kush (África, I AEC–I EC). Dissertação de Mestrado em História Social da Cultura defendida na Pontifícia Universidade Católica – PUC/Rio de Janeiro. 418

𐦡𐦫𐦶𐦢𐦩𐦯 › Amanitare

por Fábio Amorim Vieira

Amanitare/Amanitore (Amnitore) foi uma rainha de Kush, em Meroé, sob o reinado de Natakamani, em meados do século I EC. Além de consorte do rei, atribui-se também a Amanitare a corregência kushita a partir das vastas representações iconográficas da rainha em monumentos meroítas. Natakamani e Amanitare figuram entre os regentes com mais menções nominais na monumentalidade de Meroé, sendo expressiva a profusão de edificações e reformas empreendidas durante o seu período de governo (Leclant 2011, 288). As razões exatas deste destacado cenário de prosperidade são desconhecidas, contudo é presumível considerar um estreitamento de laços políticos e comerciais com o Egito e a esfera romana diante da abundância de objetos de origem egípcia encontrados na região, além dos pontuais elementos egípcios evidentes na epigrafia e iconografia (Eide et al 1998, 900). Seguindo esta hipótese, é sugestiva a observação da regência de Natakamani e Amanitare como suntuoso desdobramento do tratado de paz de Samos, negociado décadas antes entre Roma e Meroé após a investida meroíta sobre o sul egípcio e a expedição punitiva na Núbia, comandada por Gaius Petronius, então prefeito romano no Egito (Török 1997, 462). Dentre os monumentos construídos no reinado de Natakamani e Amanitare, destacam-se os dois templos dedicados ao deus Amon nas cidades núbias de Naqa e Amara, além das restaurações empreendidas no templo de Amon em Meroé e no grande santuário a Amon de Gebel Barkal. Tal frequência de edificações e restauros de ambientes religiosos

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indica a relevância dos santuários na manutenção econômica e territorial meroíta, de maneira a edificar espaços de assentamento e controle ao longo do território núbio. Além disso, o caráter religioso, sobretudo do deus Amon, sugere a importância conferida pelo casal regente aos seus sacerdotes na esfera administrativa do período (Eide et al 1998, 899–900). Nas vastas representações iconográficas em relevo de seus monumentos religiosos, Natakamani e Amanitare são representados juntos, ambos utilizando indumentária e elementos típicos dos governantes meroítas, como o diadema adornado com a naja uraeus (Welsby 1996, 25). Na fachada do templo de Apedemak, em Naqa, ressalta-se a simetria nas estaturas das representações do casal, ritualmente espelhados e armados com espadas, massacrando inimigos. Suas representações acompanham-se de inscrições, nas quais Natakamani é referenciado com a titulatura qore / governante, enquanto Amanitare é precedida pelo título ktke / candace, concedido às consortes reais meroítas (ver Amaniremas). Os relevos de Amanitare, todavia, divergem das habituais representações das consortes e rainhas-mães a acompanharem secundariamente o governante em cenas rituais, indicando-a enquanto esposa real equivalente e corregente de Natakamani (Eide et al 1998, 898). Os nomes e titulaturas meroítas de Natakamani e Amanitare são frequentemente acompanhados por títulos faraônicos contornados por cartuchos, expondo a aproximação com os referenciais egípcios no período. Em paralelo, são nítidos os traços estéticos de matriz egípcia na execução de seus relevos, sugeridos por especialistas como obras com a participação de artífices vindos do Egito (Eide et al 1998, 901). O uso do egípcio hieroglífico como variante à escrita cursiva e hieroglífica meroíta é expressivo nas inscrições se comparado a 420

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períodos anteriores (Török 1997, 464), exibindo alusões egípcias resultantes de dinamismos e ligações comerciais, como também da busca por fatores de distinção no contexto. A significativa presença de outros títulos a Amanitare endossa o seu papel de corregência junto a Natakamani. Nos templos dedicados a Ísis, Amon e Apedemak em Naqa, bem como nos templos de Amon em Gebel Barkal, Amara e Meroé, o nome de Amanitare é precedido pelo título sꜢt-RꜤ, Filha de Rá, apropriado das titulaturas faraônicas utilizadas previamente por reis de Kush e, em sua variação feminina, presente também entre as rainhas ptolomaicas do mesmo período no Egito. Em Naqa, Gebel Barkal e Meroé, Amanitare também é referida como Mry-kꜢ-RꜤ a partir de um nome de trono, titulatura igualmente derivada da tradição egípcia e dos faraós kushitas e empregada entre rainhas ptolomaicas egípcias em posições de corregência. Em alguns de seus cartuchos reais, Amanitare é referida ainda como nbt ḫꜤwt / senhora dos diademas, título corrente entre sacerdotisas desposadas pelo deus Amon nas XXII e XXVI dinastias egípcias. Sua proximidade com Amon é evocada inclusive em seu nome real, Amanitare, composto pelo nome da divindade Amani/Amon, elemento usualmente aplicado nas nominações de príncipes meroítas destinados ao trono, assinalando a sua proeminente condição política de liderança (Eide et al 1998, 903). Os relevos meroítas de Amanitare levantam um outro aspecto particular de seu período de regência: a constante presença do príncipe herdeiro ao trono. Decorações nos capitéis das colunas no templo de Amon em Naqa, nas quais apresentam-se os cartuchos reais de Natakamani, Amanitare e do príncipe Arkhatani, fornecem elementos da pontual construção ideológica da unidade régia composta pelo rei e rainha regentes juntos ao futuro rei (Török 1997, 463). Além de Arkhatani, são 421

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apresentados nos relevos dos templos, acompanhando Amanitare e Natakamani, outros dois príncipes reais, Arikankharor e Shorakaror, variando o príncipe em cada monumento. Sugere-se ser esta variação do terceiro elemento da unidade régia decorrente dos papéis de vice-reinado ocupados pelos príncipes nas regiões em que cada templo foi erigido. Situada na necrópole no Norte de Begarawya, sua pirâmide (Beg. N. 1) destaca-se pela peculiar presença de textos funerários egípcios na capela mortuária, ausentes nas pirâmides meroítas desde o início do século II a.C, além das menções nominais à rainha, acompanhadas pelos seus títulos de ktke / candace e filha de Rá. Nos relevos, marcados pela qualidade e composição iconográfica complexa, estão representadas cenas da procissão da barca do deus egípcio Sokar, bem como do festival de Osíris (Eide 1998, 904). Amanitare distinguiu-se como emblemática governante kushita marcada por titulaturas e insígnias de poder em um pontual contexto de prosperidade. Sua atuação política como corregente de Natakamani apresenta um estado meroíta imerso em relações comerciais estrangeiras e transformações culturais e políticas, expressas na vasta monumentalidade legada por um período de esplendor em Meroé. Fontes históricas EIDE, T. et al (Eds.). 1998. Fontes Historiae Nubiorum: Textual Sources for the History of the Middle Nile Region between the Eighth Century BC and the Sixth Century AD. Vol III – From the first to the sixth century AD. Bergen: University of Bergen. 422

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Bibliografia geral EDWARDS, D. 2004. The Nubian Past: An Archaeology of Sudan. London: Routledge. LECLANT, J. 2011. O Império de Kush: Napata e Méroe. In: MOKHTAR, G. (ed.). História Geral da África: A África antiga. São Paulo: Cortez, p. 273–295. TÖRÖK, L. 1997. The Kingdom of Kush. Handbook of the Napatan-Meroitic Civilization. London: Brill. WELSBY, D. 1996. The Kingdom of Kush: The Napatan and Meroitic Empires. London: British Museum Press.

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𓄿𓐙𓇓𓅱 › Sha-Amun-en-su 𓆷 & ‹Kherima› (as múmias femininas do Museu Nacional)

por Helinny Machado da Silva

O Museu Nacional do Rio de Janeiro já foi considerado um dos maiores centros de estudos antropológicos da América Latina. Criado no ano de 1818, por D. João VI, o Museu Nacional tinha o intuito de atender aos interesses de promoção do progresso cultural e econômico do país. Inicialmente, chamava-se Museu Real e estava sediado no Campo de Sant’Ana, na cidade do Rio de Janeiro (Museu Nacional 2021). O Museu Nacional possuía um grande acervo de antiguidades greco-romanas e artefatos egípcios, colecionados por D. Pedro I e por seus descendentes, especialmente o filho, D. Pedro II, e a nora, Dona Teresa Cristina das Duas Sicílias. A coleção de antiguidades egípcias comportava vasos canopos, estatuetas ushabtis, sarcófagos, múmias de animais (incluindo gatos e crocodilos) e múmias humanas, entre outros. Entre as seis múmias humanas registradas no acervo do museu, duas geraram grandes interesses tanto no público quanto nos próprios pesquisadores: a Princesa do Sol, apelidada ‹Kherima›, e Sha-Amun-en-su, cantora e sacerdotisa do templo de Amon. O interesse inicial de D. Pedro I pelo Egito faraônico, somado às viagens exploratórias de seu filho, D. Pedro II, fizeram do acervo do Museu Nacional uma coleção de fundamental relevância arqueológica, chamando a atenção, inclusive, de importantes pesquisadores internacionais (Bakos 2004, 32), caso singular no contexto latino-americano.

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Esse tesouro histórico e arqueológico aportou no Brasil em diferentes momentos do século XIX, sempre por iniciativa dos monarcas reinantes. D. Pedro II chegou a visitar o Egito duas vezes, em 1871 e, novamente, em 1876, quando ganhou de presente do Quediva Ismael um sarcófago datado do século VII aEC (Bakos 2004, 17). Sha-Amun-En-Su foi ofertada ao imperador brasileiro como um presente diplomático, quando o Quediva recebeu de D. Pedro II um livro e o quis retribuir. Ao receber o sarcófago intacto, o soberano optou por mantê-lo lacrado e não quis doá-lo ao acervo do Museu Nacional, que neste momento já contabilizava bom número de peças de antiguidades egípcias (Chaves 2019, 211). Em vez disso, D. Pedro II decidiu manter o sarcófago como um item de seu pecúlio pessoal. Sha-Amun-en-su, sacerdotisa e cantora do templo de Amon, proveniente da XXIII Dinastia (± 750 aEC), descansava em seu sarcófago de madeira pintada e gessada desde que ocorrera a sua mumificação, três milênios antes. Mantinham-se a tampa e o caixão completos, apesar de suas origens serem desconhecidas (propõe-se que a múmia fosse proveniente de Tebas). O sarcófago foi analisado pelo egiptólogo inglês Kenneth Kitchens em 1988, durante uma viagem ao Brasil. O pesquisador constatou que o sarcófago da sacerdotisa exibia cenas da cosmogonia heliopolitana, mostrando a deusa Nut no peito e os amuletos de Osíris entre as pernas. Grande parte da decoração foi feita em verde escuro, vermelho e amarelo. Abaixo do colar, um pássaro com cabeça de carneiro e suas asas se estendiam pela tampa. Também havia duas serpentes que traziam consigo as coroas do Alto e Baixo Egito, tendo cada uma à sua frente dois filhos de Hórus (Bakos 2014, 103). 426

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A peça também guardava muitos textos em hieróglifos, transcodificados por Childe e Kitchens como os que seguem: «Uma oferenda que o rei faz (a) Osíris, Chefe do Oeste, grande Deus, Senhor de Abidos — feita para (?) a Cantora do Santuário (de Amun), Sha-Amun-en-su» (Bakos 2014, 104). Há então a segunda faixa dupla de texto em hieróglifos: «Uma oferenda que o rei faz (a) Ptah-Sokar-Osíris, Senhor do (santuário) Shetayet — feita para (?) a Cantora do Santuário de Amun, Sha-Amun-en-su» (Bakos 2014, 104). Durante uma tomografia feita no sarcófago de Sha-Amun-en-su, foi revelado que além de sua múmia, havia amuletos no interior de seu sarcófago, entre eles um escaravelho-coração, artefato da religião funerária que ocupava a região torácica quando não houvesse possibilidade de preservar aquele órgão. Assim, impedia-se que o coração do indivíduo se voltasse contra ele diante do Tribunal dos Deuses. Diferentemente de Sha-Amun-en-su, presente recebido por D. Pedro II, a aquisição da múmia apelidada ‹Kherima› foi menos diplomática, arrebatada em um leilão no ano de 1826 do negociante italiano Nicolau Fiengo. Consigo, ‹Kherima› trouxe uma pequena coleção de artefatos egípcios sem origem declarada, que foram imediatamente integrados ao acervo do Museu Nacional. Sabia-se apenas que vinham de Masrelha e que faziam parte dos trabalhos de Giovanni Battista Belzoni (Sanches 2020, 34). Antônio Brancaglion Júnior, pesquisador que atuou na curadoria da coleção egípcia do Museu Nacional, informou que a múmia teria uma proveniência do Período Romano, confeccionada entre os séculos I e II EC. Estudos tomográficos estimaram que ‹Kherima› morreu por volta dos dezoito anos, indicando que seria uma mulher de cabelos curtos e escuros. Apesar do cérebro e das vísceras terem sido removidos durante a mumificação, foi possível perceber que sua dentição estava 427

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intacta e constatar que ‹Kherima› não apresentava sinais de doenças (Sanches 2020, 34). Um elemento que sempre chamou a atenção sobre esta múmia foi o processo de mumificação, encontrando paralelo em somente oito múmias conhecidas. O que se destaca no seu processo de mumificação é a forma como os membros foram enfaixados individualmente, inclusive os dedos das mãos e dos pés. Todas as múmias preservadas neste raro processo de enfaixamento são provenientes do mesmo contexto arqueológico: Tebas, entre os séculos I e III EC. Pouco ainda sabemos muito sobre esta técnica exclusiva que se produziu nesta localidade durante o Período Romano. Sabemos ainda menos sobre a pessoa por trás da múmia, suas aspirações, seu ofício e sua família. ‹Kherima› não era o seu nome, apenas um apelido atribuído no século XX, durante as aulas do professor Victor Staviarski: docente conhecido por suas aulas de Egiptologia e hieróglifos no Museu Nacional. Recorrendo a uma didática pouco ortodoxa, o docente utilizava a hipnose para sugerir aos estudantes que «visitassem» o Antigo Egito. Durante uma dessas sessões, ao tocar a múmia, uma estudante teve uma visão daquela mulher em sua vida no Egito e disse que ela era uma «Princesa do Sol», chamada ‹Kherima› (Chaves 2019, 137). A notícia desta visão se tornou célebre na década de 1960, razão pela qual a alcunha acabou se convertendo no nome da múmia. Infelizmente, após mais de uma década de descaso das autoridades cariocas, fluminenses e brasileiras, no ano em que completaria dois séculos de funcionamento, o Museu Nacional foi tomado por um incêndio de grandes proporções. O acervo de mais de vinte milhões de itens foi completamente consumido pelo fogo, inclusive a coleção de antiguidades com os artefatos egípcios e as seis múmias, entre elas Sha-Amun-en-su e ‹Kherima›. Graças aos esforços voluntários —e também a auxílios financeiros que chegaram tarde demais— algumas das 428

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valiosas peças voltaram à vida: os amuletos, até então intactos, depositados no sarcófago de Sha-Amun-en-su, incluindo o seu escaravelho-coração, e outras peças talhadas em materiais resistentes às chamas. De ‹Kherima›, restam-nos somente as histórias de sua suposta vida passada, imagens de sua múmia e amostras da cartonagem e do linho de suas ataduras, retiradas para análise científica em 2008. Esse material, agora mais precioso do que nunca, está preservado no Instituto de Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bibliografia geral BAKOS, M. M. 2004. Egiptomania: o Egito no Brasil. Paris Editorial: São Paulo. BAKOS, M. M. 2014. Fatos e mitos do Antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUCRS. CHAVES, A. O. L. 2019. Do Kemet para o Novo Mundo: O colecionismo de antiguidades egípcias no Brasil Imperial (1822–1889). Dissertação de Mestrado em História defendida na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. MUSEU NACIONAL. O Museu. Disponível em: https:// www.museunacional.ufrj.br/dir/omuseu/omuseu.html. Acesso em: 17 out. 2021. SANCHES. F. 2020. Caracterização de duas cartonagens e fragmentos de linho pertencentes a uma Múmia do período Romano usando espectrometria de raios X, espectroscopias Raman e FTIR. Dissertação de Mestrado em Física defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. TRINDADE, B. C. 2020. Renascendo das Cinzas: Experimentação com Resíduos do incêndio no Museu Nacional na recriação de peças do acervo através de Manufatura Aditiva. Dissertação de Mestrado em Design defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC Rio. 429

MULHERES NO ANTIGO TESTAMENTO Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres no Antigo Testamento

por Joel Antônio Ferreira

O cativeiro da Babilônia e a mulher (neqbah): um projeto? Em Gênesis (Gn 1–2, 4a) temos o Hino da Criação em sete dias, provavelmente, elaborado no cativeiro da Babilônia. No sexto dia Deus diz «Façamos o ser humano ([‫ ]האדם‬adam) à nossa imagem e semelhança» (1, 26). Aqui, adam é o homem (ser humano): é um nome coletivo. Já no v. 27a, no início, usa de novo, adam, ou seja, o homem em sentido coletivo. Porém, no v. 27c não fala de adam (no coletivo), nem de ‫איש‬ (ish, este homem) mas de ‫( זכר‬dzakar), ou seja, masculino (macho); em seguida, o v. 27c não fala de ‫( אישה‬ishah, esta mulher) mas de ‫( נקבה‬neqbah), ou seja, feminina (fêmea). Então, o redator final do Hino da Criação nos deixou a palavra «mulher» (neqbah) (Gn 1,27c). Embora fosse um forte tempo do patriarcado, porém, quando os hebreus/as estavam escravizados/as na Babilônia, todos/as estavam nivelados por baixo. Em nível social, naquela situação, os masculinos não conseguiam exercer a submissão às mulheres. Eles, também, estavam submissos aos babilônios. Por conseguinte, na resistência teológica de um pequeno grupo de exilados/as que não perderam a fé e a esperança em Deus, ao escreverem o belíssimo e profundo Hino da Criação, provavelmente, sentiram a pressão das mulheres que exigiram a palavra mulher (neqbah). Foi uma vitória contra o patriarcado e o androcentrismo. Esse detalhe é vital: homem e «mulher» (neqbah) foram criados à imagem de Deus.

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Há a afirmativa igualitária que entrou no cânon bíblico. Possivelmente, os líderes escravos da Babilônia com seus poetas devem ter ouvido a pressão de algumas mulheres exigindo o nome «mulher» (neqbah). Conseguiram. Essa palavra mudou tudo. O sistema androcêntrico caiu, pelo menos, com os escravos hebreus da Babilônia. A igualdade declarada aqui, tornou-se, depois, o primeiro capítulo de toda a Bíblia. Foi um marco. A leitura conflitual parte da margem: mulheres silenciadas Quando as mulheres são citadas no Antigo Testamento, é preciso visualizá-las a partir da «margem» (Ferreira 2013). O patriarcado as marginalizava, sempre. Se o texto bíblico refere-se a alguma mulher, é preciso procurar a sua voz silenciosa e tentar reconstruir a narrativa. É o caso de Agar (Gn 16 e 21), a escrava do casal Abraão e Sara. Ao lê-la nas entrelinhas, vê-se que ela complicou a história da salvação (Tamez 1985, 56–72) e que foi a única mulher que experimentou uma teofania no AT. Outro exemplo, Tamar (Gn 38) foi alguém sufocada pelo patriarca Judá. Se se olha o texto a partir da leitura masculina, o leitor vai se entusiasmar com a liderança de Judá na sua tribo. Lendo a partir da marginalizada Tamar, ver-se-á que ela foi resistente, soube usar um ardil, foi protagonista diante do patriarca, expressando a força de uma mulher que era pessoa humana e que tinha projetos: usando a lei do levirato, mostrou-se viva, teve filhos gêmeos, deu continuidade à história da salvação e salvou, também, o patriarca Judá (Ferreira 2013, 181–184). As memórias populares nunca se esqueceram das táticas das «parteiras dos hebreus» e, também, das «escravas hebreias» que não obedeceram às ordens do Faraó (Êx 1,15–22 e 2,1–10). Elas foram vitais na luta libertadora em pleno Egito. 434

A presença das mulheres na Literatura e na História

A «oralidade popular feminina» perpetuou, também, o fenômeno «Míriam e as mulheres» que, após a vitória sobre o Egito cantaram um hino de gratidão e louvor a Deus pelo fato libertador (Êx 15, 20–21). Os redatores finais tentaram minimizar a força das mulheres e acrescentaram algumas glosas (interferências), apresentando o cântico de masculinos (Êx 15,1–19), liderados por Moisés. Mais tarde, as mulheres, nos tempos dos juízes no deserto, guardaram, para a posteridade, as lembranças vivas sobre «Débora», a única mulher que se tornou juíza (Jz 4–5). Outra narrativa que precisa ser lida a partir da margem é a de «Raab» (Js 2 e 6,17–27). Foi uma mulher estrangeira que foi protagonista na conquista da terra (Ferreira 2013, 184–186). «Rute», viúva, pobre e estrangeira, foi a mulher que realizou um projeto dos pobres frente ao governo desumano de Esdras. Os «redatores finais» e a linguagem patriarcal que interferia no discurso oral que vinha da margem É preciso compreender um pouco sobre como surgiram os manuscritos do AT. Comecemos por um homem: Abraão. Há um capítulo que fala sobre ele como se fosse o «patriarca» referencial (Gn 17). As narrações sobre Abraão e seus descendentes (Gn 12–36) chegaram a nós através de um longuíssimo processo de surgimento. Aconteceram, nesse ínterim, muitos contos e recontos. Então, o texto atual do «patriarca» Abraão representa as diversas etapas finais da gradativa elaboração e fixação e, aí dentro, tem as marcas da vida nas estepes de Canaã (Schwantes 2012, 65–66). De um lado, houve as «memórias populares» que contavam e recontavam os fatos de valor. De outro, é preciso entender que os textos bíblicos se tornaram manuscritos com os «redatores finais». Estes deixaram a marca ideológica e teológica nos textos. O Abraão dos textos 435

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finais, certamente, não foi, na realidade, o que existira pelos anos 1950 aEC. O Abraão patriarca, latifundiário é reflexo das redações finais. Mudemos para as mulheres. As narrativas sobre elas, entre as quais, Sara, Rebeca, Raquel e Lia, foram contadas, historicamente, pelas memórias femininas. No entanto, os «redatores finais», ao colocarem, por escrito, o que era contado oralmente pelas memórias populares, deixavam suas marcas patriarcais, transferindo para o passado o que eles viviam quando redigiram os textos (tempo da monarquia ou do pós-exílio). Parece que o patriarcado não era tão pesado nos inícios. As «memórias populares» narravam a vida familiar em torno dos clãs e das tribos. Por isso, temos muitas mulheres, com autonomia, descritas na Bíblia, desde os tempos anteriores a Moisés, no seu tempo de vida e nas épocas do tribalismo. Várias memórias guardaram relatos sobre mulheres pastoras, músicas, cantoras, condutoras de negócios, guerreiras, mães de família. Aquelas memórias cantavam e contavam as maravilhas das mulheres que se tornaram juíza, profetiza, sábia e líderes comunitárias. Com o fim do tribalismo e o surgimento da monarquia (1030–586), o patriarcalismo se exacerbou. O exemplo mais forte é a aviltante narrativa sobre a ultrajante violência do rei Davi contra a mulher Betzabeia e o assassinato do seu marido Urias (2 Sm 11). Os redatores do texto (masculinos), numa longa narrativa, silenciaram absolutamente Betzabeia. As duas únicas palavras que se sabe dela foram «estou grávida». Mais nada. Os redatores se calaram. Mas Deus interveio em favor dela e seu marido, enviando o Profeta Natã que humilhou o rei. Então, surgiram as escolas de escribas, quase sempre, a serviço dos monarcas e do templo e, após o exílio da Babilônia, com posturas bastante rígidas contra as mulheres. As memórias populares eram pesquisadas por esses profissionais 436

A presença das mulheres na Literatura e na História

que as escreveram e, quando se deparavam com memórias femininas, aí, então, aconteceram as traições ao que era vivo nos meios populares. Será após o exílio (458 aEC), quando voltaram os grupos dos repatriados (Golah) liderados por Esdras, que as memórias femininas quase caíram no esquecimento, por causa dos redatores finais que controlavam os manuscritos do AT. Posturas dos redatores finais contra as mulheres corajosas Praticamente, todo AT foi escrito por masculinos (Musskopf; Santos 2018, 334–354). Aqueles escribas, muitos da linha sacerdotal, pertenciam à elite hebraico/israelita. Eles pertenciam a algumas escolas, tendo uma profunda visão teológica e cuidados pastorais. Eles escreveram textos fulgurantes, por exemplo, os Salmos, porém, exalavam a mentalidade patriarcal e a defesa do poder do masculino. Quando começaram a colocar a linguagem oral (memórias populares) por escrito, os redatores tiveram um papel primordial na tentativa de calar as mulheres. Na ótica patriarcal, as mulheres não tinham vez (Deifeldt 1992, 5–14). São poucos os textos em que a mulher ocupa algum espaço significativo e, assim mesmo, com os limites da ideologia patriarcal, oficializada pelos redatores (escribas) que as colocavam, sempre, em segundo plano. A mulher era colocada no nível interior: margem, oculta, interior da casa. Quando saia daí e ia para o exterior provocava uma subversão (Horvilleur 2020). Muitas, ao ocupar o espaço exterior ou soltando a voz, eram vistas como pretensiosas. Na mentalidade patriarcal a voz era dos masculinos. A voz vinha do interior (corpo, casa) para o exterior e, por isso, precisava ser domada. Domada pelo masculino. A voz e a vez pertenciam ao homem. 437

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É preciso ver as narrativas onde algumas mulheres subverteram a ordem e procuraram ocupar espaços e, ao mesmo tempo, observar as reações dos masculinos. Por exemplo, Sara, mulher de Abraão, era uma espécie de matriarca e até exigiu posturas severas ao marido por causa da escrava Agar. Ela teve suas histórias contadas em vários textos do Gênesis. Como Sara, também Rebeca, Raquel e Lia tiveram certa autonomia (Gn12–38). Elas foram referências nas tantas memórias da história antiga hebraica, inclusive, com uma ou outra tendo força em decisões. Foi o caso de Rebeca contra o patriarca Isaque e foi ela quem criou o ardil para que Jacó se tornasse o herdeiro da primogenitura. Neste caso, é de se «suspeitar»: não havia problema, para o redator final, deixar o ardil da sopa de cabrito ou os redatores quiseram jogar a culpa em uma mulher? Quando o texto vinha de tradições populares fortes que mostravam o protagonismo feminino, os redatores finais criavam «glosas» (interferências e manipulações textuais) (Ferreira 2020, 443–460). Um exemplo disso é o livro de Rute. Este foi um texto produzido nos tempos de Esdras (450 aEC). É um material que confronta as posturas do governante arbitrário contra os/as estrangeiros/as e seus filhinhos e as mulheres. Há no livro de Rute uma resistência interiorana (a pequena Belém). As personagens Noemi, as mulheres da vila, Rute, Boás, as dez testemunhas foram elaborando um projeto que resgatava as leis da «respiga», do «levirato» e do «resgate» e assumiram a mundividência estrangeira e feminina. O livro apresenta o amor e a solidariedade onde o filho Obed (servidor) foi fruto de uma estrangeira e um judeu. Os redatores finais mantiveram toda a narrativa que vinha da oralidade popular, porém, fizeram duas «glosas» (interferências): uma no início do livro de Rute (Rt 1,1) e outra no final (Rt 4,17d–22), para parecer que o texto tivesse sido escrito, fazia muito tempo 438

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(tempo dos juízes) e, assim, salvar as críticas ao sistema autoritário de Esdras (Ferreira 2020, 456–460). Os estudos de hoje derrubaram a falácia dos redatores finais. O patriarcalismo, pela elaboração dos redatores finais, silenciou as mulheres hebreias nas narrativas bíblicas (Schottroff; Schoerer; Wacher 2008), principalmente, na monarquia e no pós-exílio. Os detentores do poder tentaram acabar com a tradição oral que era viva (memórias populares e femininas). Eles decidiam, também, pelo cânon bíblico em pleno sistema patriarcal (Dube 1988, 59–71). Então, a autoridade manuscrita é mais elitista e ligada ao poder e a autoridade oral (popular) é mais igualitária e democrática (Pui-Lan 1998, 127–136). Esta não se apaga, facilmente. Citemos a memória das «parteiras do Egito» (1,15–22), das «escravas hebreias» (Êx 1,15–22 e 2,1–10), do «Cântico de Míriam» (Ex 15,2021), da atuação de «Débora» (Jz 4–5), da defesa da herança da terra das «cinco filhas de Falaad» (Nm 27,1–11). Eram lembranças contadas oralmente ou cantadas em hinos que os detentores do poder não conseguiram excluir. Retrocesso ao patriarcado Um sistema sólido como o patriarcado, não cai do dia para a noite. Vimos antes sobre o projeto feminino conseguido no cativeiro da Babilônia: a mulher (neqbah) é igual ao homem (dzakar) (Gn 1, 27c). Com o fim do cativeiro (538 aEC), os grupos hebraicos (descendentes) foram retornando para Jerusalém. Uns cem anos depois, voltou um agrupamento autorizado pelo imperador da Pérsia para ativar a reconstrução de Jerusalém. Eram os grupos dos repatriados (Golah) liderados por Esdras (Esd 9–10). Aqui eles já não são hebreus/israelitas, mas «judeus». Então as conquistas femininas retrocederam, terrivelmente. 439

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De Esdras (450 aEC) até Jesus (aqui elas terão espaço e voz), as mulheres foram, novamente, domadas e dominadas e o silenciamento feminino foi catastrófico. Porém, vimos, que até essa época, várias mulheres tiveram experiências libertadoras. Muitas romperam com o sistema patriarcal. Acharam os seus espaços e fizeram-se ouvidas. O Deus da Bíblia nunca concordou com o silêncio das mulheres e de quaisquer marginalizados/as. Todas, como Sara, Agar, Rebeca, Lia, Raquel, Tamar, parteiras e escravas hebreias, Joquedebe, Zípora, Míriam, Débora, as cinco filhas de Falaad, Raab, Rute, ao encontrarem o Deus libertador que transforma as comunidades, ergueram suas vozes e ocuparam os seus espaços como protagonistas no anúncio do Deus dos/as marginalizados/as. Essas femininas são o retrato de todas as mulheres do Antigo Testamento que resistiram a qualquer sistema aviltante e puderam ser ouvidas e vistas. Fontes históricas A BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1985. São Paulo: Ed. Paulinas. BÍBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA (BHS). 1977. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. Obras de referência GOSSMAN, E. 1997 Dicionário de Teologia Feminista. Petrópolis: Editora Vozes. Bibliografia geral DEIFELDT, W. 1992. Os primeiros passos de uma hermenêutica feminista: A Bíblia da Mulher editada por Elisabeth Cady Stanton, Periódicos EST Estudos teológicos, vol. 32 n.1, p. 5–14. DUBE, W. 1988. Escrituras, Feminismos e Contextos pós-coloniais, Concilium, vol./n. 276, p. 59–71. 440

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FERREIRA, J. A. 2020. A preferência de Yahweh foi pelos detentores do poder (Es 9–10) ou pelos humilhados (Rute)?: uma glosa que quis mudar tudo (Rt 4,17d–22), Revista Pistis & Práxis, vol. 12, n. 2, p. 443–460. FERREIRA, J. A. 2013. Paulo, Jesus e os Marginalizados: leitura conflitual do Novo Testamento. Goiânia: PUC Goiás, HORVILLEUR, D. 2020. Nudità e pudore: l’abito di Eva. Magnano (BI): Ed. Qigaion. MUSSKOPF, A. S; SANTOS, O. 2018. Interpretação Bíblica: raízes patriarcais e leituras feministas, Interações, vol. 13, n. 24, p. 334–354. PUI-LAN, K. 1998. Reflexões sobre as escrituras sagradas das mulheres, Concilium, vol./n. 276, p. 127–136. SCHOTTROFF, L.; SCHOERER, S.; WACHER, M. T. 2008. Exegese Feminista: Resultados de pesquisas a partir da perspectiva de mulheres. São Paulo: ASTE. SCHWANTES, M. 2012. História de Israel. Vol. 1: Local e Origens. 4. ed. São Leopoldo: Oikos. TAMEZ, E. 1985. A mulher que complicou a história da Salvação, Estudos Bíblicos, n. 7, p. 56–72.

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‫ › לילית‬Lilith

por Cauana Harz Lima & Janaina de Fátima Zdebskyi

Ao longo dos anos 1960 e 1970, o mito da primeira mulher criada por Deus ressurgiu como um dos principais símbolos de resistência e independência feminina. A emergência da segunda onda do feminismo ao longo desse período foi a principal responsável pela ressignificação dessa personagem. As mulheres que fizeram parte do movimento, sobretudo as judias, apropriaram-se do mito de Lilith e recontaram a sua história por uma perspectiva feminista. Entretanto, os mitos vinculados à Lilith nos remetem a um passado longínquo. Nos estudos contemporâneos que buscam localizar as possíveis raízes dessa personagem, encontramos uma grande disputa de narrativas, repleta de controvérsias, onde Lilith aparece associada à cultura judaico-cristã, mas também existem tentativas de encontrar referências à Lilith na mitologia Suméria. Essa associação ocorre principalmente pela semelhança e pela suposta derivação do nome «Lilith» dos termos «Lilitu/Lilu» e «ardat Lili», os dois primeiros eram utilizados para designar os espíritos sumérios que habitavam locais desertos, conectados com as mortes de mães e de crianças recém nascidas, já o segundo, era um termo utilizado para nomear um espírito feminino infértil que atacava sexualmente jovens rapazes. Lilith pode ter derivado também dos termos «lulu» ou «lulti», cujos significados são «libertinagem» e «lascívia», o que pode nos explicar a sua face sedutora (Brunel 1988, 582). Apesar disso, podemos

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considerar que a personagem Lilith que conhecemos hoje não foi conhecida na Suméria e essas conexões se tratam de tentativas atuais de encontrar suas origens. Lilith foi associada aos locais desertos, à sedução e à morte. Nas fontes que serão expostas ao longo desse verbete veremos que ela foi interpretada como um espírito do vento, como um demônio sexual feminino e até mesmo como a primeira mulher criada por Deus, aquela que se recusou a deitar-se sob Adão e que foi castigada por esse ato subversivo. O mito de Lilith faz parte da tradição dos testemunhos orais que estão presentes em textos da sabedoria rabínica, sua imagem é de grande importância especialmente na tradição cabalística. Dentre as fontes judaicas que a citam estão o Talmude (século V E.C), o alfabeto de Ben Sirá (redigido entre os séculos VIII–X) e o Zohar (XIII). O Talmude é uma coleção de livros do judaísmo rabínico que está dividido em seis ordens e sessenta e três tratados, cada tratado possuindo duas partes: Mishná e Guemará (Raigorodsky 2015, 25). No compilado, Lilith é retratada como um demônio de longos cabelos (Autor desconhecido, Talmude Babilônico, Erubin 100b), asas compridas e rosto humano (Autor desconhecido. Talmude Babilônico, Niddah 24b). Em uma das passagens é dito que as pessoas não devem dormir sozinhas em casa ao longo da noite, pois o «espírito maligno» Lilith poderia atacá-las (Autor desconhecido. Talmude Babilônico, Sabbath 151b). No Talmude, Lilith possui características semelhantes aos espíritos babilônios: Cabelos e asas longas, características noturnas e predatórias. Na Bíblia há apenas uma passagem onde Lilith é citada, em Isaías 34:14 ela surge como demônio feminino que frequenta as ruínas, conforme constam nas notas de rodapé ligadas ao termo Lilit, na versão da Bíblia de Jerusalém (2002, p. 1306): «Os gatos selvagens conviverão aí com as hienas, 444

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os sátiros chamarão seus companheiros. Ali descansará Lilit, e achará um pouso para si» (Isaías. Bíblia de Jerusalém, Livro de Isaías, 34: 14). Nessa passagem, o contexto mencionado é uma terra arrasada, abandonada pelo deus YHWH, onde o pó do chão se tornou enxofre, um lugar inabitado por humanos, onde não existem nobres ou príncipes, nesse lugar de ruínas é onde Lilit habita junto apenas de animais como os gatos selvagens e a hienas, além de serem mencionados o pelicano, o ouriço, a coruja, o corvo, os ninhos de serpente e as aves de rapina que ali fazem morada. Entre os séculos VIII e X, Lilith surge como a primeira mulher criada por Deus. No Alfabeto de Ben Sirá, encontramos uma das versões mais conhecidas do mito. Nele, Lilith havia sido criada ao mesmo tempo e com a mesma substância de seu companheiro, em certa ocasião, Adão ordenou que sua esposa deitasse sob ele durante o ato sexual, entretanto, Lilith se recusou. Ao se recusar, Lilith argumentou que ambos eram iguais, pois foram criados da mesma argila do solo e não havia motivos para ela se subjugar a Adão. No entanto, Adão não recuou e ambos entraram em conflito, diante disso, Lilith pronunciou o Tetragrammaton (YHWH) o nome inefável de Deus e fugiu para o Mar Vermelho. Após saber do ocorrido, Deus enviou três de seus anjos ao encontro de Lilith para convencê-la a retornar, porém, ela se negou. Por esse ato, Deus a castigou transformando-a em um demônio alado, fazendo-a perder 100 de seus filhos diariamente (Autor desconhecido. Alfabeto de Ben Sirá, V). Apesar de ser considerado uma sátira, o Alfabeto de Ben Sirá propagou a ideia de que antes de Eva havia existido outra mulher. Segundo Laraia (1997), essa interpretação foi baseada na divergência existente nos capítulos I e II do livro de Gênesis. No primeiro capítulo, homem e mulher são 445

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criados juntos (Gênesis, 1:27), entretanto, no capítulo dois o homem surge antes da mulher, formado através da argila do solo (Gênesis, 2:7), Eva por sua vez, é criada posteriormente, mediante à costela de Adão (Gênesis, 2:21) (Laraia 1997, 150–152). Apesar de que, os capítulos em questão possivelmente tenham sido escritos em períodos distintos ou até mesmo tenham sofrido alterações posteriores, essas passagens possibilitaram a interpretação de que houve uma mulher antes de Eva. Lilith também está presente em uma das principais obras judaicas medievais, «o Zohar» ou «O Livro do Esplendor». Essa obra é considerada de grande importância para a tradição cabalística e foi desenvolvida no final do século XIII. Uma grande parte da obra foi escrita em 1280 por R’ Moshe ben Shem-Tov de Leon (1240–1305), entretanto, a teoria mais difundida é que o Zohar preservou diversas fontes mais antigas, ainda que de forma revisada. Ou seja, a obra não teria sido desenvolvida somente por R’ Moshe ben Shem-Tov, o Zohar seria então o resultado de diversos escritos desenvolvidos por diferentes autores em diferentes épocas, reunidos em compêndio que deu origem ao Livro do Esplendor (Falbel 2018, 78). De acordo com Andrade (2011), encontramos no Zohar comentários relacionados aos livros do Pentateuco, nessa parte, há menções diretas e indiretas a Lilith. Há a associação entre o masculino e a luz, o feminino e a escuridão, aspectos que teriam sido introduzidos no mundo durante a criação. O domínio masculino estaria associado ao dia (Sol) e o domínio feminino à noite (Lua). Depois de perceber a incapacidade de ambos os princípios viverem em harmonia, Deus ordena a diminuição e subordinação da Lua perante ao Sol. Por conta desse acontecimento formou-se uma casca do mal denominada k’lifah, Lilith seria fruto dessa casca, nascida 446

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a partir desse princípio, tomada pela revolta e pelo ressentimento por conta da sujeição da Lua ao princípio masculino (Andrade 2011, 35). Nas fontes em questão, Lilith quase sempre é representada como um espírito do deserto ligado à sexualidade e a morte de crianças. Mesmo na versão medieval, onde ela é simbolizada como a primeira mulher criada por Deus, o estereótipo sexual e infanticida ainda fica evidente. A apropriação e ressignificação feminista no final do século XX, trouxe uma nova face à Lilith. O mito contado por uma perspectiva feminista é resultado de um momento em que se emergia a ideia de que as mulheres precisavam ser representadas como agentes históricos ativos. Em suma, a partir da década de 1960 a personagem em questão tornou-se um ícone feminista, símbolo de subversão ao patriarcado e ao poder dos homens. Atualmente, existem dezenas de livros, filmes ou séries que retratam Lilith como um exemplo de subversão, força e resistência feminina. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2002. São Paulo: Paulus. DAVIDSON, W. S/A. Talmud Bavli. Digital: Sefaria. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2021 STERN, D.; MIRSKY, M. J. 1998. Rabbinic Fantasies: imaginative, narratives from classical Hebrew literature. Yale University Press. Obras de referência BRUNEL, P. 1988. Dicionário dos mitos literários. Rio de Janeiro: Editora José Olympio/Editora UnB. 447

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Bibliografia geral ANDRADE, M. 2011. Lilith: um monstro feminino em Jorge Luis Borges, Dante Gabriel Rossetti e Primo Levi. Dissertação de Mestrado em Letras defendida na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. FALBEL, N. 2018. Sefer Yetzirá (Livro da criação), Sefer Ha-Bahir (Livro da Claridade) e Sefer Ha-Zohar (Livro do Esplendor), Scintilla – Revista de Filosofia Mística Medieval, vol.15, n.1, 57–87. GAINES’S, J. H. 2001. Lilith: seductress, heroine or murderer?, Bible Review, vol.17, n. 5, p. 12–20. LARAIA, R. B. 1997. Jardim do Éden revisitado, Revista de Antropologia–USP, vol. 4, n. 1, p. 149–164. RAIDORODSKY, D. 2015. O Talmude babilonico e o estabelecimento da lei: uma exposição dos métodos hermenêuticos empregados pelos sábios amoráitas. Dissertação de Mestrado em Estudos Jurídicos na Universidade de São Paulo – USP.

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‫ › חוה‬Eva

por Sue’Hellen Monteiro de Matos

Eva, em hebraico ‫— חוה‬ḥavah—, cujo nome significa vida, é uma personagem da Bíblia Hebraica que tem sua história narrada no livro de Gênesis (2–4). Na versão grega da Septuaginta, seu nome foi traduzido por Ζωή — Zoḗ em Gn 3,20, e por Εὕα — Héua. No grego koiné do Segundo Testamento cristão aparece como Εὔα — Éua (2Co11,3 e 1Tm2,3). De acordo com a narrativa bíblica de Gn 2,4b–3,24, que se passa nos tempos primordiais, quando YHWH Elohim fez os céus e a terra e não havia nenhuma planta no campo, Eva, a mãe de todos os viventes, foi criada para ser um «auxílio como defronte dele» para Adão. Ambos viviam no Éden, em harmonia com toda a criação. Antes mesmo da criação de Eva, Adão recebe a ordem da divindade para não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Justamente sobre esta ordem, a serpente questiona e seduz Eva —ou até mesmo pode-se pensar em que Eva escolheu o conhecimento— come o fruto da árvore e dá a Adão para que também o coma, culminando na expulsão do jardim e castigo para ambos: Eva multiplicará as suas dores de parto e Adão terá que lavrar a terra para obter o seu sustento com «suor do seu rosto». No capítulo seguinte, narra-se sobre os filhos de Adão e Eva: Caim, Abel e Sete, sendo a última menção à Eva nas narrativas das origens, pois ela não é mencionada na genealogia de Adão, narrada em Gn 5, nem na genealogia de 1Cr 1. Ademais, é preciso salientar que na narrativa de Gn 2, a mulher criada para Adão é nomeada de «mulher» (’iša), pois do «homem» (’iš) foi criada. Somente em Gn 3, 20 é que esta

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recebe o nome de Eva,’ por ser a mãe de todos os viventes. Provavelmente, Gn 3 seria uma narrativa autônoma com elementos que fazem referência à narrativa da criação do ser humano, como por exemplo, menção à árvore do conhecimento do bem e do mal, e à árvore da vida. A figura de Eva foi relida ao longo de todo desenvolvimento literário judaico-cristão, canônicos ou não, bem como serviu de argumento para a elaboração das doutrinas cristãs ao longo da história do cristianismo, especialmente com base na narrativa bíblica de Gn 2,4b–3,24. No livro de Tobias (200 aEC), Eva é mencionada como a mulher criada para Adão «para ser seu sustentáculo e amparo, e para que de ambos derivasse a raça humana» (Tb 8,6), plausivelmente, indicando o sentido que se lia nessa época a narrativa de Gênesis. Por sua vez, o livro de Jesus Ben Sirac (180 a 190 aEC), conhecido também como o livro do Eclesiástico, não faz menção ao nome de Eva, porém, faz a interpretação teológica de Gn 3 ao dizer que «foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos» (Eclo 25, 24). Este texto encontra-se numa longa seção de ditos acerca das mulheres (Eclo 25,13–26,27) contrastando a má com a boa mulher. Por isso, o argumento utilizado pelo sirácida reforça o padrão patriarcal da época que se tem a mulher como a raiz de todo o mal, inclusive comparando a cólera de uma mulher ao veneno de serpente (Eclo 25,15) em oposição à boa mulher, a qual precisa ser silenciosa, pois esta sim, é dom do Senhor (Eclo 26,14). Essa culpa ressoa também no Segundo Testamento cristão. Em 2 Coríntios há uma advertência ao zelo para que os cristãos não sejam enganados como a serpente enganou a Eva e, assim, sejam corrompidos (2Co 11,2–3). De um modo mais enfático, o texto de 1 Timóteo utiliza da narrativa de Gn 3 para argumentar que a mulher não pode ensinar nem exercer autoridade na comunidade religiosa, «porque, primeiro, foi 450

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formado Adão, depois, Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão» (1Tm 2,13–14); e aos moldes de Eclesiástico, a mulher deve servir a Deus em sua missão de mãe, permanecendo em fé, amor, santificação e com bom senso (1Tm 2,15). Esta culpabilização de Eva pelo mal no mundo é acentuada nas discussões de Santo Agostinho (séc. IV EC) ao formular a doutrina do pecado original. Para ele, toda mulher é filha de Eva e carrega em si o pecado original, o qual é transmitido através da relação sexual, de geração em geração, e por isso, ela é inferior ao homem. Para ele, uma mulher só é imagem de Deus quando estiver unida a um homem. Entretanto, nos textos hebraicos medievais, Eva é tida como a segunda mulher de Adão, sendo Lilith a primeira. No Alfabeto de Ben Sira há um midrash que harmoniza os dois relatos da criação (Gn 1,1–2,4a e 2,4b–25). Nele, Lilith teria sido a primeira mulher de Adão, criada da mesma substância pela divindade e, por ser igual à Adão, não concorda em ficar por baixo nas relações sexuais, porém, Adão também não concorda em ficar por baixo, pois ele é o viril. Sem acordos, Lilith o abandona e é amaldiçoada, passando a matar os bebês, o que explica a relação de Lilith com Lamashtû, deidade babilônica que vigiava as mulheres grávidas, em especial na hora do parto, para roubar o seu bebê e devorá-lo. Em um outro texto, no livro de Raziel, Lilith é chamada de primeira Eva, numa referência ao Alfabeto de Ben Sira. Todavia, em nenhum texto medieval, ou posterior, Eva é chamada de segunda Lilith, isto porque a tradição a construiu subserviente a Adão. Por outro lado, a Exegese e Hermenêutica Feminista, discutem sobre esta tradição patriarcal de tradução e interpretação da narrativa de Gênesis. Por exemplo, a expressão «auxílio como defronte dele», tradução literal do hebraico, não se trata de uma «ajuda» em termos de cuidados domésticos e nem 451

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procriação, que aliás, no capítulo 2 isto nem é mencionado, muito menos em uma posição subordinada. O auxílio aqui expressa uma ação de ajuda entre iguais. A divindade ao criar o «auxílio como defronte dele», criou primeiro os animais, e não encontrou nenhum que fosse «como defronte dele». Então, da própria carne de Adão, que em hebraico significa humanidade, a divindade criou a mulher. É preciso salientar que Adão não tem participação nenhuma na criação, mas tão somente a divindade. Outro ponto para se destacar refere-se aos castigos de Eva. Primeiro, toda a narrativa é uma forma mitológica de explicar a vida, o cotidiano e o sofrimento. Segundo, é preciso ressaltar que em toda a narrativa de Gn 2,4b–3,24 não há menção ao termo pecado, nem sinônimo. Isto vem das interpretações teológicas posteriores. O termo irá aparecer somente no capítulo seguinte após o fratricídio de Abel pelas mãos de Caim. Em terceiro, destaca-se o texto de Gn 3,16 que diz, nas traduções convencionais, que em dores ela terá filhos, seu desejo será do marido, e ele a dominará. Todavia, a preposição hebraica ‫( ב‬b) pode ser traduzida por «em, por ou com». Destarte, ao invés de «dominar nela», pode-se pensar na possibilidade de tradução de «governar com ela», uma vez que o verbo, comumente traduzido por dominar, também pode ser traduzido por governar, especialmente se estiver no tronco Qal. Além disso, a narrativa está dentro do contexto da criação, quando ambos foram expulsos do jardim e terão que cultivar a terra, portanto, ambos são responsáveis pelo governo da terra. Ainda que o texto apresente resquícios do sistema patriarcal da época, como o desejo é para o teu marido —por outro lado, se tem em Cântico dos Cânticos o desejo mútuo entre o casal e a busca pela satisfação sexual de ambos— ele traz uma nova perspectiva de interpretação para a narrativa bíblica que rompe com muito do que se foi perpetrado pela tradição. 452

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Enfim, a hermenêutica feminista, em sua multiplicidade de abordagens, possibilita diversos olhares para a narrativa da criação de Gn 2,4b–3,24, rompendo com as interpretações patriarcais da culpabilização de Eva, e, por conseguinte, a demonização da mulher. Fontes históricas AGOSTINHO. 2004. Confissões. São Paulo: Editora Nova Cultural (Coleção Os Pensadores). ANTIGO TESTAMENTO INTERLINEAR HEBRAICO-PORTUGUÊS: VOLUME 2 – PROFETAS ANTERIORES. 2014. Tradução de Edson de Faria Francisco. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil. BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2002. São Paulo: Paulus. Bibliografia geral BRENNER, A. 2000. Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas. HURWITZ, S. 2013. Lilith a primeira Eva: Aspectos históricos e psicológicos do elemento sombrio feminino. São Paulo: Fonte Editorial. WESTERMANN, C. 2013. O Livro de Gênesis: Um comentário exegético–teológico. São Leopoldo: Editora Sinodal.

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‫ › שרה‬Sara

por Nayara do Vale Moreira & Rosemary Francisca Neves Silva

A primeira aparição de Sara (‫)שרה‬, como esposa de Abrão, foi em Gênesis 11. Este é o início da aliança que Yahweh estabeleceu com a promessa feita a Abrão. «Quando Abrão completou noventa e nove anos, Iahweh lhe apareceu e lhe disse: «Eu sou El Shaddai, anda na minha presença e sê perfeito. Eu instituo minha aliança entre mim e ti, e te multiplicarei extremamente» (Gn 17,1–2). Esse teria sua linhagem multiplicada para assim haver a formação de nações (Gn 17,4), além de sua bênção e uma terra prometida (Martins 2018). A Sara, Yahweh prometeu a cura da esterilidade e a gestação de um filho (Gn 17,16). Altamir Celio de Andrade (2019) observa que no versículo em que Sarai é apresentada em Gn 11,29 não é feito nenhum tipo de referência sobre a mesma. Isso evidencia a sua falta de identidade, «uma mulher sem passado e sem possibilidade de gerar o futuro» (Andrade 2019, 78). Nos versículos seguintes ela permanece «uma mulher sem identidade e, portanto, sem raiz» (Andrade 2019, p.78). As narrativas demonstram a sua identidade feminina, que se destaca, de acordo com Andrade (2019) do interior e não do exterior. Ou seja, não possui vida própria. «Tais demonstrações são sugeridas mesmo quando há silêncio nessas vozes femininas, mas suas atitudes vão moldando suas vidas» (Andrade 2019, 78).

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No Antigo Testamento, além de Gênesis, Sara também é mencionada em Isaías: «Olhai para Abraão, vosso pai, e para Sara, aquela que vos deu à luz. Ele estava só quando o chamei, mas eu o abençoei e o multipliquei» (Is 51,2). No Novo Testamento, Sara é citada por Paulo em duas cartas: «E foi sem vacilar na fé que considerou seu povo já morto —ele tinha cerca de cem anos— e o seio de Sara também morto» (Rm 4,19); «Pois os termos da promessa são estes: Por esta época voltarei e Sara terá um filho» (Rm 9,9); e em (Gl 4,21–31), que faz uma referência sobre a esterilidade de Sara. «Alegra-te, estéril, que não davas à luz. Põe-te a gritar de alegria, tu que não conheceste as dores do parto, porque mais numerosos são os filhos da abandonada do que as daquela que tem marido» (Gn 4, 27). Pedro, em sua primeira epístola, a descreve «como Sara, que obedecia a Abraão e o chamava senhor. Dela vocês serão filhas, se praticarem o bem e não derem lugar ao medo» (1Pd 3,6). A última citação de Sara está em Hebreus, onde é enfatizada a sua fé. «Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada, se tornou capaz de ter descendência, porque considerou fiel o autor da promessa» (Hb 11,11). Em todas as citações a matriarca é ilustrada em sua condição estéril e feminina. Abrão e Sarai partiram de Harã para a terra que Yahweh lhes havia destinado. Chaves (2013) relata que a caminhada para Canaã era habitada por cananeus e seria a terra prometida. Lá o casal tem seus nomes reestabelecidos após a aliança formada, sendo denominados em seguida de Abraão e Sara. A promessa estabelecida com Sara, segundo Chaves (2016), se distingue em dois elementos: potencializa e forma tensão, caracterizada pelo estado estéril de Sara (Gn 11,30); e pela noção de domínio estabelecido pelos cananeus na terra prometida (Gn 12, 6–7). Sara, neste contexto, estabelece um 456

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rompimento dentro de uma das listas características e genealógicas, além de romper e dar início entre a antiga e a nova criação Assim, Sara «não se reduz à função de provocar tensão narrativa ou suspense quanto ao cumprimento das promessas» (Chaves 2016, 20). Chaves (2016) compreende que em Gn 23,1–20, que narra os últimos acontecimentos da vida de Sara, que tanto a conquista do campo de Macpela, quanto o da gruta sepulcral teria sido possível graças a Sara. Este foi um elemento essencial para o comprimento da aliança e das promessas estabelecidas, juntamente com Abraão. O sepultamento de Sara na gruta sepulcral (Gn 23,19), de acordo com Chaves (2016), simboliza o seu retorno à terra, «útero de toda a humanidade (cf. Gn 2,7; 3,19; Jó 1,24), enquanto potencialidade geradora, e se confunde com a terra» (Chaves 2016, 21). Esta foi uma forma de se estabelecer uma antecipação de posse sobre a região de Judá, consolidando uma relação implícita com a terra de Canaã. Abraão seria o dono das terras e seu progenitor, com a semente prometida por Yahweh. Sob a perspectiva de Sara, como geradora da semente da promessa-aliança (Gn 17,16.21), Chaves (2016) destaca um sentido teológico sobre a gruta sepulcral, na qual receberá tanto Abraão, quanto a sua descendência (Gn 17,8), tornando assim seus guardiões. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2001. Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus. Bibliografia geral ANDRADE, A. C. 2019. Sobre rostos e distâncias: deslocamentos nas narrativas bíblicas de Sara e Rebeca, Soletras Revista, n. 38, p. 72–88. 457

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CHAVES, E. D. 2013. O êxodo de Abrão e Sarai: antes de gerarem o povo, os pais geram a história do povo, Revista de Cultura Teológica, n. 82, p. 223–250. CHAVES, E D. 2016. A Vida de Sara e o Cumprimento da Promessa-Aliança Exegese Narrativa de Gn 23,1–20. Tese em Teologia defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. MARTINS, T. M. M. B. 2018. Breve abordagem sobre a vida de Sara pelo viés da Teologia Feminista. Trabalho de Conclusão de Curso em Teologia apresentado no Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR.

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‫ › רבקה‬Rebeca

por Valmor da Silva

O nome Rebeca, no original hebraico ‫ רבקה‬é transcrito como Riveqah. O significado etimológico desse nome é discutido, a partir de duas origens distintas. A primeira seria a raiz rqb (amarrar rápido), referência à capacidade da personagem em atar, unir ou vincular e, nesse caso, significaria «laço ou vínculo». A segunda argumenta pela raiz bqr (rebanho), referência ao mundo pastoril, como outros nomes das narrativas semelhantes, Raquel (ovelha) e talvez Lia (vaca) e Séfora (animal de nariz curto) (De Vries 1962, 14; cf. Van den Born 1971, 1275). A história de Rebeca está narrada no Gênesis, primeiro livro da Bíblia Hebraica, no chamado ciclo dos patriarcas, Abraão, Isaac e Jacó, e das matriarcas, suas respectivas esposas, Sara, Rebeca, Raquel e Lia (Gn 12–36). O contexto histórico dessas narrativas é o sistema familiar tribal, dito patriarcal. Entretanto, a apresentação desses ciclos narrativos demonstra o protagonismo das matriarcas, como destaca essa apresentação, com relação a Rebeca. Os relatos demonstram, precisamente, que Rebeca é a personagem ativa dominante, enquanto Isaac tem um caráter mais fraco e passivo. A apresentação segue, basicamente, o relato bíblico, com os grandes episódios: casamento (Gn 24,1–67); nascimento dos filhos Esaú e Jacó (25,19–34); bênção sobre Jacó (26,1–28,9). Rebeca foi esposa de Isaac, mãe de Esaú e Jacó, filha do arameu Batuel, sobrinha de Abraão e irmã de Labão. Ela se destaca por diversas qualidades, como se nota nesses textos que relatam a sua trajetória de vida.

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Rebeca entra em cena, nomeada como filha de Batuel (22,23). Contrariando a tradição, que normalmente só menciona a genealogia masculina, nesse caso é citada a filha Rebeca e omitido o irmão dela, Labão. Rebeca estabelecerá o elo com a história e com a aliança, ao ocupar o lugar de Sara, cuja morte é descrita logo após seu nascimento (Gn 23). O casamento dela vai concentrar a atenção do capítulo seguinte (Gn 24), a narrativa mais longa do Gênesis, com riqueza de detalhes e de novidades sobre os costumes da época. O casamento de Rebeca é planejado após a morte de Sara, em apoio ao viúvo Abraão (24,1) e para consolo do órfão Isaac (v. 67). A busca da amada para Isaac tem a mediação de um servo experiente, provavelmente Eliezer, a quem Abraão dirige suas últimas palavras (v. 2–8) antes de morrer (25,7–8). A mediação do casamento por um servo, bem como o juramento sobre os genitais, estes considerados sagrados, seguem a mentalidade da época (De Vaux 2003, 52). Comprometido sob juramento e guiado por um anjo do Senhor, o servo deve buscar a esposa para o filho Isaac na terra do pai Abraão, para evitar a mistura com os cananeus e assegurar a manutenção da aliança de fé (24,5–9). O encontro do servo com Rebeca se dá junto a um poço, como tantos outros encontros amorosos descritos na Bíblia. Este, porém, tem peculiaridades distintas. Ao entardecer, cansado da longa viagem, o servo acampa sua caravana junto ao poço em que as mulheres costumam buscar água (v. 11). Após sua longa prece ao Deus da aliança (v. 12–14), ele se surpreende com a jovem bela, pura e forte (v. 16). Era uma pastora autônoma e primava pela iniciativa nas decisões, visto que descia e subia da fonte (v. 16), se apressava em esvaziar o cântaro e em enchê-lo novamente (v. 20), se oferece para abeberar os camelos que, àquela altura, consumiam muitos galões de água (v. 19), oferece hospitalidade ao servo 460

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estrangeiro (v. 25), corre para casa para anunciar a visita (v. 28), demonstrando, assim, além da beleza e extraordinária hospitalidade, força e resistência raras (Quesada 2018, 560). As iniciativas de Rebeca, com o amor misericordioso da acolhida benevolente, demonstram o seu altruísmo, como dom de si, ao outro necessitado que aparece em sua vida. Nesse intercâmbio de dons, o servo lhe entrega os presentes de ouro, anel e braceletes (v. 22). Outros presentes são entregues no jantar hospitaleiro (v. 53). Poderiam representar o dote, como oferecido tradicionalmente à família da noiva, mas, no caso, asseguram a aceitação imediata da filha que, consultada pela mãe e pelo irmão, sobre o desejo de partir com o estrangeiro, ela responde resolutamente «quero» ou, conforme o verbo original hebraico, «irei» (v. 58) (Chalier 1992, 91–100). Rebeca é mulher de muita ação e pouca fala, como se pode notar aqui e ao longo de todo o relato (Teugels 1994, 99). A decisão de Rebeca em partir é abençoada pelo irmão e pela mãe (v. 60), sendo essa bênção matriarcal única dentro da Bíblia (Quesada 2018, 561). O encontro pessoal entre Rebeca e Isaac também é marcado pela iniciativa dela, que vê o jovem e pergunta pela identidade dele e, depois de informada, se cobre com o véu (v. 65). Tendo-se estendido nas informações precedentes, a narrativa se apressa agora na ida dos noivos para a tenda da matriarca Sara, onde se casaram e ele a amou (v. 67), sendo habitual, na Bíblia, as núpcias no quarto da mãe, como em Ct 3,4 (Eisenberg 1997, 79). Notoriamente, seria essa a primeira relação entre um homem e uma mulher, no cânon bíblico, caracterizada pelo amor, sendo também essa a única família ancestral que permanece monogâmica (Quesada 2018, 561). Rebeca consola Isaac pela morte da própria mãe (v. 67), anima o sogro para um novo casamento (25,1), assegura a 461

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continuidade matriarcal e, dessa forma, recompõe a alegria familiar, reconecta a história e assegura a continuidade da aliança. A gravidez complicada de Rebeca, após vinte anos de esterilidade, bem como o nascimento dos gêmeos Esaú e Jacó estão descritos em Gn 25,19–34. Estéril, Rebeca se assemelha às demais matriarcas, cuja fecundidade confirma ser esse um sinal da intervenção divina pela eleição de Israel. À diferença das demais matriarcas, porém, de Rebeca é dita apenas a expressão «pois ela era estéril» (v. 21), sem citar seu nome e sem acrescentar qualquer comentário (Chwarts 2004, 111–119). Também diferente das demais, a gravidez de Rebeca lhe trouxe angústias (v. 22). Ainda mais incomum, Deus fala diretamente a Rebeca, como a nenhuma outra mulher na Bíblia (v. 23), para revelar-lhe o destino dos filhos, ascendentes de dois povos, conforme os rabis têm observado (Teugels 1994, 92). O nascimento de filhos gêmeos, outra singularidade na vida de Rebeca, caracteriza dois temperamentos antagônicos e duas preferências opostas, que hão de custar a intervenção decisiva de Rebeca (v. 27–34). Esaú, o peludo, nasceu primeiro, seu irmão Jacó vem em seguida, segurando o calcanhar do primogênito. Jacó, o preferido de Rebeca, tem traços domésticos de pastor e agricultor, enquanto Esaú, mais ativo, se dedica à caça. Por um prato de lentilhas, Esaú cede sua primogenitura a Jacó (v. 29–34). A beleza de Rebeca é destacada novamente na chegada do casal a Gerara, quando Isaac declara que ela é sua irmã, para livrar-se de ser morto pelos homens do lugar, com a pretensão de ficarem com a mulher bonita (Gn 26,7–11). O episódio repete o que aconteceu com Abraão, com relação à 462

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sua esposa Sara, no Egito (Gn 12,10–20), porém, aqui, tem a diferença de estabelecer uma aliança de paz com o povo filisteu (Chalier 1992, 108–134). Por sua determinação, Rebeca articula uma trama astuciosa para desviar a bênção do filho primogênito Esaú, para o seu preferido Jacó, contrariando uma lei natural da tradição bíblica e alterando o curso da história do seu povo, conforme narra Gn 27 (Bledstein 2000, 308–323). Ela ouve a promessa da bênção de Isaac ao filho primogênito Esaú e articula com Jacó o plano de desviar essa bênção para ele. Ela o envia ao rebanho para trazer dois cabritos, ela prepara o assado, ela assume o risco da maldição, caso o plano falhasse, ela veste as roupas perfumadas do primogênito em Jacó, ela cobre os braços e o pescoço do mais jovem com peles de cabrito para passar pelo peludo primogênito. Conforme planejado por ela, o plano é executado. Na sequência, ela envia o abençoado Jacó para sua terra natal, a fim de buscar lá sua esposa e livrá-lo do ódio crescente do irmão Esaú (Chalier 1992, 135–149). A última menção a Rebeca, está no final de Gênesis (Gn 49,31), onde se informa que ela foi sepultada na gruta de Macpela, no túmulo dos patriarcas e das matriarcas. No Novo Testamento, Rebeca é citada uma única vez (Rm 9,10–12), para demonstrar o propósito divino de sua livre eleição e, para justificar a opção de Rebeca na escolha do filho mais jovem, o texto acrescenta a citação «amei a Jacó e aborreci a Esaú» (Ml 1,2–3). A tradição rabínica explorou os relatos da história de Rebeca em seus diversos detalhes, geralmente com aplicações à Torá. Igualmente a Patrologia, aplica os detalhes da história de Rebeca de maneira alegórica a diferentes situações da vida cristã. Já na literatura brasileira, Rebeca recebeu atenção nos romances dedicados a seus filhos, «Esaú e Jacó», de Machado de Assis e «Dois irmãos» de Milton Hatoum. 463

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2002. São Paulo: Paulus. BIBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA (BHS). 1997. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. Obras de referência DE VRIES, S. J. 1962. Rebekah. In: BUTTRICK, George Arthur (Ed.). The Interpreter’s Dictionary of the Bible. Vol. 4. Nashville: Abingdon Press, p. 14. VAN DEN BORN, A. 1971. Rebeca. In: VAN DEN BORN, A. (Org.). Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes. Bibliografia geral BLEDSTEIN, A. J. 2000. A amarradora, o trapaceiro, o calcanhar e o cabeludo: relendo Gênesis 27 como uma trapaça contada por uma mulher. In: BRENNER, A. (Org.). Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, p. 308–323. CHALIER, C. 1992. As matriarcas: Sara, Rebeca, Raquel e Lia. Petrópolis: Vozes. CHWARTS, S. 2004. Uma visão da esterilidade na Bíblia Hebraica. São Paulo: Humanitas. DE VAUX, R. 2003. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Teológica. EISENBERG, J. 1997. A mulher no tempo da Bíblia: enfoque histórico-sociológico. São Paulo: Paulinas. QUESADA, J. J. 2018. Rebekah: Model Matriarch. Review & Expositor, vol. 115, n. 4, p. 559–564. TEUGELS, L. M. 1994. A Strong Woman, Who Can Find?: a study of characterization in Genesis 24, with some perspectives on the general presentation of Isaac and Rebekah in the Genesis narratives, Journal for the Study of the Old Testament, vol. 19, n. 63, p. 89–104. 464

‫ › לאה‬Lia

por Karine Marques Rodrigues Teixeira & Rosemary Francisca Neves Silva

Lia é um nome próprio, no original Leah (‫)לאה‬, cuja raiz em hebraico significa ficar cansado, esgotado, não poder, estar saturado de algo. Lia é a filha primogênita de Labão (Gn 29,16) e segundo a literatura sagrada foi uma mulher de olhos ternos (Gn 29,17), isto é, delicados (Kirst et al 1989, 107, 228). No contexto da Bíblia, os olhos de Lia são tristes, sem brilho, portanto, parecem não se igualar com a beleza da irmã caçula, Raquel, a qual conquistou Jacó (Carm et al 2015, p. 104). A Bíblia descreve sua parentela como composta de sua irmã caçula Raquel (Gn 29,15–30), sendo o nome de sua genitora desconhecido. Sobrinha de Rebeca, portanto, prima de Jacó, com quem se casou e, por isso, recebeu de seu pai, Labão, uma serva por nome Zelfa (ou Zilpa) (Gn 29,24). De família oriunda da «terra dos filhos do Oriente» (Gn 29,1), da região da Mesopotâmia perto de Harã (Gn 29,4), «(...) na terra dos ‘filhos do oriente’», cuja «frase designa tribos nômades do deserto sírio-árabe, leste de Canaã» (Carm et al 2012, p. 103). Lia, acompanhada de sua irmã Raquel, são mencionadas na bênção de casamento de Rute e Booz em Rute 4,11, como tendo edificado a casa de Israel (Waltke, 1988, 196). Ambas as irmãs entregaram suas servas a Jacó para gerarem filhos (Gn 30,1–13) (Weber 1988, 338). Lia entregou sua serva para competir com a irmã mais nova.

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Lia foi a primeira esposa de Jacó (Gn 29, 23). A esposa menos amada (Gn 29,30b), mulher fecunda (Gn 29,31) que gerou os quatro primeiros filhos do patriarca: Ruben (Gn 29,32), Simeão (Gn 29,33), Levi (Gn 29,34) e Judá (Gn 29,35). A fertilidade de Lia e a esterilidade de sua irmã caçula é a base do conflito entre ambas. Para cada filho concebido, a literatura sagrada possui o registro de uma fala de Lia: «Iahweh viu minha aflição; agora meu marido me amará» (Gn 29,32); «Iahweh ouviu que eu não era amada e me deu também este» (Gn 29,33); «Desta vez meu marido se unirá a mim, porque lhe dei três filhos» (Gn 29,34); «Desta vez, darei glória a Iahweh» (Gn 29,35), respectivamente. Por sua fecundidade Lia foi vítima da inveja de Raquel (Gn 30,1) e há relatos de que Raquel, sua irmã, lutou contra ela (Gn 30,8). As irmãs disputavam a atenção, o carinho e, porque não dizer, o amor de Jacó, tanto que Lia ao conceber seu terceiro filho, lhe dá o nome de Levi fazendo um jogo de palavras «Agora, desta vez, se unirá mais a mim meu marido» (Kaiser, 1988, 779). Ao nascer o primeiro filho que Zelfa (ou Zilpa), sua serva, concebeu, disse: «Que sorte e deu-lhe o nome de Gad» (Gn 30,11). Com o nascimento do segundo filho concebido por Zelfa, disse: «Que felicidade! Pois as mulheres me felicitarão; e deu-lhe o nome de Aser» (Gn 30,13). Em cada uma das falas de Lia é possível até mesmo sentir o descontentamento, e, de igual modo, as tentativas tímidas de chamar a atenção de Jacó. Da mesma forma, é necessário registrar a ideia de enfado, que ratifica o significado da raiz de seu nome: estar cansada, esgotada, de não ser amada como sua irmã. 466

A presença das mulheres na Literatura e na História

Recebeu mandrágoras de Ruben, seu filho primogênito (Gn 30,14), que foram utilizadas como pagamento à Raquel para dormir com Jacó (Gn 30,15–16). A proposta para Lia dormir com Jacó foi ideia de Raquel que desejou as mandrágoras, o que nos permite inferir que Lia mantinha-se no seu lugar de esposa rejeitada (Gn 30,15), fazendo jus ao significado da raiz originária de seu nome. Lia «compra» o privilégio de deitar-se com o seu marido, Jacó, ao dar a Raquel as mandrágoras de Ruben (Gn 30, 16; ARA, «alugar») (Rogers 1988, 1480). Neste episódio das mandrágoras, entendidas como uma poção afrodisíaca e da fertilidade, a rivalidade entre Lia e Raquel é «especialmente aguçada» (Carm et al 2015, 105). Ao que parece, Jacó evitava Lia (Carm et al 2015). Deus ouve Lia e ela gera mais dois filhos de Jacó chamados de Issacar e Zabulon. Ao nascer Issacar, Lia disse: «Deus me deu meu salário, por ter dado minha serva a meu marido» (Gn 30,18). Ao nascer Zabulon, disse Lia: «Deus me fez um belo presente; desta vez meu marido me honrará, pois lhe dei seis filhos» (Gn 30,17–20). Lia foi genitora de seis filhos homens de Jacó e é a mãe da única filha mulher de Jacó, chamada Diná, que fora violentada por Siquém (Gn 30, 21; 34,2). Quando deixou sua terra natal para partir com seu esposo Jacó para Canaã, juntamente com sua irmã Raquel, requereu a sua herança e foi abençoada por seu pai Labão (Gn 31, 14; 32,1). O preço de seu dote foi o trabalho de sete anos de Jacó, a fim de ganhar o direito de se casar. «Documentos de Nuzi registram que era comum para o homem trabalhar por um período de tempo especificado antes de o pai da moça cedê-la ao pretendente» (Archer Jr., 2012, 252). «Jacó pagou com serviço pelos seus casamentos com Lia e Raquel» 467

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

(Gn 29.15–30) (Kaiser 1988, 812). Outrossim, Lia não foi a mulher desejada para o matrimônio, por ser a filha primogênita de Labão, este a entregou para Jacó sem o informar. «Foi a esposa menos querida» (Gn 29, 34) (Kaiser 1988, 778). «A substituição de Raquel por Lia foi possível porque ela teria sido disfarçada, e talvez por causa da alta agitação da ocasião» (Clifford et al 2015, 104). De modo que somente uma festa de casamento foi realizada para o matrimônio das irmãs Lia e Raquel. Lia (Gn 49.31) foi sepultada na caverna de Macpela, que Abraão comprou de Efrom, o heteu, onde igualmente foram sepultados Sara, Abraão, Isaque, Rebeca e Jacó (Gn 23; 19; 25,9; 50,13) (Allen 1988, p1176). Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2017. Edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus. Obras de referência ALLEN, R. B. I. 1988. Aceita como raiz de: (m’ãrâ) caverna, cova, buraco, Meara. In: HARRIS, R. L. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 1176–1177. KAISER, W. C. 1988. (lewi) Levi. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 778–780. KAISER, W. C. 1988. (mahar) II, adquirir mediante pagamento. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 811–812. KIRST, N. et al. 1989. Dicionário Hebraico-Português e Aramaico-Português. São Leopoldo/Petrópolis: Editora Sinodal/Vozes. 468

A presença das mulheres na Literatura e na História

LEXILOGOS. (s.d.). Words and Wonders of the Words. Multilingual keyboard. Hebrew. Disponível em: https://www.lexilogos.com/keyboard/hebrew.htm. Acesso em: 30 jun. 2021. ROGERS, C. 1988. (sãkal) por atravessado. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p.1480–1481. WALTKE, B K. 1988 (bãnâ) construir, edificar, reconstruir. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 196–197. WEBER, C. P. 1988. (hgr). Aceita como raiz de (Esta raiz, que significa “fugir». In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 338–339. Bibliografia geral ARCHER Jr., G. L. 2012. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova. CARM, O.; RICHARD J. et al. 2015. Gênesis (28,18– 29,13). In: BROWN, R. E. et al. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus, p. 59–127. CLIFFORD, Richard J.; et al. 2015. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. Tradução: Celso Eronides Fernandes. Santo André (SP): Academia Cristã. São Paulo: Paulus.

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‫ › ראקל‬Raquel

por Karine Marques Rodrigues Teixeira & Rosemary Francisca Neves Silva

Seu nome é do hebraico rahel (‫)ראקל‬, que significa, especificamente, ovelha fêmea adulta (White 1988, p. 1417). Filha caçula de Labão, irmã de Lia (Gn 29, 15–30) e sobrinha de Rebeca, portanto, prima de Jacó. Uma mulher da região da Mesopotâmia perto de Padã-Arã (Gn 29,16–30). «(...) na terra dos ‘filhos do Oriente’», cuja «frase designa tribos nômades do deserto sírio-árabe, leste de Canaã» (Carm et al 2012, 103). Raquel (Gn 29, 17) «era formosa de porte e de semblante», «bela de forma e bela de se olhar» (Gilchrist 1988, 641). Roubou os ídolos domésticos de seu pai Labão (Gn 31,1–21) (Kalland 1988, 270). Foi esposa de Jacó (Gn 29, 16–30), cujo dote teve o preço de sete anos de trabalho, a fim de ganhar o direito de se casar. «Documentos de Nuzi registram que era comum para o homem trabalhar por um período de tempo especificado antes de o pai da moça cedê-la ao pretendente» (Archer Jr. 2012, 252; Kaiser 1988, 812). Raquel casou-se com Jacó após este ter servido ao seu pai, Labão, por sete anos (Schultz 1988, 1083). Raquel foi amada por Jacó (Gn 29,10). O modo como Jacó amou Raquel é ahabâ em hebraico, cujo substantivo descreve amor do marido pela esposa (Alden 1988, 21). Uma das atribuições de Raquel era a de tirar água do poço. Comum entre as mulheres, tanto que é no poço de Parã que Raquel e Jacó se encontram (Gn 29, 2ss) assim como foi no poço o local de encontro para o servo de Abraão e Rebeca (Gn 24,11s) e para Moisés e Zipora (Ex 2,15s) (Lewis 1988, 144).

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Raquel deu mostras de seu caráter e foi atendida em resposta a oração de Eliezer (Gn 24,10, 19, 20, 44, 46) ao tirar água do poço para dar para os camelos (Lewis 1988, 275). Uma mulher de disposição e resistência física, mas ao mesmo tempo foi o motivo do choro de alegria de Jacó ao encontrá-la depois de ter viajado desde Canaã (Gn 29, 11) (Carm et al 2012, 103). Mãe de José e de Benjamim Gn 30, 22–24. Teve uma serva por nome Bila que foi dada como concubina a Jacó, visto que, até o momento, Raquel não tinha gerado filhos. Repetindo assim a narrativa de Sara que também teve dificuldade para gerar filhos. «Raquel, ao dar nome ao seu primogênito, ora, dizendo: ‘Dê-me o SENHOR ainda outro filho’» (Gn 30, 24). Raquel reconhece que longevidade e filhos são assuntos do soberano arbítrio de Deus (Gilchrist 1988, 630). Raquel exprimiu o sentimento de inveja em relação à fecunda Lia (Gn 30, 1), sua irmã, pois era estéril. Lia «compra» o privilégio de deitar-se com o seu marido, Jacó, ao dar a Raquel as mandrágoras de Ruben (Gn 30, 16). Muitas israelitas clamaram como o fez Raquel: «Dá-me filhos, senão morrerei» (Gn 30,1). Uma mulher que não gerava filhos era considerada como amaldiçoada e fracassada, além de perder a posição social, uma realidade da sociedade patriarcal. «Pelo que podemos observar, a descendência legítima não pressupunha a maternidade biológica da esposa constituída» (Candiotto 2008, 47). Raquel roubou os terafins de Labão (Gn 31, 17–50) a fim de assegurar o direito de Jacó à herança de seu pai depois que este morresse ou, pelo menos, garantir que o clã de Jacó tivesse liderança e poder espiritual (Youngblood 1988, 1660). 472

A presença das mulheres na Literatura e na História

Gênesis 35,18 afirma que pouco antes de morrer, Raquel deu nome ao seu recém nascido de Benoni (filho do meu sofrimento), em hebraico awen (Livingston, 1988, p. 36). Ela é sepultada por Jacó no caminho para Efrata, especificamente em Belém (Gn 35,19). É nesta perícope que «[a] região é pela primeira vez mencionada nas Escrituras» (Goldberg1988, 177). Teve uma coluna erigida sobre o seu túmulo (Gn 35, 20) (Fisher 1988, 988). Uma outra parte interessante sobre Raquel é mencionada na bênção «de casamento como tendo edificado a casa de Israel (Rt 4,11) (Waltke 1988, 196). Raquel é um dos exemplos de mulheres do Antigo Testamento que vai além do desejo da maternidade, mas de uma mulher que assume a gestação do povo de Israel (Candiotto 2008, 49). Há uma certa dificuldade em escrever sobre Raquel, pois encontramos a história do homem e não da mulher, o que pode ser detalhado acerca de Raquel é pelo que não fora dito pela história, as ausências, as omissões nos permitiram inferir características da vida de Raquel que não foram ditas explicitamente. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2017. Nova Edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus. BÍBLIA SAGRADA. 2012. Tradução da CNBB, 13ª edição. Brasília: Edições CNBB, Editora Canção Nova, Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética. BÍBLIA VIDA NOVA. 1995. Editor responsável: Russel P. Shedd. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição revista e atualizada. São Paulo/Brasília: Vida Nova/Sociedade Bíblica do Brasil. 473

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Obras de referência ALDEN, R. L. 1988. (aheb) amar, gostar, apaixonar-se, ser amável. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 19–21. GILCHRIST, P. R. 1988. (yasap) acrescentar, aumentar, tornar a fazer/(yapa) ser belo, lindo. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 630–632 e 640–642. FISHER, M. C. 1988. (nãtsab) permanecer em pé, estar colocado, estabelecer. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 987–989. GOLDBERG, L. (bayit) casa, lar, local, templo, parte interior, família et al. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 174–178. HARRIS, R. L. et al. 1988. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova. KAISER, W. C. 1988. (mahar) II, adquirir mediante pagamento. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 811–812. KALLAND, E. S. 1988. (galal) II, entregar, retirar, confiar, correr abaixo, procurar ocasião, chafurdar, rolar, e rolar abaixo ou rolar juntos. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 267–271. LEWIS, J. P. 1988. (ba’ar) declarar, esclarecer/(gãmal) negociar, recompensar, amadurecer. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 143–145 e 274–275. 474

A presença das mulheres na Literatura e na História

LIVINGSTON, G. H. 1988. (wn) I. Aceita como raiz de sofrimento. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 36–37. SCHULTZ, C. 1988. (‘ud) voltar, repetir. In: HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 1082–1085. WALTKE, B. K. 1988. (bãnâ) construir, edificar, reconstruir. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 193–197. WHITE, W. 1988. Aceita como raiz de: (rahel) ovelha fêmea adulta. HARRIS, R. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 1417. YOUNGBLOOD, R. F. 1988. Idolatria, ídolos, ídolos do lar, imagem, imagens, terafins. In: HARRIS, R. L. et al. Dicionário Internacional de Teologia. Antigo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 1659–1660. Bibliografia geral ARCHER Jr., G. L. 2012. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova. CANDIOTTO, J. F. S. 2008. Teologia na perspectiva das relações de gênero: a contribuição da hermenêutica bíblica. Dissertação de Mestrado em Teologia defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC RJ. CARM, O.; RICHARD, J. et al. 2012. Gênesis. In: BROWN, R. E. et al. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus. p. 59–127.

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‫ › תמר‬Tamar

por Janaina de Fátima Zdebskyi

Tamar é uma, dentre as tantas mulheres, mencionadas na narrativa da Bíblia. Seu nome aparece nos livros sagrados judaico-cristãos, no Antigo Testamento da Bíblia cristã e na Torá judaica. Quando falamos desses textos, é preciso levar em conta que sua estrutura narrativa também os constitui como livros de linhagens, nos quais são descritas uma série de casamentos e os filhos gerados nessas uniões. Narrar essas linhagens é um processo importante para construção de uma um mito de origem do povo judeu, evocando esse passado de ancestralidade nos hebreus, descendentes do patriarca Abrão, o primeiro hebreu. Os hebreus são justamente o «povo da Bíblia» e, nessa narrativa sagrada, suas trajetórias são contadas no contexto do Antigo Crescente Fértil, uma região no Oriente Próximo na Antiguidade, mais especificamente no espaço onde hoje está localizado Israel, apesar de que a Bíblia também faz menções a lugares como a Mesopotâmia e o Egito, mesmo que até agora não tenhamos evidências arqueológicas concretas de que os hebreus chegaram de fato a esses lugares. Perceber o Antigo Testamento também como um livro de linhagens, torna necessário dar visibilidade às mulheres citadas, mesmo que o foco da narrativa, na maioria das vezes, esteja no patriarca e nos filhos homens. Nesse contexto bíblico, o papel social das mulheres estava fortemente ligado a necessidade de reprodução, de dar filhos aos maridos e garantir a continuidade do povo hebreu, sua cultura e suas crenças. Essa necessidade é tão evidente e enfática que, em Gênesis

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38, a narrativa de Tamar gira em torno da Lei do Levirato, uma regra que visa garantir descendência mesmo no caso de morte de um homem que não chegou a gerar filhos, sendo que a viúva deveria ter filhos com seu cunhado (irmão de pai do falecido), os quais pertenceriam à linhagem do irmão falecido, essa regra é instituída como um dever de honra para o irmão vivo. A Lei do Levirato está relacionada com o direito à herança, conforme destacam as notas de rodapé da Torá, para Gênesis 38, ao mencionar que o irmão que se casa com a esposa do falecido toma posse da herança dele e não é obrigado a dar o nome do irmão ao filho que nasce desse casamento, visto que a razão principal da lei é que a herança do falecido não saia da família (Torá: A lei de Moisés, Livro de Gênesis, 38). Nesse sentido, percebemos que garantir a linhagem dos homens e garantir que os filhos gerados sejam legítimos é a necessidade que marca muitas das regras e interdições às mulheres entre os hebreus e sua sexualidade: as punições violentas e até a morte em caso de adultério; a necessidade de se casar com o cunhado se o marido falecer sem gerar filhos e mesmo a permissão para que o marido gere filhos com outras mulheres em caso de infertilidade da esposa. A história de Tamar é marcada por muitas dessas regras, mas também por astúcia e subversão. Tamar é nora do patriarca Judá, esposa do primogênito Er, que morre sem gerar filhos. Assim, Tamar casa-se com Onán, que ao saber que o filho gerado não seria considerado dele — contrariando os comentários da Torá—, jogava seu sêmen por terra, sem fertilizar a esposa, para não dar sucessão ao irmão. Por ter sido mal aos olhos de YHWH, Onán também morre. Judá ordena que Tamar vá para casa de seu pai e aguarde lá até que Shelá, o filho mais novo, tenha idade para se casar com ela. Porém, Judá toma essa decisão temendo que Shelá também morra como seus irmãos. Passaram-se dias e Tamar, 478

A presença das mulheres na Literatura e na História

percebendo que Shelá havia crescido e ela não foi lhe dada por mulher, armou um plano para obter seu direito de gerar filhos: Tamar tirou as vestes de viúva e se cobriu com um véu, sentou-se em uma encruzilhada no caminho de Timná, por onde Judá iria passar e esperou por ele. Quando Judá passou por ela, pensou que fosse uma prostituta sagrada e pediu que ela fosse com ele (no sentido de propor uma relação sexual). Tamar questiona o que ele daria a ela em troca, Judá oferece um cabrito de seu rebanho, mas Tamar pede um penhor até receber o cabrito, pede o anel-selo, o manto e o cajado de Judá, que entrega esses objetos a ela. Nesse momento, Tamar concebe filhos de seu sogro. Quando Judá ordenou que seu amigo levasse o cabrito para a prostituta consagrada, ele não encontrou nenhuma mulher na encruzilhada e Tamar ficou em posse dos penhores de Judá. Depois de três meses, foi anunciado para Judá que Tamar havia adulterado e estava grávida, então Judá ordenou que ela fosse colocada para fora e queimada. Tamar, por sua vez, mandou dizer ao sogro que havia concebido do homem a quem pertenciam os penhores, o anel-selo, o manto e o cajado; Judá reconheceu seus pertences e declarou que Tamar era mais justa do que ele, porque ele não deu a ela seu filho Shelá. Dessa forma, Tamar dá a luz a gêmeos, Pérets e Zérach que são antepassados de Davi, portanto, uma importante linhagem entre os hebreus (Torá: A lei de Moisés, Livro de Gênesis, 38). Para além da Lei do Levirato, da obrigatoriedade de gerar filhos e de todas as regras às quais as mulheres estavam submetidas visando garantir a linhagem dos patriarcas, existem vários outros elementos que podemos observar no mito de Tamar. A primeira questão, é que as mulheres só estavam ligadas às suas casas pelo vínculo com o patriarca, considerando que Tamar habitava a casa de Judá até o momento em que era casada com um de seus filhos, quando Tamar precisa aguardar 479

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até que Shelá cresça para casar-se com ele, ela é enviada de volta para a casa de seu pai. Nessa narrativa, Tamar demonstra que a questão de gerar filhos de seu casamento não se trata apenas de um dever, mas também de um direito e ela recorre a diversas estratégias para conseguir conceber, visto que por ser viúva não seria permitido que se casasse e concebesse de um estranho de fora da família de Judá. A astúcia de Tamar aparece na narrativa ao pedir os penhores a Judá, visto que o chamado anel-selo se trata de um objeto muito conhecido entre as fontes arqueológicas encontradas no Antigo Crescente Fértil, objetos geralmente feitos em pedra, mas que também podia ser de cerâmica, de vidro, de argila cozida, de ossos, de concha, de marfim ou de metal, nos quais se talhava um motivo, eles costumavam ter uma perfuração longitudinal no centro, para poder enfiá-los num alfinete ou numa corrente, ou montá-lo num pivô, de forma que eram portados por seu proprietário (Roaf 1996, 71). Esses selos funcionavam como uma espécie de assinatura ou marca de seu proprietário, sendo assim uma evidência de sua identidade. Outro objeto apropriado de Tamar, o cajado, demonstra o aspecto de subversão e ousadia da personagem, que toma para si o instrumento que é um marco característico de um patriarca na condução de seu povo, assim como o pastor conduz seu rebanho. Outro elemento interessante presente neste excerto de Gênesis, 38, é que com a subversão de Tamar, a narrativa menciona que Judá não deu a ela seu filho Shelá em casamento, marcando uma inversão de narrativa bastante radical, visto que nos textos Bíblicos é sempre a mulher que é dada (ou mesmo tomada) em casamento, não sendo encontradas outras menções onde se diz que um homem (não) foi dado em casamento a uma mulher. 480

A presença das mulheres na Literatura e na História

Por fim, é preciso discutir também o lugar de Tamar enquanto prostituta sagrada ou consagrada à prostituição. O termo traduzido por prostituta sagrada na Bíblia de Jerusalém ou consagrada na Torá, se refere a qdshah, nos versículos 21 e 22 e zonah, nos versículos 15 e 24 de Gênesis, 38 (Montalvão 2009, 23). Enquanto zonah está ligado a algo como «rameira», qdshah está intrinsecamente ligado ao sagrado e a atos de culto, logo, é a prostituição cultual que possui este sentido, por ser uma prática em que as mulheres que serviam nos santuários de divindades proibidas entre os hebreus foram denominadas qdshot, «prostitutas cultuais» (Montalvão 2009, 13). Outra menção a esse termo, está no §181 do Código de Hammurabi, onde são mencionadas diferentes classes de sacerdotisas consagradas ao templo de um deus babilônico, sendo elas as nadῑtum, qadištum e kulmašῑtum (Bouzon 1992, 172–173). A prática de prostituição sagrada é marcada como enfaticamente proibida na narrativa bíblica, sendo que em Deuteronômio, 23:18–19, encontramos menções de que não deve existir qdshah dentre as filhas de Israel, bem como a proibição de oferecer salário de zonah à casa de YHWH (Deuteronômio, 23:18–19). Além disso, em 2Reis, 23:4–8 é mencionada a demolição das casas dos prostitutos sagrados, que estavam no próprio Templo de YHWH, onde as mulheres teciam véus para deusa cananeia Asherá (2Reis, 23:4–8) (Zdebskyi 2018, 119). Nesse sentido, vemos que Judá não se envolve somente com sua nora Tamar, pois no momento que a toma por uma prostituta sagrada, Judá está se envolvendo deliberadamente com um rito ligado ao culto e aos templos de divindades proibidas entre os patriarcas hebreus. Tamar é mais uma das mulheres na Bíblia que demonstra conhecer rituais e cultos ligados a essas divindades que foram proibidas com a instituição do monoteísmo em torno de YHWH, como é o caso da deusa cananeia Asherá, que abrigava 481

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

em seu templo as consagradas à prostituição. A linhagem de Tamar e Judá, assim como as linhagens futuras até a de Davi, são marcadas por esse rito que evidencia os processos de resistência e trocas culturais no processo de tentativa de construção do monoteísmo javista. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2002. São Paulo: Paulus. O CÓDIGO DE HAMMURABI. 1992. Introdução, tradução e comentários de E. Bouzon. Petrópolis: Vozes, 1992. TORÁ: A lei de Moisés. 2001. Tradução, explicações e comentários do rabino Meir Matzliah Melamed. São Paulo: Editora e Livraria Sêfer. Bibliografia geral MONTALVÃO, S. 2009. A homossexualidade na bíblia hebraica: um estudo sobre a prostituição sagrada no Antigo Oriente Médio. Dissertação de Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica defendida na Universidade de São Paulo – USP. ROAF, M. 1996. Mesopotâmia e o Antigo Médio Oriente. Madrid: Edições del Prado. ZDEBSKYI, J. 2018. A prostituta sagrada e os entrelaçamentos culturais no Antigo Crescente Fértil. Dissertação de Mestrado em História defendida na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.

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‫ › יהודית‬Judite

por Victor Passuello

A mais antiga pronúncia do nome Judite na tradição textual é Ioudeiq — Ioudeith também pronunciada Iudith ou Ioudēth, que é a transcrição grega do hebraico Yehudit — ‫יהודית‬ (Wills 2019, 1). O nome Judite significa mulher Judia e pode ser considerado no livro de Judite como um arquétipo de uma heroína que representa e personifica todo o povo judeu como no caso de Roma ou Britânia, que personificavam no século I EC., os habitantes das ilhas britânicas e os romanos. É comum em alguns livros da bíblia judaica, que seus títulos sejam tomados dos seus principais personagens como Rute, Ester e Tobias, por exemplo. Vale destacar que a partir do judaísmo do Segundo Templo (516 aEC–200 EC), o povo e a religião de Israel passaram a ser mais comumente conhecidos pelo binômio judeus/judaísmo (Macabeus II) identificações dadas pelos líderes Asmoneus, que governaram a região da Judéia e os seus arredores por volta de 140–37 aEC. O uso do termo judaísmo e da sua raiz (Yehud/Ioudai) mostra também que a identidade religiosa judaica já estava bem definida e enraizada por causa da formação do cânon judaico que foi estabelecido por volta dos séculos II e I aEC (Cohen 2006, 178–179). Essa denominação para o povo e a religião de Israel passou a ser comum nas novelas judaicas e narrativas ficcionais de corte como em Ester, Daniel 3: 8, 12, Bel e o Dragão 28, estes escritos durante o judaísmo do Segundo Templo (Wills 2019, 2). No entanto, no livro de Judite encontramos trinta e duas menções ao povo de Israel (Baker; Carter; Perdue 2015, 135). Esse fato nos lembra que os autores dos textos do judaísmo

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

do Segundo Templo estavam também profundamente ligados com a tradição teológica/histórica dos cinco primeiros livros da bíblia judaica (Torah). O livro de Judite foi provavelmente escrito na Palestina, por volta do século II aEC, época na qual a história da Judéia mostra grande influência da cultura e dinastias helenísticas. Não há uma data precisa para a escrita de Judite, mas sabemos que tal fato pode ter ocorrido na segunda metade do século II aEC, dado que no capítulo 4 há referências à restauração dos sacrifícios que eram realizados diariamente no Templo de Jerusalém (Jt 4:3). Os sacrifícios foram restaurados após a Revolta dos Macabeus (164–37 aEC) contra o rei selêucida Antíoco IV Epifânio. Judite encontra-se no Cânon Sagrado dos livros da tradição Cristã conhecido como Septuaginta. Na Septuaginta encontramos somente os textos judaicos que foram escritos em grego e provavelmente confeccionados para a comunidade judaica que vivia fora da Palestina e que não falava e escrevia em Hebraico. Judite não é mencionado pelos autores judaicos antigos nem na tradição rabínica posterior, embora seja mencionado no livro grego de Ester, adições C e D. Também é mencionado, pelos Judeus, na época Medieval. O fato de que o livro de Judite fora composto depois da canonização do texto bíblico Judaico pode indicar as razões pelas quais esse livro não entrou no Cânon. A versão comumente conhecida é a versão escrita em grego comum Κοινή — Koiné. Muitos estudiosos acreditam que o texto original seria em hebraico, pois o grego Koiné do texto de Judite apresenta hebraísmos. Por exemplo, só temos uma referência em todo o texto as partículas gregas conectivas que demonstram contraste —μέν/δὲ— men/de (Wills 2019, 17). Sabemos que o texto é de origem judaica pelo seu conteúdo, pois existe alusões às mulheres da Bíblia judaica como Débora e Jael que aparecem no livro de Juízes, além de outras referências 484

A presença das mulheres na Literatura e na História

históricas e teológicas da tradição Judaica. Como o texto grego da Septuaginta em geral foi preservado e incorporado pela tradição católica, pode-se afirmar que o livro de Judite faz parte do Cânon Católico (deuterocanônico). A inclusão do livro de Judite na história cristã e na Vulgata (Bíblia Latina) foi feita por Jerônimo de Estridão (São Jerônimo). Foi ele que decidiu incluir Judite na Vulgata (Bíblia Latina), pois, antes de sua inclusão, o livro de Judite já tinha entrado no cânon católico definido pelo Concílio de Nicéia (325 EC) (Wills 2019, 390). Para Jerônimo, Judite era um paradigma da virtude da pureza e da castidade como Maria, mãe de Jesus (mulier sancta), Biblia Vulgata (Iudith 8: 29). Para a tradição judaica a pureza de Judite relaciona-se com a observância das leis judaicas. Judite para os Judeus era uma piedosa viúva e uma heroína que em textos medievais judaicos (midrashim) estava associada ao festival das luzes Chanucá celebrado até hoje, uma vez por ano, que comemora a reedificação do Segundo Templo em Jerusalém na época da Revolta dos Macabeus. O livro de Judite é composto por 16 capítulos em prosa. Apesar de ser claramente um texto ficcional, existem muitas alusões históricas aos reis e impérios antigos que dominaram a região da Palestina. A personagem principal do livro, Judite, somente aparece na segunda metade do livro (Jt 8:1–8). Essa peculiaridade levou a muitas interpretações contraditórias sobre a primeira metade do livro (1–7). Nesses capítulos, temos uma descrição geográfica e telescópica do mundo, história profunda, que faz referência à época pré-exílica da história de Israel (séculos VIII, VII e VI aEC). Na segunda metade temos uma micro-história que pode ser caracterizada como uma novela de corte, com claras referências ao período do Segundo Templo (séculos III e II aEC). O contexto ficcional de Judite é identificável, como no caso da primeira passagem que faz referência ao rei Nabucodonosor II como rei dos 485

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Assírios (Jt 1:1). Nabucodonossor II era um rei Babilônico. Os primeiros capítulos de Judite apresentam Nabucodonosor e o seu general Holofernes como inimigos dos Judeus. Holofernes inicia uma campanha contra os povos submetidos ao império de Nabucodonosor que se recusaram a ajudá-lo na guerra contra o rei medo Artafaxad. Artafaxad é um rei historicamente desconhecido que pode ser uma representação do rei Fraorte, fundador da Média, cuja capital foi Ecbátana. Os Judeus de Jerusalém são representados como um dos povos vassalos que se recusaram a ajudar o rei Assírio e, por essa razão, irão sofrer uma investida militar cujo objetivo era a destruição da cidade. Esse contexto histórico nos remete ao contexto da história Babilônica e de Israel que deu origem ao período conhecido como o cativeiro da Babilônia, com a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor II em 587 aEC. Mas o perigo da repetição da história de sofrimento do povo Judeu é logo descartado, em razão do protagonismo de Judite que emprega um discurso teológico e político para acalmar os cidadãos judeus de Betúlia. Betúlia, no livro de Judite, é representada como uma cidade fictícia, que se apresenta como última barreira para se chegar a Jerusalém. Judite afirma que os Judeus não devem se preocupar com o inimigo, pois eles não cometeram nenhum pecado como o da veneração aos Deuses que aconteceu no passado pré-exílico. Sendo assim, Deus intervirá favoravelmente em defesa dos judeus (Jt 8: 18–20). A questão da subalternidade e de gênero aparece claramente no texto de Judite, por causa do protagonismo de Judite em relação aos homens, questão androcêntrica. Judite subverte a condição de viúva e mulher e decide sozinha, com apoio divino, ajudar os líderes de Betúlia a quebrar o cerco da cidade que foi feito por Holofernes (Jt 8:10). Ela deixa a sua condição de viúva, coloca a sua melhor maquiagem e vestido e, conforme relata a narrativa de Judite, vai em direção 486

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ao acampamento de Holofernes, com a intenção de acabar com o sofrimento dos judeus. Na tenda de Holofernes, ela o seduz com sua sabedoria, beleza e humor, sem ter nenhum relacionamento sexual com ele. Judite aproveita a condição de Holofernes, ébrio e sonolento, para cortar a sua cabeça com uma espada. Depois, Judite, juntamente com a sua escrava, a leva escondida de volta para Betúlia enrolada em um pano de saco (Jt 13: 6–12). Ao verem a cabeça decepada, os judeus comemoram a vitória. Quando as tropas de Holofernes descobrem, no dia seguinte, que Holofernes estava morto, o cerco à Betúlia é cancelado e, consequentemente, a campanha militar contra Jerusalém. Os episódios descritos em Judite (13: 6–12) se tornaram célebres nas artes visuais e plásticas, como na época Renascentista. No quadro de Sandro Botticelli (1444–1510 EC), Judite com a Cabeça de Holofernes, (ca. 1472 EC), Judite está, com a espada que usou para cortar a cabeça de Holofernes, acompanhado da sua escrava que, por sua vez, está carregando a cabeça do general em saco de pano. Na estátua de Donatello (1386–1466 EC), Judite e Holofernes, Judite está prestes a decepar a cabeça de Holofernes. Assim sendo, Judite atua como uma heroína capaz de transitar entre dois mundos sociais que tradicionalmente não são comunicáveis: o mundo das viúvas do Israel Antigo e o mundo dos guerreiros, líderes e heróis de Israel. Na sociedade antiga de Israel as viúvas viviam isoladas socialmente longe de festas e assembleias. O mundo dos guerreiros e líderes de Israel era masculinizado e violento. Judite inverte os papéis sociais normais e patriarcais e se torna uma guerreira e heroína que pelos seus atributos físicos, intelectuais e, também, pela sua piedade, seduz Holofernes e vinga o povo judeu contra o superpoderoso inimigo. 487

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Por causa do protagonismo e liderança da personagem de Judite, alguns acadêmicos defendem que o livro de Judite pode ter sido escrito por uma autora mulher, caso raro nos textos do Judaísmo Antigo (van Henten 1995). Os estudos decoloniais pressupõem que os subalternos devem ser ouvidos e serem capazes de expressarem as suas vozes. O livro de Judite possui uma crítica aguda e detalhada à metanarrativa dos grandes impérios coloniais antigos, sejam eles Babilônicos, Persas ou Helenísticos. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 1987. São Paulo: Paulinas. BIBLIA VULGATA. 1994. Ed. por A. Colunga e L. Turrado. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos. SEPTUAGINTA. 2006. Ed. por R. Hanhart e A. Rahlfs. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. Obras de referência VAN HENTEN, J. W. 1995. Judith as Alternative Leader: A Rereading of Judith 7–13. In: BRENNER, Atahalya. A Feminist Companion to the Bible: Esther, Judith and Susanna. Sheffield: Sheffield Academic Press, p. 224–252. Bibliografia geral BAKER, C. A.; CARTER, W.; PERDUE, L. G. 2015. Israel and Empire: A Postcolonial History of Israel and Early Judaism. New York/London/New Delhi/ Sydney: Bloomsbury. COHEN, S. J. D. 2006. From de Maccabees to the Mishnah. Louisville/London: Westminster John Knox Press. WILLS, L. M. 2019. Judith: A Commentary (Hermeneia). Minneapolis: Fortress Press. 488

‫ › דינה‬Diná

por Janaina de Fátima Zdebskyi

As primeiras cenas de uma série de televisão chamada The Red Tent, de 2014, mostram uma jovem mulher olhando para o horizonte, ela nos diz que por milhares de anos permaneceu esquecida pelo mundo, seu nome e sua memória viraram pó, em contrapartida, somente os nomes de seu pai e irmãos são lembrados e celebrados em um conhecido texto sagrado. Essa mulher é Diná e, nessa produção cinematográfica, a personagem se propõe a contar uma história diferente, uma história da perspectiva dela e das mulheres que a criaram, suas mães, mulheres que consagravam a lua cheia e mantinham segredos e sabedorias. Diná é uma personagem ligada às narrativas sagradas judaico-cristãs, ela aparece no livro de Gênesis, 34 e, assim como outras mulheres da Bíblia, sua história é contada sob o viés de uma perspectiva patriarcal, um texto sob a ótica e as leis dos homens. Apesar disso, as entrelinhas dos textos bíblicos nos permitem encontrar evidências e pensar sobre a vida das mulheres, perceber as regras às quais estavam submetidas, mas também identificar estratégias de resistência. Essas entrelinhas nos permitem perceber as narrativas dos textos bíblicos sob a ótica das mulheres, vozes que precisam contar sua própria história para as mulheres de hoje, da mesma forma como fez o livro e a série de televisão intitulados The Red Tent, supracitados e que trazem uma tentativa de, por meio da fonte de Gênesis, 34, contar a história de Diná a partir da perspectiva feminina, com o protagonismo das mulheres da família.

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Quando falamos de «mulheres da Bíblia», mais especificamente nesse caso, um livro do Antigo Testamento, estamos falando de uma narrativa sagrada ligada ao povo Hebreu. Os Hebreus ou povos de Israel teriam habitado a terra de Canaã, antes desta passar a ser conhecida como Israel (Cazelles 1986, p. 70), região do Antigo Oriente Próximo, na Antiguidade. As informações que temos sobre os Hebreus partem tanto de achados arqueológicos da região, quanto da análise dos textos bíblicos, onde podemos perceber questões relacionadas com sua organização social, religiosidade, regras de conduta e também relações interculturais. Um dos aspectos marcantes ligados a esse povo da Bíblia é sua vida religiosa, a tentativa de instituir um culto monoteísta direcionado ao deus YHWH, visando combater o culto à divindades consideradas estrangeiras, mas divindades estas que já eram cultuadas na região do Antigo Crescente Fértil, onde os hebreus habitavam, pelo menos desde a sedentarização dos primeiros grupos de pessoas, como os sumérios que adoravam um panteão constituído por deusas e deuses. Na Torá, no livro de Gênesis, capítulo 34, Diná é filha do patriarca Jacob com uma de suas esposas, Lea. Quando sua família estava na cidade de Shechem, a caminho de Bet-El, Diná «saiu» para ver as filhas da terra e deitou-se com Shechem, filho de Chamor, príncipe da terra. Shechem apegou-se de Diná e pediu para que seu pai procurasse Jacob para que Diná lhe fosse concedida como esposa. Jacob considerou que sua filha foi profanada, os irmãos de Diná ficaram entristecidos e irados com o acontecimento, considerando que os filhos daquela terra fizeram uma vileza contra Isreal, porque Shechem se deitou com a filha de Jacob e assim não deveria acontecer. Chamor propôs para Jacob que Diná fosse dada em casamento para seu filho e, assim, propôs uma aliança de parentesco, onde «vossas filhas dareis a nós, e nossas filhas tomareis para 490

A presença das mulheres na Literatura e na História

vós», convidando-os para habitar sua terra, negociar nele e dela tomar posse, oferecendo ainda um dote e uma dádiva de quanto fosse pedido por Diná. Os filhos de Jacob negaram a oferta e afirmaram não poder dar sua irmã em casamento a um homem que tenha prepúcio, propondo que só consentiram se todo macho entre eles fosse circuncidado. Shechem e Chamor se agradaram das palavras dos filhos de Jacob, aceitaram o acordo e assim foram circuncidados todos os homens da cidade. Porém, Simão e Levi, irmãos de Diná, tomados pelo desejo de vingança, se aproveitaram de debilidade dos homens doloridos e se recuperando da circuncisão e mataram todo macho que habitava a terra, tomando Diná de volta, saquearam a cidade, cativaram e saquearam as crianças e mulheres. Jacob irou-se com a atitude dos filhos, visto que seu povo com poucos homens, havia acabado de iniciar uma briga com os Cananeus e Periseus. Diante disso, Jacob ordenou à sua casa que todos tirassem os deuses estranhos que estavam entre eles e assim deram a Jacob todos os deuses estranhos que tinham em seu poder. Por terem feito isso, receberam a proteção do deus de Jacob e não foram atacados no caminho, partiram dali rumo a Bet-El, onde Jacob edificou um altar para YHWH, o deus que apareceu para ele e declarou que a partir de então seu nome seria Israel. De acordo com as notas de Rodapé da Torá, diz a tradição judaica que Diná passou o resto de seus anos encerrada na casa de seu irmão Simão, não teve mais alegrias neste mundo e morreu de tristeza no Egito. Em The Red Tent temos uma outra versão sobre a vida da personagem, a série da Netflix, baseada em um livro do mesmo nome, se apropria da passagem bíblica para narrar a história de Diná e suas mães, sua mãe biológica Lea; Rachel, irmã de Lea e também casada com Jacob; além de Bila e Zilpa, servas de Jacob com quem ele também tem filhos. Os filhos homens de Jacob são bastante conhecidos, visto que cada um 491

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deles dá nome a uma das doze tribos de Israel, porém, a série de televisão visa trazer destaque ao trecho de Gênesis que menciona sua única filha mulher, Diná, mostrando ainda a prática religiosa das mulheres da casa de Jacob ao manterem o culto ligado a divindades femininas proibidas no monoteísmo javista e também a possibilidade de uma mulher decretar o seu próprio destino, ao escolher o homem com quem iria se casar antes de receber a autorização do pai. Diversas questões podem ser discutidas sobre essa narrativa a respeito de como a organização social vigente entre os hebreus implicava na vida das mulheres. Na primeira linha de Gênesis, 34, diz «E saiu Diná», para as notas de rodapé da Torá, essa menção pode ser lida no sentido de Diná ter saído dos costumes e tradições de sua família. Esses costumes e tradições estão diretamente relacionados com a forma como o casamento era encarado nesse contexto. Percebemos na narrativa, quando Chamor procura Jacob, que o casamento é um negócio entre homens, uma negociação que envolve a troca de mulheres para selar alianças, nesse caso, ao deitar-se com Shechem, Diná se adianta na decisão e confronta o poder do patriarca de sua família. Sob essa perspectiva de casamentos como negócio entre famílias ou entre patriarcas, é comum encontrarmos na narrativa bíblica menções a casamentos interculturais, porém existe uma prevalência narrativas sobre casamentos de homens hebreus com mulheres estrangeiras (Zdebskyi 2020a, 47) e não de mulheres hebreias com homens estrangeiros, isso porque além de patriarcal, estamos falando de uma cultura patrilinear, onde os filhos pertenciam e herdavam as origens do pai e não da mãe, assim como no trecho inicial do capítulo 34 de Gênesis é escrito que «E saiu Diná, filha de Lea, que deu à luz para Jacob». Percebemos nisso, outro aspecto sobre a vida das mulheres entre os hebreus: a obrigatoriedade em 492

A presença das mulheres na Literatura e na História

gerar filhos para seu marido; tanto que Jacob, para além de duas esposas também gera filhos com suas servas, uma prática mencionada em outros excertos bíblicos, principalmente em situações onde a esposa era infértil. Nessas narrativas, a infertilidade das mulheres é comumente relacionada a um castigo divino. Na passagem bíblica de Gênesis, 34, percebemos também que existiam interações entre os povos da região, comércio e relações sociais dos hebreus com outros povos (Montalvão 2009, 72), sendo o próprio casamento uma forma de conexão entre diferentes culturas. Porém, também existiam interdições visando manter os costumes locais, como a obrigatoriedade da circuncisão e a adoção do culto centrado no deus YHWH, mesmo dando evidências de que o monoteísmo em torno de YHWH foi um processo que enfrentou resistência, que os «deuses estranhos», divindades atribuídas a outros povos da região continuam a serem cultuados, como Asherá, deusa cananeia ligada a fertilidade (Cordeiro 2007, 2) e Ishtar, deusa mesopotâmica ligada a guerra, fertilidade e sexualidade (Matos 2014, 7). Podemos encontrar tanto nas narrativas sobre Jacob e suas esposas, quanto em outros textos bíblicos, argumentos que visam atribuir às mulheres, principalmente esposas estrangeiras, a responsabilidade por estarem propagando esses cultos interditados entre os hebreus e profanando YHWH (Zdebskyi 2020b, 136). Fontes históricas TORÁ: A lei de Moisés. 2001. São Paulo: Editora Sêfer. THE RED TEND. 2014. Direção de Roger Young. Produção de Anne Meredith. EUA: Lifetime. 493

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Bibliografia geral CAZELLES, H. 1986. História política de Israel. São Paulo: Paulus. CORDEIRO, A. 2007. Ashera: A Deusa Proibida, Revista Aulas, vol. 1, n. 4, p. 1–22. MATOS, S. 2014. A influência das deusas Asherah e Ishtar na construção da imagem materna de Javé em Dêutero-Isaías, Revista Ancora, vol. IX, n. 9, p. 1–20. ZDEBSKYI, J. 2020a. Políticas de alianças na Bíblia: pactos, comércio e casamentos. In: CHAVES, A.; MOURA, R. (Orgs.). Religião, arte e cultura: Olhares interdisciplinares. São Paulo Recriar, p. 37–59. ZDEBSKYI, J. 2020b. As Estrangeiras: Registros Sobre Deusas e Mulheres Subversivas em Excertos Bíblicos, NEARCO, vol. XII, n. 2, p. 135–155.

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‫ › מרים‬Miriam

por Nathália Pawlowski Mariano

Miriam (‫מרים‬, no original em hebraico) é uma personagem mitológica bíblica que, desde o mundo antigo, instiga intérpretes judaico-cristãos e estudiosos devido às características singulares que ela apresenta. É conhecida por várias nomenclaturas: Miriam, a profetisa; Miriam, irmã de Aarão; Miriam, a judia; Maria, a judia; Mariam. A cronologia bíblica indica que a personagem teria vivido no século XIII ou XIV aEC, tendo nascido no assentamento judaico de Goshen, no antigo Egito (região atualmente correspondente ao norte do Cairo) e falecido em Cades (região atualmente correspondente ao norte da península do Sinai). Apresentada no texto bíblico principalmente como profetisa (Êxodo, 15.20) e em relação fraterna com Aarão e Moisés (Números, 26.39; 1 Crônicas, 6.3), Miriam tem espaço reservado na narrativa bíblica especialmente em dois momentos: o primeiro, ao liderar as mulheres israelitas num canto e dança após a travessia do mar dos Juncos (Êxodo, 15.20–21); o segundo, ao contestar a autoridade única de Moisés como profeta e confrontá-lo por seu casamento com uma mulher kushita (designação bíblica para os povos originários de Kush —ou Cuxe—, região atualmente equivalente ao Sudão), atitude que acarretou na punição divina de Miriam com uma doença de pele —geralmente interpretada como sendo lepra— e em seu banimento da comunidade por sete dias (Números, 12.1–1). Por meio dessas duas principais representações de Miriam: 1) profetisa que, junto com Moisés e Aarão, lidera a travessia dos israelitas pelo deserto da península do Sinai e celebra o fim

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do cativeiro no Egito; 2) líder que questiona a autoridade e as ações de Moisés, é que a personagem ganhou amplo espaço na literatura judaica, em escritos cristãos e no debate acadêmico. Na literatura judaica antiga, referências à figura de Miriam são encontradas em fontes datadas do séc. VI aEC ao II EC. Essas fontes incluem a bíblia hebraica (Êxodo, 15.20–21; Números, 12.1,4,5,10,15; 20.1; Deuteronômio, 24.8–9; 26.59; Miquéias, 6.4; 1Crônicas, 5.29), os Manuscritos do Mar Morto (4Q365 6 II, 1–7; 4Q377 2 I, 9; 4Q543 1 I, 6 = 4Q545 1 I, 5; 4Q546 12 4; 4Q547 9 10; 4Q549 2 8), a literatura rabínica (Talmud bavli. Mas. Hullin, 92a; Mas. Megillah, 14a; Mas. Shabbat, 97a; Mas. Ta´anit 9a), os escritos apócrifos (Jubileus, 47.4), a Septuaginta (tradução da bíblia hebraica para o grego koiné ou helenístico), textos de Demétrio, o cronógrafo (Frag. III, 1–3), escritos do poeta judeu Ezequiel (Exagoge, XVIII), trabalhos de Fílon de Alexandria ou atribuídos a ele (De Vita Contemplativa, LXXXVII; Legum Allegoriae, I, 76; II, 66–67; III, 103; De Agricultura, LXXX–LXXXI; Liber Antiquitatum Biblicarum, IX, 10; XX, 8), e escritos de Flávio Josefo (Antiquitates Judaicæ, II, 221; III, 54, 105; IV, 78). Ao todo, Miriam é mencionada doze vezes na bíblia hebraica pelo nome. O relato bíblico de Êxodo 2 (1–10) indica que havia uma garota observando Moisés ser levado pelas águas do Nilo numa cesta e resgatado pela filha do faraó do Egito. Essa garota, vendo o ocorrido, indicou à filha do faraó uma hebreia —Joquebede, mãe de Moisés— para ser ama de leite da criança. A garota descrita nesse episódio é geralmente associada à Miriam, no entanto, não há em Êxodo 2 menção ao nome Miriam que permita fazer essa correspondência de forma conclusiva. Êxodo 15.20–21 traz, pela primeira vez, o nome de Miriam na narrativa bíblica. A passagem atribui à personagem um poema —o Cântico de Miriam—, atesta-lhe função profética e concede-lhe espaço fundamental na 496

A presença das mulheres na Literatura e na História

celebração do fim do cativeiro no Egito. O trecho é composto de uma prosa narrativa (versículo 20) e de um poema (versículo 21), sendo recorrentemente qualificado pelos estudiosos como um épico poético, um hino de celebração ou um texto litúrgico (Burns 1987, 39; Grenzer; Barros 2016, 284–287; Tervanotko 2016, 48). Êxodo 15.20–21 está associado, no texto bíblico, a outro cântico: Êxodo 15.1–19, atribuído a Moisés. O evento descrito em ambos os cânticos narra o triunfo da deidade israelita sobre os egípcios, relatando a fuga dos israelitas do cativeiro no Egito por meio de auxílio divino e sob a liderança dos profetas Moisés (o profeta maior), Aarão e Miriam. Através da figura de Miriam, Êxodo 15.20–21 contém três informações inéditas sobre o espaço do feminino na narrativa bíblica: a passagem apresenta a primeira mulher classificada como profetisa nos sagrados escritos judaicos; em relação com Êxodo 15.1–19, Moisés e Miriam entoam o primeiro poema cantado na Bíblia (Grenzer; Barros 2016, 283; Tervanotko 2016, 48); ao liderar as mulheres numa dança com o batuque de tamborins, Miriam inaugura a primeira celebração com música e dança na tradição bíblica, associando essas categorias ao campo do feminino na cultura judaica antiga. A representação da personagem em Números 12.1–15 adquire, no entanto, nuances diferentes da forma como ela é apresentada no texto de Êxodo. Números 12.1–15 contém a passagem mais extensa sobre Miriam no material bíblico, relatando o castigo divino que ela recebeu ao contestar, juntamente com Aarão, o casamento de Moisés com uma mulher kushita, bem como a autoridade deste como o maior dos profetas (Números, 12.1–2). Sob o gênero de prosa narrativa, quinze versículos de Números 12 descrevem uma espécie de denúncia profética da corrupção das lideranças de Miriam e Aarão, fator que resultou na punição de Miriam com uma 497

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doença de pele (Números, 12.10). Miriam e Aarão, ao questionarem se, tal como Moisés, não seriam eles também profetas, escutam da deidade israelita que ela lhes fala somente pela revelação divina dos sonhos, enquanto com Moisés ela fala diretamente (Números, 12.2–8). O curioso, no entanto, é que o relato bíblico indica que apenas Miriam teria recebido o castigo divino, ficando Aarão livre do mesmo. Por intermédio de Moisés, que teria clamado à deidade israelita cura para a doença de Miriam, a profetisa se livra da enfermidade que lhe foi lançada, mas é punida com sete dias de banimento de sua comunidade (Números, 12.11–15). Sob uma narrativa envolta na valorização e no favoritismo de figuras masculinas, Números 12.1–15 acaba por conferir papel de destaque a Miriam, na medida em que a apresenta em contraste com Moisés e também com Aarão, uma vez que este último foi poupado do castigo divino. A autoridade profética de Miriam e Aarão é colocada em relação à autoridade de Moisés, conduzindo o argumento de que também os profetas são tentados pelo poder e que nenhum deles se iguala a Moisés. Assim, Miriam é representada, em Números 12, como a profetisa que comete excessos, bem como é exemplo do castigo divino que pode acometer os profetas ambiciosos. A representação de Miriam no livro de Números ganha também uma relação com a água devido à narração da morte da personagem. Números 20.1 relata que a peregrinação pelo deserto conduziu os israelitas até Cades, local onde Miriam morreu e foi sepultada. O versículo seguinte (20.2) narra, no entanto, que a água teria parado de jorrar, levando a interpretação rabínica a associar Miriam ao dom do ‹bem›, o qual é representado pela água (Talmud bavli. Mas. Hullin, 92a). A associação de Miriam à água adquiriu, na contemporaneidade, um simbolismo de exaltação do feminino em práticas judaicas feministas. 498

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No debate acadêmico, dois momentos no século XX marcaram uma revisão e ampliação nos estudos sobre Miriam. O primeiro deles se deu sob a influência do movimento feminista dos anos 60 e 70, na tentativa de conferir espaço de fala às personagens bíblicas femininas; o segundo está atrelado aos estudos dos anos 90 até o presente, muito devido ao livre acesso aos Manuscritos do Mar Morto (Tervanotko 2016, 23–24). Sob a luz dos Manuscritos do Mar Morto, Miriam e outras personagens bíblicas femininas ganharam representações em novas fontes e possibilidades de reconfiguração do espaço do feminino na literatura judaica antiga. É, sobretudo, sob as representações de profetisa e personagem singular, que a maior parte dos estudos sobre Miriam é caracterizada (Ackerman 2002; Burns 1987; Gafney 2005; Rapp 2002). Tal fenômeno tem sua razão de ser, uma vez que as imagens de Miriam no texto bíblico e em demais fontes judaicas antigas, a colocam em situações de dualismo. Em todo o material bíblico, Miriam não é associada a um marido ou a filhos, características recorrentes entre as personagens bíblicas femininas. Ela é a única mulher a contestar a autoridade religiosa de Moisés e a única personagem a dividir um canto com ele; é a primeira profetisa a ser citada no texto bíblico e é responsável por inaugurar celebrações com música e dança na tradição bíblica. A complexidade nas representações de Miriam a torna peça substancial para a compreensão dos espaços do feminino na narrativa bíblica. Trata-se de uma personagem não menos que enigmática. Fontes históricas BERLIN, A.; BRETTLER, M. Z.; FISHBANE, M. 2004. The Jewish study Bible. Jewish Publication Society – Tanakh translation. Oxford: Oxford University Press. 499

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‫ › יוכבד ו צפורה‬Joquebede e Zípora

por Raquel dos Santos Funari

Joquebede e Zípora são duas figuras literárias bíblicas femininas presentes nos escritos de tradição hebraica, cristã e muçulmana, assim como na iconografia e na arte. Como grande parte das personagens mais recuadas no tempo mencionadas na Bíblia Hebraica, são criações etiológicas, ou seja, narrativas mitológicas e históricas explicativas de costumes ou tradições (Bellis 2007). Por isso mesmo, são tão potentes como símbolo a ser reapropriado pela posteridade. Joquebede é a mãe de Moisés e Zípora sua esposa e mãe de seus filhos: Gérson e Eliézer. São citadas poucas vezes na Bíblia Hebraica, mas comentadas pelos rabinos e pelos pensadores cristãos, em particular para tentar explicar a narrativa bíblica. Joquebede (Num. 26:59) ‫יוכבד‬, Iokeved, Javé é poderoso (‫כבוד‬, kavod, pesado, daí, respeito, glória) é apresentada como filha de Levi, nascida no Egito e mãe de Míriam, Aarão e Moisés. Como o faraó havia determinado que os recém-nascidos hebreus deviam ser mortos, Joquebede colocou o seu filho de três meses em um cesto. A filha do faraó o encontra e decide adotá-lo como seu. Esse menino foi chamado Moisés e para amamentá-lo uma hebreia, a própria Joquebede, foi chamada. Joquebede aparece como descente de Levi e mãe de Aarão, origem dos levitas (sacerdotes), da profetiza Míriam e do caçula Moisés, o maior profeta e libertador dos hebreus da escravidão no Egito. Por isso, foi considerada matriarca e mãe de todos os hebreus. Na iconografia cristã, aparece também como mãe de Moisés e à semelhança de Maria, mãe de Jesus, aquela que não teme, tem

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fé ou confiança, ante o inesperado. Aspectos que aparecem com ainda mais destaque na tradição islâmica (Surata 28; Yūkābid, nome de Joquebede em árabe), na medida em que Deus revela e inspira a mãe de Moisés a ter confiança, frente ao vazio que sentia em seu coração, ao colocar o menino Moisés no cesto, a não ter medo do que viria. A maior ressonância contemporânea está no filme clássico O Príncipe do Egito, no qual Joquebede se destaca por cantar a canção de ninar, na voz de Ofra Haza, a famosa cantora israelense, em dezoito idiomas diferentes. Joquebede é uma figura mitológica de grande inspiração. Zípora ‫( צפורה‬Tsiporá), Σεπφώρα, Sepphōra, em grego, «ave, pássaro fêmea», em português proparoxítona (Zípora ou Séfora) é citada de forma explícita (Exo. 2, 11–21; 4, 24–26; 18, 2) e talvez referida como mulher cuxita (etíope) em Números (12, 1). Na narrativa bíblica, Zípora, como outras matriarcas, não é uma hebreia, mas filha de um sacerdote (Jetro) de uma divindade local de Midiã, no noroeste da Península Arábica, que a entrega como esposa a Moisés e a qual gera dois filhos de Moisés, Gérson («estrangeiro lá») e Eliezer («meu Senhor ajuda»). A referência seguinte (Exo. 4, 24–26) sempre gerou dúvidas e comentários: Numa hospedaria ao longo do caminho, o Senhor foi ao encontro de Moisés e procurou matá-lo. Mas Zípora pegou uma pedra afiada, cortou o prepúcio de seu filho e tocou os pés de Moisés. E disse: ‘Você é para mim um marido de sangue!’. Ela disse ‘marido de sangue’, referindo-se à circuncisão. Nessa ocasião o Senhor o deixou.

A passagem mostra que o filho de Moisés não fora circuncidado e Zípora celebra a aliança da circuncisão, faltante para o seu compromisso com o Deus dos hebreus. Chama a atenção o papel de Zípora, ao atuar como oficiante da circuncisão e ao aplacar o Senhor (Kadari 2021). Filo de Alexandria 504

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(15 aEC–45 EC) não menciona este episódio na sua Vida de Moisés, mas tanto o Talmude (Nedarim 31b) como na literatura cristã (Jacobs 2008), como já Tertuliano (160–220 EC), comentam diversos aspectos desta passagem. A erudição moderna trata de questões variadas, a começar pelos pés de Moisés, já que se pode considerar uma metáfora para o seu sexo, tomados como eufemismo para indicar os órgãos sexuais masculinos. A extensa leitura feminista ressalta o papel ativo e mesmo decisivo da mulher neste episódio, já que, sem essa intervenção e ousadia, Moisés teria sido morto por Deus e não haveria toda a sequência. Algumas interpretações, desde a Antiguidade, introduziram, no lugar de Deus, um anjo de Deus, para explicar como o próprio Deus deseja a morte de Moisés e que é Zípora, uma mulher, a mudar sua decisão. Mas o texto não deixa dúvida quanto a isso, refere-se a Deus mesmo. Zípora, nesta interpretação feminista, teria afrontado a intenção divina, além de efetuado o ritual de circuncisão, algo reservado a homens, e de motu proprio, sem intervenção masculina (Robison 1986). A terceira referência à esposa de Moisés tem sido, também, lida de forma inovadora, e associada à passagem acima mencionada. Em Números (12, 1), não se menciona o nome, mas apenas que Moisés se casara com uma mulher cuxita (Shapiro 1996). Desde tempos antigos, discutiu-se sobre se seria uma outra esposa, ou sobre como uma midianita, Zípora, poderia ser descrita como cuxita (Winslow 2006). Na posteridade, a retratação da esposa de Moisés como uma negra foi difundida, como na pintura de Jacob Jordaens (1593– 1678), Moisés e sua esposa etíope (1645–1650). Etíope foi uma tradução do termo original cuxita, difundida pela versão grega do século III aEC da Septuaginta e, depois, pela Vulgata latina. O termo etíope era usado para designar africanos de pele escura, em geral subsaarianos. A XXV Dinastia egípcia 505

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(790–656 aEC) era cuxita (Núbia, no atual Sudão) e pode imaginar-se que, quando da redação do Pentateuco, no qual estão o Êxodo e Números, após o Exílio Babilônico (após 520 aEC), pudesse haver essa assimilação de midianita e cuxita. Também neste caso, leituras feministas e antirracistas modernas ressaltam a presença feminina e africana, nem sempre reconhecida por interpretações racistas e sexistas mais correntes (Pardes 1992). Ou, como mostra Ilana Pardes, subestimou-se o protagonismo feminino, como o caso de Sigmund Freud (1939 29). Pardes (2012 14) conclui que: «It is a woman with the powers of a goddess who takes Moses under her wings and forces Yahweh to let him go». Em nossa tradução: «É uma mulher (sc. Zípora) com poderes de uma deusa que abriga Moisés e força Javé a deixá-lo sair». Deusa, palavra forte, que dá bem o tom dessas novas interpretações. A poeta feminista estadunidense Enid Dame (2007) (1943–2003) escreveu um poema, como se fosse de Míriam, irmã de Moisés, para Zípora, sua esposa, cujo final a revela como uma mulher independente: But then you surprised us all. You simply left. Detached yourself from the man and his drama (the drama that gave us sustenance). He foamed like a burning mountain. But you were serene as marble no fire could touch. «They need me back home,» you said. Then you gathered the forces you’d always owned, a dark-eyed boy holding each hand, helping you with the suitcases, you walked out of our story. A breathtaking exit. Cool lady sister to another family, mirror I never looked into, that’s when I started to like you.

Mas, então, surpreendeu a todas as pessoas. Simplesmente partiu. Separou-se do homem (sc. Moisés) e seu drama, o drama que nos sustentou. Ele espumou como uma montanha em chamas. Mas, você foi serena como mármore inatingível pelo fogo. «Precisam de mim em casa», você disse. Aí, junto às forças que sempre teve, um garoto de olhos escuros segurando cada mão (sc. Gérson e Eliezer), ajudando com as malas, e você saiu da nossa narrativa. Uma saída de tirar o fôlego. Calma irmã de 506

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outra família, espelho que nunca olhei, foi aí que comecei a gostar de você (Tradução da autora).

Para além da academia ou da cultura erudita, Zípora tem tido grande difusão, em particular na cultura de massa. Marek Halter publicou Zípora, esposa de Moisés (2005), um best-seller no qual ele a imagina como uma cuxita negra, filha adotiva do midianita Jetro. A mais conhecida, talvez, seja aquela que aparece no filme O Príncipe do Egito, caracterizada pela tez escura e pelo tema da confiança (emunah). Na animação, voltada para adultos e crianças simpáticos ao tema bíblico, a narrativa quase que supõe que não se conheça bem o texto original, na medida em que todo o enredo é distante da literalidade bíblica. Zípora aparece com o maior destaque na narrativa, sendo mesmo muito mais segura de si que o personagem principal, Moisés (Funari 2012). Não por acaso, aparece com mais destaque, entre as personagens do filme, nas divulgações da animação e na memória das pessoas que assistem à ficção. Michelle Pfeiffer empresta a voz a ela em inglês, Kika Cristão (canções) e Vera Miranda (diálogos) na versão brasileira. No Brasil, a telenovela Os Dez Mandamentos (2015) também destacou Zípora (Giselle Itié) como uma mulher forte, o que parece indicar uma tendência contemporânea de valorização feminina, também no Brasil. Parte importante do público de Os Dez Mandamentos está composto por mulheres que são as responsáveis familiares, ou chefes de família, e há, assim, uma acolhida ao protagonismo feminino apresentado por Zípora. Isso transparece, também, em Joquebede (Samara Filippo, quando jovem e Denise Del Vecchio, na idade madura) na mesma telenovela, assim como em outras personagens femininas. Personagens literárias como Joquebede e Zípora mostram como o caráter ficcional não deixa de produzir imensa relevância, posteridade e reinterpretação e como podem servir ao convívio e ao protagonismo feminino. 507

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Cinco Filhas de Salfaad

por Joel Antônio Ferreira

Queremos ter direito à propriedade da terra! As jovens Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa se apresentaram diante de Moisés, do sacerdote Eleazar, dos líderes e suas comunidades na tenda da reunião. Elas narraram que o pai delas morreu no deserto (bemidbar) sem deixar filhos homens e que ele não era do grupo que se rebelou contra Yahweh. Então, elas colocaram uma questão nevrálgica: o nome do pai iria desaparecer porque elas eram todas filhas mulheres. Elas exigiram: «dai-nos uma propriedade!». O texto diz que Moisés colocou a situação para Yahweh que respondeu que as filhas de Salfaad falaram corretamente e que, por isso, elas tinham que receber uma «propriedade como herança» no meio dos irmãos do pai delas. Nesse momento, muda toda a lei. O v. 8 diz que se um homem morrer sem deixar filhos, a herança irá à filha. Aqui se abre o estatuto de direito para o/a parente mais próximo/a. Na perícope (Nm 27,1–11) aparecem dois pontos que balançaram a cultura e os costumes das tribos do deserto: a) no meio da experiência patriarcal somente os filhos tinham direito à repartição das terras; b) a reivindicação das cinco moças foi algo totalmente novo e impensável. As femininas exigiram a herança da terra. Vê-se aqui (Nm 27,2) uma experiência democrática. Elas foram às autoridades na «tenda da reunião», e, na fala, elas partiram de um fato da vida (situação calamitosa das cinco irmãs). A seguir (v.3), o clamor girou em torno dos direitos das mulheres (King 1969). Argumentaram que a morte do pai não eliminou o direito de herança delas.

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À toda comunidade elas argumentaram que o nome do pai iria desaparecer (v.4) e que, então, elas queriam que seu nome ficasse perpetuado, porque elas tinham o direito à herança da terra (Osty; Trinquet 1973, 338). A rebeldia feminina foi colocada às claras. Elas exigiam o direito à propriedade da Terra (Moreira 2021). Há um salto significativo na assembleia (vv 5–7): Moisés e as lideranças escutaram as cinco filhas. Após os debates, o maior líder fica a sós com Yahweh que se posicionou pelas cinco filhas. Ele fez a preferência pelas femininas, exigindo a justiça de gênero. A perícope garante (vv. 8–11) que a legislação da lei da herança foi assegurada numa escala: filhos, filha, irmãos, tios paternos e, enfim, os parentes mais vizinhos pela ordem (Boschi 1983, 213). Privilegiando as mulheres, a lei protegeu a família, pois esta era a base dos clãs e das tribos (Tob 1980, 315). Perícope escrita pelos «redatores finais» sete séculos depois É preciso situar na história a seguinte explicação: cem anos após o cativeiro da Babilônia, pelos anos 458 aEC, enviado pelo imperador da Pérsia, veio, com toda a força, um certo sacerdote chamado Esdras. Ele liderou um grande grupo que retornava do exílio. Este grupo se chamava golah. Esdras agiu com um autoritarismo agressivo, desrespeitando os hebreus/ israelitas que não foram exilados: o povo da terra (ham ha’aretz). Estes, continuando sempre no espaço territorial, não tiveram problemas com os estrangeiros. Muitos hebreus se casaram com estrangeiras. Esdras, violentamente, expulsou as mulheres estrangeiras com seus filhinhos, endureceu a postura patriarcal e criou um «judaísmo» sectário (Esd 9–10). O seu grupo e ele 512

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criaram um sistema terrível. Após o longo governo de Esdras, ainda dentro do Império Persa, algumas escolas sacerdotais tomaram linhas mais fechadas e outras se abriram. O texto que estamos vendo aqui é de uma linha sacerdotal mais aberta. Esses redatores, então, eram de uma escola sacerdotal (P) de Jerusalém. Escreveram, provavelmente, nos sécs. V ao IV, época do imperialismo persa. Os líderes prestavam contas aos persas. Para os israelitas, agora judeus, os líderes do novo judaísmo precisavam dar legitimidade teológica, ideológica e pastoral para se afirmarem no poder. Por isso, era importante, nas narrativas, usarem os nomes dos líderes do passado, como Moisés e Eleazar (Nm 27,2), para mostrar que os grupos do deserto (tribalismo) em marcha iam muito bem. Os leitores dos sécs. V ao IV, ao lerem o passado, deveriam se simpatizar com as medidas das autoridades que se espelhavam em Moisés, em Josué, etc. Essa linha de redatores finais dos textos bíblicos sentiam o peso dos tempos de Esdras. Precisavam «amansar» a situação. As narrativas eram elaboradas como se fossem, realmente, daqueles antigos líderes na caminhada pelo deserto. Em Nm 27,2, quando as moças se apresentaram na sala de reunião, cita-se o sacerdote Eleazar. Não havia sacerdotes nas experiências do deserto. Foi citado o seu nome para dar força à escola sacerdotal dos sécs. V ao IV (L’Heureux 2007, 198). Com isso, fica claro que a teologia presente no livro dos Números não é do tempo de Moisés, mas da época da escola sacerdotal que estava escrevendo as memórias. Porém, é preciso frisar que as memórias populares femininas orais chegaram bem vivas ao tempo dessa escola. Repare-se que na redação do Livro de Números tem 36 capítulos: o último bloco se chama «preparação para a conquista e a divisão da terra» (Nm 25,19–36,13). Nesse bloco tem «genealogias», um gênero literário típico dos grupos sacerdotais dos 513

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sécs. V ao IV. As genealogias contemplavam quase somente os masculinos. Porém, as cinco irmãs apareceram em Nm 26,33. Foi espantosa a presença delas nas genealogias. Também, as cinco moças aparecem à frente (Nm 36,1–12). Quer dizer: a história das cinco irmãs foi algo extraordinário na história dos hebreus/israelitas. Elas eram lembradas nos contos e nos cânticos, oralmente. Os sacerdotes de sete séculos depois delas tinham que reconhecer que elas tiveram uma exemplar vitória sobre os masculinos. Como não podiam apagar as memórias, os sacerdotes colocaram, por manuscrito, a história delas. Porém, tiveram cuidado, no fim (Nm 36,6), em lembrar que, de fato, elas conquistaram o direito à herança da terra, mas, fruto de uma nova assembleia, elas deveriam se casar somente com homens da própria tribo, para que as heranças não fossem para fora da tribo. Uma vitória que entrou para a história As cinco moças, caminhando com os hebreus pelo deserto, perderam o pai. Antes, perderam a mamãe. Com isso, não podiam usufruir da lei do levirato que poderiam salvá-las. Elas estavam, absolutamente, inseguras nos níveis jurídico e humano. Saindo da vida passiva, resolveram se rebelar e questionar as consequências patriarcais da questão da herança da terra, e, mais ainda, fizeram com que o casamento decidido pelo patriarca ou pelo pai, caísse por terra. Ao pedirem uma reunião com as lideranças e a comunidade, fizeram germinar o princípio de uma democracia tribalista. Nesse encontro, foi feita uma análise de conjuntura patriarcal e uma exigência «dai-nos uma propriedade». A Bíblia não conhece uma postura feminina grupal como essa das cinco irmãs. Ao soltarem a voz e ocuparem o espaço elas criaram, com suas decisões, um fenômeno histórico. 514

A presença das mulheres na Literatura e na História

A luta foi contra o patriarcalismo que desumanizava as mulheres. Os termos «casa patriarcal» e «clã do pai» aparecem no final (Nm 36,1–12), por várias vezes. Embora o texto final (sécs. V ao IV) fosse sacerdotal, os redatores tiveram que gravar os nomes de Maala, Noa, Hegla, Melca e Tersa. Elas denunciaram a injustiça (Nm 27,1–7) rebelando-se por serem excluídas como mulheres e não terem o direito da terra. Elas gritaram: «queremos ter direito à propriedade da terra» (Nm 27,4). A experiência delas relativizou o patriarca. Elas se dirigiram à comunidade que na pessoa do líder Moisés, consultou a Yahweh. A decisão final era dele que optou pelas cinco mulheres. Isso foi um recado para os redatores finais de que as autoridades religiosas, principalmente, da linha de Esdras, não eram divinas. Elas ganharam a causa (a herança do pai). Foi uma luta pela igualdade e dignidade entre homem e mulher (Moreira 2021). Como consequência, houve outra vitória contra o patriarcalismo: elas conseguiram a liberdade de se casar com quem elas quisessem dentro da tribo e não por imposição do patriarca (Nm 36,6). Também foi outro recado para o grupo sacerdotal patriarcalista que nos sécs. V ao IV estava colocando a mulher em total submissão. A vitória das cinco irmãs foi tão marcante que a genealogia teve que abrir exceção e colocar os nomes femininos das cinco filhas de Falaad (Nm 26,33) e, no final do livro dos Números (Nm 36,11) elas voltaram a ser lembradas quanto à questão do casamento dentro da própria tribo. De um lado, os redatores finais usaram os fatos da vida do tempo do tribalismo e os embelezaram a fim de justificar atitudes suas para conquistar a simpatia dos habitantes dos sécs. V ao IV; de outro lado, as memórias populares orais tão vivas alertaram os 515

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redatores finais de que o patriarcalismo tinha que ceder em muitas coisas (herança feminina, direito de participação nas reuniões decisivas, liberdade de casamento para as mulheres etc.). A perícope sobre as cinco filhas de Salfaad mostra que a história está nas mãos de Yahweh. Ele é o autor da lei que libertou as mulheres. Se a lei humana ridicularizava as femininas, Deus se inclinou para elas. Com isso, a herança da terra é para as hebreias também, porque a terra é dom de Deus (Schökel; Mateos; Valverde 1970). A herança feminina da terra tornou-se uma Lei de Deus. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2002. São Paulo: Paulus. BIBLIA HEBRAICA STUTTGARTENSIA (BHS). 1997. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. TOB: TRADUCTION OECUMÉNIQUE DE LA BIBLE. 1980. Ancien Testament. Paris: Les Ed. du Cerf. Bibliografia geral BOSCHI, B. 1983. Numeri. Roma: Ed. Paoline. KING, P J. 1969. Los Numeros. Santander, Ed. “Sal Terrae”. L’EUREUX, C. E. 2007. Números. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Eds.). Novo Comentário Bíblico S. Jerônimo: Antigo Testamento. Santo André/São Paulo: Academia Cristã/Paulus, p. 197–221. MOREIRA, G. 2021. Mulheres na Luta sempre, na Bíblia e Hoje. In: Instituto Humanitas Unisinos. S. Leopoldo: IHU Adital. OSTY, E.; TRINQUET, J. 1973. La Bible. Paris: Seuil. SCHÖKEL, A.; MATEOS, J.; VALVERDE, J. M. 1970. Pentateuco, II Levítico, Números, Deuteronomio. Madrid: Ed. Cristiandad. 516

‫ › רחב‬Raab

por Sue’Hellen Monteiro de Matos

Raab, em hebraico ‫ — רחב‬Raḥab, é uma personagem da tradição judaico-cristã apresentada na Bíblia Hebraica (Primeiro Testamento), no livro de Josué, que abriga os espias israelitas em sua casa, protegendo-os do rei de Jericó. Seu feito é rememorado nos textos do Segundo Testamento. Seu nome apresenta algumas variações quando traduzido para o grego. Na Septuaginta Ρααβ — Raab, no evangelho de Mateus, ‘Ραχάβ — Rhacháb, nas epístolas de Tiago e aos Hebreus, ‘Ραάβ. De acordo com a narrativa do segundo capítulo de Josué, nos tempos que antecedem a conquista da terra de Israel —e aqui, considera-se apenas a narrativa bíblica, e não as informações arqueológicas sobre o surgimento de Israel e Judá— Josué enviou dois espias para Jericó a fim de sondar a cidade. Chegando à cidade, os espias foram até a casa de Raab, a prostituta, conforme é identificada pela narrativa. No entanto, a notícia de haverem espias na cidade de Jericó chegou aos ouvidos do rei, o qual enviou homens até a casa de Raab para averiguarem a informação. Ela, por sua vez, escondeu os espias no eirado, e passou informação falsa aos soldados sobre o paradeiro dos espias. Após a saída dos soldados, ela vai ao encontro dos espias, informando-os o que acontecera e reconhecendo que YHWH havia dado a terra ao povo dos espias —o que, segundo a narrativa, viria a tornar-se Israel— pois, «YHWH, o vosso Deus, ele o Deus nos céus em acima, e sobre a terra embaixo» (Js 2,11b). Raab reconhece a divindade israelita como verdadeiro Deus e suplica que ela e sua casa sejam protegidas

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da destruição de Jericó. Por sua afirmação de fé, os espias declaram que se Raab não denunciar a ação deles e YHWH vos der a terra, eles usarão de misericórdia e fidelidade para com ela e sua casa, porém, se ela denunciar, o pacto está suspenso. Raab, então, sela o acordo e os despede possibilitando a fuga pela janela. Raab poderia muito bem entregar os planos israelitas ao rei de Jericó, mas não o fez. Cumpriu com sua palavra, possibilitando a conquista da terra pelos israelitas, conforme relato bíblico. Deste modo, quando Jericó é sitiada e destruída, miraculosamente ao som da sétima trombeta, segundo a narrativa (cf. Js 6,1–21), Raab e sua casa foram as únicas pessoas que sobreviveram à destruição da cidade, pois escondeu os espias (Js 6,22–25). Raab, portanto, não foi apenas uma mulher caridosa com os espias, mas foi aquela que garantiu sua própria vida e a de sua família. Se por um lado, pode-se compreender Raab como uma mulher que traiu o seu povo, por outro lado, seu nome foi lembrado por gerações, sendo inclusive citado nos textos do Segundo Testamento, inclusive na genealogia de Jesus. De acordo com o evangelho de Mateus, Raab, uma mulher estrangeira passa a pertencer ao povo israelita. Casa-se com Salmom e gera a Boaz, tataravô de Davi, e, assim, está inclusa no relato da genealogia de Jesus (Mt 1,5). As referências à Raab não se findam no evangelho de Mateus. Ela faz parte da chamada «lista dos heróis e heroínas da fé» da epístola aos Hebreus (Hb 11,31). Foi pela fé que não morreu com os desobedientes. Nesta perspectiva da fé, Raab também é recordada na epístola de Tiago (Tg 2,25) como exemplo de fé e ação. Para o autor bíblico, a fé de Raab é que a levou a agir. 518

A presença das mulheres na Literatura e na História

As atuais discussões exegéticas acerca de Raab, trazem o questionamento sobre o próprio termo zonah, com o qual ela é apresentada na narrativa. As traduções bíblicas traduzem o termo hebraico zonah por «prostituta» , derivado do verbo znh «prostituir». Este significado tradicional recebeu grande influência da tradução da Septuaginta, a qual traduz o termo hebraico pelo grego pórne, referindo-se à prostituição no período helenístico do 2º século aEC, época da tradução da Septuaginta. A leitura da Septuaginta, portanto, influenciou a interpretação dos textos bíblicos ao longo da história judaico-cristã. Entretanto, a pesquisa bíblica tem buscado ampliar o significado para o termo. Estudos recentes demonstram que o substantivo hebraico não deveria ser traduzido por «prostituta», mas sim por «autônoma» ou «independente», como seria o caso de Gomer, esposa de Oséias. De acordo com a pesquisa de Monika Otterman (2006), Gomer, filha de Diblaim, ou como ela traduz, «filha dos bolos de figos», seria uma mulher autônoma que sabe preparar os bolos de figos e utilizá-los em ritos cultuais e curadores, provavelmente, uma sacerdotisa da Deusa Asherah. Assim é Raab, uma mulher autônoma. A pesquisa de Mercedes Budallés Diez (2002), por exemplo, aponta que Raab provia o seu próprio sustento sem depender do pai ou de marido, usando a sua própria casa como local de trabalho, no caso, para secar o linho. Raab, é, uma mulher da casa, rompendo o padrão patriarcal do pai ser o chefe da casa. Isto fica nítido na narrativa quando a própria Raab é quem negocia a sobrevivência de sua família quando acontecer a tomada de Jericó. Com os exemplos de Gomer e Raab, conclui-se que, no termo zonah, além das profissionais do sexo, que também são livres, o termo hebraico compreende também a mulher 519

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solteira, livre para viver sua vida sem estar sob a tutela do pai, irmão, ou do marido, economicamente autônoma, e, portanto, independente. Por fim, seja Raab autônoma ou uma prostituta autônoma, é uma mulher estrangeira que tem sua memória registrada nos textos sagrados judaico-cristão. Uma mulher marginalizada foi fundamental para a tomada da terra do povo eleito de YHWH, conforme a narrativa bíblica. Fontes históricas ANTIGO TESTAMENTO INTERLINEAR HEBRAICO– PORTUGUÊS: VOLUME 2 – PROFETAS ANTERIORES. 2014. Tradução de Edson de Faria Francisco. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil. Bibliografia geral BUDALLÉS-DIEZ, M. 2002. Raab – Mulher da Vida. Uma proposta de leitura feminista da mulher zonah no Antigo Testamento a partir da história de Raab (Josué 2). Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião defendida na Universidade Metodista de São Paulo – UMESP. OTTERMANN, M. 2006. “Eu sou tua Anat e Aserá...”. YHWH e Aserá (não só) no Livro de Oséias. In: DREHER, C. A., et. al. (Orgs.). Profecia e Esperança: um tributo a Milton Schwantes. São Leopoldo: Oikos, p. 273–282.

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‫ › רות‬Rute

por Joel Antônio Ferreira & Gláucia Loureiro de Paula

Veio uma família (Elimeleque, Noemi, Maalon e Quelion) de Belém de Judá para uma terra estrangeira (Moab). Os filhos casaram-se com as estrangeiras Orfa e Rute. Morreram o marido e os dois filhos de Noemi. Sem eles, ela resolve voltar para Belém. Uma das noras (Orfa) ficou em Moab e a outra (Rute), decididamente, acompanhou Noemi. Rute fez um ato de fé profundo: «para onde fores, irei também, onde for tua moradia, será também a minha; teu povo será o meu povo e teu Deus será o meu Deus. Onde morreres, quero morrer e ser sepultada...» (Rt 1,16–17b). Rute é apresentada como estrangeira, «moabita», viúva e pobre (Rt 2,10). Com uma atitude diferente de Orfa, escolhe acompanhar a sogra e dividir com ela a sorte e o destino. Mostra-se solidária, a ponto de dispor-se a se tornar judia e adoradora de YHWH (Rt 1,16). A solidariedade de Rute é radical e incondicional, decidindo acompanhar a sogra até a morte (Rt 1,17), sem exigências ou contrapartida. Até o fim é solidária com a sogra. Essa notícia inicial do livro que liga os acontecimentos com o período dos juízes, não deve ser interpretada como que o mesmo tenha sido escrito como apêndice do livro dos Juízes, mas serve de parâmetro para apresentação de outras mulheres envolvidas na história do povo hebreu (de Deus). O tempo dos juízes é o pano de fundo, é o referencial de sociedade para um povo que almejava ser resgatado e reconstruído. Mesters (1991, 12) faz uma pequena referência à época da redação de Rute, quando diz

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que é «opinião comum e confirmada de que o livro de Rute foi escrito depois do exílio, em torno do ano 450 aEC, isto é, 100 anos depois do fim do cativeiro» (p.12). As ciências bíblicas afirmam que no início (Rt 1,1a) e no fim do livro de Rute (Rt 1,17d–22) foram colocadas duas glosas (interferências dos redatores finais) para tentar dizer que o livro foi escrito muito antes, no tempo dos juízes. Com isso, o desumano Esdras não era afetado pelo projeto de Rute. Delazari (2017, 34) afirma que o livro coincide a época dos projetos de Esdras e Neemias (458–398 aEC), a reconstrução de Jerusalém, em especial o argumento de que Esdras tem um projeto de proibir os judeus de se casarem com mulheres de outras raças, chegando a expulsar as mulheres e os filhos que não fossem judeus (Esd 9–10), pois este acreditava que a pureza da raça era critério essencial para a prosperidade de Judá. Richter Reimer (1985, 39) diz que «as referências concretas em relação à autoria são de que Rute foi escrito por um camponês, por um levita ou por mulheres sábias que tinham a experiência do campo». Era, possivelmente, o tempo de Esdras (458 aEC) ao de Neemias (445 aEC). Por isso, pode-se situá-lo no contexto da política internacional (Pérsia) e do novo povo judeu liderado por Esdras. Após o cativeiro da Babilônia (586–538), quando a Pérsia ocupou o senhorio do mundo da época e autorizou que os descendentes da antiga elite de Israel retornassem às suas terras (Judá), agora com prestígio e autoridade, esse grupo da Golah em 458 aEC, se impôs na Palestina. Os que retornaram (Golah) ficaram aturdidos com as experiências de abertura dos antigos israelita/hebreus que ficaram na terra, na convivência pacífica e afetiva com os estrangeiros. Em nome de YHWH, os membros da Golah tomaram atitudes enérgicas contra o ‹povo da terra› e seus amigos étnicos. Criou-se a ideologia da intransigência contra os estrangeiros, 522

A presença das mulheres na Literatura e na História

contra as mulheres e contra seus filhos nascidos de pais estrangeiros. Nessa ideologia da incomplacência, a partir do livro de Esdras (Esd 9–10), pode-se ver, com evidência, a tomada do poder do grupo sacerdotal, a discriminação do ‹povo da terra› (ham ha’aretz) e a rejeição total dos estrangeiros. Ao retornarem, encontraram a antiga terra habitada pelo ‹povo da terra›: sem a intolerância dos antigos dominadores de Judá e Jerusalém, aquele povo da terra, tranquilamente, absorveu outras etnias e teve abertura de gênero para os povos dos arredores (Esd 9, 1: moabitas, amonitas, cananeus, egípcios, amorreus, jebuseus, ferezeus, heteus, etc.). A camaradagem entre os israelitas/ hebreus com os estrangeiros era interessante e tranquila (Ferreira 2020, 445). O livro de Rute, já foi dito, evoca o tempo dos juízes para repropor algumas utopias que eram muito vivas no passado, no tempo do tribalismo dos juízes. Na pessoa de Rute, são evocadas algumas leis que eram dinâmicas e que poderiam ser retomadas nos tempos difíceis de Esdras: a) a lei do levirato: forma de contrair casamento era através da lei ‹levirato›, que traduz o hebraico yabam, «cunhado». Era uma lei que visava proteger a mulher, caso o seu marido morresse sem deixar filhos, seu irmão seguinte, ou outro parente tinha a obrigação de se casar com a viúva a fim de gerar filhos para perpetuar o nome do falecido (Dt 25,5–10). b) A lei da respiga: é o direito dos pobres de respigar (Carrasco 2002, 620). Uma lei humanitária que permite aos pobres rebuscar a área depois que os trabalhadores fizeram a colheita. Rute pede a Noemi permissão para «respigar» em alguma lavoura cujo proprietário ou funcionários a recebessem. Embora pareça como mendicância, essa prática era não só aceita como garantida por direito ao estrangeiro, órfão e viúva. c) A lei do resgate: era a evidência do papel familiar de solidariedade, os membros da família deviam uns aos outros, ajuda e proteção (Nm 35,19; Lv 25,23–25). Essa obrigação recai sobre o parente mais próximo. Essa lei 523

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encontra-se ilustrada no livro de Rute. Noemi reconheceu em seu benfeitor um dos que tinham direito/obrigação de proteção e de resgate sobre elas, um go’el. Este era o termo que significava o «parente resgatador» ou por «resgatador» (Lobosco 2005, 25). Boaz então, pelas três leis, torna-se um go’el de Noemi e Rute. O encontro de Rute e Boaz mostra um modo de vida comunitário e aberto, totalmente diferente do sistema de Esdras. Este encontro do casal envolveu, comunitariamente, Noemi (sogra), as mulheres de Belém, as dez testemunhas, enfim toda a pequena cidade que tem, agora, uma vida viva, ao contrário da capital Jerusalém, uma cidade desumana. Rute é identificada por sua bondade (Rt 2,6–11). A voz de Boaz revela quem era Rute: «Todo mundo na porta da cidade sabe que tu és uma mulher de valor» (Rt 3,11). Vitório (2008, 91) descreve que a proclamação das mulheres, no final da narração, revela um dado da personalidade de Rute, descoberto no trato com a sogra: ela vale para ti (Noemi) mais que sete filhos (Rt 4,15). É a expressão metafórica de sua bondade. A escolha de Rute mostra o compromisso que assumiu com sua sogra, com seu povo e com seu Deus. Ela demonstrou desejo de partilhar a sorte de sua sogra, interessada por seu bem-estar. Rute se casa com Boaz, parente de Noemi, por parte do marido, do clã de Elimelec. Era um homem economicamente equilibrado, «senhor de muitos bens», agricultor, proprietário (Rt 2,1–5). Percebe-se com clareza ser livre de discriminação a estrangeiros, pois dirige-se a Rute como «minha filha», mesmo sendo ela uma moabita, a trata com amor. Concorda com sua posição de go’el, a partir da palavra de uma estrangeira. De Rute (estrangeira) e Boás (judeu) vem o fruto, o Obede (servidor) que nasce dentro de uma comunidade simples (Rt 4,13–17b). O nome foi dado pelas mulheres de Belém. Diferentemente de Esdras, aqui as mulheres têm vez e voz. 524

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A ação de Rute no ato de respigar mostrou que ela toma a iniciativa de trabalho para sua subsistência, e paralelamente resgata o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva (Brenner 2002, 12). Ao vencer-se a si mesma, à sua condição de mulher, pobre, viúva e estrangeira moabita, Rute torna-se protagonista de uma história em que assume a responsabilidade de fala e feito. Sua atitude lhe trouxe reconhecimento por parte de Boaz e a encaminhou a ocupar posição importante na história. Rute e Noemi apresentam-se como modelo de superação das dificuldades, diante de situações adversas souberam tomar decisões sábias. Entende-se que Rute é uma mulher do seu tempo, portadora de fala e ação, e conhecia seu valor. Ela reflete as mulheres que poderiam ser encontradas nos campos e nas cidades, seja em Israel, seja no mundo estrangeiro (Moab). É um exemplo de superação e um chamado à fraternidade e à solidariedade, é um exercício de ressignificação das relações humanas em defesa da vida e do direito de duas mulheres, seus homens, sua comunidade, sonhos e limites. Rute é ensinamento a mulheres e homens de que YHWH não faz acepção de pessoas, e vê mulheres e homens em posição de igualdade, como pares, para caminharem juntos, apoiando-se um no outro e um ao outro. Isso não é privilégio apenas para Israel, é modelo a ser seguido por todos, em qualquer tempo. Fontes históricas BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2000. Sociedade Bíblica Católica Internacional. São Paulo: Ed. Paulinas. BÍBLIA HEBRAICA STUTTGARTENCIA. 1997. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. Bibliografia geral BRENNER, A. 2002. Rute a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas. 525

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CARRASCO, J. M. 2002. História episódica. Tradução de José Joaquim Sobral. In: OPORTO, S. G.; GARCIA, M. S. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Editora Ave-Maria, p. 615–618. DELAZARI, N. M. 2017. A resistência de Rute e das mulheres. São Leopoldo: CEBI. FERREIRA, J. A. 2020. A preferência de Yahweh foi pelos detentores do poder (Esd 9–10) ou pelos humilhados (Rute)? uma glosa que quis mudar tudo (Rt 4,17d–22), Pistis práxis, vol. 12, n. 2, p. 443–460. LOBOSCO, R. L. 2005. A solidariedade Familiar, Estudos Bíblicos, n. 85, p. 22–29. MESTERS, C. 1991. Rute, uma história da Bíblia. Pão, família, terra! Quem vai por aí não erra. São Paulo: Paulinas. RICHTER REIMER, I. 1985. Contexto histórico do livro de Rute. Trabalho de Conclusão de Curso em Teologia apresentado na Escola Superior de Teologia de São Leopoldo – EST. VITÓRIO, J. 2008. A narratividade do livro de Rute, Estudos Bíblicos, n. 98, p. 85–106.

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‫ › דבורה‬Débora

por Nathália Pawlowski Mariano

Muitos são os títulos atribuídos à personagem mitológica bíblica Débora (‫דבורה‬, no original em hebraico) nos escritos bíblicos e na literatura judaico-cristã: juíza, profetisa, mulher de espírito fogoso, mãe de Israel, esposa de Lapídote. Com dois capítulos no livro de Juízes (Sefer Shoftim) dedicados a narrar a vitória de Israel contra os cananeus (Juízes, 4–5), Débora tem espaço central tanto no texto em prosa do capítulo 4 quanto no poema do capítulo 5, por meio de narrativas que exaltam seus feitos na libertação de Israel do domínio opressor de Canaã. A grandiosidade do ato concedeu à personagem um espaço fundamental na tradição literária judaica, fazendo com que Débora fosse citada também na literatura rabínica dos séculos II ao V EC (Talmud bavli. Mas. Megillah, 14a; Mas. Gittin, 88b), nos trabalhos de Flávio Josefo (Antiquitates Judaicæ, V, 201–210) e em escritos convenientemente atribuídos a Fílon de Alexandria (Pseudo-Fílon. Liber Antiquitatum Biblicarum, XXX, 1–6). O livro de Juízes, fonte que apresenta a história e o poema sobre Débora (Juízes, 4–5), compõe o sétimo livro da bíblia hebraica (Tanakh) e da bíblia cristã, descrevendo cronologicamente as histórias dos juízes bíblicos (shoftim), isto é, anciões responsáveis por administrar a justiça e/ou líderes militares que, inspirados pela deidade israelita, profetizavam sentenças divinas. O livro abrange histórias narradas entre os séculos XIV ao X aEC, período que abarca desde a morte de Josué (Juízes, 2.8–23) até a fundação da monarquia sob a profecia de Samuel (1 Samuel, 11.15). O livro de Juízes apresenta uma dinâmica

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narrativa própria, marcada por uma saga cíclica composta de quatro estágios: 1) transgressão da lei divina pelo povo de Israel, que pratica idolatria; 2) punição do povo de Israel pela deidade israelita, que se utiliza de um inimigo opressor; 3) clamor do povo à deidade israelita por libertação; 4) anunciação de um juiz/profeta pela divindade israelita para libertar seu povo do inimigo. É dentro dessa repetição de eventos que as narrativas sobre Débora aparecem nos capítulos 4 e 5 de Juízes. A personagem é apresentada como a quarta dos juízes e a única mulher entre esses, tendo seu período de juizado datado pela cronologia bíblica entre os anos de 1230 a 1190 aEC, na tribo de Efraim (região ao norte do antigo Israel, equivalente na atualidade ao oeste da Jordânia). Segundo indica o relato bíblico, após a morte de Eúde os israelitas voltaram a cometer transgressão dos mandamentos divinos, de forma que a deidade israelita os puniu, deixando-os sob a opressão do rei de Canaã que reinava em Hazor e de seu general do exército, Sísera (Juízes, 4. 1–3). Débora, juíza e profetisa àquele tempo na região montanhosa de Efraim, legislava sob uma palmeira até que, após receber uma revelação divina, ordenou que Baraque, filho de Abinoão da tribo de Naftali, reunisse dez mil homens vindos das tribos de Naftali e Zebulom para enfrentar as tropas de Sísera no monte Tabor, com a promessa divina de vitória (Juízes, 4.4–7; 5.7,12). No entanto, Baraque se mostrou receoso e disse que faria o que lhe foi ordenado, contanto que Débora o acompanhasse na batalha de forma a incitar os combatentes; pedido que ela o concedeu, mas sob a anunciação de que a honra da vitória recairia sobre uma mulher (Juízes, 4.8–9). Juntos, Débora e Baraque lideraram 10.000 israelitas até o monte Tabor. Sísera, acompanhado de um grande exército que contava com novecentas bigas de ferro, acampava próximo ao rio Kishon, na parte baixa do monte Tabor. Devido a uma 528

A presença das mulheres na Literatura e na História

tempestade, o rio Kishon teria transbordado, inundando toda a área ao redor e diminuindo as chances de ataque do exército cananeu, fator que favoreceu a vitória dos israelitas (Juízes, 4.13–16; 5.4–5, 11, 20–21). Sísera, ao ver seu exército vencido, fugiu e buscou refúgio na tenda da queneia Jael, que o matou com uma estaca enquanto ele dormia (Juízes, 4.17–22; 5.24–27). Assim teria se cumprido a profecia de Débora, que anunciou a vitória de Israel contra os cananeus e a honra pela morte de Sísera a uma mulher — Jael. Juízes 5 —ou o Cântico de Débora— comporta o único gênero de poesia em todo o livro de Juízes. É composto de 31 versículos e comumente considerado pelos estudiosos como um dos fragmentos mais antigos do material bíblico —senão o mais antigo—, com possível datação do evento narrado entre os séculos XIII a XI aEC (Leftel; Rozenchan 1979; Mayfield 2009) e incorporação do poema ao texto bíblico entre os séculos VIII a VI aEC (Lindars 1995). Juízes 4 apresenta uma descrição, em forma de prosa, do triunfo de Israel sobre os cananeus. É composto de 24 versículos e geralmente compreendido pelos estudiosos como uma narrativa histórica feita por meio da iniciativa de escribas judeus do período pós-exílio (séculos VI aEC ao I EC), os quais teriam se utilizado do poema de Débora para a composição da prosa presente no capítulo 4 (Assis 2005; Kawashima 2001). A antiguidade geralmente conferida ao Cântico de Débora, bem como a diferença estilística entre os capítulos 4 e 5 de Juízes, repercutem em diferentes leituras feitas pelos estudiosos. Recepções sobre a personagem bíblica têm espaço na literatura judaico-cristã desde o mundo antigo, no entanto, é somente a partir do século XX que se identificam dois momentos-chave nos estudos sobre Débora e o livro de Juízes: a inauguração da hipótese chamada de ‹história deuteronomista›, 529

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em 1943, com os trabalhos de Martin Noth; e a década de 90, marcada pelo revisionismo da personagem bíblica e do livro de Juízes. Segundo a hipótese levantada por Noth, os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis compreenderiam uma coletânea feita a partir da narrativa do livro de Deuteronômio e seriam todos produtos de um único autor ou de uma classe de escribas oriunda do século VI aEC. A iniciativa de redação desses livros teria sido feita com o intuito de se criar uma história do reino de Judá que pudesse sobreviver às adversidades surgidas com o período do exílio na Babilônia (Noth 2001). Na medida em que a história deuteronomista coloca o livro de Juízes —e por isso as narrativas sobre Débora— como produto de uma tradição histórica que se pretendeu criar no séc. VI aEC, a hipótese repercutiu na ampliação do argumento de que o capítulo 4 de Juízes foi feito de forma a explicar e introduzir o evento narrado no Cântico de Débora, o qual, sendo mais antigo, teria sido incorporado ao material bíblico de forma a reforçar a história do reino de Judá (Assis 2005; Kawashima 2001). A revisão na literatura sobre Débora e Juízes tem também, a partir dos anos 90, um elo com as produções advindas do debate deuteronomista. No entanto, há na produção científica desse período um enfoque em questões de gênero presentes no livro, bem como nas representações das personagens envoltas na história. A partir dos anos 90, se percebe uma acentuada publicação de trabalhos reivindicando a identidade primária de Débora como profetisa, juíza, guerreira e mãe (Mayfield 2009, 306). As discussões sobre a relação e a estilística dos capítulos 4 e 5 de Juízes, ganham também novas perspectivas nesse período. Sob o gênero claro de poesia, marcado pelo paralelismo, pela repetição e pela combinação de palavras, o capítulo 5 é recorrentemente visto pelos estudiosos como um hino de 530

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vitória (Assis 2005, 3–5; Mayfield 2009, 325), muito embora alguns o considerem um épico heroico (Echols 2008, 184), um canto nacional (Leftel e Rozenchan 1979, 190), ou um canto de vitória que dá espaço à exaltação do feminino (Niditch 2008). A prosa presente no capítulo 4 também parece exaltar a função primordial que Débora exerce no evento narrado, uma vez que ela é apresentada não somente como a única mulher de todo o período dos juízes, mas também como a única entre os juízes a legislar em dois aspectos: governamental e/ou militar e jurídico (Assis 2005, 2). Seja por meio do poema apresentado no capítulo 5 ou da prosa descrita no capítulo 4, o fato é que Débora tem uma presença inusitada no livro de Juízes e na tradição literária judaico-cristã. Não somente os eventos que a envolvem são narrados —sob dois gêneros diferentes— em dois capítulos do texto bíblico, como também ela figura como a única personagem feminina a ter atuação militar na libertação de Israel do domínio inimigo e a legislar em dois campos: profético e jurídico. Diante de características tão singulares apresentadas pela personagem, não é espantoso que tantos debates permeiem as literaturas sobre Débora desde o mundo antigo. Fontes históricas BERLIN, A.; BRETTLER, M. Z.; FISHBANE, M. 2004. The Jewish study Bible. Jewish Publication Society–Tanakh translation. Oxford: Oxford University Press. JOSEPHUS, F. 1996. Jewish Antiquities (Antiquitates iudaicæ). Vol. II. Translated by H. St. J. Thackeray e R. Marcus. Loeb Classical Library 490. Cambridge: Harvard University Press. LINDARS, B. 1995. Judges 1–5: a new translation and commentary. Edinburgh: T&T Clark. 531

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

MOORE, P. S. (Ed.). 1949. Pseudo–Philo’s Liber Antiquitatum Biblicarum. Vol. X. Translated by G. Kish. Publications in Medieval Studies. Notre Dame: University of Notre Dame. NEUSNER, J. (Ed.). 1996. The Talmud of Babylonia: Bavli Tractate Gittin. Vol. 18. An Academic Commentary. Atlanta: Scholars Press. NEUSNER, J. (Ed.). 1994. The Talmud of Babylonia: Bavli Tractate Megillah. Vol. 10. An Academic Commentary. Atlanta: Scholars Press. NIDITCH, S. 2008. Judges: a commentary. Old Testament Library. Philadelphia: Westminster John Knox. SASSON, J. M. 2014. Judges 1–12: a new translation with introduction and commentary. Vol. 6D. The Anchor Yale Bible 6D. New Haven: Yale University Press. Bibliografia geral ASSIS, E. 2005. The hand of a woman: Deborah and Yeal (Judges 4), Journal of Hebrew Scriptures, 5, n.19, p. 1–14. ECHOLS, C. L. 2008. Tell Me, O Muse: the Song of Deborah (Judges 5) in the light of heroic poetry. London: T&T Clark. KAWASHIMA, R. S. 2001. From Song to Story: the genesis of narrative in Judges 4 and 5, Prooftexts, 21, p. 151–78. LEFTEL, R.; ROZENCHAN, N. 1979. O Cântico de Débora, Língua e Literatura, 8, p. 185–200. MAYFIELD, T. 2009 The accounts of Deborah (Judges 4 5) in recent research, Currents in Biblical Research, 7, p. 306–335. NOTH, M. 2001. The Deuteronomistic History. Sheffield: Sheffield Academic Press.

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‫ › דלילה‬Dalila

por Luiz Alexandre Solano Rossi

O livro dos Juízes, na Bíblia Hebraica, pertence ao conjunto de livros classificados como Profetas Anteriores, ou seja, Josué, Juízes, 1–2 Samuel e 1–2 Reis. Portanto, o livro pode ser considerado como «livro profético» no cânon da Bíblia Hebraica. No entanto, a Septuaginta (LXX) colocou os Profetas Anteriores na seção de Livros Históricos, mesmo que tais livros tenham muito pouco de história no sentido moderno do termo. O desenvolvimento central do livro (caps. 3, 7–16, 31) é composto de um conjunto muito heterogêneo de relatos a respeito dos juízes de Israel, num relativo esforço redacional para chegar ao número simbólico de doze, como uma forma de representar artificialmente a totalidade do povo de Israel através do número de tribos que fariam parte de sua composição segundo a tradição. Sansão é apresentado como um dos juízes, um personagem controvertido, polêmico e pouco «santo» nas narrativas do livro; um anti-herói com muitos músculos e pouco cérebro, que tem uma ligeira inclinação para enigmas. É justamente na narrativa dedicada a Sansão, presente nos capítulos 13–16, que encontramos a nossa personagem: Dalila. Dalila, a mulher mais famosa do livro, se tornou sinônimo de mulher madura e sedutora, e é apresentada como uma mulher disponível fora dos limites do casamento e que usa abertamente seus atrativos sexuais para conseguir seus objetivos. Ao assim fazer, ela inverte o paradigma de relacionamento homem-mulher, no qual a mulher age por meio do homem; agora são os príncipes dos filisteus que agem por

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meio de Dalila para alcançar o que eles mesmos não conseguiriam apesar de seus muitos esforços. Entre as muitas peripécias presentes na narrativa, vale ressaltar que estamos inseridos num ambiente de ética e moralidade próprias da cultura judaico-cristã, que podem ou não ser válidas para os filisteus. Via de regra Dalila foi interpretada a partir dos olhos de Sansão e, por isso, apresentada sob a perspectiva do contraditório e da anulação de si mesma. Assim, como uma anti-heroína ela é apresentada como alguém que «cuidou de sua missão com uma eficiência fria e insensível» (Cundall 1986, 168); uma tentadora de imensa crueldade que induziu seu amante a adormecer ingenuamente em seu colo. Dalila, portanto, a partir dessa concepção, muitas vezes é vista como uma das mulheres mais malvadas das Escrituras; descrita como bela, mas sedutora, infiel e traiçoeira. É possível até mesmo observar que o tema do amor como traição se torna padrão nas leituras desta história. A pressuposição de uma ironia fina presente no livro de Juízes é digna de registro: a personagem Débora, considerada «uma mãe em Israel» (Jz 5,7) é substituída por Dalila, uma sedutora não israelita e amante traidora, dessa forma o «episódio envolvendo Dalila explora um paradigma clássico de engano: uma mulher astuta que domina um guerreiro poderoso» (Klein 1989, 130). Exatamente por isso que, na recepção dos comentários medievais e modernos, são enfatizados os aspectos de seu caráter que produzem efeitos destrutivos na vítima masculina (Brenner 2001, 115). De fato, Dalila é uma personagem complexa para ser reduzida ao papel de uma sedutora, apesar de quase nenhuma informação sobre ela. Na narrativa, ela não é identificada pelo nome de sua cidade natal, mas somente por uma região denominada nahal soreq que designa uma área geográfica que separa as áridas montanhas judaicas, por um lado, e a fértil planície 534

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litorânea, de outro. Duas expressões que podem indicar a associação metafórica às torrentes de águas descontroladas e ao vinho que faz perder o controle e que sugerem paixões esmagadoras. Dalila é a única personagem do sexo feminino a receber um nome na narrativa e é caracterizada, ainda, como independente e possuindo uma casa com quartos, uma mulher sábia que é capaz de cuidar de si mesma e que sagazmente toma iniciativas. Ao redor dela não se percebe figuras masculinas como se poderia esperar em uma sociedade patriarcal, isto é, sem pai, sem marido, sem família, sem paternalismo. Deve-se salientar que a identificação de Dalila não a liga a nenhum parente masculino. Ela é uma mulher independente e, muitas vezes, mulheres independentes são descritas como sedutoras e capazes de levar «bons» homens à perdição. Dalila recebe o foco da história como alguém capaz de traçar e conduzir um plano até a obtenção de um resultado. Em momento algum a narrativa nos informa que ela é prostituta, como presumido por algumas leituras, mas é retratada como uma mulher que usa seu fascínio feminino como instrumento de poder sobre Sansão (Ryan 2007, 121). A independência dela é louvável, mesmo que o uso de sua atração sexual para manipular um homem deixe muitos leitores desconfortáveis, é necessário admitir que ela fez o que fez abertamente e sem fingimento. A identidade de Dalila, dessa forma, não está vinculada a nenhum homem. Introduzida simplesmente pelo nome, ela é uma mulher que cuida de si mesma, conduzindo seu caso amoroso com Sansão e seus assuntos comerciais com os senhores dos filisteus sem qualquer pai, irmão ou marido atuando como mediador. O narrador diz que Sansão ama Dalila, mas, em nenhum momento diz o que Dalila sente por ele. Ela jamais diz que ama Sansão, o que poderia revelar uma espécie de integridade. Assim, ao não amar Sansão, ela não 535

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compromete as suas emoções e usa de forma eficaz as dele para atingir plenamente seus objetivos. Na visão do narrador, a mulher pode resistir ao homem. Sansão não é amado pela mulher que ama. Dessa forma, narrativamente, o leitor é encorajado tanto a ter pena do enjeitado Sansão quanto a rir do homem tolo que permite ficar sujeito a uma mulher. Nessa relação, possivelmente Dalila é representada como a mulher desprezível, o próprio mal encarnado, pois Sansão oferece amor a ela e ela usa este amor para fazê-lo cair nas mãos de seus inimigos que, diga-se de passagem, não se configuram como inimigos dela. Ao concordar prontamente com a proposta dos filisteus de que ela seduza Sansão e descubra a fonte de sua força, como uma mulher autônoma, Dalila descobre que o amor de um homem procurado não é compatível com a segurança da riqueza. É interessante observar, por essa perspectiva, que mulheres quando são representadas na Bíblia Hebraica em papéis ativos, ousados, fortes e influentes quase sempre são retratadas atraindo algum homem importante para um espaço demarcado pelo conflito e pelo problema. De forma contrária às façanhas de Josué em Jericó, a coragem e a fé de Daniel na cova dos leões e o prodigioso Moisés abrindo o Mar Vermelho, encontramos, por exemplo, Eva, Jezabel, Dalila e uma série de mulheres anônimas ativamente engajadas em diversas formas de tentação e traição. A narrativa de Sansão é notável na medida em que as mulheres assumem papéis variados e interessantes nesta história (Klein 1989, 118). A mulher de Sansão o persuade a revelar a solução de seu enigma, mas a mulher que o «conduz» à confissão final é Dalila. Sansão, cujo nome alude ao sol, torna-se sujeito à Dalila, a noite. Como resultado, ele perde sua «luz», sua visão, e torna-se física e figurativamente cativo da noite. Que somente estes dois nomes (e o de Manué, o pai) são dados 536

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no texto e enfocam a polaridade do dia e da noite, que aqui é simbolizada pelo homem e pela mulher: Sansão, o filho/ sol de Israel, e Dalila, a noite da feminilidade estrangeira. Ao revelar o motivo de sua força para Dalila, Sansão dela se torna refém. As histórias de todas as mulheres relacionadas a Sansão (sua mãe, a mulher timnita, a prostituta de Gaza e Dalila) parecem atuar a fim de manter os valores patriarcais.Os homens temem a sexualidade das mulheres e, portanto, a história delas é controlada de várias maneiras, ou seja, a capacidade de concepção da mãe de Sansão é concedida por Deus; a mulher timnita é controlada pelos homens filisteus que a ameaçam se ela não descobrir a resposta para o enigma de Sansão e Dalila, por sua vez, é controlada pela oferta de uma grande soma de dinheiro. Se o desejo de recompensa é o que a motiva, como a história sutilmente sugere, então, embora ela seja o meio pelo qual Sansão é destruído, o projeto de destruição é iniciado por homens filisteus. A ideologia sexual codificada nestas histórias assegura aos homens que as mulheres podem ser perigosas, mas que podem ser controladas por ameaça, por recompensa, e, é claro, por Deus Se assumirmos que Dalila era filisteia, do ponto de vista filisteu, ela provavelmente deveria ser vista como uma heroína. E, na verdade, Dalila não pode ser condenada por servir o seu povo. Afinal, como filisteia, não pode ser julgada segundo os padrões israelitas. Ela está, ao mesmo tempo, protegendo seu povo e sendo insultada pelo leitor simpático aos israelitas. Por isso, é possível afirmar que Dalila representa o quadro complexo de uma mulher sagaz, possivelmente uma heroína para seu povo, que lança mão de uma estratégia antiga para atingir seu objetivo: usar o amor de um homem para derrotá-lo. 537

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Fontes históricas BÍBLIA HEBRAICA STTUTGATTENSIA. 1990. Deutsche Bibelgesellschaft: Stuttgart. Bibliografia geral BRENNER, A. 2001. Juízes a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas. CASAGRANDE, A. 2021. Sansão na ótica da literatura. São Paulo: Reflexão. CUNDALL, A. E. 1986. Juízes e Rute. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova. KLEIN, L. R. 1989. The triumph of irony in the Book of Judges. Sheffield: Almond Press. RYAN, R. 2007. Judges. Sheffield: Sheffield Phoenix Press.

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‫ › איזבל‬Jezabel

por Semíramis Corsi Silva & Tailiny Femi Fabris

Somos apresentados a Jezabel no Livro de Reis, ou no Primeiro e Segundo Livro de Reis, dependendo da versão escolhida do Primeiro ou Antigo Testamento. A princesa Jezabel, filha do Rei Etbaal dos Sidônios, casa-se com o Rei Israelita Acab e logo é caracterizada de maneira negativa ao compartilhar de sua fé com seu marido, servindo aos deuses Asherah e Baal (I Reis, 16:31–33). As histórias de Jezabel e de Acab são elaboradas separadas e, por vezes, em conjunto. A personagem é uma figura polêmica e ainda hoje é recebida como perversa e cruel por meio da literatura, música, cinema, novelas, entre outros. A narrativa sobre o reinado de Acab e Jezabel está inclusa nos chamados livros históricos do Antigo Testamento, ou seja, faz parte do copilado de histórias sobre os Reinos de Israel e Judá até suas respectivas deportações para outros lugares do Antigo Oriente, aproximadamente entre os séculos XI e VI aEC. Também compõe uma teoria acerca da redação dos livros históricos veterotestamentários, a partir de um grupo de redatores deuteronomistas, com objetivos específicos como o combate à idolatria e a centralização de culto em torno do deus Yahweh, entre outros, teoria da História Deuteronomista (Silva 2012, 40). Durante todo o relato, há outro personagem que se destaca, trata-se do profeta Elias, que é introduzido como opositor de Jezabel e, por meio dessa rivalidade, os acontecimentos se desenrolam. Como uma estrangeira rainha de Israel, ela é

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responsabilizada pelos desvios de seu marido, pela construção de templos e pela introdução de sacerdotes de seus deuses no reino. Em certa passagem (I Reis, 18), Elias desafia os sacerdotes de Asherah e Baal a convocarem seus deuses em uma tarefa simples em frente ao povo e, justificado pelo fracasso dos sacerdotes, o profeta mata a todos. Consequentemente, a rainha Jezabel, irritada, estabelece uma perseguição a Elias para vingar a morte de seus sacerdotes. O profeta foge e passa anos escondido como forma de se proteger. Na quarta parte do ciclo de Elias (I Reis, 21), a disputa entre Acab e Nabot por uma vinha ao lado do palácio, nos faz refletir sobre a importância da rainha Jezabel no Antigo Reino de Israel. O rei Acab cobiçava uma vinha ao lado do seu palácio em Jezrael e não obteve sucesso nas negociações com o dono da vinha, Nabot, à vista disso, o rei informa à rainha sobre sua falha e sua tristeza. Jezabel pede que Acab se alegre, pois resolveria o assunto e, então, escreve cartas em nome do rei selando-as com o selo real. Em seus conteúdos pede aos anciãos da cidade uma conspiração contra Nabot. O proprietário da vinha é, então, acusado e morto, tendo suas terras apossadas pelo rei. Esse excerto revela Jezabel com poderes de nenhuma outra esposa de um rei, possuindo grande influência em meio à uma sociedade baseada no comando e na autoridade do patriarca, além de deter títulos incomuns às mulheres de Israel, como rainha, rainha-mãe e dama, garantindo para si uma soberania legítima (Kunz 2014, 62–68). No Antigo Israel, mulheres hebraicas não desfrutavam do título de rainha que exclusivamente estrangeiras recebiam, ou hebraicas em outras cortes. Igualmente, o título de rainha-mãe não era comum, visto que a posição de influência de uma mulher seria muito alta. 540

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Após a situação da vinha de Nabot, o profeta Elias, de volta ao reino, condena as ações de Acab e Jezabel e professa palavras quanto às suas mortes (I Reis, 21:17–29). A profecia indica o fim dos descendentes de Acab, tal qual a condição de suas mortes: devorados por cães nas cidades e por aves nos campos. O rei suplica pelo perdão do deus Yahweh e do profeta, em atos que demonstram seu arrependimento. Todavia, com a profecia já declarada, Acab consegue apenas a concessão divina de não precisar ver a ruína de sua família ainda em vida. A rainha Jezabel, por outro lado, não recebe tamanha compaixão. Sua morte obedece à profecia de Elias e, desse modo, ela é morta por Jeú, jogada de sua janela, além de outros detalhes explícitos (II Reis, 9:30–37). A morte especialmente violenta descrita no texto das escrituras indica alguns objetivos de sua redação, como tecer exemplos de insubmissão e de suas consequências. Ou seja, Jezabel representa os aspectos negativos atribuídos a certas mulheres por parte da redação deuteronômica (Schroer 2008, 110–111). Constatamos que Jezabel, politeísta e de origem fenícia (de Sídon), simboliza o estranho em meio aos hebreus, sua figura antagônica manifestaria o que deveria ser esperado de uma mulher hebraica. A assimilação de Jezabel na cultura popular se expressa de diversas maneiras desde o último século. No cinema, Jezebel (1938) destacou Bette Davis no papel de Julie e garantiu a atriz o prêmio Oscar de melhor atriz em 1939. O filme conta a história de uma jovem chamada Julie Marsden que desafia as regras da sociedade sulista norte-americana por vaidade, causando o término de seu noivado com seu grande amor. Dessa maneira, o nome do filme compara os erros cometidos por Julie àqueles da rainha Jezabel. 541

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Outro exemplo, agora na literatura e televisão, é O conto da aia (1985), livro de Margaret Atwood adaptado em uma série homônima (2017). No contexto das obras, os Estados Unidos da América foi dissolvido em detrimento de um Estado teocrático autoritário, toda a sociedade fora dividida em extratos e as prostitutas recebem a denominação de «Jezebéis», sendo consideradas mulheres corrompidas da sociedade. Em todo o universo criado por Atwood, encontramos referências ao Antigo Testamento e a rainha Jezabel é escolhida como símbolo de depravação moral no Estado fictício de Gileade. E, finalmente, na música, identificamos a canção Jezabel escrita por Wayne Shanklin e interpretada pelo cantor Frankie Laine em 1951. No mesmo ano que a original, sua letra foi traduzida para o francês por Charles Aznavour e cantada por Edith Piaf. A canção apresenta um homem apaixonado por Jezabel, explicando que a rainha é a razão de seu tormento, da caída dos anjos e de várias outras ações negativas na vida do apaixonado. O narrador revela que seria melhor se não tivesse encontrado uma amante como Jezabel, fazendo-o desistir dos seus sonhos em troca dos «braços de sereia» da amada. Em todos os exemplos apresentados, Jezabel é declarada como a personificação da sedução que atormenta os homens ou de ações ruins no geral. Pois, na cultura popular ela é desvinculada do contexto de escrita do Antigo Testamento e dos objetivos da redação de construir uma figura que sirva ao propósito de desafiar as leis de um deus, Yahweh, para ilustrar comportamentos que deveriam ser repreendidos. Fontes históricas ATWOOD, M.  1985. The Handmaid‘s Tale. Toronto: McClelland & Stewart. BÍBLIA DE JERUSALÉM. 2017. 12ª reimpressão. São Paulo: Paulus. 542

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JEZEBEL. 1938. Direção de William Wyler. EUA: Warner Bros (104 min.). JEZEBEL. 1951. Composição de Wayne Shanklin e Charles Aznavour. Interpretação: Edith Piaf. Faixa 1, lado B, catálogo número BF 419. Columbia Records, disco de vinil. JEZEBEL. 1951. Composição de Wayne Shanklin. Interpretação de Frankie Laine. Faixa 1, lado A, catálogo número 39367. Columbia Records, disco de vinil. THE HANDMAID'S TALE. 2017. Produção de Bruce Miller, Margaret Atwood, Elisabeth Moss, Warren Littlefield, Reed Morano, Daniel Wilson, Fran Sears e Ilene Chaiken. EUA: Hulu. Referências bibliográficas FABRIS, T. F. 2019. Elementos de gênero na formação do monoteísmo hebraico: o caso da rainha Jezabel. In: SILVA, S. C.; VIEIRA NETO, I. (Orgs.). Mitos, Deusas e Heróis: ensaios sobre a Antiguidade e o Medievo. Goiânia: Edições Tempestivas, p. 33–41. KUNZ, M. Z. 2014. A atuação da mulher no Antigo Testamento e seu papel na sociedade, Revista Batista Pioneira, v. 3, n. 1, p. 51–72. SCHROER, S. 2008. A caminho para uma reconstrução feminista da história de Israel. In: SCHOTTROFF, L; SCHROER, S; WACKER, M-T. Exegese feminista: resultados de pesquisas bíblicas a partir da perspectiva de mulheres. Tradução de Monika Ottermann. São Leopoldo: Sindoal/ES/CEBI; São Paulo: ASTE, p. 83–160. SILVA, C. M. D. da. 2012. Deuteronômio, portal da história deuteronomista, Revista Teocomunicação, vol. 42, n. 1, p. 37–49.

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MULHERES NA ÉPICA HOMÉRICA

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres na Épica Homérica

por Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho Alli fimmini nostri Ci scippare di l’occhi La lustrura e lu focu Ca addumava li specchi I Pirati a Palermu. (Versos do poema de Ignazio Buttitta, musicado por Rosa Balistreri) Acaso devido a um assunto, ou, levianos, vagais, tal como piratas ao mar? Esses vagam, arriscando suas vidas, levando dano a gentes alheias. (Nestor a Telêmaco, Homero, Odisseia, III, 72–4)

Vejo-me diante de doze mulheres que pertencem a um Compêndio mais amplo de Mulheres da Antiguidade. O subconjunto sobre o qual me coube escrever é o das classificadas pelos editores como mulheres na épica homérica. Embora já tenha tido contato com todas elas, em diferentes momentos, como leitora diletante dos clássicos e como acadêmica da área de estudos antigos, suas imagens são variadas, bem como o conhecimento que tenho delas. A respeito de uma delas detive, por muito mais tempo, o meu olhar e atenção: Helena, objeto de pesquisa sistemática, resultando em alguns estudos sobre sua presença na literatura grega, e também sua recepção no cinema. Então, esse viés, digamos, não deixa de afetar minhas considerações. O/a leitor/a desta introdução sobre esse conjunto de mulheres já terá detido seu olhar, certamente, em uma (ou algumas) em particular, por razões várias. Mas, neste momento, lendo este texto introdutório, entrará em contato com essas mulheres, conduzido/a, em primeiro lugar, por minha perspectiva; em segundo, pela dos autores de cada um dos verbetes sobre Criseida e Briseida (por Antonio Orlando Dourado-Lopes),

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Helena (por Ivan Vieira Neto), Hécuba e Andrômaca (por Christian Werner), Calipso (por Camila Jourdan), Penélope (por Lilian Amadei Sais), Euricleia (por Teodoro Rennó Assunção), Nausícaa e Arete (por Rafael de A. Semêdo), Circe (por Dolores Puga) e as Sereias (por Mary Camargo Macêdo Lafer). Estas últimas, apesar de não serem um indivíduo, são tratadas como tal. Quanto à perspectiva que norteia esta introdução, como disse, ela é marcada por minha formação acadêmica voltada para algumas representações de Helena — aquela segundo textos clássicos de Górgias e de Eurípides, objetos, respectivamente, de meus mestrado e doutorado (sobre alguns tópicos, veja Coelho 2000 e 2010). No entanto, a razão maior para redigir o texto e buscar uma unidade nesse grupo não se deve à minha preferência pessoal ou formação, mas ao papel de destaque que foi dado à famosa espartana porém —sempre dita troiana—, quando vista como causa belli, motivação para uma guerra cuja versão na literatura épica, principalmente a de Homero, reúne todas as outras mulheres citadas acima, ainda que em lugares e tempos diferentes. É por Homero, então, que considero ser adequado começar, em particular por três versos do Canto II da Ilíada (354–56, aqui na tradução de Christian Werner, um dos autores neste Compêndio), no momento em que o sábio (!) Nestor dá uma orientação incisiva aos guerreiros gregos, insuflando neles o furor belicoso: Por isso, que ninguém arda por voltar para casa antes de deitar-se junto a uma esposa troiana [πὰρ Τρώων ἀλόχῳ κατακοιμηθῆναι] para vingar-se dos anseios e gemidos de Helena. [τίσασθαι δ ̓ Ἑλένης ὁρμήματά τε στοναχάς τε.] 548

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Essas poucas linhas dizem muito. Indicam os dois grupos em batalha, gregos e troianos. São dois lados diferentes, ambos com seus heróis, como sabemos, e o desejo de reparação pelo grupo que se sentiu ofendido, quando do rapto (ou sedução), ferindo a regras sagradas da hospitalidade, da mulher de um dos seus notórios guerreiros, Menelau. Os versos deixam claro, porém, que a vingança pelo ato de um homem, Páris, é a posse física dessas mulheres, e, aqui, o eufemismo não esconde a violência do ato: «deitar-se na cama»... A violação das mulheres troianas, expediente para arrasar, mais ainda, o moral dos inimigos, não passa despercebida aos que sabem desse corolário da guerra, tão comum ainda hoje, e que faz das mulheres instrumento para que a ofensa se dê, amplificada e também associada ao gozo do vencedor. Vejamos, então, como punir Helena, ou aquele que a seduziu, e também a cidade que a acolheu, supõe uma equivalência entre ela e todas as outras mulheres — é o que parece estar implícito ali. Andrômaca, como Briseida e Criseida, são cativas de guerra, e as duas últimas, que tiveram «todos os membros masculinos de sua família mortos por Aquiles», como pontua Werner, são objetos de desejo e posse pelos chefes gregos. Hécuba, ainda que esteja em uma situação diferente, vê suas filhas Polixena e Cassandra (ainda que não inseridas no elenco de mulheres épicas, aqui) serem, uma sacrificada para Aquiles, outras, escravizadas como concubinas de Agamêmnon, respectivamente, bem como sua nora Andrômaca tornar-se uma escrava (aqui, como os autores, uso também informações das tragédias supérstites). Embora todos esses destinos se liguem à ida de Helena para Troia, ao final da Ilíada, Hécuba está, com Helena, pranteando, ao lado de Andrômaca, o corpo de Heitor, em convivência pacífica (Ilíada, XXIV. 725–777). 549

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Que rapto e violação de mulheres, associado a combates e lutas que extrapolam a vingança pessoal por uma desonra perpetrada, sejam tema mais amplo, as Histórias de Heródoto deixam claro. Nos primeiros parágrafos da famosa obra (I. 1–4), o pai da História, ao buscar explicações para a causa da guerra entre bárbaros e gregos, começa narrando o rapto destas quatro mulheres (míticas): Io, Europa, Medeia e —ela, novamente!— Helena. Chamo aqui atenção para o uso nestas passagens do verbo ‹ἁρπάζω›, que tem o sentido de pegar, carregar, mas também o de violar. No latim, são termos diferentes o raptum e o estuprum, mas comum é a conexão entre guerra e posse de mulheres. Lembremos do rapto das Sabinas, ato fundacional de Roma. Sobre o tema, veja Wolfthal (2000). Por outro lado, acho oportuno lembrar um texto que trata das origens das imagens homéricas de figuras heroicas, apresentado por Klejn (2012), perspicaz análise na qual, ao lado de quatorze heróis (entre os quais Príamo, Nestor, Aquiles, Páris, Ulisses), está Helena, como um tipo de hápax, podemos dizer, representando o gênero feminino — e não, Menelau não aparece. Essas considerações vêm ao encontro das de Vieira Neto, que em seu verbete sobre Helena alerta-nos para o fim da Idade dos Heróis, conforme Hesíodo, nos Trabalhos e os Dias (161–165), tendo sido a espartana usada como móbil para a guerra ligada a este novo ciclo na raça dos mortais. Ivan nota, ainda, como os relatos de Pseudo-Apolodoro reforçam a responsabilidade de Páris, sob a influência de Afrodite, como raptor (e, aqui, novamente, aparece o verbo ἁρπάζω), isentando a mulher de Menelau de responsabilidade, e enfraquecendo a acusação feita a ela por gregos e troianos, isenção também pontuada por Dourado-Lopes, en passant, em seu verbete sobre Criseida, cativa de Agamêmnon, cuja atraente beleza é, aliás, realçada. Nesse contexto das mulheres como espólio de guerra, vale notar como Dourado-Lopes 550

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também destaca que Nestor sugere a Agamêmnon devolver Briseida a Aquiles, acompanhada de outros agrados, como «vasos, cavalos, mulheres troianas, a promessa de noivado com uma das filhas de Agamêmnon e ainda sete cidades» (Ilíada, IX. 92–299). Sobre a permanência do tópos —troca de mulheres por animais— veja, Coelho (2017). Lembro, também, como Assunção alerta para a compra de Euricleia por Laerte pelo preço de vinte bois. Neste universo de mulheres como objetos de troca, vale destacar certa independência de personagens como Calipso e Circe, e mesmo das Sereias (outras três que ganharam seus verbetes), mas neste mundo de heróis, que também controlam a narrativa, há um preço a se pagar por certa autonomia, isto é, um afastamento e uma independência do mundo dos homens. Notemos que a presença delas na Odisseia as coloca ao lado de uma Helena, a respeito de quem, após o término da guerra e no doce recesso do lar, com seus ricos apetrechos de tecelagem, Menelau sugere um papel ambíguo no episódio do Cavalo de Troia; temos um marido que recorda a esposa imitando a voz das esposas dos guerreiros que estavam dentro do embuste de madeira (IV. 271–289), qual sereia, tentando seduzir os homens neste, digamos, barco sobre rodas. Odisseu chega a tapar a boca de Anticlo, desejoso de responder ao chamado, a fim de evitar que seu grito revelasse o estratagema dos dânaos — o que irá reverberar seu cuidado ao enfrentar as vozes persuasivas das outras sereias, quando for avisado sobre o perigo e a sedução de sua voz melíflua. Como observa Lafer, no respectivo verbete, «elas aparecem efetivamente por meio de seu canto»; sem uma descrição física, são uma «epifania sonora» em Homero e, quando conseguem seduzir e enganar seus ouvintes, a morte e o desaparecimento destes os tiram completamente da esfera da memória e fama gloriosa. Da mesma forma, se, ludibriados pela voz de Helena, os gregos tivessem deixado ser descobertos, 551

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seriam, certamente, vencidos pelos troianos, mudando o rumo da narrativa e a fama advinda da vitória. Em relação a Calipso e a Circe, como mostram Jourdan e Puga, respectivamente, a sedução se dá de outra maneira, mas, da mesma maneira que com Helena, deve-se ter cuidado com mulheres sedutoras. No caso da primeira, os poucos versos dedicados a ela no relato de Odisseu (VII. 244–260; não considero, aqui, as referências a ela no livro I e sua aparição no V) são inversamente proporcionais aos muitos anos que passou na ilha da deusa (ah, a memória dos homens...), que, acatando as ordens divinas, por meio de Hermes, a contragosto auxilia seu amado na preparação de sua partida para ele voltar para a mortal Penélope (V. 227–67), assim como Helena obedece, contrariada, às ordens de Afrodite, para se encontrar com Páris (Ilíada, III. 413–17). Vale lembrar que Helena é, como observa Isócrates (Elogio a Helena, 16), a única filha de Zeus que não é uma deusa, mas, ainda assim, rebate Afrodite como se fosse uma delas. Em relação a Circe, apesar da tradição hesiódica, ou mesmo aquela advinda de Andrônico de Rodes, que a fazem figura trevosa, em Homero, sua habilidade com os pharmaka (Odisseia, X. 274–280) a aproxima de Helena, que aprendeu tal arte no Egito, e faz bom uso dela para apaziguar as dores de Menelau e Telêmaco (Odisseia, IV. 219–233). No entanto, retomando a hipótese inicial, no caso de cada uma das três (a terceira, as Sereias, vistas como um grupo) há certa independência, porém fica evidente o isolamento em que vivem essas personagens femininas. Há outro grupo que, longe de ser uma pedra no caminho de Odisseu, irá ajudá-lo: Nausícaa, Arete e Euricleia. No caso das primeiras, filha e mãe, como Semêdo observa, nos respectivos verbetes, a filha possui vários atributos que realçam sua beleza, bem como revelam, em seu encontro na praia com Odisseu, «uma sutil tensão erótica», não sendo, ainda, 552

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desprovida de certa astúcia. Nesse último aspecto, ela e sua mãe se assemelham pelo modo como Arete não cede, imediatamente, à súplica de Odisseu (VII. 145–152). Concordo com Sêmedo em sua comparação de Arete a Helena e a Penélope pela capacidade destas de serem boas gestoras de seus respectivos palácios. Em relação a Euricleia, lembrando a ênfase dada por Assunção à famosa cena de reconhecimento pela cicatriz de Odisseu-mendigo, durante a lavagem dos seus pés, não há como não comparar sua astúcia àquela de Helena, seja quando reconhece em Telêmaco o parentesco com Odisseu (IV. 142–3), seja quando reconhece o próprio herói que entrara disfarçado em Troia, conforme Odisseia, canto IV (240–256). Por fim, a respeito de Penélope e Helena, há traços de semelhança sugestivos. Como mostra Sais, no respectivo verbete, sendo sobrinha de Tíndaro (em algumas versões), a mulher de Odisseu é prima de Helena e Clitemnestra. Por um lado, a proximidade entre as três mulheres sugere semelhanças amedrontadoras. Lembremos do espectro de Agamêmnon, no Hades, alertando Odisseu, em longa narrativa, para o perigo de chegar em casa e ser recebido por uma esposa nefasta como a irmã de Helena, ambas tendo lançado vergonha sobre a geração das mulheres, mesmo que «uma seja honesta» (Odisseia, XI. 387–466. Sobre versões da morte pelo banho de sangue feminino, veja Coelho 2014). Por outro lado, a ênfase pode recair em atributos mesmo temerosos. Dotada de grande beleza, ainda que inferior às divindades (Odisseia, V. 215–217), é uma mulher cuja astúcia a aproxima não apenas de Odisseu, mas também de Helena, de quem Knox diz que «continua a ser em Esparta, assim como o foi em Troia, uma mulher sensata em situação difícil» (Knox 2011, 36). Acrescente-se, ainda, que ambas são objeto de grande desejo de seus respectivos maridos, e que, curiosamente, assim como 553

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temos uma versão da lenda de que Helena nunca foi a Troia (objeto de uma tragédia de Eurípides e da Palinódia de Estesícoro, esperando casta e pacientemente Menelau buscá-la, no Egito), temos versões, indicadas por Sais, como a de Pausânias (8.12.5) e Duris de Samos, que afirmam a infidelidade de Penélope, e que ela teria «se rendido sexualmente a todos os 108 pretendentes» (Sais 2021, 604). Como vemos, a tradição não poupou nem Penélope. A raça das mulheres (Teogonia, 589–94) não é confiável. Nessa raça de filhas da P(andora), todas são, de algum modo, passíveis de punição/responsabilização e, em certa medida, como disse antes, intercambiáveis. E, retomando a orientação de Nestor, ela só é possível pela equivalência de todas as mulheres (ou quase todas, pelo menos). A singularidade de cada uma das doze listadas aqui (mesmo as Sereias, vistas como grupo) é transformada em um universal, e vale como «commodity», em certos momentos; destarte, elas podem ser vistas como iguais e, portanto, equivalentes – proximidade perturbadora. Reverberação disso encontramos, parece-me, ainda hoje, em filmes como Ulisse (Mario Camerini; Mario Bava, 1954), em que Circe e Penélope são interpretadas por uma única atriz, Silvana Mangano; Malpertuis (Kümel 1971), em que Susan Hampshire faz todas as figuras femininas, de Alecto a Euríale; ou O olhar de Odisseu (Theo Angelopoulos 1995), em que Maia Morgenstern faz as principais mulheres desse herói moderno. Cherchez la femme! A narrativa épica, ao mesmo tempo, não deixa de registrar (e denunciar, pelas frestas, digamos), para os que querem ver, ou ler nas estrelinhas, as pelejas e os sofrimentos das mulheres. Mesmo no caso de Penélope (com seu final feliz, pelo reencontro com Odisseu), a dor devido aos dissabores com os pretendentes e a agonia da longa espera fazem de grande parte de sua vida uma provação. Tampouco a reconciliação entre 554

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Menelau e Helena é isenta de nuances sombrias, pois, como disse, a cena da espartana, de volta ao lar, é ambígua, já que o próprio marido a recrimina, ao lembrar da sua imitação das vozes das mulheres dos guerreiros, traindo, assim, os gregos. Destarte, se considerarmos algumas cenas, como o momento em que Nestor interroga a Telêmaco, perguntado se vagueia como pirata (versos da epígrafe), lembrando-nos, também, da observação de Bernard Knox (Knox 2011, p. 42–3), de que o termo remete a outra passagem, em que Odisseu relata que age como pirata, saqueando cidades e levando mulheres e muitos tesouros, divididos entre os homens (Odisseia, IX. 40–1), veremos que ser mulher nesse universo de heróis-piratas épicos tem seus dissabores. No entanto, o universo da épica (como de outros gêneros apresentados aqui, neste Compêndio) é essencial para refletirmos sobre aspectos estéticos e éticos (sem subsumir um no outro) que forjaram nossa cultura, e aos quais ainda voltamos para pensar em nosso passado e neste passado ainda reverberando no presente, por meio de grandes obras como os textos clássicos. Na esteira de um Boccaccio, em seu instigante De Claris Mulieribus, «I think it both useful and necessary that the accomplishments of these [ele escreveu sobre cento e quatro mulheres, míticas e históricas!] women please women no less than men» (2011, xxxviii). Mas, além do prazer, o conhecimento sobre as mulheres desse Compêndio é importante por outras razões. Precisamos conhecer mulheres e homens deste mundo tão longe e tão perto, sem «cancelar» nada, a fim de compreender como os apelos do espetáculo da guerra, das aventuras de conquista, e da glória singular, paradoxalmente, nos tornam simpáticos a heróis valentes e admiráveis, mas que podem, também, fazer com que as mulheres 555

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«percam o brilho nos olhos que ilumina os espelhos», como lemos nos versos de Ignazio (no contexto da invasão dos aliados na Sicília), cantados por Rosa. Fontes históricas APOLÔNIO DE RODES. 2021. Argonáuticas. Tradução de F. Rodrigues Junior. São Paulo: Perspectiva. HERÓDOTO. 1985. História. Tradução, introdução e notas de Mário da Gama Kury. HESÍODO. 2013. Trabalhos e Dias. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Hedra. HESÍODO. 2013. Teogonia. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Hedra. HOMERO. 2011. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox. São Paulo: Companhia das Letras. HOMERO. 2013. Ilíada. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras. HOMERO. 2018. Ilíada. Tradução e ensaio introdutório de Christian Werner. São Paulo: SESI-SP/Ubu. HOMERO. 2018. Odisseia. Tradução e ensaio introdutório de Christian Werner. São Paulo: Ubu. Bibliografia geral BOCCACCIO, G. 2011. On Famous Women. Translated with introduction and notes by Guido A. Guarino, New York: Italica Press. CASSIN, B.; MATHIEU, M. 2000. Voir Hélène en toute Femme: D’Homère à Lacan. Paris: Institut Sanofi-Synthélabo. COELHO, M. C. M. N. 2000. Imagens de Helena, Clássica 13, n. 13/14, p. 159–172. 556

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COELHO, M. C. M. N. 2010. Ilusão e representação na Helena de Eurípides. In: CARDOSO, Z. A. V.; DUARTE, A. S. (Orgs.). Estudos sobre o teatro antigo. São Paulo: Alameda, p. 51–78. COELHO, M. C. M. N. 2014. Banhos de sangue femininos: reflexões sobre um tópos. In: TIBURI, M.; BORGES, M. L. (Eds.). Machismos e feminismos. Florianopolis: EdUFSC, p. 193–218. COELHO, M. C. M. N. 2017. Horses for Ladies, High-riding Women and Whores. In: MATHESON, S. (Ed.). Iconography and Archetypes in Western Film and Television. Jefferson: McFarland and Company, p. 113–123. COELHO, M. C. M. N. 2016. Helena troiana: a fama de um nome e o desejo de vingança no cinema, Artefilosofia, Minas Gerais, n. 20, p. 15–32. GOTTSCHALL, J. 2008. The Rape of Troy: Evolution, Violence, and the World of Homer. Cambridge: Cambridge University Press. KLEJN L. S. 2012. Incorporeal Heroes: The Origins of Homeric Images. Cambridge: Cambridge Publishing. KNOX, B. 2011. Introdução e notas. In: HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras. p. 7-93. SAIS, L. A. Penélope. In: SILVA, S. C.; BRUNHARA, R.; VIEIRA NETO, I. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História. Goiânia: Tempestiva, 2021. p. 601-606. SISSA, G. 1993. Filosofias do gênero: Platão, Aristóteles e a diferença dos sexos. In: PANTEL, P. S. (Org.). História das mulheres: A Antiguidade. Porto; São Paulo: Afrontamento, p. 79–125. TSAGALIS, C. 2008. The Oral Palimpsest: Exploring Intertextuality in the Homeric Epic. Cambridge, MA: Harvard University Press. Disponível em: http://chs.harvard.edu/CHS/article/display/6001. Acesso em: 2 mai 2021. 557

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WOLFTHAL, D. 2000. Images of Rape: The ‘Heroic’ Tradition and its Alternatives. Cambridge: Cambridge University Press.

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Χρυσηΐς › Criseida

por Antonio Orlando Dourado-Lopes

Criseida é uma jovem que aparece somente no canto I da Ilíada. Foi sequestrada pelos aqueus (nome pelo qual os gregos são conhecidos no poema, ao lado de ‹dânaos› e ‹argivos›) da cidade de Tebas, localizada na Cilícia, ao sul da região de Troia (Ilíada, I, 366–369; note-se que essa cidade é distinta da homônima Tebas, na Beócia). Como indica o sufixo ίς – ís ao final de seu nome em grego, o nome ‹Criseida› (Χρυσηΐς [Khrysēís]) é um patronímico, derivado do nome do pai da jovem, ‹Crises› (Χρυσης [Khrýsēs]), formado a partir do nome de sua cidade, ‹Crisa› (Χρύση [Khrýsē]; Ilíada. I, 37 e 451), também ao sul de Troia, derivado por sua vez do substantivo χρυσός [khrysós], ‹ouro› (Wathelet 1988, s.v. e Pellizer 2013, s.v.). A guerra de Troia teve por objetivo punir o rapto, ou, de acordo com outra interpretação, o adultério seguido de fuga da rainha espartana Helena com o príncipe troiano Páris (o poema é ambíguo a esse respeito). Tendo começado a se formar como prática oral já no Período Micênico (séculos XVI–XII aEC) ou, segundo alguns, mesmo antes, os poemas homéricos são um testemunho literário do modo de vida e dos valores gregos do período. Na ótica homérica, essa seria uma época de homens extraordinariamente vigorosos, superiores fisicamente aos das gerações posteriores e próximos dos deuses (com os quais alguns tinham laços de consanguinidade). Esse período veio a ser conhecido na imaginação mítica e poética dos gregos como «Idade dos Heróis» (expressão cunhada a partir do chamado «mito das raças», contado por Hesíodo em Trabalhos e dias, 106–201). Segundo os poemas homéricos, os saques perpetrados pelos aqueus a cidades próximas eram

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prática comum (e provavelmente também o eram na realidade histórica): permitiam aos exércitos obter mantimentos, riquezas e escravos, integrando o butim (γέρας [géras]) distribuído entre os combatentes. Essa distribuição era proporcional à participação de cada guerreiro nos combates, já que o butim representava tanto uma compensação pelos perigos, gastos e sofrimentos da guerra, quanto um prêmio de reconhecimento da comunidade pelas façanhas empreendidas (Kirk 1990, ad Ilíada, VI. 424, que remete a I. 154; XVIII. 527–529 e XX. 90 ss.). Os escravos assim obtidos poderiam ser de ambos os sexos, mas, enquanto as mulheres escravizadas poderiam ter qualquer idade, os escravos do sexo masculino eram limitados à infância, já que os homens adultos eram obrigatoriamente mortos como inimigos de guerra. A Ilíada dá a entender que seria comum as mulheres mais jovens escravizadas se tornarem amantes de seus proprietários (Kirk 1990, ad Ilíada, I. 425–428). São essas as circunstâncias em que Criseida aparece no início do poema, mencionada na iminência de se tornar amante de Agamêmnon, o principal rei do conjunto dos exércitos aqueus. A importância de Agamêmnon entre os aqueus sugere que ela se destacaria por sua beleza, o que ele confirmará com suas próprias palavras (Homero. Ilíada, I. 29–31 e 110–115). A situação de Criseida é análoga à de outra jovem, Briseida, sequestrada pelos aqueus durante o saque a uma cidade próxima a Tebas, Lirnesso, e que coube a Aquiles (cf. infra, s.v. «Briseida» [p. 565-570]). Embora mencionada apenas no canto I e nunca apareça falando, Criseida tem grande importância para o núcleo da trama da Ilíada. Filha de Crises, sacerdote do deus Apolo na cidade de Crisa (Homero. Ilíada, I, 37–42), sua devolução é reivindicada por seu pai, que vai ao acampamento aqueu especificamente para esse fim. No entanto, Agamêmnon recusa-se a atender ao pedido do sacerdote e, insultando-o, 560

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expulsa-o de lá. Afastando-se, Crises implora pela proteção de Apolo e é imediatamente atendido pelo deus, que, enfurecido, lança terrível peste sobre os aqueus (Homero. Ilíada, I. 43–52). Ao ser informado pelo adivinho Calcas da cólera do deus (Homero. Ilíada, I. 88–100), Agamêmnon aceita relutantemente devolver Criseida ao pai, anunciando, porém, que exigirá em troca a escrava do butim de algum outro guerreiro aqueu (Homero. Ilíada, I. 118–120 e 130–147). Protestando contra essa exigência de Agamêmnon (Homero. Ilíada, I. 11), que afrontava as práticas tradicionais dos aqueus, Aquiles acaba provocando a ira do rei, que não só mantém a exigência como ainda, para puni-lo, especifica que tomará uma escrava do butim do próprio Aquiles, do de Ájax ou do de Odisseu (Homero. Ilíada, I. 133–139). É o que acontecerá de fato, sendo Aquiles o prejudicado, por ter afrontado publicamente o rei; Aquiles lhe entrega, assim, sua cativa, Briseida (Homero. Ilíada, I. 161–162, 172–187 e 366–392). Em seguida, Criseida é devolvida por Odisseu a seu pai, que, com nova prece, aplaca a cólera de Apolo (Homero. Ilíada, I. 430–457). Criseida é designada na Ilíada por «κούρη» [koúrē], «moça», sendo algumas vezes também qualificada com o epíteto «καλλιπάρῃον» [kallipáre(i)on], «de belas bochechas» (Homero. Ilíada, I. 111, para o substantivo; Ilíada, I. 143, 310 e 369, para o epíteto [«epítetos» são adjetivos que acompanham repetidamente os nomes próprios dos deuses, dos principais heróis e dos fenômenos naturais nos poemas homéricos]). Essas referências nos mostram que, na Ilíada, as mulheres —e, talvez, especialmente as mais jovens— estão permanentemente sujeitas ao que eventuais guerras ou saques fizerem delas. Sua beleza pode expô-las ainda mais ao risco do rapto e da escravização. No caso de Helena, embora as condições em que aparece no poema não a limitem a essa triste realidade feminina, pois dá demonstrações de autoconfiança e de 561

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independência na sociedade troiana, Páris não deixa de dizer uma vez que a teria «raptado» de Esparta (Homero. Ilíada, III. 444: «épleon harpáxas» [«voguei tendo-a raptado»]; cf. Kakridis 1971, p. 28–30). Obras posteriores costumam fornecer informações complementares aos poemas homéricos, sobre detalhes da trama, dos personagens ou, ainda, sobre acontecimentos anteriores ou posteriores aos dos poemas. Entretanto, não há como se ter certeza quanto à origem de parte ou da totalidade dessas informações, se emanam propriamente da tradição oral épica mais antiga ou se não passariam de elaborações posteriores, do período arcaico, clássico ou mesmo helenístico. Destaquemos, nessa tradição, os chamados «escólios» (do grego «σχόλιον» [schólion]: «comentário», «interpretação»): comentários marginais feitos pelos copistas, baseados nos estudos dos eruditos do período helenístico e anotados nas margens dos manuscritos antigos e medievais dos textos dos poemas gregos e romanos. Segundo nos informam os escólios sobre Ilíada, I. 18, ao ser raptada, Criseida estaria na cidade de Tebas, para realizar, junto com a princesa Ifínome, sacrifícios em honra de Ártemis. Segundo Hesíquio (Latte 1953–1966, s.v.) e Eustácio, Criseida se chamaria propriamente Astínome (Ἀστυνόμη [Astynόmē]). Criseida foi ainda mencionada por diversos autores posteriores, gregos e latinos, mas em referências sempre muito breves que, em linhas gerais, apenas repetem o retrato da jovem e dos acontecimentos já narrados na Ilíada. O erudito e fabulista latino Higino (séc. I EC) narra a matéria troiana entre as fábulas 77 e 127 de sua obra, resumindo a trama da Ilíada na de número 121. Todavia, modificando a versão homérica, Higino acrescenta que Criseida, ao contrário do que jurou Agamêmnon, teria engravidado dele, vindo a ter 562

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um filho chamado Crises, em homenagem ao pai da moça. Ainda segundo o fabulista, para esconder a paternidade de Agamêmnon, Criseida a teria atribuído ao deus Apolo. Na passagem do século I para o II EC, em Como os jovens devem ouvir os poemas, o biógrafo e moralista de origem grega Plutarco assinalou a importância de Criseida para a trama da Ilíada, observando que «Agamêmnon é ridículo nas coisas acontecidas e ditas por ele no que diz respeito à assembleia, já no que concerne a Briseida é mais solene e mais como um rei» (14d–37b). O poeta e gramático bizantino Ioannes Tzetzes, que viveu em Constantinopla (1110–1180 EC), compôs em versos iâmbicos de quinze sílabas, conhecidos como versos «políticos», três longos poemas em grego que retomam a matéria troiana, dedicados aos acontecimentos anteriores à guerra, aos da guerra propriamente dita e aos posteriores a ela (conhecidos, respectivamente, pelos títulos latinos de Antehomerica, Homerica e Posthomerica). No primeiro deles, Tzetzes descreve Criseida como uma jovem de pequeno porte e ainda com a delicadeza e a timidez de sua recente adolescência (Antehomerica, 346–355; cf. 355–362 para o constaste com as características mais maduras e sensuais de Briseida). Ao longo da Idade Média, o personagem de Criseida renova-se com o nome latinizado de «Cressida» e aparece como protagonista de uma história de amor em Troia, nos primeiros anos da guerra, com um jovem de nome Troilus. No entanto, o romance entre os dois se frustra pela partida da jovem para juntar-se ao pai durante a guerra. Dessa narrativa, o poeta Benoît de Sainte Maure (séc. XII EC) teria composto, entre 1150 e 1160 e com cerca de 30.000 versos, o poema épico Le Roman de Troie [O romance de Troia]. A partir da obra de Sainte-Maure, Giovanni Bocaccio compôs, aproximadamente entre 1355 e 1340, e dividido em oito cantos, o poema narrativo Il Filostrato, com cerca de 40.000 versos, e, 563

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em meados da década de 1380, Geoffrey Chaucer compõe o poema épico Troilus and Criseyde, responsável por uma perspectiva mais favorável de Cressida do que a de Boccaccio (Antonelli 1989). A mesma trama foi retomada por William Shakespeare, na tragédia Troilus and Cressida, provavelmente composta em 1602. Fontes históricas EUSTATHII ARCHIEPISCOPI THESSALONICENSIS COMMENTARII AD HOMERI ILIADEM PERTINENTES. 1971–1987. Edidit M. van der Valk. Leiden: Brill. Vols. 1–4.  HESYCHIUS. HESYCHII ALEXANDRINI LEXICON. 1953–1966. Edidit K. Latte. Copenhagen: Munksgaard. Vols. 1–2. HOMERI ILIAS. 2000–2011. Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Recensuit et testimonia congessit M. L. West. Berlin / New York: De Gruyter. Volumen Prius: Rhapsodiae I-XII. HOMERI ILIAS. 2000–2011. Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Recensuit et testimonia congessit M. L. West. Berlin / New York: De Gruyter. Volumen Secundus: Rhapsodiae XIII-XXIV. IOANNIS TZETZAE ANTEHOMERICA, HOMERICA ET POSTHOMERICA E CODICIBUS EDIDIT ET COMMENTARIO INSTRUXIT. 1793. Ed. F. Iacobs. Leipzig: Weidmannsche Buchhandlung.

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Βρισηΐς › Briseida

por Antonio Orlando Dourado-Lopes

Assim como Criseida, Briseida é uma jovem que aparece pouco mas tem importante função na Ilíada (cf. supra, s.v. «Criseida» [p. 559-564]). Também foi sequestrada pelos aqueus de uma cidade localizada na Cilícia, Lirnesso, ao sul da região de Troia (Ilíada, II. 689–691). A proximidade entre essa cidade e uma de nome Tebas, de onde Criseida foi sequestrada, sugere que as duas cidades teriam sido saqueadas na mesma campanha guerreira (Homero. Ilíada, II. 689–691 e Edwards, 1991, ad loc.; [note-se que a Tebas aqui referida é distinta da homônima na Beócia, sendo às vezes denominada «Tebas Hipoplácia», por localizar-se logo abaixo da montanha de Placo]). Essa também era a região de Eneias, parecendo, portanto, ter sido particularmente cara aos responsáveis pela versão da Ilíada que nos chegou, que assim a teriam homenageado (Reinhardt 1961, 53–54; Eneias se destacará em Ilíada, XX. 75–352). Como indica o sufixo -ίς [-ís] ao final de seu nome em grego, o nome ‹Briseida› (Βρισηΐς [Brisēís]) é um patronímico, derivado do nome do pai da jovem, ‹Brises› (Βρίσης [Brísēs]; Ilíada, I. 392; Wathelet 1988, s.v. e Pellizer 2013, s.v.). Embora somente conhecida na Ilíada por esses patronímicos, em acordo com os costumes da época, ela também teria um nome próprio individual (necessário, já que os patronímicos seriam comuns entre filhos e entre filhas do mesmo pai). No início do poema, Briseida está na iminência de se tornar amante de Aquiles, o principal guerreiro do conjunto dos exércitos aqueus (sobre a guerra de Troia, cf. supra). A importância de Aquiles como principal guerreiro aqueu sugere que, assim como Criseida —que coube ao principal rei

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dos aqueus, Agamêmnon—, também Briseida se destacaria por sua beleza, o que os dois heróis confirmarão com suas próprias palavras (Homero. Ilíada, I. 29–31 e 110–115). Embora mencionada poucas vezes na Ilíada e apareça falando uma única vez, Briseida tem grande importância para o núcleo da trama do poema. Começa a se destacar quando Agamêmnon é obrigado a devolver a cativa que recebera como butim de guerra, Criseida, ao pai da moça, Crises, porque este era sacerdote do templo de Apolo. Para compensar a restituição de Criseida, Agamêmnon usurpa Briseida de Aquiles, pois este havia incomodado o rei com sua reivindicação de que o butim já distribuído fosse mantido (Homero. Ilíada, I. 161–162, 172–187 e 366–392). Privado injustamente de Briseida, Aquiles lamenta-se junto a sua mãe, a deusa marinha Tétis, que lhe promete pedir a Zeus que o compense pela desonra perpetrada por Agamêmnon (Homero. Ilíada, I. 348–430). Em consequência desses acontecimentos, Agamêmnon toma Briseida de Aquiles, que a entrega sem resistência aos emissários do rei, Ájax e Odisseu; todavia, «a mulher vai com eles a contragosto» (Homero. Ilíada, I. 345–348). Em sua primeira reação à perda, o herói se refere a esse ultraje apenas como uma espoliação de seu butim, sem particular referência à moça, a parte subtraída (Homero. Ilíada, I. 355–356). No entanto, a voz narrativa nos dirá mais tarde que, após deixá-la partir, o herói estava «irado em seu ânimo por causa da mulher de bela cintura,/ da qual o despojaram contra a sua vontade» (Homero. Ilíada, I. 429–430; cf. também II. 694). O poema também nos diz que, antes de ser tomada como prisioneira de guerra, Briseida era casada e vivia em Lirnesso (Homero. Ilíada, II. 688–694 e XIX, 282–300). Ela difere, nesse aspecto, de Criseida, apresentada no poema como uma jovem que ainda não se havia casado. Não obstante, assim como Criseida, Briseida também é, em geral, designada por 566

A presença das mulheres na Literatura e na História

«κούρη» [koúrē], «moça», e também qualificada com o epíteto «καλλιπάρῃον» [kallipáre(i)on], «de belas bochechas» (Homero. Ilíada, I. 336, 392; II. 689; ΙΧ. 106, 132, 274; XIX, 261, para o substantitvo; I. 184, 323 e 346; XIX. 246; XXIV. 676, para o epíteto; como exceção, veja-se I. 429–430, mencionada acima, e também o comentário abaixo, sobre Homero. Ilíada, XIX. 286). Tendo essas características em comum com Criseida e tornando-se, após a devolução desta, um objeto de disputa entre Agamêmnon e Aquiles, Briseida assumirá, de certo modo, o lugar de Criseida na Ilíada, embora não seja mencionada mais do que algumas vezes até o final. No conjunto, as características de Briseida também a aproximam de Andrômaca, esposa de Heitor e filha do rei Eécio, de Tebas Hipoplácia, a mesma cidade de onde Criseida teria sido raptada, na Cilícia (Homero. Ilíada, VI. 395–398). Em seu último encontro com Heitor, seu marido, Andrômaca previu a morte iminente deste e, para si mesma, um destino como viúva que podemos aproximar do que Briseida já estava efetivamente vivendo como cativa dos aqueus: longe dos pais, dos irmãos e dos familiares próximos, condenada a submeter-se às ordens de um proprietário estrangeiro (Homero. Ilíada, VI. 407–413). Tentando dissuadir Heitor de voltar ao combate, Andrômaca lhe descreve o ataque sofrido por sua família, quando Aquiles saqueou sua cidade e, por causa dos rebanhos, matou seu pai e seus irmãos e escravizou sua mãe (Homero. Ilíada, VI. 413–439; cf. Ilíada, I. 366–369; Reinhardt 1961, 53–54; Kirk 1990, ad Ilíada, VI. 414–428; Dué 2002, 24–26 e 77–88). No canto IX, com as sucessivas derrotas sofridas pelo exército aqueu, Nestor sugere a Agamêmnon que ofereça devolver Briseida a Aquiles, juntamente com presentes de reparação pelas injúrias sofridas, em que se incluem vasos, cavalos, mulheres troianas, a promessa de noivado com uma das 567

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filhas de Agamêmnon e ainda sete cidades (Homero. Ilíada, IX. 92–299). Agamêmnon acata a sugestão e ordena que Odisseu a transmita a Aquiles. Nessa ocasião, Aquiles dirá ter grande apreço por Briseida, embora seja uma cativa «conquistada pela lança» (douriktētḗs, Homero. Ilíada, IX. 343; cf. 335–345 para a fala de Aquiles). Mais à frente, somos informados que Aquiles dormia com Diomede, uma cativa que trouxe de Lesbos (Ilíada, IX. 663–665). As referências da Ilíada mencionadas acima nos mostram que as mulheres —e, talvez, especialmente as mais jovens— estão frequentemente sujeitas ao que eventuais guerras ou saques fizerem delas, sejam solteiras, como Criseida, sejam esposas de homens vencidos, como Briseida e Andrômaca. Sua beleza pode expô-las ainda mais ao risco do rapto e da escravização, como exemplificado na oferta de Agamêmnon a Aquiles, onde aquele incluiu sete lésbias «conhecedoras de trabalhos impecáveis (...), que venciam em beleza a raça das mulheres», e vinte troianas, «as mais belas depois de Helena» (Homero. Ilíada, IX. 128–131 e 139–140, nas palavras de Agamêmnon a Nestor; repetidas por Odisseu a Aquiles em 270–273 e 281–282). Também compõe essa realidade o valor dado à virgindade das jovens, como ressaltado pelo juramento, prometido por Agamêmnon a Aquiles, de «não ter subido ao leito e se misturado» (i.e., não se ter unido sexualmente) com Briseida antes de devolvê-la ao seu primeiro proprietário (Homero. Ilíada, IX. 131–134 e 273–276). Se as circunstâncias em que Helena aparece na Ilíada não a limitam a essa triste realidade feminina, pois dá diversas demonstrações de autonomia e de autoconfiança, Páris não deixa de dizer uma vez que a teria «raptado» de Esparta (Homero. Ilíada, III, 444: «épleon harpáxas» [«voguei tendo-a raptado»]; cf. Kakridis 1971, 28–30). 568

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Por fim, é no canto XIX que Briseida terá seu maior destaque: primeiramente, quando, na assembleia dos aqueus, Aquiles afirma que preferiria que Briseida tivesse morrido em lugar da grande quantidade de baixas do exército aqueu (Homero. Ilíada, XIX. 54–64); mais à frente, Agamêmnon jurará não ter tido relações sexuais com ela e a devolverá a Aquiles, juntamente com os valiosos presentes prometidos (Homero. Ilíada, XIX. 238–288; em particular 257–265, para o juramento). Nessa ocasião, Briseida será comparada pela voz narrativa com a «dourada Afrodite» e, em vez do habitual «moça» (κούρη [koúrē]), será excepcionalmente designada como «mulher igual às deusas» (Homero. Ilíada, XIX, 282 e 286, respectivamente; cf. supra a referência a I. 429–430, onde Briseida é designada como «mulher de bela cintura»). Briseida fará, então, uma tocante homenagem fúnebre diante do cadáver de Pátroclo, morto em combate por Heitor e trazido ao acampamento aqueu havia pouco (Homero. Ilíada, XIX. 282–300; cf. Dué 2002, 128–139). Por fim, somos informados de que seu envolvimento erótico com Aquiles se consumará a partir desse período, como notado pela voz narrativa, ao observar que os dois dormiam juntos à época da visita de Príamo ao herói (Homero. Ilíada, XXIV. 675–676). O escólio sobre Ilíada I. 392, e também Eustácio (Van der Valk [vol. 1] 1971–1987, 123. 10) e João Malalas (100. 15) informam que Briseida se chamaria Hipodâmia (Ἱπποδάμεια [Hippodámeia]). Na série de cartas fictícias, supostamente escritas por personagens femininas da literatura grega e latina para seus amados e intitulada As heroínas (em latim: Heroides), Ovídio incluiu uma de Briseida a Aquiles. Nela, o autor expandiu consideravelmente as informações sobre o relacionamento do casal em relação ao que nos conta a Ilíada, intensificando-lhe o erotismo e a passionalidade da jovem: ela se queixa do herói por 569

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se ter recusado a recebê-la de volta quando da oferta de reconciliação de Agamêmnon (vv. 39–44; cf. Homero. Ilíada, IX. 89–619), aconselha-o a abandonar sua cólera e ainda o acusa de ser um «mau amante» (vv. 85–92). Por fim, Briseida garante aos gregos que convencerá Aquiles a retornar aos combates, se for enviada ao acampamento do herói (vv. 127–130), chega a pedir-lhe que a mate (vv. 139–148), mas muda finalmente de ideia e insiste ainda uma vez que ele volte para ela (vv. 149–154). Fontes históricas EUSTATHII ARCHIEPISCOPI THESSALONICENSIS COMMENTARII AD HOMERI ILIADEM PERTINENTES. 1971–1987. Edidit M. van der Valk. Leiden: Brill. Vols. 1–4. HESYCHIUS. HESCHII ALEXANDRINI LEXICON. 1953–1966. Edidit: K. Latte. Copenhagen: Munksgaard. Vols. 1–2. HOMERI ILIAS. 2000–2011. Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Recensuit et testimonia congessit M. L. West. Berlin / New York: De Gruyter. Volumen Prius: Rhapsodiae I-XII. HOMERI ILIAS. 2000–2011. Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. Recensuit et testimonia congessit M. L. West. Berlin / New York: De Gruyter. Volumen Secundus: Rhapsodiae XIII-XXIV. MALALAS, I. 1831. Ioannis Malalae Chronographia. Corpus scriptorum historiae Byzantinae. Edidit: L. Dindorf. Bonn: Weber.

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Ἑλένη › Helena

por Ivan Vieira Neto

Ἑλένη ou Ἑλένα, na sua forma dórica, provém de uma grafia mais antiga, Ϝελένα, provavelmente com origens no proto-indo-europeu *Welénā ou *Swélenā. Esta etimologia aponta a correspondência entre a heroína grega e outras personagens e histórias dos mitos indo-europeus. O nome atesta uma relação com a luminosidade, assinalando que a personagem provém de uma mitologia astronômica muito antiga, como «senhora da luz solar» (West 2007, 231). Em tempos históricos, a personagem também parece remeter a uma divindade relacionada à vegetação, manifestada na Ἑλένη Δενδρίτης cultuada em Rhódos (Edmunds 2007, 12), relação que favorece a percepção de Helénā enquanto uma deusa mais antiga que a personagem da Iliás [Ilíada] (Clader 1976, 49). Bettany Hughes (2005, 56) informa que às sombras do Platanistás, próximo a Therápnē, as jovens espartanas se reuniam para a prática de danças rituais. A performance sensual que preparava as adolescentes para iniciarem a vida conjugal era dedicada a Helénā, reencenando a coreografia performada pela mítica ancestral aquando do seu arrebatamento por Thēseús (Ploútarkhos. Bíoi Parállēloi, Thēseús. 31–34). Em sua poesia, Theókritos (Eidýllia, 18. 43–48) apresenta elementos que atestam a sobrevivência de ritos matrimoniais aludindo às núpcias de Helénā e Menélāos, evidenciando um culto à «árvore de Helénā» que revela a permanência de seu status divino na região de Lakedaímōn. O descensus à condição de heroína deve ter suas origens no desenvolvimento da tradição épica, ainda nos domínios da oralidade. Após o surgimento da literacia, Helénā se apresenta

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ao imaginário ocidental nos episódios do Ciclo Épico de Troia. Um escólio à Iliás (Α, 5), provavelmente referindo-se às Kýpria [Cantos Cíprios], alude à personagem quando menciona as providências de Zeús e Mṓmos (Sarcasmo) para diminuir a população de heróis: a celebração das bodas entre Pēleús e Thétis —gerando Akhilleús— e o engredramento de uma bela filha [«θυγατρὸς καλῆς» (fr. 1)] que não pode ser outra, senão Helénā. Conforme a constatação de Ruby Blondell, Helénā não é somente bela, mas a mais bela entre as mulheres —«ἡ καλλίστη»—, manifestação irrevogável da beleza divina no mundo dos mortais (Blondell 2013, 48). Ela é a encarnação da cintilância de Aphrodítē (Gynaikō̂n Katálogos, fr. 68 I. 5–6). Enquanto duplo de Kýpris, Helénā não lhe usurpou os cultos e os sacrifícios, como fizera Psykhḗ (cf. Santos; Vieira Neto, 2021). Outrossim, a princesa de Spártā canalizou poderes manifestos pela deusa. Quando Tyndáreōs decidiu entregar a progênita ao matrimônio, os mais nobres —«οἱ ἄριστοι»— dentre os príncipes de toda a Hélade dirigiram-se ao reame lacedemônio com faustas promessas e suntuosas oferendas, almejando desposar a belíssima Helénā: notícias sobre a beleza e os encantamentos da nubente alcançavam todos os aqueus. O Gynaikō̂n Katálogos informa que a competição foi presidida pelo próprio Tyndáreōs e relata que um herói cujo nome não pode ser lido nos manuscritos anunciou inúmeros presentes e serviçais habilitadas nos trabalhos reservados ao sexo feminino. Ele seria a escolha dos dois Dióskouroi (Gynaikō̂n Katálogos, fr. 68 I. 13–14), mas o coração de Helénā pendia aos presentes trazidos pelo rei Agamémnōn de Mykē̂nai, enquanto preposto do irmão Menélāos. Sabendo que não poderia conquistar a bela Helénā, Odysseús solicitou a Tyndáreōs que o ajudasse a conquistar o coração de sua sobrinha Pēnelópē, a filha de Ikários, e em troca ofereceu-lhe um conselho para evitar o confronto entre os pretendentes reunidos em Spártā. Então, 572

A presença das mulheres na Literatura e na História

anuindo ao pedido e seguindo a recomendação do filho de Laértēs, Tyndáreōs reuniu os pretendentes e solicitou que todos jurassem defender Helénā, seu esposo e a legitimidade do seu leito (Gynaikō̂n Katálogos, fr. 68 I. 89–90). Após as bodas com Helénā, Menélāos sucedeu ao seu pai no trono espartano. Helénā deu à luz a bela Hermiónē e, nesta ocasião, dando prosseguimento aos planos anunciados nas Kýpria, Zeús proibiu que os deuses continuassem se reproduzindo com os homens mortais — pois naquele momento se encerrava a Idade dos Heróis e muitas dores e sofrimentos estavam reservados aos «ἡμίθεοι», os descendentes dos deuses imortais (Gynaikō̂n Katálogos, fr. 68 II. 4–13). As aflições enviadas por Zeús arrastariam aqueus e anatólios ao combate numa guerra terrível, «πόλεμος κακός», causada pela bela Helénā, «Ἑλένης ἕνεκα» (Hēsíodos. Érga kaì Hēmérai, 161–165). As origens da guerra deveriam retroagir ao casamento entre Pēleús e Thétis, na intervenção de Éris e no Julgamento de Páris. Pois a trama inexorável das Moîrai colocava o príncipe espartano numa embaixada troiana a Spártā. Páris/Aléxandros, desobedecendo aos preceitos sagrados da «ξενία» aqueia, sob os auspícios de Kýpris, arrebatou Helénā ao leito de Menélāos. Pseudo-Apollódōros usa o verbo «ἁρπάζω», sugerindo a ação direta de Aléxandros e a ausência de agência por parte de Helénā. Conta-nos na Bibliothḗkē que era parte do plano de Zeús que a beleza de Helénā enredasse pela guerra Ásia e Europa: «ἵνα Εὐρώπης καὶ Ἀσίας εἰς πόλεμον ἐλθούσης ἡ θυγάτηρ αὐτοῦ ἔνδοξος γένηται» (Bibliothḗkē, Epitome II. 1). Como Pandṓrā, Helénā também é, em última instância, um «καλὸν κακόν» —«belo mal» (Theogonía, 585)—, enviado pela obstinação destrutiva de Zeús Kronídēs para flagelar a humanidade. 573

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É evidente a imbricação entre as histórias dos heróis aqueus e a de Helénā. Todos se apresentaram diante dela no palácio de Tyndáreōs, enquanto pretendentes, e outra vez mais, em solo asiático, diante das muralhas de Ílion. Exceto por Akhilleús, sua contraparte masculina, consoantes os fragmentos restantes dos Cantos Cíprios. Ruby Blondell foi quem melhor compreendeu os laços entre o Pēleídēs e a Tyndarís, dois iguais: «a beleza dela sendo tão mortal quanto a força física dele» (Blondell 2013, 27). O Gynaikō̂n Katálogos informa que não se fosse pela ausência de Akhilleús, Menélāos não poderia se sobressair entre os pretendentes (Gynaikō̂n Katálogos, fr. 68 I. 100–105), tamanha a força que conectava os dois agentes da vontade de Zeús. Providencialmente, Akhilleús também se ausenta da segunda reunião de heróis diante de Helena, no episódio iliádico conhecido como Teikhoskopía. Na ocasião, o rei Príamos se apresenta como subrogado do rei Tyndáreōs, dirigindo-se paternalmente a Helénā, a quem chama de «φίλον τέκος» {querida filha} (Γ. 162). Ali, a espartana identifica cada herói aqueu, pois deles se lembra enquanto pretendentes que se hospedaram no palácio paterno. Primeiro aponta o «βασιλεύς», Agamémnōn. Depois Odysseús, Ájax e Idomeneús, mas não encontra os irmãos, Kástōr e Polydeúkēs — e o poeta noticia que ambos estavam mortos em Lakedaímōn (Γ. 178; 200; 229–230; 234–237; 243–244). Antes de convidá-la a se apresentar sobre os muros de Troia, Îris encontra Helénā em seus aposentos, urdindo uma tapeçaria púrpura de dobra dupla decorada com motivos da guerra e dos infortúnios que aqueus e dardânios sofrem por sua causa (Γ. 125–128). Dirigindo-se a ela, Îris utiliza um termo incomum: «νύμφη», isto é, noiva (Γ. 130). Linda Lee Clader e Norman Austin assinalaram uma curiosa escolha no termo empregado para descrever a ação das figuras com as quais a 574

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espartana decora sua tapeçaria, «ἄεθλοι», mais condizentes com a ocasião de disputa pela noiva, «ἆθλος», que com o contexto de confronto militar (Clader 1976, 10; Austin 2008, 38 et seq.). Assim como o ideal arquetípico do noivo é manifestado pelo herói Akhilleús (Nagy 2013, 99), Helénā se apresenta à tradição como uma noiva ideal e desejável. Como uma jovem que aguarda o resultado das disputas para conhecer seu campeão, a Tyndarís manifesta a saudade que sente do primeiro marido e de seus progenitores (Γ. 139–140). Helénā confessa que no palácio troiano ela definha em tristeza e solidão, recordando a filha ainda pequena e as companheiras que deixou para trás em Spártā (Γ. 175–177). Mas os eventos que causaram seu sofrimento estão além da sua volição, impostos pela vontade numinosa de Zeús e pelo jugo de seu duplo divino: Aphrodítē. Esta ansiedade é compartilhada com todas as jovens noivas na tradição helênica, privadas de agência face às imposições do poder masculino. Diferentemente da primeira vez que os heróis se reuniram para cortejá-la no palácio de Tyndáreōs, Helénā agora não pode escolher quem ela quer por marido — e nem as proezas heróicas no campo de batalha definem quem ganhou a noiva: Kýpris intervém na peleja para defender seu protegido do assassínio certo pelas mãos de Menélāos, levando-o para a segurança de um leito conjugal duplamente ilegítimo. Além de raptar a noiva transgredindo as normas da xenía, Páris a perdera em combate para um homem mais valoroso que ele. Ainda assim, Aphrodítē ordena a Helénā, não sem protestos, que encontre o príncipe troiano no aconchego erótico do tálamo (Γ. 390–399). Refém das maquinações divinas, a rainha espartana compreende que o sofrimento de aqueus e dardânios objetiva a sua imortalização pela tradição poética. «Sobre nós Zeús fez abater um destino doloroso, para que no futuro 575

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sejamos tema de canto para homens ainda por nascer», afirma a espartana a um desesperado Héktōr (Ζ. 357–358. Tradução de Frederico Lourenço). De facto, Helénā se engaja diretamente no tema da canção e da elegia heróica juntando-se a Hekábē e Andromákhē nos lamentos durante os funerais do cunhado (Ω. 762–775). Gregory Nagy notou que as lamentações são ocasiões de performance, o que confere aos lamentos das personagens femininas um caráter premonitório (Nagy 2013, 87). Sabendo que na tradição poética passado e futuro são, igualmente, domínios presentificados pela intervenção das divindades e, em especial, das Moûsai (Palavro 2021), os lamentos se constituem numa écfrase da criação poética da épica, antecipando a atribuição da glória heróica. Como casus belli, poder-se-ia inferir que Helénā assegura aos heróis chacinados na refrega o acesso à glória imorredoura, «κλέος ἄφθιτον» (Ι. 413). Quando a reencontramos na Odýsseia [Odisseia], Helénā está reunida com Menélāos, resignada ao papel de esposa dócil e mulher arrependida dos seus erros passados. Vemo-la emergir dos seus aposentos perfumados através dos olhos de Tēlémakhos, para quem ela se assemelha à deusa Ártemis (Odýsseia, Δ. 121–122). Ela traz consigo os utensílios de tecelagem que lhe foram oferecidos como presentes durante a estadia do casal no Egito (Odýsseia, Δ. 133–135). Como em sua aparição na Ilíada, Helénā coloca em evidência a tecelagem, a atividade feminina emulada pela narrativa poética (Chantraine 1968). Deste modo, a heroína anuncia a sua participação no enredo, primeiro identificando os heróis aqueus para o monarca estrangeiro, e nesta ocasião, para contar que certa vez reconheceu Odysseús em andrajos de mendigo em Ílion e não o denunciou aos troianos, mas confabulou com ele uma 576

A presença das mulheres na Literatura e na História

estratégia para que os argivos vencessem a guerra (Odýsseia, Δ. 244–256). As duas passagens atestam a participação ativa da rainha espartana na atribuição das glórias heróicas aos aqueus. Destarte, a tradição épica delineia uma personagem sofisticada e equívoca, transitando entre seus poderes divinos e o sofrimento da condição heróica/humana. Como noiva sempre em disputa, Helénā se constitui numa força simbólica indômita, desejada igualmente por todos os aqueus —e, por isso, um símbolo pan-helênico— e suscetível ao jugo dos deuses e de povos estrangeiros, embora expresse claramente o apreço por sua pátria, pelo palácio, pelo marido e pela filha (Odýsseia, Δ. 260–264). Reunidos sob o juramento a Tyndáreōs, os mais valorosos entre os heróis helênicos submetem-se ao infortúnio e aos sofrimentos em terras estranhas visando recuperá-la. Apesar dos estudos etimológicos desencorajarem a identificação entre Helénā e Hellás —«Ἑλένᾱ», nome da heroína, e «Ἑλλάς», o conjunto de territórios gregos—, a tradição consagra uma relação indiscutível entre a personagem mitológica e a ideia de uma pátria espiritual dos helenos. Consoante o retrato que lhe fizeram os poetas, Zeús e a Moîra escolheram-na para encarnar o ideal identitário e civilizacional heleno. Foi Helénā quem reuniu os heróis aqueus —e, por extensão, os homens gregos— diante de si e orientou-lhes para a causa comum: «primeiro para a côrte, depois para a guerra sobre a qual se construiu a identidade grega» (Blondell 2013, 199–200). Ocultando sua ascendência humana a partir de Tyndáreōs e Lḗdā (Guerra 2021, 204–206), mostrando-a como filha de Zeús —«Διὸς θυγάτηρ»— e irmã de Kástōr e Polydeúkēs, os autores da Ilíada e da Odisseia revelaram as faces divinas de Helénā, conferindo-lhe domínio sobre toda a Hélade. 577

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. The Library. Translated by Sir James George Frazer. London: William Heinemann/New York: Putnam’s Sons. Loeb Classical Library 121–122. GREEK EPIC FRAGMENTS. 2003. From the Seventh to the Fifth Centuries BC. Edited and translated by Martin Litchfield West. London/Cambridge, MA: William Heinemann/Harvard University Press. Loeb Classical Library 497. HESIOD. 1920. Hesiod, Homeric Hymns and Homerica. Translated by Hugh G. Evelyn-White. London/Cambridge, MA: William Heinemann/Harvard University Press. Loeb Classical Library 057. HESIOD. 2018. Theogony; Works and Days; Testimonia. Translated by G. W. Most. Cambridge, MA: Harvard University Press. Loeb Classical Library 057. HESIOD. 2018. The Shield; Catalogue of Women; Other Fragments. Translated by Glenn W. Most. Cambridge, MA: Harvard University Press. Loeb Classical Library 503. HOMER. 1919. Odyssey. Translated by Augustus Taber Murray. London/Cambridge, MA: William Heinemann/ Harvard University Press. Loeb Classical Library 104–105. HOMER. 1924–1925. Iliad. Translated by Augustus Taber Murray. London/Cambridge, MA: William Heinemann/ Harvard University Press. Loeb Classical Library 170–171. HOMERO. 2018. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal. HOMERO. 2019. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal. 578

A presença das mulheres na Literatura e na História

PLUTARCH. 1914. Lives, I: Theseus and Romulus; Lycurgus and Numa; Solon and Publicola. Translated by Bernadotte Perrin. London/Cambridge, MA: William Heinemann/ Harvard University Press. Loeb Classical Library 046. THEOCRITUS. 2015. Idylls. Translated by Neil Hopkinson. Cambridge, MA: Harvard University Press. Loeb Classical Library 28. Bibliografia geral AUSTIN, N. 2008. Helen of Troy and her shameless phantom. Ithaca & London: Cornell University Press. BLONDELL, R. 2013. Helen of Troy: beauty, myth, devastation. Oxford/New York: Oxford University Press. BRANDÃO, J. S. 2014. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes. CHANTRAINE, P. 1968. Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque. Paris: Klincksieck. CLADER, L. L. 1976. Helen: the evolution from divine to heroic in Greek epic tradition. Leiden: Brill. EDMUNDS, L. 2007. Helen’s divine origins, Electronic Antiquity, Blacksburg, vol. 10, n. 2, 1–45. GUERRA, L. 2021. Leda. In: SILVA, S. C.; BRUNHARA, R.; VIEIRA NETO, I. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História. Goiânia: Tempestiva, 203–210. GRIMAL, P. 2011. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. HUGHES, B. 2005. Helen of Troy: goddess, princess, whore. New York: A. A. Knopf. MEAGHER, R. E. 2002. The Meaning of Helen: in search of an ancient icon. Wauconda: Bolchazy-Carducci Publishers. 579

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NAGY, G. 2913. The Ancient Greek Hero in 24 Hours. Cambridge, MA/London: Belknap Press. PALAVRO, B. 2021. Musas. In: SILVA, S. C.; BRUNHARA, R.; VIEIRA NETO, I. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História. Goiânia: Tempestiva, p. 45–48. SANTOS, N. M. W.; VIEIRA NETO, I. 2021. Psiquê. In: SILVA, S. C.; BRUNHARA, R.; VIEIRA NETO, I. Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade: a presença das mulheres na Literatura e na História. Goiânia: Tempestiva, p. 77–84. WEST, M. L. 2007. Indo-European Poetry and Myth. Oxford: Oxford University Press.

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Ἑκάβη › Hécuba

por Christian Werner

Seu nome grego é Ἑκάβη [Hekábē]; latino, Hecuba. É esposa de Príamo, rei de Troia, para quem gerou, entrou outros, Heitor, Páris, Cassandra, Polixena e Troilo. As fontes gregas arcaicas e clássicas mais importantes sobre a personagem são: Ilíada, poema épico atribuído a Homero, e as tragédias Hécuba e Troianas de Eurípides. Nada sabemos de concreto sobre as condições originárias de produção e transmissão da Ilíada, mas a maioria dos estudiosos propõe algum intervalo entre o fim do século VIII aEC e o início do século VI aEC para a cristalização do poema, e o mais provável é isso ter ocorrido em alguma região grega na qual preponderava o dialeto jônico. A base do conteúdo e da dicção do poema é oral. Eurípides, por sua vez, foi um poeta trágico que atuou sobretudo em Atenas na segunda metade do século V aEC Ambas as tragédias fazem parte de tetralogias distintas; uma tetralogia era composta por três tragédias e um drama satírico, o conjunto que um poeta devia apresentar para participar do principal festival dramático ateniense coevo, as Grandes Dionísias. Tanto a Ilíada como as tragédias de Eurípides chegaram até nós sobretudo por meio de manuscritos bizantinos. Hécuba é uma personagem da Idade dos Heróis, mais propriamente, do ciclo troiano, ou seja aquele composto por histórias míticas que gravitam em torno da Guerra de Troia, empreitada pan-helênica comandada por Agamêmnon para recuperar a honra de seu irmão Menelau, rei de Esparta, agredida por Páris ao raptar sua esposa Helena. Troia situa-se na atual Turquia, não muito longe do estreito de Dardanelos e de cidades gregas de dialeto jônico ao sul, no entorno das

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quais provavelmente se desenvolveu a poesia oral que deu origem à Ilíada. Uma hipótese recente coloca como centro de difusão principal a região em torno da cidade de Mileto (Frame 2009). Hécuba é filha do frígio Dimas (Homero. Ilíada, XVI. 718–19) ou de Cisseu (Eurípides. Hécuba, 3). Como esposa principal de Príamo, gerou-lhe dezenove filhos (Homero. Ilíada, XXIV. 496). Heitor é o filho preferido do casal na Ilíada (XXIV, 748), o que pode ser uma consequência do enredo do poema – o destino da cidade está ligado àquele de seu melhor guerreiro – e/ou uma tradição que o antecede ou ainda reflexo de uma tradição pouco citada na Antiguidade, a de que Heitor teria sido filho de Hécuba com o deus Apolo. Essa última tradição é mencionada apenas em alguns escólios (Estesícoro fr. 109 Finglass e Davies; Íbico fr. 295 PMGF). Na Ilíada, Hécuba tenta influenciar as ações dos responsáveis pelo destino de Troia, mas ela sempre fracassa (Roismann 2011, p. 334). A mando de Heitor, providencia, como esposa do rei, um objeto precioso que lhe permite o cumprimento de atividades rituais cuja função é garantir a simpatia de Atena (Homero. Ilíada, VI. 269–312; Canevaro 2018); o rito é ineficaz porque a deusa é inimiga dos troianos no contexto da guerra. A sacerdotisa troiana de Atena é Teanó, filha de Cisseu (Kissēs), nome quase igual ao pai de Hécuba em Hécuba (Kisseus). O Cisseu iliádico é trácio (Homero. Ilíada, XI. 223), o que, como se verá, é relevante para a representação de Hécuba na tragédia em questão. Quando Heitor está sozinho diante das muralhas e decide enfrentar Aquiles, seus pais lhe suplicam que entre na cidade. Para enfatizar seu pedido —e a emoção da cena— ela mostra um dos seios (Homero. Ilíada, XXII. 79–90). O mesmo contraste com o heroísmo masculino dos membros de sua família ocorre quando pede a Príamo, sem sucesso, que desista de tentar 582

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resgatar o cadáver de Heitor no meio do acampamento grego (Homero. Ilíada, XXIV. 193–216). Esta passagem é relevante porque Hécuba se coloca como potencialmente tão selvagem como Aquiles, que tenta debalde mutilar o corpo de Heitor (Apolo não permite que a violência seja exitosa): a retribuição que ela vislumbra pela morte do filho é comer, cru, o fígado de Aquiles. Trata-se de uma demonstração de violência latente que eclodirá na Hécuba de Eurípides. Mas Hécuba é, por excelência, a mater dolorosa da Ilíada. Assim como Andrômaca em relação a Heitor, seu marido, Hécuba é produtora de lamentos pelo filho, esse discurso essencialmente feminino no poema (Homero. Ilíada, XXII. 430–437; XXIV. 747–759). A Ilíada desconhece o sonho de Hécuba, grávida, de que iria parir o fogo que destruiria a cidade, ou seja, Páris. Em Píndaro, poeta lírico que atuou sobretudo nas primeiras décadas do século V aEC, encontramos a primeira referência a um sonho semelhante (Píndaro. Peã VIIIa Snell-Maehler, 17–22). É provável que esse sonho fosse importante na primeira tragédia da trilogia da qual fazia parte Troianas, o drama Alexandre, do qual só nos chegaram fragmentos, e ele é retomado em Troianas, cuja ação dramática é dominada por Hécuba. Troia foi conquistada e os gregos se preparam para destruí-la em definitivo. O drama é composto por uma sequência de interações entre Hécuba e outras cativas troianas, inclusive o coro. Hécuba sempre de novo tenta vislumbrar a possibilidade de uma ação efetiva no presente, mas a realidade volta a se mostrar destrutiva, de sorte que apenas lhe resta o lamento como discurso efetivo, ou melhor, canto pleno de beleza (Wohl 2015, 39–49): ela não entende as formas como Cassandra vislumbra o passado e o futuro ao insistir na glória das ações de Heitor e Páris; ela acredita que seu neto Astíanax poderá reerguer Troia no futuro, o que cai por terra quando 583

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se anuncia que a criança será lançada das muralhas; e ela visivelmente fracassa na tentativa de convencer Menelau de que Helena merece ser punida pelas consequências da guerra. Um dos argumentos de Helena para culpabilizar os outros é lembrar que foi Hécuba quem gerou Páris. Só resta a Hécuba contemplar como o fogo faz ruir as últimas ruínas da cidade, traída de tal forma pelos deuses, segundo o raciocínio da rainha, que até a existência de Zeus é posta em questão. Hécuba também trata de eventos relacionados à conquista de Troia, mas eles são cronologicamente posteriores àqueles representados em Troianas, muito embora esta tragédia seja de 415 aEC e aquela muito possivelmente de 424 ᴀEC (Battezzato 2018, 4). A ação dramática ocorre no acampamento aqueu: a armada iniciou o retorno e se encontra no Quersoneso (península de Galípoli, Turquia europeia), uma parte da Trácia ao norte de Troia, do outro lado do Helesponto. De forma semelhante ao que ocorre em Troianas, Hécuba precisa lidar com a perda do que tem de mais caro, mas aqui o espaço que tem para, de fato, agir é maior. A primeira perda é a filha Polixena, um sacrifício concebido como absurdo, exigido pelo fantasma de Aquiles e defendido por Odisseu, muito embora Hécuba o lembre de que sua vida foi poupada por ela quando esteve em Troia em uma missão de espionagem (Eurípides. Hécuba, 216–443). A segunda perda, mais terrível, já que Polixena aceita seu destino com nobreza, é a do filho Polidoro. Na Ilíada, trata-se do filho mais novo de Príamo, mas não com Hécuba, e sim com Laótoa (Homero. Ilíada, XXII. 46–48). Hécuba inicia com o fantasma de Polidoro resumindo seu destino: quando a cidade estava para ser conquistada, ele foi enviado, com um tesouro, ao rei Polimestor, um aliado trácio (eis uma possível relação com o Cisseu iliádico). Este mata o menino e seu cadáver é descoberto na praia após o sacrifício de Polixena. Nesse momento, a ação principal do drama 584

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se torna a vingança que Hécuba busca realizar contra Polimestor. Seu primeiro obstáculo é persuadir o rei Agamêmnon a, pelo menos, permitir que ela se vingue, o que consegue pois Cassandra é concubina do rei. E a vingança de Hécuba é terrível: não apenas ela cega Polimestor, mas também mata seus dois filhos pequenos, ou seja, uma punição potencialmente desproporcional cuja moralidade cumpre ao espectador decifrar. Hécuba mostra-se capaz da vingança selvagem que deseja na Ilíada. Na verdade, já se defendeu que a sua ação contra Polimestor a aproxima de uma mênade, para o que colaboram outros elementos do drama, como seu espaço trácio, ligado a Dioniso (Schlesier 1989). Polimestor então profetiza qual será o destino de Hécuba: transformada em cadela, ela irá subir o mastro do navio que deveria levá-la à Grécia, jogar-se do alto e morrer afogada. Trata-se de dois elementos — transformação em cadela, um animal que, associado a uma mulher, costuma ter conotação negativa no imaginário grego (Helena é assim caracterizada em Homero), e a terrível morte por afogamento – que, em si, não têm nada de positivo (Battezzato 2018, 249). Não é impossível que Eurípides esteja utilizando aqui um mito local, pois é afirmado que no local de sua morte, na península do Quersoneso trácio, um monumento seria erigido em sua homenagem, um sinal para os navegantes vindouros (Eurípides. Hécuba, 1273). Fontes históricas EURÍPIDES. 2004. Duas tragédias gregas: Hécuba e Troianas. Tradução e introdução de C. Werner. São Paulo: Martins Fontes. EURIPIDES. 2018. Hecuba. Edited by Luigi Battezzato. Cambridge: Cambridge University Press. HOMERO. 2018. Ilíada. Tradução e ensaio introdutório de Christian Werner. São Paulo: SESI-SP/Ubu. 585

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

PINDARUS. 1975. Fragmenta. Ed. by H. Maehler and B. Snell. Leipzig: Teubner. POETARUM MELICORUM GRAECORUM FRAGMENTA. 1991. Edited by D. L. Page and M. Davies. Oxford: Clarendon Press, 1991. STESICHORUS. 2014. The Poems. Edited with Introduction, Translation, and Commentary by M. Davies and P. J. Finglass. Cambridge: Cambridge University Press. Bibliografia geral CANEVARO, L. G. 2018. Women of substance in Homeric epic. Oxford: Oxford University Press. FRAME, D. Hippota Nestor. Washington, D.C.: Center for Hellenic Studies, 2009. ROISMAN, H. 2011. Hecuba. In: FINKELBERG, M. (Org.). The Homer encyclopedia. Vol. 2. Malden: Wiley-Blackwell, p. 334–335. SCHLESIER, R. 1988. Die Bakchen des Hades: Dionysische Aspecte von Euripides’ Hekabe, Métis, 3, p. 111–35. WOHL, V. 2015. Euripides and the politics of form. Princeton: Princeton University Press.

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Ἀνδρομάχη › Andrômaca

por Christian Werner

Seu nome grego é Ἀνδρομάχη [Andromákhē]. É esposa de Heitor e mãe de Astíanax; Heitor é filho do rei Príamo e principal guerreiro de Troia segundo a Ilíada. As fontes gregas arcaicas e clássicas mais importantes sobre a personagem são: Ilíada, poema épico atribuído a Homero; um poema fragmentário de Safo (fr. 44 Voigt, traduzido em Ragusa 2006 e Ragusa 2011); e as tragédias Andrômaca e Troianas de Eurípides. Nada sabemos de concreto sobre as condições originárias de produção e transmissão da Ilíada, mas a maioria dos estudiosos propõe algum intervalo entre o fim do século VIII ᴀEC e o início do século VI ᴀEC para a cristalização do poema, e o mais provável é isso ter ocorrido nas regiões gregas nas quais preponderava o dialeto jônico. A base do conteúdo e da dicção do poema é oral. Já o fragmento da poeta Safo de Lesbos, que atuou entre os séculos VII e VI ᴀEC, chegou até nós sobretudo por meio de dois papiros Oxirrinco dos séculos II e III EC e de algumas citações em fontes antigas (Ragusa 2006, 36). Eurípides, por fim, foi um poeta trágico que atuou em Atenas na segunda metade do século V ᴀEC Ambas as tragédias fazem parte de tetralogias distintas; uma tetralogia era composta por três tragédias e um drama satírico, o conjunto que um poeta devia apresentar para participar do principal festival dramático ateniense coevo, as Grandes Dionísias. Tanto a Ilíada como as tragédias de Eurípides chegaram até nós sobretudo por meio de manuscritos bizantinos. Andrômaca é uma personagem da Idade dos Heróis, mais propriamente, do ciclo troiano, ou seja aquele composto por histórias míticas que gravitam em torno da Guerra de Troia,

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

uma empreitada pan-helênica comandada por Agamêmnon para recuperar a honra de seu irmão Menelau, rei de Esparta, agredida pelo rapto de sua esposa Helena pelo troiano Páris. Troia situa-se na atual Turquia, não muito longe do estreito de Dardanelos e, portanto, daquelas cidades grega de dialeto jônico no entorno das quais provavelmente se desenvolveu a poesia oral que deu origem à Ilíada. Uma hipótese recente coloca como centro de difusão principal a região em torno da cidade de Mileto (Frame 2009). Andrômaca é filha de Eécio, rei de Tebas Sob-o-Placo (Homero. Ilíada, VI. 395–397), provavelmente no sul da Trôade (144). Seu filho com Heitor é chamado de Escamândrio pelo pai (Escamandro é o rio principal da planície troiana) mas de Astíanax pelo demais, pois este nome significa «senhor da urbe», ou seja, o nome aludiria à função do pai, proteger a cidade (Homero. Ilíada, VI. 400–403). Seu casamento – do qual faz parte a produção de um herdeiro – é o que define Andrômaca, e é a narrativa de suas bodas que compõe o único fragmento narrativo de Safo que chegou até nós. Na economia da Ilíada, a representação de Andrômaca a coloca em paralelo com as duas principais cativas de guerra do poema, Briseida e Criseida, sobretudo a primeira (Dué 2002). As três nasceram em cidades próximas de Troia que foram saqueadas por Aquiles. Tanto Criseida como Andrômaca tiveram todos os membros masculinos de sua família mortos por Aquiles, de sorte que, no caso de Andrômaca, é o marido quem lhe resta como família (Homero. Ilíada, VI. 414–430). Criseida, ademais, teve também seu marido morto por Aquiles (Homero. Ilíada, XIX. 291–296), no que prefigura a posição que Andrômaca ocupará a partir do canto XXII, quando Aquiles matar Heitor. 588

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A posição que Andrômaca ocupa no poema, portanto, é dupla: no presente, esposa de Heitor e mãe de seu único filho; no futuro, viúva (Werner 2008, 13). Com efeito, como viúva por excelência no poema, ela epitomiza o pior destino possível de uma cidade conquistada: com a morte de seus protetores masculinos, são escravizados os velhos e, sobretudo, as mulheres e criança, o que implica, no caso das mulheres, estupro e escravidão sexual (Werner 2008). A felicidade das bodas de Andrômaca é inseparável da morte de Heitor e destruição de Troia (Ragusa 2006); isso é uma constante em todas as fontes mencionadas. Na Ilíada, seus três discursos principais são tingidos pelas temáticas do lamento (Tsagalis 2004), o discurso feminino por excelência no poema, muito embora só o último seja um lamento em sentido estrito, ritual, quando então ela se encontra junto ao cadáver do marido morto. No primeiro (Homero. Ilíada, VI. 407–439), Andrômaca tenta convencer debalde Heitor a não arriscar em demasia sua vida no combate: ela representa seu destino certo de prisioneira de guerra, que decorrerá da morte do marido e posterior tomada da cidade. Embora a resposta de Heitor seja em boa medida compreensiva e ele afirme que a ninguém dirige tanto afeto quanto a ela, ao mesmo tempo ele reitera sua preocupação com a honra e a fama próprias (441–65). Ato contínuo, Homero produz uma das cenas mais famosas do poema: Heitor quer pegar o filho no colo, mas este fica apavorado com as armas do pai, sobretudo com a crina de cavalo que se agita na ponta do elmo, o que faz os pais sorrirem; somente após tirar as armas o guerreiro beija o filho e, quando o devolve à esposa, esta está sorrindo e chorando ao mesmo tempo (466–484). O segundo lamento de Andrômaca (Homero. Ilíada, XXII. 477–514) também está ligado a um ambiente doméstico no qual se mistura o horror da guerra e a impossível 589

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tranquilidade de uma vida na paz. Enquanto tece e ordena às servas que preparem um banho quente para Heitor, Andrômaca ouve os gritos de lamento de Hécuba, a mãe de Heitor, e de imediato teme pelo pior. Ela então corre até as muralhas de onde os troianos assistiram a seu melhor guerreiro ser morto por Aquiles, desmaia e, em seu discurso, vislumbra o desgraçado futuro de Astíanax como órfão de pai. No terceiro discurso, ela é mais contundente em relação ao destino sombrio da cidade e, por conseguinte, ao dela e do filho. Pela primeira vez cogita a possibilidade de o filho pequeno ser morto após a conquista da cidade. São duas as tragédias supérstites de Eurípides que têm Andrômaca como personagem. A data de estreia de Andrômaca é desconhecida, mas a análise métrica a localiza entre 425 e 418 ᴀEC Nessa tragédia, Andrômaca é a personagem principal na primeira metade do drama. A ação se passa nas proximidades de Ftia, a cidade para onde ela foi levada por Neoptólemo, o filho de Aquiles a quem ela coube como cativa de guerra, ou seja, como concubina após a conquista de Troia. Quando inicia a ação dramática, sua vida é ameaçada por Hermíone, filha de Helena e Menelau e esposa de Neoptólemo: esta tem ciúme daquela pois até agora não foi capaz de dar um filho a Neoptólemo, ao contrário de Andrômaca. O nome do filho desta não é mencionado no drama, mas em testemunhos posteriores ele é chamado de Molosso, herói epônimo dos molossos (Apolodoro. Epítome, VI. 12–13). Hermíone é auxiliada por Menelau, mas o avô de Neoptólemo, Peleu, pai de Aquiles, vem em resgate de Andrômaca e de seu filho. A salvação de Andrômaca in extremis é o clímax da primeira parte da tragédia, que então sofre uma mudança de curso: Orestes, a quem Hermíone fora prometida por primeiro, arquiteta um plano para que Neoptólemo seja morto em Delfos, onde está quando a tragédia inicia. A tragédia termina com a mãe de Aquiles, a deusa marítima 590

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Tétis, revelando ex machina o futuro: Andrômaca irá desposar o adivinho Heleno, um filho de Príamo, e viver na Molóssia, que será regida pelos descendentes de seu filho com Neoptólemo (Eurípides. Andrômaca, 1243–1252). A principal ligação entre a representação de Andrômaca nesta tragédia e aquela na Ilíada é sua impotência diante dos eventos dos quais é vítima, o que se materializa, como na Ilíada, em discursos de lamento, como os versos 103–116, a única passagem em versos elegíacos nas tragédias áticas supérstites (Werner 2014, 188–189). A Ilíada, portanto, é responsável por Andrômaca estar ligada a momentos de dor extrema na recepção da personagem. De fato, no poema épico, ao correr para as muralhas de onde lhe chegaram gritos funestos, ela é comparada a uma «mênade» (mainadi isēi: Homero. Ilíada, XXII. 460). Mesmo que esse termo, quando da produção da Ilíada, não tenha evocado o mundo de Dioniso, nada impede que não o tenha feito no processo de recepção do poema, até porque, quando Andrômaca chega na muralha e vê o cadáver do marido sendo puxado pelo carro de Aquiles – uma visão traumática, portanto – ela desmaia e joga longe os símbolos de seu casamento, entre eles o véu que recebera da própria Afrodite (462–472). Nesta pequena vinheta, comprimem-se elementos que Eurípides irá desenvolver em várias de suas ações dramáticas ligadas a personagens femininos: violência, morte, casamento e lamento. Troianas foi apresentada em Atenas em 415 ᴀEC. Quem domina a cena é Hécuba, e com ela interagem, em sequência, outras prisioneiras notáveis dos gregos, Cassandra, Andrômaca e Helena. Quando Andrômaca entra em cena, ela está junto do filho pequeno, Astíanax, e lamenta seu passado e futuro: o casamento glorioso com Heitor é causa de sua desgraça, pois é graças a suas virtudes de esposa perfeita que foi escolhida como concubina de Neoptólemo, filho do assassino do marido. 591

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Vazio é o breve otimismo de Hécuba ao vislumbrar a refundação futura de Troia pelo filho de Heitor: antes do fim do episódio, entra em cena o mensageiro grego, Taltíbio, para anunciar que Odisseu convenceu os gregos a matarem Astíanax, arremessando-o das muralhas da cidade (Eurípides. Troianas, 710–725). As bodas de Andrômaca de nada lhe valeram. Fontes históricas APOLLODORUS. 1912. The library. Translated by J. G. Frazer. 2 vol. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. EURÍPIDES. 2004. Duas tragédias gregas: Hécuba e Troianas. Tradução e introdução de C. Werner. São Paulo: Martins Fontes. EURÍPIDES. 2015. Andrômaca. In: Eurípides: teatro completo. Volume I. Tradução de J. Torrano. São Paulo: Iluminuras. HOMERO. 2018. Ilíada. Tradução e ensaio introdutório de C. Werner. São Paulo: SESI-SP/Ubu. Bibliografia geral DUÉ, C. 2002. Homeric variation on a lament by Briseis. Lanham: Rowman & Littlefield. FRAME, D. 2009. Hippota Nestor. Washington, D.C.: Center for Hellenic Studies. RAGUSA, G. 2006. Heitor e Andrômaca, da festa de bodas à celebração fúnebre: imagens épicas e líricas do casal na Ilíada e em Safo (Fr. 44 Voigt), Calíope, vol. 15, p. 37–64. RAGUSA, G. (Org.). 2011. Safo de Lesbos: «Hino a Afrodite» e outros poemas. São Paulo: Hedra. TSAGALIS, C. 2004. Epic grief: personal laments in Homer‘s Iliad. Berlin: De Gruyter. WERNER, C. 2008. Wives, widows and children: war victims in Iliad book II, Antiquité Classique, vol. 77, p. 1–18. 592

A presença das mulheres na Literatura e na História

WERNER, C. 2014. Lágrimas em verso: o canto crítico em Aristófanes e Eurípides. In: JUNQUEIRA, R.; VICENTE, A. L. (Orgs.) Teatro, cinema e literatura: confluências. São Paulo: Cultura Acadêmica/Edunesp, p. 177–200.

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Καλυψώ › Calipso

por Camila Jourdan

Para não confundirmos, na mitologia grega há duas mulheres nomeadas com a mesma grafia (Καλυψώ [Calypsṓ]) no Período Arcaico (séculos VIII–VI ᴀEC). Uma, filha de Tétis e Oceano, é chamada igualmente de ἱμερόεσσα Καλυψώ (amorosa Calipso) por Hesíodo (Teogonia, 359) e por Homero (Hino Homérico a Deméter, 422), sendo ela uma das oceânides; a segunda é apresentada por Homero na Odisseia (I. 14) como «Καλυψὼ δῖα θεάων» [Calipso... deia entre as divinas]. Nossa atenção recai sobre esta. «Καλυψώ» tem como origem o verbo «καλύπτειν», que significa «cobrir para proteger» (Brandão 2014, 113). De acordo com a tradição homérica, ela é uma ninfa filha de Atlas (Odisseia, I. 52), enquanto que Grimal aponta outra tradição que a vincula como filha de Hélio e Perseide (Grimal 2014, 71). A ninfa habita uma enorme gruta na ínsula Ogígia [Ὠγυγία], que para muitos estudiosos encontra-se ao largo mais ocidental do mar Mediterrâneo, com indicativos de ser a ilha de Ceuta (Homero. Odisseia, I. 85, V. 57, VII. 244; Grimal 2014, 71; Brandão 2014, 113). Segundo Robin Hard (2020, 510), Calipso é uma deusa menor que vivia sozinha. Na documentação textual, a primeira referência a Calipso é realizada no canto I da Odisseia. Todavia, maiores detalhes constam nos cantos V e VII, quando Odisseu vivencia e depois narra sua retenção no retorno [nóstos] da guerra troica. Na ilha de Ogígia, o herói informa que não há a presença de visitas, fossem de mortais ou de seres imortais, tendo alcançado aquelas distantes paragens apenas por intervenção dos deuses, uma vez que seu navio teria sido destruído pela ação tempestuosa de

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Zeus e seus companheiros falecidos no mar. Após vagar no mar agarrado aos destroços, no décimo dia ele alcança a ilha onde habita Calipso. A ninfa o recebe bem, alimentando-o e vestindo-o, atendendo o herói com solicitude (Homero. Odisseia, VII. 244–260). Nesta introdução feita por Odisseu na corte do rei feácio Alcínoo, ele informa que permaneceu com Calipso durante sete anos até que, no ano seguinte, foi instigado por ela a partir em nau. De acordo com a narrativa homérica, Calipso se encantou pelo visitante inesperado e, apaixonada por ele, intentava fazê-lo desistir de seu retorno à Ítaca e à sua família. Para tanto, tornou-o seu amante e ofertou a imortalidade com a manutenção da juventude (Hard 2020, 510), que foram negadas pelo herói. Contra sua vontade precisou deixar Odisseu partir, pois Athená solicitou ao pai Zeus que este interviesse no destino do itácio e, ao dar anuência da liberação de Ogígia e continuidade de retorno, enviou Hermes como mensageiro a Calipso. Acatando as ordens divinas, auxiliou Odisseu na construção do barco ao dar-lhe ferramentas e materiais (Homero. Odisseia, V. 227–67). A tradição oral prevalece mesmo no momento da escrita das obras homéricas, a Ilíada e a Odisseia. Estas poesias do tipo épico eram cantadas pelos aedos através do processo mnemônico e sua organização coincide com a formação da sociedade políade e de governos aristocráticos (Moraes 2012, 36–41, 46–47, 67). Por vezes, as obras são compreendidas como a base de definição do «ser-grego» e das expectativas de comportamentos polísticos (Hirata 2009, 1–2) O contexto histórico em que a Odisseia está inserida é bastante debatido, uma vez que compreender o período narrado com equivalência direta de experiências vivenciadas pelos helenos apresentam complicações. Se, por um lado, a tradição oral predomina na construção da obra e introduz 596

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elementos como reis [basileús] em uma sociedade com caracteres palacianos como os do Período Micênico (séculos XVI –XII ᴀEC), por outro lado, já é possível divisar a organização de Assembleias aristocráticas e a preocupação em separar assuntos de interesse coletivo dos privados tal como o início da sociedade organizada em póleis (século VIII ᴀEC). A produção historiográfica sobre o assunto é ampla e os posicionamentos assumidos variam, para alguns pendem mais para o desejo de vislumbrar nas produções homéricas um período histórico que ocorreu de fato (como defenderam Moses Finley, Sarah Pomeroy, Évelyne Scheiner-Tissinier e J. A. Dabdab Trabulsi), enquanto que para outros a poesia seria apenas um amálgama fictício sem qualquer base para uma periodização histórica (como propuseram Paul Cartledge e Anthony Snodgrass). Em todo o caso, dentro da narrativa poética prevalece o convívio entre deuses e humanos, que seria elencado pelos helenos como a «Idade dos heróis». Portanto, não deve ser estranho a relação entre uma deusa, Calipso, com um mortal, Odisseu. Ainda que desempenhe um papel relevante no desenvolvimento da Odisseia, Calipso permanece constantemente em segundo plano nos estudos, e muitas vezes interpretada como atuante apenas em relação ao herói itácio. No entanto, podemos compreender esta personagem feminina como dotada de desejos e que realiza ações para alcançá-los. Não há um apagamento da ninfa ao longo da narrativa, ao contrário, ela desponta como agente atuante de sua própria narrativa, onde questiona e argumenta contra o intento de Zeus. Calipso não é somente retratada na documentação textual grega. Há, ainda que com limitada referência, cenas que representam a ninfa. Uma delas está presente em uma hydría de figuras vermelhas do quarto final do século V ᴀEC e encontrada em Pesto (Magna Grécia, região da Campânia). Atualmente encontra-se no Museu Arqueológico Nacional de 597

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Nápoles. A imagem representa, provavelmente, um dos dias entre os anos passados pela ninfa em Ogígia na companhia do herói. Nas reapropriações posteriores a Homero é atribuída a geração de filhos a partir desta relação. Ainda no período arcaico grego, Hesíodo afirma que «Calipso divina entre as Deusas em amores/ unida a Odisseu gerou Nausítoo e Nausínoo» (Teogonia, 1017–1018). De acordo com Pseudo-Apolodoro desta relação nasceu Latino (Epítome, 7.24), mas é dado como filho do herói com Circe por Hesíodo (Teogonia, 1013). O escoliasta Ioannes Laurentius Lydus, do século VI EC, atribui dois filhos nascidos de Calipso e Odisseu, sendo nomeados de Nausítoo e Nausínoo (De mensibus, I.13), assim como o fez Hesíodo. Calipso permanece sendo utilizada e apropriada na Idade Moderna e Contemporânea, em textos e imagens. Inúmeras pinturas figuram a personagem, tais como «The Goddess Calypso rescues Ulysses» (1630) de autoria de Cornelius van Poelenburgh, «Calypso calling heaven and earth to witness her sincere affection to Ulysses» (século XVIII) de Angelica Kauffman, «Calypso» (1906) de George Hitchcock e «Kalipso, Bogini pięknowłosa» (século XX) de Jan Styka. Nestas e em outras pinturas Calipso é retratada com considerável beleza, podendo possuir cabelos loiros ou castanhos mais escuros, estar trajada com tecidos leves e (comumente) cores suaves ou total ou parcialmente nua. Suas imagens construídas seguem, principalmente, os padrões europeus. Nos textos destes períodos também é possível verificar a presença de Calipso em diversas obras, dentre as quais destacamos «Les Aventures de Télémaque» (1699) de François Fénelon e Louis Aragon. Nesta, a tradição homérica da busca de Telêmaco por Odisseu é ampliada, uma vez que chegou até a ilha de Ogígia e encontrou Calipso. Assim como fez 598

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com Odisseu, a deusa intentava manter o filho do herói junto a si, realizando as mesmas promessas que outrora teria dado à Odisseu. Todavia, Telêmaco consegue sair da ilha. Em reapropriações ainda mais recentes, na saga «Percy Jackson & the Olympians» de Rick Riordan, o quarto livro intitulado «The Battle of the Labyrinth» (2008) tem a presença de Calipso que segue o mesmo modelo de ações e promessas da narrativa homérica para com o semideus Percy Jackson. Outra saga do mesmo autor com temática similar, «The Heroes of Olympus», Calipso conquista maior destaque ao aparecer nos livros «The House of Hades» (2013) e «The Blood of Olympus» (2014). No primeiro ela se apaixona pelo semideus Leo Valdez e ele por ela; no segundo, o personagem volta para Ogígia e resgata Calipso, tirando-a da ilha para ficar com ela. Fontes históricas (PSEUDO-)APOLLODORUS. 1921. The Library and Epitome. Translated by James George Frazer. 2 v. Cambridge: Harvard University Press. HESÍODO. 2007. Teogonia. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras. HOMERO. 2005. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia. HOMERO. 2010. Hinos Homéricos. Tradução de Edvanda Bonavinda da Rosa. São Paulo: Edunesp. HOMERO. 2012. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34. Obras de referência BRANDÃO, J. de S. 2014. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Editora Vozes. 599

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

GRIMAL, P. 2014. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Tradução de Victor Jabouille. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Bibliografia geral HARD, R. 2020. The Routledge Handbook of Greek Mitology. New York: Routledge. MORAES, A. S. de. 2012. O ofício de Homero. Rio de Janeiro: Mauad X. HIRATA, E. F. V. 2009. Quem foi Homero?. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2013.

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Πηνελόπη › Penélope

por Lilian Amadei Sais

Penélope é comumente definida pelas relações que estabelece com os personagens homens do mito que integra. Sendo assim, ela é referida, via de regra, como esposa de Odisseu (o rei de Ítaca), mãe de Telêmaco e, na maior parte das versões do mito, filha de Icário (embora Aristóteles a mencione como filha de Icádio). Em relação a mãe, irmãos e irmãs, as informações variam grandemente. Em algumas versões, ela é sobrinha de Tindareu e, portanto, prima de Helena e Clitemnestra. O significado do seu nome ainda hoje é tema de debate entre os linguistas, mas muitos o associam a um pássaro aquático de nome similar, de conduta amorosa notavelmente fiel. Amplamente conhecida no Ocidente atual justamente por sua fidelidade e paciência, os textos antigos nos fornecem elementos que formam uma personagem bem mais complexa em relação a essa abordagem corrente. Penélope teria vivido na Idade dos Heróis, e sua história faz parte do ciclo mítico troiano. Nossa principal fonte de informação sobre essa personagem deriva do poema épico Odisseia, de Homero. Lá, além das relações com Odisseu, Telêmaco e Icário serem definidoras da personagem, Penélope também é reconhecida por sua beleza e estatura e pela comparação com deusas (ela se mostra digna de comparação direta em Odisseia, XVII, 37, além do uso frequente do epíteto «divina» para qualificá-la em outras passagens do poema), embora o próprio Odisseu faça a ressalva de que Penélope é necessariamente inferior às divindades, por ser mortal (Odisseia, V. 215–217). Por fim, ela é reconhecida pela inteligência, sendo, então, considerada por muitos comentadores um par

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simétrico de Odisseu. A homophrosýne (espécie de sintonia mental) é, justamente, apontada por Odisseu como a melhor e mais valiosa característica existente em um casal (Odisseia, VI. 180–185). No entanto, inteligência e astúcia expressam características bastante diferentes para um homem e para uma mulher, no contexto homérico. Sendo assim, cabe lembrar que a inteligência de Penélope está associada à capacidade de preservar a sua casa e manter o seu casamento, mesmo na prolongada ausência do marido. Como explicita Agamêmnon no canto XXIV da Odisseia, Penélope conquista grande glória por sempre «lembrar Odisseu», seu esposo legítimo (Odisseia, XXIV. 195). Odisseu teria conquistado a mão de Penélope ao aconselhar que todos os herois que pleiteavam a mão de Helena jurassem que, caso fosse necessário, se uniriam para defender a honra do marido que ela escolhesse. Tindareu, pai de Helena, teria então tomado as providências para que Odisseu se casasse com a sobrinha, Penélope. Outra versão para o casamento de Penélope e Odisseu relata que Odisseu foi o vencedor de uma corrida de cavalos organizada por Icário entre os pretendentes da filha. Após o casamento, nas duas versões, Penélope se estabelece junto ao marido na ilha de Ítaca, onde ele reina. Na Odisseia, Penélope foi entendida, por muito tempo, como uma personagem passiva, cujas principais atividades seriam «chorar e dormir» (Combellack 1973, 32). No entanto, leituras mais recentes do poema, feitas principalmente a partir da década de 1970 e impulsionadas pelos estudos de gênero, tendem a atribuir um caráter mais ativo para o papel de Penélope dentro da construção narrativa odisseica, reconhecendo-a como a personagem-mulher mais completa e complexa da Odisseia (Saïd 2011, 276). 602

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De fato, a primeira aparição de Penélope no poema parece traçar o perfil de uma mulher que se limita ao seu luto pela ausência (e possível morte) do marido. Mais de vinte anos se passaram desde que ele partiu para a Guerra de Troia. À época, Telêmaco era um bebê. Agora, no entanto, o filho do casal já possui barba no rosto, um sinal de transição para a vida adulta que havia sido utilizado por Odisseu como sinalizador de um limite: caso ele não tivesse retornado até aquele ponto, ela devia retornar à casa do pai ou contrair novas bodas. Todas as aparições de Penélope na Odisseia até o Canto XVI se assemelham a essa primeira. Nelas, Penélope sofre muito, chora, dorme e não tem influência na ação narrada, embora tente mudar o rumo de algo que está acontecendo ou que está sendo planejado (por exemplo, Odisseia, I. 328–364; Odisseia, XVI. 414–448) No entanto, já no Canto II do poema essa representação da Penélope torna-se mais complexa, não por uma aparição sua, mas pelo relato que se faz dela. Diante da ausência prolongada de Odisseu, a casa deles é diariamente invadida por 108 pretendentes, que passam os dias inteiros ali consumindo os bens e esperando que Penélope escolha um deles para contrair novas bodas. Frente a essa pressão violenta, Penélope usa um estratagema para ganhar tempo e adiar o momento dessa decisão; ela diz que escolherá um novo marido, mas que, antes disso, precisa cumprir sua última tarefa como esposa de Odisseu, tecendo a mortalha de Laertes, seu sogro, que já é bastante idoso. De fato, preservar a memória através do cuidado com os mortos é uma função que a sociedade grega antiga atribui às mulheres. Faz-se o acordo e Penélope, então, passa os dias ao tear, tecendo a mortalha de Laertes e, à noite, quando os pretendentes vão embora e a casa está escura, ela volta ao tear e destece tudo o que havia tecido ao longo daquele dia. Assim ela engana a todos por três anos, até que servas infiéis 603

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presenciam a cena e relatam o ocorrido aos pretendentes, que a desmascaram. Isso é relatado (pela primeira vez) por Antínoo em Odisseia, II. 85–128. Penélope possui um papel bastante mais ativo no que diz respeito ao curso dos eventos da Odisseia a partir do Canto XVII. Todas essas ações estão ligadas à recepção de Odisseu (que chega a Ítaca disfarçado de mendigo para preservar sua identidade e não se tornar alvo dos pretendentes ou da própria Penélope, uma vez que diferentes personagens alertam Odisseu de que ele não pode confiar nas mulheres), ao estabelecimento do desafio do arco e ao seu subsequente reconhecimento. Penélope pede a Eumeu que traga o mendigo para conversar com ela no canto XVII, mostra-se aos pretendentes no canto XVIII, e decide propor o desafio do arco aos pretendentes para contrair novas bodas com o vencedor, o que arma um cenário perfeito para que Odisseu saia do disfarce e reassuma sua identidade e seu papel como marido de Penélope e rei de Ítaca. Versões pós-homéricas do mito de Penélope a associam ao deus Pan, frequentemente como seu filho. Em Píndaro (fr. 90, Bowra) Pan é filho de Apolo e Penélope. Para Heródoto (II. 145. 4), Cícero (ND, 3.22.56), Apolodoro (7. 38), Pan é filho de Penélope com Hermes. Segundo Pausânias (8.12.5), Penélope foi infiel a Odisseu, que a pune quando do seu retorno, mandando-a embora de Ítaca. Na versão de Duris de Samos, após acreditar que ele tinha morrido em Troia, Penélope teria sucumbido e se rendido sexualmente a todos os 108 pretendentes e, a partir disso, teria dado a luz a Pan. O nome do deus, que significaria «todos», faria menção a esse fato. Penélope aparece na literatura latina com alguma frequência, estando presente na obra de escritores como Horácio, Ovídio e Plauto, por exemplo, e sendo representada, de modo geral, como um modelo de castidade. As representações latinas podem ser as principais responsáveis pela visão 604

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geral sedimentada de Penélope como uma esposa submissa e fiel, influenciando grandemente a representação dela na Idade Média e no Renascimento. Grandes autoras modernas e contemporâneas estabeleceram um diálogo com o mito de Penélope em seus trabalhos. Destaco a romancista estadunidense Margaret Atwood, em A odisseia de Penélope. Em língua portuguesa, destaco as poetas brasileiras Ana Martins Marques, em especial no seu livro A vida submarina, e Mônica de Aquino, em Fundo falso. Fontes históricas HERODOTUS. 1920. The Histories. Cambridge: Harvard University Press. HOMERO. Odisseia. Lisboa: Ed. Quetzal, 2018. Obras de referência AQUINO, M. 2018. Fundo Falso. Belo Horizonte: Relicário Edições. ATWOOD, M. A. 2005. A odisseia de Penélope. São Paulo: Companhia das Letras. GRIMAL, P. 2014. Dicionário da Mitologia Grega e Romana. Tradução de Victor Jabouille. 7 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. MARQUES, A. M. 2021. A vida submarina. São Paulo: Companhia das Letras. Bibliografia geral COMBELLACK, F. 1973. Three Odyssean problems, California Studies in Classical Antiquity 6, p. 17–46. FOLEY, H. P. 1995. Penelope as moral agent. In: COHEN, B. The distaff side. Representing the Female in Homer’s Odyssey. New York: Oxford University Press, p. 93–115. JONG, I. J. F. de. 2001. A narratological commentary on the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press. 605

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SAÏD, S. 2011. Homer and the Odyssey. Oxford: Oxford University Press. KATZ, M. A. 1991. Penelope’s Renown: Meaning and Indeterminacy in the Odyssey. Princeton: Princeton University Press.

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Ἐυρύκλεια › Euricleia

por Teodoro Rennó Assunção

Euricleia (Eurýkleia, etimológica e/ou literalmente em grego antigo: «A-de-larga-fama», ou seja: nome feminino composto a partir do adjetivo eurý, «larga», e do substantivo neutro kléos, «fama») é na Odisseia de «Homero» a «serva» ou «doméstica» (dmōiā́) mais importante no palácio de Odisseu em Ítaca e no conjunto da trama deste poema épico, exercendo também a função de «governanta» ou chefe das outras servas (tamíē) neste palácio, e que no poema é primeiramente apresentada como tendo sido a «babá» ou «ama-de-leite» (trophós) de Telêmaco (cf. Homero. Odisseia, I. 434–435), e depois também como a de Odisseu (cf. Homero. Odisseia, XIX. 482–483), tendo, portanto, como veremos a seguir, uma relação de intimidade destacada com a família de Odisseu, relação que é bem anterior ao casamento deste com Penélope. Para o que seria uma primeira e mais detalhada apresentação da história desta personagem no contexto ficcional da trama da Odisseia – que parece seguramente ser a única fonte de informações para uma retomada antiga da personagem, como, por exemplo, nas Fábulas de Higino (125, 20 e 126, 7), já que a conhecida Biblioteca de Apolodoro não contém, nem mesmo no resumo do retorno de Odisseu a Ítaca (7, 1–33), nenhuma menção a ela –, a passagem decisiva continua a ser a que define com maior anterioridade a sua história, quando no fim do canto I ela aparece à noite, no palácio de Odisseu (ainda ausente) em Ítaca, conduzindo Telêmaco ao quarto dele: «A seu lado, trazia tochas ardentes a sempre devotada/ Euricleia, filha de Voz, filho de Persuasor-de-homens/ a qual um dia Laerte comprou usando seus bens,/ ela ainda na primeira

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juventude, e deu o equivalente a vinte bois;/ pois como à devotada esposa honrava-a no palácio,/ mas no leito nunca a tomou, pois evitava o ressentimento da mulher;/ a seu lado trazia tochas ardentes; das escravas era/ a que dele mais gostava, pois o alimentou quando era pequeno» (Homero. Odisseia, I. 428–435, tradução minha). Esta passagem acima revela primeiramente que, além do seu próprio e positivo primeiro nome, Euricleia (etimologicamente «A-de-larga-fama») é filha e neta de um pai e de um avô paterno cujos nomes próprios também positivos (Ops, «Voz», e Peisḗnōr, «Persuasor-de-homens»), com um traço na esfera pública da eloquência, trariam uma marca de valores próprios a (ou de pertencimento a) uma família aristocrática. Mas ela revela também que não só ela foi «comprada» (provavelmente como espólio de guerra ou de alguma pirataria ou sequestro, tal como a do também originalmente nobre servo Eumeu) por Laerte, mas pelo valor equivalente ao de vinte bois (presumivelmente alto, pois uma escrava hábil, na Ilíada, XXIV. 704–705, é dita valer «o equivalente a quatro bois»), ainda que o boi não fosse propriamente uma unidade precisa de valor numa economia de trocas não monetária. Enfim, o que parece mais delicado, como signo inequívoco, ainda que amenizado, de um direito sexual do senhor sobre o corpo da escrava, Laerte é dito aqui não só tê-la honrado no palácio (como se confirmando o seu alto valor e presumível origem nobre), mas também tê-lo feito (não a tomando sexualmente no leito) para evitar o ressentimento da sua mulher, como se isso marcasse de algum modo a excepcionalidade do seu cuidado e carinho por sua mulher. Esta passagem, já no canto I da Odisseia, é apenas a primeira de algumas que nos quatro primeiros cantos do poema (a chamada «Telemaquia») a apresentam como uma espécie de protetora e confidente de Telêmaco que, como «governanta» 608

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(tamíē) com acesso ao quarto de estoques de víveres e bens, recolherá as provisões de vinho e cevada para a viagem dele às cidades de Pilos e Esparta e prometerá guardar segredo desta em relação à Penélope, tal como lhe é pedido por Telêmaco (cf. Homero. Odisseia, II. 344–380), assim como depois ela consola uma Penélope muito preocupada com a viagem do filho (quando dela informada pelo arauto Médon), revelando que ela sabia desta viagem e tinha ajudado a ele, jurando nada contar à sua mãe (cf. Homero. Odisseia, IV. 742–749), no que é também uma indicação de como Euricleia está mais alinhada aos interesses de Telêmaco do que aos de Penélope. Algo que de algum modo é confirmado pelo fato de que é ela também a primeira a perceber a presença de Telêmaco no palácio, quando de seu retorno (cf. Homero. Odisseia, XVII. 31–33), assim como é a ela também que ele pede para conter as outras servas no salão, enquanto ele vai com Odisseu-mendigo guardar as armas de Odisseu (que estão no salão) no quarto de estoques (cf. Homero. Odisseia, XIX.16–20). Mas depois do reconhecimento de Odisseu-mendigo por Euricleia na grande cena da lavagem dos pés no canto XIX, Euricleia também exercerá funções importantes de preparação para a prova do arco e para a matança dos pretendentes no dia da festa de Apolo (com a coordenação das servas na varredura do salão e na limpeza das mesas, ânforas e cálices e no aprovisionamento de água, cf. Homero. Odisseia, XX. 147–156; e também cumprindo as ordens de Telêmaco, transmitidas por Eumeu, de fechar as portas do salão e atrás delas conter todas as servas durante a prova do arco, cf. Homero. Odisseia, XXI. 380–387), assim como, depois da matança, na indicação para Odisseu das servas infiéis (cf. Homero. Odisseia, XXII. 419–427) e na purificação (trazendo enxofre e fogo para Odisseu) do grande salão do palácio (cf. Homero. Odisseia, XXII. 492–494), e enfim levando as servas fiéis para 609

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se encontrarem com Odisseu (cf. Homero. Odisseia, XXII. 495–497) e logo depois transmitindo com detalhes a Penélope a notícia da matança dos pretendentes por Odisseu (cf. Homero. Odisseia, XXIII. 4–57). Mas é no canto XIX a cena de reconhecimento de Odisseu-mendigo (pela cicatriz) durante a lavagem dos seus pés por Euricleia que evidencia não só sua função de principal coadjuvante no reencontro explícito de Odisseu com Penélope (o que se confirma também por ser ela a serva a quem Penélope enganosamente pede para trazer a cama do casal para fora do quarto, cf. Homero. Odisseia, XXIII. 177–180), como também a de ser aquela que permite por seu conhecimento direto da história da cicatriz (tendo sido a ama-de-leite de Odisseu) o mais profundo mergulho em flashback na biografia de Odisseu, incluindo até mesmo a história da sua nomeação, no contexto da Odisseia. Esta grande cena da lavagem dos pés de Odisseu-mendigo é antecedida primeiramente por um quase reconhecimento explícito dele por Penélope (por sua grande sensatez e a semelhança dos seus pés e mãos com os de Odisseu), no instante mesmo em que ela designa Euricleia como a serva que, por sua idade (e tendo sido quem criou Odisseu), é – segundo o pedido dele – a mais indicada para lavar seus pés (cf. Homero. Odisseia, XIX. 350–360). Mas o quase reconhecimento de Odisseu-mendigo por Euricleia (antes da lavagem dos pés) chega a ser ainda maior do que o de Penélope, pois, além da extrema semelhança entre os dois «no corpo, na voz e nos pés», Euricleia confunde involuntariamente os dois em sua fala, ao se dirigir a Odisseu-mendigo usando o pronome pessoal «tu», quando está falando do seu antigo senhor Odisseu ausente há muitos anos, para depois passar de novo a falar diretamente 610

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(também usando o «tu») com aquele mendigo cujos pés ela lavará logo a seguir (cf. Homero. Odisseia, XIX. 363–371; 372–381). Quando, depois de preparar a água morna na bacia, Euricleia começa a lavar as pernas e os pés do mendigo, ao tocar a cicatriz, ela reconhece Odisseu, o que a faz recordar de toda a história desta cicatriz (ainda que a narração seja do poeta), obtida numa violenta mordida de um javali selvagem, num episódio de caça iniciatória com seus tios maternos, que é projetado por seu avô materno Autólico, quando este vai conhecê-lo, após o seu nascimento, na casa da sua filha Anticleia, que é quando também Euricleia (e surpreendentemente não sua mãe Anticleia) pedirá a seu avô que dê um nome a seu neto (o que ele fará a partir de uma ambígua característica própria sua, que é a de despertar «o ódio de muitos homens e mulheres», donde o nome de «Odisseu», cf. Homero. Odisseia, XIX. 407–409). Eis como o narrador descreve este pedido de Euricleia: «E Autólico, tendo ido para o fértil território de Ítaca,/ encontrou-se com o filho recém-nascido de sua filha./ A este então Euricleia colocou nos caros joelhos daquele/ que acabara de jantar, e dirigiu-lhe a palavra e o nomeou:/ ‹Autólico, tu próprio agora acha um nome que tu porás/ no filho de sua filha; pois para ti ele é muito-rogado›» (Homero. Odisseia, XIX. 399–404, tradução minha). Caberia, enfim, dizer que, em sua última cena na Odisseia, após o reconhecimento explícito de Odisseu por Penélope, Euricleia aparece arrumando com pressa o leito do casal com uma outra serva (cf. Homero. Odisseia, XXIII. 289–292), Eurínome, que é a bem íntima «camareira» e «dama de companhia» (thalamḗpolos) de Penélope, e que veio com esta da casa de seu pai Laerte, pertencendo, portanto, à família de Penélope, como oposta e complementarmente Euricleia pertencia à família de Odisseu, e atuando as duas como uma dupla simultaneamente 611

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semelhante e diferenciada, como o são também a dupla positiva do porqueiro Eumeu e do boieiro Filécio e a dupla negativa do servo Melântio e da serva Melanto (o que é um recurso de construção de personagens próprio da Odisseia). Pois é, então, a serva Eurínome quem não só está frequentemente com Penélope em seu quarto, mas também quem com uma tocha conduz o casal até o quarto onde sua cama arrumada os espera (cf. Homero. Odisseia, XXIII. 293–295) para uma noite de amor após vinte anos separados. Fontes históricas APOLLODORUS. 1921. The Library vol. 2. Translated by J. G. Frazer. Cambridge, Ma.: Harvard University Press. HOMERI. Odyssea. 1991. Ed. H. Van Thiel. Hildesheim: Georg Olms Verlag. HOMERI. 1988. Opera, tomus II, Iliadis libros XIII–XXIV continens. Eds. D. B. Monro et T. W. Allen. Oxford University Press, third edition. HOMERO. Odisseia. 2011. Tradução e prefácio de F. Lourenço. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras. HOMERO. Odisseia. 2014. Tradução e introdução de C. Werner. São Paulo: Cosac Naify. HYGINUS. Fabulae. 2002. Ed. P. K. Marshall. Berlin: Walter de Gruyter Verlag, 2nd revised edition. Bibliografia geral AUSTIN, N. 1975. IV. From Cities to Mind. In: AUSTIN, N. Archery at the Dark of the Moon: Poetic Problems in Homer’s Odyssey. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, p. 179–238. 612

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FENIK, B. 1974. Eurykleia and Eurynome. In: II. Character doublets. In: FENIK, B. Studies in the Odyssey. Hermes: Einzelschriften, Heft 30. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag GMBH, p. 172–206, p. 189–192. JONG, I. de. 2001. A Narratological Commentary on the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press. LEVANIOUK, O. 2011. Odysseus and the Boar. In. LEVANIOUK, O. Eve of the Festival: Making Myth in Odyssey 19. Cambridge (Massachusetts): Center for Hellenic Sudies/ Harvard University Press, p. 166–189. SCOTT, J. A. 1918. Eurynome and Eurycleia in the Odyssey, The Classical Quarterly, vol. 12, n. 2, p. 75–79. THALMANN, W. G. 1998. The View from Above: The Representation of Slaves in the Odyssey. In: THALMANN, W. G. The Swineherd and the Bow: Representations of Class in the Odyssey. Ithaca, New York: Cornell University Press, p. 49–107.

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Ναυσικάα › Nausícaa

por Rafael de A. Semêdo

Personagem fictícia, princesa da família real do País dos Feácios nos Cantos VI a VIII da Odisseia de Homero (c. VIII ᴀEC), filha do rei Alcínoo e da rainha Arete. Sua principal aparição se dá no Canto VI, quando a moça acolhe Odisseu em uma praia e o encaminha até o palácio local, onde seu retorno é providenciado. O País dos Feácios se encontra em uma região chamada de Feácia ou Esquéria, localidade fictícia, longínqua e isolada das demais sociedades humanas (sobre o local e contexto histórico, ver o verbete Arete). Não existe uma etimologia científica definitiva sobre o nome de Nausícaa, mas a sugestão mais recorrente aponta para uma abreviação do grego Ναυσικάστη [Nausikástē], «aquela que se destaca pelos navios» (Mader 1993; Hainsworth 1990, 294). A possível derivação do sufixo «κάστη [kástē]» (relacionado ao verbo καίνυμαι [kaínumai], «destacar-se, ser superior») é incerta, mas se pode afirmar com certeza que a primeira metade do nome alude a navios, elemento comum nos nomes náuticos do povo feácio. As caracterizações diretas de Nausícaa, aquelas em que se utilizam epítetos, adjetivos e substantivos, retratam sua notável beleza e destacam seu status social como jovem donzela em idade núbil. O narrador homérico refere-se a ela como «moça» (κούρη [koúrē]), «virgem» (παρθένος [parthénos]), «solteira» (αδμής [admḗs]), «linda de se olhar» (ἐϋῶπις [eüôpis]), «de belas tranças» (ἐϋπλόκαμος [eüplókamos]) e «de alvos braços» (λευκώλενος [leukṓlenos]), expressão comum da beleza feminina no épico homérico (Κούρη [koúrē]): VI. 15, 20, 47, 74, 78, 113, 135, 142, 147, 222, 223, 237; VII. 7, 303; VIII. 468;

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παρθένος [parthénos]: VI. 33, 109, 228; αδμής [admḗs]: VI.109, 228; ἐϋῶπις [eüō̂pis]: VI.113, 142; ἐϋπλόκαμος [eüplókamos]: VI. 135, 222; λευκώλενος [leukṓlenos]: VI. 251, 186, 101; VII. 12). Ademais, a aparência de Nausícaa é por cinco vezes associada àquela das deusas, em duas ocasiões especificamente à de Ártemis, divindade ligada à juventude e à pureza virginal (VI. 16, 291, 101-109, 159-151; VIII. 456). Odisseu dirige-se a Nausícaa, ainda, como «senhora» (ἄνασσα [ánassa]) (VI. 175), termo utilizado normalmente para se endereçar a divindades, o que reforça o status praticamente divino de sua beleza (de Jong 2001, 160). Para além das caracterizações diretas, que ressaltam sua beleza física e sua posição de donzela, é possível associar ainda certas qualidades mentais a Nausícaa a partir de análises de sua caracterização indireta, isto é, ao se interpretar suas ações e interações com outros personagens. Ela é, por exemplo, carinhosa com o pai, o rei Alcínoo, uma vez que se dirige a ele como «querido papai» (πάππα φίλε [páppa phíle]), termo único no épico homérico (hápax) que dá um tom especialmente tenro à interação entre os dois. É também tímida e pudica: ao pedir ao pai por uma carroça para ir até o rio lavar suas roupas porque deseja se casar em breve, omite a última parte, e menciona, na verdade, o casamento de seus irmãos. Essa omissão e alteração de suas reais intenções também a caracteriza como astuta, já que evidencia sua capacidade de adaptar um discurso de maneira vantajosa ao contexto imediato a fim de atingir seus objetivos. Sua coragem também é observável. Após a princesa e suas servas lavarem roupas junto ao rio, Odisseu aparece diante delas sujo e nu, com uma aparência assustadora, e todas as moças correm apavoradas. Nausícaa, entretanto, se mantém firme, encorajada por Atena, e é a única a interagir com o 616

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estrangeiro. Ao decidir ouvi-lo e acolhê-lo, a jovem se coloca ainda como anfitriã exemplar, uma vez que oferece ao suplicante azeite para que se banhe, roupas para que se vista, bem como informações sobre o reino dos feácios e seus governantes. Indica ao herói que, para lograr seu retorno, deve suplicar primeiro a sua mãe, a rainha Arete, e não diretamente a seu pai, o rei. Sua atenção às normas de etiqueta entre donzelas e homens é também evidenciada quando menciona que não deve ser vista junto de Odisseu ao retornar para a cidade, aconselhando-o a adentrá-la separadamente, apenas depois que ela própria voltasse. O tema do casamento permanece como pano de fundo ao longo de toda a aparição de Nausícaa na Odisseia, e é a partir de tal tema que suas interações se desenvolvem. Já em sua introdução, Atena envia-lhe um sonho e incute-lhe na mente a ideia de que precisa lavar suas roupas porque provavelmente irá se casar em breve. O sonho não menciona um pretendente específico, mas o narrador homérico de antemão deixa claro que esse é um artifício da deusa para viabilizar o retorno de Odisseu. A interação entre Nausícaa e o herói na praia de Esquéria transcorre permeada de uma sutil tensão erótica (Shapiro 1995, 160–161; Malta 2018, 222). De um lado, temos uma jovem princesa virgem que lava roupas para um hipotético casamento vindouro. Ela está acompanhada de um séquito de belas servas que brincam com uma bola despidas de seus véus próximas a um rio. Do outro lado, temos o herói, um homem mais velho e nu, escondido em um arbusto próximo, descrito pelo narrador como um leão pujante prestes a atacar suas presas. Odisseu decide suplicar à donzela à distância para não assustá-la, e em sua fala, exalta a beleza da moça. Depois de se banhar, limpo e bem vestido, o forasteiro é ainda embelezado por Atena. Uma admiração sutil de Nausícaa pelo suplicante parece então surgir em cena, não de maneira explícita, 617

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mas, bem aos moldes da narrativa da Odisseia, de uma forma delicada: em um dado momento, a jovem chega a externar o desejo de ter um marido como aquele, caso ele decidisse ficar (VI. 242–245). A possibilidade do matrimônio entre Odisseu e Nausícaa surge também mais adiante, quando o pai da moça, o rei Alcínoo, afirma que ficaria muito contente se tivesse um genro como o herói (VII. 311–315). Novamente, uma união entre os dois é sugerida, o que deixa o protagonista em uma posição delicada, pois, por um lado, precisa ser cortês com sua salvadora e seus anfitriões a fim de que lhe assegurem sua condução para casa; por outro, precisa delicadamente recusar o casamento com a princesa a fim de concluir seu retorno a Ítaca. Assim, a posição de Nausícaa pode ser comparável, embora em menor intensidade, com a de Circe ou Calipso, na medida em que representa uma possibilidade de o herói se acomodar, viver ao lado de uma bela esposa uma vida de fausto e riqueza, longe de guerras ou problemas, e abrir mão de seu retorno. Em sua estada em meio aos feácios, entretanto, o protagonista já está determinado a retornar, o que se manifesta invariavelmente durante a narrativa de suas aventuras dos cantos IX a XII da Odisseia. Tal como se despediu de Circe e Calipso, como conta aos feácios, o herói precisa também se despedir de Nausícaa para voltar para Ítaca e Penélope. Isso não é expresso de maneira direta, assim como a sugestão do casamento por parte dos feácios também não o é, mas o desejo pelo retorno, e, consequentemente, a impossibilidade do matrimônio, fica subentendida a todo tempo em seu relato das aventuras perante seus anfitriões (Semêdo 2018). A gratidão do herói para com Nausícaa por conta de seu acolhimento se consolida numa emocionante cena de despedida entre os dois no Canto VIII (454–468). Ao se encontrarem por uma última vez, a jovem pede que seja reconhecida 618

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e lembrada por Odisseu como a salvadora de sua vida. Ele, por sua vez, assegura-lhe sua gratidão, e afirma que jamais a esquecerá quando retornar a Ítaca. Assim se encerra a participação da jovem princesa na Odisseia, e ela se estabelece, junto com Arete, como uma das grandes salvadoras de Odisseu durante sua jornada heroica, agente fundamental para a concretização de seu retorno. Algumas fontes mais tardias mencionam um posterior casamento entre Nausícaa e Telêmaco, filho de Odisseu, após seu retorno. No romance Memórias da Guerra de Troia, de Díctis Cretense, datado de V EC, menciona-se que da união entre a princesa feácia e o herdeiro de Ítaca teria nascido um filho chamado Ptoliporto (Dictys Cretensis. Ephemeris belli Troiani, VI. 6). Eustácio de Tessalônica, séc. XII EC, menciona também tal união, mas relata que, segundo Aristóteles e Helânico, em fontes de que não mais dispomos hoje em dia, o filho dos dois se chamaria Persépolis (Eustathius Tessalonicensis. Commentarii ad Homeri Odysseam, 1796. 32–33). Na idade contemporânea, a mais célebre recepção de Nausícaa se dá no longa-metragem de animação «Nausícaä do Vale do Vento» (Kaze no Tani no Naushika), de Hayao Miyazaki (1984), inspirado no mangá homônimo do mesmo autor (1982). O filme conta a história de Nausícaä —assim nomeada por conta da personagem da Odisseia—, uma jovem sobrevivente em um mundo pós-apocalíptico tomado por gases tóxicos de plantas contaminadas pela poluição do solo. A protagonista, dotada de coragem, força e bondade, se aventura pelas regiões vizinhas, apazigua facções em guerra e mantém um jardim secreto onde cultiva plantas saudáveis para recuperar a qualidade do ar na atmosfera. Curiosamente, Miyazaki (1995, 262–263) conta que conheceu Nausícaa através de um dicionário de mitologia clássica que a retratava com certos exageros e liberdades em relação à Odisseia, e, quando leu o 619

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poema, ficou desapontado com sua curta aparição. Contudo, captou sabiamente a essência da personagem homérica em sua protagonista: ambas são jovens astutas, corajosas e bondosas, e responsáveis pela salvação daqueles a quem acolhem e protegem. Fontes históricas EUSTATHII ARCHIEPISCOPI THESSALONICENSIS COMMENTARII AD HOMERI ODYSSEAM (Vol. 2). 2010. Edited by J. G. Stallbaum. Cambridge: Cambridge University Press. HOMERO. 2018. Odisseia. Tradução de C. Werner. São Paulo: Ubu. MIYAZAKI, H. 1982. Nausicaä of the Valley of the Wind: Perfect Collection 1. Tradução de D. Lewis e T. Smith. San Francisco: Viz Communications, Inc. NAUSÍCAÄ DO VALE DO VENTO. 1984. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: TOEI (117 min.). Bibliografia geral HAINSWORTH, J. B. 1990. Book VI. In: HEUBECK, A.; WEST, S.; HAINSWORTH, J. B. A Commentary on Homer’s Odyssey. Oxford: Oxford University Press, p. 289–315. DE JONG, I. J. F. 2001. A Narratological Commentary on the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press. MADER, B. 1993. Ναυσίκαα. In: SNELL, B.; MEIER-BRÜGGER, M. (Ed.). Lexikon Des Frühgriechischen Epos (15. Lieferung). Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, p. 300–301. MALTA, A. 2018. A Astúcia de Ninguém: Ser e Não Ser na Odisseia. Belo Horizonte: Impressões de Minas. 620

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SEMÊDO, R. A. 2018 Alcínoo versus Odisseu na corte dos feácios: um jogo discursivo. Dissertação de mestrado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo – USP, 2018. SHAPIRO, H. A. 1995. Coming of Age in Phaiakia: The Meeting of Odysseus and Nausikaa. In: COHEN, B. (Ed.). The Distaff Side: Representing the Female in Homer’s Odyssey. Oxford: Oxford University Press, p. 156–64. SILVA, G. S. 2019. Ephemeris belli Troiani Dictys Cretensis: Estudo e tradução. Dissertação de Mestrado em Letras defendida na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP.

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Ἀρήτη › Arete

por Rafael de A. Semêdo

Personagem fictícia, rainha do País dos Feácios, esposa do rei Alcínoo e mãe da princesa Nausícaa na Odisseia de Homero (c. VIII ᴀEC) e, posteriormente, nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes (III ᴀEC). Arete auxilia Odisseu em seu retorno na Odisseia (Cantos VI a XIII) e os argonautas nas Argonáuticas (Livro IV), tornando-se célebre, portanto, por acolher forasteiros e providenciar seus regressos à Hélade após incursões na Ásia. Seu nome está relacionado ao verbo ἀράομαι [aráomai], «orar, rogar», donde se depreende Arete como «aquela a quem se roga», «aquela a quem se dirigem preces», etimologia que bem ilustra seu papel como auxiliadora de heróis em jornadas de retorno (von Kamptz 1982, 240–241). O País dos Feácios se encontra numa região fantástica chamada de Feácia ou Esquéria, localidade fictícia cujas associações com lugares reais somente podem ser consideradas conjecturais (Hainsworth 1990, 294). Na Odisseia, conta-se que os feácios vivem distantes da civilização humana, isolados e protegidos por altas muralhas, livres das mazelas que afligem os homens comuns. Não é claro se habitam uma ilha ou terras continentais, mas, de qualquer forma, vivem próximo à costa, em um local ao qual estrangeiros não costumam chegar. Na Odisseia, conta-se que ali se estabeleceram liderados por Nausítoo, filho de Posêidon, para se afastar da violência dos ciclopes. O fundador é sucedido por seu filho, Alcínoo, que se casa com Arete (uma sobrinha de Alcínoo), e ali o casal rege seu povo longe de preocupações, voltado aos banquetes, aos esportes, à dança e à navegação (VII. 56–74).

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Deixando-se de lado a questão homérica e as problemáticas históricas da épica arcaica, é possível se inserir os feácios dentro de uma linha temporal mítico-poética estabelecida por Hesíodo em Trabalhos e Dias (c. VII ᴀEC), obra da mesma tradição poética a que pertencem a Ilíada e a Odisseia. Em seu poema, Hesíodo divide a história da humanidade em cinco eras —idade de ouro, prata, bronze, heróis e ferro—, ao longo das quais os homens gradativamente se distanciam dos deuses e passam a sofrer agruras cada vez maiores com o trabalho, a velhice, a guerra e a morte. Menciona-se que a guerra de Troia teria ocorrido durante a idade dos heróis, quando os humanos eram mais belos, mais altos e mais fortes do que os atuais, seres decadentes da idade do ferro. Ainda assim, nem mesmo esses grandiosos heróis do passado são alheios ao sofrimento e à morte, uma vez que vivem também distantes da era de ouro. Nesse contexto, entretanto, os feácios parecem gozar de uma posição especial na humanidade. Embora vivam durante a idade dos heróis, quando ocorre a guerra de Troia, guardam ainda características de paz e bonança semelhantes àquelas da idade do ouro conforme descritas por Hesíodo: Alcínoo e Arete habitam um pomposo palácio, adornado de metais preciosos, guardado por cães imortais de ouro e prata criados pelo deus Hefesto, com árvores que geram frutos o ano todo sem necessidade de cuidado. Na ágora, Alcínoo debate as questões de sua cidade com outros doze reis aparentemente sem conflitos, e seu é o poder final nas decisões políticas. Nos maravilhosos portos dos feácios ancoram-se naus mágicas que se movem com a força do pensamento, rápidas como flechas. A partir do momento em que se afastam dos ciclopes e se isolam, não temem mais a guerra ou a violência. Assim, pode-se entender que tal existência, repleta de paz, concórdia 624

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e elementos divinos, alheia a guerras e sofrimento, seja semelhante àquela descrita por Hesíodo em sua caracterização da era de ouro. Rainha de tal reino utópico, Arete é introduzida na Odisseia em uma fala de sua filha, a princesa Nausícaa, que, após acolher Odisseu junto à costa, indica que o herói deve suplicar a sua mãe a fim de obter seu retorno a Ítaca (VI. 310–315). Segundo a princesa, se conquistar o favor da soberana, ele obterá automaticamente a graça de Alcínoo e, consequentemente, seu retorno. Tal informação é também confirmada mais adiante por Atena, disfarçada de menina, que aponta para Odisseu o caminho até o palácio (VII. 75–78). O protagonista recebe, portanto, uma missão clara: deve suplicar a Arete e conquistar sua graça a fim de lograr o retorno. Tal fato evidencia a importância da rainha dentro da sociedade local, seu prestígio e poder político. Embora não detenha o cetro nem a palavra definitiva do rei, parece ter junto a ele o respeito e a influência que determinam, em última instância, suas decisões. A soberana goza, ainda, de prestígio em meio ao povo. Conta-se que é admirada como uma deusa, sendo responsável por dirimir quaisquer contendas e desavenças que surjam entre os cidadãos feácios (VII. 66–74). Assim, é possível comparar sua figura com as de Helena e Penélope enquanto soberanas que, para além de fiarem sentadas junto ao tear, participam também, o tanto quanto possível, das tramas sociais e políticas de seus reinos. Seguindo a instrução de Nausícaa e de Atena (disfarçada de garota), de fato é a Arete quem Odisseu primeiramente suplica ao adentrar o palácio real no Canto VII (145–152), e de quem deseja obter a aprovação em um primeiro momento. Seu favor junto à soberana, entretanto, não é conquistado de imediato. Ela não responde às primeiras súplicas do forasteiro, e parece desconfiada ou assustada por ele surgir repentinamente 625

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no palácio vestindo roupas que ela própria teceu. Seu silêncio pode ser interpretado como uma reticência em relação ao suplicante em um primeiro momento. Mais adiante, em uma oportunidade mais reservada, quando os nobres já deixaram o palácio, depois de o forasteiro ser alimentado e acolhido, Arete pergunta por sua identidade e sobre o porquê de estar trajando tais roupas. Odisseu, herói conhecido pela habilidade com as palavras, se justifica apropriadamente, contando de seu encontro respeitoso com a princesa Nausícaa, que lhe entregou as roupas, bem como de seus apuros pregressos pelo mar. Assim, gradativamente vai conquistando o coração de Arete por meio de seu tato social e suas histórias de aventura e sofrimento (Semêdo 2018). Um caso especialmente notável se dá no Canto XI da Odisseia, quando Odisseu narra sua viagem aos limites do Hades. Ele parece se utilizar de um recurso estratégico para agradar a rainha ao enfatizar em seu relato o encontro com almas de figuras femininas. Primeiramente destaca o emocionante contato com a alma de sua mãe, Anticleia, que morreu por saudades do filho. Em seguida, descreve sua observação dos espectros de antigas rainhas do passado. Esses são temas que presumivelmente tocam e agradam à senhora dos feácios, ela própria uma mãe e uma rainha, tal como aquelas de quem fala o herói. Ao descrever cada uma soberanas a quem avista, Odisseu tem o cuidado de exaltar suas qualidades e omitir seus defeitos, evitando mencionar célebres crimes e assassinatos por elas perpetrados (de Jong 2001, 282; Doherty 1995, 97–99). A estratégia parece certeira, pois tão logo termina de narrar tais encontros, o protagonista interrompe sua performance e a primeira a se manifestar, encantada, é justamente Arete. Movida pela narrativa, ela exalta o herói, louvando-o, e o incentiva a continuar sua história (XI. 335–341). Neste momento, tem-se a confirmação definitiva de que o protagonista conquistou sua 626

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graça. O rei Alcínoo lembra que a decisão quanto à condução do estrangeiro, em última instância, cabe a ele próprio, mas para os narratários, parece já claro que seu retorno está assegurado, uma vez constatada a aprovação de Arete. A importância da rainha feácia para o retorno de Odisseu é sugerida, ainda, quando de sua partida rumo a Ítaca. Antes de ir embora, o herói endereça sua última despedida justamente à rainha, a quem ele agradece pelo acolhimento e credita sua salvação (XIII. 56–63). Assim, uma simetria se estabelece entre o momento de chegada do herói ao palácio feácio e o de sua partida: a primeira pessoa a quem o forasteiro ali suplica é também a última de quem se despede. Com tal simetria, o narrador homérico parece reforçar a importância de Arete na jornada de retorno de seu protagonista. Ao atar as duas pontas, a do início e do fim do episódio, com uma interação entre Odisseu e Arete, destaca a rainha como a grande responsável pela salvação do herói em Esquéria. Não obstante seus feitos de bondade e sua vida livre de conflitos, os feácios estão fadados a serem eliminados da face da terra por Posêidon após a partida de Odisseu (XIII. 171–183). O senhor dos mares, ressentido por haverem auxiliado o herói que lhe cegou o filho, o ciclope Polifemo, fulminaria a cidade e seus habitantes como punição pelo acolhimento ao suplicante. Tal ação, entretanto, não é narrada na Odisseia, e o episódio se encerra com o rei feácio prestes a realizar sacrifícios a fim de aplacar a fúria de Posêidon, numa tentativa de salvar seu povo. Se o deus os poupa ou não, Homero não conta, e o assunto é encerrado sem uma conclusão definitiva, tópico que é debatido desde a antiguidade (Bassett 1933). Em suas Argonáuticas, Apolônio de Rodes retoma os feácios de Homero e atribui a Arete um papel importante na jornada de retorno dos argonautas, evento que precede por uma geração aquele narrado na Odisseia. No épico de 627

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Apolônio, a rainha salva os argonautas ao propor que Jasão se case com Medeia, ato que anula a legitimidade daqueles que os perseguem, liderados pelos irmãos da moça, e, assim, encontra uma solução pacífica para salvar seus suplicantes. Tal como na Odisseia, portanto, a soberana do pacífico reino dos feácios acolhe os estrangeiros que lhe suplicam e, portando-se como anfitriã exemplar, os auxilia e os envia para casa. Fontes históricas APOLÔNIO DE RODES. 2021. Argonáuticas. Tradução de F. Rodrigues Junior. São Paulo: Perspectiva. HESÍODO. 2013. Trabalhos e Dias. Tradução de C. Werner. São Paulo: Hedra. HOMERO. 2018. Odisseia. Tradução de C. Werner. São Paulo: Ubu. Bibliografia geral BASSETT, S. 1933. The Fate of the Phaeacians, Classical Philology, vol. 28 n. 4 p. 305–307. DE JONG, I. J. F. 2001. A Narratological Commentary on the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press. DOHERTY, L. 1995. Siren Songs: Gender, Audiences, and Narrators in the Odyssey. Ann Arbor: The University of Michigan Press. HAINSWORTH, J. B. 1990. Book VI. In: HEUBECK, A.; WEST, S.; HAINSWORTH, J. B. A Commentary on Homer’s Odyssey. Oxford: Oxford University Press, p. 289–315. SEMÊDO, R. A. 2018. Alcínoo versus Odisseu na corte dos feácios: um jogo discursivo. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo – USP. VON KAMPTZ, H. 1982. Homerische Personennamen. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht. 628

Κίρκη › Circe

por Dolores Puga

Circe, ou Κίρκη [Kírkē] em grego ático, é uma figura da mitologia grega racionalizada como feiticeira. Circe é reconhecida como uma deusa menor na perspectiva mitológica grega tradicionalizada a partir da Οδύσσεια [Odýsseia] de Homero e da Θεογονία [Theogonía] de Hesíodo. O primeiro registro de fonte documental poética de Circe encontra-se em Homero (Odisseia, X–XII). Contudo, o outro registro importante de Circe na poesia arcaica está justamente na obra de Hesíodo, como afirmado anteriormente (Hesíodo. Teogonia, 957, 1011–1016). Dentre as fontes da poesia clássica grega em que é possível identificar a presença de sua imagem, vislumbra-se, sobretudo, a tragédia Τρῳᾶδες [Trōiâdes] (Eurípides. As Troianas, 435–441) e a comédia Πλοῦτος [Ploûtos] (Aristófanes. Pluto, 302–315), mas também entre os fragmentos poéticos de Ésquilo, encontrados no volume 3 do Tragicorum Graecorum Fragmenta, uma coleção que reúne excertos dos tragediógrafos clássicos gregos (Ésquilo. TrGF 3, 113a–115). É igualmente plausível encontrar registros de Circe nesta coleção, volume 4, nos fragmentos intitulados Ὀδυσσεὺς ἀκανθοπλήξ de Sófocles [Odysseùs Akanthoplḗx] —ou Odysseus Wounded by the Prickle— (Sófocles. TrGF 4, 453–461). Na poesia helenística, vale ainda apontar a obra Ἀργοναυτικά [Argonautika] (Apolônio de Rodes. Argonáutica, IV. 660–669), que apresenta registros de Circe. Na apropriação romana, faz-se necessário apontar o poema Metamorphoses

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(Ovídio. Metamorfoses, XIII–XIV), talvez como uma das representações posteriores da antiguidade mais conhecidas da praticante de magia. O contexto histórico da criação da personagem Circe se configura pelo momento de compilação de tradições orais da designada era heroica na mitologia, perspectivas passíveis de remontar desde o século XV ᴀEC, traduzindo, entre outros fatores, a época dos palácios, da realeza, mas que se sistematizaram ao final do século VIII ᴀEC, quando é forjado o texto da obra Odisseia de Homero. Após o período Micênico, a Grécia continental sai de um processo de isolamento. Há a introdução do ferro, vindo do oriente, além do alfabeto de origem fenícia. Ao longo do século VIII, há um aumento populacional, marcando o surgimento das cidades, a expansão colonial grega para o ocidente e oriente, as tiranias, e, por fim, a fundamentação das obras de Homero e Hesíodo. Hesíodo teria desenvolvido seus escritos na região da Beócia (Grécia central) e os estudiosos modernos defendem que tanto Ilíada quanto Odisseia teriam sido produzidas em regiões tais quais a península da Ásia Menor, atual Turquia, região de colônias gregas. A Grécia asiática teria sido a região originária de Homero. Mesmo assim, a representação literária de Circe a vincula com a geografia italiana, no mar Mediterrâneo, no denominado Monte Circeu. O retrato de Circe na Odisseia homérica é talvez o primeiro daquilo que consideramos ser uma feiticeira na antiguidade grega, muito embora o termo «magia» ou «feitiçaria» em si sejam contestados. Para distinguir de uma tradicional deusa olímpica e de monstros femininos da mitologia, é possível pensar a feiticeira na literatura grega arcaico-clássica como aquela que faz usos socialmente não aceitos de ferramentas e poderes sobrenaturais para controlar a natureza e os seres humanos conforme sua vontade (Spaeth 2014, 42). 630

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Circe era denominada de φαρμάκις [pharmakis]) que vem de φάρμακα [pharmaka], «medicamentos» ou «drogas», e a obra sistematiza Circe como possuindo «muitas drogas» — polu-pharmakos (Homero. Odisseia, X. 274–280). Por um lado, o termo designa a perspectiva da cura medicinal, e, por outro lado, o conhecimento do uso de drogas e venenos. Circe era definida como uma deidade, ao mesmo tempo «terrível», de mente funesta, irmã de Aietes, ambos nascidos do deus sol Hélios (Homero. Odisseia, X. 136–138). Essa perspectiva de Circe reverberou na Teogonia de Hesíodo: a ligação com uma linhagem de deuses pré-olímpicos, cujas primeiras referências religiosas vieram de regiões do Oriente próximo. Nesse ínterim, é filha de Perseida (e em outras versões do mito, filha de Hécate) e possui parentesco com Medeia — esta apresenta-se como sua sobrinha, e ambas são apontadas na obra hesiódica como deusas que se relacionam e possuem filhos com heróis. Circe é demarcada, assim, como a mãe dos descendentes de Odisseu (Hesíodo. Teogonia, 956–1020). Na narrativa homérica (Homero. Odisseia, X. 203–335), Circe fazia os homens que a visitavam se esquecerem de suas regiões de origem utilizando uma poção em suas bebidas e transformava-os em porcos por meio de sua varinha, aprisionando-os em sua ilha, como o que aconteceu com os companheiros de viagem de Odisseu ao retornarem da Guerra de Tróia. Circe demonstrou também a capacidade de praticar magia erótica (Ogden 2002, 99) pelo receio de Odisseu de que ela não o transformasse em um ser «covarde e pouco viril» assim que ele retirasse suas roupas e se juntasse à Circe em sua cama para o ato sexual, conforme o conselho de Hermes. Assim como Medeia, Circe também utiliza de magia do rejuvenescimento, mas, neste caso, como uma forma de retratação à Odisseu, transformando seus companheiros novamente em seres humanos, porém, mais jovens – momento em que 631

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Circe passa de algoz a benevolente ao herói, banhando-o, alimentando-o e aconselhando-o sobre o que iria enfrentar no restante do seu caminho à Ítaca. Ao redor da casa de Circe encontravam-se animais selvagens como leões e lobos, entorpecidos pelas suas drogas para sua proteção, e o poeta romano Ovídio ainda teria acrescentado ursos entre esses animais em sua variante sobre Circe (Metamorfoses, XIV. 255). Na versão helenística de Apolônio de Rodes, a ilha estava cheia de seres feitos da mistura de corpos de diferentes criaturas (Argonáuticas, IV. 659–672). Aquilo que majoritariamente se consolida da imagem de Circe nas obras posteriores à Teogonia de Hesíodo é a ideia da personagem como algoz de Odisseu, sobretudo nas peças trágicas e cômicas do período clássico, apesar de ter se tornado benevolente ao herói ao longo da narrativa de Homero. Em As Troianas, ao prever sua morte sob o julgo de Clitemnestra, Cassandra aponta o risco que enfrenta construindo assim uma analogia com os perigos que Odisseu enfrentaria ao se encontrar com Circe em seu caminho (Eurípides. As Troianas, 435–441). Na comédia Pluto, de Aristófanes, a personagem pobre chamada Crêmilo, buscando restaurar a visão do deus da riqueza Pluto – que por responsabilidade de Zeus não enxergaria para não distinguir justos e injustos, associando a riqueza a muitos injustos –, pede a seu escravo Carião que busque um grupo de velhos camponeses (o coro) para o auxiliar na empreitada. Para convencê-los, Carião canta como se fosse Circe, e o coro é colocado como «leitões» a seguir sua «mãe» (Aristófanes. Pluto, 302–315). Apesar dessas representações, Circe é apontada como resposta necessária para a purificação de Medeia e Jasão nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes, e assim, evitarem a ira de Zeus, uma vez que eles escolhem matar e desmembrar o corpo do irmão de Medeia, Apsirto, para fugir de Cólquida após o 632

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roubo do velocino de ouro (Apolônio de Rodes. Argonáuticas, IV. 665–669). Já Ovídio mantém a característica ameaçadora de Circe em sua obra Metamorfoses, no momento em que retrata Glauco, um semideus do mundo aquático que se apaixona pela ninfa Cila que o rejeita. Na raiva e desespero, Glauco procura Circe para o ajudar, mas ela se apaixona por ele. Por ciúmes, Circe transforma a ninfa Cila em um monstro. (Ovídio. Metamorfoses, XIII. 966–968, XIV. 1–74). Na contemporaneidade, embora a visão temida de Circe tenha se fundamentado em vários aspectos – muitas vezes intensificando perspectivas do perigo da feiticeira, mas sobretudo seu poder de sedução e persuasão sexual –, é interessante ressaltar obras cinematográficas tais como o filme ítalo-americano intitulado Ulysses (ou Ulisse), de 1954, sob direção de Mario Camerini e Mario Bava, que passa a reconhecer esse poder feminino. Apesar de se manter a perspectiva tradicional entre vilã e mocinha, como é característico dos filmes de gênero peplum no cinema – do grego péplos, o traje utilizado na antiguidade –, Circe é interpretada pela mesma atriz que faz Penélope (Silvana Mangano), esposa de Ulisses (Odisseu); aquela que o espera anos após a Guerra de Tróia, simbolizando uma dualidade necessária para amenizar o lado sombrio da feiticeira/cônjuge, atenuando também a consciência do adultério de Ulisses quando ele sucumbe aos encantamentos de Circe, representada no filme como sua legítima mulher (Paul 2013, 152–158). Além dessa película, é válido enfatizar a estreia do filme intitulado Eternos (2021), baseado na Histórias em Quadrinhos da Marvel e que tem como uma das personagens justamente Circe (ou Sersi), retratando-a de maneira poderosa e reconhecendo-a como uma super-heroína em seu enredo. A permanência de Circe nas obras literárias e na arte demonstra a força 633

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de sua popularidade e a forma como, mesmo depois de tantos séculos da antiguidade aos nossos dias, ainda integra o imaginário social. Fontes históricas AESCHYLUS. 1985. Tragicorum Graecorum Fragmenta (TrGF). Vol. 3. Editor Stefan Radt. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht. APOLLONIUS RHODIUS. 2009. Argonautica. Edição e Tradução de William H. Race. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press. ARISTOPHANES. 1938. Plutus. In: The Complete Greek Drama. Tradução de Eugene O’Nell, Jr. New York: Random House. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0040. Acesso em: 23 jan. 2021. ETERNALS. 2021. Direção de Chloé Zhao. Estados Unidos. Marvel Studios (157 min.). EURIPIDES. 1891. The Trojan Women. In: The Plays of Euripides. Tradução de E. P. Colerigde. Vol. 1. London: George Bells and Sons. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/ text?doc=Perseus:text:1999.01.0124. Acesso em: 15 jan. 2021 KIRBY, Jack. 1976. The Eternals. New York: Marvel Comics. HESIOD. 2018. Theogony / Works and Days / Testimonia. Edição e Tradução de Glenn W. Most. Cambridge, MA: Harvard University Press. HOMER. 1919. Odyssey. Vol. 1. Edição de George E. Dimock e Tradução de A. T. Murray. Vol. 1. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press. OVID. 1916. Metamorphoses. Vol 2. Edição de G. B. Goold e Tradução de Frank Justus Miller. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press. 634

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SOPHOCLES. 1999. Tragicorum Graecorum Fragmenta (TrGF). Vol. 4. Editor Stefan Radt. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht. ULISSE/ULYSSES. 1954. Direção de Mario Camerini e Mario Bava. Itália/Estados Unidos: Signature Pictures (104 min.). Bibliografia geral BRACKE, E. Of Métis and Magic: The Conceptual Transformations of Circe and Medea in Ancient Greek Poetry. Tese de doutorado defendida no Department of Ancient Classics, National University of Ireland – Maynooth, 2009. FINLEY, M. 1988. O Mundo de Ulisses. Lisboa: Editorial Presença. OGDEN, D. 2002. Magic, Witchcraft, and Ghosts in the Greek and Roman Worlds: a Sourcebook. New York: Oxford University Press. PAUL, J. 2013 “Madonna and Whore”: The Many Faces of Penelope in Ulisse (1954). In: NIKILOUTSOS, K. P. (Org.). Ancient Greek Women in Film. Classical Presences. Oxford: Oxford University Press, p. 139–162. SPAETH, B. S. 2014. From Goddess to Hag: the Greek and the Roman Witch in Classical Literature. In: STRATTON, K. B.; KALLERES, D. S. Daughters of Hecate: Women & Magic in the Ancient World. New York: Oxford University Press, p.41–70. VIDAL-NAQUET, P. 2002. O Mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras.

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Σειρῆνες › Sereias

por Mary de Camargo Neves Lafer

As Sereias são seres híbridos que possuem a cabeça de mulher e o corpo e as garras de uma ave de rapina, ou podem ter cabeça e busto de mulher e cauda de peixe, ou ainda, cabeça feminina com asas e garras de pássaros e cauda de peixe. Na literatura grega, a primeira referência a elas se encontra na Odisseia de Homero em três circunstâncias diferentes, todas elas no Canto XII. A saber, vv.39–45, quando Circe avisa Odisseu que ele irá encontrá-las e qual o comportamento que deve ter para poder ouvir seu canto e a ele sobreviver; em seguida, nos vv.154–165, ocasião em que o herói conta a seus companheiros o que Circe lhe dissera; e, por fim, vv.166–200, quando o narrador relata o que de fato aconteceu. Em Homero, elas aparecem efetivamente por meio de seu canto, elas surgem como uma espécie de epifania sonora, o poeta sequer as descreve fisicamente. Desde o período helenístico se tentou fixar uma localização geográfica para elas. Segundo Eratóstenes de Cirene (276 ᴀEC–195 ᴀEC), matemático, astrônomo, geógrafo, gramático e bibliotecário em Alexandria, o local habitado pelas Sereias homéricas era o Cabo Pelórias na Sicília, no Estreito de Messina ou nas proximidades de Sorrento, entre os golfos de Nápoles e de Salerno. Na verdade, desde o Catálogo das Mulheres, atribuído a Hesíodo (século VIII ᴀEC) até Estrabão (63 ᴀEC–23 EC) a localização da moradia delas foi tema de pesquisa. Em Homero, elas aparecem num prado, em uma ilha, acocoradas ao lado de ossadas humanas e de suas peles ressequidas, vv.45–46. Assim como Calipso, Éolo, os feáceos e mesmo o próprio Odisseu, as Sereias vivem num espaço

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insular, que não se refere apenas a uma terra circunscrita pela água, mas também a todo um imaginário que carrega à simples menção de sua existência. As ilhas evocam o isolamento, mas também o lugar de um possível tesouro, o bem viver e até promessas de calma e de bem-aventurança. Homero não as descreve fisicamente, ele dá destaque a sua voz e seu canto e os efeitos deste sobre os marinheiros. São, sobretudo, as decorações de vasos e outros documentos iconográficos, que mostram como são esses seres híbridos e é no seu hibridismo que elas participam de três naturezas diferentes: a humana, a animal e a divina por conta da sua voz. Na tradição nórdica, elas foram sempre representadas como mulheres-peixes. Foi esta a representação que prevaleceu ao longo dos séculos. De qualquer modo, em suas duas figurações, elas estão ligadas aos perigos do mar. Porém, não é apenas na tradição nórdica que elas são pisciformes, na tradição grega essa transformação de ave em peixe não se dá em um único e preciso momento, mas em diversos, como se pode verificar. Se a direção da pesquisa for dada pelas representações iconográficas, pode-se observar que a forma homérica é a que prevalece até o século XIV na Europa. Assim, elas são vistas na forma mulher-pássaro nos relevos do Sarcófago Turânio (século III), que está nas Catacumbas de São Calisto, em Roma. Outro exemplo está nos desenhos do Bestiário de Pierre Picard (circa 1285). Entretanto, no Bestiário Latino de Cambridge (século XII), pode-se observar uma figura com rosto, braços e seios femininos, com asas e garras de ave de rapina, mas com cauda de peixe. Outro padrão que foge a essa datação genérica é um alto-relevo na Porta da Catedral de Cunault, na França, do século XII, onde se verifica uma Sereia pisciforme. Em sua Arte Poética, Horácio (século I ᴀEC) exemplifica com a imagem das Sereias o que ele descreve como uma das imagens absurdas, 638

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usando justamente a representação delas enquanto mulheres-peixe. É curioso igualmente notar-se que essa diferenciação entre as que são aladas e as pisciformes se nota ao nível do vocabulário em algumas línguas, como no inglês, onde temos Siren e Mermaid para designar uma e outra representação. Jurgis Baltrusaïtis, ao analisar o «Fantástico» e o «Grotesco» na arte gótica, observa que os seres híbridos mais fantasiosos nascem, com frequência, de leituras ou decifrações equivocadas dos originais antigos. Sendo, assim, comuns as confusões linguísticas causadas por homofonia e paronímia; esta talvez seja uma explicação possível para a mudança de formas ocorrida com as Sereias. Lembre-se que a palavra grega Pterýgion significa tanto «Asa», «Pequena asa» quanto «Barbatana de peixe». A etimologia desta palavra na língua grega – Seirén – é incerta, porém, se pode fazer algumas conjeturas a partir de raízes próximas a ela que merecem atenção. O adjetivo Seírios tem o sentido de «ardente», «abrasador», «intenso» e, acompanhando a palavra Astér (Erga, v.417), refere-se à estrela Sírios, a mais brilhante da constelação do Cão Maior. Ela é também chamada de Canicula diminutivo da palavra latina Cane, traduzido por «Cãozinho». Curiosamente, no Hemisfério Norte, o brilho desta estrela é visível ao meio-dia, quando o sol está em seu ápice e começa a declinar até a chegada da noite; além de ser um momento com excesso de luz e calor, o momento sem sombras, é também o que pode provocar uma efêmera alteração da percepção visual: uma alucinação. Em sânscrito há o vocábulo Surya que designa o «Sol» e também a «luz e o calor do meio-dia». Há a palavra grega Seirá que se traduz por «Laço», «Corda» e ainda há forma verbal Seirázein com o sentido de «amarrar», «atar», «enlaçar», presente no episódio em que os companheiros amarram Ulisses ao mastro do seu navio. 639

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Todos estes vocábulos têm, portanto, radicais que dizem respeito à ideia de luminosidade e calor excessivos do meio-dia, mas também à ideia de «Corda» que prende e pode imobilizar. Essas palavras sugerem igualmente uma ligação implícita com as visões distorcidas e delirantes que o calor excessivo pode provocar. Seriam as Sereias fruto dessas alucinações visuais, verificáveis em marinheiros após longo tempo no mar? Quanto a seu número, em Homero, elas são apenas duas, conforme a forma do Dual empregada no v.167 do Canto XII: Seirénoiin. Na maior parte das vezes, entretanto, elas aparecem como uma tríade e, frequentemente, são confundidas com outros seres híbridos alados que são vistos agrupadas em número de três, como, por exemplo, as Graças, as Erínias, as Harpias e as Górgonas. As Sereias são chamadas de «Musas do Hades», aproximando-as de algum modo às Musas, filhas de Mnemosýne, a Memória, e é exatamente aqui que elas se distanciam umas das outras. As Musas cantam os heróis e os afastam completamente do anonimato, pelo seu canto eles têm a garantia de serem sempre lembrados. A força das Sereias, por outro lado, reside na extraordinária capacidade de atração do seu canto límpido que conta «o antes» e «o depois» e que transforma os marinheiros que as ouvem em seres sem nome, sem origem nem objetivo; eles se esquecem de tudo o que lhes confere identidade e passam a ser ninguém, apenas peles ressequidas e ossos. As Sereias trazem na sua voz o que há de pior na morte, isto é, o esquecimento. Fonte histórica HOMERO. 2007. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Cia. das Letras. 640

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Bibliografia geral BALLABRIGA, A. 1998. Les Fictions d´Homère. Paris: PUF. BETTINI, M.; SPINA, L. 2007. Le Mythe des Sirènes. Paris: Bélin. LAO, M. 1985. Le Sirene. A.Rotundo Editore, Roma. Traducción de la autora. Primera Edición en español 1995. Mexico D.F.: Ediciones Era. MALTA, A. 2018. Paragens e (ultra)passagens. In: MALTA, A. A Astúcia de Ninguém. Ser e não ser na Odisseia. Uma interpretação do poema de Homero seguida da tradução de oito cantos. Belo Horizonte: Impressões de Minas, p. 317–343. PUCCI, P. The Song of Sirens. In: PUCCI, P. Odysseus Polytropos. Ithaca / London: Cornell University Press, p. 209–213. SAÏD, S. 2010. Homère et l'Odyssée. Paris: Bélin. VIVANTE, P. 1970. The Homeric Imagination. Bloomington / London: Indiana University Press.

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MULHERES NA GRÉCIA ARCAICA, CLÁSSICA E NO MUNDO GRECO-MACEDÔNIO Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres na Grécia Arcaica, Clássica e no Mundo Greco-Macedônio

por Fábio de Souza Lessa

Helena, Penélope, Theano, Alceste, Aspásia, Medeia, Fedra, Olímpia, Arsínoe II, Cleópatra VII, mulheres reais e míticas, cada uma atuando em seu contexto histórico, nos oferecem múltiplos indícios da historicidade dos comportamentos femininos e das relações de gênero no mundo grego antigo, desde o período arcaico (séc. VIII–VI aEC) até o helenístico (séc. IV–I aEC), passando necessariamente pelo clássico (séc. V e IV aEC). É significativo reforçar, no caso das mulheres fictícias, que elas são produtos do contexto cultural de seus autores e que, por isso, tiveram o seu processo criativo baseado em certas práticas que almejavam o controle feminino e, ao mesmo tempo, minimizavam o desconforto do público masculino grego com os seus comportamentos. É comum o estabelecimento de comparações entre as possibilidades do agir feminino no período políade com aquelas mais específicas ao helenístico. Vale destacar que neste texto, a sociedade macedônica será revisitada exclusivamente durante o recorte temporal referente ao mundo helenístico. Defendemos que enquanto a pólis tendia à reclusão feminina e à sua idealização a partir da construção ideológica do modelo mélissa (mulher-abelha), o mundo helenístico permitiu às mulheres uma maior liberdade de ação. Essa mudança na posição das mulheres entre os dois períodos históricos não pode ser dissociada das alterações políticas ocorridas no mundo grego antigo. A perda de autonomia das póleis acabou por alterar as relações políticas entre os homens e as sociedades nas

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quais esses se encontravam inseridos. E tais alterações repercutiram na posição das mulheres tanto no grupo doméstico quanto na sociedade como um todo. Antes de prosseguirmos, é importante destacar que as informações que possuímos sobre as mulheres do período helenístico é comumente tida como ampla, diferente do que podemos pensar para o período políade. E esse quadro na pólis ainda se apresenta de forma diversa, inclusive, se compararmos o período arcaico com o clássico. Enquanto a Grécia arcaica nos oferece um corpus documental mais plural pelo menos em termos espaciais, a clássica nos apresenta uma diversificação em quantidade e gêneros literários dos textos, mas se restringe à uma visão atenocêntrica. Sarah Pomeroy (1999, 141) atribui a abundância de informações sobre as mulheres da realeza helenística, tanto ao impacto que essas mulheres produziram nos escritores antigos como o fato de que elas mesmas se envolveram na atividade política dos homens, o que acabou por constituir a principal matéria para a maioria dos escritores. Podemos afirmar que as mulheres do período helenístico foram ambiciosas e hábeis, não hesitando em se envolver plenamente na política. Vale ainda uma advertência: os grupos femininos na sociedade grega são heterogêneos, assim como são apreendidos atualmente pelas teorias de análise de gênero, mas o que comumente predomina na documentação antiga é uma visão uniforme desses grupos e centrada nos segmentos sociais abastados, que podem, por exemplo, se manter reclusos no interior do grupo doméstico, como preconizado pelo modelo ideal de comportamento almejado pelas póleis e, certamente, mais presente em Atenas. Nesse aspecto também os trabalhos sobre as mulheres helenísticas apontam para uma diferenciação, pois aquelas de status menos elevado também podiam ser vistas em atuações públicas, conseguindo uma maior influência em 646

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assuntos políticos e econômicos e até mesmo difundirem as suas opiniões sobre matrimônio, educação e condutas femininas (Pomeroy 1999, 141). No plano ideológico/simbólico, a sociedade helênica parece ter assumido prioritariamente uma polaridade antagônica e desigual entre homens e mulheres (Gurina 2008, 11), culminando na idealização de uma noção rígida de bipolaridade espacial na qual a esfera interna era relegada ao feminino e a externa, ao masculino. Temos conhecimento da existência de um conjunto de virtudes convencionalmente reservado às mulheres —principalmente, mas não exclusivamente— pela sociedade ateniense no qual se inclui o exercício das atividades domésticas, a submissão ao homem, a abstinência aos prazeres do corpo considerados como masculinos, o silêncio, a fragilidade e a debilidade, a reprodução de filhos legítimos —preferencialmente do sexo masculino— a vida sedentária e reclusa no interior do oîkos, bem como sua exclusão da vida social, pública e econômica. Essas virtudes compõem o modelo feminino idealizado pela sociedade ateniense —o mélissa, mulher abelha—, reproduzido pela documentação e que passou a constituir um lugar comum presente em grande parte da historiografia contemporânea (Lessa 2010, 15). Indo de encontro a uma série de interpretações que relegam às esposas apenas o confinamento no gineceu, temos o trabalho de David Cohen que constrói o seu estudo a partir de um diálogo com pesquisas de Antropologia Social desenvolvidas nas sociedades modernas do Mediterrâneo. O autor afirma que as mulheres não atuavam nas esferas pública e política como os homens, deixando claro que isto não resulta necessariamente que elas não tivessem seus próprios espaços público, social e econômico e conclui que os modelos das divisões de papéis masculino-feminino na Atenas clássica são um 647

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fato típico das sociedades tradicionais do Mediterrâneo, não significando reclusão ou exclusão das esferas social, econômica ou pública (Cohen 1985, 3). A cultura grega fez uso frequentemente da associação entre esposa ideal e a abelha. No Fragmento 7W (vv.83–89) temos Semônides de Amorgos comparando a mulher a vários animais, tais como: porca, raposa, cadela, mula, égua, macaca e, por fim, a abelha. O seu objetivo é o de descrever melhor a phýsis feminina. Segundo o poeta jâmbico, a mulher que descende da abelha se caracteriza pelo êxito na administração doméstica, pela lealdade e fidelidade ao esposo, pela concepção de filhos e pelo fato de que a ela nenhuma censura se liga. Nota-se que no poema de Semônides nada é dito acerca do que a mulher sente, com exceção do verso 86: «Amiga, com o que a ama envelhece [gēráskei] com o esposo [...]». Se defendermos que o modelo mélissa se autorregulava como uma espécie de proteção ideológica quando na experiência do cotidiano as mulheres contestavam as censuras pronunciadas pelos homens, podemos concluir que elas podiam ter exercido certo grau de autonomia na medida em que permaneceram à margem do exame público (Winkler 1994, 24). Isto equivale a afirmar que entre o discurso masculino acerca do feminino e as práticas do cotidiano havia um distanciamento. O confinamento das esposas no gineceu é mais um ideal cultural de seus maridos do que propriamente uma prática. Até mesmo porque a administração do grupo doméstico pressupunha oportunidades de saída feminina do interior do oîkos. Podemos afirmar que o modelo mélissa contava na prática com possibilidades de desvios, através dos quais as esposas, inclusive as dos grupos mais abastados, podiam atuar ativamente em ambientes atenienses tradicionalmente tidos como masculinos, como os espaços externos. Porém, esses 648

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desvios eram certamente reprimidos e omitidos pelo mundo dos homens. Assim como enfatizou Mary Beard (2018, 11), «no que diz respeito a silenciar as mulheres, a cultura ocidental tem milhares de anos de prática». Não podemos esquecer que a documentação que contamos para o estudo da atuação feminina é essencialmente produzida pelos homens. O modelo idealizado de comportamento feminino certamente atuava como regulador-inibidor das tensões da experiência social. Para um distanciamento das pesquisas que insistem na normatização do modelo ideal feminino julgamos ser necessária a diversificação da natureza da documentação a ser analisada inserindo no corpus a cultura material —as imagens pintadas nos vasos gregos e os artefatos da cultura material— e também a efetivação de um diálogo mais interdisciplinar, sobretudo com a Antropologia Social (Lessa 2010, 107–108). Com a diversificação da documentação e a adoção do diálogo interdisciplinar, acreditamos poder oferecer outras conclusões aos estudos sobre o feminino no mundo grego antigo. À ideia de que as esposas atenienses bem-nascidas eram indiferentes às demais mulheres, que não fossem as suas mães, irmãs e amas, temos em contrapartida, a possibilidade da existência de reuniões tipicamente frequentadas por estas mesmas esposas. Além dessas reuniões domésticas, contamos ainda com outros espaços onde as esposas podiam estabelecer contatos sociais, como por exemplo: a fonte, a colheita de frutos, a ida à fonte, entre outros. Nessas saídas, as esposas tinham a oportunidade de estabelecer relações sociais a nível doméstico e comunitário. À defesa de que as esposas não exerciam qualquer influência no âmbito público, podemos exemplificar a sua atuação ativa tanto na esfera religiosa —tradicionalmente reservada às esposas—, quanto no espaço cívico. Elencamos 649

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alguns exemplos da atuação feminina em prol da defesa de sua comunidade quando da ausência masculina, como os que nos são fornecidos pelos historiadores antigos. À visão de uma completa reclusão feminina no interior do gineceu, apontamos para a possibilidade de a esposa bem-nascida sair do seu espaço físico de reclusão. A esposa ao deixar o gineceu em situações cotidianas demonstra que, na prática, a rígida divisão espacial entre homens e mulheres não se concretizava. Pelo que vimos anteriormente e pelas evidências da documentação do período helenístico, podemos afirmar que a posição social das mulheres se modificou, se comparada ao período políade. Observamos que a relação entre mãe e filho se tornou mais forte que a entre marido e mulher, o que facilitou a ação feminina em prol do assassinato dos seus maridos para que os filhos assumissem o poder. Sarah Pomeroy (1999, 142) chega a afirmar que estas são claramente mulheres que competiam em uma palestra tradicionalmente masculina e que utilizavam armas e técnicas também masculinas. Dentre os benefícios comumente elencados e conquistados pelas mulheres do período helenístico temos o maior reconhecimento da cidadania e de direitos políticos, além da aquisição e uso do poder econômico. Há, assim podemos destacar, um estreitamento no abismo entre os privilégios masculinos e femininos no mundo helenístico (Pomeroy 1999, 147). Porém, não podemos esquecer que tais informações aparecem atreladas às mulheres da realeza e que a situação dos grupos femininos de outros segmentos sociais, sobretudo os menos abastados, era bem diferente. Para esses grupos, observamos que a dedicação à vida política era pequena e que houve uma lenta alteração do status legal. 650

A presença das mulheres na Literatura e na História

Se pensarmos na educação recebida pelas mulheres gregas, vemos que no decorrer do período helenístico parte essencial da paideía, até então restrita aos homens, começou a se abrir às mulheres, a exemplo do atletismo. Além das práticas esportivas, a leitura e a escrita também passam ao universo das mulheres. Vale ressaltar que esse quadro de maior autonomia feminina também é comumente apontado para o contexto da sociedade romana. A análise que desenvolvemos buscou atender a proposta da obra, isto é, ser um projeto enciclopédico sobre as personagens femininas históricas e literárias mais conhecidas e algumas menos conhecidas do mundo antigo, destacando as trajetórias dessas personagens, suas construções e recepções. Assim, buscamos elaborar uma visão sobre o feminino mais holística e comparativa entre dois recortes: a pólis e o período helenístico. Esperamos ter conseguido explicitar que independente do recorte, seja em um momento de maior controle sobre as mulheres ou não, havia sempre a possibilidade de os grupos femininos agirem, de conquistarem brechas no poder estabelecido. Nossa interpretação acerca das mulheres em um período longo de tempo, desde a Grécia arcaica até a helenística, foi facilitada pela operacionalização da categoria analítica gênero. Segundo Violaine Cuchet (2019, 286), «os estudos sobre o gênero mostraram, de fato, que a diferenciação entre homens e mulheres resultou de uma escolha cultural: a natureza não distingue meninos e meninas [...]». Logo, o que discutimos foi a construção cultural da diferenciação, até então vista sob a ótica da natureza. Nesse sentido, as ações femininas na pólis e no decorrer do período helenístico se caracterizam pela historicidade e não podem deixar de serem vistas a partir da noção de relações entre o feminino e o masculino. Em síntese, essas ações femininas que pudemos apresentar revelam o poder feminino que o mundo antigo tentou silenciar. 651

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fontes históricas SEMÔNIDES DE AMORGOS. 1983. Semônides de Amorgos e Minnermo. Tradução de T. R. Assunção; J. L. Brandão. In: Ensaio de Literatura e Filologia. Belo Horizonte: UFMG. Bibliografia geral BEARD, M. 2018. Mulheres no poder: um manifesto. São Paulo: Planeta do Brasil. COHEN, D. 1989. Seclusion, Separation, and the Status of Women in Classical Athens. Greece and Rome, vol. XXXVI, nº 1, p. 3–15. CUCHET, V. S. Cidadãos e cidadãs na cidade grega clássica. Onde atua o gênero? Revista Tempo. Niterói, vol. 21, n. 38, 2015, p. 281–300. FOXHALL, L. 2013. Studying Gender in Classical Antiquity. Cambridge, Cambridge University Press. GURINA, M.P. 2008. Alguien se acordará de nosotras: Mujeres en la ciudad griega antigua. Barcelona: Bellaterra. LESSA, F.S. 2010. Mulheres de Atenas: Mélissa do ginceu à agorá. Rio de Janeiro: Mauad X. POMEROY, S. 1999. Diosas, rameras, esposas y esclavas: Mujeres en la Antigüedad clásica. Madrid: Ediciones Akal. SANTOS, S.F. 2016. A mulher na Magna Grécia: um “objeto” de valor, Clássica, Belo Horizonte, vol. 29, n. 1, p. 29–48. WINKLER, J.J. 1994. Las Coacciones del Deseo: Antropología del Sexo y el Género en la Antigua Grecia. Buenos Aires: Manantial.

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Artesãs Ceramistas

por Gilberto da Silva Francisco

A história do trabalho nas oficinas ceramistas gregas produtoras dos vasos de cerâmica foi constituída em torno de personalidades masculinas. Desde o cenário amplo, a partir de caracterizações generalistas (o artesão, o oleiro, o pintor), até o específico relacionado a aspectos individuais da produção (os oleiros Amasis e Exéquias, o pintor Clítias, por exemplo), privilegiou-se, durante muito tempo, narrativas sobre o trabalho de homens e um ambiente essencialmente masculino. Entretanto, recentemente, a participação feminina vem sendo discutida de forma tímida a partir de alguns dados disponíveis, tais como algumas inscrições de autoria e poucas figuras de trabalho feminino registradas nos próprios produtos de cerâmica. Apesar de tímida, essa ação vem mudando paulatinamente a forma de encarar a dinâmica do trabalho nas oficinas ceramistas gregas, considerando a sua variedade interna — o trabalho era realizado por cidadãos, escravos, metecos e estrangeiros de origens múltiplas e também mulheres (Sarian 1993, 105). Por exemplo, J. L. Benson (1985, 18), ao comentar a produção de cerâmica coríntia do século VI aEC, considera a participação feminina nesse artesanato. Essa situação também pode ser observada em outras publicações: além dos trabalhos comumente relacionados ao universo feminino, como a produção têxtil, C. Moulton (1988, 169) e L . Foxhall (2013, 99) comentam sobre o trabalho feminino nos campos da metalurgia, alvenaria e carpintaria; o que pode ser estendido para épocas mais antigas como a Idade do Bronze (Laffineur; Betancourt 1997).

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

A associação entre o universo feminino e o trabalho artesanal também aparece no registro mítico e cultual. Por exemplo, a deusa Atena também era caracterizada pelo epíteto ergane ou organe («a que produz» ou «a artesã») em cultos estabelecidos em Atenas, Téspias, Delfos, Epidauro, Esparta, Olímpia, Megalópolis, Delos e Samos (Nilsson 1941, 439). Além disso, ela foi consistentemente associada a Hefesto, o deus artesão. No Hino homérico a Hefesto, é dito «Musa melodiosa, canta a Hefesto, de talento notável/ que com Atena de olhos brilhantes obras admiráveis/ ensinou aos homens que povoavam a terra (…)». Há, ainda, notícias sobre um grupo escultórico associando Atena e Hefesto no Hefesteion da Ágora de Atenas (Azoulay 2017, 114, fig. 7), entre outros (Mccants 2012, 19).

Fig. 1: Hídria Caputi, Milão, Coleção Torno C 278, c. 500–450 aEC, atribuída ao Pintor de Leningrado.

Nesse sentido, a deusa aparece na figuração do painel de uma hídria ática em que ela coroa um pintor de vasos em plena execução do trabalho, ladeada por Vitórias (Nikai) que 654

A presença das mulheres na Literatura e na História

coroam outros pintores (fig. 1), e acompanhando o trabalho de oleiros na figuração de uma cratera ática em cálice (Caltagiore 961) do século V aEC. Ou seja, para além do âmbito específico do oikos e do trabalho doméstico, o mundo do trabalho também começa a ser descrito considerando a participação feminina. Segundo a bibliografia, um dos poucos artesanatos produzidos por mulheres atestados pelas fontes textuais é o da douração (a aplicação de folhas de ouro), mas há numerosos registros iconográficos do trabalho feminino (Lewis 2002, 241–327). Quanto às fontes textuais, o registro de caráter epigráfico parece alargar um pouco mais o campo de ação feminina no trabalho, especialmente no que se refere à produção ceramista de oficinas gregas. Ou seja, há alguns nomes discutidos pela bibliografia como possivelmente femininos. Além disso, há pouquíssimas figuras de mulheres trabalhando em oficinas ceramistas que apoiam a ideia de que havia uma participação pequena das mulheres no universo da produção dos vasos de cerâmica. A relativamente comum prática de assinar o vasos de cerâmica decorados organizada a partir da indicação das ações do fazer (que poderia significar produzir, tornear e até pintar) e desenhar/pintar, proporcionou um enorme repertório de nomes de artesãos de oficinas ceramistas gregas, principalmente aquelas situadas na região da Ática entre os séculos VI e IV aEC (Villanueva-Puig 2007; Hurwit 2015, 71–96.). Nesse amplo conjunto de nomes, alguns parecem indicar nomes de mulheres, tais como Douris, Kallias, Aristagora e Timagoras (Williams 2009, 309; Walter 2019, 165), todos relacionados ao universo ático. A interpretação desses nomes como femininos, cabe dizer, é bastante polêmica, e há, ainda atualmente, amplos debates sobre se seriam nomes efetivamente femininos. 655

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Há quem considere que, em alguns deles, pode ter havido erro de grafia (o que era comum entre os ceramistas da época), ou que fossem nomes comuns de dois gêneros (Walter 2019). Entretanto, é importante notar que essas inscrições não são registros isolados do possível trabalho feminino na produção dos vasos de cerâmica em oficinas gregas. Há, por exemplo, uma placa votiva coríntia (século VII aEC), de difícil leitura iconográfica, que parece indicar três homens e uma mulher trabalhando na extração de argila (Berlin Altes Museum, F 891). Uma outra cena mais clara de trabalho feminino aparece no vaso citado acima (fig. 1).

Fig. 2: Hídria Caputi, Milão, Coleção Torno C 278, c. 500–450 aEC, atribuída ao Pintor de Leningrado.

Há, no ombro dele, um grupo central com a figura de um artesão pintando um grande cálice e diante dele, há uma enócoa dentre um outro cálice. Atena avança na direção dele com uma coroa vegetal, indicativo do elemento da vitória em 656

A presença das mulheres na Literatura e na História

contexto de competições atléticas. A própria Vitória aparece duplicada, à direita e à esquerda, coroando dois outros artesãos que pintam crateras (uma com volutas e outra em cálice). Em uma região à direita, em uma situação isolada, aparece uma mulher pintando uma cratera com volutas, a única que não é coroada na cena e que não interage com as deusas presentes (fig. 2). Essa cena foi amplamente discutida, e as interpretações transitam entre uma hierarquia entre o trabalho masculino e feminino, o preenchimento do espaço que sobrara dado um projeto mal sucedido do desenho e até a indicação da pintora como a esposa de um dos pintores (Green 1961, 44; Ziomecki 1973, 115; Kehrberg 1982, 25; Venit 1988, 271). De um forma ou de outra, o que aparece é a possibilidade de esse tipo de ambiente de trabalho ser também frequentado por trabalhadoras mulheres. Por fim, é importante notar que as fontes que indicam a possível presença de trabalhadoras nas oficinas ceramistas gregas são poucas, mas permitem repensar o quadro geral de forma mais profunda. Se, até o momento, uma tímida inserção desse tema marca a bibliografia sobre a produção ceramista nas oficinas gregas, é possível, por exemplo, repensar o amplo repertório de artesãos nomeados pela tradição arqueológica. Para além das centenas de nomes que conhecemos pelas inscrições de autoria, há uma grande e variada gama de nomes arqueológicos imputados a vários desses artesãos e artesãs, trazendo referências dos locais de achado, das coleções de guarda, dos temas figurados, entre outros. Geralmente, tais nomes apresentam personalidades masculinas. Assim, se há dúvida sobre um pequeno grupo de nomes de artesãos e indícios iconográficos que apresentam a possibilidade de ter havido trabalhadoras nas oficinas ceramistas, é preciso projetar essa possibilidade para o amplo 657

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

universo de personalidades desconhecidas pelo nome, mas que também poderiam, em certa medida, serem representadas por artesãs ceramistas; ou seja, propor uma inserção mais sólida das mulheres na dinâmica do trabalho nas oficinas ceramistas. Fontes históricas HINOS HOMÉRICOS 20: A Hefesto. 2010. Tradução e estudo de Edvanda B. Rosa. Editado por W. A. Ribeiro Junior. São Paulo: EDUNESP, 2010, p. 363–367. HINOS HOMÉRICOS. 2010. Tradução, notas e estudo de W. A. Ribeiro Junior. São Paulo: EDUNESP. Bibliografia geral AZOULAY, V. 2017. Pericles of Athens. Princeton/Oxford: Princeton University Press. BENSON, J. L. 1985. Mass production and the competitive edge in Corinthian pottery. In: Ocasional papers on Antiquities, 3. Greek Vases In The J. Paul Getty Museum, vol. 2. Malibu: The J. P. Getty, p. 17–20. BOARDMAN, J. 2001. Potters and Painters. In: BOARDMAN, J. The History of Greek Vases: potters, painters and pictures. London: Thames & Hudson, 2001. DELMONDES, G. K. F. 2019. Mulheres artesãs nas oficinas ceramistas áticas. Trabalho de conclusão de curso em História apresentado na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. FOXHALL, L. 2013. Studying Gender in Classical Antiquity. Cambridge/New York: Cambridge University Press. GREEN, R. 1961. The Caputi Hydria. The Journal of Hellenic Studies, Vol. 81, 1961. HURWIT, J. M. 2015. Artists and Signatures in Ancient Greece (Cambridge: Cambridge University Press). 658

A presença das mulheres na Literatura e na História

KEHRBERG, I. 1982. The potter-painter’s wife. Some additional Thoughts on the Caputi Hydria. Hephaistos, vol. 4. LAFFINEUR, L; BETANCOURT, P. P. (Eds.).1997. TEXNH: Craftsmen, Craftswomen and Craftsmanship in the Aegean Bronze Age. Liège: Université de Liège. MOULTON, C. 1998. Ancient Greece and Rome: Achaea-Delphi. New York: Scribner. LEWIS, S. 2002. The Athenian woman: an iconographic handbook. London/New York: Routledge. MCCANTS, W. F. 2012. Founding Gods, Inventing Nations: Conquest and Culture Myths from Antiquity to Islam. Princeton: Princeton University Press. NILSSON, M. P. 1941. Geschichte der griechischen Religion, 5, 1–2. München: Beck. SARIAN, H. 1993. Poieîn-gráphein: o estatuto social do artesão-artista de vasos áticos, Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia (USP). São Paulo, 3 p. 105–120. VENIT, M. S. 1988. The Caputi Hydria and Working Women in Classical Athens, The Classical World, vol. 81, n. 4, p. 265–272. VILLANUEVA-PUIG, M.-Ch. 2007. ‘Des Signatures de Potiers et de Peintres de Vases à l’Époque Grecque Archaïque et de leurs Interprétations’, Mètis, Dossier: Tekhnai/Artes, p. 27–50. WALTER, C. 2019. Timagoras, an Athenian Potter to be Rediscovered. In: WALTER, C. Greek Art in Motion. Studies in honor of Sir John Boardman on the occasion of his 90th birthday. Archaeopress. WILLIAMS, D. 2009. Picturing Potters and Painters. In: OAKLEY, J. H; PALAGIA, O. (Orgs.). Athenian Potters and Painters. Vol. 2. Oxford: Oxbow Books. 659

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ZIOMECKI, J. 1973. The Caputi Hydria: does the scene depict the painting of metal vessels?, Archaeologia Polona, XIV, p. 113–119.

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Ἑταῖραι › Hetairas

por Glória Braga Onelley

O termo grego ἑταίρα [hetaíra] tem o sentido primeiro de «companheira» ou «amiga», podendo designar a amizade, o companheirismo entre duas mulheres. Sua primeira ocorrência, no que diz respeito à prostituição, é atestada em Heródoto (Histórias, 2, 134–135) em referência à hetera de origem trácia, Ródopis, que, segundo a narrativa herodotiana, foi levada ao Egito por Xanto de Samos para traficar com o corpo, porém libertada por Cáraxo, irmão da poetisa Safo. Dado o regime de segregação social em que viviam, nomeadamente em Atenas, as mulheres de classes mais abastadas, mormente a jovem solteira e a esposa legítima (γυνή [gynḗ]) —as de classes menos favorecidas tinham mais liberdade para sair, tendo em vista a necessidade de trabalhar para ajudarem no sustento da casa (Pomeroy 1999, 89–90; 97–98)—, alterou-se o sentido do termo ἑταίρα [hetaíra] que passou a designar, erótica e eufemisticamente, a prostituta e companheira de homens em ambientes festivos, como os simpósios, por exemplo, realizados no interior do οἶκος [oîkos], ou mais especificamente, no espaço masculino denominado ἀνδρών [andrṓn]. Aliás, durante o período clássico, a presença da mulher em ambiente simpótico ratificava sua condição de hetera (Apolodoro. Contra Neera, 59. 24, 33), muito embora dançarinas e musicistas também participassem desse contexto, cabendo-lhes, em princípio, a tarefa de animar, por meio do jogo harmônico da música e da dança, os banquetes. Essas artistas não eram de antemão forçadas a serviços sexuais, apesar de encontrarem-se, como contingência da própria profissão, em situação análoga à de outras categorias

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de prostitutas. Comprovam-no testemunhos iconográficos em que tocadoras de flauta e dançarinas aparecem, em cenas de banquetes, nuas ou seminuas nos leitos de simposiastas. Kapparis (2011, 239–240) afirma que estas últimas, a julgar por referências na comédia grega antiga e na literatura simpótica, eram prostitutas especializadas. Em pinturas vasculares, também heteras são retratadas, em círculos simpóticos, total ou parcialmente despidas (Corner 2011, 70). Vale destacar que assim como havia diferenças sociais na classe das cidadãs respeitáveis, também se estabelecia uma graduação na categoria de mulheres de vida licenciosa. Destarte, no ápice de valores negativos que desciam até a mais baixa prostituição, estavam as heteras, companheiras de prazer e diversão de homens que lhes proporcionavam, de modo geral, uma vida voltada para o luxo. Essas mulheres, pertencentes à categoria de escravas, libertas ou estrangeiras juridicamente livres, distinguiam-se das prostitutas de baixo custo, as πόρναι [pórnai], termo derivado do verbo πέρνημι [pérnēmi], «vender», em sua maioria escravas que, em πορνεῖα/ἐργαστήρια [porneîa/ergastḗria], «bordéis»/ «prostíbulos», e nas ruas do bairro do Cerâmico e no porto do Pireu, vendiam, voluntária ou involuntariamente, o corpo em troca de sexo a clientes recrutados, em geral, entre as camadas mais baixas da população, embora homens ricos e influentes também frequentassem esses espaços, que eram regulados pelo Estado com o πορνικὸν τέλος [pornikòn télos], o imposto sobre a prostituição, prescrito, aliás, às prostitutas de todas as categorias. Nem todas as pórnai eram escravas exploradas por um proxeneta (πορνοβοσκός [pornoboskós]), pois havia outras, procedentes da categoria de libertas ou de estrangeiras livres, que encontravam na prostituição meios de assegurar a própria subsistência. 662

A presença das mulheres na Literatura e na História

A despeito de no âmbito da cultura grega, sobretudo a ateniense, haver uma tendência a identificar a pórnē com a hetera —em razão de ser tênue e inconclusa essa dicotomia (Kapparis 2011, 222–223), tornando-se, pois, difícil definir com exatidão essas duas categorias de prostitutas, especialmente porque ambas ofereciam serviços sexuais aos homens —, o campo de atuação e a clientela dessas mulheres públicas parecem ter sido diferentes. A esse respeito, corrobora Corner (2011, 76): «Às vezes, contrastes são marcados, e, outras vezes, hetera e pórnē parecem sobrepor-se, confundir-se e, até mesmo, tornar-se sinônimos». Nesse sentido, enquanto as prostitutas vulgares eram forçadas a aceitar clientes em troca de honorários modestos nos referidos espaços de prostituição, as heteras não se colocavam à disposição de qualquer homem, mas tão somente daquele que lhes pudesse facultar uma vida prazerosa em ambientes festivos e em banquetes, o que lhes possibilitava o contato com figuras de prestígio e, por conseguinte —como julga Pomeroy (1999, 111)—, acesso à vida intelectual, ou melhor, a uma formação social e cultural vedada às mulheres de família cujo âmbito de atuação se restringia, como representantes do oîkos, da família ateniense, à participação em festivais religiosos ou em cerimônias de caráter privado, como casamentos e rituais fúnebres (Pomeroy 1999, 98). Era excepcional, acentuam Paoli (1953, 91) e Miner (2003, 26), o fato de mulheres de condição livre, da classe das cidadãs, entregarem-se à prostituição, o que podia ocorrer por motivos de pobreza. De modo geral, as heteras iniciavam suas atividades sob a supervisão de um profissional experiente na arte da sedução (Apolodoro. Contra Neera, 59, 18–24) ou, às vezes, da própria mãe, que se beneficiava dos atrativos da filha para conservar seus antigos clientes. 663

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Na condição de escravas exploradas por um proxeneta, duas eram as formas, segundo Paoli (1953, 171, nota 5), de um homem desfrutar exclusivamente de heteras: podiam ser alugadas temporariamente a seus clientes por meio de contrato (Apolodoro. Contra Neera, 59, 26; 28) ou ser compradas (Apolodoro. Contra Neera, 59, 29), para depois serem revendidas ou libertadas mediante pagamento (Paoli 1953, 91; Apolodoro. Contra Neera, 59, 29–30), práticas frequentes e reconhecidas legalmente em Atenas. Como libertas ou estrangeiras livres, as heteras prostituíam-se em benefício próprio (Apolodoro. Contra Neera, 59, 36–37) ou de comum acordo com um companheiro com o qual dividiam os lucros arrecadados da prostituição (Apolodoro. Contra Neera, 59). Era possível, ainda, a hetera coabitar definitivamente com um homem, o que lhe conferia o estatuto de παλλακή [pallakḗ], «concubina», realidade vivenciada pela cortesã Neera que, embora convivesse com o ateniense Estéfano, continuava a atuar como hetera (Apolodoro. Contra Neera, 59, 39–41; Corner 2011, 73). Algumas heteras alcançaram notoriedade além das fronteiras de suas cidades, tendo se tornado amantes de homens de estatuto social elevado. Entre elas, só para citar algumas, a tradição cita Aspásia, amante do estadista ateniense Péricles, Frine, modelo do escultor Praxíteles, e Neera, acusada de usurpação de direito de cidadania. No entanto, a despeito de gozarem de prestígio ao lado de figuras importantes do mundo intelectual, artístico ou político, não tinham elas as mesmas prerrogativas civis concedidas a uma mulher cidadã: ser dada em casamento legal, ter filhos legítimos, para garantir a descendência e, por conseguinte, assegurar a continuidade da família na πόλις [pólis], e participar de seus cultos oficiais. 664

A presença das mulheres na Literatura e na História

A peça acusatória Contra Neera, além de ratificar essa proibição —haja vista ter sido a cortesã Neera levada ao tribunal por tentar usurpar para ela e para seus filhos o direito de cidadania, o que seu estatuto de estrangeira a impossibilitava de fazer pois a legislação de Atenas só admitia casamento entre pessoas de origem ateniense—, e de revelar as atividades que uma hetera costumava praticar no âmbito de sua profissão, parece delimitar a atuação feminina de acordo com seus distintos estatutos sociais e jurídicos: «com efeito, as heteras nós as temos para o prazer, as concubinas para o cuidado diário do corpo, mas as esposas para que tenham filhos legítimos e mantenham a guarda fiel da casa» (Apolodoro. Contra Neera, 59, 122). Fontes históricas APOLODORO. 2013. Contra Neera. [DEMÓSTENES]. Tradução do grego de Glória Onelley. Introdução, notas e índice de Ana Lúcia Curado. 3a. ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. HERODOTUS. 2005. The Histories. Translated by G. C. Macaulay and revised by D. Lateiner. With an introduction and notes by D. Lateiner New York: Barnes & Nobles. Bibliografia geral CORNER, S. Bringing the Outside in the Andrōn as Brothel and Simposium’s Civic Sexuality. In: GLAZEBROOK, A.; HENRY, M. M. (Eds.). Greek Prostitutes in the Ancient Mediterranean: 800 BCE – 200 CE. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, p. 60–85. 665

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KAPPARIS, K. 2011. The terminology of Prostitution: The Ancient Greek World. In: GLAZEBROOK, A.; HENRY, M. M. (Eds.). Greek Prostitutes in the Ancient Mediterranean: 800 BCE – 200 CE. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, p. 222–255. MINER, J. 2003. Courtesan, Concubine, Whore: Apollodorus’ Deliberate Use of Terms of Prostitutes, The American Journal of Philology, vol. 124, n. 1, p. 19–37. PAOLI, U. E. 1953. La donna greca nell’antichità. Firenze: Monnier. POMEROY, S. B. 1999. Diosas, rameras, esposas y esclavas. Mujeres en la Antigüedad Clásica. 3a. ed. Madrid: Ediciones Akal.

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Musicistas

por Fábio Vergara Cerqueira

Na Antiguidade grega, as mulheres se ocupavam com a música em situações diversas de performance e de ensino-aprendizagem, não somente cumprindo funções religiosas em que o ritual exigia que dançassem, cantassem ou tocassem algum instrumento, mas também alcançando em certas circunstâncias protagonismo e reconhecimento, como professoras, como poetisas-cantoras ou como instrumentistas, inclusive podendo realizar apresentações públicas. Essa é, porém, uma faceta parcialmente invisibilizada pelas fontes e historiografia (e.g. Dyfri 1983, 92–106), que pontuam com mais frequência a atuação musical das mulheres que se dedicam à prostituição: neste ramo, as cortesãs que dominassem a arte do aulo receberiam remuneração mais elevada (Starr 1978). Boidion (Βοίδιον) foi uma dessas cortesãs tocadoras de aulo, que conhecemos pelas oferendas que fez à Afrodite após encerrar sua carreira (Simônides de Céos. Antologia grega, Epigramas amorosos, V. 159). Por meio da psykter de figuras vermelhas Hermitage 644, do pintor Eufrônio, datada de 525–520 aEC, conhecemos a «αὐλητρίς» Sekline [Σεκλινε], identificada por inscrição, que toca o aulo, reclinada sobre divã, em companhia de outras três hetairas, todas nuas e bebendo vinho em uma espécie de banquete feminino (Figura 1). Em alguns casos, atribuições religiosas se misturavam à condição de uma hetaira que animava as festas com seus dotes na dança e música, como é o caso de Arístion (Ἀρίστιον), cujo epitáfio consta em um epigrama de Tíilo, poeta do círculo de Cícero. Sacerdotisa de Cibele, que dançava ao som do aulo frígio [λωτός κερόεντι] em rituais dedicados à deusa,

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marcando o ritmo com a castanhola [κρόταλον] para propiciar musicalmente o transe, ela também atuava nos banquetes (Tíilo. Antologia Grega, Epigramas funerários, VII. 223).

Fig. 1: Psykter ática de figuras vermelhas. Euphronios (ARV2 16/15). C. 525–20. São Petersburgo, Hermitage, inv. 644 (1650). Fonte: Klein 1886, 105.

Contudo, em mais de uma centena de vasos áticos de figuras vermelhas, datados dos séculos V e IV aEC, vemos mulheres cidadãs reunidas, em número variado, tocando diferentes instrumentos musicais, cenas em que encontramos a referência a dois aspectos da vida cotidiana feminina em muitas cidades gregas: o uso de instrumentos musicais por mulheres da elite ateniense em momentos de lazer na intimidade doméstica, em companhia de parentes, amigas e vizinhas (Maffre 1989, 128; Lessa 2001, 90), e a existência de alguma forma de educação musical para aquisição destas capacidades (Vergara Cerqueira 2011, 63–84; Beck 1975, 55; Rystedt 1994, 88). Como contrapartida a esse registro iconográfico anônimo da pintura dos vasos áticos, o protagonismo musical feminino deixou registro em fontes variadas, que nos revelam a individualidade destas musicistas, ao informar seu nome. A documentação comprova a existência de um sistema educacional, no séc. VI aEC, direcionado para moças, com ênfase ao ensino poético e musical, em cidades como 668

A presença das mulheres na Literatura e na História

Mitilene, na ilha de Lesbos e em Tebas, na região da Beócia, onde a atuação como professoras de música, respectivamente de Safo (Σαπφώ) e de Mírtis (Μυρτίς) de Antédon (cidade no norte da Beócia), está bem testemunhada. Corina (Κóριννα) de Tanagra ou de Tebas, seguindo provavelmente uma tradição beócia, coloca inclusive a deusa Atena ensinando aulo a Apolo (Plutarco. Sobre a música, XIV. 1136b), amparando assim a ideia da mulher professora de música. Um número suficiente de fragmentos de poemas de Safo ilustram a ambiência intelectual e artística de sua escola, onde a poesia e música, tocando-se «clarissonantes liras» (Pap. Oxy. 1787 fr. 1–4 [fr. 58 Campbel]), teciam as relações de philia entre a mulher mais velha e a mais jovem, como preparação para a futura vida de esposa. Mírtis, que mantinha uma escola de música em parceria com seu marido, o αὐλητής Escopelino, foi professora tanto de rapazes que desejavam seguir a profissão de poetas e músicos, como o poeta lírico Píndaro, quanto de garotas, como a rival deste, Corina. Mesmo que não tenhamos testemunhos sólidos sobre Atenas nas fontes escritas, é provável que houvesse alguma forma institucionalizada de transmissão dos ensinamentos musicais e poéticos às meninas, sobretudo as bem-nascidas, como indicam as cenas de caráter escolar presentes em alguns vasos, representando uma menina indo à escola levando material (kylix ática de figuras vermelhas, Pintor de Bolonha 417, c. 460–50 aEC. Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art, 06.1021.167) ou sentada na escola com um díptico (kylix ática de figuras vermelhas, Pintor do Casamento, c. 450–40 aEC. Paris, Louvre, G 630). Nesta direção, a ideia de que se devesse proporcionar às mulheres educação poético-musical e ginástica se encontra também em Platão (República, V. 456b–457c). Os corais femininos eram atuantes em diversas cidades gregas, como os corais de Tanagra, para os quais Corina destinou algumas de suas composições (Stracca 1993), e em 669

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Esparta, onde tinham grande importância na vida cívica e religiosa, de sorte que a participação das meninas nos coros e o treinamento musical tinha uma função iniciática, de gradual entrada no mundo adulto (Nobili 2014; Calame 2001). A existência de corais femininos aponta um processo coletivo institucionalizado de aprendizado do canto por meninas cidadãs, mas também a necessidade de atuação profissional de outras mulheres, como tocadoras de aulo (αὐλητρίδες) para o acompanhamento e, principalmente, da corifeia, educadora musical que treinava e dirigia o coro. O pintor de uma cratera conservada no Museu de Villa Giulia traz um importante testemunho iconográfico: representa um grupo de moças com χιτών pregueado e ἱμάτιον seguindo uma dança cadenciada, de mãos dadas, cantando um partheneion, ao som do aulo executado pela αὐλητρίς, seguida pela corifeia, havendo uma coluna que indica o espaço construído, provavelmente de um templo em que esse coral se apresentaria (Cratera em cálice ática de figuras vermelhas. Pintor de Villa Giulia. Roma, Villa Giulia, 909). A existência mulheres conhecidas por dirigirem corais de meninas, chamadas de «educadoras», ἡ διδάσκαλος (Filóstrato. Imagens, II. 1. Cf. Calímaco. Antologia grega, Epigramas amorosos V. 728) devia estimular o interesse feminino por praticar com mais afinco a arte das Musas. Em muitos casos, é difícil separar o ofício de professoras e sua atuação na performance musical como compositoras e poetisas-cantoras. Os textos antigos referiam-se com frequência a elas como ποιητρίας (Pap. Oxy. 2438 col. ii. Plutarco. Grandes feitos de mulheres, IV.245c). A obra Sereias, do poeta cômico ateniense Teopompo (fl. 410–370 aEC), devia fazer menção às poetisas-cantoras – lembremos da comparação que Sócrates teria feito entre a voz «agradável» e «suave» de Aspásia e o canto de uma sereia (Eliano. Histórias Diversas, XII. 1). A atividade intelectual de algumas mulheres foi assunto até 670

A presença das mulheres na Literatura e na História

de poetas cômicos dessa época, tais como Cratino (519–422 aEC) e Aléxis (c. 375 – c. 275) — ambos foram autores de peças chamadas Cleobulinas (Κλεοβουλίναις), nas quais ridicularizava a participação das mulheres na vida intelectual e artística através da figura histórica da poetisa Cleobulina (Aléxis ap. Ateneu XIII. 586a. Crátino ap. Ateneu IV. 171b). Pelo visto, o protagonismo musical que algumas mulheres poderiam assumir gerava certa contrariedade. Inclusive, nesta linha poderia ser lido o fragmento citado e atribuído a Corina por Apolônio Díscolo, em que a poetisa tanagrina adverte Mírtis pelo fato de ter disputado um ἀγών musical com Píndaro, provavelmente na lírica coral (Stracca 1993, 411–410.; PMG 644) — outras fontes, contudo, sem o tom de advertência, relatam que teria sido Corina que o teria enfrentado e inclusive o teria vencido por cinco vezes. Mas as poetisas-cantoras foram admiradas por muitos. Safo chegou a ser chamada a «décima Musa». A fama de algumas dessas, lembradas em número de nove, levou a serem comparadas por alguns poetas epigramáticos com as nove Musas (Antípatro de Tessalônica. Antologia grega, Epigramas descritivos IX. 26): destacam-se assim na memória poético-musical grega Mírtis, Corina, Myia (Μυία) —uma poetisa espartana ou talvez apenas um apelido de Corina—, Praxila, Telesila, Erina, Carixena, Cleobulina e Clitágora. As listas variam no número e nos nomes. Alguns incluem Mero e Anite de Tegea (Ἀνύτη Τεγεᾶτις), localizada na Arcádia, a qual compôs epigramas no estilo das antigas canções corais dóricas, com espírito marcial. Sendo talvez contemporânea das Guerras Messênicas do séc. VIII, mais tarde mereceu de seus concidadãos uma estátua em sua homenagem, feita por Eutícrates e Cefisodoto, escultores que floresceram em torno de 300 aEC, evidenciando sua importância para a memória cívica local. 671

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

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Musicistas atuando em

concursos musicais por Fábio Vergara Cerqueira

O contexto de performance e o público das poetisas musicistas poderia variar. É verossímil que Corina, enquanto vivia em Tanagra, tenha atuado em âmbito público e religioso próprio às mulheres, compondo e apresentando-se para um público feminino (Stracca 1993). É neste sentido a sua crítica ao fato de Mirtis ter rivalizado em um concurso público com Píndaro, pois esta disputa teria se dado em um espaço masculino. Porém, a questão da participação de mulheres em ἀγῶνες musicais não pode ser descartada apressadamente. Em um jarro de figuras vermelhas do final do século VI, datado dos anos 525–20, encontramos o único exemplo na pintura dos vasos áticos de uma récita profissional agonística na φόρμιγξ, um tipo de cítara com base arredondada, por isso denominada modernamente como «cítara de berço», empunhada majoritariamente por mulheres (Figura 1). A particularidade desse vaso é a discussão suscitada pelo gênero de quem toca o instrumento. Segundo John D. Beazley, um citaredo; para Reinhard Lullies, trata-se de uma musicista (CVA Munique 2, pr. 84). Um jovem imberbe? Ou uma moça, como sugere o desenho da vestimenta na altura do peito? Uma musicista ateniense, inspirada na famosa Safo? A princípio, a associação entre a φόρμιγξ e o gênero feminino é bastante plausível, pois se tornou bastante comum no séc. V.

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Fig. 1: Oinochoe ática de figuras vermelhas. Pintor de Goluchov. 525–520 aEC. Munique, Staatliche Antikesammlungen und Glyptothek, 2446.

Por outro lado, uma mulher em um concurso pareceria, à primeira vista, bastante improvável. Afora as informações sobre a participação de Corina (ou Mirtis) num concurso tebano, rivalizando com Píndaro (Suda s.v. «Sobre Corina», K 2087, Eliano. Histórias Diversas, XIII.25; Pausânias. IX. 22. 3), dispomos de poucas referências à possibilidade da atuação feminina em concursos. Há que se observar que a 676

A presença das mulheres na Literatura e na História

roupa da musicista difere daquela usada pelos músicos (χιτών e χλαῖνα), podendo ser comparável com o λευκόπεπλος (vestido branco) usado por Corina, conhecida como a «mulher de túnica branca de Tanagra» (P. Oxy. 2370, fr.1). Sem dúvida, o pintor deste vaso teve a intenção de representar uma forma especial de indumentária, pomposa mas feminina, diferenciada com relação às vestes comuns de mulheres ou às vestes de citaredos profissionais. Poderíamos pensar então em um modelo apropriado a mulheres que participassem em concursos musicais públicos? Talvez uma versão ateniense das musicistas beócias Mírtis e Corina (Suda s.v. «Sobre Píndaro», π1617). Há evidências epigráficas da participação de mulheres nos concursos (Bélis 1999, 52–3). Em princípio, constituiria uma exceção, tratando-se, provavelmente, de meninas, não sendo porém interditado que mulheres casadas atuassem como musicistas em público. No entanto, a documentação epigráfica não testemunha esse costume anteriormente ao séc. II aEC. O mais comum seria a interdição à participação de mulheres nos ἀγῶνες musicais, fato evidenciado quando o general fócio Failos tentou em vão introduzir sua αὐλητρίς favorita na celebração dos Jogos Píticos (Teopompo FGrH F 248; Starr 1978, 402, nota 4). No entanto, nos ἀγῶνες musicais realizados em Mileto, Heródoto encontrou αὐληταί e αὐλητρίδες competindo lado a lado (Heródoto. I. 17), situação que nos faz pensar em uma pelike ática de figuras negras conservada em Missouri e datada de 500–480 ᴀEC., que representa uma αὐλητρίς jovem tocando diante de um juiz, identificado pela vara bifurcada que traz na mão, enquanto no lado oposto do vaso se repete uma cena de ἀγών musical, com um rapaz tocando lira diante de um juiz (Feaver 1968) (Figuras 2 e 3). 677

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Figs. 2 e 3: Pelike ática de figuras negras. Pintor de Teseu. c. 500–480 ᴀEC. Missouri, Museum of Art and Archaeology, University of Missouri, Chorn Memorial Fund, 61.3.

Desse modo, a oinochoe de Munique e a pelike de Missouri constituem indicativos iconográficos para pensarmos na eventual participação de mulheres em concursos musicais. No caso da αὐλητρίς protegida do general Failos, o fato de ela ser uma cortesã, uma mulher impura, com certeza impediria de atuar em um festival oficial, no qual o ato musical significasse uma das formas mais louváveis de homenagear a divindade, haja vista conhecermos as restrições que o ritual grego impunha aos seus participantes quanto ao critério de pureza. Mas tal impedimento não seria uma barreira para as mulheres cidadãs. 678

A presença das mulheres na Literatura e na História

Fontes históricas AELIAN. 1997. Historical Miscellany. Translated by Nigel G. Wilson. Loeb Classical Library, 486. Cambridge, MA: Harvard University Press. DIELS, H. 1903. Die Fragmente Der Vorsokratiker. Berlim. FGrH: JACOBY, F. 1923. Die Fragmente der griechischen Historiker. Leiden: Brill. HERODÔTOS. 1985. História. Tradução do grego, introdução e notas por Mario da Gama Kury. Brasília: UnB. PAUSANIAS. 1918. Description of Greece. With an English translation by W. H. S. Jones, in six volumes. Vol. 1, Books 1 and 2, London: William Heinemann. SUIDAS. 1705. Suidae Lexicon. Graece et Latine. Tomus II. Ed. by Ludolf Kuster, trans. by Aemilius Portus. 3 volumes. Cambridge, UK: Typis Academicis. Disponível em: https://archive.org/ details/suidaelexicongr02suid/page/350/mode/2up. Acesso em: 27 jun. 2021. Bibliografia geral BÉLIS, A. 1999. Les musiciens dans l’Antiquité. Paris: Hachette. FEAVER, D. 1968. Musical Scenes on a Greek Vase, Muse 2, p. 14–20. STRACCA, B. M. P. 1993. Corinna e il suo pubblico. In: PRETAGOSTINI, R. (Org.). Tradizione e innovazione nella culturta greca da Omero all’età ellenistica. Scritti in onore di Bruno Gentili, II. Roma: Grupo Editoriale Internazionale, p. 403–412. STARR, C. G. 1978. An evening with the flute-girls, La Parola del Passato, p. 401–10. 679

Musicistas nos Períodos Arcaico e Clássico

por Fábio Vergara Cerqueira

Erina [Ἤριννα], nascida no século VI e oriunda da ilha de Telos (ou de Teos, de Rodes, de Tenos ou mesmo de Lesbos), foi contemporânea, amiga e talvez amante de Safo, como retratada por Simeon Solomon, na obra Safo e Érina em um jardim em Mitilene (1864), hoje na Tate Britain em Londres. De sua obra se conservaram três epigramas e fragmentos de um longo poema em hexâmetro, conservado em um papiro descoberto em 1928 em Oxirrinco, no Egito, cujo título, «A Roca», revela do universo feminino. Nesta composição, ela lamenta a morte de sua amiga de infância Báucis, falecida logo após seu casamento. Telesila [Τελέσιλλα], poetisa pertencente a uma distinta família argiva, convocara as mulheres de Argos para a guerra, na ausência dos exércitos aniquilados, salvando a cidade dos espartanos guiados pelo rei Cleômenes (com um exército de 6 mil homens, segundo Heródoto). Dizia-se que ela era muito doente, motivo pelo qual consultou o oráculo de Delfos, que lhe recomendou como remédio dedicar-se ao canto e à lira — teria seguido essa determinação, tornando-se saudável e admirada pelas mulheres por sua poesia. Os poucos fragmentos de seus poemas revelam a composição de hinos a Apolo e Ártemis, e a Deméter, como sugere uma inscrição de Epidauro. Sua respeitabilidade em Argos era tão consolidada que os jovens cidadãos locais eram educados ouvindo seus poemas e canções (Plutarco. Grandes feitos de mulheres, IV. 245c-f). Telésila estava para Argos assim como Tirteu para Esparta (Máximo de Tiro. Orações, 37. 5). Havia em Argos um templo

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

de Afrodite com uma estátua da deusa, em fronte da qual estava uma placa de pedra com a representação de Telésila em relevo (Pausânias. II. 20. 8–10). Foi contemporânea de Praxila e de Cleobulina, atuantes à época da 82ª Olimpíada, em 451/450 aEC (Eusébio. Crônica, Olimpíadas 82, ano 2), período em que inicia a série de vasos áticos com musicistas no gineceu. Praxila de Sícion [Πράξιλλα δ’ ἡ Σικυωνία], poetisa cômica, é lembrada junto a outros comediógrafos, como Crates, o que indica que como poetisa-compositora teria disputado festivais teatrais rivalizando com homens. Admirada como compositora de ditirambos e de «canções para beber» (τῶν σκολίων ποιήσει) (Ateneu, XV. 694a), a consideração de seus conterrâneos lhe valeu no século IV uma estátua feita por Lísipo, escultor preferido de Alexandre, o Grande. Sobre Cleobulina de Lindos [Κλεοβουλίνη ἡ Λινδία], sabe-se que ela era uma mulher bastante rica (Plutarco. Preceitos conjugais, 145f) e com grandes pendores intelectuais, como sugere Ateneu na sua referência às «questões» colocadas por essa poetisa-compositora e pensadora sob a forma de enigmas (Ateneu. X. 448b). Sua reputação de sábia resultou inclusive que algumas fontes a coloquem como mãe de Tales de Mileto. Ao ser tratada por uma fonte pré-socrática anônima como uma das autoridades mais antigas na composição de poemas (ποιημάτων παλαιοτέρων), aceita-se uma datação bastante elevada para sua obra (Diels Vorsokratiker, 2. 239. 27). Clitágora [Κλειταγόρα] era uma poetisa do século V, proveniente de Lesbos, da Tessália ou de Esparta (teria havido mais de uma compositora associada a esse nome?), que deve ter composto escólios acompanhados pelo aulo. Bastante conhecida em Atenas, mencionada por Aristófanes e Cratino, a sua fama chegou aos pintores dos vasos áticos, como indica sua possível representação em uma hydria da coleção Robinson (anteriormente coleção Hope), datável de 450–430 aEC, 682

A presença das mulheres na Literatura e na História

figurando a conversa de duas mulheres no gineceu, em que a poetisa está individualizada pela inscrição ΚΛΕΙΤΑΓΟΡΑ ΚΑΛΕ (Robinson 1956, 21–22, n. 22, fig. 73), indicando a identificação que uma mulher ateniense com acesso à educação artística e letrada, adquirente de um vaso destes, teria com essas poetisas-cantoras, cuja notoriedade se espalha entre as cidades gregas, o que confere a essas um caráter mais comum em um contexto de elites gregas (Quíron ap. escólio a Aristófanes. Vespas, 1239 [e escólio a essa passagem]; Hesychius. Lexicon, K 2813). Carixena [Χαριξένη] era uma αὐλητρίς muito antiga. Já na época de Aristófanes (Assembléia de Mulheres, v. 943) usava-se a expressão «nos dias de Carixena», algo como nossa expressão «do tempo do Ariri Pistola». Compositora e poetisa lírica, teria se destacado por suas canções eróticas, talvez por isso alguns pensaram que ela era uma hetaira. Na mesma linha, criou-se uma opinião de que não era uma mulher inteligente (Fócio de Constantinopla. Léxico; Hesíquio de Alexandria. Léxico E 5413; Suda, s.v. «Sobre Carixena» X 116). A análise da iconografia das mulheres musicistas no gineceu, produzida na segunda metade do séc. V, já nos indicou que, naquele período, muitas mulheres atenienses bem-nascidas tinham acesso a uma intensa vida intelectual e musical. Alguns vasos nos sugerem, inclusive, apresentações formais ou mesmo competições musicais realizadas talvez no próprio espaço doméstico. Numa hydria ática de figuras vermelhas do Pintor de Nióbida, datada de c. 460 aEC e conservada em Nova Iorque (The Solow Art and Architecture Foundation, s/inv.), além de instrumentos musicais, o pintor representou um rolo aberto para leitura, e uma caixa aberta, no chão, que funcionaria como uma pequena biblioteca, com textos para leitura e «partituras» musicais. Assim, quando o Pintor de Nióbida coloca no centro da imagem uma mulher 683

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

afinando seu bárbito, sentada sobre um κλισμός depositado sobre um pódio, rodeada por duas amigas, uma com uma lira e outra com um rolo, a imponência da musicista sobre o pódio, preparando seu instrumento para a apresentação, mostra uma situação bem elaborada e mesmo formal, sugerindo eventuais concertos ou concursos no âmbito do gineceu, com forte participação das mulheres bem-nascidas mais esclarecidas.

Fig. 1: Cratera em cálice ática de figuras vermelhas. Pintor de Christie. c. 440–430 aEC. Würzburg, Martin von Wagner Museum.

684

A presença das mulheres na Literatura e na História

Esse vaso sugere a existência desses costumes nos anos 460–50, ligeiramente antes ou quase ao mesmo tempo em que a fama de Telesila, Praxila, Cleobulina e mesmo Aspásia devia estar se espalhando pela sociedade feminina ateniense. Em alguns casos, os pintores sugerem que as musicistas liam o poema (ou alguma notação musical?) em um rolo, enquanto o entoavam acompanhando-se com o bárbito; numa cratera ática de figuras vermelhas datada de 440–430 aEC, vemos um bauzinho aberto, diante da musicista, que devia conter vários destes rolos (Figura 1). Com frequência, o baú, aberto ou fechado, associa-se à performance musical e a rolos abertos, apontando sua possível função de arquivo em que as mulheres que se dedicavam ao entretenimento musical e poético guardavam os rolos registrando seus poemas e cantos prediletos. Na hydria do Pintor de Nióbida de Nova Iorque, uma moça retirou um rolo do baú aberto, o qual ela está lendo; a outra, à direita, uma segunda competidora que aguarda sua vez, traz numa mão sua lira e na outra um bauzinho, provavelmente com os poemas e cantos de sua preferência.

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Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

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686

Musicistas nos Períodos Helenístico e Imperial

por Fábio Vergara Cerqueira

Há indícios de que no período helenístico se repetem casos de carreiras musicais femininas vinculadas a famílias de músicos. Ao pensarmos nas mulheres reconhecidas pela tradição como musicistas e que provavelmente fizeram apresentações em público, em muitos casos o contexto familiar parece atuar em favor da possibilidade de seguirem a carreira, na medida em que se integravam às redes profissionais organizadas em torno dos núcleos familiares (Perrot 2022a). Este é o caso das filhas do famoso αὐλητής tebano Antigênidas (fl. séc. IV aEC), tratadas como «amáveis servidoras das Musas», Melo (Μηλὼ), que tocava aulo, seguindo na arte de seu pai, e Satira (Σατύρη), que tocava syrinx, igualmente um instrumento de sopro (Leônidas da Tarento. Antologia grega, Epigramas amorosos, V. 206), que evoca a transmissão de saber dentro de uma família, aqui, da técnica de instrumentos de sopro. Outro exemplo de irmãs que seguem a carreira musical é o de Euticusa (Εὐτυχοῦ[σαν) e Naída (Ναίδα), «instruídas na lira e no bárbito», às quais foi dedicada uma estela funerária em Atenas, datada do séc. III–II aEC (IG II² 11496). Em alguns casos, as musicistas podem se destacar nestes núcleos familiares de músicos. Um decreto de Delfos homenageia Polignota de Tebas, filha de Sócrates (Πολυγνώτα Σακράτους Θηβαία), χοροψάλτρια (harpista que tocava acompanhada por um coro) (FD III 3.249, l. 4–10; ChID n° 208. Cf. Perrot 2013, 196–198), que passou uma temporada no santuário, em 82 aEC, no período das Grandes Píticas, que naquele ano foram excepcionalmente suspensas em virtude provavelmente

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da Segunda Guerra Mitridática. Após uma primeira apresentação em público, ela foi convidada pelas autoridades e cidadãos para entreter o público presente, fazendo audições ao longo de três dias, pelas quais acabou recebendo 500 dracmas, tal o seu sucesso. Um segundo decreto nos revela que ela estava acompanhada por seu primo, Lícinos, filho de Doroteu, de Tebas, o qual provavelmente atuaria também como cantor no coro (FD III 3.250, l. 1–3 [cf. ChID n° 209]). Pelo visto, essas musicistas com carreira profissional não se deslocavam sozinhas, necessitando de um tutor legal, por via de regra um parente. Caso semelhante é o de Aristodama, filha de Amintas, de Esmirna [Ἀριστο[δ]άμα Ἀμύντα Σμυρναία], poetisa épica que viajou acompanhada do irmão Dionísio, para apresentar suas composições em suas visitas às cidades de Lâmia (IG IX 2.62.) e a Cáleo (FD III 3.145), em 218/217 ᴀEC. (Rutherford 2009). Esses parentes podiam atuar como um tipo de agente artístico, que acompanhava e gerenciava os deslocamentos e apresentações, mesmo que nem sempre sejam mencionados, como no decreto délfico de 130/129 aEC, em homenagem a uma harpista vinda de Cime, na Ásia Menor, que não menciona o acompanhante (Syll. 3, 689. Ver Bielman 2002, 229–232 e Perrot 2013, 196–198). Conhecemos o caso de Aglais, filha de Mégacles [Ἀγλαΐς ἡ Μεγακλέους], que fez sua carreira musical tocando a trombeta [σάλπιγξ], considerado um instrumento essencialmente masculino, apesar de, no plano mitológico, ser representado com frequência na pintura de vasos sendo tocado por uma Amazona em combate, o que é compatível com a natureza bélica deste instrumento. Conhecida por ser glutona (de uma só vez bebia uma jarra de vinho e comia cinco quilos de carne e quatro quilos de pão), e provavelmente parruda, o que era apropriado para se dedicar à trombeta, certamente fez fama como musicista, do contrário não teria sido contratada para 688

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tocar a trombeta conduzindo a procissão da primeira grande parada em Alexandria, a primeira Ptolomaia, instituída por Ptolomeu II Filadelfo em 280/279 aEC, em homenagem a seus pais, Ptolomeu I e Berenice (Ateneu. X. 415a–b). Cláudio Eliano (175–235) é claro em afirmar que Aglais vivia profissionalmente do ofício de trombeteira (Eliano. Histórias diversas, I. 26 [«Sobre Aglais, uma comilona»]). Contemporâneas a Aglais, destacam-se duas citaredas de Quios: Lampron (Λάμπρον), menos conhecida, cuja memória ficou conservada em um pilar funerário (Perrot 2022b), e Glauce (Γλαύκη), cujo apogeu deve ter se dado entre 285 e 279 aEC. Glauce, tendo atuado provavelmente na cena cultural da Alexandria de Ptolomeu Filadelfo, sua fama se preservou por alguns séculos, ecoando ainda em Plutarco (Sobre os oráculos da pítia, 397a), que elogia seu talento, e em Ateneu IV.176D, que menciona canções suas tocadas no aulo por um certo Teon. Teócrito fala em Idílios IV.31 dos «cantos de Glauce» reproduzidos no instrumento de sopro por um pastor de Crotona chamado Córidon e se refere em um epigrama ao epitáfio com seu nome, na tumba da musicista quiota (Teócrito. Antologia grega, Epigramas funerários, VII. 262), testemunhando seu renome. Não sabemos a proveniência da musicista grega Filas [Φίλας], provavelmente da primeira metade do séc. II aEC, que foi notável na lira e teria dedicado seu instrumento a Apolo depositando-o em um templo, juntamente ao arqueiro Sósis e ao caçador Polícrates (Antípatro de Sídon. Antologia grega, Epigramas votivos VI. 118). Algumas musicistas do período helenístico são lembradas também por sua beleza e sedução, de modo que o talento musical acompanha os adereços de uma hetaira bem conhecida. É o caso da Zenófila [Ζηνοφίλα], cujas doces melodias tocadas na harpa [πηκτίς] foram lembradas por Meleagro de Gadara (Antologia grega, Epigramas amorosos, V.139). Conforme um 689

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epigrama da época flávia, Nicáreta, que durante certo tempo trabalhou como operária na tecelagem, teria abandonado este ofício, tido por ela como sofrido e que desgastava a beleza da juventude, trocando-o pela harpa, pelo que ganhou coroas e levou uma vida alegre em banquetes e festas (Nicarco, Antologia grega, Epigramas Votivos VI.285). O fato do neopitagórico Nicômaco de Gerasa, no início do séc. II EC, dedicar o seu Manual de Harmonia [Ἐγχειϱίδιον ἁϱμονικῆς] a uma aluna que ele define como «a melhor e mais nobre das mulheres», à qual ele já havia ensinado pessoalmente os fundamentos da ciência harmônica (Nicômaco. Manual de Harmonia, I. 237–238), evidencia que a esta época havia mulheres interessadas em um estudo aprofundando de música, e que o ensino a estas mulheres, provavelmente financiado por suas famílias, não se limitava a um aprendizado pela repetição de técnicas e práticas para execução da performance básica em contexto doméstico, mas mobilizava uma série de conhecimentos sobre os sons vocais, sobre os intervalos, sobre a relação entre a música e a astronomia, sobre a música das esferas, da qual a música ensinada seria uma imitação, sobre a matemática dos números que ordenavam a música, sobre como Pitágoras havia estabelecido a oitava acrescentando uma oitava corda, sobre como as razões numéricas entre as notas foram descobertas, sobre os gêneros diatônico, cromático e enarmônico, sobre conceitos musicais presentes na obra de Platão, sobre a denominação e função dos tons que compõem os modos musicais (escalas). Vê-se que não se desprezava a educação dada a essas amadoras da música, que haveria em grande número entre família mais ilustradas no mundo romano, nem tampouco se desprezavam os dotes musicais das esposas bem-educadas. 690

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Mesmo que se possa pensar em uma influência sobre a educação das elites esclarecidas romanas dos ideais estoicos e do filo-helenismo apregoado na época antonina e na Segunda Sofística, como sendo fatores que poderiam estimular esse gosto pela educação musical, havia uma tradição romana de educação musical feminina evidenciado desde o último século da República, cujo referencial latino se encontra na marcante figura da matrona romana do final da República, Semprônia, provavelmente filha de Caio Graco e mãe do senador Bruto. Conhecida por sua cultura elaborada, estudou grego e latim, tocava lira e dançava muito bem, até mais do que convinha a uma dama, litteris Graecis et Latinis docta, psallere, saltare elegantius quam necesse probae (Salústio. Catilina, 25. 2). Uma quantidade expressiva de sarcófagos romanos datados do século II e principalmente do III, estudados por Henri-Irinée Marrou em seu célebre estudo ΜΟΥΣΙΚΟΣ ΑΝΗΡ, em que aborda a vida intelectual nos monumentos funerários, revela a frequência destas mulheres musicistas na sociedade imperial (Marrou 1964). É possível estabelecer um paralelo sociológico entre a aluna de Nicômaco de Gerasa e Claudia Italia (Marrou 1964, n. 71), representada em seu sarcófaco com um livro na mão, aberto na última página, que informa da defunta que «ela possui tudo das ciências das Musas» [πάσης μουσικῆς μετέχουσα]. Algo parecido talvez se pudesse dizer de Tetratia Isias, outra musicista nomeada em um sarcófago, ou das tantas outras mulheres não identificadas por seus nomes que estão representadas como musicistas em sarcófagos seus ou de seus esposos. Vários exemplares reproduzem o padrão «marido leitor» | «esposa musicista», como é o caso do sarcófago da igreja São Vítor de Ravena, dedicado pelo marido à esposa e filha prematuramente falecida, em que a inscrição dá voz à defunta, a qual afirma: «eu canto, acompanhando-me com as cordas» 691

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[ἐγώδε ψάλλους’ ἀείδω], onde o verbo ψάλλω é compatível com a técnica de se tocar o alaúde que identificamos nas mãos da falecida (Marrou 1964, p. 164, n. 213, fig. 22.). O talento musical é elogiado em epitáfios, como o epigrama grego no monumento à poetisa Petronia Musa, ou no encômio de um marido a sua jovem esposa, na inscrição que diz docta lyra (...), formosa puella. Vê-se aqui uma ligação entre uma moça ter boa educação musical e ser considerada bela. No período tardio, como revelam poetas epigramáticos da época de Justiniano e Justino I, musicistas gregas seguiram fazendo sucesso na Grécia e mesmo em Roma, provavelmente como musicistas profissionais, diferente das musicistas amadoras romanas, como é o caso de Maria de Faros [Φαρίης Μαρίη], que com seu plectro tocava o «coração da cítara» [κρούει δ᾽ ἀμφοτέροις καὶ φρένα καὶ κιθάρην] (Paulo Silenciário. Antologia Planudiana, XVI.278), e de Joana, que cantava acompanhando-se na lira [λυραοιδός], lembrada como sendo de Faros e de Roma (Agatias, o Escolástico. Antologia Grega, Epigramas funerários VII.612), o que indica a fama da cidade de Faros como escola de mulheres devotas à citaródia na Antiguidade Tardia e como esta aclamada musicista, tida como a «décima Musa», fez fama internacional. Do mesmo período, temos o registro da carreira da cantora virtuose chamada Calíope [Καλλιόπη], que atuou até idade avançada. Dona de «lábios de doces sons» [ὡς λιγυρὰ κλεῖσαι χείλεα Καλλιόπης] e de técnica aprimorada, era um contralto que «cantava com muita doçura e força e que tirava do seu peito feminino sons plenos arrebatadores» (Juliano, prefeito do Egito. Antologia grega, Epigramas funerários, VII. 597 e 598). Conclui-se que na cena cultural das cortes de Justiniano e Justino, havia plateia que apreciava a performance de musicistas profissionais gregas. 692

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Fontes históricas ANTHOLOGIE GRECQUE. 1938. Épigrammes amoureuses et épigrammes votives suivies de l’Appendice planudéen. Vol. I. Traduction de Maurice Rat. Paris: Libraire Garnier Frères. ANTHOLOGIE GRECQUE. 1941. Épigrammes funéraires et épigrammes descriptives. Vol. 2. Traduction de Maurice Rat. Paris : Librairie Garnier Frères. CESARE, NEPOTE, SALLUSTIO. SVETONIO, TACITO. 2011. Storici latini. La guerra galica. La guerra civile. Vite degli uomini illustri. La congiura di Cattilina. La guerra contro Giugurta. Storie. Vita dei Cesari. Annali. Storie. La Germania. Vita di Agricola. Dialogo degli oratori. A cura di F. Casorati, C. Conti, G. D. Mazzolani, M. P. Vigoriti. Edizioni integrali con testo latino a fronte. Roma: Newton, 2011. CHID: JACQUEMIN, A.; MULLIEZ, D.; ROUGEMONT, G. 2012. Choix d’Inscriptions de Delphes, Athènes: EFA. FD: Fouilles de Delphes. IG: Inscriptiones Graecae. NICOMACHUS. 1989. Enchiridion. In: BARKER, A. Greek Musical Writings. Vol. 2. Harmonic and Acoustic Theory. Cambridge: Cambridge University Press, p. 245–269. PLUTARCHI CHAERONENSIS MORALIA. Vol. III. 1891. Recognovit Gregorius N. Bernardakis. Leipzig: Teubner. Syll.3: DITTENBERGER, W. 1915–1924. Sylloge inscriptionum graecarum, 3e édition, Leipzig: Apud S. Hirzelium. TEOCRITO. 2013. Idilli e epigrammi. A cura di Bruno M. Palumbo Stracca. Testo greco a fronte. 7ª ed. Classici greci e latini. Milano: BUR Rizzoli. 693

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Bibliografia geral BIELMAN, A. 2002. Femmes en public dans le monde hellénistique. Paris: Sedes. MARROU, H-I. 1964. ΜΟΥΣΙΚΟΣ ΑΝΗΡ. Étude sur les scènes de la vie intellectuelle figurant sur les monuments funéraires romains. 2e edição. Roma: “L’Erma” de Bretschneider. PERROT, S. 2013. Femmes musiciennes à Delphes. In: EMERIT, S. (Éd.). Le statut du musicien dans la Méditerranée ancienne (Égypte, Mésopotamie, Grèce, Rome). Cairo: IFAO, p. 195–210. PERROT, S. 2022a. As famílias de músicos gregos segundo as inscrições (IV séc. a.C.–III séc. d.C.). In: VERGARA CERQUEIRA, F; CARDERARO, L.; BASILIO SANTOS, A. (Orgs.). Melodias visuais, poesias musicais: Antiguidades sonoras. Pelotas: Editora da UFPel, no prelo. PERROT, S. 2022b. Citharodie et rhapsodie sur un pilier funéraire de Chios (IIIe siècle av. J.-C.): de l’image au contexte culturel, Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer, vol. 7, n. 13, no prelo. RUTHERFORD, I. 2009. Aristodama and the Aetolians. An Itinerant Poetess and her Agenda. IN: HUNTER, R.; RUTHERFORD, I. (Éd.). Wandering Poets in Ancient Greece Culture. Cambridge: Cambridge University Press, p. 237–249.

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Ἀρτεμισία Α′ › Artemísia I da Cária

por Anderson Zalewski Vargas

Artemísia I —rainha de região localizada no sudoeste da atual Turquia— viveu no período do segundo conflito entre gregos e persas (480–479 aEC). Seu nome era greco-cário (Cuchet 2008, 17), tendo nascido em Halicarnasso, pólis que se dizia ter sido fundada por colonos provenientes de Trezena, no Peloponeso, e que Heródoto afirmava ser habitada apenas por helenos dórios (Heródoto. Histórias, VII. 99. 3). A colônia teria sido estabelecida em uma ilha e se expandido após para o continente, congregando, sabemos, helenos, cários e outros povos — culturas híbridas foram comuns naquela área (Berti 2020, 30–31). A própria soberana seria filha de uma cretense (cujo nome não foi registrado pelas fontes sobreviventes) e e do rei Ligdamis (outro nome cário), natural de Halicarnasso (Heródoto. Histórias, VII. 99. 2). A obra deste outro notável halicarnense (c. 480/5–420/5 aEC) foi a principal responsável pela memorização de Artemísia como uma peculiar rainha, constituindo uma tradição que, com suas inevitáveis mudanças, está viva hoje. Na Renascença, em particular, ela foi associada a outra soberana que também se chamou Artemísia (a II, séc. IV aEC), muito conhecida pelo túmulo que mandou construir para seu irmão, marido e rei, Mausolo, um modelo híbrido para soberanas europeias cultas e guerreiras (Berti 2020). No caso da primeira, todas as fontes são escritas, de caráter e dimensão variados, pouco numerosas e de autoria masculina; além de um evidente traço de gênero, também carregam a marca das relações entre gregos, romanos e o seu outro mundo, a Ásia. Tal como um prólogo, as Histórias forneceram

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elementos relevantes das recepções posteriores — por isso privilegiarei aquela representação, acrescentando, quando possível e oportuno, outras apropriações antigas. No final de longa descrição das forças invasoras, Heródoto nomeou, dentre os chefes de pequenos contingentes, apenas aquele que lhe causara «admiração maravilhada»: Artemísia. Porque viúva, e tendo um jovem filho, decidira por livre e espontânea vontade guerrear contra os gregos, por «audácia» e «valentia viril» (VII. 99. 1). Ela comandara apenas cinco naus, mas essa fora a segunda frota mais estimada da armada invasora (VII. 99.3). Assim como os destacados heróis homéricos, e os proeminentes helenos do período, a rainha-mãe não apenas se sobressaía na guerra (naval), mas igualmente no aconselhamento do rei, pois oferecera a ele as «melhores orientações» (VII. 99. 2–3). Com esta representação, Artemísia podia ser considerada a concretização de uma temida inversão: uma mulher que era rainha —algo comum nas culturas anatólias híbridas (Carney 2005)—, aquinhoada com admiráveis atributos viris gregos a bem combater os próprios helenos! Um pesadelo feito realidade. O mesmo pensou Orósio (c. 385–420 EC): fora uma inversão da ordem natural (História contra os pagãos, II. 10. 1) Provavelmente aquele sacerdote e teólogo cristão, e historiador, deve ter achado compreensível a ordem de capturá-la, ganhando seu captor um prêmio de 10 mil dracmas (Heródoto. Histórias, VIII. 93. 2). A rainha parece a corporificação do aspecto maligno da ambiguidade feminina expressa por Hesíodo —que nomeou Pandora com o «belo mal» (Teogonia, vv. 54–105)— e relembrada pela advertência do corifeu da aristofânica Lisístrata: bastava dar uma mínima chance às mulheres e logo suas «mãos sedosas» construíam naus cujas cunhas engoliam os homens em alto mar, como o fizera Artemísia; ou se lhes permitiam cavalgar, tornavam-se «Amazonas contra 696

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os homens» (vv. 671–679). É um paralelo revelador, pois as Amazonas haviam sido transformadas no símbolo da ameaça feminina e bárbara (Berti 2020, 30). A Artemísia de Heródoto não é fisicamente bela ou sexualmente sedutora. Entretanto, Fócio (c. 810/20–893 EC), patriarca de Constantinopla, ofereceu, dentre o que dispomos, a única representação desse tipo, citando um gramático alexandrino (Ptolomeu Heféstio, sécs. I e II EC): Artemísia, não sendo correspondida, cegara o amado e, ainda atormentada pela paixão, jogara-se da rocha da ilha de Lêucade. Deuses teriam se lançado da mesma pedra e pelo mesmo motivo — imortais, emergiram curados; Artemísia, como outros e outras mortais, sarou morrendo. Sem mencionar a sexy vingadora soturna do filme de Noam Murro, com sua veste sado-gótica sinistra (Ferrándiz 2014), destaco a Artemísia do romance de Gore Vidal, representada incrivelmente bela e adúltera, amante do persa Mardônio (1984, 164, 167). A rainha de Halicarnasso também foi masculinizada por Heródoto ao caracterizá-la como conselheira. Na narrativa da reunião convocada por Xerxes na Atenas já conquistada, lemos ter cada comandante ocupado uma posição conforme sua dignidade e serem indagados por Mardônio (o segundo no comando dos invasores) sobre o que fazer: lutar no estreito de Salamina? Todos responderam afirmativamente, exceto Artemísia, a última a ser inquirida. Sua resposta é a de um verdadeiro conselheiro ateniense: pede a Mardônio que diga ao «déspota» ser sua obrigação dar a «melhor avaliação» e a justifica com advertência estereotipada com a qual concordariam os próprios atenienses: os adversários eram tão superiores no mar quanto eram os homens em relação às mulheres! (VIII, 68. 5–6) O leitor antigo poderia, e nós podemos, lembrar neste ponto a corrente efeminação do persa e dos asiáticos em geral pelos helenos (Berti 2020, 29) A soberana ainda conjectura o que 697

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ocorreria baseando-se em informação que possuía (os adversários estavam mal abastecidos) e em antecipação plausível do que se sucederia caso o rei atacasse por terra o Peloponeso: defecções na armada grega, cada pólis cuidando de proteger suas terras (VIII, 68. 11–20) Sua fala atinge um clímax ao final, advertindo o que provavelmente ocorreria caso fosse aceita a sugestão da maioria: a derrota em Salamina, porque sendo o «melhor dos homens», Xerxes tinha os piores «escravos»: egípcios, cipriotas, cilícios e panfílios. (VIII, 68. 21–27). Alguns séculos após, Plutarco (c. 40/5–120 aEC) acusou Heródoto de ter invertido a valoração correta dos fatos, depreciando Temístocles (um «Odisseu» que previra o retorno persa) e salientando a rainha, a qual, corrigiu, não prognosticara a vitória grega por ter uma inteligência preparada e sagaz e sim por ter pressagiado tal qual uma Sibila (Da Malícia de Heródoto, 869F–870A). Plutarco também reclamou do destaque dado à rainha no relato de Salamina, desta feita por causa das poucas palavras reservadas à batalha (873E–F). É uma passagem relevante, a das Histórias, pois nela é acrescido ao retrato de Artemísia uma ambígua qualidade masculina, a inteligência astuciosa, atributo da já citada dupla Odisseu-Temístocles. Heródoto realmente escreveu ser incapaz de dizer com precisão o desempenho dos combatentes; podendo, no entanto, narrar um singular acontecimento envolvendo Artemísia, o qual aumentou a estima que lhe consagrava o rei (VIII. 87. 1–2). Em meio à confusão da batalha, a soberana tivera sua nau perseguida por Amínias de Palene, um dos heróis da refrega (Histórias, VIII. 93.1). Sem saída, a rainha ordenara o abalroamento da nave de Damasítimo, rei dos Calíndios, também súdito do bárbaro! A ação dolosa ainda fora acompanhada pela «boa sorte»: Amínias desistira da perseguição porque julgara investir contra um aliado; Damasítimo e seus marinheiros não reclamaram ao rei porque morreram (todos!), 698

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e o próprio Xerxes, «segundo se dizia», teve confirmada sua impressão de que fora Artemísia a afundar uma embarcação inimiga! Teria então ponderado, novamente «segundo se dizia», que seus homens haviam se transformado em mulheres e estas em homens (VIII. 88.3), consagrando, com este juízo, o lugar-comum da realidade paradoxal promovida pela invasão bárbara. Ao contrário de Heródoto, que escreveu não saber se o ardil da rainha fora premeditado ou fortuito, ou se resultara de algum desentendimento anterior (87, 3–4), Polieno, macedônio autor do tratado militar Estratagemas (séc. II EC), acrescentou outros detalhes à ação de Artemísia: ela teria mandado baixar previamente seu estandarte, acrescendo costumar ela levar em sua nau os sinais bárbaros e gregos, para usá-los conforme a ocasião (53. 1, 3). Polieno, por fim, ofereceu mais um exemplo da astúcia dolosa da rainha-guerreira: ela teria conquistado Latmo forjando uma festa que atraiu seus habitantes para fora da proteção de seus muros (53. 4). Heródoto, em suas últimas referências à soberana cária, deu-se por satisfeito em amplificar o prestígio adquirido por ela, relatando sua convocação por Xerxes para opinar sobre a sugestão de Mardônio após o desastre de Salamina: o rei deveria retornar para seus domínios, deixando-o encarregado do prosseguimento da luta (101–103). Novamente desempenhando o papel de conselheira à moda helênica, Artemísia explora as alternativas de ação, prognosticando as plausíveis consequências de cada uma. Conclui pela sugestão do general persa, no que, desta vez, coincidiu com o rei. Este, mais uma vez admirado, lhe concedeu a honra de levar seus bastardos a Éfeso. Plutarco, novamente ele, contraditou a informação das Histórias ao fazer daquela honraria uma simples tarefa feminina, ao escrever que a missão ocorrera por Xerxes ter esquecido de levar consigo mulheres de Susa (Da malícia de 699

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Heródoto, 870). Por outro lado, seu contemporâneo Pausânias (c. 115–180 aEC) relatou ter visto na ágora de Esparta, na estoa construída com os despojos dos persas vencidos («Pérsica»), as estátuas de Mardônio e Artemísia, da qual continuava sendo dito ter sido filha de Ligdamis, ter combatido voluntariamente os helenos e se distinguido na batalha de Salamina (Descrição da Grécia, III. 11.3). Há alguns outros poucos rastros (Gera 1997, 205–218) dessa guerra de representações. Com eles e com a vasta bibliografia existente, pesquisadores e pesquisadoras, assim como leitores e leitoras interessados, poderão fazer uma avaliação de outras Artemísias. Desta forma, estarão aptos a responder à questão de P. Pantel (1990, 07): é possível escrever uma História das Mulheres com fontes desta natureza? Eu creio que sim, porquanto a história da maioria da humanidade só é conhecida graças a vestígios produzidos por terceiros. Portanto podemos escrever, e escrevemos, a distante história de homens, de mulheres e de suas relações. Fontes históricas ARISTÓFANES. 2011. Lisístrata e Tesmoforiantes. Tradução e introdução de T. Vieira. São Paulo: Perspectiva. PHOTIUS. 1967. Tome V. Codices 230–241. Paris: Belles Lettres. Texto estabelecido e traduzido por René Henry. HERÓDOTO. 2015. Histórias: Livro I – Clio. Tradução, introdução e notas de M. Silva. São Paulo: EDIPRO. HERÓDOTO. 2008. Histórias II. Introdução, tradução, notas e comentários de A. Trejo. Cidade do México: UNAM. HESÍODO. Os trabalhos e os dias (Primeira Parte).1990. Introdução, tradução e comentários de M. Lafer. São Paulo: Iluminuras. ORÓSIO. 1982. Histórias. I–IV. Introdução, tradução e notas de E. Salor. Madrid: Gredos. 700

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PAUSANIAS. 1994. Descripción de Grécia. Libros III–VI. Introdução, tradução, notas e comentários de M. Ingelmo. Madrid: Gredos. PLUTARCO. 2013. Da malícia de Heródoto. Estudo, tradução e notas de M. Silva. São Paulo: EDIPRO. POLIENO. 1991. Estratagemas. Introdução, tradução, notas e comentários de F. Garcia. Madrid: Gredos. VIDAL, G. 1984. Criação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Bibliografia geral BERTI, I. 2020. Carian Queens from the Orient to Greece and Back: The Reception of Artemisia I and Artemisia II. In: CARLÀ-UHINK, F.; WIEBER, A. (Eds.). Orientalism and the reception of powerful women from the Ancient World. London: Bloomsbury, p. 29–43. AMARAL, A. 1994. Duas rainhas em Heródoto: Tómiris e Artemísia. HVMANITAS, vol. XLVI, p. 17–41. CARNEY, E. 2005. Women and Dunasteia in Caria, The American Journal of Philology, vol. 126, n. 1, p. 65–91. CUCHET, V. 2008. Hérodote et Artémisia d’Halicarnasse, deux métis face à l’ordre des genres athénien, Clio. Femmes, Genre, Histoire, Paris, n. 27, p.15–33. FERRÁNDIZ, T. 2014. Artemisia Iª, tirana de Halicarnaso, Revista de Claseshistoria, n. 417, p. 1–23. GERA, D. 1997. Warrior Women: The Anonymus Tractatus de mulieribus. Leiden: Brill. PANTEL, P. 1993. Introdução: Um fio de Ariadne. In: PANTEL, P. (Dir.). História das mulheres: A Antiguidade. Porto: Afrontamento, p. 19–27. 701

Κυνίσκα › Cinisca

por Luis Filipe Bantim de Assumpção

Cinisca [Κυνίσκα] foi membro da dinastia Euripôntida, na passagem do século V ao IV aEC, sendo a primeira mulher a vencer uma Olimpíada na Hélade. Na documentação literária temos a sua primeira menção em Xenofonte (Agesilau, 9.6), o qual relaciona os seus feitos ao poder do seu irmão, o basileús Agesilau II. Se considerarmos a influência de Agesilau na Hélade, na primeira metade do século IV aEC, é possível que Cinisca tenha se utilizado da riqueza —herdada com a morte de seu pai ou de seu irmão mais velho, Ágis II— e da autoridade de sua família para projetar-se de forma política e social, ainda que a cultura helênica fosse demasiadamente masculina. Embora tenha se tornado uma figura emblemática para os helenos, sobretudo em Esparta, Cinisca foi caracterizada como impetuosa e ambiciosa em suas estratégias para vencer uma Olimpíada (Pausânias. Descrição da Grécia, III. 8. 1). Donald Kyle (2003, 185) e César Fornis (2013, 33) afirmaram que o nome de Cinisca fazia alusão à tradição aristocrática de caçar usando cães, pois a etimologia de seu nome remetia a «pequeno cão de caça». Em Heródoto (Histórias, VI. 71. 1) sabemos que o seu avô, Zeuxidamos, foi apelidado de Cinisco, em referência ao universo de uma elite abastada adepta da criação de cães de caça como um meio de treinar para a guerra. Portanto, Cinisca seria uma homenagem ao avô, mas também uma forma de enaltecer práticas políticas, sociais e militares no interior da Lacedemônia. Ainda que Xenofonte tenha citado Cinisca, a maioria dos indícios sobre esta espartana provém de Pausânias (Descrição da Grécia, III. 8. 1–2), que reforçou que esta foi a primeira mulher

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a criar cavalos na Hélade, além de ser muito ambiciosa. Com isso, Cinisca chegou a receber um epigrama pela sua vitória em Olímpia. Em outro momento, Pausânias (Descrição da Grécia, III. 15.1) nos informa que havia um santuário heroico em honra à Cinisca, no bosque de Platanistas. Em Xenofonte (Agesilau, 9. 6) e Plutarco (Vida de Agesilau, 20. 1; Ditos de Espartanos Notáveis, 2. 49) a vitória de Cinisca foi considerada um artifício de Agesilau para atacar os seus inimigos de outras póleis —como atenienses e eleus empenhados em competir nas Olimpíadas, sobretudo na corrida de cavalos. De todo modo, os feitos desta Euripôntida reforçaram a sua identidade e ajudaram a enaltecer Esparta como uma cidade capaz de forjar e gerar os melhores entre os aristói— muito embora, Cinisca não tenha estado presente na premiação de sua vitória. César Fornis (2013, 35) sugere que os feitos agonísticos de Cinisca serviram à propaganda pan-helênica de seu irmão, Agesilau, ajudando a apagar a imagem da rainha Timéia como uma Euripôntida cujo adultério ficou conhecido em muitos lugares na Hélade, mas também para menosprezar a conquista de Alcibíades em 416 aEC, na mesma prova que Cinisca. Com isso, a vitória da espartana enaltecia a capacidade das mulheres dessa pólis em realizar grandes feitos, mas também rebaixava a conquista de homens no tethrippon, visto que não precisavam estar presentes para vencer, bastando financiar os cavalos, o carro e o condutor para ter o seu nome gravado entre os vitoriosos. No caso de Cinisca, a sua memória se difundiu para além da Lacedemônia, tendo recebido um epigrama e uma estátua em sua homenagem. Na «Antologia Palatina» (13. 16) encontramos um poema em honra de Cinisca, que remete à inscrição da base de sua estátua e a representando como única mulher a realizar tal feito. Sendo assim, o discurso de Xenofonte deve ser tomado por um viés moralizante, posto que era cliente de Agesilau, mas não devemos menosprezar os 704

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feitos de Cinisca, visto que foi reconhecida e enaltecida como uma mulher de grande poder, tanto dentro quanto fora do Peloponeso. Cinisca viveu na passagem do século V para o IV aEC, e embora não saibamos o momento de seu nascimento, é provável que tenha vivenciado toda a Guerra do Peloponeso. A espartana seria a filha de Arquídamos II com Eupolia, a sua segunda esposa, sendo irmã de Agesilau e meia-irmã de Ágis II. Como pontua Stephen Hodkinson (2000, 34–36) as leis de Esparta permitiam que as mulheres herdassem uma parte do patrimônio paterno, ainda que tivesse irmãos do gênero masculino. Portanto, devemos considerar que Cinisca detivesse uma fortuna advinda da herança de seu pai. Nesse sentido, Donald Kyle (2003, 185) destaca que a região de Elis tinha uma das melhores reproduções de cavalos no Peloponeso. Para Kyle, Arquídamos II trouxe exemplares de cavalos de raça para a Lacedemônia, após uma incursão à Élis, os quais Cinisca teria herdado. O autor propõe que Ágis II, já no final da vida, também tomou cavalos de Élis e, quando Agesilau subiu ao trono, Cinisca recebeu esses animais. Por fim, Kyle levanta a hipótese de que o navarco Lisandro obteve cavalos de corrida de seus xénoi de Cirene, podendo ter presenteado Ágis II, Agesilau ou Cinisca com estes — visto que era cliente dos Euripôntidas. De todo modo, os feitos da princesa Euripôntida serviram para enaltecer aos lacedemônios após as Guerras do Peloponeso, posto que Esparta produzia homens e mulheres capazes de vencer em jogos pan-helênicos, os quais representavam uma grande realização pessoal e políade. Como destacou Luis Filipe Bantim de Assumpção (2019, 27–30), as Guerras do Peloponeso representaram um desgaste para as comunidades envolvidas, ainda que a vitória da Confederação do Peloponeso tenha assegurado a preponderância política, 705

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militar e econômica de Esparta em uma parcela da Hélade. Com a emergência de Agesilau II ao trono dos Euripôntidas, por meio de um artifício do navarco Lisandro, era fundamental que muitas relações políticas fossem edificadas para reiterar e legitimar o poder deste governante. Dito isso, é possível que a vitória de Cinisca no tethrippon, somada ao epigrama que ressalta a sua linhagem e a estátua com os seus feitos, serviu para fortalecer a imagem e a importância de Agesilau e de sua família na Lacedemônia e na Hélade. Pausânias (VI.1.6) destacou que havia uma imagem de Cinisca, do cocheiro, do carro e dos quatro cavalos em Olímpia —fabricada por Apeles— assim como inscrições relacionadas à princesa. Dessa maneira, as vitórias de Cinisca serviram para que esta manifestasse o seu ímpeto competitivo, o qual se tornou possível devido ao lugar social que ocupava em Esparta e na Hélade. Embora a documentação literária tenha, por vezes, minimizado os seus feitos em prol de uma perspectiva ética e moralizante atrelada ao seu irmão Agesilau, Cinisca mostrou ser possível para uma mulher atuar diretamente em uma competição masculina, tendo aberto «portas» para que outras realizassem os mesmos feitos. Aikateríne Mouratídou (2016, 74) endossa o exposto, pois Cinisca exprimiu a sua habilidade na criação de cavalos e retirou as mulheres helênicas de uma posição de extremo silenciamento e inferioridade como muitos indícios exprimiram. Fontes históricas ANTOLOGIA PALATINA. 2017. Tradução de C. A. M. de Jesus. Coimbra/São Paulo: Imprensa da Universidade de Coimbra/ Annablume. HERODOTUS. 1938. The Persian Wars. Books 5 to 7. Translated by A.D. Godley. Cambridge: Harvard University Press. 706

A presença das mulheres na Literatura e na História

PAUSANIAS. 1982. Guida dela Grecia. Libro VI, l’Elide e Olimpia. Trad.G. Maddoli. Milano: Arnoldo Mondadori Editore. PAUSANIAS. 1997. Guida dela Grecia. Libro III, la Laconia. Trad. D. Musti. Milano: Arnoldo Mondadori Editore. PLUTARCO. 1995. Detti dei Lacedemoni. (Apophthegmata Laconica, Instituta Laconica, Lacaenarum apophthegmata). Translated by C. Santaniello. Napoli: M. D’Auria. XENOPHON. 1968. Scripta Minora. Translated by E.C. Marchant. Cambridge: Harvard University Press. Bibliografia geral ASSUMPÇÃO, L . F. B. de. 2019. As redes e as conexões políticas de Esparta e Agesilau II no século IV: um exercício de História Cruzada. Tese de História Comparada defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. FORNIS, C. 2013. Cinisca Olimpiónica, paradigma de una nueva Esparta, Habis, 44, p. 31-42. HODKINSON, S. 2000. Property and Wealth in Classical Sparta. Swansea: The Classical Press of Wales. KYLE, D. 2003. The Only Woman in All Greece’: Kynisca, Agesilaus, Alcibiades and Olympia, Journal of Sport History, vol. 30, n. 2, p. 183–203. ΜΟΥΡΑΤΊΔΟΥ, A. A. 2016. Κυνίσκα και Ευρυλεωνίς: Συγκρίσεις με βάση τις πηγές. Άθληση και Κοινωνία, Τεύχος, 58, p. 71–77.

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Γοργώ › Gorgo

por Luis Filipe Bantim de Assumpção

Gorgo [Γοργώ] foi uma rainha de Esparta, cuja trajetória se tornou reconhecida pela inteligência e o poder de suas ações. A sua proeminente posição nesta pólis se deu por ser a filha do basileús Cleômenes I, esposa de Leônidas I e mãe de Plistarco. Heródoto (Histórias, V. 51) foi o primeiro escritor a comentar de suas atitudes e personalidade, enfatizando que Gorgo, ainda na juventude, tinha uma sagacidade para analisar a intencionalidade no discurso dos adultos. No decorrer de sua obra, Heródoto (Histórias, VII. 239. 4) retoma à figura de Gorgo, já adulta, demonstrando a sua percepção das relações de poder presentes na realeza e na aristocracia de Esparta, sendo capaz de decifrar um código secreto de conhecimento restrito naquela cidade. Plutarco (Ditos de Mulheres Espartanas, 3. 1), tomando Heródoto como o seu interdiscurso, reforça a imagem da jovem Gorgo, ao destacar que esta repreendeu Cleômenes por recompensar um homem que o ajudou a deixar o vinho com um sabor mais agradável, visto que isso aumentaria o número de bêbados e depravados. Na Vida de Licurgo (14. 4) e nos Ditos de Espartanos Notáveis (53. 13), Plutarco se utiliza de Gorgo para demonstrar que as mulheres da aristocracia espartana tinham orgulho da posição que ocupavam nesta pólis, ou seja, de gerar homens valorosos. Em outro de seus escritos, Plutarco (Ditos de Espartanos Notáveis, 48) cita Gorgo como uma mulher notável e exemplar mesmo para aquelas de seu tempo. Por outro lado, Plutarco (Ditos de Espartanos Notáveis, 51; Ditos de Mulheres Espartanas, 3.6) a caracterizou como uma mulher paradigmática, pois, mesmo diante da morte iminente de seu esposo Leônidas

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nas Termópilas, perguntou qual seria o último comando que este teria para dá-la. Dessa maneira, os indícios documentais que versaram sobre Gorgo não estiveram devidamente preocupados com as suas habilidades político-sociais, posto que era membro da realeza e de uma das famílias mais poderosas do Peloponeso. Devemos recordar que o casamento era um instrumento político eficiente e, no caso de Gorgo, ocorreu de forma endogâmica —o seu pai, Cleômenes, era o irmão mais velho de seu esposo, Leônidas— para conservar o poder em uma ramificação específica da dinastia Ágida (Mitchell 2013, 98). Gorgo viveu na passagem do século VI ao V aEC, período no qual Esparta vivenciou o reinado de Cleômenes I. Os feitos desse basileus asseguraram-lhe a alcunha de «louco», por Heródoto (Histórias, V. 42. 1), ainda que tenha auxiliado a depor a tirania dos Pisistrátidas de Atenas (Heródoto, Histórias, V.64). Em certa medida, a documentação reforça que este foi um momento de grandes transformações políticas, sociais e culturais na Hélade, posto que o processo de deposição dos tiranos de Atenas gerou instabilidade política em Esparta e tensões desta pólis com outras cidades, afinal, Cleômenes aceitou retirar os filhos de Pisístrato do poder por recomendações da sacerdotisa Pítia de Apolo em Delfos que, posteriormente, descobriram que fora subornada pelos Alcmeônidas de Atenas. Nesse contexto, Cleômenes tentou restabelecer Hípias no governo ateniense, sendo confrontado pelo basileús Demáratos, da dinastia Euripôntida da Lacedemônia, bem como pelos coríntios ali presentes (Heródoto. Histórias, V. 75). Esse cenário favoreceu à mudança de um dos diarcas de Esparta sob a tutela de Cleômenes, mas teria enfraquecido uma parcela de suas relações políticas com outras póleis que, no caso de Corinto, vivenciaram uma tirania e abominavam essa forma 710

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de governo. Concomitantemente a esse processo, as tensões entre a Hélade e o Império Aquemênida se desdobravam, o que culminará nas Guerras Greco-pérsicas. Após a morte de Cleômenes, Leônidas assumiu o trono dos Ágidas, sendo meio-irmão do governante anterior. Em certa medida, o casamento de Leônidas com Gorgo foi um mecanismo para assegurar a legitimidade de sua sucessão, pois a jovem era a única herdeira de Cleômenes. Diante do exposto, é possível que Gorgo tenha sido educada para ocupar posições sociais de importância, sabendo agir em função das circunstâncias e no papel de mulher da realeza. Em certa medida, Fábio de Souza Lessa (2000, 165) reitera este posicionamento ao destacar que as mulheres da Antiguidade helênica, bem como do Mediterrâneo, se encontravam em um cenário que fomentava a divisão social dos gêneros, o que não significou que estas fossem reclusas ou excluídas das esferas públicas, econômicas e sociais. No que concerne a Gorgo, tanto a sua postura diante de seu pai e Aristágoras na juventude, quanto o seu papel decifrando a mensagem de Demáratos informando sobre os objetivos de Xerxes para com a Hélade (Heródoto. Histórias, VII. 239. 4). O discurso de Heródoto manifestou que Demáratos enviou uma informação em uma plaqueta dupla de madeira, na qual escreveu a mensagem em um dos lados e a cobriu com cera para que o mensageiro não fosse incomodado pelos guardas persas que ficavam nas estradas. Quando a plaqueta chegou à Lacedemônia, os lacedemônios não sabiam o que fazer com ela, mas seguiram o conselho de Gorgo para que removessem a cera da plaqueta para encontrar a mensagem que ali havia. Essa informação não somente reforça a astúcia da rainha, como também nos fornece indícios de instrumentos de comunicação restritos aos membros da realeza lacedemônia. O fato de Gorgo ter conhecimento deste artifício demarca 711

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que esta foi preparada para lidar com questões familiares e políticas em Esparta e na Lacedemônia, visto que o seu papel era assegurar o equilíbrio e a tradição de sua pólis. Gorgo se fez presente na cultura pop em história em quadrinhos (HQ), filmes, romances ficcionais e jogos eletrônicos. Na HQ 300 de Esparta, de Frank Miller e Lynn Varley (2006), Gorgo se coloca na condição de cúmplice e conselheira de Leônidas que, mesmo diante da desobediência de seu esposo, sugere que esse marche com a guarda de trezentos jovens adultos para enfrentar Xerxes. Por fim, o casal se despede com Gorgo exigindo que Leônidas retorne para Esparta, com o seu escudo ou carregado sobre ele. Ainda que o enredo de Miller e Varley reforcem a «miragem espartana» atrelada à força e ao autocontrole, Gorgo aparece chorando enquanto cobre a cabeça e Leônidas parte no horizonte. Essa postura é muito semelhante àquela de Gorgo, no filme The 300 Spartans, dirigido por Rudolph Maté (1962) e interpretada por Anna Synodinou, na qual a rainha escuta as notícias de Leônidas sobre a necessidade de desobedecer ao conselho espartano e partir para as Termópilas, mesmo durante a realização das Carnéias — festividades em honra a Apolo Carneu. Por outro lado, essas duas representações de Gorgo diferem significativamente daquelas do filme «300», dirigido por Zack Snyder (2007), e na sua continuação, intitulada 300: A Ascensão do Império, dirigida por Noam Murro (2014), a rainha espartana teve um papel de destaque político, participando de explanações perante magistrados espartanos. No filme de Noam Murro, Gorgo —interpretada por Lena Headey— combate em Salamina sem a panóplia e sem um hóplon, tornando-a ainda mais corajosa do que os espartanos que lidera. 712

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No jogo Sid Meier’s Civilization VI, desenvolvido pela Firaxis Games e lançado pela 2K games, Gorgo é um dos heróis da Hélade junto com Péricles, tendo como habilidade «Termópilas» e como «Agenda» o lema «Com o seu escudo ou em cima dele». As suas habilidades se baseiam em questões militares, por meio de poder e flexibilidade, sendo dublada por Angeliki Dimitrakopoulou em dialeto dórico. No romance Gates of Fire de Steven Pressfield (1998), Gorgo aparece de forma modesta e pouco expressiva, endossando a «miragem espartana» e a ideia de que a mulher deveria suportar as dores de sua cidade e de seus homens — marido, filhos etc. Fontes históricas SID MEIER’S CIVILIZATION VI. 2016. Lead designer: Ed Beach. Califórnia: 2K Games (Jogo eletrônico). HERODOTUS. 1938. The Persian Wars. Books 5 to 7. Translated by A.D. Godley. Cambridge: Harvard University Press. MILLER, F.; VARLEY, L. 2006. Os 300 de Esparta. Tradução de M. Maia. São Paulo: Devir. OS 300 DE ESPARTA. 1962. Direção de R. Maté. EUA: 20th Century Fox (117 min.). PLUTARCH. 1928. Moralia. Vol. II. Translated by F.C. Babbitt. Cambridge: Harvard University Press. PLUTARCH. 1967. Lives. Vol. I – Theseus and Romulus; Lycurgus and Numa; Solon and Publicola. Translated by B. Perrin. Cambridge: Harvard University Press. PLUTARCO. 1995. Detti dei Lacedemoni. (Apophthegmata Laconica, Instituta Laconica, Lacaenarum apophthegmata). Translated by C. Santaniello. Napoli: M. D’Auria. PRESSFIELD, S. 2017. Portões de Fogo. Tradução de A. L. D. Borges. São Paulo: Contexto. 300. 2007. Direção de Z. Snyder. EUA: Warner Bros. Pictures (116 min.). 713

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300: Rise of an Empire. 2014. Direção de Noam Murro. EUA: Warner Bros. Pictures (102 min.). Bibliografia geral LESSA, F. de S. 2000. Modelo Mélissa: Obediência ou Transgressão?, Phoînix, Rio de Janeiro, 6, p. 153–164. MITCHELL, L. 2013. The Heroic Rulers of Archaic and Classical Greece. London/New York: Bloomsbury.

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Τιμαία › Timéia

por Luis Filipe Bantim de Assumpção

Timéia [Τιμαία] pode ser considerada uma mulher espartana de grande proeminência, visto que foi esposa de Ágis II e, portanto, rainha da dinastia Euripôntida. Não é possível precisar se Ágis estivesse casado com Timéia no momento de sua ascensão política, porém, é provável que esta integrasse uma das ramificações familiares dos Euripôntidas ou mesmo uma família esparciata de grande destaque social. Embora as suas ações tenham impactado no processo de sucessão espartano, não temos relatos de seu nome nos indícios documentais do período Clássico. Em Xenofonte (Helênicas, III. 3. 2), Timéia aparece no discurso de Leotíquidas, o seu filho, durante a disputa que este travava com Agesilau pelo trono dos Euripôntidas. Na ocasião, Agesilau se utilizou do sagrado —um terremoto criado por Posidão— para afirmar que Ágis e Timéia foram separados no leito de sua residência, sendo este um indício da traição desta espartana e uma evidência de que Leotíquidas era filho bastardo do basileús Euripôntida. Quem desenvolve essa narrativa é Plutarco que, posteriormente, declarou que Timéia havia estabelecido relações extraconjugais com o ateniense Alcibíades, no período em que este se refugiou em Esparta. Em sua Vida de Agesilau (3. 1–2), Plutarco afirmou que Timéia e Alcibíades mantiveram uma relação ilícita. O autor conta um intrigante evento sobre a rainha Euripôntida, pois ordenou que, dentro de casa, as suas escravas hilotas chamassem Leotíquidas de Alcibíades. Essa perspectiva também se manteve na Vida de Lisandro (22. 3–4), na qual Plutarco destacou que Ágis tomou conhecimento do ocorrido e rejeitou a paternidade de Leotíquidas. Por outro

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lado, em Vida de Alcibíades (23. 7–8), Plutarco expôs que Alcibíades seduziu e corrompeu Timéia, levando-a ao ato de traição para com Ágis. Ao se utilizar de Xenofonte como seu interdiscurso, Plutarco retomou o terremoto como uma testemunha divina da traição de Timéia, porém, reiterou que esta se envolveu com Alcibíades pelos esforços que o ateniense teve em seduzi-la, minimizando a responsabilidade da rainha espartana nesta relação extraconjugal. Segundo Plutarco (Vida de Agesilau, 3. 2; Vida de Alcibíades, 23. 7), Alcibíades objetivava fazer com que um filho seu reinasse sobre os lacedemônios. Essa mesma perspectiva foi emulada por Ateneu de Náucratis (Banquete dos Eruditos, XII. 48), anos após Plutarco, na qual Alcibíades teria a pretensão de fazer com que os reis de Esparta não pudessem mais dizer que eram descendentes de Héracles, mas sim de Alcibíades. De todo modo, tendo sido seduzida ou não, as ações de Timéia impactaram no processo de sucessão espartano que culminou com a ascensão de Agesilau II ao poder e o afastamento de Leotíquidas — uma vez que este poderia ser filho de Alcibíades. Timéia vivenciou o período da Guerra do Peloponeso (431–404 aEC), na condição de esposa de Ágis II, basileús Euripôntida da Lacedemônia. De fato, esta espartana nasceu antes deste período de conflito, porém, carecemos de informações quanto ao seu nascimento e o nome de membros proeminentes de sua ramificação familiar. Como destacou César Fornis (2016, 152–154), a Guerra do Peloponeso marcou o desgaste das póleis envolvidas, permitindo que este momento fosse compreendido —pela documentação e pela historiografia contemporânea— como um marco na História da Hélade. Portanto, por ser uma mulher da realeza em uma comunidade que exerceu papel central nas interações políades deste conflito, Timéia foi uma personagem importante em tal dinâmica. Alcibíades se utilizou desta espartana para tentar alcançar 716

A presença das mulheres na Literatura e na História

o seu objetivo de influenciar na sucessão real da Lacedemônia, visto que isso poderia contribuir para a sua atuação política na Hélade, caso tivesse sucesso em suas alianças após fugir de Esparta. É provável que Timéia tenha atuado no cenário político espartano na ausência de seu esposo. Logo, para Alcibíades, ter a esposa de Ágis a seu favor, somado ao apoio que recebeu do éforo Endios (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, VIII. 6. 2–3), permitiu que as suas decisões políticas como conselheiro dos lacedemônios fossem aprovadas. Nesse sentido, os feitos de Timéia coincidiram com o final da Guerra do Peloponeso e o início de uma trajetória político-militar que culminou na instabilidade helênica e na desestruturação de Esparta, enquanto potência político-militar (Assumpção 2019, 240–246). Fontes históricas ATHENAEUS. 2010. The Learned Banqueters. Books 12–13.594b. Translated by S. D. Olson. Cambridge: Harvard University Press. PLUTARCH. 1955. Lives. Vol. V – Agesilaus and Pompey; Pelopidas and Marcellus. Translated by B. Perrin. Cambridge: Harvard University Press. PLUTARCH. 1959. Lives. Vol. IV – Alcibiades and Coriolanus; Lysander and Sulla. Translated by B. Perrin. London: William Heinemann Ltd. THUCYDIDES. 1965. History of the Peloponnesian War. Books VII–VIII. Translated by C. F. Smith. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press. XENOPHON. 1989. Hellenica. Books I–IV. Translated by C. L. Brownson. Cambridge: Harvard University Press. 717

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Bibliografia geral ASSUMPÇÃO, L. F. B. de. 2019. As redes e as conexões políticas de Esparta e Agesilau II no século IV: um exercício de História Cruzada. Tese de Doutorado em História Comparada defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. FORNIS, C. 2016. Esparta: La historia, el cosmos y la leyenda de los antiguos espartanos. Sevilla: Editorial Universidad de Sevilla.

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Ξανθίππη › Xantipa

por Miguel Spinelli

Xantipa nasceu sob o governo de Péricles (morto em 429 aEC) e exerceu, indiretamente, uma presença marcante na vida cívica dos gregos. Muito do que se diz a respeito dela vem envolto em lendas: foi primeiramente fabulado no teatro (na comédia), depois na rua (nas rodas de conversas) até se constituir em registro como um evento corriqueiro. Foi, sem dúvida, no teatro e, depois, na rua, não sem alguma motivação real, que nasceu o famoso dito: que «certa feita, depois de um rol de reclamações e reprimendas Xantipa derramou uma jarra de água em Sócrates; resignado, ele respondeu: Bem sabia que depois de tão grande trovoada haveria mesmo de vir a chuva» (Diógenes Laércio. II, V. 35–36). O nome Xantipa pode ter sido apenas um apelido derivado de Xanthippos [Xanthós, amarelado, loiro, baio + híppos, cavalo] referente à sua aparência física (puxando para o ruivo) e ao seu gênio, à sua thymoeidés: ao seu temperamento forte, resoluto e insubmisso. Há em Xenofonte um registro que põe em evidência seu gênio e seu nome: «Por que não educas Xantipa ao invés de suportá-la?», perguntou certa vez Atístenes; Sócrates respondeu: «Os que desejam ser bons cavaleiros (hippikoús — termo com o qual Sócrates joga com o nome de Xanthíppa) não se interessam pelos cavalos (híppous) mais dóceis, e sim, pelos mais fogosos (...). Assim se deu comigo: decidido a lidar e a conviver com os homens, me associei a esta mulher, porque sabendo lidar com ela, saberei conviver com todos os demais» (Banquete, II. 10). 719

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«Diz Aristóteles (este relato consta em Diógenes Laércio, II, V. 26) que Sócrates teve duas esposas: a primeira Xantipa, com a qual teve Lâmprocles; a segunda, Mirta (...) com a qual teve Sofronisco e Menexenes». «Outros autores dizem que a primeira esposa foi Mirta». «Esse hábito de contrair mais de um matrimônio (explica o mesmo Diógenes) adveio da necessidade de repovoar Atenas, pela carência de homens dizimados pela guerra, razão pela qual o cidadão foi, por decreto, autorizado a coabitar com outra mulher, além da esposa, e ter filhos». Sob o nome de Xantipa temos uma representação derivada da autoridade e do poder da esposa exercidos dentro de casa. Por analogia à abelha (à mélissa), os gregos concebiam a esposa como a rainha do lar: uma forma retórica de engrandecê-la sem questionar seu jugo, sua reclusão, sua carência de cidadania e seus direitos. O marido, enquanto cidadão, era uma autoridade no recinto da pólis e da assembleia, mas não exatamente dentro de casa. «O dinheiro (sentenciou Xenofonte) entra, em geral, na casa graças ao trabalho do marido, mas cabe à esposa administrá-lo: se ela o emprega bem, a casa prospera, se mal, se arruína» (Econômico, III. 15–16). Aristófanes, em suas comédias, confirma ser competência da esposa administrar a economia doméstica (oikonómos). Era ela quem dava as regras (nómos) dentro de casa (oikós): governava os serviçais, cuidava da culinária e da roupa, e, sobretudo, guardava a chave da dispensa (Lisístrata, vv.495 e 536; Assembleia das mulheres, vv.89 e 211). Era, entretanto, a riqueza que desonerava o jugo da mulher: «assim que meu marido sai para a Ágora (diz Praxágora), me unto de azeite da cabeça aos pés e me tosto ao sol o dia todo» (Assembleia das mulheres, vv. 62–63). 720

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Sócrates, ou filosofando ou guerreando (participou, de três grandes batalhas, uma já com 50 anos de idade), vivia o tempo todo fora de casa. Todas as obrigações familiares recaíam sobre Xantipa. Sem tempo para se «tostar» e sem escravos, mais que «guardar a chave da dispensa» (em sua casa viviam pelo menos 6 pessoas: três adultos e três garotos) ela, efetivamente, era o kýrios (o senhor) e a governanta (oikonómos). Restava-lhe a obrigação, inclusive, de frequentar a rua e o mercado. «Certa feita, no Mercado [en agorâi], ela se deparou com Sócrates e o puxou pelo manto. Os discípulos, escandalizados, reivindicaram: dê-lhe um corretivo, Sócrates. Ele retrucou: sim, sem dúvida, vamos eu e ela nos agarrar, e vocês a exortar: toma Sócrates, dê-lhe Xantipa!» (Diógenes Laércio. II, V. 37). Xantipa vivia do soldo de Sócrates enquanto soldado. Há um registo em Diógenes Laércio (II, III. 20) atribuído a Aristóxenos, que Sócrates, como guerreiro, conseguiu uma boa fortuna, e que vivia basicamente da «aplicação do capital, do qual tirava somente os juros, gastando apenas a renda e reinvestindo o principal». É certo que ele contava também com alguma ajuda dos dois amigos sempre presentes: Críton, amigo de infância, e Alcibíades, parceiro nas batalhas (Alcibíades, como comandante a cavalo, e, Sócrates, o hoplita a pé que protegia o cavalo e o cavaleiro). Xantipa, certa vez, disse a Alcibíades algumas «verdades» (segundo ele, «impropérios»). Exaltado, bem próprio do caráter dele, esbravejou: «como suportas, oh Sócrates, as trovoadas desta mulher?». Sócrates respondeu: «Do mesmo modo como tu não te incomodas com o grasnar de teus gansos»; «Mas eles (retrucou Alcibíades sem perder o humor) me dão ovos e gansinhos». Ora, emendou Sócrates: «Para mim, Xantipa gerou filhos — paidía gennã» (Diógenes Laércio. II, V. 36–37). Esse é um dos 721

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passos que põe em questão a maternidade de Xantipa e Mirta, vista que o plural paidía gennã dá a entender que ela não gerou apenas Lâmprocles. Xantipa é empurrada, por circunstâncias incomuns, a subverter o éthos da mulher grega e o olhar masculino tradicional. Ela representa, inclusive, mesmo que de modo acanhado, os anseios de Medeia que almejava a liberdade da rua como terapia de seus tédios: «Quando a vida doméstica enfada (exclama), o marido sai à rua para curar do peito seus desgostos» (Eurípides. Medeia, vv. 242–243). No contexto da ideação platônica, que tomou Sócrates como seu projeto filosófico, Xantipa corresponde ao ideal de mulher de thymós forte e resoluto (República, V. 457 c–d). Mas nem a ideação, nem a Xantipa real, nem a dos relatos, expressam uma efetiva consciência de emancipação feminina. Xantipa é apenas uma rebeldia do ser mulher-esposa necessitado, sem ter por onde nem por quem recorrer. Mesmo assim, a Xantipa real, idealizada pelo conceito, personifica uma acanhada emancipação da mulher grega, que, fora de casa, não tinha voz nem consideração pública. Lá em Atenas, da porta para fora, uma mulher sozinha, desacompanhada do filho ou do marido, sem o séquito de escravos, não ousava sair de casa: era sempre observada como se não fosse de ninguém, nem dela mesma! Acresce à representação conceitual de Xantipa a condição das esposas viúvas dos simples soldados dizimados pelas guerras. Naquele momento eram muitas as Penélopes e as Fedras vivendo ao desamparo do kýrios (do senhor da oikía). Xantipa (esposa de um guerreiro vivo, mas ausente) é também a figuração daquela mulher, que, por força das circunstâncias, se via sozinha obrigada a por regras na casa, ser a provedora, frequentar a rua e o mercado, e, nesse contexto, se fazer respeitar pelos saloios da praça. Daí que a figura de Xantipa, nesse ponto, dá eco igualmente ao novo olhar do homem grego forçado a ver a 722

A presença das mulheres na Literatura e na História

mulher sob outros paradigmas que não o costumeiro. Eis aí a grande razão pela qual Xantipa, enquanto conceito, finda por representar o diferente, o inusitado e o ameaçador, razão pela qual, no contraposto da mudança, espelha um outro olhar igualmente infeliz e depreciativo. De senhora da casa, ela agora passa a ser a senhora de si e de suas circunstâncias, e, bem por isso, vista (olhada) como a irascível, a escandalosa, a temperamental, a «louca» de Atenas! Diz Platão, no Fédon (60 a), que, nas vésperas da morte de Sócrates (em 399 aEC), ela esteve, na cadeia, a visitá-lo com o filho (tò paidíon). Platão, no mesmo contexto, descreve Xantipa como uma mulher vigorosa, muito bem disposta a defender seus interesses, a brigar por seu marido e pelos filhos, nos quais resumia seus direitos de esposa e de mãe. Há uma fala entre Xantipa e Sócrates, na prisão, que soa feito uma anedota, mas é um testemunho de coragem, de indignação e lamento. «Estão te matando injustamente Sócrates», bradou Xantipa; «Preferirias, que fosse justamente?» (Diógenes Laércio. II, V. 35). A resposta de Sócrates mostra a ciência de um brado sem eco: minimiza e consola, bem como submete ao humor sua desgraça e a dela! Ainda na prisão, quando Críton e alguns amigos chegam, encontram Xantipa sentada ao lado de Sócrates. Assim que entraram, ela «começou a lamentar e a maldizer», e, em alta voz, ironicamente clamou: «É a última vez, Sócrates, que teus amigos falam contigo, e tu com eles»! Ironicamente, porque preterida! Dado, entretanto, que repetia compulsivamente a reclamação, Sócrates, voltando-se para Críton, pediu que a levasse para casa. Críton determinou imediatamente que seus escravos o fizessem. Resignada, ela saiu se lamentando e se «golpeando no peito» (Fédon, 60 a). O golpear-se no peito era uma atitude comum dos atores da tragédia ao representar a manifestação física da dor e da aflição. 723

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

É certo que a Xantipa real não foi nem uma «senhora violenta que atormentou a vida de Sócrates» nem uma «verdadeira megera» como alguns tradutores, por vezes, fazem constar, meio que escondidinho, em notas de rodapé. Sócrates, em nenhum dos relatos desqualifica Xantipa, e por uma «simples» razão: porque ela cultivou, para com ele, o mesmo amor (philía) e afeição que ele dedicou à filosofia. Xantipa, isto é fato, veio a ser a condição da liberdade de Sócrates em gastar seu tempo filosofando pelas ruas de Atenas. Dele, ela foi o arrimo e a proteção de que carecia no sentido de encontrar sempre de novo um lar disponível, amoroso e aconchegante. Nesse ponto, Xantipa, perante um Sócrates absorto na reflexão e concentrado em seus ideais, estava sempre por ali, zelosa e atenta, a ponto de se pôr em seu encalço, e de até mesmo administrar reprimendas a título de cuidados. Enfim, mesmo tendo sido a mulher de Sócrates, Xantipa findou por ser «apenas» ela mesma: Xantipa! Fontes históricas ARISTOPHANE. 2009. Comédies. Tome III: Les Oiseaux – Lysistrata. Texte établi par Victor Coulon, traduit par Hilaire Van Daele. Paris: Les Belles Lettres. ARISTOPHANE. 1983. Comédies. Tome V: L’assemblée des femmes – Ploutos. Texte établi par Victor Coulon, traduit par Hilaire Van Daele. Paris: Les Belles Lettres. DIOGENES LAERTIUS. 1959. Lives of eminent philosophers. With an English translation by R. D. Hicks. Loeb Classical Library, 2 volumes, [1ª ed., 1925], London: Harvard University Press. EURIPIDE. 2012. Médée. Texte établi par Louis Méridier, traduit par Myrto Gondicas et Pierre Judet de La Combe. Paris: Les Belles lettres. 724

A presença das mulheres na Literatura e na História

PLATO. 1995. Platonis Opera (Burnet, J. ). 5 vols. T.I, tetralogias I–II [Phaedo], W.A. Duke et alli. Oxford: Clarendon Press. PLATO. 1978. Platonis Opera (Burnet, J. ). 5 vols. T.IV, tetralogias VIII [Respublica], W.A. Duke et alii. Oxford: Clarendon Press. XÉNOPHON. 2008. Économique. Texte établi et traduit par Pierre Chantraine, introduction et notes par Claude Mossé. Paris: Les Belles Lettres. Bibliografia geral SPINELLI, M. 2017. Duas mulheres de Atenas: Aspásia, a companheira de Péricles, e Xantipa, a de Sócrates, Revista Hypnos, n. 39, p. 258–287.

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Νέαιρα › Neera

por Daniel Barbo

A história de Neera foi relatada num discurso de acusação atribuído pela tradição a Demóstenes, mas reconhecido atualmente como de autoria de Apolodoro, um discurso forense intitulado Contra Neera (D. 59), proferido por volta de 342 aEC em Atenas. Neera foi acusada de violar uma lei que proibia a estrangeiras contrair matrimônio com cidadãos atenienses, passando-se por uma esposa legítima (gune). Esse processo, por ter sido politicamente motivado, foi dirigido mais a seu companheiro de longa data, Estéfano, do que a ela própria. Entretanto, Neera, pessoalmente, fora levada ao tribunal. Esse discurso forense informa-nos que ela começou a vida como escrava de Nicareta de Elis, uma liberta que aliciava meninas, alugando-as a políticos e intelectuais em Atenas. Iniciada na prostituição popular (porne; pornidion) por volta de 385 aEC em Corinto, podendo exercer seu ofício sob a tutela oficial de um proxeneta num bordel público (ergasterion) ou privado (hetairaîon), ou ainda por conta própria, o objetivo de Neera era se tornar uma cortesã de sucesso (hetaira), o que só conseguiu em 380 aEC, pelos próximos cinco anos ou mais, ela se tornaria uma das hetairai coríntias mais renomadas em toda a Grécia. No mundo grego clássico, de um modo geral, a prostituição era considerada uma atividade legal, um componente da vida cotidiana do universo políade. Em Atenas, onde Neera passou boa parte de sua vida, a prostituição representava uma atividade econômica da qual provinha um imposto, chamado pornikón. A própria Boulé designava, a cada ano, coletores responsáveis por recolher esse imposto. Demarcava-se, com

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isso, a distância identitária e cultural que se impunha entre a esposa legítima (gune) e a prostituta comum (porne), bem como entre essas e duas outras categorias reconhecíveis na sociedade ateniense: a cortesã (hetaira) e a concubina (Pallake). Ao longo de sua vida, Neera se tornou amante de homens ricos, poetas, atores, atletas e membros de algumas das famílias mais proeminentes do mundo grego, vivendo e viajando com eles pelos dois lados do Mar Egeu. Ainda em Corinto, na atividade de prostituta comum, ela fora vista rodeada de amantes como o poeta Xenoclides e o ator Hiparco. Posteriormente, dois outros amantes, Timanóridas e Êucrates, compraram-na de Nicareta por 30 minas para poderem usufruir dela em conjunto e sem restrições. Quando se cansaram dela e decidiram se estabelecer e constituir família, aceitaram um preço reduzido de 20 minas e a libertaram. Frínion, o homem que pagou por sua liberdade, um ateniense rico e dissoluto de uma família conhecida, um primo de Demóstenes, trouxe-a com ele para Atenas em 374 aEC e, naturalmente, presumiu que tinha certos direitos sobre ela. Ele a tratou de forma abusiva, e, para escapar dele, ela fugiu para a cidade vizinha de Megara, onde ficou por dois anos e tentou ganhar a vida como uma hetaira em circunstâncias difíceis, já que a corrente guerra entre Atenas e Esparta havia fechado as rotas comerciais e não havia estrangeiros ou mercadores na cidade. Quando a guerra acabou, ela conheceu um jovem ateniense chamado Estéfano que estava em Megara a negócios. Ele se apaixonou por ela e estava disposto a arriscar um conflito com Frínion para levá-la com ele para Atenas. Frínion, de fato, tentou tomá-la de volta à força. Estéfano o processou e, no final, todas as partes se reconciliaram com a condição de que os dois homens compartilhassem Neera. Nesse momento, Frínion sai de cena. Provavelmente, ele foi persuadido por Neera a 728

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deixá-la ficar com Estéfano. Pelos próximos quarenta ou mais anos de sua vida, ela viveria como a concubina (Pallake) de Estéfano. Por volta de 342 aEC, Apolodoro e seu cunhado, Teomnesto, provavelmente agindo em nome de uma aliança política mais ampla que apoiava a agenda de um confronto com Filipe II, Rei da Macedônia, decidiram atacar Estéfano. Parecia mais eficiente realizar esse ataque por meio de uma acusação a Neera e a sua filha, Fano. Um ataque a uma prostituta envelhecida parecia um alvo mais fácil de ser atingido que um ataque direto a um político com fortes conexões com o demos. Os acusadores argumentavam que Neera, uma estrangeira e conhecida prostituta comum, passava-se por uma esposa legítima ateniense, ferindo a legislação desde a codificação soloniana. Além disso, argumentavam que o casal espúrio dera Fano em casamento consecutivamente a três atenienses, Frastor, Epéneto e Teógenes, este último, um arconte rei, o que imputava à filha o mesmo crime cometido pela mãe perante as leis atenienses. Caso obtivessem sucesso, Estéfano enfrentaria uma multa enorme por ter se casado ilegalmente com uma mulher estrangeira e, além disso, teria que pagar um grande resgate para comprar de volta a liberdade de Neera. Além da ruína financeira, se ele não conseguisse pagar a multa integralmente, perderia seus direitos civis e políticos (atimia) e não representaria mais uma ameaça para seus inimigos políticos. Fonte histórica APOLLODORUS. 1999. Against Neaira: [D.59]. Ed. with introduction, translated and commentary by Konstantinos A. Kapparis. Berlin/New York: De Gruyter. 729

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Bibliografia geral PETERS, E. T.; CERQUEIRA, F. V. 2013. Mulheres em Atenas, no século IV: o testemunho do Contra Neera, Nearco, n. II, p. 68–84. COHEN, E. E. 2015. Athenian prostitution: the business of sex. Oxford: Oxford University Press, 2015. GLAZEBROOK, A. 2005. The making of a prostitute: Apollodoros’s portrait of Neaira, Arethusa, vol. 38, p. 161–187. HAMEL, D. 2003. Trying Neaira: The True Story of a Courtesan’s Scandalous Life in Ancient Greece. New Haven/London: Yale University Press. KAPPARIS, K. 2018. Prostitution in the Ancient Greek World. Berlin/Boston: Walter de Gruyter. MOSSÉ, C. 1990. La mujer en la Grecia clásica. Madrid: Nerea.

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Ὀλυμπιάς › Olímpia de Épiro

por Henrique Hamester Pause

Olímpia (em grego Ὀλυμπιάς [Olympiás]) era princesa de Épiro por nascimento, filha do rei Neoptólemo I de Épiro e pertencente à dinastia Eácida. Teria nascido por volta do ano 376 aEC Sua família reivindicava descendência da deusa Tétis, ninfa do mar que teria se casado com o mortal Peleu, rei da Fítia, na Tessália. Desse casamento teria nascido Aquiles, o herói épico por excelência, o melhor dos aqueus, do qual Olímpia e, posteriormente, seu filho, Alexandre, podiam reivindicar parentesco. A região de Épiro (em grego Ήπειρος [Epeiros]), onde nasceu Olímpia, é, atualmente, umas das treze regiões modernas da Grécia, localizada a sudoeste da Península Balcânica e está, historicamente e geograficamente, dividida entre a Grécia e a atual Albânia. Marcada por um terreno predominantemente composto por planaltos e planícies férteis, a região foi, por muito tempo, um reino que fazia oposição ao Reino da Macedônia e às cidades-Estado gregas. Na época de Filipe II da Macedônia, futuro esposo de Olímpia, ou seja, durante o século IV aEC, o reino de Épiro fazia fronteira a oeste com o Reino da Macedônia, se tornando uma constante ameaça e, ao mesmo, fazendo necessária a formação de alianças políticas entre os reinos, fato esse que pode ter sido a maior motivação para o casamento de Olímpia com Filipe II. Foi aos dezesseis anos que Olímpia conheceu Filipe II da Macedônia, durante suas iniciações nos Mistérios de Samotrácia (Plutarco. Vida de Alexandre, I. 2). Na época, Olímpia, já órfã tanto de pai como de mãe, recebeu autorização de seu irmão, Arribas, para se casar, feito que teria ocorrido por volta

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de 360 aEC. Olímpia seria a quarta esposa de Filipe II e teria dado a ele dois filhos, Alexandre, que viria a ser conhecido como Alexandre III ou Alexandre, o Grande e Cleópatra da Macedônia. Pouco se sabe sobre a morte de Olímpia, acredita-se que o final de uma das obras escritas por Plutarco de Queroneia (46–120 EC), chamada Vida de Alexandre (uma das mais de vinte e três biografias escritas pelo queronês ainda remanescentes), tenha sido perdida e que, exatamente nesse fragmento perdido, existiriam informações sobre o destino de Olímpia (Cavero; Morrillo; Hermida 2007, 125). Quando pensamos nas fontes antigas que serviriam para a coleta de informações sobre Olímpia nos deparamos, infelizmente, com um quadro de possibilidades bem reduzidos. Não encontramos referências à rainha macedônia na cultura material contemporânea à sua existência. Contudo, acredita-se que seu busto tenha sido cunhado em uma moeda romana na época de Caracala (211–217 EC). Quando falamos de fontes literárias, via de regra, devemos nos ater naquelas que foram escritas a fim de relatar a vida e as façanhas não de Olímpia, mas de seu filho, Alexandre, o Grande. É a partir dos escritos dos historiadores e biógrafos de Alexandre que encontramos informações acerca de Olímpia. O principal historiador e biógrafo de Alexandre a nos dar informações sobre a rainha macedônica é Plutarco, que a apresenta em suas duas obras dedicadas a Alexandre: Vida de Alexandre, já citada anteriormente, e nos dois discursos Sobre a Fortuna e ou a Virtude de Alexandre Magno. Além disso, em outra biografia, a Vida de Eumenes de Cardia (362–316 aEC), que teria sido um general grego e diádoco da Armênia após a morte de Alexandre, Olímpia é mencionada mais quatro vezes por Plutarco. 732

A presença das mulheres na Literatura e na História

Em especial a partir dos relatos de Plutarco, mas também dos demais historiadores que escreveram sobre Alexandre, é possível reconhecer uma Olímpia muito ativa politicamente. Segundo Clàudia Zaragozá Serrano (2013, 133), seu principal objetivo político era estabelecer Alexandre como sucessor ao trono de seu marido. Filipe II chegara a ter sete esposas ao longo de sua vida e Alexandre não era seu primogênito.Antes de Alexandre, Filipe teria tido Arrideo, nascido entre 358 e 357 aEC Apesar de Arrideo não significar uma real ameaça, visto que era considerado portador de alguma doença mental (talvez causada por envenenamento pela própria Olímpia, como deixa a entender Plutarco), todas as demais esposas que sucediam Olímpia eram um risco à sua posição e à posição de seu filho. A mais conhecida rival de Olímpia e esposa de Filipe II foi Cleópatra, a última das sete mulheres casadas com o rei macedônico. Essa Cleópatra era sobrinha de Átalo, um nobre macedônico em ascensão na corte de Filipe II. Por conta de sua ancestralidade macedônica, tanto a nova esposa como o possível filho do casal contariam com maior legitimidade frente à assembleia militar do reino, o que legitimaria o sucessor de Filipe II com Cleópatra. Entretanto Filipe II é morto antes mesmo de ter um filho com Cleópatra e as principais suspeitas pelo assassinato recaíram sobre Olímpia e, consequentemente, sobre Alexandre, problema esse enfrentado por eles e superado. Após a morte de Filipe, Olímpia passa a desempenhar um papel ativo na política macedônica e do Épiro. A mesma, segundo Plutarco (Plutarco. Vida de Alexandre, XXXIX), mantinha correspondências contínuas com o filho, lhe enviando notícias de sua terra natal, lhe alertando de complôs, entre outros assuntos. 733

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Assim, como é possível perceber, Olímpia era uma estrangeira que se casou com o rei da Macedônia e iniciou uma série de batalhas militares e diplomáticas pela hegemonia da Grécia, preparando o campo para as campanhas militares de seu filho Alexandre. Olímpia não só participou ativamente dos jogos políticos enquanto rainha e mãe, como buscou sustentar o seu poder e o de seu filho que lutava a longas distâncias de casa. Mesmo após a morte de Alexandre, Olímpia continuou a ser uma ameaça, tendo sido responsável pela morte de uma quantidade razoável de pessoas durante sua cólera pela morte do filho (Plutarco. Vida de Alexandre, LXXVII. 2–3). Tal personagem, tão emblemática, não deixou de estar presente no imaginário das sociedades modernas. Olímpia continua sendo representada e rememorada na contemporaneidade, além de estar presente em livros e obras literárias, destacamos aqui sua presença em filmes, como em Alexandre Magno, dirigido e escrito por Robert Rossen e lançado em 1956, onde Olímpia foi vivida pela atriz Danielle Darrieux e, mais recentemente, esteve presente no filme Alexandre, dirigido por Oliver Stone e lançado em 2004, quando Olímpia foi interpretada por Angelina Jolie. Fontes históricas ALEXANDRE MAGNO. 1956. Direção de Robert Rossen. EUA/Espanha: United Artists (135 min.). ALEXANDRE. 2004. Direção de Oliver Stone. EUA: Warner Bros (175 min.). PLUTARCO. 2007. Vidas Paralelas VI. Introdução, Traducción y Notas de Jorge Bergua Cavero, Salvador Bueno Morillo e Juan Manuel Guzmán Hermida. Madrid: Editorial Gredos. PLUTARCO. 1989. Obras morales y de costumbres (Moralia) V. Traducción de Mercedes López Salvá. Madrid: Editorial Gredos. 734

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral SERRANO, C. Z. 2013. Las mujeres de Alejandro en el cine. In: ANTELA-BERNÁRDEZ, B; MARTÍN, C. S. (Coords.). La Historia Antigua a través del cine: Arqueología, Historia Antigua y Tradición clásica. Barcelona: Editorial UOC, p. 133–155.

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MULHERES NA POESIA HELÊNICA

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Poetas Helênicas

por Giuliana Ragusa

Não errará quem nomear Safo como a mais célebre poeta da Grécia antiga. Inconteste é sua proeminência entre os poetas gregos e, entre as poetas, ela detém fama imbatível, mal se vendo para além dela outra figura. Sua importância e influência são atestadamente comprovadas, e o mesmo vale para seu renome. Mas ela não está só. Se na era arcaica (c. 800–480 aEC), o mais recuado período do que chamamos «Grécia histórica», Safo é a única poeta mulher de que temos conhecimento e cuja obra sobreviveu às vicissitudes dos séculos, chegando até nós, nas eras seguintes ela ganha a companhia de número expressivo de poetas mulheres que se espalham pela geografia helênica, cujas obras, ainda que no mais das vezes em diminutos corpora hoje se nos apresentem, mostram engajamento na grande tradição poética grega e em variados de seus gêneros, notadamente, na mélica (ou lírica) —a canção para performance ao som da lira, em voz solo ou coral, no segundo caso, com dança e outros instrumentos—, cujo grande momento é a era arcaica, e no epigrama, com seu poemas breves, leves, elegantes, de ampla temática, na métrica dos dísticos elegíacos, cujo grande momento é a era helenística (323 aEC–31 aEC), embora já esteja em cena desde o século V aEC, pelo menos. Naquela época, foi impulsionado antes pela epigrafia do que pela poética, algo raro: ἐπίγραμμα [epígramma] significa «letra sobre uma superfície, inscrição». Precisamente, pelo epitáfio —ἐπιτάφιον [epitáphion]—, a escrita sobre a pedra tumular da sepultura (τάφος [táphos]) que, a partir de c. 560 aEC, passa a

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ser feito no metro até então característico da poesia elegíaca, o dístico elegíaco, em substituição ao hexâmetro próprio à poesia épica, que prevalecia na epigrafia tumular. Voltemos às mulheres que nos verbetes deste capítulo são enfocadas. No grupo, acham-se «fazedoras de canções» (μελοποιοί [melopoioí]), uma das designações mais usadas para referir poetas da mélica, a poesia do μέλος ([mélos], «canção»): Safo, e na era clássica (c. 480–323 aEC), Telesila e Praxila, aqui contempladas, entre outras. Na era clássica tardia e na helenística, sobretudo, situam-se poetas destacadas no epigrama, como Erina, Anite e Mero, personagens destas páginas. Todas acham-se celebradas na poesia epigramática, como em conhecidos versos de Antípatro de Tessalônica (séculos I aEC –I EC), na coletânea Antologia palatina (IX, 26), que as nomeia como nove Musas entre os mortais, junto às mélicas Mirtes e Corina, e a Nóssis, uma das mais reputadas vozes no epigrama. Em distinta posição das demais mulheres abarcadas neste capítulo, porque de tecelã de enigmas, de charadas, está Cleobulina, em fins da era arcaica, com seus desafiadores dísticos elegíacos. E em época distinta, porque bem posterior, a poeta Melino, na era imperial (31 aEC–476 EC), com suas estrofes líricas à moda de Safo. A combinação desses nomes revela uma cartografia plural: a voz sáfica ecoa da ilha de Lesbos (Eólia), nos recuados anos de c. 680–530 aEC; a Argos (Argólida) e a Sícion (golfo de Corinto) conduzem-nos, respectivamente, as vozes de Telesila e de Praxila; a Tegeia (Arcádia, no Peloponeso), a de Anite; a Bizâncio (Ásia Menor), a de Mero. Da ilha de Rodes, da cidade de Lindos, os enigmas de Cleobulina nos desafiam. Talvez da Mitilene em que viveu Safo venha-nos Erina, ou de uma das ilhas Cíclades, a de Tenos. E de Roma ressoa a voz de Melino. 740

A presença das mulheres na Literatura e na História

Há muitos outros nomes de poetas mulheres — de que temos as obras ou não. Mas mesmo quando temos suas composições, seus conjuntos são realmente diminutos em geral, salvo pelos de Safo, de Corina e de Anite. Da primeira, restam pouco mais de 200 canções, mas fragmentárias, à exceção do «Hino a Afrodite» que, ainda assim, referimos como Fragmento 1. Da segunda, cerca de 35 fragmentos, sendo dois mais extensos, embora muito precários, e os demais, de não mais do que 6 versos. Da terceira, vinte e três epigramas. Já com relação a outras poetas, a situação é ainda mais lamentável; alguns exemplos: de Telesila, há não mais do que mínimos fragmentos, um de dois versos, e quatro, de uma única palavra; de Praxila, quatro fragmentos — o maior, com três versos; de Mero, dois epigramas, e dois somente. Quanto às suas vidas, vale para todas a afirmação de que são nebulosas, construídas em testemunhos antigos que, por entenderem a biografia como um gênero de discurso centrado na verossimilhança —e não na factualidade—, e por ouvirem nas composições, sobretudo em 1ª pessoa do singular, as vozes das pessoas empíricas do que são na verdade personae, vozes estilisticamente elaboradas na dimensão da representação, traçam antes anedotas e ficções biográficas do que relatos históricos confiáveis. Conhecer as figuras por detrás das obras é, pois, tarefa praticamente impossível, salvo por dados rarefeitos, contemplados no registro do possível do que da certeza. É o que os olhos que percorrerem estas páginas hão de perceber, em breve; é a realidade dos que se dedicam a estudá-las. O escasso corpus que nos legaram essas mulheres todas aqui referidas, somado aos antigos testemunhos que, no caso de algumas, são tudo o que delas resta, evidenciam, ainda assim, elementos de suas poéticas, o diálogo com as tradições em que se inserem, a habilidade de suas elaborações. Permito-me acrescer alguns aos oferecidos nos verbetes, apenas para 741

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encarecer junto a quem ora lê esta enciclopédia o universo poético que elas nos abrem. Começo por dois exemplares de duas poetas que os verbetes dão a conhecer, Erina e Anite. Da primeira, um epitáfio a Báucis, que se acha na Antologia palatina (VII, 710), à amiga enlaçada pela mors immatura — a morte precoce, que no auge de sua juventude e antes que atingisse a condição de mulher, pelo casamento consolidada, levou-a ao Hades. Eis o epigrama tumular em minha tradução (Ragusa 2020, p. 128), em que a morta fala às estrelas e às Sirenas, divinas cantoras, mulheres-pássaros, bem como à própria urna de suas cinzas: Στᾶλαι καὶ Σειρῆνες ἐμαὶ καὶ πένθιμε κρωσσέ, ὅστις ἔχεις Ἀίδα τὰν ὀλίγαν σποδιάν, τοῖς ἐμὸν ἐρχομένοισι παρ’ ἠρίον εἴπατε χαίρειν, αἴτ’ ἀστοὶ τελέθωντ’ αἴθ’ ἑτεροπτόλιες· χὤτι με νύμφαν εὖσαν ἔχει τάφος, εἴπατε καὶ τό· χὤτι πατήρ μ’ ἐκάλει Βαυκίδα, χὤτι γένος Τηλία, ὡς εἰδῶντι· καὶ ὅττι μοι ἁ συνεταιρὶς Ἤρινν’ ἐν τύμβῳ γράμμ’ ἐχάραξε τόδε. Ó estrelas e Sirenas minhas, e tu, lamentada urna que a Hades encerras minha pouca cinza, dizei «salve» aos vindos à minha tumba, sejam cidadãos, sejam de cidades outras. Dizei-lhes, que saibam! A tumba me detém noiva, e meu nome — meu pai me chama Báucis, e da estirpe de Telia sou. E também que a minha amiga Erina em minha tumba gravou estas palavras.

Como inscrição se anuncia o epigrama no verso final, da lavra de Erina — suas são as palavras (grámma) no túmulo (týmbōi) da amiga, declara Báucis, no derradeiro verso. De Anite, em epigrama da Antologia palatina (VII, 190) o singelo lamento de uma menina a quem Hades impõe a morte de seus dois insetos de estimação — animais desse tipo sendo como não antes trabalhados na estética helenística. Cito minha tradução do epitáfio (Ragusa 2020, 132): 742

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Ἀκρίδι, τᾷ κατ’ ἄρουραν ἀηδόνι, καὶ δρυοκοίτᾳ τέττιγι ξυνὸν τύμβον ἔτευξε Μυρώ, παρθένιον στάξασα κόρα δάκρυ· δισσὰ γὰρ αὐτᾶς παίγνι’ ὁ δυσπειθὴς ᾤχετ’ ἔχων Ἀίδας. Para seu gafanhoto, dos prados o rouxinol, e sua cigarra habitante do carvalho Miro fez tumba comum, a menina, virginais lágrimas derramando. Pois dela os dois bichinhos de brincar tomando, implacável Hades os levou.

De Nóssis, voz de Lócris (Magna Grécia), em atividade no início do século III aEC, os versos amatórios do epigrama 170, incluído na Antologia palatina (V), que ora traduzo, e que trazem érōs e Afrodite, deusa afamada pelo culto em Chipre: Ἅδιον οὐδὲν ἔρωτος· ἃ δ’ ὄλβια, δεύτερα πάντα ἐστίν· ἀπὸ στόματος δ’ ἔπτυσα καὶ τὸ μέλι. τοῦτο λέγει Νοσσίς· τίνα δ’ ἁ Κύπρις οὐκ ἐφίλησεν, οὐκ οἶδεν τήνα γ’, ἄνθεα ποῖα ῥόδα. Mais doce que a paixão, nada! Venturas, em segundo lugar todas! E da boca cuspi também o mel. Isto diz Nóssis: aquela a quem Cípris não amou, não sabe — não! — que flores as rosas são.

De Corina, enfim, poeta de Tânagra —na Beócia, região do continente grego— cuja datação oscila entre a era clássica e a helenística, cito uma canção que ecoa as da mélica coral arcaica, destinadas à performance em festivais cívico-cultuais, ocasião que era uma das principais, junto ao simpósio, para a circulação da poesia na «cultura da canção» prevalente na Grécia de c. 800 a 400 aEC, vale dizer. Em verdade, o trecho inicial de um fragmento da canção perdida (Fr. 655 Page), a, sob os auspícios da Musa Terpsícore («Prazer da dança»), convidar ao canto-conto as mulheres de sua cidade e toda ela (Ragusa 2020, 126–127): 743

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ἐπί με Τερψιχόρα [ καλὰ Ϝεροῖ’ ἀισομ[έναν Ταναγρίδεσσι λε[υκοπέπλυς μέγα δ’ ἐμῆς γέγ[αθε πόλις λιγουροκω[τί]λυ[ς ἐνοπῆς. ... sobre mim, Terpsícore ... belos contos a cantar às tanagrenses de alvos peplos e grandemente se alegra a cidade com minha clarivívida voz.

Nestas e noutras poetas mulheres, o que vemos é o engajamento com as tradições às quais se alinharam e pelas quais se celebrizaram, sem terem se restringido a grupos secretos ou exclusivos, nem tampouco integrado uma tradição separada e segregada, de influência restrita. Se pouco delas sabemos, se pouco delas temos, ainda assim podemos vislumbrar a variedade de metro, matéria e adequação (linguagem, tom, destinação) — a tríade que orienta a composição da poesia antiga, que é em essência poesia de gêneros e de práticas suficientemente constantes para serem reconhecidas e revalidadas a cada poeta que delas se vale, e que a elas se filia para justamente colocar-se na tradição e nela emergir como nome representativo entre seus pares. E os testemunhos que delas nos falam —e algumas, com muita frequência, ou com densas e intricadas construções— afirmam-nas como parte disso que chamamos «poesia grega antiga». Trazê-las à cena, a despeito de seus parcos corpora, é enriquecer o olhar para essa poesia. E é, igualmente, dar justo relevo à produção poética por vozes femininas, que tão bem se fizeram ouvir na Hélade, e que só agora mais amiúde e mais nítidas se fazem ouvir entre nós. 744

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Fontes históricas POETESSES GRECQUES: SAPPHO, CORINNE, ANYTE…1998. Introdução, Tradução e notas de Y. Battistini. Paris: Imprimerie Nationale. POETAE MELICI GRAECI. 1962. Edited by D. L. Page. Oxford: Clarendon. THE GREEK ANTHOLOGY. 1958–1960. 16 vols. Translated by W. R. Patton. Cambridge: Harvard University Press. Obras referências BING, P.; BRUSS, J. S. 2007. Introduction to the study of Hellenistic epigram. In: BING, P.; BRUSS, J. S. (Eds). Brill’s companion to Hellenistic epigram. Leiden: Brill, p. 1–26. BOWMAN, L. 2004. The “women’s tradition” in Greek poetry, Phoenix, vol. 58, n. ½, p. 1–27. BRUSS, J. S. 2010. Epigram. In: CLAUSS, J. J.; CUYPERS, M. (Eds.). A companion to Hellenistic literature. Malden: Wiley-Blackwell, p. 117–135. KLINCK, A. L. 2008. Woman’s song in ancient Greece. Montreal: McGill-Queen’s University Press. RAGUSA, G. 2020. Nove Musas mortais: as poetas da Grécia antiga, Revista do Centro de Pesquisa e Formação – SESC, 11, p. 113–136. RAGUSA, G. 2021. Introdução – Outras poetas. In: RAGUSA, G. (Org., trad.). Safo de Lesbos. Hino a Afrodite e outros poemas. 2ª edição revista, ampliada, atualizada, bilíngue. São Paulo: Editora Hedra, p. 49–57.

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Σαπφώ › Safo

por Giuliana Ragusa

Na sombra dos tempos, perdeu-se para nós Safo, a pessoa empírica que viveu na Mitilene de c. 630–580 aEC, na ilha de Lesbos. Aristocrata na pólis de fortes convulsões políticas em que esteve envolvido Alceu, poeta e guerreiro com frequência ao lado dela retratado na iconografia, Safo teria tido irmãos (Cáraxo, Lárico), filha (Cleis), marido. Absorveu sua mélica esse clima, que por vezes entrevemos, mas sobretudo o característico universo orientalizante da cidade, o que não é de estranhar: a Grécia arcaica (c. 800–480 aEC) de Safo tem como um de seus demarcados uma espécie de «revolução orientalizante» (Burkert 1992), tal é o incremento do comércio com a Ásia Menor, o norte do Egito e o Oriente Próximo, e tal é a influência cultural que essa atividade promoverá. Destacadamente, no caso de Safo, da Lídia, um dos muitos reinos da primeira região referida, proeminente pelo comércio de luxo e pela luxuosidade do modo de vida; várias são as referências ao reino e à sua principal cidade (Sárdis) em sua poesia mélica embebida em refinamento, sofisticação e refinamento em seus elementos, na atmosfera que dela emana, em seus cenários. Aristocrata no mundo feminino, associada a um grupo de moças —logo volto a isso—, foi poeta porque decerto teve formação para tanto, e porque sua habilidade deu-lhe relevo no mundo grego arcaico de cantores. É basicamente o que podemos dizer de Safo, a pessoa. Entre sombras, isso é basicamente, e a custo, o que podemos dizer. Agora, na luminosidade inesgotável que da sombra emana, vemos a obra, a habilidade poética, as imagens que sua linguagem trama, e somos arrebatados pela força e beleza de composições cuja precariedade material não as pode ocultar. Mesmo assim, em

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meio à luz, pontos escuros impedem que a vista alcance tudo o que sua poesia foi, tudo o que concerne à sua produção e circulação, mas não impedem que constate seu impacto nos poetas que sucederam a famosa poeta da Grécia arcaica — e a única de que temos testemunhos e canções. Sim, canções, porque Safo é poeta de um gênero de que a introdução deste capítulo dedicado às poetas ressalta, a mélica. Safo é, literalmente, a «fazedora de canções» (μελοποιός [melopoiós]), numa das mais insistentes nomenclaturas que a identificam nas falas dos antigos. E como tal ela própria se apresenta —ou sua persona, a voz da performer— na Grécia da «cultura da canção» (Herington 1985, 3) que prevalece até c. 400 aEC, na qual a poesia só existe de fato em performance de certo modo, em certo contexto, para certo público. αἴ με τιμίαν ἐπόησαν ἔργα τὰ σφὰ δοῖσαι ... elas (as Musas) me fizeram honrada, suas próprias obras doando-me ...

Afirma a voz da poeta neste Fragmento 32 que Apolônio Díscolo (século II EC) preservou em Sobre os pronomes (144a), o favor das Musas a si. ἄγι δὴ χέλυ δῖα †μοι λέγε† φωνάεσσα †δὲ γίνεο† ... vem, divina lira, fala-me e torna-te dotada de voz ...

A lira, instrumento característico da mélica, é chamada a vir, como ser animado, à poeta que lhe dará voz, neste Fragmento 118, citado no tratado Sobre os tipos de estilo (2.4), de Hermógenes (século II EC). 748

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O cantar e o dançar, não raro designados em verbo que denota essa dupla ação (μέλπεσθαι [mélpesthai]), perpassam os cerca de 200 fragmentos da mélica sáfica, amiúde projetados no âmbito da coralidade que, na recepção moderna da obra da poeta, pouca atenção recebeu, já que necessariamente provocaria rachaduras graves na leitura romântico-biografizante de seus versos, impulsionada não apenas pela voz enfática e frequente do «eu» em alguns fragmentos autonomeado «Safo», mas também pela atmosfera intensamente pessoal, privada e íntima que a poeta é capaz de construir em seu discurso, ela que é entre seus pares «a maior mestra em pseudointimidade» (Scodel 1996, 77). Mas um fragmento que apenas se revelou para nós em 2004 recolocou o mundo da coralidade na mélica de Safo, que não mais pode ser subestimada — antes, deve ser valorizada pela marcada presença em seu universo. Trata-se da «Canção sobre a velhice». A partir do primeiro verso legível, tal canção desenha a coralidade por meio da voz de um «eu» seguramente adulto, a dirigir-se às «crianças» ([paîdes], 1) que, em Safo, são decerto as meninas, moças não-casadas, nomeadas em três termos recorrentes e usados como equivalentes (παῖς [paîs]; κόρη [kórē]; παρθένος [parthénos]). As Musas, a beleza fresca e jovem, som da lira e cantos conjugam-se no que se converte em lamento, diante da perspectiva da velhice impeditiva à continuidade dos trabalhos na coralidade enunciada pelo que está no cerne semântico da palavra χορός [khorós]: a dança; «dançar» ([órkhēsthai], 6) é o que não poderá mais, na velhice, a persona que é claramente a da líder do coro formado pelas jovens às quais se dirige. ἰ]οκ[ό]λπων κάλα δῶρα, παῖδες, τὰ]ν φιλάοιδον λιγύραν χελύνναν ] ποτ’ [ἔ]οντα χρόα γῆρας ἤδη ἐγ]ένοντο τρίχες ἐκ μελαίναν βάρυς δέ μ’ ὀ [θ]ῦμος πεπόηται, γόνα δ’ [ο]ὐ φέροισι, 749

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τὰ δή ποτα λαίψηρ’ ἔον ὄρχησθ’ ἴσα νεβρίοισι. τὰ στεναχίσδω θαμέως ἀλλὰ τί κεν ποείην; ἀγήραον ἄνθρωπον ἔοντ’ οὐ δύνατον γένεσθαι. ... (das Musas) de violáceo colo os belos dons, meninas, ... a melodiosa lira, amante do canto; (tenra) outrora, agora é a pele da velhice, ... os cabelos, de negros (brancos) se tornaram. Pesado se me fez o peito, e os joelhos não me suportam — os que um dia foram lépidos no dançar, quais os da corça. Isso lamento sem cessar, mas que posso fazer? O não-envelhecer não é possível ao ser humano.

Ouvimos, nesse trecho inicial, a «mestra do coro» (χοροδιδάσκαλος [khorodidáskalos]); e devemos abrir os ouvidos para ouvi-la, esta persona que em tantos de seus fragmentos está relacionada a um grupo de meninas que, do ponto de vista das configurações atestadas na antiguidade, inclusive em poeta mélico próximo à datação de Safo, embora em Esparta, Álcman (ativo em c. 620 aEC), pode ser pensado com consistência e respaldo como a associação coral de moças, de jovens na fase transicional entre a infância e a vida adulta à qual se encaminham, adentrando-a pelo casamento selado no enlace sexual dos noivos – ou seja, pela participação no mundo do sexo. A preparação para esta outra fase e os papéis de esposa e mãe que inseriam a mulher (γυνή [gynḗ]) na sociedade dava-se naquelas associações, daquele tipo que se projeta nos versos de Safo, inclusive do ponto de vista do recorte temático de sua poesia que se faz segundo as práticas tradicionais do mainstream em que ela se insere, e que ela influenciou. O casamento, o (homo)erotismo, vestes e adornos e o conhecimento dos modos refinados da feminilidade na moda, o passado mítico, os valores ético-morais, o rito e a festa, o ir e vir de jovens moças, 750

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o convívio estreito do grupo feminino, o cantar e o dançar e o tocar instrumentos cordófonos: tudo isso é matéria da mélica sáfica, e permeia seus versos, e dá ocasião de performance ao seu canto-dança — as cerimônias de boda, os festivais públicos cívico-cultuais. As dimensões entrelaçadas à mélica de Safo na forma de sua existência viva são hoje irrecuperáveis. Em verdade, já o eram aos antigos que a ela chegaram como quem chega ao texto, à poesia que se traduz em palavras metrificadas. E metros há na sua obra! Ao ser editada e copiada na Biblioteca de Alexandria, nos séculos III–II aEC, na era helenística em que prevalece a «cultura da escrita», a poeta recebeu nove livros de compilação de sua poesia, e o critério para organizá-los foi justamente o metro que, quantitativo —porque definido pelo tempo de pronúncia das sílabas—, dá-nos boa ideia da densidade rítmica de suas canções, como pode revelar a leitura escandida em voz alta de seus versos. Mas se para tanto, para ouvir o lado de evento da mélica de Safo —e da de outros poetas do gênero—, é preciso uma chave, o grego antigo, para apreender o que chamamos artistry —a qualidade artística—, basta ler uma tradução —mesmo uma tradução—, como a do singelo e altamente imagético Fragmento 34, preservado em comentário de Eustácio (bispo de Tessalônica, século XII EC) à Ilíada (VIII. 555), de Homero (c. 750 aEC): ἄστερες μὲν ἀμφὶ κάλαν σελάνναν ἂψ ἀπυκρύπτοισι φάεννον εἶδος, ὄπποτα πλήθοισα μάλιστα λάμπη γᾶν * * * ἀργυρία ... e as estrelas, em volta da bela lua. de novo ocultam sua luzidia forma, quando plena ao máximo ilumina a terra ... ... argêntea 751

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Fontes históricas RAGUSA, G. 2021. (Org., trad.). Safo de Lesbos. Hino a Afrodite e outros poemas. 2ª edição revista, ampliada, atualizada, bilíngue. São Paulo: Editora Hedra. VOIGT, E.-M. 1971. Sappho et Alcaeus: fragmenta. Athenaeu– Polak & Van Gennep: Amsterdam. Bibliografia geral BOWMAN, L. 2004. The “women’s tradition” in Greek poetry, Phoenix, vol. 58, n. ½, p. 1–27. BURKERT, W. 1992. The Orientalizing revolution. Near Eastern influence on Greek culture in the early archaic age. Translated by M. E. Pinder and W. Burkert. Cambridge: Harvard University Press. HERINGTON, J. 1985. Poetry into drama. Early tragedy and the Greek poetic tradition. Berkeley: University of California Press. RAGUSA, G. 2019. A coralidade e o mundo das parthénoi na poesia mélica de Safo, Aletria: Revista de Estudos de Literatura (UFMG), 29(4), p. 85–111 RAGUSA, G. 2021. Introdução – Outras poetas. In: RAGUSA, G. (Org., trad.). Safo de Lesbos. Hino a Afrodite e outros poemas. 2ª edição revista, ampliada, atualizada, bilíngue. São Paulo: Editora Hedra, p. 49–57. SCODEL, R. 1996. Self-correction, spontaneity, and orality in archaic poetry. In: WORTHINGTON, I. (Ed.). Voice into text. Orality and literacy in ancient Greece. Leiden: Brill, p. 59–79.

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Κλεοβουλίνη › Cleobulina

por Isabella Demarchi

Estima-se que Cleobulina esteve em atividade no século VI aEC, na cidade de Lindos, na ilha de Rodes. Contudo, a data de seu nascimento e de sua morte são desconhecidas. Sabe-se, porém, que ela era filha de Cleóbulo, um dos Sete Sábios da Grécia e governante de Lindos, e que, por isso, teria recebido uma educação diferenciada, que lhe conferiu destaque e a equiparou a filósofas pitagóricas e a poetas como Safo, Telesila e Corina. À Cleobulina atribui-se a criação de enigmas (αἴνιγμα [aínigma]), mas, por utilizar o hexâmetro dactílico, ela foi considerada uma poeta e, mesmo que muito pouco tenha restado de sua composição, apenas três enigmas, o teor dos fragmentos colocam-na na posição de filósofa. Não obstante, supõe-se, ainda, que Cleobulina teria sido uma personagem criada para personificar uma mulher compositora de charadas, como especula Plant (2004, 29). O nome «Cleobulina» consolidou-se por causa de seu pai, segundo Plutarco, historiador do séc. I EC, a mais importante fonte que temos sobre ela. Em sua obra Banquete dos Sete Sábios (148c), Plutarco afirma que o verdadeiro nome de Cleobulina era Eumétis (do grego Eὔμητις [Eúmētis], «a de nobre astúcia»), nome que evidencia a habilidade da poeta com as palavras. Plutarco (Banquete dos Sete Sábios, 148c–e) também é o responsável por compor a imagem de Cleobulina através de vozes de outras figuras ali presentes, como Tales e Esopo, pois a moça em momento algum fala; é Esopo quem revela dois de seus enigmas (Banquete dos Sete Sábios, 150e; 154b). Os convidados do banquete a admiram por sua astúcia e sabedoria, e Nilóxeno, um destes convidados,

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afirma que seus enigmas chegaram até o Egito. Tales ressalta, ainda, que além de grande sagacidade, Cleobulina possuía sensibilidade política, característica que auxiliava seu pai a ser um líder mais amistoso (φιλάνθρωπον [philánthrōpon]) e democrático (δημοτικώτερον [dēmotikṓteron]). Ademais, a ela também é conferido o dom da hospitalidade, uma vez que recebe os convidados do banquete e os embeleza (ela é apresentada trançando os cabelos de Anacársis, um sábio cita). Apesar de O Banquete dos Sete Sábios ser uma obra anacrônica e fictícia, visto que apresenta personagens do século VI aEC ela permite que conheçamos, indiretamente, quem foi Cleobulina e como ela era vista. Entretanto, as qualidades que encontramos em Plutarco contrapõem-se com as referências que temos da poeta em duas comédias, uma de Cratino e outra de Aléxis. Infelizmente, estas composições não sobreviveram na íntegra. A peça de Cratino (Atenas, sécs. VI–V aEC), por um lado, pode ter sido performada entre os anos de 420–435 aEC, e, por seu título Cleobulinas, supõe-se que o coro teria sido composto por mulheres seguidoras da poeta, ou por mulheres que, como ela, também criavam enigmas. A partir dos três fragmentos que restaram desta comédia, seria possível concluir que as personagens recitavam charadas, com o intuito de parodiar Cleobulina. Além disso, o conteúdo erótico de algumas destas charadas acusam um comportamento obsceno da parte da poeta, e desdenham de sua capacidade intelectual. Da comédia de Aléxis de Túrios (sécs. IV–III aEC), intitulada Cleobulina, nada sabemos, a não ser pela menção a uma cortesã. Embora seja impossível restabelecer o conteúdo da peça, a presença de tal figura feminina poderia sugerir que Cleobulina também fosse vista como uma mulher indecorosa, reforçando, possivelmente, a caricatura da poeta em Cratino, conforme discutido 754

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por Gardella e Juliá (2018, 73–5). Também Ateneu, em O Banquete dos Eruditos (XIII, 50. 11), comenta sobre oradores e poetas que abordam as cortesãs, e cita o caso de Aléxis. A despeito de tais conjecturas, a popularidade de Cleobulina era notável e estendeu-se a séculos posteriores. Jerônimo (século IV EC), em sua tradução latina das Crônicas do bispo Eusébio de Cesareia (séculos III–IV EC), afirma que a poeta era célebre na época da octogésima segunda Olimpíada, ao lado de outros poetas consagrados, como Baquílides e Praxila (Hieronymi Chronicon, Ol. 82). No que diz respeito ao trabalho poético (ou filosófico) de Cleobulina, vale comentar que os enigmas eram inerentes à sabedoria grega (como é o caso da famosa Esfinge e dos oráculos de previsões obscuras, breves exemplos). Eles apareciam em diversos contextos para fins pedagógicos, filosóficos ou para entretenimento em nível de competição (ἀγών [ágōn]), como discutem Gardella e Juliá (2018, 49–68). Observa-se em Ateneu (Banquete dos Eruditos) e em Plutarco (O Banquete dos Sete Sábios) que estes desafios mentais eram parte das atividades que se davam após os banquetes dos simpósios. A não resolução da charada implicava, inclusive, em castigos ou prendas. O enigma mais célebre de Cleobulina aborda a aplicação de ventosas para uso medicinal, e é retomado por Aristóteles na Poética (1458a, 29–30) e na Retórica (1405b1), sendo as ventosas o bronze, pois eram dele feitas, e o médico responsável por aplicar tal instrumento comparado ao trabalho de um ferreiro que solda o metal. Apresento-o, em minha tradução, a partir do texto grego disponível no banco de dados digital do TLG (Thesaurus Linguae Graecae): ἄνδρ’ εἶδον πυρὶ χαλκὸν ἐπ’ ἀνέρι κολλήσαντα οὕτω συγκόλλως ὥστε σύναιμα ποιεῖν. 755

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Eu vi um homem soldar o bronze com fogo sobre [outro] homem Soldando, deste modo, para o sangue unir.

Outro enigma não menos notável refere-se ao paradoxo de um ladrão que rouba com justiça. Seria possível pensar que a solução do quebra-cabeça reside em um homem que rouba e engana por motivos nobres. Contudo, o raciocínio estende-se para os artistas, como poetas, pintores e escultores, por dedicarem-se à imitação (μίμησις [mímēsis]) da realidade (Gardella; Juliá, 2018). ἄνδρ’ εἶδον κλέπτοντα καὶ ἐξαπατῶντα βιαίως,

καὶ τὸ βίαι ῥέξαι τοῦτο δικαιότατον.

Eu vi um homem roubando e enganando violentamente, e fazer isso com violência é o mais justo.

A maior incógnita que Cleobulina traz consigo, no entanto, não é a da resolução de seus jogos de palavras, mas a da natureza de sua própria figura. Ora personagem de Plutarco e de tragediógrafos, ora poetisa e filósofa, há muito sobre sua vida e seu trabalho ainda por ser desvendado. Fontes históricas ARISTÓTELES. 2015. Poética. Tradução, introdução e notas de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34. ARISTÓTELES. 2011. Retórica. Tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro. ATHENAEUS. 1887–1890. Athenaei Naucratitae deipnosophistarum libri xv, 3 vols. Ed. Georgius Kaibel. Leipzig: Teubner. EUSEBIUS CAESARIENSIS. 1956. Eusebius Caesariensis Werke, Band 7: Die Chronik Des Hieronymus/Hieronymi Chronicon. Ed. Rudolf Helm. Leipzig: Teubner. 756

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KRATINOS. 2017. Fragmenta Comica: Kratinos, Einleitung und Testimonia. Band 3.1. Ed. Francesco Bianchi. Heidelberg: Verlag Antike. PLUTARCO. 2008. Obras Morais: O Banquete dos Sete Sábios. Tradução, introdução e notas de Delfim F. Leão. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. Bibliografia geral GARDELLA, M.; JULIÁ, V. 2018. El Enigma de Cleobulina. Buenos Aires: Teseo. PLANT, I. M. 2004. Paxilla (mid–5th century B.C.). In: PLANT, I. M. (Ed.). Women Writers of Ancient Greece and Rome: an anthology. London: Equinox Publishing, p. 29–32.

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Μύρτις › Mírtis

por Rafael Brunhara

De Mírtis (também vernaculizado Mirtes), poeta cuja atuação teria ocorrido em fins do século VI aEC, pouco se sabe: não nos restou nenhum de seus versos e de sua biografia há apenas testemunhos muito tardios. Entretanto, um epigrama da Antologia Grega atribuído a Antípatro da Tessalônica (séc. II aEC) a coloca como uma das mulheres que compunham o cânone das nove poetas que mereciam ser lidas e estudadas. Ele a chama de «Mírtis doce de ouvir» (γλυκυαχέα [glukuakhéa]) e diz que seu escritos, assim como os das outras oito, seriam «eternos». De fato, os parcos testemunhos atestam uma larga reputação para Mírtis. A enciclopédia bizantina Suda afirma que Píndaro e Corina teriam sido seus discípulos (Κ 2087; Π 1617), o que tornaria possível a atuação de Mírtis em um período mais ou menos próximo da 65ª Olímpiada (520–516 aEC), época atribuída ao nascimento de Píndaro. A relação entre estes três poetas está presente no testemunho mais substancial a respeito de Mírtis, um fragmento de Corina que a critica por ter ousado competir com Píndaro, sendo uma mulher (Fr.664a): μέμφομη δὲ κὴ λιγουρὰν Μουρτίδ’ ἱώνγα, ὅτι βανὰ φοῦσ’ ἔβα Πινδάροιο ποτ’ ἔριν e eu mesma repreendo Mírtis de voz clara que nascida mulher entrou em rivalidade com Píndaro (Tradução de Clara Sperb)

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Neste fragmento, Mírtis é chamada «a de voz clara» (λιγουράν [ligourán]), adjetivo que define a qualidade límpida e cristalina de seu canto. Pode-se pensar, considerando este testemunho e o epigrama de Antípatro, que Mírtis, assim como Píndaro e Corina, produzira poemas mélicos —palavras metrificadas acompanhadas de canção— e que era tida em mais alta conta pelos antigos. Veja-se, por exemplo, o depoimento de Taciano, um autor cristão, que ainda no século II EC podia atestar a fama de Mírtis: na sua obra Discurso Contra os Gregos (33), ao exaltar as mulheres cristãs em relação às gregas do passado, o autor critica um escultor de nome Besco, que fizera uma estátua de Mírtis — assim como outros que fizeram de demais poetas como Safo, Mero, Praxila e Erina. Portanto, a relação de Mírtis com Píndaro pode ser pensada não em termos biográficos, mas também como um indício da sua grande reputação na Antiguidade, uma vez que era prática comum entre os historiadores antigos extrair a biografia de um poeta a partir de sua própria obra, que não necessariamente continha elementos de sua vida, mas manifestava um Eu poético cuidadosamente urdido conforme o contexto e as convenções poéticas vigentes. Isso torna plausível a ideia de que a rivalidade entre Mírtis e Píndaro se tenha criado a partir de uma alusão feita a ele nos poemas da própria Mírtis, que poderia ter criticado o vate tebano em seus versos. Desse modo, o exíguo fragmento de Corina mal pode atestar que Mírtis seria contemporânea de Píndaro, mas antes revela a qualidade de sua poesia hoje perdida, capaz de ombrear-se com aquele que era considerado o maior dos poetas mélicos (Quintiliano, Instituições Oratórias, 10.1.161). Quanto ao estilo de Mírtis, Bowman (2004, p. 20) sugere a possibilidade de um «estilo feminino» e que o fragmento de Corina poderia ser programático, pois ela ou procurava emular ou criar tal estilo, tendo em vista definir sua própria arte em oposição à sua predecessora. 760

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Do único fragmento da obra de Mírtis – um resumo em prosa feito por Plutarco (Questões Gregas, II. 40 = Fr. 716 P.M.G.) — reconhecemos alguma similaridade com Corina. Assim como ocorre na poesia dela, a citação de Plutarco nos mostra que parecia haver um forte presença do mito em sua poesia, sobretudo de mitos epicóricos da região da Beócia. É possível, então, que a poesia de Mírtis circulasse no mesmo contexto de performance de sua dita discípula: cerimônias ou festivais religiosos beócios locais. No excerto conservado, Plutarco nos informa que Mírtis seria originária de Antédon, uma pequena cidade costeira no norte da Beócia —o que faria dela a mais antiga poeta beócia— e que um poema seu contava um mito etiológico da região, explicando porque a presença de mulheres era proibida no templo e no bosque sagrado de Eunosto, um herói local de Tânagra, filho do rei beócio Elieu. O poema falaria de Ocna, jovem que havia se apaixonado pelo primo Eunosto; mas ele, tão belo e justo quanto casto e austero, a teria rejeitado. Revoltada, a jovem mente aos irmãos que Eunosto teria tentado violentá-la e os exorta a assassiná-lo. Os irmãos então armam uma emboscada para Eunosto e o matam, mas, posteriormente, Ocna se arrepende do que fez e revela seu crime ao rei Elieu e ao pai. Ela é então expulsa da cidade, juntamente com os irmãos, e se mata lançando-se de um penhasco. Segundo Plutarco, os habitantes de Tânagra creem que, quando terremotos ou outras intempéries afetavam a cidade, era porque alguma mulher entrara secretamente nos domínios sagrados de Eunosto. Como se vê, pelo forte componente mítico, é possível que os poemas de Mírtis, Corina e Píndaro tivessem semelhanças de temas, gênero e até mesmo métrica. Contudo, apesar da crença de Antípatro de que os escritos dela seriam eternos, só podemos especular sobre eles. 761

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Fontes históricas PLUTARCH. 1928. Moralia. Volume IV. Edited and translated by F. C. Bebbet. Cambridge: Harvard University Press. POETAE MELICI GRAECI. 1962. Edited by D. Page. Oxford: Clarendon Press. QUINTILIAN. 2002. The orator’s education. Volume IV. Edited and transletad by D. Russel Cambridge: Harvard University Press. SUIDAE LEXICON. 1928. Edited by A Adler. Leipzig: Teubner. TATIANI ORATIO AD GRAECOS. 1888. Edited by Edward Schwarz. Leipzig: J.C. Hinrichs. Bibliografia geral BOWMAN, L. 2004. “The ‘Women’s Tradition” in Greek Poetry, Phoenix, vol. 58, n. 1/2, p.1–27.

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Κόριννα › Corina

por Clara M. Sperb

Corina de Tânagra foi uma poetisa sobre a qual não há muitas informações certas. Pelos seus fragmentos, sabemos que está ligada à região da Beócia, em particular à cidade de Tânagra. Esta localização é importante para compreender parte dos conteúdos de seus poemas, uma vez que neles são retratados mitos com personagens locais como Órion, e outras personagens são personificações de locais importantes na região, como o monte Hélicon. Sua datação permanece uma incógnita, havendo duas possibilidades: uma no século V aEC, e outra no século III aEC. A primeira data é sustentada pela tradição, por autores como Eliano (V. H., 13.25), Pausânias (9. 22. 3) e Plutarco (De Gl., 347f), e pela enciclopédia Suda (κ2087, ed. Adler). Nesses textos, Corina é contemporânea de Píndaro, tendo sido sua rival ou, possivelmente, professora. Pausânias (9. 22. 3) menciona uma pintura em um ginásio que retrata quando ela venceu do poeta durante uma competição em Tebas, e Eliano (V. H., 13.25) reporta que ela teria vencido cinco vezes em Tebas, e Píndaro teria, posteriormente, chamado-a de «porca» em um de seus poemas (Píndaro, Ol., 6.90). Plutarco, em A Glória de Atenas (347f), escreve que Corina teria aconselhado Píndaro a como escrever poemas usando mitos, depois que ele lhe mostrou um dos seus. Segundo o historiador, o poeta teria, depois de usar seu conselho, mostrado-lhe um poema em que misturava vários mitos, ao que Corina riu, e disse que ele deveria «semear com a mão, e não com o saco», ou seja, moderar no uso de relatos míticos e não usar muitas em uma mesma composição.

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A segunda data é proposta por alguns estudiosos como West (1990) e Segal (1997), que procuram usar os próprios fragmentos e suas características para chegar a essa datação. Segal (1997) faz uma análise de parte do fragmento 654a col. i, na qual mostra que uma importante evidência para Corina estar situada no século III aEC é o sistema jurídico a que ela faz referência, ao narrar a forma de votação dos deuses (Segal 1997, 316). Já um dos principais argumentos de West faz menção ao fragmento 655, que parece ter sido usado como introdutório para os outros que se seguiriam (West 1990, 553). De acordo com a entrada na Suda (κ2087, ed. Adler), seus pais se chamavam Aquelodoro e Procrácia, e ela poderia ser tanto de Tebas quanto de Tânagra. Apesar de três testemunhos mencionarem Tebas, Tânagra é citada em um de seus fragmentos (fragmento 655, v. 3). A enciclopédia também menciona que ela teria sido aluna da poetisa Mirtes e que teria composto cinco livros, epigramas e nomos líricos. O papiro mais antigo encontrado, contendo seus poemas, o Papiro de Berlim, data do século III aEC. Nele, encontram-se dois dos fragmentos mais longos da poetisa, o fr. 654a col. i e o fr. 654a col. iii. Além de serem os maiores, os fragmentos são o melhor exemplo do que poderiam ter sido os «nomos» que a poetisa teria composto, de acordo com a Suda. As composições apresentam narrativas míticas, retratando, de modo personificado, lugares da Beócia. Também, tanto esses dois fragmentos como os outros que sobreviveram se encontram em dialeto beócio, sendo a obra de Corina um dos únicos exemplos que se possui de textos em tal dialeto. O primeiro fragmento (fr. 654a col. i) apresenta uma cena mítica de uma competição musical entre os montes Hélicon e Citéron. A parte legível do papiro (v. 12–34) inicia-se a partir do final do que seria a música cantada por Citéron, vencedor da disputa. O fragmento começa com uma cena de 764

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Reia escondendo Zeus de Crono, seguida da votação pelos deuses e da coroação de Citéron, finalizando com a raiva de Hélicon. O segundo fragmento do Papiro de Berlim (fr. 654a col. iii, v. 1–40) conta o mito de como as nove filhas de Asopo, o deus rio, foram raptadas pelos deuses Zeus, Poseidon, Hermes e Apolo. O mito é narrado pelo profeta Acréfen, que relata ao deus rio o que aconteceu com as suas filhas. No poema, ele ainda menciona a sua genealogia, que o liga ao herói Órion, cultuado na Beócia e que teria tido cinquenta filhos. Os fragmentos mostram bem a forma como Corina modifica a tradição, apresentando narrativas distintas daquelas encontradas em fontes como, por exemplo, a Teogonia de Hesíodo, ou na Biblioteca, de Apolodoro. Não se sabe ao certo porque ela privilegiava versões menos conhecidas dos mitos, mas parecia ser algo frequente em sua produção, que talvez revelasse tradições locais: outro exemplo está em Plutarco em sua obra De Musica, na qual afirma que, de acordo com Corina, Apolo teria aprendido com Atena a tocar o aulo (Plut. Mus., 14. 1136b). Outros fragmentos de Corina sobreviveram de forma indireta em gramáticas e outros livros que tratam do dialeto beócio, sendo que não há nenhum poema completo. Muitos desses livros citam obras de Corina das quais não sobreviveram nada, só o seu nome. Sabe-se, por exemplo, que um de seus poemas se chamava Os Sete Contra Tebas e outro Iolau, conforme dois trechos de Apolônio Díscolo (Pron., 119b e 113b, respectivamente). Seria de sua autoria também uma obra chamada Narrativas, em cujo livro 1, segundo Antonino Liberal (Anton. Lib. 25), ela falaria das filhas de Órion, Metíoque e Mnipe. Dessas menções, é possível notar que a maioria das obras de Corina tratavam de mitos, principalmente aqueles que se passam na ou retratam figuras da Beócia. 765

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Fontes históricas ANTONINO LIBERAL. 1992. In: CAMPBELL, D. A. Greek Lyric IV: Bacchylides, Corinna, and Others. Loeb Classical Library, v. 461. APOLÔNIO DÍSCOLO. 1992. In: CAMPBELL, D. A. Greek Lyric IV: Bacchylides, Corinna, and Others. Loeb Classical Library, v. 461. ELIANO. 1992. In: CAMPBELL, D. A. Greek Lyric IV: Bacchylides, Corinna, and Others. Loeb Classical Library, v. 461. PAUSÂNIAS. 1992. In: CAMPBELL, D. A. Greek Lyric IV: Bacchylides, Corinna, and Others. Loeb Classical Library, v. 461. PLUTARCO. 1992. In: CAMPBELL, D. A. Greek Lyric IV: Bacchylides, Corinna, and Others. Loeb Classical Library, v. 461. Bibliografia geral CAMPBELL, D. A. 1992. Greek Lyric IV: Bacchylides, Corinna, and Others. Loeb Classical Library, v. 461. GERBER, D. E. (Ed.). 1997. Corinna. A companion to the Greek lyric poets, Leiden/ New York/ Köln: Brill. PAGE, D. L. et al. (Ed.). 1953. Corinna. Supplementary paper nº 6, Society for the promotion of Hellenic studies. SEGAL, C. 1997. Pebbles in Golden Urns: The Date and Style of Corinna, Aglaia: The Poetry of Alcman, Sappho, Pindar, Bacchylides, and Corinna. Rowman & Littlefield Publishers, p. 315–326. SKINNER, M. B. 1983. Corinna of Tanagra and her Audience, Tulsa Studies in Women’s Literature, vol. 2, n. 1, p. 9–20. WEST, M. L. 1990. Dating Corinna, The Classical Quarterly, Cambridge University Press, vol. 40, n. 2, p. 553–557.

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Πράξιλλα › Praxila

por Isabella Demarchi

Praxila foi uma poeta lírica contemporânea a Telesila (Argos), em atividade na metade do séc. V aEC, na cidade de Sicião, no Golfo Coríntio. Apenas oito fragmentos de seu corpus chegaram até nossos dias, porém é possível notar, a partir deles, seu versátil trabalho poético. Ela teria se destacado sobretudo pela composição de poemas convivais (σκόλια [skólia]), para performance em simpósios, como apresentado por Ateneu, gramático dos sécs. II–III EC, em seu Banquete dos Eruditos (XV, 49. 10). Sua obra, não obstante, também compreendia hinos a deuses, ditirambos, segundo Plant (2004, 38), e versões mitológicas próprias, como apresentado por Pausânias (3. 13. 5). Atribui-se à Praxila, ainda, um metro dactílico bastante particular que pode ter sido criado ou apenas disseminado por ela, nomeado Πραξίλλειον [Praxílleion], conforme discutido por Heféstion, gramático do séc. II EC, em seu manual sobre os diferentes metros na poesia (Ench. 7. 8). A poeta estava inserida na «cultura da canção», período que compreendeu a Grécia Arcaica (c. 800–480 aEC) e Clássica (c. 480–323 aEC), quando a poesia era atrelada à música e só existia enquanto performance, diante de uma audiência, isto é, em um contexto puramente oral. A poesia era, sobretudo, o meio pelo qual os indivíduos construíam-se socialmente e se educavam. Neste contexto, muitas vozes se destacaram, mas poucas resistiram até nossos dias. Hoje temos acesso a um corpus majoritariamente masculino, mas tal fato não deve anular a importância de figuras poéticas femininas, dentre as quais, inclusive, prevalece o nome de Safo. Considerando que também estas mulheres foram recebidas, comentadas

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e aclamadas por seus contemporâneos e pela posteridade, é possível concluir que elas eram, a despeito de seu gênero, parte da mesma tradição poética que seus pares masculinos, e que eram igualmente valorizadas. Do mesmo modo, o teor de suas composições estendia-se para além do universo feminino (Ragusa 2020, 113–136). No século VI aEC, Sicião teria vivido um período bastante próspero durante o governo benevolente de Clístenes, tirano da cidade, que teria incentivado artistas locais. Tal prosperidade estendeu-se até o século IV com o renomado escultor Lísipo. Ele teria, inclusive, feito uma estátua de bronze de Praxila, o que atesta a popularidade da poeta não apenas em seu próprio tempo, mas em séculos posteriores (Snyder 1989, 54). Além disso, foi possível identificar as primeiras quatro palavras de um de seus poemas, o fr. 754, em um vaso datado de 450 AEC. Nele, lê-se: ΟΔΙΑΤΕΣΘΥΡΙΔΟΣ, conforme apresentado por Halporn (1983, 499). Eis o fragmento na íntegra, na edição de Page (1962) e em tradução minha. ὦ διὰ τῶν θυρίδων καλὸν ἐμβλέποισα παρθένε τὰν κεφαλὰν τὰ δ’ ἔνερθε νύμφα ...ó tu que olhas belamente pelas janelas virgem a cabeça, mas embaixo noiva...

Outra fonte que confirma a fama de Praxila é o epigrama 26 de Antípatro de Tessalônica (sécs. I aEC a I EC), do livro IX da Antologia Palatina (AP), onde ele a nomeia, primeira na lista, uma das nove vozes imortais e femininas da poesia lírica grega. No que tange à recepção da poetisa em outros gêneros poéticos, há duas referências nas comédias do ateniense Aristófanes, uma delas em As Vespas de 422 aEC (vv. 1236–7) e a outra em Só para mulheres (ou Tesmoforiantes) de 411 aEC 768

A presença das mulheres na Literatura e na História

(vv. 528–530). Ao aludir aos versos de Praxila, Aristófanes sugere que ela teria reputação o suficiente para que seu público também a reconhecesse. Entretanto, recepções mais tardias sugerem que suas composições também foram alvo de críticas negativas. Uma menção à escultura da poeta feita por Lísipo encontra-se na obra de Taciano, escritor assírio e cristão do século II EC Em sua obra Aos Gregos (33. 1. 8), Taciano critica que Praxila tenha uma estátua, pois ela não teria escrito «nada de útil» em sua poesia. Zenóbio (Provérbios, 4, 21), retórico grego em atividade também no mesmo período, busca elucidar o provérbio «mais tolo que o Adônis de Praxila» (ἡλιθιώτερος τοῦ Πραξίλλης Ἀδώνιδος [helithiṓteros toû Praxíllēs Adṓnidos]), que teria se originado a partir do fr.757, Hino a Adônis, ao descrever uma fala de Adônis, recém-chegado ao Hades, que lista as coisas do mundo mortal, caras a si, que estaria deixando para trás. Zenóbio sugere que não seria razoável comparar o sol, as estrelas e a lua, figuras elevadas, com meros frutos, como o jovem faz. Embora seja possível estabelecer um jogo de palavras entre pepino (σίκυος [síkyos]) e a cidade natal da poeta (Σικυών [Sikyṓn]) e notar a fácil transição entre o mundo celeste e o mundo mortal (fatores que corroboram para o trabalho poético consciente de Praxila), o fragmento parece ter-se imortalizado por causa do provérbio e de sua carga pejorativa, conforme discutido por Hunter (2010, 79–84). Vide o fragmento (Page 1962), em minha tradução: κάλλιστον μὲν ἐγὼ λείπω φάος ἠελίοιο, δεύτερον ἄστρα φαεινὰ σεληναίης τε πρόσωπον ἠδὲ καὶ ὡραίους σικύους καὶ μῆλα καὶ ὄγχνας· De mais belo eu deixo a luz do sol, depois, as brilhantes estrelas e a face da lua também os pepinos maduros, maçãs e peras. 769

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Muito também se questiona sobre a posição da poeta na sociedade, pois alguns estudiosos buscam compreender como uma mulher de elevada posição poderia transitar em ambientes especialmente masculinos, como os simpósios, por exemplo, mas é impossível chegar a uma conclusão. O fato é apenas um: Praxila consolidou-se na tradição de sua época e estendeu sua popularidade para gerações a séculos adiante. O que sua poesia alcançou e despertou na recepção é, sem dúvidas, notável. Fontes históricas ARISTOPHANES. 2007. Aristophanis Fabulae, 2 vols. Edited by N. G. Wilson. Oxford: Oxford University Press. ATHENAEUS. 1887–1890. Athenaei Naucratitae deipnosophistarum libri xv, 3 vols. Edited by Georgius Kaibel. Leipzig: Teubner. ANTHOLOGIA GRAECA. 1965–1968. Edited by H. Beckby. 4 vols., 2ª ed. Munich: Heimeran. HEPHAESTION. 1906. Hephaestionis enchiridion cum commentariis veteribus. Edited by Max Consbruch. Leipzig: Teubner. PAUSANIAS. 1918. Description of Greece. 5 vols. Translated by W. H. S. Jones. Loeb Classical Library 93. Cambridge (MA): Harvard University Press. TATIANUS. 1914. Oratio ad Graecos. In: GOODSPEED, E. J. (Ed.). Die ältesten Apologeten. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, pp. 268–305. ZENOBIUS. 1839. Zenobiou Epitome. In: VON LEUTSCH, E. L.;SCHNEIDEWIN, F. G. (Eds.). Corpus paroemiographorum Graecorum, vol. 1. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, p. 1–176. 770

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral HALPORN, J. W. 1983. A Note on Praxilla Fr. 754 PMG, Hermes, vol. 111. p. 499–500. HUNTER, J. 2010. Praxilla’s List, Arion: A Journal of Humanities and the Classics, vol. 18, n. 1, p. 79–84. PAGE, D. L. 1962. Poetae Melici Graeci: Alcmanis, Stesichori, Ibyci.... Oxford: Clarendon Press. PLANT, I. M. 2004. Paxilla (mid–5th century B.C.). In: PLANT, I. M. (Ed.). Women Writers of Ancient Greece and Rome: an anthology. London: Equinox Publishing, p. 38–40. SNYDER, J. M. 1989. Women Poets of the Fifth Century – Myrtis, Korinna, Praxilla, and Telesilla. In: SNYDER, J. M. The Women and The Lyre: Women Writers in Classical Greece and Rome. Bristol: Bristol Classical Press, p. 38–63. RAGUSA, G. 2020. Nove musas mortais: as poetas da Grécia Antiga, Revista do Centro de Pesquisa e Formação, n. 11, p. 113–136.

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Τελέσιλλα › Telesila

por Thais Rocha Carvalho

Nativa de Argos e ativa no século V aEC, Telesila foi uma poeta mélica conhecida por seu metro e sua liderança política e militar em Argos. Menções à ela podem ser encontradas em três principais fontes: Antípatro de Tessalônica, Pausânias e Plutarco. A menção à poeta que deve ser primeiro apresentada é a do epigrama (Antologia Palatina, 9. 26) de Antípatro de Tessalônica (c. I aEC–I EC), que lista nove poetas gregas mulheres, no qual é chamada de «Telesila mui gloriosa» (em grego: Telésillan agakléa), portanto, fazendo uso da palavra kléos, utilizada em grego, especialmente, para se referir à glória obtida pelos guerreiros em batalha. Passando a Pausânias (geógrafo e viajante grego, século II EC), há duas menções a Telesila em sua obra Descrição da Grécia, ambas no livro 2. Enquanto a segunda (2. 35. 2) apenas menciona o nome da poeta, referindo-se possivelmente a um de seus poemas que teria por matéria Apolo e um de seus filhos; a primeira (2. 20. 8–10), em parte dedicada à cidade de Argos, narra um suposto episódio da vida de Telesila. Ele começa descrevendo uma estela, posicionada à frente de um santuário dedicado a Afrodite na cidade, na qual haveria uma representação de Telesila, com livros espalhados a seus pés e, em sua mão, um elmo, prestes a ser colocado na cabeça. Pausânias afirma, então, que Telesila era renomada entre as mulheres, em especial por sua poesia e passa a narrar um episódio da vida da poeta: os argivos haviam sofrido uma terrível derrota pelas mãos de Cleômenes, filho de Anaxândrides, e dos lacedemônios. Dentre os homens, muitos haviam morrido e os que restaram fugiram para um bosque, onde caíram numa emboscada e acabaram

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também sendo mortos. Assim, quando Cleômenes liderou suas tropas para Argos, não havia homens para defender a cidade. Telesila, então, teria subido à muralha todos os escravos e aqueles que eram incapazes de portar armas (devido à idade precoce ou avançada), e ela mesma, recolhendo as armas dos santuários e as que sobraram nas casas, armou as mulheres adultas e as alocou onde o inimigo atacaria. Quando os lacedemônios avançaram, as mulheres ignoraram os gritos de batalhas e mantiveram suas posições, lutando bravamente. Os lacedemônios, percebendo que destruir as mulheres seria uma vitória sem honra e que a derrota pelas mãos delas configuraria um desastre vergonhoso, cederam e recuaram. Pausânias finaliza o relato dizendo, ainda, que essa batalha fora profetizada pela sacerdotisa Pítia em um oráculo citado por Heródoto (Histórias, 6. 77), mas o historiador não menciona o nome de Telesila, discorrendo apenas sobre o sucesso da façanha das mulheres. É claro que Pausânias, sendo um homem do século II EC, não testemunhou a batalha narrada, tendo acesso de fato apenas à estela onde Telesila está representada, sendo tal façanha de guerra, portanto, uma história tradicionalmente contada sobre a poeta ainda no tempo do viajante. Essa narrativa, de conteúdo bélico, se adequa bem à forma como Telesila foi chamada por Antípatro: «gloriosa», tendo conquistado sua glória em batalha. Plutarco (erudito grego, séculos I–II EC), por sua vez, em seu As virtudes das mulheres (245 c–f), também narra o episódio bélico contado por Pausânias e conta mais uma história sobre Telesila, dessa vez sobre como ela se tornou poeta a partir de um encontro com Apolo. De acordo com o erudito, Telesila tinha saúde fraca, o que levou sua família a consultar o oráculo de Delfos dedicado ao deus Apolo. Lá, ela foi instruída a ser «serva das Musas». Assim, não só se curou de sua condição frágil de saúde, como também passou 774

A presença das mulheres na Literatura e na História

a ser reconhecida entre as mulheres por sua admirável poesia. Admirável a ponto de —como registrado na Suda (enciclopédia histórica do século X EC)— o metro utilizado por ela ter sido batizado em sua homenagem: o metro telesileano. Da obra de fato de Telesila, pouquíssimo nos restou: apenas cinco fragmentos. Desses cinco, quatro apresentam apenas uma única palavra. O maior, com dois pequenos versos incompletos, diz (tradução de Ragusa 2020, 126): ... e Ártemis, ó virgens, fugindo de Alfeu...

Neste trecho, pode-se identificar uma voz narrativa que se dirige a moças, as «virgens» mencionadas, contando uma narrativa mítica que trata da fuga de Ártemis —deusa das caçadas, que se manteve virgem e que representa também as meninas na idade anterior ao casamento— dos avanços de Alfeu, divindade que personifica o maior rio da área do Peloponeso, de mesmo nome. Em algumas tradições, Alfeu se apaixona e persegue a ninfa Aretusa; no entanto, em outras vertentes, é Ártemis o alvo das paixões do deus-rio, e ela foge deste cobrindo a si mesma e às ninfas que a acompanham com lama, fazendo-o então se confundir e recuar. Graças a esse episódio, Ártemis ganhou o epíteto «Alfeia» e um templo a Ártemis Alfeia foi erguido próximo ao rio (Pausânias. Descrição da Grécia, 6. 22. 5). Fontes históricas PAUSÂNIAS. 1918. Description of Greece. Translated by W. H. S. Jones and M. A. Ormerod. Cambridge/London: Harvard University Press (Loeb Classical Library). SUDA. Telesilla. Tradução de Catharine Roth. Disponível em: https://topostext.org/work/240#tau.260. Acesso em: 21 abr. 2021. 775

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Bibliografia geral RAGUSA, G. 2020. Nove musas mortais: as poetas da Grécia Antiga, Revista do Centro de Pesquisa e Formação, n. 11, p. 113–136. RAYOR, D. J. 1991. Sappho’s Lyre. Archaic Lyric and Women Poets of Ancient Greece. Berkeley: University of California Press. ROBBIO, M. S. F. 2014. Musas y escritoras: el primer canon de la literatura femenina de la Grecia antigua (AP IX 26), Praesentia, n. 15, p. 1–9. SILVEIRA, M. D. 2006. A imagem feminina na Moralia: heroísmo e outras virtudes. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo – USP.

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Ἀνύτη › Anite de Tégea

por Marina Lacerda Machado

Anite (Ἀνύτη Τεγεᾶτις [Anýte Tegeátis]) foi uma poeta nascida em Tégea, na região da Arcádia. Na Antologia Palatina ou Antologia Grega, um compilado de epigramas do período helenístico, são atribuídos 25 epigramas à poeta. Além disso, Pólux, em seu Onomastikon (5. 48), preservou um epigrama. Pausânias (10. 38. 13) a identifica como poeta, ao narrar o acontecido com Falísio no templo de Epidauro. Ele conta que Falísio ficou cego, então Asclépio mandou uma visão para Anite com uma tabuinha de escrever selada. Assim, Anite viajou até Epidauro para entregá-la a Falísio, que recuperou sua visão ao tentar ler a tabuinha e recompensou a poeta com duas mil moedas de ouro. Na Antologia, Meleagro de Gadara (A.P. 4. 1. 5) menciona em um epigrama «o lírio de Anite». Estéfano Bizâncio, em seu dicionário geográfico denominado Ethniká (610. 15–16), menciona a poeta na entrada sobre Tégea. Taciano, em sua Oratio ad Graecos (Discurso aos Gregos) (33. 1–2), também menciona a produção de estátuas da poeta pelos escultores Eutícrates e Cefisodoro, que não sobreviveram aos nossos tempos. Sua obra foi produzida, provavelmente, entre 310 e 290 aEC, mas há controvérsia devido ao fragmento A.P. 7.492, que tematiza a invasão gaulesa ocorrida em 277 aEC. Assim, a outra data possível para sua produção é entre 310 e 275 aEC (Plant 2009, 56). Sobre seu contexto geográfico, Pólux (5. 48) afirma que Anite é de Tégea (Τεγεᾶτις - Tegeátis), assim como Estéfano Bizâncio. Na Antologia Palatina (7. 492), a autoria é atribuída a Anite de Mitilene.

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Os epigramas de Anite possuem diversos temas, sendo os epitáfios para animais mortos os mais característicos (A.P. 7. 208, Poll. 5. 48, A.P 7. 202, A.P. 7. 215, A.P. 7. 190). Além disso, há epitáfios para meninas virgens (παρθένοι [parthénoi], no plural): A.P. 7. 646, A.P 7. 486, A.P. 7. 649, A.P. 7. 490. Todos eles marcam a ausência das meninas falecidas, enquanto o pai ou a mãe ainda vivem. Também há epitáfios para homens mortos: A.P. 7.724, A.P. 7.232, A.P. 7.538, este último sobre a morte de um escravo. Ainda há três epigramas de agradecimento a um deus através de um objeto: A.P. 6. 123, A.P. 6. 153. A.P. 291. Por fim, há epigramas de tom pastoral, cuja temática difere dos epigramas tradicionais: A.P. 9. 13, A.P. 9. 314. A.P. 9. 144, A.P. 6. 312, A.P. 9. 745. Esses epigramas pastorais parecem ter influenciado os poetas Calímaco e Nícias (Snyder 2017, 76), o que coloca Anite em um local de importância no desenvolvimento de uma poética idílica, junto com Teócrito. Ademais, seus epitáfios para as parthénoi se inserem em uma tradição já estabelecida por Erina. Nesse sentido, Anite foi uma poeta que estabeleceu novos procedimentos poéticos, se apropriou da tradição e foi reconhecida por fontes históricas. Fontes históricas ANTOLOGIA PALATINA. 1968. Vol. 1–2:1965; vol. 3–4. Anthologia Graeca. Munich: Heimeran. PAUSÂNIAS. 1903. Pausaniae Graeciae descriptio, 3 vols. Leipzig: Teubner. PÓLUX. 1967. Pollucis onomasticon. Leipzig: Teubner. STEPHAN VON BYZANZ. 1849. Ethnika. Berlin: Reimer. TATIANO. 1915. Oratio ad Graecos. In: Die ältesten Apologeten. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht. 778

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral PLANT, I. 2004. Anyte. In: PLANT, I. Women Writers of Ancient Greece and Rome: an anthology. Norman: University of Oklahoma Press. SNYDER, J. M. 2017. Women Poets of Hellenistic Greece. In: SNYDER, J. M. The Woman and the Lyre: Women Writers in Classical Greece And Rome. Carbondale: Southern Illinois University Press.

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Ἤριννα › Erina

por Clara M. Sperb

Erina é uma poetisa geralmente situada no século IV aEC. Segundo a Suda (η521, ed. Adler), enciclopédia bizantina do século X EC, e alguns testemunhos da Antiguidade, ela fora uma das companheiras de Safo. Porém, é preferível uma data mais recente que o século VI aEC para a época em que Erina teria vivido e composto seus versos. Gow e Page (1965, 281–2) discutem a possível datação de Erina, e argumentam que a tendência de datá-la no século IV aEC deve-se às evidências encontradas em Eusébio (Ol. 106.4 ou 107.1). Entretanto, o seu poema A Roca parece mostrar que essa data é ainda muito anterior para situar a poetisa. Segundo os autores, os pontos de contato da obra, tais como o metro, dialeto e vocabulário, com a de Teócrito e o tom geral da obra sugerem que a sua autora pertenceu à mesma geração deste poeta, Asclepíades e Anite, e teria composto seus poemas na primeira metade do século III aEC. Snyder (1989, 88) analisa o epigrama de Asclepíades (AP 7.11), mencionado abaixo, dedicado a Erina, e acrescenta que a data do poeta sugere que a poesia dela estaria circulando já antes de 300 aEC, talvez em uma data mais próxima de 350 aEC. γλυκὺς Ἠρίννης οὗτος πόνος, οὐχὶ πολὺς μέν, ὡς ἂν παρθενικᾶς ἐννεακαιδεκέτευς, ἀλλ᾽ ἑτέρων πολλῶν δυνατώτερος: εἰ δ᾽ Ἀίδας μοι μὴ ταχὺς ἦλθε, τίς ἂν ταλίκον ἔσχ᾽ ὄνομα;

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Eis o doce trabalho de Erina: não é muito, é verdade, —ela era uma menina de dezenove anos—, mas pode mais que muitos outros. «Se o Hades não me tivesse vindo tão cedo, quem teria tanto renome?» (Tradução de Rafael Brunhara)

De sua obra, chegaram aos dias atuais, um poema longo, a supramencionada A Roca, três epigramas e dois fragmentos em hexâmetro, um deles de autoria incerta, apesar de a atribuição dele a Erina ser bem aceita. O mais longo, A Roca, encontra-se em estado bem fragmentário, com 54 versos legíveis no papiro, de uma estimativa de 300 versos. Porém, desses 54, nos 14 primeiros versos são legíveis apenas letras ou palavras. Constam na Antologia Palatina três epigramas atribuídos à Erina, e Rayor (2005) cita outros dois fragmentos. Há a possibilidade de os fragmentos pertencerem ao poema A Roca, pois parecem ter o mesmo conteúdo, apesar de um deles, citado por Ateneu (Ath. 283d), muito provavelmente não o fazer, e o próprio autor duvida que seja de Erina (Bowra, 1953, 167). O principal poema e os epigramas parecem falar da morte de sua amiga Báucis, que acontece logo depois de seu casamento. O outro fragmento citado por Rayor (fr. 402, Rayor, 2005, 68), também é relacionado à morte, mas não menciona a menina. O poema A Roca, em geral, parece seguir uma linearidade, começando com as memórias de infância do eu poético e de Báucis, seguidas do casamento da segunda e terminando com a sua morte. Nos primeiros versos, extremamente fragmentados, é possível identificar palavras como «lua» e «tartaruga». Bowra (1953) sugeriu que esses versos descreveriam uma brincadeira de roda, mencionada por Pólux (9. 125), em que uma das meninas representava uma tartaruga. A persona poética diz não poder ver o corpo da amiga e se despedir dela propriamente, por motivos que a impedem de sair de casa e participar do funeral de Báucis. Se fazem duas leituras 782

A presença das mulheres na Literatura e na História

desses motivos: o primeiro, proposto por Bowra (1953), é que a narradora, no caso, a própria Erina, seria uma sacerdotisa, impedida, assim, de sair do templo; o segundo, seria de que Erina, por sua posição social, de uma mulher virgem e não casada (ou seja, uma parthénos), e por não ser uma parente de Báucis, não poderia comparecer ao funeral, conforme os acordos sociais da época. A entrada na Suda sobre a poetisa sugere que ela poderia ser de Teos, Lesbos, ou de Telos, sendo esta a localização mais preferível. Devido à mistura dos dialetos dórico e eólio que ela usava em seus poemas, não é possível determinar com certeza de onde ela seria. Há uma possibilidade maior de que Erina tenha sido de Teos, pois é um dos poucos lugares em que há evidências concretas sobre a educação de meninas (Pomeroy 1978, 19–20). A mistura de dialetos também pode ser considerada uma forma que Erina encontrou de mostrar a influência de Safo em seu trabalho. Erina e Safo não parecem ter muitos pontos em comum para além do dialeto. Alguns estudiosos, como Rauk (1989) e Rayor (2005), apontam para algumas semelhanças entre o poema A Roca e o fragmento 94 de Safo. Ambos tratam de memória, lembranças entre a persona poética e a companheira a qual cada poema se refere, companheira essa que se afasta da persona devido ao casamento. No caso do de Erina, a amiga Báucis, que se afasta por causa de seu casamento e, logo em seguida, por sua morte, e no de Safo, uma companheira não citada, que vai para longe depois de casada e se esquece da companheira que lhe dirige o poema. Sobre a possível datação de Erina, Pomeroy (1977, 51) argumenta que a partir do século IV aEC, a educação das mulheres começa a mudar, e é provável que a poesia dessas mulheres circulasse mais nesse período, quando elas também 783

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estariam escrevendo e lendo, e a poesia começando quase que inteiramente a se tornar escrita, com o público deixando de ser uma audiência e se formando por leitores. O fato de Erina ter podido se dedicar à poesia, também é justificado pela posição social de sua família, sendo ela parte da classe mais alta da sociedade, o que justificaria ela ter sido uma poetisa e não ter se dedicado diária e integralmente a tarefas mais domésticas, como tecer em tear, que é o esperado ao se falar de uma jovem grega do período helenístico (Pomeroy 1978, 20). Ao pertencer a uma classe mais alta e, portanto, educada, Erina teria diversas oportunidades de leitura e escrita de poesia. Ela ainda deveria aprender a trabalhar a lã, no entanto, na casa de sua mãe, era esperado apenas que escravos tecessem laboriosamente, todos os dias, e não que a poetisa fizesse o mesmo (Pomeroy 1978, 20). De fato, a mudança na educação feminina que permitia às mulheres o aprendizado da leitura e da escrita era voltada às classes mais altas, vindas de famílias aristocráticas. No poema A Roca (verso 23), menciona-se a figura da mãe e de «tecedeiras», que faziam esse trabalho em lã. Infere-se, então, que essa mãe, seja da narradora do poema, seja a de Báucis, ou até mesmo da própria Erina, gerenciava seu próprio negócio de tear em casa. Alguns testemunhos, como os epigramas AP 9. 190, de um autor anônimo, 7.11, supramencionado, e 7. 13, atribuído a Leônidas ou Meleagro, mencionam que Erina teria morrido parthénos (uma mulher jovem, não-casada), com dezenove anos, número que aparece no verso 37 d’A Roca e parece corroborar esses testemunhos. Entretanto, não há como saber se essa é uma informação verídica e se Erina de fato teria morrido com dezenove anos ou bem mais tarde, ou até mesmo saber com qual idade ela teria composto o poema (Rayor 2005, 66). 784

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Os epigramas que mencionam Erina e nos servem de testemunhos, como os três mencionados acima e mais os AP 7. 713, 7. 12 e 11. 322, mostram como a obra da poetisa era recebida na Antiguidade: eles mencionam um poema em hexâmetro de 300 versos como sendo seu único trabalho mais longo, e usam bastante a figura da abelha e do mel para se referir à ela e seu trabalho, bem como a imagem de cisne. No epigrama 9. 190, o narrador ainda a compara com Safo, dizendo que, enquanto Safo era melhor que Erina na poesia lírica, Erina era muito melhor que Safo em hexâmetros, e ainda menciona anteriormente no poema que os seus 300 versos se igualavam a Homero. Apesar de não ter sobrevivido muito de sua obra, os testemunhos atestam a importância de Erina para o período helenístico. Um epigrama da Antologia Palatina, por Antífanes (AP 11. 322), satiriza gramáticos por se orgulharem dos seus conhecimentos de Erina e de Calímaco, e se utilizam disso para depreciar outros poetas que não se igualavam aos dois. Esse poema, ainda que satírico, mostra que o trabalho de Erina era considerado digno de louvores, tal qual o de Calímaco, famoso poeta Alexandrino (Snyder, 1989, 89–90). Não há como saber se de fato ela morrera aos dezenove anos e na condição de parthenos, onde ou quando exatamente ela viveu, mas ela deve ter impressionado os leitores de sua época, sendo uma jovem que deixou uma obra de trezentos versos, comparáveis aos homéricos, lamentando a morte de sua amiga querida. O poema em si não desmente os testemunhos, mas tampouco dá mais informações sobre o que é verdade e o que não era. Erina, assim como outras poetisas, permanece uma figura de biografia misteriosa e incerta, remontada através de fragmentos. 785

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Fontes históricas ANTIPHANES. 1918. In: The Greek Anthology. Translated by W. R. Paton. London: William Heinemann. ASCLEPIADES. 1965. In: The Greek Anthology: Hellenistic Epigrams. Edited by A. S. F. Gow and D. L. Page, vol. 1. Oxford: Clarendon Press. EUSEBIUS. 1911. In: Eusebius Werke, Fünfter Band: Die Chronik, aus dem Armenischen übersetzt mit textkritischem commentar. Herausgegeben von Josef Karst. Leipzig: J. C. Hinrichs. ERINNA. 1965. In: The Greek Anthology: Hellenistic Epigrams. Edited by A. S. F. Gow and D. L. Page, vol. 1. Oxford: Clarendon Press. ERINNA. 1977. In: Erinna. Edited by M. L. West. Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, vol. 25. ERINNA. 2005. In: Women poets in ancient Greece and Rome. Translated by D. J. Rayor. University of Oklahoma Press. SAFO. 2005. In: Women poets in ancient Greece and Rome. Translated by D. J. Rayor. University of Oklahoma Press. Bibliografia geral BOWRA, C. M. 1953. Erinna’s Lament for Baucis, Problems in Greek Poetry, Oxford, Clarendon Press, p. 151–68. GOW, A. S. F.; PAGE D. L. (Eds). 1965. The Greek Anthology: Hellenistic Epigrams, vol. 2. CUP Archive. POMEROY, S. B. 1977. Technikai kai mousikai: the education of women in the fourth century and in the Hellenistic period, American Journal of Ancient History, vol. 2, n. 1, p. 51–68. POMEROY, S. B. 1978. Supplementary Notes on Erinna, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, vol. 32, p. 17–22. RAUK, J. 1989. Erinna’s Distaff and Sappho fr. 94, Greek, Roman, and Byzantine Studies, v. 30, n. 1, p. 101–116. 786

A presença das mulheres na Literatura e na História

RAYOR, D. J. 2005. The power of memory in Erinna and Sappho. In: GREENE, E. Women poets in ancient Greece and Rome, p. 59–71. SNYDER, J. M. 1989. The woman and the lyre: women writers in Classical Greece and Rome. Southern Illinois University Press.

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Μοιρώ › Mero

por Thais Rocha Carvalho

Mero foi uma poeta do período helenístico, ativa em Bizâncio no século III aEC. É uma das poetas mencionadas por Antípatro da Tessalônica em seu epigrama que lista nove importantes poetas gregas mulheres (Antologia Palatina, 9. 26). Dela, tem-se mais menções feitas por outros autores (alguns seus contemporâneos) do que poemas de fato — restaram apenas três fragmentos: dois epigramas preservados na Antologia Palatina (6. 119 e 6. 189) e dez versos citados por Ateneu (gramático grego, séculos II–III EC) (XI, 491ab). Há dois registros da grafia de seu nome na Antiguidade: Μοιρώ [Moirṓ]) e Μυρώ [Murṓ]. Na Suda (enciclopédia histórica do século X EC), Mero é mencionada duas vezes (com as duas diferentes grafias), descrevendo-a como mãe ou filha de Homero de Bizâncio (tragediógrafo do período helenístico) e autora de poesias dos gêneros épico, elegíaco e lírico. Meleagro (poeta grego, século I aEC) (Antologia Palatina, 4. 1. 5) elogiou Mero, chamando sua poesia de «lírios» e atesta também que ela foi uma poeta profícua. Além dos três poemas que chegaram à contemporaneidade, tem-se alguns comentários de autores da Antiguidade sobre o tipo de poesia que Mero teria composto: Cristodoro de Tebas (poeta grego, período helenístico) (Antologia Palatina, 2.410) afirma que Mero escreveu poesia épica de temática heroica desde muito jovem; Pausânias (geógrafo e viajante grego, século II EC) (Descrição da Grécia, 9.5.4) menciona que ela narrou uma história sobre Anfião, um rei mítico de Tebas; Partênio (poeta e mitógrafo grego, século

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I aEC) (Sobre Alcínoe, 27) reconta o enredo de um poema de Mero, supostamente chamado As maldições; por fim, seus contemporâneos, Anite (Antologia Palatina, 7. 190) e Marco Argentário (Antologia Palatina, 7.364) referem-se a ela ao tratar do tema da morte de uma cigarra e um grilo. Do que de fato se preservou de sua poesia até os dias de hoje, tem-se dois epigramas de temática mítica, mencionado deuses e ninfas; bem como um trecho de 10 versos citado por Ateneu de um poema maior chamado Memória. Neste trecho, conta-se a história do ocultamento de Zeus após seu nascimento. Abaixo, seguem suas traduções feitas por Giuliana Ragusa (2020, 130–131): [epigrama 119] Jazes sob o áureo pórtico de Afrodite, ó cacho d’uvas, pleno da gota de Dioniso. Não mais tua mãe, amável ramo atirando em teu redor, porá sobre tua cabeça pétala nectárea. [epigrama 189] Ó Ninfas Hanigriades, virgens do rio, que estas funduras trilhais, ó ambróseas, com róseos pés sempre, salve! E que salveis Cleonimo, que estas belas estatuetas firmou-vos sob pinhos, ó deusas. [Memória] Zeus grande então foi nutrido em Creta, e dele ninguém dos venturosos sabia. E ele cresceu em todos os membros. As tímidas pombas então nutriram-no, sob sacra gruta, ambrosia portando-lhe das correntes de Oceano. Mas néctar a grande águia, da pedra sempre retirando-o com o bico, trouxe a bebida a Zeus astuto. Após vencer o pai Crono, Zeus de vasta vista fê-la imortal, e no céu a firmou. Assim também às tímidas Plêiades concedeu honra, as que são mensageiras do verão e do inverno. 790

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Fontes históricas ANITE. 1918. Antologia Palatina 7.190. Tradução de W. R. Paton. In: The Greek Anthology. 5 volumes. Cambridge: Harvard University Press. ATENEU. 1933 The Deipnosophists XI, 491ab. Tradução de C. B. Gulick. Disponível em: http://www.attalus.org/old/athenaeus11c.html. Acesso em: 21 abr. 2021. CRISTODORO DE TEBAS. 1918. Antologia Palatina 4.410. Tradução de W. R. Paton. In: The Greek Anthology. 5 volumes. Cambridge: Harvard University Press. MARCO ARGENTÁRIO. 1918. Antologia Palatina 7.364. Tradução de W. R. Paton. In: The Greek Anthology. 5 volumes. Cambridge: Harvard University Press. MELEAGRO. 1918. Antologia Palatina 4.1.5. Tradução de W. R. Paton. In: The Greek Anthology. 5 volumes. Cambridge: Harvard University Press. PARTÊNIO. XXVII. The story of Alcinoe. Tradução de S. Gaselee. Disponível em: https://www.theoi.com/Text/Parthenius2.html. Acesso em: 21 abr. 2021. PAUSÂNIAS. 1918. Description of Greece. Tradução de W. H. S. Jones e M. A. Ormerod. Cambridge: Harvard University Press. SUDA. Myro; Homer. Disponível em: https://www.cs.uky. edu/~raphael/sol/sol-cgi-bin/search.cgi?search_method=QUERY&login=guest&enlogin=guest&page_num=1&user_ list=LIST&searchstr=myro&field=any&num_per_page=25&db=REAL. Acesso em: 21 abr. 2021. Obras de referência PLANT, I. M. 2004. Moero. In: PLANT, I. M. (Ed.). Women Writers of Ancient Greece and Rome: an anthology. Norman: University of Oklahoma Press, p. 61–62. 791

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RAGUSA, G. 2020. Nove musas mortais: as poetas da Grécia Antiga, Revista do Centro de Pesquisa e Formação, n. 11, p. 113–136. RAYOR, D. J. 1991. Sappho’s Lyre. Archaic Lyric and Women Poets of Ancient Greece. Berkeley: University of California Press. SKINNER, M. B. 2005. Homer’s Mother. In: GREENE, E. Women poets in Ancient Greece and Rome. Norman: The University of Oklahoma Press, p. 91–111.

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Νόσσις › Nóssis

por Flavia Vasconcellos Amaral

Nóssis [Νόσσις] foi uma epigramatista pertencente à primeira geração de poetas helenísticos, nativa de Lócris Epizefiri, cidade localizada no sul da Itália. Sabe-se que foi ativa por volta da primeira metade do século III aEC por conta da menção a seu nome em duas passagens nos mimos de Herodas (Mimos, 6.20– 36, 7.57–8) e pela referência a Rintão, poeta de hilarotragédias, em um de seus onze epigramas (Antologia Grega, VII, 414). Alguns comentadores, como Gow e Page (1965, vol. II, 443), apesar de reconhecerem que a atribuição é duvidosa, consideram o epigrama AG VI.273 como de Nóssis devido ao título ὡς Νόσσιδος ([hōs Nóssidos], como Nóssis). Seus epigramas são compostos em dois dísticos, ou seja, quatro versos, e a maioria deles trata de votos fictícios feitos por mulheres ou de representações artísticas de mulheres. Além da menção nos mimos de Herodas, Nóssis é arrolada no proêmio da Guirlanda de Meleagro (AG, IV. 1. v. 9–10) junto com outros quarenta e seis poetas. Ela também faz parte do seleto grupo das poetas mulheres de vozes divinas (θεογλώσσους γυναῖκας [theoglṓssous gynaîkas]), assim descrito por Antípatro da Tessalônica (AG, IX. 26). Todas as menções a ela bem como a temática de seus epigramas ligam Nóssis à esfera erótica e ao mundo feminino. Sabe-se que sua mãe se chamou Teufílis e sua avó materna Cleoca por conta de um de seus epigramas votivos, o AG, VI.265:

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Hera honrada que muitas vezes desces dos céus para guardar o Licínio perfumado, aceita o líneo tecido que a ti com a nobre filha Nóssis teceu Teufílis, filha de Cleoca.

Embora se tenha notícia sobre sua filiação nesse epigrama, Nóssis é caracterizada no Mimo 6 de Herodas (v. 20) como filha de Erina, outra importante poeta do período helenístico. Nesse trecho, as duas personagens, Metro e Corito, conversam sobre um dildo escarlate que é de Corito, mas foi pego emprestado por Nóssis. Em Herodas, portanto, o contexto que cita Nóssis é claramente erótico, reforçado por uma camada de filiação poética com Erina, poeta que compôs um poema de lamento em hexâmetros de título «A Roca» em celebração à morte de sua amiga Báucis. Meleagro, no século I aEC, compôs a sua Guirlanda, antologia de epigramas, cujo proêmio lista poetas associados a plantas e flores. Nóssis ganha um dístico completo: «Trançou ao acaso o perfumado, florido íris / de Nóssis, para cujas tabuinhas Eros fundira cera» (v. 9–10). Imagina-se que o florido íris atribuído a Nóssis faça referência a um perfume elaborado a partir de suas raízes (Jesus 2016,182). Embora o dístico dê destaque para a agência de Eros sobre o fazer poético de Nóssis ao usar a imagem do deus fundindo cera para suas tabuinhas, apenas um de seus epigramas é de fato erótico (AG, V. 170). Provavelmente ativo no século I EC, Antípatro de Tessalônica fez um catálogo das poetas femininas, atribuindo o adjetivo θηλύγλωσσον ([thelýglōsson], de doce voz ou de voz feminina) para Nóssis. Esse adjetivo é marcante na recepção da obra de Nóssis: o tom feminino do conjunto dos seus epigramas e sua filiação a Safo são alguns dos argumentos utilizados por autores como Skinner (1991) para afirmar que seus poemas teriam sido compostos para um círculo privado 794

A presença das mulheres na Literatura e na História

de leitoras. Um dos pontos fortes desse argumento é a filiação poética a Safo que Nóssis atribui a si mesma em seu autoepitáfio AG, VII.718: Estrangeiro, se navegares por Mitilene de belas danças atraído pela flor das graças de Safo, diz que eu era cara às Musas e que a terra Lócria me gerou, e sabendo que meu nome era Nóssis, vai!

Entretanto, outros autores como Bowman (1998) alertam que esse epigrama está alinhado à estratégia helenística de filiação a uma tradição poética precedente, uma vez que não há evidências para a existência de um círculo de leitoras, como já se defendeu no caso de Safo. Um outro epigrama que revela intertextualidade com a poesia sáfica é o AG, V.170, pois nele há uma citação direta de Nóssis sobre não haver nada mais doce que o amor e que nenhum outro prazer a ele se iguala, imagética semelhante ao início do fragmento 16 de Safo: «Dizem uns que exércitos e uns que barcos / e uns que carros sejam o se[r] mais belo / sobre a terra negra — por mim seria o / ser que se ama» (Flores 2017, 59). Fontes históricas ANTÍPATRO DE TESSALÔNICA. 1965. Antologia Grega IX.26. Edição de A. S. F. Gow & D.L. Page. In: The Hellenistic Epigrams. Vol. I: introduction, text and indexes of sources and epigrammatists; vol. II: commentary and indexes. Cambridge: Cambridge University Press. HERODAS. 1971. Mimos 6–7. Edição de I. C. Cunningham. Herodas Mimiambi. Oxford: Oxford University Press. 795

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MELEAGRO DE GADARA. 1965. Antologia Grega IV.1. Edição de A. S. F. Gow & D. L. Page. In: THE HELLENISTIC EPIGRAMS. Vol. I: introduction, text and indexes of sources and epigrammatists; vol. II: commentary and indexes. Cambridge: Cambridge University Press. SAFO. 2017. Fragmento 16. Tradução de G. G. Flores. In: SAFO. Fragmentos completos. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral BOWMAN, L. B. 1998. Nossis, Sappho, and Hellenistic Poetry, Ramus, 27, p. 39–59. FERNÁNDEZ-GALIANO, M. 1978. Antología Palatina I (Epigramas Helenísticos). Madrid: Editorial Gredos. FLORES, G. G. (Org., trad., notas). 2017. Safo: Fragmentos completos. São Paulo: Editora 34. GOW, A. S. F.; PAGE, D. L. 1965. The Hellenistic Epigrams. Vol. I: introduction, text and indexes of sources and epigrammatists; vol. II: commentary and indexes. Cambridge: Cambridge University Press. JESUS, C. A. M. 2016. Meleagro e a linguagem das flores. Tradução comentada de AP 4.1, Organon, vol. 31, n. 60, p.171–186. SENS, A. 2020. Hellenistic Epigrams: A Selection. Cambridge: Cambridge University Press. SKINNER, M. B. 1991. Nossis Thēlyglōssos: the Private Text and the Public Book. In: POMEROY, S. B. (Ed.). Women’s History and Ancient History. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, p. 20–47. 796

Μελιννώ › Melino

por Thais Rocha Carvalho

Muito pouco se conhece acerca de Melino. A única menção à poeta mélica e a sua obra na Antiguidade é feita pelo grego Estobeu (século V EC), na Antologia (3, 7, 12). Ao citá-la, ele diz: Μελιννοῦς Λεσβίας εἰς ῥώμην [Melinnoûs Lesbías eis rṓmēn], chamando, portanto, a poeta de «Lésbia» e supondo que seu poema, «Ode a Roma», tratasse sobre a coragem, e não sobre a deusa Roma — uma confusão causada pela palavra rṓmēn, que pode também significar força física em grego. É provável que Estobeu também estivesse equivocado quanto à origem de Melino. Ele a chama de «Lésbia» porque o poema se organiza em cinco estrofes sáficas; contudo, muito provavelmente se trata de um uso por homenagem, visto que na linguagem utilizada, apesar de reproduzir alguns aspectos do dialeto eólico utilizado por Safo, Melino se vale predominantemente do dialeto dórico. Para a crítica moderna, o poema apresenta um uso «engessado» do modelo sáfico. Quanto à datação, utilizando por base o próprio poema, em sua temática de culto à deusa Roma, pode-se supor que Melino estivesse ativa no auge da Roma pré-império, ou seja, por volta do século II aEC, visto que não há menção a um imperador no poema, o que seria um requisito da poesia feita na era imperial. Diga-se que um culto à deusa Roma foi estabelecido e popularizado nessa época nas cidades gregas que faziam parte do mundo romano (Plant 2004, 99). Considerando essa datação, que está, portanto, dentro do período helenístico (séculos IV–II aEC), o tipo de poesia mais comum eram os epigramas, poemas curtos e feitos numa erudita cultura da escrita. O uso de Melino das estrofes

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sáficas seria, portanto, inusitado, não fosse a demonstração de erudição na retomada do modo de fazer poesia das eras arcaica e clássica, ambas de cultura oral – poesia que a era helenística adotou como modelo de referência, sendo objeto privilegiado de estudo na Biblioteca de Alexandria. Uma enciclopédia moderna (Wilson 1991, 814) aventa a possibilidade de Melino ser filha da poeta Nóssis (Lócris Epizefíria, c. 300 aEC), visto que há um epigrama desta (Antologia Palatina, 6.353) em que menciona sua filha, chamada «Melina», que seria muito parecida com a mãe, e que, portanto, poderia também ser poeta. Contudo, não existem quaisquer outras informações acerca de tal Melina, sendo esta hipótese baseada na típica leitura biografista da poesia. O que se tem de Melino, então, é apenas o que ela mesma deixou em sua poesia, preservada para a contemporaneidade em único exemplo, por Estobeu («Ode a Roma», tradução própria): Saúdo-te, Roma, filha de Ares, de mitra dourada, senhora de bravuras, que o augusto Olimpo sobre a terra habitas, eternamente indestrutível. A ti somente, venerável, a Moira deu o triunfo real da vitória, de inquebrável comando, para que, tendo força soberana, reinasses. Sob teu jugo, com poderosas rédeas, a ampla terra e o mar cinzento são controlados. Tu com firmeza guias as cidades dos povos. Embora a infinita eternidade tudo abata e a vida transforme, cada vez de um modo diferente, a ti somente o vento que insufla velas a regência não pode alterar. 798

A presença das mulheres na Literatura e na História

Pois, na verdade, tu sozinha, dentre todos, os mais fortes e grandiosos homens guerreiros geraste, tal qual Deméter produzindo com êxito frutos aos homens.

Fontes históricas ESTOBEU. 1860. Antologia 3, 7, 12. In: MEINEKE, A. Ioannis Stobaei Eclogarum Physicarum et Ethicarum. Volumes 1–2. Leipzig: B. G. Teubner. Obras de referência SMITH, W. (Ed.). 1867. Melinno. Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology. Boston: Little, Brown and co. p. 1021–22. WILSON, K. M. 1991. Melinno. An Encyclopedia of Continental Women Writers, Volume 2: L–Z. Nova York: Garland. p. 814–15. Bibliografia geral BOWRA, C. M. 1957. Melinno’s Hymn to Rome, The Journal of Roman Studies, vol. 47, n. 1/2, p. 21–28. PLANT, I. M. 2004. Melino. In: PLANT, I. M. (Ed.) Women Writers of Ancient Greece and Rome: an anthology. Norman: University of Oklahoma Press, p. 99–100. RAYOR, D. J. 1991. Sappho’s Lyre. Archaic Lyric and Women Poets of Ancient Greece. Berkeley: University of California Press.

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MULHERES NO ROMANCE ANTIGO

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres no Romance Antigo

por Adriane da Silva Duarte

O romance faz sua entrada na cena literária tardiamente. O primeiro exemplar do gênero conhecido data do primeiro ano da Era Comum, Quéreas e Calírroe, de Cáriton de Afrodísias. Escrito em grego por um autor obscuro de uma cidade periférica da Ásia Menor, integrada ao Império Romano. Logo o gênero alcançaria expressão latina, com o Satíricon, de Petrônio. Nenhum deles ou das demais obras pertencentes ao diminuto corpus do romance antigo chega de fato a Roma, na medida em que a cidade sede do Império, de onde emanava o poder político, não é sequer mencionada pelos autores do gênero. Ou seja, o romance nasce periférico, tanto no âmbito geopolítico quanto no literário, já que surge quando o sistema de gêneros estava codificado, forçando essa nova forma a conquistar o seu espaço. No que respeita à forma, o romance é um gênero narrativo e em prosa de determinada extensão, o que leva à associação, desenvolvida pelos próprios romancistas com a epopeia, sobretudo com os poemas de Homero, e com a historiografia, que se tornam seus principais modelos. A matéria, de natureza ficcional, centra-se tanto na relação amorosa de jovens adolescentes e suas desventuras, caso dos romances do amor idealizado gregos («romance aventuresco de provação», segundo Bakhtin, 2018, 15), quanto das jornadas de descoberta e provação, presentes nos romances cômico-realista, cuja expressão é majoritariamente latina, como nos casos de Petrônio e Apuleio («romance aventuresco e de costumes», Bakhtin 2018, 47).

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O fato de ser um gênero de pouco lastro na tradição, sem presença nos programas escolares e não associado à edificação moral, mas antes à leitura prazerosa, contribuiu para a suspeição que o romance suscitou já na própria Antiguidade, sendo poucos os testemunhos dos antigos sobre seu corpus que, a rigor, se restringe aos cinco romances gregos de amor idealizado (Quéreas e Calírroe, Ântia e Habrocomes ou Efesíacas, Dafnis e Cloé, Leucipe e Clitofonte, Etiópicas) e aos dois romances da vertente cômico-realista latinos (Satíricon, Asno de ouro ou Metamorfoses), além dos de Luciano (Lúcio ou o asno, Narrativas Verdadeiras) e os anônimos Romance de Esopo e Romance de Alexandre. Desde meados do século passado, uma conjunção de fatores, entre eles o interesse pelos estudos de gênero, lançaram nova luz sobre o gênero. Os estudos de gênero, em especial os de inspiração feminista (women’s studies), impulsionaram o interesse no romance antigo na medida em que exploraram o papel das mulheres nas narrativas gregas de amor. Nos romances cômico-realistas, dominados por personagens masculinos, as mulheres ficam em segundo plano, mas, ainda assim, algumas figuras se destacam. Está bem atestada na crítica a proeminência das personagens femininas no romance antigo, especialmente na vertente erótica grega. Haynes (2003, 44–45) sintetiza de forma admirável as diversas hipóteses para explicar esse fenômeno. Segundo a autora, para alguns, o protagonismo feminino corresponde ao incremento da condição social da mulher no Império. Em comparação com os períodos anteriores, nota-se uma maior autonomia das mulheres na gestão de suas vidas e patrimônio, com destaque para algumas no âmbito intelectual, o que se refletiria nos textos (Johne 1989). Outros (Pernot 1992) preferem atribuí-lo à influência de gêneros literários pregressos, relevantes para a gênese do romance, que apresentam protagonistas fortes resgatadas pelos 804

A presença das mulheres na Literatura e na História

romancistas, caso da épica com suas Helena e Penélope, e da tragédia, com Medeia, Clitemnestra, Antígona, entre tantas outras figuras de destaque. Há ainda a sugestão de que o relevo dado às heroínas se deva ao fato desse gênero ser dedicado à leitura majoritariamente feminina. Por meio da representação feminina e de enredos de apelo sentimental se buscaria consolidar a identificação entre personagens e público-alvo, daí elas aparentarem superioridade, quer moral, quer intelectual, aos heróis. Atualmente, contudo, com o entendimento que o leitor do romance era mais diversificado e educado, fator reforçado pelas muitas alusões à tradição literária contidas nos textos, essa visão perdeu força, embora não se tenha descartado por completo que houvesse um número significativo de leitoras entre os primeiros apreciadores dessas obras. Por fim, Konstan (1994) credita tal protagonismo à convenção do gênero que, assim como pressupõe uma correspondência do sentimento amoroso no casal (em contraposição ao que se verificava nos gêneros anteriores, calcada em notável assimetria, em que a figura ativa do amante contrastava com a passiva da amada), equaliza os membros do casal no que toca a iniciativas e ações. Em decorrência disso, a percepção de que a mulher é superior ao homem é consequência do fato de ela ter sido posta em igualdade ao seu par, deixando de depender dele para sua sobrevivência. Mas no que consistiria essa superioridade? Em alguns romances a heroína está no centro da trama, determinando o ritmo da narrativa. Isso é muito evidente em Quéreas e Calírroe e em Etiópicas, em que Calírroe e Caricleia atraem muito mais o interesse do narrador do que seus parceiros masculinos. Isso, contudo, pode ter relação com a representação feminina no gênero. Em Quéreas e Calírroe, o protagonista masculino, Quéreas, demonstra evidente fragilidade diante 805

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das adversidades com que se defronta, postura que o leva a diversas vezes à beira do suicídio. Konstan (1994) exemplifica essa característica com a cena em que o herói está prestes a zarpar em missão de resgate de sua esposa, Calírroe, sequestrada por piratas. Sem poder suportar a dor de sua mãe com a separação, ele se lança ao mar com intuito de dar fim à vida, de modo a não ter de decidir entre salvar a mulher e afligir seus pais (Q&C, III. 5). Calírroe, quando confrontada com situações difíceis, enfrenta-as diretamente. Por exemplo, quando o eunuco do Rei da Pérsia lhe dá duas opções, ou ceder ao desejo do soberano ou sofrer os piores castigos em caso de recusa, ela prontamente se nega, declarando-se disposta a arcar com as consequências (Q&C, VI. 7). Talvez esses sejam exemplos extremos, mas ilustram as diferentes atitudes entre herói e heroína nesse romance, que não constitui uma exceção. Em Efesíacas, Ântia demonstra maior controle das emoções, pautando suas ações racionalmente, enquanto Habrocomes é impetuoso, deixando-se levar pela raiva. Diante de situações semelhantes, a forma de atuar de cada um conduz a resultados diferentes, com vantagem para a heroína. Quando ambos são assediados sexualmente, Habrocomes pela filha do traficante de escravos que o capturou (Efes., II. 5), Ântia pelo dono do bordel que quer explorá-la (Efes., V. 7), enquanto ele a repele rispidamente e é em seguida vítima de sua vingança, ela simula uma doença que a incapacitaria para o trabalho, livrando-se do perigo imediato. Cabe também notar que, além das heroínas, outras mulheres demonstram um grau de autonomia notável nos romances, mas não inédito, uma vez que outros gêneros, como a já mencionada tragédia clássica traziam personagens assim, notadamente a Fedra, do Hipólito, de Eurípides. Cito, sem me 806

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estender, Manto, Cino (Efesíacas), Arsace (Etiópicas), Licénion (Dáfnis e Cloé), que tomam a iniciativa da conquista amorosa, assediando, inclusive de forma violenta, os heróis. É interessante notar que essa relevância dada às mulheres parece estar ligada ao momento da aventura, quando os vínculos familiares e sociais são cortados e elas têm que enfrentar sozinhas as adversidades. A maioria delas, quando retornam às suas cidades de origem, retomam o lugar tradicionalmente reservado à mulher na sociedade, no seio da família. Assim, Calírroe, quando volta a Siracusa, fica à sombra de seu pai e marido, recolhendo-se à casa, enquanto os homens comparecem ao teatro para narrar aos cidadãos ali reunidos as histórias vividas pelo casal em suas viagens. Em Dáfnis e Cloé, desde a descoberta da sexualidade, Cloé é instruída a aceitar a sujeição da mulher ao desejo masculino, que se dá pelo exercício da violência, que ela experimenta. As personagens femininas dos romances cômico-realistas estão longe de serem idealizadas, embora também as haja, como Cárite, a jovem sequestrada por bandidos e resgatada pelo noivo: não pertencem às classes abastadas, nem ostentam beleza excepcional, mas, em geral, são escravas ou libertas, têm hábitos libertinos e pouca educação. Cabem nesse figurino Palestra, de Lúcio ou o asno, e Fótis, seu equivalente em o Asno de ouro, além de Fortunata, do Satíricon. Palestra e Fótis, embora tenham recebido nomes diferentes, são essencialmente a mesma personagem nos romances de Luciano e Apuleio, a escrava do hospedeiro do protagonista Lúcio em Hipate e responsável pela sua transmutação no animal. Lúcio se envolve sexualmente com ela com o único intuito de assistir uma cerimônia de magia conduzida por sua patroa, Panfília — essa, outro tipo ainda de mulher, uma feiticeira, temível e poderosíssima, de quem o jovem acha melhor manter distância. O relacionamento que mantém pauta-se apenas pela 807

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instrumentalização dessas mulheres, que, no entanto, demonstram certo grau de autonomia, ao menos quanto à sua vida sexual. Assim que cumprem seu papel narrativo, desaparecem na trama e não são mais sequer recordadas pelo protagonista. Fortunata ou Afortunada, caricatura da grande dama, tem grande presença no principal episódio conservado do Satíricon, o banquete de Trimalcião. Também escrava, tirou a sorte grande, e daí a razão do nome, ao casar-se com Trimalcião, um liberto que fizera grande riqueza a partir da herança deixada por seu senhor. Segundo um convidado habitual, ela «não, bebe, é ajuizada, é econômica e vale ouro», mas tem um gênio forte. Nada discreta ou recatada, circula com desenvoltura pelo salão, usando roupas extravagantes e exibindo jóias vultosas. Apesar da opinião do conviva de que Trimalcião confia nela cegamente, ele não hesita em destratá-la em público, acusando-a de ingrata e perdulária, quando, «para mostrar que tinha direitos iguais», ela censurou-o por se engraçar com um dos escravos na frente dos convidados. Mas, uma vez passada a ira, reconhece que devia a ela sua «fortuna», já que, prestes a falir no passado, recuperou-se das dívidas ao vender as jóias da mulher. É evidente que ela orbita em torno do marido, que dispõe dos outros como bem lhe agrada, mas também representa uma mulher que ascendeu socialmente e que tem certos poderes. Fontes históricas CÁRITON DE AFRODÍSIAS. 2020. Quéreas & Calirroe. Tradução, apresentação e posfácio de Adriane da Silva Duarte. São Paulo: Editora 34. CHARITON. 2004. De Callirhoe narrationes amatoriae Chariton Aphrodisiensis. Edição de B. P. Reardon. Monacchi: K. G. Saur. 808

A presença das mulheres na Literatura e na História

XENOPHON EPHESIUS. 2005. De Antia et Habrocome Ephesiacorum Libri V. Ed. by J. N. O’Sullivan (Bibliotheca Teubneriana). München/Leipzig: K. G. Saur. Bibliografia geral AUERBACH, E. 1976. Fortunata. In: AUERBACH, E. Mimesis. A representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, p. 21–42. BAKHTIN, M. 2018. Teoria do Romance II. As formas do tempo e do cronotopo. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34. BRANDÃO, J. L. 2005. A invenção do romance. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. HAYNES, K. 2003. Fashioning the feminine in Greek Novel. London: Routledge. KONSTAN, D. 1994. Sexual Symmetry: Love in the Ancient Novel and Related Genres. Princeton: PUP.

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Καλλιρόη › Calírroe

por Adriane da Silva Duarte

Calírroe [Καλλιρόη] é a heroína daquele que é conhecido como o primeiro exemplar do romance antigo, Quéreas e Calirroe, de Cáriton de Afrodísias (I EC), ou, simplesmente, Calírroe, como preferem alguns estudiosos, apoiados na frase final do livro: «Tal relato redigi a respeito de Calírroe». Esse destaque, além do fato de ser ela a primeira a ser introduzida na trama, sugere que ela tenha o protagonismo, que, entre os romances de amor, normalmente é partilhado entre os componentes do par romântico. É sobre a história de amor que vive com Quéreas que Cáriton comporá sua narrativa. Essa história começa em Siracusa, cidade natal do par amoroso, na virada entre os séculos V e IV aEC, mas continua em Mileto, Babilônia, Líbia, aonde quer que a Fortuna leve os jovens. Cáriton situa sua narrativa no passado clássico, em momento imediatamente posterior à Guerra do Peloponeso (431–404 aEC), embora a escreva no período imperial e na cidade Cária de Afrodísias. Alguns dos personagens do romance são personagens históricos, como Hermócrates, pai de Calírroe, Artaxerxes, o Grande rei da Pérsia e Estatira, sua esposa. Três características contribuem para a caracterização de Calírroe: 1) ser filha de Hermócrates, líder político em Siracusa, a quem se atribui a vitória sobre a frota grega durante a Guerra do Peloponeso; 2) ser dona de uma beleza excepcional, que rivaliza com a das deusas; 3) ser favorita de Afrodite. A beleza da jovem já é antecipada pelo seu nome, uma vez que Calírroe significa «belo regato» ou, na tradução de Jaa Torrano para a oceaniada homônima na Teogonia, Belaflui

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(Hesíodo. Teogonia, 288, 351, 979). Embora Cáriton não explore a tradição do nome, ele não é incomum na poesia e no mito grego precedente e algum eco deveria despertar nos leitores. A mais conhecida é a filha de Oceano e Tétis que Hesíodo menciona na Teogonia como mãe de Gerioneu, gigante de três cabeças enfrentado por Héracles em um de seus doze trabalhos. Há outras Calírroes que têm em comum a relação com o meio líquido: algumas têm por pais rios, como o Escamandro e o Aqueloo; outras transformam-se em fontes, como é o caso da Calírroe de Cálidon, que se imola no altar em que deveria ser sacrificada. Há também uma fonte de mesmo nome em Atenas, no sopé da Acrópole, cujas águas, diz Tucídides (História da Guerra do Peloponeso, II. 15), eram usadas nos banhos nupciais e em outras cerimônias religiosas. Por fim, há as Calírroes que vivem amores infelizes, como a princesa Líbia que, abandonada por Diomedes, se suicida, ou a filha de Foco, da Beócia, cuja beleza atrai pretendentes que, descontentes, assassinam seu pai e saem em sua perseguição — ambos registros em Plutarco (Parallela Minora, XXIII; Amatoriae narrationes, IV). A Calírroe de Cáriton tem grande intimidade com o mar, sendo nativa de uma ilha, a Sicília, e tendo cruzado o Mediterrâneo levada por piratas. O mar é um elemento confortador para ela, que a faz recordar de sua terra natal e lhe dá esperanças de retorno, daí lamentar-se à beira do Eufrates por ser levada para sertões de terra bárbara, para bem longe do litoral (Cáriton. Q&C, V. 1). E quando retorna a Siracusa em uma trirreme persa, vestida em púrpura e em meio a finas tapeçarias, evoca uma epifania divina. Para além disso, não é possível explorar a relação entre Calírroe e as divindades aquáticas de mesmo nome. Quanto aos amores infelizes, há mais pontos de contato, especialmente com a historieta da 812

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filha de Foco contada por Plutarco, embora falte nela a paixão correspondida, mas também nas mortes por amor, embora a da heroína de Cáriton seja aparente. Hermócrates, o pai de Calírroe, é um personagem histórico, mencionado várias vezes por Tucídides na História da Guerra do Peloponeso, entre outros historiadores gregos. O romance, ao estabelecer uma tensão entre o discurso historiográfico e a narrativa amorosa, que se insinua já no parágrafo de abertura, busca diluir a fronteira entre o real e o ficcional ao colocar no centro da trama a filha de Hermócrates, uma personagem inventada. Apesar disso, alguns estudiosos sugerem que Cáriton poderia ter esboçado Calírroe a partir de notícias sobre uma filha de Hermócrates que fora desposada pelo tirano Dionísio da Sicília e morta durante uma revolta popular (Diodoro Sículo. Bibliotheca Historica, XIII. 96; XIII.112; XIV. 44) ou, se suicidado após ter sido violentamente abusada pelos siracusanos descontentes com a tirania (Plutarco. Dionísio, 3.1). É uma hipótese tentadora quando se considera que o segundo marido da heroína se chama Dionísio e que, quando agredida por Quéreas, desfalece e é dada como morta. Contudo, faltam elementos para associar essa figura anônima (em Diodoro Sículo e em Plutarco ela será sempre referida como «a filha de Hermócrates») à personagem de Cáriton, que segue uma agenda própria — o seu Dionísio é um proeminente e refinado cidadão de Mileto, por exemplo, nada tendo em comum, além do nome, com o tirano da Sicília. Inegável, contudo, é que a atribuição de paternidade da heroína a Hermócrates acresce sua reputação, distinguindo-a mesmo quando em terras estrangeiras, Mileto e Babilônia, tão longe alcança a fama do comandante siracusano. A identidade de Calírroe é bastante calcada no vínculo que a jovem mantém com Afrodite. Comparada à deusa pela beleza, será por ela acompanhada ao longo de toda a trama. 813

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A união com Quéreas é iniciativa de Eros, mas o primeiro encontro entre os jovens acontece no festival dedicado a Afrodite. A deusa, tão voluntariosa como a retrata Homero, de início favorece o casamento, mas indisposta com Quéreas, que em uma crise de ciúmes agride a mulher, separa o casal e promove nova união de sua protegida com Dionísio, rico senhor milésio que a compra dos piratas. Dionísio dedicava à deusa especial devoção, tendo feito erigir em sua propriedade rural um templo para ela. Ali, Calírroe é frequentemente confundida com a deusa já que a semelhança entre ela e a estátua daquela é assombrosa. Com isso, a moça assume involuntariamente uma aura sedutora a que poucos personagens masculinos do romance conseguem resistir — exceções são o pirata Téron e Policarmo, o amigo dileto de Quéreas. Ao final do romance, a deusa é a principal responsável por reunir o casal, contrapondo-se aos planos da Fortuna (Tyché) para afastá-los em definitivo (Cáriton. Q&C, 8.1). A comparação com Helena, mulher de extraordinária beleza prometida a Páris por Afrodite caso a julgasse a mais bela no juízo das deusas, atravessa todo o romance que, estruturalmente, guarda forte relação com a Ilíada. Afinal, trata-se da história de uma mulher excepcionalmente bela, disputada por inúmeros pretendentes, que, casada, é raptada e levada para Ásia onde é desposada um rico senhor. São vários os pontos de confluência entre as duas personagens, frequentemente sublinhados pelo narrador, inclusive o fato de que a beleza é fonte de poder, mas também uma maldição que as tornam presa do desejo masculino. Cáriton é, entre todos os romancistas gregos, o mais entusiasta de Homero, citando, inclusive, versos inteiros das epopeias. A originalidade de Cáriton está em fazer de Calírroe uma figura compósita que evoca Helena, mas também Penélope, essa, sim, modelo recorrente para as heroínas do 814

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romance antigo por manter-se fiel ao seu amado ausente, evitando o assédio dos pretendentes. O duplo casamento de Calírroe não é obstáculo a essa relação, uma vez que ela só se casa com Dionísio para preservar a vida do filho que esperava de Quéreas, a quem continuava a amar. Sendo assim, o reencontro do casal no oitavo e último livro do romance e seu retorno a Siracusa, depois de vencer um sem-número de provações, onde finalmente desfrutarão de sua paixão, é o clímax narrativo, devidamente marcado pela citação do verso que, para os filólogos alexandrinos selava o fim da Odisseia: «entregaram-se contentes ao rito do antigo leito» (Homero. Odisseia, XXIII. 296). Calírroe destoa da heroína padrão do romance antigo uma vez que não só é bígama (é a única protagonista do romance antigo que não conserva a castidade) como mãe desnaturada, ao abandonar aos cuidados de Dionísio, pai putativo, o filho que tivera de Quéreas. Noto, contudo, que não há censura a ela no romance, quer da parte do narrador, quer da dos personagens. Suas atitudes são justificadas em vista das circunstâncias: o segundo casamento tem por objetivo salvar a vida e a dignidade do filho, que não só nasceria livre, mas teria a proteção de um dos homens mais ricos e influentes da Jônia; confiá-lo ao suposto pai, com a recomendação expressa que o enviasse no futuro a Sicília, para conhecer o avô, não é uma escolha, já que tendo Dionísio a paternidade legal da criança não haveria meios de resgatá-la. Assim, a reputação de Calírroe permanece ao final da história tão ilibada quanto no seu início. Por fim, cabe registrar que alguns motivos dessa história constituirão tópicas da literatura amorosa, ecoadas na literatura posterior, embora seja muito pouco provável que por influência direta, uma vez que, dentre os romances antigos, Quéreas e Calírroe foi o de transmissão mais acidentada. Dentre 815

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eles está a paixão entre jovens pertencentes a famílias rivais, como visto em Romeu e Julieta, e o marido cujo ciúmes infundados da esposa, mas manipulado pela intriga de rivais, tem consequências trágicas, como em Otelo, ambas tragédias de Shakespeare. Fontes históricas CÁRITON DE AFRODÍSIAS. 2020. Quéreas & Calirroe. Tradução, apresentação e posfácio de Adriane da Silva Duarte. São Paulo: Editora 34. CHARITON. 2004. De Callirhoe narrationes amatoriae Chariton Aphrodisiensis. Edição de B. P. Reardon. Monacchi: K. G. Saur. Bibliografia geral DE TEMMERMAN, K. 2014. Crafting Characters. Heroes and heroines in the ancient Greek novel. Oxford: Oxford University Press. DUARTE, A. S. 2018. Calírroe de Siracusa, filha do general Hermócrates: diálogos entre Cáriton e Tucídides, Perspectivas e Diálogos: Revista de História Social e Práticas de Ensino, v. 1, p. 109–123. GRIMAL, P. Calírroe. 1993. Dicionário da Mitologia grega. Tradução de Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, p. 71–72. HAYNES, K. 2003. Fashioning the feminine in Greek Novel. London: Routledge.

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Quartilla › Quartila

por Fabrício Sparvoli

Quartila [em latim: Quartilla] é uma das sacerdotisas de Priapo cuja história Petrônio conta em seu Satyricon, entre as seções 16 e 26 do documento. Trata-se de personagem fictícia que compõe parte do enredo desta obra literária romana escrita em meados da década de 60 EC por Tito Petrônio Niger, consular e membro da corte do imperador Nero (Schmeling 2011, xiii). Composto em um misto de verso e prosa (técnica chamada, em latim, de prosimetrum), o Satyricon reúne em si diversos gêneros textuais (como a poesia épica, a elegíaca, a lírica, ou mesmo elementos dramáticos vindos, por exemplo, dos mimos e das comédias) em uma síntese composicional que não encontra semelhante na literatura latina (Walsh 1970, 32–66). Por ter sido transmitido em estado fragmentário, o documento possui diversos trechos perdidos, inferindo-se algumas informações, muitas das vezes, através de referências esparsas que ocorrem ao longo da narrativa. É o caso do primeiro encontro da sacerdotisa de Priapo com Encólpio, a personagem principal e narrador da história, Gitão, amante de Encólpio, e Ascilto, o membro do triângulo amoroso que disputa com o primeiro os amores do segundo. Com efeito, a relação de Quartila com os três teria iniciado em um trecho do texto original não conservado pela tradição manuscrita. Neste episódio perdido, Encólpio, Gitão e Ascilto teriam cometido uma ofensa contra Quartila, enquanto ela executava suas funções religiosas de sacerdotisa de Priapo, conforme explica sua escrava Psiquê (Petron. Sat. 16. 3). Depreende-se do texto que as três personagens teriam fugido após aquele evento, deixando Quartila condenada por Priapo através de

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uma febre terçã (Petron. Sat. 17. 7). Lembre-se que Priapo é o deus itifálico associado no panteão romano à fecundidade, à abundância, bem como às normas sociais relacionadas à sexualidade, sua transgressão e punição (Oliva Neto 2006). Neste sentido, o episódio de Quartila, tanto seu começo perdido quanto seu fragmento conservado, possui clara conotação sexual, relacionando-se com as fronteiras sexuais e de gênero. A partir da seção 16 do Satyricon, Quartila reencontra o trio e busca um remédio contra sua febre. Encólpio, Ascilto e Gitão haviam retornado recentemente do fórum, onde haviam se envolvido em uma disputa por duas peças de roupa, uma que tentavam vender e outra que tentavam readquirir de um camponês e de sua mulher (Petron. Sat. 12–15). Após grande disputa, o trio retorna para sua hospedaria e, momentos depois, a companheira do camponês aparece. Trata-se, com efeito, de Psiquê, a escrava de Quartila anteriormente mencionada, que vem acompanhada justamente de sua senhora. Após bater fortemente e fazer com que a trava da porta se abrisse sozinha, Psiquê entra no quarto dos três, revela sua identidade e anuncia que Quartila está ali para conversar com o trio (Petron. Sat. 16. 1–4). Ao entrar no quarto, Quartila faz-se acompanhar de uma virgem chamada Paniques (Petron. Sat. 25. 1). Quartila chora dissimuladamente e, então, dirige suas palavras a Encólpio, Ascilto e Gitão, questionando-os inicialmente sobre a origem de seus crimes; a seguir, ameaça-os com punição, por terem visto segredos religiosos (Petron. Sat. 17. 1–4). Apesar disso, afirma Quartila que seu objetivo não é vingança, mas impedir que o trio, movido por irresponsabilidade, revelasse os segredos divinos vistos no santuário de Priapo (Petron. Sat. 17. 8). Após súplicas reiteradas, Encólpio, Gitão e Ascilto cedem a Quartila e prometem não revelar os segredos ritualísticos, bem 818

A presença das mulheres na Literatura e na História

como lhe oferecerem os remédios para sua febre (Petron. Sat. 18. 1–3). Se não agissem assim, Quartila, embora qualificada através do termo pejorativo mulier (Petron. Sat. 18.1), afirma que vingaria a ofensa que recebera, restituindo sua dignidade (Petron. Sat. 18. 7). A sacerdotisa de Priapo, então, afirma ter mandado trancar a hospedaria para que pudesse receber ali o remédio para sua febre terçã, sem interrupções (Petron. Sat. 19. 1–3). Encólpio, Ascilto e Gitão, de pronto, decidem não aceitar essa situação, optando pelo confronto físico com aquelas três mulierculae, «mulherzinhas» (Petron. Sat. 19.4). O trio, achando ter em seu favor o fato de serem homens, parte para a disputa, mas, cercados, perdem o combate (Petron. Sat. 19. 4–5). À guerra entre os sexos, segue-se um longo trecho em estado muito fragmentário, no qual Encólpio, Gitão e Ascilto são submetidos a um ritual de expiação presidido por Quartila (Petron. Sat. 20–21). Se até este momento da narrativa Quartila e suas companheiras haviam sido qualificadas como «mulher» ou «mulherzinha» —mulier e muliercula, termos pejorativos neste contexto histórico—, a partir deste ponto, submetidos ao seu poder vingativo, Encólpio, Gitão e Ascilto passarão a qualificar Quartila como domina, «senhora» (Petron. Sat. 20.1), termo que expressa deferência e status social mais elevado. Trata-se de processo de renegociação de fronteiras jurídicas femininas: submetidos ao poder de Quartila, Encólpio, Gitão e Ascilto modificam a maneira de qualificá-la através da elevação do status social de Quartila, de mulier ou muliercula a domina. Processo de renegociação de fronteiras jurídicas femininas que, aliás, é muito característico do Satyricon. Lembre-se, comparativamente, do caso da Dama de Éfeso (Petron. Sat. 111–112), analisado por Garraffoni e Funari (2019), em que 819

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ocorre justamente o contrário: uma matrona viúva que, após passar a relacionar-se com um soldado, é rebaixada à categoria de mulier. Simultaneamente, a elevação do status jurídico de Quartila corresponde ao rebaixamento de Encólpio, Gitão e Ascilto. Não apenas as três personagens principais haviam perdido a disputa para Quartila, Psiquê e Paniques, mas também serão submetidas a sessões de torturas e a tratamentos considerados repugnantes. Ensaiando invocar o direito dos cidadãos romanos, Encólpio é, no entanto, maltratado por Psiquê; a seguir, entra em cena um cinaedus, um homem qualificado como da pior espécie e dos mais vis comportamentos, que ataca sexualmente o trio (Petron. Sat. 21. 1–2 e 23. 1–5). Note-se que o ritual presidido por Quartila é composto por investidas contra a impenetrabilidade do corpo das personagens, atitude que viola uma fronteira de masculinidade garantida naquele contexto justamente pelo direito que Encólpio, em vão, ensaiava invocar (Walters 1997). Após breve pausa, Quartila prossegue com a vigília noturna em honra de Priapo (Petron. Sat. 21.6). Encólpio, Gitão e Ascilto são, novamente, objeto de investidas por parte de escravas, cinaedi e da própria Quartila (Petron. Sat. 23–24). Há farta comida, farta bebida e flautistas para animar a celebração. Em certa altura, dormindo todos, dois sírios tentam roubar pertences, mas, acordados os presentes, dissolvem-se na multidão comandada pela sacerdotisa (Petron. Sat. 22. 3–5). De fato, tão grande é a rede de poder que Quartila consegue articular (Faversani 1991, 107–110) que as pessoas com quem ela se relaciona (e que comanda) estão presentes em diferentes espaços —do fórum à hospedaria—, pertencem a categorias sociais diversas —como escravas, cinaedi, etc.—, provêm de origens várias — há romanos, mas há sírios também. 820

A presença das mulheres na Literatura e na História

Já ao fim do episódio, tem-se uma cena que exemplifica bem o poder de agência da personagem. Em primeiro lugar, quando Quartila nota Gitão, pergunta a quem pertence aquele que considera ser um escravo, ao que Encólpio diz ser seu companheiro (Petron. Sat. 24. 5–7). Após beijar o rapaz e examinar seu corpo, Quartila decide, sob sugestão de Psiquê, utilizar Gitão para desvirginar Paniques (Petron. Sat. 25. 1). As núpcias são preparadas, mas Encólpio, ao ver a pouca idade da garota (que tem apenas sete anos), protesta contra a situação (Petron. Sat. 25. 2–3). Quartila afirma que ela mesma fora desvirginada ainda mais jovem; na realidade, a personagem afirma que talvez jamais tenha sido virgem e, ao tornar-se mais velha, ela mesma procurara rapazes por iniciativa própria (Petron. Sat. 25. 4–6). Sua agência é demonstrada, também, na organização das núpcias. Note-se que a sacerdotisa se apodera de Gitão, arrasta-o para um quarto, e distribui funções entre os presentes: Psiquê prepara a noiva, Paniques; os cinaedi seguram os apetrechos do casamento; e mulheres embriagadas arrumam o leito nupcial (Petron. Sat. 26.1–2). Quartila, assim, apodera-se daquele que presumia ser um escravo de Encólpio para dá-lo a uma sua escrava, Paniques, e, para tanto, mobiliza sua rede de poder e influência, movendo os participantes conforme seu desejo. Assistindo à consumação das núpcias pela fresta da porta, Quartila é ainda capaz de investir contra o próprio Encólpio, aplicando-lhe beijos (Petron. Sat. 26.5). Trata-se da última cena do episódio de Quartila, que se encerra abruptamente com uma lacuna no texto. Quartila: aquela que ama poder caminhar por onde deseja (Petron. Sat. 18.6). Perante a sacerdotisa de Priapo e seu séquito, curvam-se os deuses e dobram-se os homens. 821

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fonte histórica PÉTRONE. 1974. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 8ème tirage revu et corrigé. Paris: Société d’Éditions «Les Belles Lettres». Bibliografia geral FAVERSANI, F. 1991. A pobreza no Satyricon, de Petrônio. Ouro Preto: Editora da UFOP. GARRAFFONI, R. S.; FUNARI, P. P. A. 2019. As vozes das mulheres no início do principado romano: linguagem, discursos e escrita. In: GARCÍA SÁNCHEZ, M.; GARRAFFONI, R. S. (Orgs.). Mujeres, Género y Estudios Clásicos: un diálogo entre España y Brasil. Mulheres, gênero e Estudos Clássicos: um diálogo entre Espanha e Brasil. Barcelona e Curitiba: Universitat de Barcelona Edicions e Editora da UFPR, p. 281–291. OLIVA NETO, J. A. 2006. Priapo: um deus menor. In: OLIVA NETO, J. A. Falo no jardim: priapeia grega, priapeia latina. Cotia e Campinas: Ateliê Editorial/ Editora da Unicamp, p. 15–80. SCHMELING, G. 2011. A Commentary on the Satyrica of Petronius. With the Collaboration of Aldo Setaioli. Oxford: Oxford University Press. WALSH, P. G. 1970. The Roman Novel: the ‘Satyricon’ of Petronius and the ‘Metamorphoses’ of Apuleius. Cambridge: Cambridge University Press. WALTERS, J. 1997. Invading the Roman Body: Manliness and Impenetrability in Roman Thought. In: HALLET, J. P.; SKINNER, M. B. (Eds.). Roman Sexualities. Princeton, NJ: Princeton University Press, p. 29–43.

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Fortūnāta › Fortunata

por Fabrício Sparvoli

Fortunata [em latim: Fortunata] é a esposa do rico liberto Trimalquião, personagem central da assim chamada Cena Trimalchionis, o Banquete de Trimalquião. Trata-se do episódio que ocupa as seções 26. 7–78. 8 do Satyricon de Petrônio, composição literária romana da época de Nero (Vout 2009). Neste longo episódio, as três personagens principais —Encólpio, Gitão e Ascilto— são convidadas a jantar na casa de Trimalquião por Agamêmnon, um professor com quem Encólpio disputara anteriormente em um torneio de oratória (Petron. Sat. 1–5). O suntuoso banquete, marcado pelo excesso de comida, farta bebida e diversões variadas, tem convidados de condições sociais diversas. Grande importância têm, por exemplo, os escravos, os libertos e suas esposas (Andreau 2009), particularmente Fortunata, esposa de Trimalquião, e Cintila, esposa do convidado Habinas. A primeira menção a Fortunata ocorre no início do banquete, quando Encólpio nota a presença de uma mulher que corria por todos os cantos (Petron. Sat. 37. 1). Para conhecer sua identidade, dirige-se à pessoa que está ao seu lado, que posteriormente é dito chamar-se Hermerote (Petron. Sat. 59. 1). Hermerote, então, apresenta-a como Fortunata, a esposa de Trimalquião, e qualifica-a como possuindo grande riqueza, mas de origem questionável (Petron. Sat. 37. 2–3). Ainda segundo ele, Fortunata havia sido elevada à melhor condição por seu marido e, tornando-se influente sobre ele, era capaz de convencê-lo de qualquer coisa (Petron. Sat. 37. 4–5). Referindo-se às riquezas —excessivas e, por isso, desconhecidas— de Trimalquião, afirma Hermerote que

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Fortunata, ao contrário de seu marido, as conhece previamente (Petron. Sat. 37. 6). Sobre suas características pessoais, afirma que Fortunata é uma mulher de bons costumes, sobriedade, ainda que fosse também dona de uma má língua, e bons conselhos, os quais se expressariam ironicamente através da grande quantidade de ouro que ela porta (Petron. Sat. 37. 7–8). A partir deste ponto e até o fim do episódio, Fortunata será mencionada apenas em três situações laterais. A primeira delas ocorre após Trimalquião ausentar-se do triclínio para aliviar algumas necessidades corporais (Petron. Sat. 41. 9). Quando retorna, discursa sobre os intestinos e autoriza os convidados a ficarem à vontade em caso de alguma necessidade física (Petron. Sat. 47. 1–4). Ao ouvir esse discurso, Fortunata, demonstrando independência, ri do marido (Petron. Sat. 47. 5). Na segunda de suas breves aparições, Fortunata age para evitar que o marido se exponha a uma situação vexatória. Embriagado, Trimalquião refere-se ao fato de que Fortunata seria uma exímia dançarina (Petron. Sat. 52. 8). Animado com a ideia de dançar, o próprio Trimalquião levanta-se e, enquanto escravos cantam, avança para o centro do triclínio; no entanto, é impedido por Fortunata, que se aproxima do ouvido do marido e, segundo refere Encólpio, diz que aquela situação não se adequava a ele, repreensão que, no entanto, não surte efeito (Petron. Sat. 52. 1–11). Finalmente, a terceira e última breve aparição de Fortunata ocorre quando, a certa altura do banquete, um escravo cai sobre Trimalquião (Petron. Sat. 54. 1). Aparentemente ferido, diversas pessoas afluem em seu socorro: médicos, escravos e, entre os primeiros, com os cabelos desarrumados e uma taça na mão, a própria Fortunata, proclamando-se miserável e infeliz (Petron. Sat. 54. 2). Fortunata retorna ao centro da cena quando, embora o banquete já se encaminhasse para o fim, chega um novo e importante conviva, Habinas, que vem acompanhado 824

A presença das mulheres na Literatura e na História

de sua esposa, Cintila (Petron. Sat. 65. 3). Após descrever em detalhes o banquete fúnebre do qual vinha (Petron. Sat. 65. 9–66. 7), Habinas requisita a presença de Fortunata no triclínio, sem a qual ameaça retirar-se (Petron. Sat. 67. 1–3). Note-se que, com sua chegada, Fortunata assume tal importância que nem mesmo o anfitrião seria capaz de garantir a presença de Habinas. Trimalquião justifica a ausência de Fortunata através da preocupação de sua esposa com a administração da casa e dos escravos e, então, Fortunata é chamada insistentemente por todos os escravos, retornando ao banquete (Petron. Sat. 67. 3–4). O retorno de Fortunata ecoa a entrada de seu próprio marido no início do episódio (Petron. Sat. 32). Como naquela altura, enfatiza-se a riqueza da personagem que entra no triclínio: sua roupa luxuosa é descrita em detalhes e, após cumprimentar Cintila, Fortunata expõe suas jóias à amiga, que retribui com o mesmo tipo de ostentação (Petron. Sat. 67. 4–6). Trimalquião, vendo a exposição de riquezas, repreende-as inicialmente, mas, a seguir, de modo semelhante demonstra suas próprias (Petron. Sat. 67. 7–8). Com isso, Trimalquião quer não apenas ostentar suas riquezas, mas, em última instância, mostrar que está à altura de Fortunata, que é capaz de competir com ela. Já a relação entre Fortunata e Cintila não se resume à comparação e disputa de jóias. Quando Habinas, bêbado, investe contra Fortunata, igualmente bêbada, tentando possuí-la à força, esta é acolhida, envergonhada, por sua amiga Cintila (Petron. Sat. 67. 11–13). Assim, mesmo sendo vítima de uma investida despudorada, Fortunata age com pudor, renegando Habinas e envergonhando-se da situação, ao procurar refúgio junto de sua amiga Cintila, que a acolhe. Mais adiante, novos pratos são introduzidos, Fortunata começa a dançar, Cintila a aplaudir, e, enquanto isso, novos escravos entram no triclínio e sentam-se à mesa com os demais 825

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convivas (Petron. Sat. 70. 10–11). Trimalquião, em primeiro lugar, defende a presença deles à mesa, e, a seguir, passa à leitura de seu testamento, através da qual parece querer comprovar sua generosidade para com os escravos que possui, uma vez que todos eles serão libertados por ocasião de sua morte (Petron. Sat. 71. 1). Quanto a Fortunata, Trimalquião faz dela sua herdeira (Petron. Sat. 71. 3) e manda colocar em seu túmulo uma estátua representando-a, ao lado daquela que representaria um seu escravo favorito (Petron. Sat. 71. 11). Fortunata e todos os demais presentes choram com a leitura do testamento (Petron. Sat. 72. 1). Trimalquião, no entanto, busca reavivar a festa e conduz todos para uma sala de banhos (Petron. Sat. 72. 3). Pouco tempo depois, os convidados são levados para um novo triclínio, preparado por Fortunata (Petron. Sat. 73. 5). Um galo, então, canta, o que é interpretado por Trimalquião como sinal de mal agouro (Petron. Sat. 74. 1). Tendo sido capturado, o galo é dado para Dédalo, um dos cozinheiros, e Fortunata o auxilia no preparo (Petron. Sat. 74. 5). Mais uma vez, novos escravos entram em cena para substituir os que estavam trabalhando (Petron. Sat. 74. 7). Dentre eles, havia um belo jovem, contra o qual Trimalquião avança e o beija (Petron. Sat. 74. 8). Fortunata protesta contra a atitude de Trimalquião, xingando-o e invocando seu direito estabelecido de esposa (Petron. Sat. 74. 9). Trimalquião revolta-se contra a atitude da esposa e, a partir deste ponto, ataca-a longamente, ao mesmo tempo em que se justifica (Petron. Sat. 74. 10–77. 6). À má caracterização de Fortunata, Trimalquião contrapõe uma caracterização positiva de si próprio. Assim, ao mesmo tempo em que diz que Fortunata fora uma prostituta que ele elevara a uma melhor condição social (Petron. Sat. 74. 13–14 e 77. 1), Trimalquião afirma sobre si que teria construído fortuna através de sua própria iniciativa (Petron. Sat. 74. 15 e 75. 10). Em apenas um momento Trimalquião reconhece a participação 826

A presença das mulheres na Literatura e na História

de Fortunata em seus negócios, através das joias que vendera para investir nos negócios incipientes do marido (Petron. Sat. 76. 7). Ainda assim, Trimalquião decide que a estátua de Fortunata seria retirada de seu túmulo (Petron. Sat. 74. 17) e, após chamá-la de cobra, inicia uma encenação macabra em que pede que seu banquete fúnebre seja representado (Petron. Sat. 78. 4). A situação, segundo Encólpio, dirigia-se para a suma náusea; o lamento era tamanho que guardas noturnos invadem o banquete, achando tratar-se de um incêndio (Petron. Sat. 78. 5–8). Encólpio, Gitão e Ascilto fogem do banquete e nada mais se saberá acerca de Fortunata, Trimalquião e seus convivas. Há tantas Fortunatas quantas são as situações em que se encontra e os atores que a descrevem, de modo que reduzi-la à mera condição de esposa de Trimalquião implica em simplificar a complexidade da personagem. De fato, não há uma única Fortunata, mas muitas: a esposa piedosa; a administradora da casa e dos negócios do marido; aquela que controla Trimalquião, evitando que ele se exponha a situações indignas; aquela que, em um momento, ostenta muitas jóias à sua amiga e, em outro, auxilia o cozinheiro no preparo de refeições; a ex-prostituta convertida em senhora respeitável; a investidora nos negócios incipientes do marido. Pensando nas «redes de relações diretas de poder» (Faversani 1999, 74) envolvidas no banquete, pode-se observar Fortunata no centro de quase todas elas, envolvida do controle dos bens do marido ao preparo dos alimentos. Associando-se a libertos e escravos em uma situação muito característica do período neroniano (Joly 2010), pode-se imaginar Fortunata nos bastidores de cada bravata encenada na domus de Trimalquião, organizando-a. Com justiça, o banquete poderia ser considerado como o Banquete de Fortunata, dada a importância de sua participação e a multiplicidade de seus papéis exercidos. 827

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fontes históricas PÉTRONE. 1974. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 8ème tirage revu et corrigé. Paris: Société d’Éditions «Les Belles Lettres». Bibliografia geral ANDREAU, J. 2009. Freedmen in the Satyrica. In: PRAG, J.; REPATH, I. Petronius: A Handbook. Malden/Oxford: Wiley-Blackwell, p. 114–124. FAVERSANI, F. 1991. A pobreza no Satyricon, de Petrônio. Ouro Preto: Editora da UFOP. JOLY, F. D. 2010. Hierarquia, status e poder nos Anais, de Tácito: uma leitura dos livros neronianos. In: ARAÚJO, S. R. R.; ROSA; C. B.; JOLY, F. D. (Orgs.). Intelectuais, poder e política na Roma Antiga. Rio de Janeiro: Nau/FAPERJ, p. 99–133. VOUT, C. 2009. The Satyrica and Neronian Culture. In: PRAG, J.; RAPATH, (Eds.). Petronius: A Handbook. Malden/ Oxford: Wiley-Blackwell, p. 101–113.

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Matrona Ephesia › Matrona de Éfeso

por Renata Senna Garraffoni

A Matrona de Éfeso é uma personagem fictícia, protagonista de uma anedota contada no Satyricon de Petrônio. Embora curta, a historieta permite reflexões sobre as mulheres e os olhares dos homens sobre elas, afinal, chegou até nós pela versão de Petrônio. Para entender um pouco mais sobre quem é essa mulher, é preciso conhecer o contexto na obra na qual aparece. O Satyricon, obra escrita por Petrônio provavelmente no século I EC, é um texto predominantemente escrito em prosa, embora tenha passagens em verso, feita para gerar o riso e envolta em polêmicas. A forma acidentada como chegou até nós estimulou Federico Fellini adaptá-la ao cinema em 1969. Na ocasião, afirmou que sua fragmentação é a expressão da Antiguidade, envolta em um denso nevoeiro, um mundo perdido com o qual nos conectamos por meio de hipóteses e sugestões (Fellini 2012, 103). Essa leitura do cineasta é compartilhada por muitos dos estudiosos da obra nas universidades, afinal, pouco se sabe sobre seu autor, Petrônio, e sobre como seria a obra como um todo. O que dispomos hoje são apenas alguns de seus livros, provavelmente partes dos livros XIV–XVI e imagina-se que o original seria bem maior, uma vez que, a sua concepção seria feita nos moldes da Odisseia de Homero. O que sabemos ao certo é que a obra é narrada em primeira pessoa por Encólpio, jovem aventureiro que se envolve em inúmeras situações hilárias com seus amigos/amantes Ascilto, jovem livre e pobre, e Giton, um escravo. Perseguidos pela ira do deus Priapo, fato que deixa Encólpio parte da obra impotente, os jovens viajam e contracenam com uma diversidade de personagens: Agammenon, Eumulpo, Licas, algumas bruxas,

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sacerdotisas do deus Priapo e vários libertos, desde os milionários até os mais pobres. A grande maioria das situações em que se envolvem é de natureza erótica, mas também encontramos histórias de naufrágios, roubos, bruxarias e orgias culinárias. Do ponto de vista da narrativa da obra, segundo Walsh (1995), é possível detectarmos a presença de dois tipos de episódios no desenrolar dos acontecimentos; eles podem ser de origem interna ou externa. Os episódios internos ocorrem quando os acontecimentos se centram na relação Encólpio/Gíton e o ciúme que nasce diante da presença de Ascilto e Eumulpo. Aqui a presença de Priapo é fundamental, pois é devido a sua ira que o protagonista se torna impotente. Já os episódios externos são constituídos a partir da relação de Encólpio com os demais personagens. Este segundo tipo de ação permite a Petrônio deslocar a narrativa e introduzir os elementos de sua sátira, como no caso do jantar de Trimalcião ou no caso da Matrona de Éfeso. A história da Matrona de Éfeso é ouvida por Encólpio enquanto viajava clandestino no navio de Licas. Destacar isso é bem importante, pois a personagem aparece na obra de Petrônio por meio de uma história ouvida por Encólpio e narrada por um homem que estava no navio, para um público masculino. Ou seja, é atravessada por múltiplos olhares masculinos, mas mesmo assim, em estudos que realizamos com Funari (2008; 2019), argumentamos que é possível perceber agência feminina na Antiguidade. Talvez seja essa tensão que tenha levado Fellini a dedicar um lugar especial a história em sua adaptação para o cinema, como veremos nas considerações finais deste verbete. De forma resumida, a história trata de uma mulher de Éfeso, bastante reconhecida e respeitada, em seu momento de luto. Tendo se tornado viúva e, por ser considerada uma mulher muito casta, a matrona de Éfeso decide que será sepultada junto com seu marido falecido e, para que seu plano se concretize, leva com ela uma escrava. Os dias passam e a mulher encerrada 830

A presença das mulheres na Literatura e na História

na tumba não come, não dorme, só lamenta a morte do marido. Nesse meio tempo, um bandido é crucificado nas imediações e um soldado destacado a tomar conta da cruz para que ninguém retire o corpo para sepultamento. Ouvindo o choro, o soldado intrigado se aproxima da tumba e, primeiro, conversa com a escrava e, na sequência, descobre a decisão da nobre mulher. No entanto, ele, em suas visitas, oferece comida a escrava e a matrona, e aos poucos começam a conversar e a comer juntos. Em uma dessas visitas, em especial no momento em que finalmente o soldado seduz a matrona, o corpo do bandido é roubado da cruz. Temendo que o amante soldado fosse punido com a morte, dado a sua falta, a mulher tem uma ideia, diz ela (tradução de Bianchet 2004, 205): «Que os deuses não permitam que eu assista, ao mesmo tempo, aos dois funerais dos dois homens mais especiais para mim. Prefiro pendurar o morto a matar o vivo». Dito isso, ordenou que o corpo de seu falecido marido fosse pregado na cruz que estava vazia. O soldado, aliviado, colocou em prática aquele sábio plano e as pessoas teriam ficado espantadas e se perguntavam como o bandido morto teria voltado a cruz! Narrada para causar o riso dos homens no navio, em uma primeira leitura pode parecer que a mulher estaria em uma situação de escárnio. No entanto, uma análise filológica pode ampliar nossa percepção sobre a anedota, pois ela apresenta um uso particular do vocabulário que envolve relações de poder, muitas vezes difíceis de manter em traduções. Um exemplo disso são os jogos de palavra feitos para se referir à dama. Logo de início, ela é apresentada como matrona, uma senhora, caracterizada pela pudicitia, a ponto de atrair para si (ad spectaculum sui) as feminae (mulheres) da vizinhança. O marido é descrito como uir. A viúva decide encerrar-se na tumba o que a transforma em «mulher de exemplo singular» (singularis exempli femina). Ali chorava o cadáver recente do 831

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marido, ainda como matrona (recens cadauer matrona deflebat). O soldado que tomava conta dos crucificados nas redondezas aproximou-se daquela que é descrita como pulcherrima muliere. O termo mulier encontra-se no extremo oposto ao elevado matrona, usado para descrever a mulher de baixa extração. Como bela mulher, o parecia atingir como um monstro e imagens infernais (monstro infernisque imaginibus). A mulher é, portanto, associada aos mistérios do mundo dos mortos. O soldado logo vê o corpo do morto e compreende do que se tratava: uma mulher (feminam) que não podia aguentar o desejo do morto (desiderium extincti). A mulher, descrita com um termo médio (femina), nem tão alto como matrona, nem tão baixo como mulier, sentia desejo (desiderium). O termo significa, em primeiro lugar, desejo, mas, por extensão, tem a conotação de saudade. Quando o soldado tenta dar comida, a palavra usada para se referir à senhora abaixa para muliercula, expressão não tão frequente na literatura antiga, cujo sentido é um tanto depreciativo («uma mera mulher»), tal como o masculino homunculus (para uma análise completa veja Garraffoni; Funari 2008; 2019). Esse jogo de palavras está presente em toda a anedota. Observando o texto com atenção nota-se que também ocorrem mudanças de termos e emprego de expressões de duplo sentido para descrever a escrava, o soldado e as carícias entre o soldado e a matrona. O jogo principal que se cria é que, enquanto todos pensavam que na tumba estava a mais pudica esposa (pudicissima uxor), vemos uma mulher que satisfaz seus desejos e o soldado, insígnia de poder, pensava dominar a situação, mas fora dominado por ela. Estava encantado pela beleza da mulher e pelo segredo, se colocou em risco a ponto de poder perder a própria vida. Os jogos de palavras, portanto, permitem que possamos ler o texto de várias formas. 832

A presença das mulheres na Literatura e na História

As mulheres, no caso a matrona e a escrava, aparecem em múltiplas dimensões, como submissas e castas, mas também como dominadoras e senhoras da situação. O domínio patriarcal aparece como norma, logo colocada de ponta-cabeça. As hierarquias sociais tampouco se mantêm rígidas, ao demonstrar a fluidez de toda a situação. Mesmo que a anedota, no limite, tenha sido escrita por Petrônio para causar o riso, as mulheres não são descritas de maneira uniforme, os termos ambíguos são usados para o soldado e as mulheres, essas apresentam comportamentos não esperados, lideram, enquanto o jovem soldado que age no começo, diante do problema, se torna passivo. A ambiguidade do texto e sua engenhosidade é uma característica do estilo de Petrônio. É por essa razão que sua obra é sempre citada em pesquisas recentes sobre gênero e sexualidade no campo da historiografia. Se hoje os estudos sobre o tema se expandem na academia, não podemos deixar de comentar o olhar astuto de Fellini em 1969. Ao adaptar a obra para o cinema não foi totalmente fiel no processo, faz uma série de inversões ou modificações na narrativa, criando inclusive cenas que não existem no livro. A anedota mesmo é um exemplo desses deslocamentos, pois aparece narrada no banquete de Trimalcião, não no navio como no original. Se olharmos essa inversão considerando o filme como uma recepção da obra, faz sentido: a historieta da matrona aparece em um momento central da narrativa de Fellini e ajuda a construir sua proposta de mulheres fortes e livres que paira sobre o filme. Talvez esse seja um aspecto que não deva ser menosprezado de sua adaptação e o diferencia dos épicos hollywoodianos sobre a Antiguidade e dos filmes italianos produzidos durante o fascismo: Fellini explora, de forma inédita e única, a presença das mulheres. Essas mulheres múltiplas, livres, novas ou velhas, das mais diferentes origens étnicas, falam, riem, conduzem, desejam, aparecerem marcadas pela contra-conduta de sua época, no auge, portanto, da contracultura. Não é à toa 833

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que escalou Donyale Luna, a primeira mulher negra capa da Vogue para ser a sacerdotisa Quartilla, por exemplo. Vestida com um traje pouco usual, mais tarde iria inspirar Jean Paul Gaultier a fazer o icônico corset da Madonna, criando assim, na cultura de massa, visuais de poder feminino via Satyricon. Uma recepção de uma obra romana que não poderia deixar de ser mencionada aqui, dada a sua força e singularidade. Mas isso é outra história... (Garraffoni; Bonadio, no prelo). Referências Fontes históricas PETRÔNIO. 2004. Satyricon. Tradução e comentários de Sandra Bianchet. Belo Horizonte: Crisálida. SATYRICON DE FELLINI. 1969. Direção de Federico Fellini. Itália: PEA (124 min.). Bibliografia geral FELLINI, F. 2012. A arte da Visão — conversas com Goffredo Fofi e Gianni Volpi, São Paulo: Martins Fontes. GARRAFFONI, R.S.; BONADIO, M. C. No Prelo. Quando os antigos romanos entram em cena: corpos, vestimentas e masculinidades no cinema. In: COELHO, M. C. C.; MARTINS, E. F. (Orgs.) Mito em Movimento: ensaios sobre a recepção da Antiguidade no cinema, Curitiba: Editora da UFPR. GARRAFFONI, R. S.; FUNARI, P. P. A. 2019. As vozes das mulheres no início do Principado Romano: Linguagem, discursos e escrita. In: GARCÍA SANCHES, M.; GARRAFFONI, R. S. (Orgs.). Mujeres, Género y Estudios Clásicos: un dialogo entre España y Brasil. Barcelona/Curitiba: Universidade de Barcelona/Editora da UFPR, p. 281–292. 834

A presença das mulheres na Literatura e na História

GARRAFFONI, R. S; FUNARI, P. P. A. 2008. Gênero e conflitos no Satyricon: o caso da dama de Éfeso, História. Questões e Debates, 48/49, p. 101–117. WALSH, P. G. 1995. The Roman Novel. Cambridge: Cambridge University Press.

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Circē › Circe (Satyricon)

por Fabrício Sparvoli

Circe [em latim: Circe] é uma personagem fictícia do Satyricon, de Petrônio. Escrito sob o principado de Nero em meados da década de 60 EC, o Satyricon é uma composição mista de verso e prosa, técnica chamada pelos antigos de prosimetrum, que narra a viagem (provavelmente entre Massília, na Gália, e o Helesponto, na Ásia Menor) de Encólpio, Gitão e Ascilto. Legado pela tradição manuscrita em estado fragmentário, apenas uma parcela da história sobreviveu, na qual o trio se encontra no sul da Península Itálica. Acredita-se que a narrativa sobrevivente comece em Puteoli (Schmeling 2011, xxiii), onde, após uma série de disputas, o triângulo amoroso se dissolve e, com a saída de Ascilto, o poeta Eumolpo junta-se a Encólpio e Gitão (Petron. Sat. 90 e seguintes). Após embarcarem em uma viagem marítima e naufragarem (Petron. Sat. 114), Encólpio, Gitão e Eumolpo vão parar fortuitamente em uma cidade desconhecida (Petron. Sat. 116). Ficam sabendo tratar-se de Crotona através de um transeunte, que lhes descreve a cidade como um local onde negócios não prosperam, onde inteligência não é tida em alta estima, mas que se divide entre pessoas caçadoras de herança e pessoas cujas heranças são caçadas (Petron. Sat. 116. 3–9). O trio, então, planeja um golpe para inserir-se na vida da cidade: Eumolpo se passaria por um velho rico recém-naufragado, cuja riqueza seria incontável e cujo filho morrera; Encólpio e Gitão fariam o papel de escravos, para dar credibilidade à farsa (Petron. Sat. 117. 1–10). Junta-se ainda ao trio uma personagem acerca da qual pouco se sabe, chamado Córax, que também desempenhará o papel de escravo de Eumolpo (Petron. Sat. 117.11–13).

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Note-se que, ao representar seu papel no golpe de Eumolpo, Encólpio troca de identidade, passando a chamar-se Polieno (Petron. Sat. 126.1). A troca de identidade não é fortuita. Com efeito, Polieno é um epíteto atribuído por Homero a Odisseu (Od. 12.184). Ao conferir à personagem uma nova identidade (homérica), Petrônio está a evidenciar a utilização da Odisseia como hipotexto para o Satyricon, assim como os paralelos existentes entre Encólpio/Polieno e Odisseu (Morgan, 2009, 32–33). Note-se que, enquanto na Odisseia o herói é perseguido pelo deus Poseidon (Od. 5. 282 e seguintes), no Satyricon o anti-herói é perseguido por um deus menor e risível, Priapo (Petron. Sat. 139.2). Ademais, também Circe, a respeitável senhora de Crotona que procurará relacionar-se com Polieno, é uma personagem referida pela Odisseia: trata-se da feiticeira que habita a ilha de Aiaie, particularmente temida por transformar os companheiros de Odisseu em porcos (Od. 10. 135–136 e 235–240). Finalmente, segundo Panayotakis (1994, 458), deve-se ter em mente que Crotona nem sequer existia quando Petrônio compôs sua obra, o que ressalta o caráter fictício do episódio. Em suma: ao adentrar uma cidade que não existia assumindo identidades homéricas, as personagens estão ingressando, na realidade, no reino da criação literária intertextual, da recriação satírica romana de uma história épica homérica (Walsh, 1970). Assim que decidem por representar a farsa em que Eumolpo é um velho rico e sem filhos, Gitão e Córax entram em Crotona e são recepcionados por caçadores de herança (Petron. Sat.124.2–4). Na sequência de uma lacuna na tradição textual, tem-se abruptamente a conversa entre Críside e Polieno, na qual a escrava de Circe tenta fazer com que o falso escravo de Eumolpo ceda aos desejos, por livre vontade ou mediante pagamento, de sua senhora (Petron. Sat. 126.1–11). Porque Polieno achava que, na realidade, era Críside quem se interessava por 838

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ele, a escrava explica-lhe o costume peculiar daquela cidade: ali, senhoras da alta sociedade relacionam-se apenas com homens subalternos e, contrariamente, mulheres subalternas relacionam-se apenas com homens da alta sociedade (Petron. Sat. 126. 7 e 10). Como afirma Críside, este é o caso de sua senhora Circe, que, quando vai ao teatro, procura na mais extrema plebe sua diversão (Petron. Sat. 126. 7). O encontro é, então, arranjado e, após trocas de elogios e carícias, Polieno é acometido por uma impotência sexual. Considerando-se culpada da incapacidade do companheiro, Circe, em primeiro lugar, questiona-o se acaso sua beleza era pouca ou se sua incapacidade ocorria por medo de Gitão; a seguir, questiona Críside acerca da origem da situação (Petron. Sat. 128.1–3). Um tempo depois, Circe envia a Polieno uma carta através de Críside, na qual nega ser uma libertina; agradece pela impotência da personagem, que teria lhe rendido mais diversão do que se tivessem consumado a relação; e acusa Polieno de já estar morto, uma vez que seus nervos não funcionavam, oferecendo-lhe, no entanto, uma solução para o problema: deixar de ter relações com Gitão (Petron. Sat. 129. 3–9). Polieno, ofendido após ler a carta, recebe um conselho de Críside: uma vez que coisas semelhantes ocorriam naquela cidade, onde as mulheres eram capazes de controlar até os astros celestes, que ele apenas respondesse com delicadeza e restituísse a Circe seu amor próprio, perdido com a situação (Petron. Sat. 129.10–11). Polieno responde a carta, frisando sua juventude, a novidade da situação e sua disposição em submeter-se a qualquer tratamento proposto por Circe (Petron. Sat. 130.1–6). Ele próprio, então, inicia um tratamento, preparando seu corpo para uma nova tentativa amorosa e, quando encontra Circe, submete-se também a um ritual mágico presidido pela velha Proselenos, convocada por Circe (Petron. Sat. 130. 7–130.4). 839

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Inicialmente restituído em suas forças por Proselenos, Circe e Polieno partem para um novo congraçamento amoroso, que, no entanto, é interrompido por mais uma impotência de Polieno (Petron. Sat. 131.5–11). Ultrajada pelas repetidas incapacidades sexuais de seu companheiro, Circe decide partir para a vingança: convoca sua escravaria, ordenando que surrem e cuspam em Polieno, que, reconhecendo sua culpa, não reage. Também Proselenos e Críside são castigadas (Petron. Sat. 132.2–5). Posteriormente, Polieno será submetido a um novo ritual, desta feita no templo de Priapo, conduzido por Enótia, secerdotisa do deus, com auxílio de Proselenos (Petron. Sat. 134.1–138.8). É claro o paralelo entre este ritual e a preparação do corpo de Odisseu pelas criadas de Circe, única ocasião do episódio homérico em que aparecem mencionadas (Od. 10.350–374). Assim como Odisseu, Polieno, aparentemente, é revigorado pelo tratamento (Petron. Sat. 139.1–2). A tradição textual do Satyricon, neste ponto, é particularmente fragmentária, de modo que apenas conjecturalmente se pode inferir que Polieno, embora tenha se recuperado momentaneamente, falha mais uma vez. Isso porque somente mais adiante, quando Circe já não é mais mencionada, é que Polieno, investindo sexualmente contra um jovem rapaz, recupera suas forças (Petron. Sat. 140.12–13). De modo interessante, a personagem atribui sua cura a Mercúrio (Petron. Sat. 140. 12) – assim como Odisseu fora prevenido da emasculação por ninguém menos que Hermes (Od. 10. 285–301), o equivalente grego de Mercúrio. As diferenças entre a Circe homérica e a petroniana são notáveis. Enquanto a Circe homérica é descrita como filha de Apolo (Od. 10. 138), a Circe petroniana nega sê-lo (Petron. Sat. 127.6). Além disso, a Circe homérica age, na maior parte do episódio, sozinha (apenas em Od. 10. 350–374 recebe ajuda de criadas), ao passo que a Circe petroniana é introduzida na história, ao contrário, por sua escrava Críside (Petron. Sat. 126. 840

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1), que terá importância central, junto de Proselenos e outros escravos, ao longo do episódio. Finalmente, uma diferença chama particularmente atenção: enquanto a Circe homérica é passiva no início do episódio, uma vez que é procurada por aqueles que chegam à sua ilha, primeiro por Euríloco, e, após, pelo próprio Odisseu (Od. 10. 229 e 310), a Circe petroniana é, desde o início, ativa em sua busca por Polieno, mandando que sua escrava Críside o procure, após já ter investigado sobre ele (Petron. Sat. 126. 1–7 e 127. 2). Similarmente notáveis são suas semelhanças. Ambas são descritas como sumamente belas (Od. 10.136 e Petron. Sat. 126.13), como habitando simultaneamente o plano divino e humano (Od. 10. 238 e Petron. Sat. 127. 5) e como donas de uma distintamente bela voz (Od. 10. 221 e Petron. Sat. 127. 5). Um ponto em comum entre as duas histórias, por sua vez, chama particular atenção. Trata-se do perigo de que a personagem masculina, ao relacionar-se com Circe, seja emasculada e perca sua virilidade. Embora essa questão seja lateral na épica homérica (Od. 10. 301 e 341), a sátira petroniana, no entanto, explorará o assunto em maior extensão através da impotência de Polieno (Petron. Sat. 128. 1–140.12). Ao recriar Circe, personagem da épica homérica, Petrônio apresenta uma versão com tons muito particulares, subvertendo um episódio apresentado na Odisseia. Ao contrário da Circe homérica, trata-se de personagem que age, desde o início, ou por si própria ou através de sua rede de escravos e dependentes. Ao contrário da Circe homérica, que reduz homens à condição animalesca e os emascula, a Circe petroniana busca «des-emascular» Polieno, que, de seu próprio ponto de vista, já não se considerava mais homem. Ao ler a história da Circe petroniana, deve-se ter em mente a relação intertextual estabelecida com o texto homérico, a partir da qual as expectativas e suas quebras, 841

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tanto de leitores antigos quanto modernos, são esperadas. Circe: a personagem que nos coloca na encruzilhada literária antiépica de romanos com gregos. Fontes históricas HOMERO. 2018. Odisseia. Tradução e introdução de Christian Werner. São Paulo: Ubu Editora. PÉTRONE. 1974. Le Satiricon. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. 8ème tirage revu et corrigé. Paris: Société d’Éditions «Les Belles Lettres». Bibliografia geral MORGAN, J. R. 2009. Petronius and Greek Literature. In: J. Prag & I. Repath, Petronius: A Handbook. Malden, USA/ Oxford, UK: Wiley-Blackwell, p. 32–47. PANAYOTAKIS, C. 1994. A Sacred Ceremony in Honour of the Buttocks: Petronius, Satyrica 140.1–11, Classical Quartely, 44 (ii), p. 458–467. SCHMELING, G. 2011. A Commentary on the Satyrica of Petronius. With the Collaboration of Aldo Setaioli. Oxford: Oxford University Press. WALSH, P. G. 1970. The Roman Novel: the «Satyricon» of Petronius and the «Metamorphoses» of Apuleius. Cambridge: Cambridge University Press.

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Proselenos › Proselenos

por Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet

A velha Proselenos ou Proseleno é uma das três personagens feiticeiras do Satyricon, de Petrônio, trazida à narrativa nos episódios finais da obra, mais especificamente nas seções 132 a 137. Seu nome pode ser traduzido por “aquela que é mais antiga do que a lua”, ou por “aquela que é como a lua”, o que coloca em destaque sua vinculação ao paradigma das magas e de seus saberes mágicos tradicionais, presente no imaginário cultural da antiguidade. A obra de Petrônio, aqui referida por romance — em que pese o anacronismo, foi escrita muito provavelmente nos anos 60 do século I d.C., sendo considerada inaugural de seu gênero em contexto latino. A inexistência de outras obras congêneres, à exceção das As metamorfoses de um burro de ouro de Apuleio, de cerca de um século depois, dificulta sua categorização segundo a teoria de gêneros corrente na antiguidade. A esse respeito, Macróbio (séc. IV d.C.), em seu Commentarium in somnium Scipionis (1, 2), se refere a ambas as obras como argumenta fictis casibus amatorum referta (narrativas repletas de desventuras fictícias de amor), aproximando-as das comédias de Menandro e de seus imitadores, sc. Plauto e Terêncio (Futre Pinheiro 2005; Bianchet 2006). Também a determinação da identidade do autor do Satyricon é controvertida. Communis opinio defende que se trate do Gaius Petronius Arbiter (27–66 d.C.), mencionado pelo historiador Tácito (Anais, XVI, 18–20) como árbitro da elegância da corte do imperador Nero. A confirmar essa identidade, tratar-se-ia do mesmo Petrônio que foi governador da Bitínia e Cônsul em 62/63 d.C., e que teria

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sido denunciado por Tigelino como partícipe da conspiração para matar o imperador, fato pelo qual teria sido aprisionado em Cuma, onde cometeu suicídio. A participação de Proselenos no Satyricon dá-se nos últimos episódios da narrativa, de forma fragmentada, tal como esta chegou até o presente, e está relacionada às desventuras eróticas entre Encólpio e Circe, descritas nas seções 125 a 139. Toda a cena se passa na cidade de Crotona, local a que o narrador autodiegético Encólpio havia chegado, junto de seus companheiros, após se salvar do naufrágio do navio de Licas e Trifena, uma viagem repleta de desventuras, descrita entre as seções 99 e 124. Um resumo dos eventos é importante, para a compreensão da personalidade e da função de Proselenos. Depois de uma lacuna no texto, após a cena do desastre náutico e a recitação do poema épico Bellum ciuile pelo poeta Eumolpo, a matéria narrada se volta ao detalhamento da farsa teatral (mimum) que o trio decidira representar em Crotona, de modo a obter vantagens dos heredipetae (“caça-heranças”) que povoavam a cidade. O episódio central desse passo se inicia exatamente na abordagem de Encólpio por uma criada chamada Críside (seção 126), que leva até ele sua senhora, a bela Circe, interessada sexualmente pelo jovem, que fazia o papel de escravo de Eumolpo. Ele, porém, não consegue realizar os desejos da amante (seção 127), atingido pela impotentia coeundi provocada pelas iras de Priapo, desde que o protagonista estudante de retórica, seu frater Ascilto e seu puer delicatus Gitão interromperam os cultos priapeus conduzidos pela sacerdotisa Quartila (episódios iniciais — seções 16 a 26). Para expiar a ofensa, o trio fora submetido a uma longa série de torturas sexuais e, desde então, Priapo é tido como deus perseguidor pelo narrador, sob o modelo literário da função de Poseidon, na Odisseia, e de Juno, na Eneida. 844

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Na sequência da trama, Encólpio se esforçou para conseguir a união sexual com Circe e se dispôs uma segunda vez a conduzi-la à uoluptas robusta (concretização do prazer). Os amantes trocam correspondências — de Circe para Polieno/ Encólpio (seção 129) e de Polieno/Encólpio para Circe (seção 130), em que a matrona frustrada indica um provável modo de solucionar o problema: a recomendação de que Encólpio não tenha relações íntimas com Gitão. Empenhado em recuperar os “nervos” da parte de seu corpo funerata (pronta para receber as últimas homenagens), o narrador reforça o cumprimento dessa orientação com cuidados adicionais — massagem corporal, ingestão de alimentos afrodisíacos e de vinho em moderação, caminhada e uma boa noite de sono (seção 130). Tendo-se dirigido ao encontro do dia seguinte no mesmo local de antes, Encólpio lá encontra Críside, que está acompanhada precisamente da velha Proselenos, uma feiticeira cuja descrição e atuação estereotipadas permitem que seja considerada como uma maga profissional. O ritual mágico-apotropaico (seção 131) executado por Proselenos inclui recitação de encantamento (carmen), amarração de cordão colorido, sinal na testa com pó misturado a cuspe, ato de cuspir três vezes, arremesso de pedrinhas previamente encantadas (lapilli praecantati) e amarradas em tecido cor de púrpura. O efeito da magia erótica para curar o frustrado e frustrante amante é celebrado por Proselenos, que sente suas mãos serem preenchidas pelo “enorme levante” do membro viril de Encólpio. No entanto, quando junto de Circe logo em sequência, tendo persistido a impotência, Encólpio é açoitado pelos recorrentes ultrajes, Proselenos é expulsa, Críside é surrada. Após o funcionamento efêmero de seu membro viril, Encólpio resolve ir ao templo de Priapo e dirigir-lhe súplicas pela cura, mas acaba por protagonizar reiteradas ofensas ao deus e a seus gansos sagrados (seções 133–137). Nesse passo, Proselenos retorna à narrativa, desta 845

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vez com Enótia, poderosa sacerdotisa de Priapo, que prepara um último feitiço — um scorteum fascinum (pênis de couro — seção 138), que, lambuzado de azeite, pimenta e urtiga, é introduzido em Encólpio. Após o doloroso ritual, Encólpio consegue escapar de Proselenos e Enótia, ainda sem obter a cura de seu mal, o que se concretiza somente na seção 140, por intervenção favorecedora de Mercúrio. Para Migdal (2014, 61), a ineficácia de Proselenos comprova a futilidade dos rituais de encantamento avançados por magas e confirma que elas não possuem poder, mas que suas habilidades são ilusórias, uma perspectiva de leitura coerente com o tratamento paródico dado por Petrônio ao romance como um todo. Em análise da personagem Proselenos, a primeira fórmula que lhe foi adressada no discurso homodiegético de Encólpio foi a de anicula, ou “velhinha”. Também como anus, “velha”, ela foi adjetivada no cabeçalho da carta da seção 134. Essa característica a remete a um dos modelos das magas e feiticeiras que povoam a literatura latina. Há ao menos dois modelos literários dessas feiticeiras: do primeiro modelo são as estrangeiras, em geral belas, sinistras e exóticas, dotadas de poderes ocultos, vindas de mundos tão distantes que adquiriram contornos fabulosos; elas conseguem alterar os sentimentos dos homens, mudar a ordem do universo e o movimento dos astros e das marés, e, sobretudo, são capazes de subjugar os deuses por meio de seus encantamentos e feitiços. Os paradigmas desse modelo são Circe, a responsável, nas Metamorfoses, de Ovídio, pela transformação de Cila (Ovídio. Metamorfoses, 14. 1–100) e de Pico (Ovídio. Metamorfoses, 14. 320–434); Medeia, descrita na tragédia homônima de Sêneca; e Pânfila, cuja poção, roubada por Lúcio, o transformou em burro, nas As metamorfoses de um burro de ouro de Apuleio. 846

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Proselenos, por sua vez, pertence ao segundo modelo, o da velha alcoviteira, em geral repulsiva e lasciva, perita em poções e filtros amorosos, capaz de revirar sepulturas em busca de ingredientes para as poções, de invocar os deuses infernais, de importunar os deuses celestes até alcançar seus propósitos. São desse modelo as feiticeiras horacianas Canídia (Sátira, 1.8.23–29) e Sagana (Epodo 5); Méroe e as feiticeiras da história de Télifron, respectivamente livros 1 e 2 das As metamorfoses de um burro de ouro de Apuleio; bem como Ericto, a terrível e macabra feiticeira procurada por Sexto Pompeu, na Farsália, de Lucano (Lucano. Farsália, 507–563). Fontes históricas APULEIO, 2020. As metamorfoses de um burro de ouro. Tradução, diretamente do latim, por Sandra Braga Bianchet. Curitiba: Editora Appris. M. ANAEUS LUCANUS. De bello ciuile siue Pharsalia. Texto latino disponível em: www.thelatinlibrary.com. Acesso em: 02 set. 2021. MACROBIUS. Commentarium in somnium Scipionis. Edição de Franciscus Eyssenhardt. Disponível em: http://la.wikisource. org/wiki. Acesso em: 02 set. 2021. P. CORNELIUS TACITUS. Annales. Texto latino disponível em: www.thelatinlibrary.com. Acesso em: 02 set. 2021. P. OVIDIUS NASUS. Metamorphoses. Texto latino disponível em: www.thelatinlibrary.com. Acesso em: 02 set. 2021. PETRÔNIO. 2004. Satyricon. Edição bilíngue — tradução de Sandra Braga Bianchet. Belo Horizonte: Editora Crisálida. Q. HORATIUS FLACCUS. Sermones. Texto latino disponível em: www.thelatinlibrary.com. Acesso em: 02 set. 2021. 847

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Bibliografia geral BIANCHET, S. 2006. O estatuto do satírico no Satyricon de Petrônio. In: 1º Simpósio de Estudos Clássicos da USP. Vol. 1. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, p. 203–214. FUTRE PINHEIRO, M. 2005. Origens gregas do género. In: OLIVEIRA, F.; FEDELI, P.; LEÃO, D. (Coord.). O romance antigo: origens de um género literário. Coimbra: Universidade de Coimbra, Università degli Studi di Bari, p. 9–32. MIGDAL, J. 2014. Old women: divination and magic or anus in Roman literature, Symbolae Philologorum Posnaniensium Graecae et Latinae, XXIV/2, p. 57–67.

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Ἀνθία › Ântia

por Adriane da Silva Duarte

Ântia [Ἀνθία] é a personagem de Ântia e Habrocomes ou Efesíacas, romance de Xenofonte de Éfeso (c. II EC). Seu nome não evoca outras figuras do mito e da literatura gregas, embora Capra (2009) defenda que haja um eco da Panteia, que faz par com Abradatas, na célebre história de amor narrada na Ciropedia, de Xenofonte de Atenas, um modelo para a literatura amorosa posterior. Ântia deriva de ánthos, flor, e enfatiza a beleza natural da personagem e sua pouca idade — um topos recorrente desde a poesia arcaica está na comparação entre a floração primaveril e a juventude. O narrador a descreve como uma bela moça, de apenas quatorze anos, pertencente à elite efésia, que, ao conduzir a procissão em honra a Ártemis, padroeira da cidade, é com ela confundida. Segundo Haynes (2003, 53), essa identificação, no âmbito cívico, faz com que Ântia incorpore a honra e a integridade social de todo o grupo. Não apenas o aspecto exterior da jovem evoca a deusa, estando ela caracterizada à sua imagem, mas também a natureza selvagem e arrisca, perceptível na descrição de seu olhar, ao mesmo tempo vivaz e temível (Efes. I. 2) — vale lembrar que Ártemis é especialmente diligente na punição dos que ousam desafiá-la. Outro aspecto dessa aproximação é enfatizar a castidade da heroína, qualidade associada à deusa. Nesse sentido Ântia se contrapõe a Calírroe, heroína de Quéreas e Calírroe, de Cáriton, que, protegida por Afrodite, contrai segundo casamento estando seu primeiro marido vivo — Quéreas e Calírroe e Efesíacas são próximos tanto no tempo de composição quanto são vizinhas e rivais as cidades de seus autores.

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A trama se origina e termina em Éfeso, cidade natal dos protagonistas, que, no entanto, fazem extenso périplo pelo Mediterrâneo. O tempo da narrativa é indeterminado, mas situa-se num período pós-clássico. A paixão entre Ântia e Habrocomes, rapaz apenas dois anos mais velho e dono de uma beleza incomum, é induzida por Eros. O deus deseja vingar-se do jovem arrogante que se declarara imune aos seus encantos. Um oráculo determina o casamento dos apaixonados bem como anuncia a necessidade de saírem em viagem e as muitas dificuldades que enfrentariam antes de poder se entregar plenamente ao amor. Assim, tão logo deixam Éfeso, a profecia se cumpre e não tarda o casal ser separado, cada qual enfrentando as adversidades com intuito de manter os votos de fidelidade feitos em comum. A crítica normalmente concorda que Xenofonte esforçou-se em dotar o par romântico de notável simetria, acompanhando em paralelo as aventuras de um e de outro, que são similares, e dotando cada qual de mesma capacidade e iniciativa. A frase com que o romance se encerra parece corroborar essa interpretação, em que os protagonistas são mencionados em pé de igualdade: «Eis o fim das Efesíacas de Xenofonte, relato em cinco livros sobre Ântia e Habrocomes». (Efes. V. 15). De Temmerman (2014, 135), nota, no entanto, que Ântia orienta suas ações por um comportamento mais racional, mantendo o autocontrole em público e externando suas emoções apenas quando resguardada do olhar alheio. Tal atitude é oposta daquela que se verifica com Habrocomes, que reage impulsivamente, sempre sobre o efeito das emoções, que deve esforçar-se por controlar. Isso dá a Ântia uma vantagem, permitindo que ela adote uma série de estratégias para safar-se dos riscos que se lhe deparam. Embora Xenofonte de Éfeso não seja um autor dado a referências literárias, a Odisseia é um subtexto importante em Efesíacas. Tagliabue (2017, 40), ao comentar a cena de reunião 850

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entre Ântia e Habrocomes (Efes. V. 14), argumenta que a caracterização de Ântia promove uma combinação entre os dois protagonistas da Odisseia. Assim como Odisseu, ela percorre grandes extensões de terra e mar longe do lar e do cônjuge, e, como ele, é hábil em contar histórias, por vezes mentirosas, mas eficientes na persuasão de seus interlocutores. Por exemplo, em duas ocasiões ela se apresenta como Menfitis, uma egípcia, (Efes., IV. 3, V. 4), evitando, assim, dar a conhecer a sua real identidade, recurso de que se vale Odisseu quando de regresso a Ítaca. Como Penélope, mantém-se fiel a Habrocomes, recorrendo a diversos estratagemas para despistar seus perseguidores. Penélope usa como expediente a necessidade de tecer uma mortalha para seu sogro Laertes, cuja idade avançada já deixa antever a morte próxima, e, com isso, afasta a pressão dos pretendentes para voltar a se casar. Ântia, alega sofrer de epilepsia e simula uma convulsão para não trabalhar em um bordel (Efes. V. 7). Ela também não hesita em apelar para a violência, se necessário. Por exemplo, quando prisioneira de de ladrões, defende-se apunhalando e matando o bandoleiro que investe contra ela (Efes. IV. 5), episódio que, pela presença do transgressor violento, da caverna, da arma perfurocortante, se poderia aproximar da aventura de Odisseu na caverna de Polifemo (Odisseia, IX. 177ss.). De volta a Éfeso, Ântia e Habrocomes celebram seu retorno no templo de Ártemis, depondo, entre outras oferendas, um livro em que relatam todas as aventuras que viveram. Depois disso, nos assegura o narrador, «viveram dali para frente em meio a festas e em companhia um do outro» (Efes. V. 15). Fontes históricas XENOPHON EPHESIUS. 2005. De Antia et Habrocome Ephesiacorum Libri V. Ed. by J. N. O’Sullivan (Bibliotheca Teubneriana). München/Leipzig: K. G. Saur. 851

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Bibliografia geral CAPRA, A. 2009. The (Un)happy Romance of Curleo and Liliet. Xenophon of Ephesus, the Cyropaedia and the birth of the ‘anti-tragic’ novel, Ancient Narrative, 7, p. 29–50. DE TEMMERMAN, K. 2014. Crafting Characters. Heroes and heroines in the ancient Greek novel. Oxford: Oxford University Press. DUARTE, A. S. 2019. Os contos de Ântia: narrativas intercaladas em Efesíacas, de Xenofonte de Éfeso, Synthesis, vol. 26, n. 2. HAYNES, K. 2003. Fashioning the feminine in Greek Novel. London: Routledge. TAGLIABUE, A. 2017. Xenophon’s Ephesiaca. A paraliterary love-story from the ancient world. Groningen: Barkhuis & Groningen University Library.

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Λευκίππη › Leucipe

por Lucia Sano

Leucipe [Λευκίππη], a heroína do romance grego conhecido como Leucipe e Clitofonte, de Aquiles Tácio, é filha de Panteia e Sóstrato, homem proeminente de Bizâncio, que atua à frente do exército da cidade. A narrativa de Leucipe e Clitofonte oferece ao leitor uma variedade de linhas interpretativas igualmente plausíveis, incluindo aí as diversas formas de entender como são nomeados os personagens (Morales 2005, 66–67). Assim, a etimologia do nome da heroína (de leukos hippos, «cavalo branco») poderia ser mais um dos aspectos da obra a evocar o Fedro de Platão, mas existe também razão para supor o conhecimento do uso da expressão como gíria para designar o membro sexual masculino e, além disso, a possibilidade do nome remeter a uma das filhas de Proteu, já que alguns entendem o romance como reescrita do mito de Io. De fato, por mais díspares que sejam essas interpretações, cada uma delas tem lugar de ser quando se pensa em Leucipe e Clitofonte como um todo. O contexto em que os eventos se passam no romance é vago, não sendo possível determinar com certeza se deliberadamente estão representados os diversos locais do Mediterrâneo onde as aventuras se desenrolam como já sob domínio de Roma. Outrora se pensou que as ações pudessem ser localizadas no Império Persa pela menção a um «sátrapa» no Egito (IV.11), mas os fatos de que o termo continuou a ser usado mesmo após a dissolução do poderio persa e de que o autor retrata no romance como coesamente gregas as cidades de

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Sídon e Tiro indicam que o narrador localiza os eventos ao menos no período helenístico e, mais provavelmente, quando já instituído o Império Romano. Quanto à datação do romance e ao seu autor, embora não haja testimonia antigos, a quantidade de papiros encontrados no Egito datados dos séculos II a IV EC sugere que ele tenha sido bastante lido ainda na Antiguidade. Alguns eventos históricos, mas principalmente as características da narrativa, de tom acentuadamente sofístico, tornam provável uma datação na segunda metade do século II EC. Os mais antigos testemunhos que temos sobre Aquiles Tácio são já bizantinos, de Fócio (cod. 87) e da Suda, e ambos registram a cidade de Alexandria como seu local de nascimento. A vivaz descrição do Egito e da Fenícia em Leucipe e Clitofonte é vista por alguns críticos como indicação de que o autor conhecia bem os dois locais (Plepelits 1996, 387) Como toda heroína de romance grego, Leucipe se destaca não só pela proeminência da sua família, que havia lhe garantido uma educação em letras e música, mas também por sua beleza. Na primeira menção à personagem (I. 4), ela é descrita como «uma imagem de Selene montada num touro», uma mulher que tem o olhar ardente e doce, cabelo loiro anelado, sobrancelhas negras, rosto alvo com um tom de carmim no centro, «como o pigmento usado por mulheres lídias para tingir o marfim» e a boca como um botão de rosa que começa a abrir. Aqui é importante esclarecer uma peculiaridade da narrativa de Leucipe e Clitofonte que tem consequências para a caracterização da heroína: o romance apresenta um narrador em primeira pessoa, que é o próprio protagonista masculino e par amoroso de Leucipe. Por isso, toda a informação que recebemos sobre ela decorre apenas do seu entendimento, da sua visão e do seu desejo de narrar os eventos da sua vida a um interlocutor — um homem anônimo que ele encontra na 854

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cidade de Sídon, quando os dois observavam ao mesmo tempo um quadro que retratava o rapto de Europa. Esse encontro ocorre logo no início da narrativa e Clitofonte passa então a relatar os eventos desde a chegada de Leucipe à Tiro, onde ele e sua família viviam. Ela e sua mãe haviam sido enviadas pelo seu tio Sóstrato, que procurava protegê-las da guerra que Bizâncio travava contra os trácios. Acompanhamos o relato das aventuras de Leucipe e Clitofonte até a celebração do seu casamento na cidade natal da heroína. A narrativa jamais retoma o início em Sídon e o leitor fica sem saber com certeza se o par continuava, àquela altura, junto e feliz, já que a atitude de Clitofonte sugeria tristeza. Ao longo da narrativa, o leitor acompanha o male gaze do narrador sobre o corpo feminino (Morales 2005), um olhar que diversas vezes se dirige a representações de figuras míticas femininas vitimizadas pela violência masculina (além de Europa, Andrômeda em III. 7 e Filomela em V. 3), em écfraseis que ajudam a orientar o entendimento dos eventos em que os protagonistas estão envolvidos e antecipam sofrimentos da própria Leucipe (Bartsch 1989). O retrato convencional que o narrador Clitofonte pinta da beleza de sua amada, assim, recebe outros contornos a partir da sua declaração de que ela era «um banquete para os olhos» (I. 6). A objetificação do corpo feminino perpassa o romance e é definida pela intenção do consumo masculino desde o início. Nesse sentido, a beleza ímpar de Leucipe, ainda que se configure como um poder especial, está além do seu próprio controle e não lhe garante autoridade alguma. Clitofonte apaixona-se à primeira vista, embora estivesse prometido à sua meia-irmã Calígone, mas, vivendo na mesma casa que o pretendente, Leucipe é cortejada por algum tempo antes de ceder a suas investidas, que são agressivas e incentivadas por um primo, Clínias, que lhe afirma ser a recusa 855

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feminina aos avanços masculinos apenas uma dissimulação. No segundo livro dos oito que compõem a narrativa, Leucipe aceita receber Clitofonte no seu quarto à noite, mas os dois são surpreendidos pela mãe dela no momento em que ele já se enfiava em sua cama. Embora o herói consiga escapar sem ser reconhecido, o receio de sofrer consequências faz com que os dois amantes fujam de Tiro, embarcando num navio em direção a Alexandria. Eis o início de suas aventuras e sofrimentos pelo Mediterrâneo, uma convenção do romance grego de amor. A atitude de Leucipe com relação ao sexo pré-marital se altera quando ela tem um sonho com Ártemis (IV. 1), que também intervém em outros momentos para auxiliá-la, no qual a deusa ordena que ela permaneça virgem até ser desposada por Clitofonte. Para isso, não só ela rechaça as investidas do amado, como também de pretendentes indesejados. Uma das maiores violências que as heroínas do romance sofrem é a morte aparente, o que ocorre com Leucipe não uma, mas três vezes (III. 15, V. 7, VII. 1–3). As duas primeiras são espetaculares, reforçando a importância da visão do narrador sobre o corpo feminino nesse romance: uma espada é enfiada no corpo da heroína e suas entranhas são comidas por bandidos egípcios, no que posteriormente se revela um truque teatral, enquanto Clitofonte assiste à cena imóvel; da segunda vez, ela é decapitada num navio — tratava-se, na verdade, de outra mulher. Quando Leucipe se separa de Clitofonte, após o seu rapto e segunda morte aparente, ela acaba por se tornar escrava em Éfeso, onde sofre torturas e é obrigada a trabalhar. Sua proprietária vinha a ser uma mulher de nome Melite, com quem Clitofonte se envolve ao acreditar que tanto Leucipe quanto o marido de Melite estavam mortos — mas nem o reaparecimento dos dois personagens impede que eles cometam adultério. Tersandro, o marido, agora também apaixonado por Leucipe, trama para que Clitofonte acredite 856

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novamente que ela está morta. Quando o herói está prestes a ser punido por se declarar responsável pela morte dela, o sacerdote de Ártemis assinala que uma embaixada à deusa havia chegado à cidade de Éfeso, no qual estava por acaso o pai de Leucipe, Sóstrato. A situação começa a se esclarecer para que a narrativa possa avançar ao seu final feliz, mas Leucipe ainda é obrigada a passar por um teste de virgindade que, mais uma vez, associa a heroína a uma personagem mítica vitimizada pela violência masculina, a ninfa Siringe. Em outro códice do já mencionado Fócio (cod. 94), o patriarca do século IX censura Aquiles Tácio por sua obscenidade e falta de pudor, mas Miguel Pselo atesta que, dois séculos depois, muitos eram os seus leitores, inclusive entre os eruditos, o que não por acaso reflete nas imitações do autor em romances bizantinos, incluindo o primeiro deles, Hismine e Hisminias, escrito no século XI por Eustácio Macrembolites. Mais recentemente, a ideia de uma recepção negativa que se estabeleceu com Fócio tem sido nuançada, pois se apontou ter sido Leucipe e Clitofonte um texto influente entre autores cristãos, com imitações suas sendo encontradas em obras de Pseudo-Nilo (século V) e Nicetas Magister (século X). A primeira tradução completa do romance foi publicada em italiano no ano de 1551 em Veneza e as primeiras imitações de Leucipe e Clitofonte surgem já em 1552, na Espanha, com Historia de los amores de Clareo y Florisea y de los trabajos de Ysea, de Alonso Núñez de Reinoso (Plepelits 1996, 413–414). Fontes históricas ACHILLES TATIUS. 1955. Leucippe and Clitophon. Edited by E. Vilborg. Stockholm: Almqvist & Wiksell. ACHILLES TATIUS. 2020. Leucippe and Clitophon. Books I-II. Edited by Tim Whitmarsh. New York: Cambridge University Press. 857

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AQUILES TÁCIO. 2005. Os amores de Leucipe e Clitofonte. Introdução, tradução e notas de A. Pena. Lisboa: Edições Cosmos. Bibliografia geral BARTSCH, S. 1989. Decoding the Ancient Novel. Princeton: Princeton University. HAYNES, K. 2002. Fashioning the Feminine in the Greek Novels. London: Routledge. MORALES, H. 2005. Vision and Narrative in Achilles Tatius’ Leucippe and Clitophon. Cambridge: Cambridge University Press. PLEPELITS, K. 1996. Achilles Tatius. In: SCHMELING, G. (Ed.). The Novel in the Ancient World. Leiden/New York/Köln: Brill, p. 387–416.

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Μερόη › Méroe

por Sarah Silva Tolfo

Méroe é uma personagem presente no Livro I da obra O asno de Ouro (Metamorfoses), de Apuleio. «Meroé» é o nome de uma cidade etiópia próxima do Nilo. É provável que Apuleio, muito ligado à etimologia, tenha feito uso do recurso nomina omina, onde os nomes dos personagens carregam grandes significados. A função seria remontar às origens mágicas e exóticas do Egito e do Oriente. Por sua vez, o nome da cidade deriva da deusa Meris, associada à Ísis, deusa que também é personagem de Metamorfoses. Descrita fisicamente como «bonita, apesar de velha (anum sed admodum scitulam)», Méroe é uma estalajadeira que vive na Tessália, em Larissa, região situada na rota para a Macedônia. Méroe é também uma poderosa praticante de magia (saga et divina). Sua história é narrada pelo personagem Aristômenes, que em viagem para a Tessália reencontrou seu amigo Sócrates mendigando pelas ruas. Ao confrontar o amigo, informando-o que sua família o julgava morto, Aristômenes ouve a história de Méroe: Logo que chegou na hospedaria, Méroe tornou Sócrates seu amante. Imediatamente após a primeira relação, ele se encontrou tão ligado a ela que lhe deu as próprias roupas que vestia. Exaurido pela amante, se encontrava impossibilitado até mesmo para trabalhar. O modo como ela teria conseguido exercer tamanha influência sob o homem, se devia aos seus grandes poderes, que incluíam até mesmo abaixar o céu, suspender a terra, diluir as montanhas, sublimar os manes, derrubar os deuses, apagar as estrelas e iluminar o Tártaro (terram suspendere, fontes durare, montes diluere, manes sublimare, deos infimare, sidera extinguere,

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Tartarum ipsum illuminare). Ela teria conquistado amantes por vários lugares, até na Índia e na Etiópia e era punitiva com aqueles que a contrariavam. Um de seus amantes, por lhe ter sido infiel, foi transformado por ela em castor para que num ataque de medo dos caçadores cortasse seus próprios genitais. Transformou em rã o rival dono de um bordel, e em carneiro um advogado que havia falado contra ela. Até mesmo a esposa de um de seus amantes foi punida, tendo Méroe a amaldiçoado com uma gravidez eterna. Em um dia em que havia bebido, Méroe executou um feitiço que deixou presos em suas casas todos os habitantes da cidade, tendo os libertado somente após a promessa de que não fariam nenhum mal a ela. Consternado com a história do amigo, Aristômenes oferece abrigo a Sócrates. Durante a noite, porém, seu alojamento é invadido por Méroe e sua irmã Pância, que arrombam a porta com violência portando uma esponja e uma espada. Escondido embaixo da cama, Aristômenes é ameaçado por Pância, que sugere desmembramento e castração. Méroe, por outro lado, sugere que o deixem vivo para enterrar Sócrates. Em um ritual sacrificial, Méroe corta a garganta de Sócrates com a espada e recolhe seu sangue em um odre. Após, introduz a mão no ferimento e retira o coração de Sócrates. Pância, por sua vez, tampa o ferimento com a esponja e recita um encantamento. As suas mulheres se retiram do local após urinarem em Aristômenes. Sendo comparada com Medeia (Met., 1. 10) Méroe é uma das feiticeiras mais poderosas e assustadoras da literatura grego romana: nenhuma outra possui uma gama tão vasta de poderes nem os utiliza com tanta crueldade. Méroe é a única feiticeira da literatura romana a ser claramente nomeada como uma Lâmia, demônio devorador de carne humana (Met. 1. 17) e reúne os estereótipos mais comuns a praticantes de magia na Antiguidade greco-romana: além de ser uma mulher idosa e 860

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estrangeira, demonstra desprezo pela maternidade e é associada à prostituição. A personagem é altamente ilustrativa da mensagem social da época: o homem que se deixou levar por uma feiticeira perdeu tudo; sua masculinidade, sua família, seu dinheiro e, por fim, a própria vida. Méroe é uma advertência e uma antipropaganda da liberalização e autonomização feminina. Fontes históricas APULEIO. 2019. O asno de ouro. Tradução de Ruth Guimarães. Rio de Janeiro: Editora 34. Bibliografia geral MICHALOPOULOS, A. 2006. Naming the Characters: the Cases of Aristomenes, Socrates and Meroe in Apuleius’ Metamorphoses (1.2–19). In: BOOTH, J.; MALTBY, R.; BIVILLE, F. (Eds.). What’s in a Name? Significance of proper names in Classical Latin literature. Swansea: Classical Press of Wales. p. 169–187. OMENA, L. M. 1998. As Estratégias de Afirmação Social das Mulheres no Século II D. C. no Romance O Asno De Ouro, de Apuleio. Dissertação de Mestrado em História defendida na Universidade Federal De Ouro Preto — UFOP. TOLFO, S. S. 2020. Saga manus: gênero e transgressão em praticantes de magia na Roma Antiga. Dissertação de Mestrado em História defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul — UFRGs.

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Παμφίλη › Panfília

por Nátalle Garcia dos Santos

Panfília é uma personagem fictícia que chegou até nós através da obra Metamorfoses ou O Asno de Ouro de Apuleio de Madaura. Apuleio foi um escritor latino que viveu durante o II EC no Império Romano, sendo as Metamorfoses um romance latino que apresenta o universo da magia e os perigos que se mostram aos indivíduos que se propõem a imergir nos conhecimentos mágicos distantes das práticas direcionadas ao culto dos deuses que se faziam presentes no Império Romano. Panfília é uma das personagens femininas que ganham destaque nas Metamorfoses de Apuleio e que são representadas como feiticeiras ligadas às sombrias práticas mágicas. Panfília era uma mulher da elite romana, esposa do avarento Milão, que deixava à sua disposição a escrava Fótis, encarregada das atividades domésticas da residência e auxiliar de Panfília em suas práticas mágicas. Sua origem geográfica correspondia à cidade de Hípata, localizada na região grega da Tessália, descrita nas Metamorfoses como berço das práticas mágicas e dos encantamentos (Apuleio. Metamorfoses, II. 1). As feiticeiras da Tessália são representadas nas Metamorfoses como capazes de subverter a ordem natural e manterem relações diretas com os espíritos infernais e com os deuses, porém as suas motivações ao executarem a magia não se ligavam a recompensas de valores ou um desejo de provarem seus poderes e adquirir prestígio e respeito. As feiticeiras da Tessália envolviam-se com a magia por motivações pessoais, em grande parte relacionadas com o desejo sexual por outrem, sendo sempre bem sucedidas em suas amarrações e magias amorosas. Era uma prática comum das feiticeiras da Tessália,

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na visão do escritor das Metamorfoses, furtarem partes dos corpos dos mortos para promoverem as práticas mágicas (Apuleio. Metamorfoses, II. 22). Panfília é descrita a Lúcio, o narrador do romance, por Birrena, que a vê como uma mulher que poderia apresentar perigo a ele em sua estadia na casa de Milão, pois ela era uma feiticeira, recorria a artifícios e à sedução criminosa através da magia e era dotada de conhecimentos sobre encantamentos de todos os gêneros (Apuleio. Metamorfoses, II. 5). As Metamorfoses não apresentam restrições para os poderes de Panfília, que é capaz de suprimir a luz do mundo e lançá-la no Tártaro através de objetos de diferentes natureza, é capaz de alterar o curso dos astros celestes e de constranger as divindades. Assim, ela não era bem vista em sua comunidade. Panfília, ao apaixonar-se por um jovem bem apessoado, tornava-o o centro de seus pensamentos, desprendia exageradas carícias ao alvo de sua afeição, encantava-o com toda sua simpatia, apoderava-se do espírito do jovem e tornava-o cativo em sua magia, preenchendo-o de um amor insaciável por ela. De acordo com as Metamorfoses, os jovens que não se dispunham às investidas de Panfília eram transformados em pedras, animais ou simplesmente desapareciam (Apuleio. Metamorfoses, II. 5). Os jovens poderiam evitar as investidas da feiticeira por respeitar o leito nupcial de Milão, um homem influente e honesto conhecido por toda Hípata. Birrena pede a Lúcio que respeite o leito de seu anfitrião Milão e que não se envolva com Panfília (Apuleio. Metamorfoses, II. 6). Ruth Guimarães, em sua tradução para o português da obra de Apuleio, utiliza a palavra morigerados, que apresenta o sentido lexical de bons costumes, boa conduta e prudência. 864

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Panfília, em um jantar na residência, na presença de seu marido Milão e de seu hóspede Lúcio, ao olhar para uma lâmpada, revela que haverá uma abundante chuva no dia posterior. Milão lhe pergunta como ela poderia saber de tais eventos naturais e ela lhe responde que sua lâmpada lhe predizia (Apuleio. Metamorfoses, II. 11). Além dos encantamentos amorosos, transformações mágicas, encantamentos sepulcrais e controle dos corpos celestes, os conhecimentos dominados por Panfília se estendiam à adivinhação através da licnomancia, através das chamas do fogo. María José Hidalgo de La Vega (1986, 76) aponta que Panfília representa a adivinhação no sentido profano, pois nas Metamorfoses, tal magia de adivinhação aparece associada ao culto dos deuses e no mito de Cupido e Psiquê. A magia de Panfília consistia em uma magia erótica voltada para a conquista dos jovens que ela se sentia atraída, ela os deixava atados através dos feitiços. Uma das formas apresentadas recorridas por ela para instigar nos jovens a ligação amorosa era a coleta dos fios de cabelos do homem ao qual ela nutria interesse a fim de queimá-los e assim obter sucesso nas suas investidas amorosas. Panfília, em sua prática mágica erótica, encaminha-se a sua oficina, pronúncia encantamentos sob elementos necessários para realizar a magia, derrama sobre eles água leite e mel e hidromel, trança os cabelos da vítima e forma nós, lançando sobre eles substâncias aromáticas para fazê-los queimar. Dessa forma, os indivíduos guiados pelo odor da magia eram atraídos até ela (Apuleio. Metamorfoses, III. 18). A feiticeira Panfília tinha uma oficina mágica, que para lá se dirigia nas primeiras horas da noite, pois a frequentava em segredo. Sua oficina localizava-se acima do terraço coberto de pranchas, livre e acessível a todos os ventos, possuía vista para o Oriente e estendia-se para várias direções. A oficina 865

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de Panfília era cheia de substâncias aromáticas de todo o gênero, de lâminas cobertas de inscrições desconhecidas, de velas de navios perdidos no mar. Sua oficina possuía também fragmentos de cadáveres, como narizes e dedos, cavilhas de forca, langanhos de carne, sangue recolhido de gargantas cortadas, crânios mutilados como era usual das feiticeiras da Tessália (Apuleio. Metamorfoses, III. 17). Daniel Ogden (2012, 145) aponta a relação dessas lâminas de metal repletas de inscrições desconhecidas com as defixiones, uma forma de amaldiçoar os indivíduos no Império Romano. As inscrições, para ele, seriam as voces magicae. As voces magicae, segundo Patrícia Schlithler Cardoso (2016, 16), eram palavras mágicas sem sentido lexical aparente, presentes nos textos dos papiros gregos mágicos. Possuíam um aspecto misterioso, já que não eram gregas ou latinas. A autora aponta que elas se tornaram um elemento comum na magia do Egito greco-romano a partir do século I EC. Panfília, através de seus conhecimentos mágicos é capaz de transformar um homem em animal ou objeto, porém, as Metamorfoses de Apuleio evidenciam que a feiticeira também poderia transformar a si mesma. A metamorfose de Panfília é narrada no Livro III das Metamorfoses. Panfília se despe de suas vestes, retira de uma caixa um pouco de pomada que continha no recipiente e aplica nela mesma, esparramando a pomada por todo o corpo, desde as unhas dos pés até os cabelos. Depois de um longo conciliábulo com a lâmpada, Panfília agita os membros trêmulos em movimentos e se põe a voar. Dela nasceram penugens e fortes penas, além de um curvo nariz. Assim, Panfília tornou-se um mocho (Apuleio. Metamorfoses, III. 21). 866

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A feiticeira possuía ciência de todos os recursos que poderiam trazer o indivíduo à sua forma humana para as diferentes metamorfoses, possuía em sua oficina o unguento que transformaria Lúcio em asno e as folhas de rosas que reverteriam sua transformação. A simbologia do mocho está relacionada à tristeza e à escuridão. É um animal que não se expõe à luz do sol, de hábitos noturnos, representa o retiro solitário e melancólico. Pode ser considerado como maléfico e mensageiro de maus presságios (Chevalier; Gheerbrant 2001, 612–613). Na primeira vigília da noite, Panfília se entrega à sua metamorfose e lança voo na alta madrugada. Em sua metamorfose não recorre ao auxílio da escrava Fótis, como era usual quando se dispunha às práticas de amarração amorosas. As modificações decorrentes da metamorfose, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2001, 608–609), não afetam profundamente as personalidades, são expressões do desejo, da censura, do ideal e da sanção advindas do inconsciente e que tomam forma na imaginação criadora. Eles apontam que a metamorfose é um símbolo de identificação em uma personagem. Portanto, a metamorfose de Panfília em mocho, poderia refletir a representação de Apuleio a respeito das práticas mágicas realizadas por Panfília como maléficas, solitárias e criminosas. As representações literárias trazem sempre a figura das feiticeiras como mulheres. Nessas representações as feiticeiras são dotadas de poderes capazes de subverter a ordem natural da sociedade. Apuleio, por meio Panfília e outras feiticeiras apresentadas nas Metamorfoses, contribui com o grande repositório de feiticeiras da Antiguidade. Panfília dotada de variadas habilidades e detentora de amplos conhecimentos a respeito das artes ocultas tem uma grande notoriedade neste cenário. 867

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Fontes históricas APULEIO. 1963. O Asno de Ouro. Tradução e notas de Ruth Guimarães. São Paulo: Editora Cultrix. APULEYO. 1983. El Asno de Oro. Introdução, tradução e notas de Lisardo Rubio Fernández.Madrid: Biblioteca Clássica Gredos. Bibliografia geral CARDOSO, P. S. F. 2016. VOCES MAGICAE: O poder das palavras nos papiros gregos mágicos. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo — USP. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. 2001. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio. HIDALGO DE LA VEGA, M. J. 1986. Sociedad e Ideología en el Imperio Romano: Apuleyo de Madaura. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca. OGDEN, D. 2002. Magic, Witchcraft, and Ghosts in the Greek and Roman Worlds: A Source Book. New York: Oxford University Press.

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Φώτις › Fótis

por Sarah Silva Tolfo

Fótis é uma personagem presente no livro O asno de ouro, também conhecido como Metamorfoses, de Apuleio. Estima-se que tenha sido escrito por volta de 160 EC, próximo ao fim da vida do autor. O nome Metamorfoses aparece no primeiro registro conhecido do texto, sendo provavelmente uma alusão ao livro homônimo de Ovídio. Já O Asno de Ouro foi o nome dado por Santo Agostinho em sua análise da obra em «Cidade de Deus». Nascido em Madaura, na Numídia, Apuleio se apresentava como filósofo platônico e teve como diferencial nessa obra escrever em latim a partir de um original grego. Por volta de 158 e 159 EC, Apuleio casa-se com Pudentila, uma viúva rica mãe de um amigo seu, o que rende à Apuleio a acusação de ter usado magia para conquistar a mulher. Tendo defendido a si próprio com maestria retórica, Apuleio foi inocentado. As associações de seu nome com práticas mágicas, porém, perduraram e são refletidas em O Asno de Ouro, que possui como tema central o erotismo, a magia e as consequências do envolvimento com esta. Fótis é escrava de Milão e Panfília, ficando responsável por cuidar de Lúcio, o narrador da obra, quando este, em uma viagem na Tessália, se hospeda com o casal. Seu nome deriva do grego φως, «luz», possivelmente representando ignis fatuus, a falsa luz da iniciação na magia, em oposição à luz verdadeira de Ísis, que irá reverter o erro mágico de Fótis. Outra associação de seu nome é feita com foculus, fogo sacrificial ou brasa. A escrava se torna alvo das intenções amorosas de Lúcio, que a descreve como bonita, viva e risonha (Met., 2. 6), com movimentos graciosos (Met., 2. 7) e uma linda cabeleira (Met.,

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2. 9). Fótis corresponde às investidas de Lúcio e o visita em seu quarto à noite, provocando-o a ter relações sexuais com ela: «se és homem» (se vir est). Consumado o romance, Lucio, sabendo que Fótis auxiliava Panfília em seus rituais mágicos, insiste para que a escrava o deixe observar sua senhora em ação. Resistente a princípio, Fótis acaba concordando e leva Lúcio para observar Panfília se metamorfosear em pássaro e sair voando para encontrar um amado. Admirado com a visão, Lúcio pede a Fótis, como prova de amor, que ela lhe forneça o unguento que transformou Panfília. A jovem afirma que o protege das «lobas tessalianas» (lupulis Thessalis) e que teme não mais o ver se ele voar para longe. Lúcio a convence de que não deseja nenhuma outra mulher e que voltaria para ela. Então, após Fótis afirmar que sabia como revesti-lo novamente da forma humana, Lúcio passa no corpo o unguento oferecido pela jovem. Porém, ao invés de pássaro, Lúcio transforma-se em asno. Em desespero, Fótis se condena por ter-lhe dado o unguento errado ao confundir as caixas em que ficavam guardados. Ela o tranquiliza, pois, para que voltasse à forma humana, bastava que mascasse rosas. Lúcio, que mesmo transformado em burro conservava sua mente humana, vai até a estrebaria, onde deveria aguardar a chegada de coroas de rosas feitas por Fótis. Seu plano, no entanto, é interrompido quando ele é levado por ladrões que invadiram a casa de Milão. Fótis, apesar de escravizada, está longe de ser submissa. Ela mostra ter autonomia na casa dos patrões, gozando principalmente da confiança de Panfília, que lhe compartilha seus saberes mágicos. Em sua relação com Lúcio, Fótis não demonstra submissão: ela prepara e manipula os encontros eróticos e sua associação com Lúcio traz um potencial de 870

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ascensão social. Mesmo que ceda ao pedido dele de receber o unguento, a dinâmica de poder se mantém ao seu favor, uma vez que Lúcio acaba tendo seu objetivo frustrado. Fontes históricas APULEIO. 2019. O Asno de Ouro. Tradução de Ruth Guimarães. Rio de Janeiro: Editora 34. Bibliografia geral DE SMET, R. 1987. The Erotic Adventure of Lucius and Photis in Apuleius Metamorphoses, Latomus, vol. 46, n. Fasc. 3, p. 613–623. OMENA, L. M. 1998. As Estratégias de Afirmação Social das Mulheres no Século II D.C. no romance O Asno De Ouro, de Apuleio. Dissertação de Mestrado em História defendida na Universidade Federal De Ouro Preto — UFOP.

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Χλόη › Cloé

por Lucia Sano

Cloé, a heroína do romance grego intitulado Dáfnis e Cloé, de autoria de Longo, tem o que o narrador chama de um «nome pastoral» (I. 6, ποιημενικὸν ὄνομα - poiemenikon onoma): ele designa o primeiro broto, ainda verde, a surgir na primavera. A palavra serve também de título à deusa Deméter e nomeia personagens femininas da poesia erótica do poeta Horácio. Embora não seja atestado em nada do que nos resta da poesia pastoral antiga, o comentário do narrador pode sugerir que, assim como o do seu par amoroso, o nome Cloé figurasse em poemas bucólicos, uma vez que Dáfnis e Cloé é uma obra que apresenta à maneira romanesca diversos dos lugares comuns do gênero, sendo às vezes chamado de romance pastoral. Esse nome foi dado à heroína por seus pais adotivos, que a encontraram exposta quando bebê. Drias e Napê viviam na área rural de Mitilene, cidade da ilha de Lesbos, perto de uma gruta onde as Ninfas estavam representadas em estátuas. Um dia, pensando em punir uma ovelha a que dava como perdida com frequência, o pastor Drias observou o animal amamentar, na gruta, uma criança. Ao lado dela, havia finos objetos de reconhecimento — uma faixa bordada a ouro, sapatos dourados e tornozeleiras também de ouro, clara indicação de que a bebê vinha de uma família abastada. O pastor, julgando que divindades o haviam encaminhado para aquele achado, recolheu a criança e seus objetos e, levando-a para casa, explicou a situação à esposa, que passou de imediato a amá-la. Cloé foi encontrada dois anos depois que outro bebê havia sido descoberto em circunstâncias muito parecidas, e que também foi adotado por pastores, recebendo o nome de

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Dáfnis — o paralelismo entre ela e seu par se mantém ao longo da narrativa. Anos mais tarde, quando Dáfnis revela ao seu pai biológico, Dionisófanes —um homem rico da cidade, proprietário das terras onde sua família adotiva trabalhava—, que deseja se casar com Cloé, a motivação para buscar os genitores da jovem está dada. De volta à cidade, Dionisófanes descobre que Cloé é filha de Rode e de Mégacles, um aristocrata que a havia abandonado julgando à época que não tinha recursos para criá-la após ter tido todo seu dinheiro comprometido em triearquias e coregias. Aceita-se convencionalmente que a datação de Dáfnis e Cloé seja de meados do século II EC, sobretudo em razão dos aspectos literários que identificam o romance com a Segunda Sofística, pois nada se sabe precisamente sobre o criador dessa personagem feminina, o romancista Longo, cujo nome romano é atestado na ilha de Lesbos. Dada a ausência de testimonia antigos incontestáveis e de papiros, esse fato ajudou a alimentar o debate sobre a possibilidade de o autor ter tido alguma experiência pessoal com a região, a despeito das convenções na descrição da paisagem serem adaptadas da poesia bucólica e da interessante relação que a escolha do espaço onde decorre a narrativa forjaria com a poesia erótica por meio da alusão à poetisa Safo. Já se procurou demonstrar que aspectos da flora, da fauna, do clima e mesmo da organização política (Morgan 2004, 1) coincidiriam com as da ilha de Lesbos. É na Mitilene rural que o narrador, emulando poetas bucólicos, nos mostra Cloé crescendo, num processo marcado por violências. Esse espaço fixo é uma importante distinção entre Dáfnis e Cloé e os demais exemplares do romance grego de amor, em que a viagem por diversos lugares do Mediterrâneo é elemento essencial. A história de Cloé, além disso, se desenrola com tons míticos tão marcados que, embora convencionalmente o enredo do romance de amor se desenrole no 874

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período clássico da Antiguidade grega, ela dá a impressão de ser atemporal; é como se o narrador descrevesse, por meio da história de Cloé, o processo universal do que significaria se tornar mulher — aqui recorro à ideia de que o casal representaria a invenção do amor e sua história, um «paradigma fundador» da experiência erótica (Hunter 1996). Quando Dáfnis e Cloé chegam à adolescência, seus pais, Lâmon e Drias, têm um mesmo sonho com o deus Eros (que não reconhecem), orientando os dois a enviar seus rebentos para pastorear o gado no campo — no caso de Cloé, ovelhas. É nessas circunstâncias, quando Cloé tem 13 anos de idade e uma «beleza nada rústica», que o leitor passa a acompanhar o seu desenvolvimento, centrado no amadurecimento sexual. A menina também vai aprendendo uma série de atividades adequadas ao seu status de camponesa e, pouco antes de se casar, é ensinada a tecer. Dentro do contexto bucólico, essa é uma educação que permite que ela se prepare para ser desposada. A indicação dada pelos objetos de reconhecimento deixados ao seu lado, porém, a de que Cloé vinha de uma família rica, havia garantido à menina também o aprendizado da leitura e da escrita, num esforço de seus pais adotivos de lhe darem uma educação superior ao que exigiria sua condição de camponesa. O despertar erótico na obra de Longo é, diferentemente do que ocorre em outros romances, assimétrico — quem primeiro se apaixona é Cloé, ao ver Dáfnis se banhar nu. Ao longo da narrativa, a relação entre os personagens desenvolve-se da physis ao nomos: de um instinto meramente sexual, passando pelo aprendizado de quem é o deus Eros (por meio das histórias de um velho pastor chamado Filetas) e chegando, enfim, à observação das convenções sociais do matrimônio ao final da narrativa. De fato, Dáfnis e Cloé, inicialmente pastoreando sozinhos no campo, sem vigilância dos pais 875

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adotivos, tentam sem sucesso imitar os animais que observam ao pretender consumar uma relação sexual antes do casamento. Se a jovem a princípio amadurece antes do rapaz e depois passa a ter igual iniciativa na tentativa de descobrir o sexo, essa situação se altera no desenrolar da história de forma definitiva quando Dáfnis se deita com uma mulher mais velha de nome Licénion e passa a deter um conhecimento superior ao de Cloé sobre o amor e a controlar o quanto ela pode aprender sobre o sexo. A simetria é desfeita. A importante leitura de John Winkler (1990) do romance de Longo apresentou-o como uma narrativa na qual se representa a educação de Cloé sobre a sexualidade humana como produto de uma construção social e cultural da qual faz parte a aceitação pela mulher da violenta dominação masculina. Cloé ao longo da narrativa seria educada a perceber que o mundo ao seu redor é «organizado pela ideia da vulnerabilidade feminina». Dessa educação fariam parte as agressões que ela própria sofre (uma tentativa de estupro pelo boiadeiro Dórcon e dois raptos, por jovens da cidade de Metimna e pelo flautista Lâmpis), além de três mitos etiológicos que envolvem as personagens femininas Phátta (ou pomba-torcaz), Eco e Siringe. Esses mitos apresentam um padrão de agressividade masculina e de sexualidade crescentes, resultando sempre numa destruição das figuras femininas que acaba por se configurar como metamorfose. A experiência e os mitos ensinariam a Cloé fundamentalmente duas importantes lições: a primeira, que ela deve temer a violência dos homens; a segunda, que ela deve ceder ao desejo dos homens por meio do casamento. No último livro do romance, um quarto mito seria então concluído: o da transformação de Cloé de menina à mulher. Dáfnis e Cloé foi uma obra imitada por romancistas bizantinos do século XII e, desde sua primeira impressão, em 1489, tornou-se uma espécie de best-seller do romance antigo, 876

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sendo conhecidas aproximadamente quinhentas edições, traduções e adaptações do texto. Diversas pinturas inspiradas no romance podem ser elencadas desde o século XVI, incluindo uma assinada pelo brasileiro Rodolfo Amoedo (1857–1941) e intitulada A Narração de Filectas (1887), hoje parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Obra fundamental para o desenvolvimento do romance pastoral nos séculos XVI e XVII, a partir da primeira tradução vernacular publicada do texto, feita por Jacques Amyot (1559), o amor dos dois pastores também foi tema de um balé de Ravel (1912) e de uma coleção de gravuras de Marc Chagall, encomendadas para uma edição ilustrada do romance publicada na França em 1960. O tema da narrativa foi conveniente para uma tradição de ilustrações sugestivas da sexualidade do corpo feminino (Bowie 2020, 19–22), que se inicia em 1714, com as de autoria de Filipe II, Duque d’ Orleães, e chega ao século XXI com uma montagem fotográfica concebida pelo estilista Karl Lagerfeld (2013). Também o romance A Lagoa Azul (1908), de Henry de Vere Stacpole, cujas adaptações cinematográficas são mais conhecidas, pode ser entendido como uma reescrita de Dáfnis e Cloé. No Brasil, Roberto Freire inspirou-se na história criada por Longo para escrever Cleo e Daniel (1965), levado ao cinema por Myriam Muniz (1970), e que retrata uma jovem Cleo de 15 anos recuperando-se de um aborto não-natural. Fontes históricas LONGUS. 1994. Daphnis et Chloe. Edição de M. Reeve. Stuttgart/Leipzig: Teubner. LONGO. 1990. Dáfnis e Cloé. Tradução de Denise Bottman. Campinas: Pontes. 877

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Bibliografia geral BOWIE, E. 2019. Longus — Daphnis and Chloe. Cambridge: Cambridge University Press. HUNTER, R. 1983. A Study of Daphnis and Chloe. Cambridge: Cambridge University Press. MORGAN, J. 2004. Longus — Daphnis and Chloe. Oxford: Oxbow Books. PATTONI, M. P. 2014. Longus’ Daphnis and Chloe — Literary Transmission and Reception. In: CUEVA, E.; BYRNE, S. N. (Eds.). A Companion to the Ancient Novel. Oxford: Wiley Blackwell, p. 584–597. SANO, L. 2015. Os mitos embutidos e os episódios bélicos em Dáfnis e Cloé. In: WERNER, C., DOURADO-LOPES, A.; WERNER, E. (Eds.). Tecendo Narrativas: Unidade e Episódio na Literatura Grega. São Paulo: Humanitas, p. 321–343. WINKLER, J. 1990. The Education of Chloe: Hidden Injuries of Sex. In: WINKLER, J. The Constraints of Desire. New York/London: Routledge, p. 101–126.

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Χαρίκλεια › Caricleia

por Lucia Sano

Caricleia [Χαρίκλεια], a heroína do romance grego As Etiópicas, de Heliodoro de Emesa —hoje Homs, na Síria—, é uma princesa etíope, filha do rei Hidaspes e da rainha Persina. No momento em que foi concebida, sua mãe olhava para uma pintura que retratava Andrômeda e, por esse motivo, a menina nasceu branca e, já adulta, tinha feições iguais às da heroína grega nesse quadro. Com receio de sofrer com falsas acusações de adultério, a rainha, alegando que a criança nascera morta, entregou-a a um gimnosofista de nome Sesimítris, que cuidou dela por sete anos. Após esse período, porém, alegando que a beleza da menina ameaçava seu anonimato, ele a deixou sob os cuidados de um grego, Cáricles, sacerdote de Apolo em Delfos, que se tornou seu pai adotivo. Assim, a menina cresceu nessa cidade e tornou-se ela própria uma sacerdotisa de Ártemis. Parece ter sido objetivo de Heliodoro retratar os diversos locais onde a ação se desenrola de forma realista ou ao menos reconhecível por seus leitores a partir de convenções da tradição literária. Os eventos são localizados num período de ocupação persa no Egito, quando a cidade de Alexandria ainda não havia sido fundada. O personagem Calasíris relata também um encontro com a cortesã Rodópis (Heródoto, II. 134ss), a partir do qual se poderia concluir que o fato se passou no século VI aEC, mas os anacronismos ao longo da narrativa são muitos. O autor encerra a obra com uma assinatura, declarando ser «homem fenício de Emesa, do clã dos descendentes do Sol, filho de Teodósio, Heliodoro» (X. 41). A cidade síria, que havia se tornado capital da província Phoenice Libanensis em 194 (daí que o autor se chame de «fenício»), era um centro

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importante de culto ao Sol e o próprio nome do autor indica sua relação com o deus e ajuda a explicar sua escolha pela Etiópia, país tradicionalmente relacionado ao Sol. A veracidade das informações dadas sobre o autor no romance, porém, foi recentemente colocada em dúvida e o contexto em que a obra foi produzida é motivo de disputa eterna, não havendo consenso se ela pode ser datada do século III ou (mais provavelmente) IV EC. Trata-se do mais longo romance de amor que temos na íntegra e de longe o mais complexo em termos de estrutura narrativa, com início in medias res, digressões extensas, narrativas encaixadas e variações importantes de focalização, que conferem ao leitor conhecimento bastante gradual dos eventos. Ainda em Delfos (II. 35), a Pítia declara um oráculo cujo início joga com a etimologia do nome da heroína: «Celebrai, ó povo de Delfos, aquela que é no início graça (kharis) e no fim glória (kleos)». Esse prenúncio divino aponta para a conclusão da narrativa: ao lado de Teágenes, seu par amoroso, eles chegarão à «negra terra do Sol», onde serão coroados, pela sua vida virtuosa, com «uma coroa branca sobre negras têmporas». A viagem, uma convenção no gênero romance grego de amor, ganha, assim, um tratamento peculiar nas Etiópicas: não se trata, como nas demais obras, de uma trajetória circular, em que os personagens deixam a sociedade grega, mas retornam para ela no fim. Caricleia e Teágenes rumam em direção à Etiópia, onde ela deve assumir sua posição como membro da família real. O enredo do romance, portanto, está centrado em uma história de nostos («retorno») da heroína. Não por acaso, sabe-se que já no século VII a obra circulava também com o título de Caricleia e a maior parte dos autores bizantinos que mencionam o romance se refere a ele dessa forma. 880

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A heroína não tem duas, mas três figuras paternas ao longo do romance, sendo o egípcio Calasíris a terceira. Esse homem era sacerdote em Mênfis e havia chegado a Delfos em autoexílio; Cáricles confidencia a ele a história de Caricleia e pede seu auxílio para persuadir a jovem a aceitar se casar com um primo. Porém, quando Caricleia e Teágenes —jovem tessálio descendente de Aquiles— se veem pela primeira vez, ao participarem de rituais em Delfos em honra de Neoptólemo, o amor é imediato e recíproco e o único a perceber a situação é Calasíris. Quando o egípcio lê a mensagem que a rainha Persina havia deixado junto de Caricleia, ele se convence de que deve auxiliar a jovem a retornar para Etiópia e lhe expõe sua verdadeira identidade. Na sequência, ele trama para que o par amoroso possa partir de Delfos em sua companhia. Eis o início das aventuras de Teágenes e Caricleia, que, entre outros perigos, são capturados por bandidos e piratas no Egito, se envolvem num cerco a Mênfis liderado por Tíamis, filho de Calasíris, e têm que proteger sua castidade contra pretendentes indesejados. Nessas aventuras, a força, a eloquência e sobretudo a inteligência de Caricleia são tão evidentes que ofuscam Teágenes, um personagem hesitante. Até sua beleza eclipsa a dele (III. 14) e Caricleia é com frequência comparada a deusas, principalmente a Ártemis. Essa relação também ajuda a construir uma heroína bastante decidida a preservar sua castidade, um dos motivos que levaram a uma recepção mais positiva da obra por aqueles que julgavam os romances gregos a partir de um critério moral, como o bizantino Fócio (cod. 73). A cena inicial do romance é paradigmática da centralidade de Caricleia na narrativa. O autor evita descrições diretas da heroína, preferindo apresentá-la da perspectiva de outros personagens e somos introduzidos a Caricleia e Teágenes em um contexto desolador junto ao Nilo, quando eles são observados por bandidos. Pela beleza e nobreza, eles refletem 881

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que a heroína (I.2.1–2) lembra Ísis ou, ainda, Ártemis, porque carrega arco e aljava, e fica claro pela descrição dos corpos que os cercava que a maioria dos homens ali havia morrido atingida por flechas (I.1.5), de modo que também se levanta a hipótese de ela ser uma sacerdotisa tomada por uma divindade e responsável pela carnificina. Quanto a Teágenes, ferido e deitado no chão, embora notem sua beleza viril, é chamado por um dos bandidos de «cadáver». Esse início dá ao leitor uma amostra da força de Caricleia. Perto do fim da narrativa, os heróis acabam por ser levados a Méroe, na Etiópia, na condição dos primeiros a serem feitos prisioneiros na guerra que o país travava com o Egito por minas de esmeralda — as mesmas que haviam motivado a embaixada ao país quando Cáricles recebera Caricleia do gimnosofista Sisimítres. A tradição do país obrigava que esses primeiros cativos fossem oferecidos em sacrifício aos deuses, mesmo após Caricleia ter se revelado a princesa dada como morta. O povo etíope, porém, se comove e, nesse momento (X. 39), Sisimítres declara que o retorno da filha de Persina e Hidaspes e os demais acontecimentos em Méroe eram sinal da desaprovação divina do sacrifício humano. O reconhecimento de Caricleia está inserido, portanto, numa sequência ordenada pela vontade dos deuses e que provoca mudança positiva na vida dos etíopes. No fim do romance, Teágenes e ela tornam-se sacerdote e sacerdotisa do Sol e da Lua. Há muito se discute a possível intenção que Heliodoro teria tido de propagar certa visão filosófica com seu romance. O debate talvez tenha se iniciado com Filipe, o Filósofo — há motivos para defender que esse autor tenha vivido nos séculos V ou VI ou XII, sem ser possível apontar com certeza em qual. Filipe fez uma interpretação alegórica do romance, de influência neoplatônica: Caricleia, a heroína, seria um símbolo da alma e do intelecto (σύμβολον ψυχῆς καὶ νόος), 882

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e os elementos do seu nome resultariam nos números 777, três vezes um número sagrado: 700 representaria o reverente e o perfeito, 70, a alma, e 7, o corpo. A narrativa poderia, então, ser interpretada como uma ascensão da alma (Caricleia) ao mundo intelectual, despertada pela visão de Teágenes. O testemunho antigo mais conhecido sobre Heliodoro está numa obra do historiador Sócrates compilada no segundo quarto do século V. O autor afirma que na Tessália um homem casado que fosse ordenado deveria deixar de dormir com sua esposa e que essa determinação fora introduzida por Heliodoro que, segundo se dizia, além de bispo também teria sido autor de um livro erótico intitulado As Etiópicas. Além disso, no período bizantino, os testimonia são vários, talvez porque se acreditasse que o autor teria sido cristão. Assim como Aquiles Tácio e Longo, Heliodoro foi imitado por romancistas do período. A editio princeps de As Etiópicas foi publicada na Basileia em 1534 e a edição seguinte em 1596, em Heidelberg, a primeira a partir de mais de um manuscrito. Durante o Renascimento, Heliodoro foi muito apreciado e, visto como um grande autor épico, podia ombrear com Homero e Virgílio, havendo imitações da sua obra na França, na Inglaterra e na Península Ibérica desde o século XVI (Futre Pinheiro 1996). A última obra de Miguel de Cervantes, Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda, publicado postumamente em 1617, tem As Etiópicas como um de seus modelos. Traduzido por Jacques Amyot na França em 1548, o romance foi também um favorito de Jean Racine (1639–1699). Mais recentemente, a obra é sumarizada no conto Silêncio, da canadense Alice Munro, publicada no livro A Fugitiva (2004), no qual a história criada por Heliodoro vira objeto de especial interesse 883

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da personagem principal, Juliet Henderson, uma pesquisadora de Estudos Clássicos que tem uma relação estremecida com sua filha Penélope. Fontes históricas HÉLIODORE. 2003–2011 Les Éthiopiques: Théagène et Chariclée. Edição de R. M. Rattenbury e T. W. Lumb. Tradução de J. Maillon. Paris: Les Belles-Lettres, tomo I, tomo II e tomo III. Bibliografia geral DOWDEN, K. 1996. Heliodoros: Serious Intentions, Classical Quarterly, vol. 46, n. 1, p. 267–285. HUNTER, R. (Ed.). 1998. Studies in Heliodorus. Cambridge: Cambridge University Press. MORGAN, J. 1996. Heliodoros. In: SCHMELING, G. (Ed.). The Novel in the Ancient World. Leiden/New York/Köln: Brill, p. 417–447. FUTRE PINHEIRO, M. 1996. The Nachleben of the Ancient Novel in Iberian Literature in the Sixteenth Century. In: SCHMELING, G. (Ed.). The Novel in the Ancient World. Leiden/New York/Köln: Brill, p. 775–811.

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MULHERES NA LITERATURA LATINA Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres na Literatura Latina

por Anderson Martins

Nosso olhar sobre as sociedades da Antiguidade —e, por extensão, o olhar sobre uma característica específica de algumas dessas sociedades, tal qual a literatura— é sempre e de modo inarredável um olhar contemporâneo. É dizer, estamos todos nós, pesquisadores da Antiguidade, cingidos pelas amarras irremediáveis de um certo anacronismo, que advém da circunstância mesma de nosso ofício de interpelar, hoje, uma civilização que deixou de existir há séculos, que não se nos apresenta senão como uma rede fragmentária de «mitos, emblemas e sinais», para retomar o paradigma indiciário de Ginzburg. Impedidos, pela injunção do decurso do tempo, de empreender uma pesquisa de campo antropológica que nos permitisse compreender cabalmente, por meio da complementaridade entre as abordagens êmica e ética, o funcionamento da sociedade da Roma republicana e imperial, estamos fadados a observar, questionar e falar sobre Roma a partir de nossa própria conjuntura, a sociedade brasileira do início do século XXI. É a partir das inquietações de nosso tempo que lemos nossos autores, em sua maioria (ao menos para a República e início do Principado), homens pertencentes às elites de Roma ou de demais cidades da Península Itálica. Formados, que somos, em uma cultura específica —e ela é machista, LGBTfóbica, racista e, nos últimos anos, crescentemente fascista (ou, pelo menos, para agradar a historiadores mais severos, autoritária)— e com a mentalidade de mulheres e homens de nossa época, perscrutamos o que restou de Roma e da sua literatura.

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E, por mais desolador que possa parecer, nada pode transpor o hiato dos conceitos entre Antigos e Modernos, já que ou usamos, em nossa tarefa de refletir sobre as obras e os autores romanos, termos e conceitos contemporâneos —como gênero, identidade, sexualidade e mesmo literatura (como bem lembra Florence Dupont, o que chamamos de «literatura latina» é uma criação moderna)—, ou adotamos termos luzidios com irrefutável lastro na Antiguidade — família, virilidade, erotismo, religião, autor, filosofia e tantíssimos outros, que recebem a chancela dos puristas —que não guardam equivalência semântica e cultural com os seus pares antigos. Estamos, repito, fadados a um certo grau de anacronismo— donde o corajoso «elogio do anacronismo» de Nicole Loraux —e lidamos com ele com uma variedade de modelos teóricos e metodológicos, dos mais ingênuos e primitivistas aos mais conscientes e modernistas. De uma perspectiva contemporânea, a representação das mulheres na literatura latina — especialmente, neste volume, desde seus inícios, com a comédia plautina, até o início do Principado — chama nossa atenção com duas grandes questões preambulares, de que trataremos neste texto. Primeiramente, a sub-representação. Se levarmos em conta que a razão sexual entre humanos é muito próxima de 1:1 (ou seja, de forma geral e em média, a proporção entre homens e mulheres nos diversos grupos populacionais é equilibrada, de modo que há algo próximo a 100 homens para cada 100 mulheres, desprezamos aqui a ligeira predominância da população masculina atual apontado pela Organização Mundial de Saúde, que apresenta estimativas de até 1,06 homem nascido/mulher) e que este coeficiente é relativamente estável ao longo do tempo, havia, na população de Roma ao tempo de Augusto, por exemplo, um número muito próximo de romanos e romanas. Cabe salientar que mesmo considerando a insistência de estudiosos sobre 890

A presença das mulheres na Literatura e na História

um possível desequilíbrio, durante o principado de Augusto, resultando em uma quantidade de cidadãos romanos de nascimento livre (ingenui) ligeiramente maior do que as mulheres romanas de mesmo status (McGinn 2004), não parece haver razões para afirmar que a razão sexual da população de Roma era muito diferente da média histórica de 1 para 1. Em vista disso, temos que lidar com o fato de que as mulheres apareciam pouco nas obras literárias da Roma Antiga. Literariamente, as mulheres apareciam muito menos do que sua presença real na sociedade, o que equivale a dizer, portanto, que sofriam uma significativa sub-representação. Não nos referimos à disparidade da importância, ou, mais precisamente, do destaque dado às personagens masculinas em relação às femininas, já que nos parece fato evidente, mesmo aos que têm pouca intimidade com a literatura romana. Indiscutivelmente, de maneira geral, personagens masculinas têm mais relevo do que femininas: ainda que haja um só Eneias contra três personagens femininas a ele correlatas pelo matrimônio ou por outros laços erótico-afetivos, seria mesmo uma platitude afirmar que Creúsa, Dido e Lavínia, ainda que juntas, podem competir com a relevância dada por Virgílio ao herói de sua epopeia que, não por outro motivo, recebeu o nome de Eneida. Em contrapartida, reportamo-nos apenas à mera evidência quantitativa: há muito menos mulheres do que homens representados na literatura latina. Se utilizarmos o mesmo exemplo da Eneida, dentre os personagens mais recorrentes —como nos informa João Ângelo Oliva Neto no Índice dos principais nomes, ao final da edição crítica e anotada da tradução da Eneida por Carlos Alberto Nunes— há 92 homens para apenas 33 mulheres (computamos individualmente cada variação de nome do mesmo personagem, por exemplo: Vênus e Citeréia contam duas vezes, da mesma forma como Febo e Apolo; contamos, igualmente, de acordo com seu 891

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gênero, figuras mitológicas que não tenham forma humana, como é o caso de Cila, de gênero feminino, e de Cíclope, de gênero masculino; além disso, entram na contagem grupos masculinos, como os Faunos, e femininos, como as Fúrias, e também cada um de seus integrantes que aparecerem na lista, como é o caso da Fúria Alecto), ou seja 10:3,6 (10 homens para 3,6 mulheres, arredondando para cima a casa decimal). Talvez se possa argumentar, para relativizar a discrepância, que é da própria natureza do gênero épico, no qual se inscreve a Eneida, exaltar os feitos dos heróis —quase todos homens, bem entendido— e que, apenas por este motivo, as mulheres tenham um papel secundário. Ainda que possamos aceitar o argumento —falacioso, sem dúvida, já que o mesmo fato que o épico privilegie a ação de heróis e não de heroínas (a não ser por via de exceção e para ilustrar valores masculinos presentes em uma mulher, como é o caso de Camila) reforça nossa afirmação, em vez refutá-la—, basta passar a outras obras, como as comédias plautinas, que são, em certa medida, um contraponto à Épica, na medida que estão muito mais próximas da realidade social de sua época (segunda metade do século III e início do século II aEC) do que a magnum opus (ou qualquer outra obra) de Virgílio. E o que encontramos em Plauto é uma proporção não muito mais alentadora de mulheres: se usarmos como exemplo uma de suas peças mais conhecidas, como a Aululária, todos os personagens principais (Euclião, Megadoro, Liconides e Estrobilo) são homens; entre os secundários ou de menor relevo, temos o deus Lar e os cozinheiros Congrião e Ântrax contra três mulheres: Estáfila, Eunômia e a discreta (e silente) Fedria — sete personagens masculinas para três femininas, o que se converte em 10:4,3, arredondando para cima a casa decimal. E o saldo nem é tão negativo como nas Báquides, para tomar outro exemplo aleatório, que, embora tenham o nome das 892

A presença das mulheres na Literatura e na História

duas únicas personagens femininas da peça, conta com 10 personagens masculinas — 10:2, exatamente. E, reforçamos, não tratamos aqui do relevo dos papéis femininos, pois, se assim, fosse, a representação feminina nas Báquides seria ainda menor, considerando que, na razão de 10:2 (10 homens para duas mulheres), estas últimas aparecem apenas na primeira e na última cenas. O leitor atento pode arguir o lapso temporal de quase dois séculos entre o período de composição da Eneida e o das comédias plautinas e preferir comparar a composição de Virgílio com seus contemporâneos. Talvez, afinal, na literatura augustana a mulher apareça mais em outras composições literárias de outros gêneros literários, que não a Épica. Pois examinemos esta hipótese pelo mesmo método, de amostragem e pouco preciso, que usamos acima e nos voltemos para os autores da chamada Elegia erótica. Utilizemos como exemplo as elegias de Propércio, que as escreveu lá pela mesma altura que Virgílio trabalhava na Eneida e, caso raro entre os poetas da época, que se mostra fiel ao modelo heterossexual de amor e não divide a atenção que dispensa a Cíntia com nenhum Márato ou Juvêncio. É mesmo de se esperar que um gênero que se dedica de tal modo a cantar a mulher amada —e, no caso do insuspeito Propércio, repetimos, não há nenhuma distração que dê origem a um ciclo de elegias de amor homossexual— tenha uma preponderância de mulheres; é dizer, trata-se de procedimento de cherry picking contrário à nossa hipótese. Pois o que vemos no index —bastante exaustivo e cuidadoso— ao final da tradução de Goold é a menção a 345 personagens masculinos contra 167 femininas (retomanos nesta contagem os procedimentos observados para o cômputo das personagens da Eneida e, além deles, contamos também as personificações 893

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de virtudes e noções abstratas, como em Mens Bona, Pudicitia, Fama etc.), o que nos dá a proporção de 10:4,8 (10 homens para 4,8 mulheres, arredondando para baixo a casa decimal). Sem dúvida, é uma proporção superior aos 10:3,6, que encontramos em Virgílio, mas ainda muito distante de um 10:10, o que nos faz reafirmar que as personagens femininas —sejam mulheres, como a épica Dido ou Cíntia de Propércio; sejam deusas, como Juno e Minerva, ou monstros, como Cila e Caríbdis, que aparecem em ambos autores; sejam personificações de ideias abstratas, como Fides, em Virgílio e Mens Bona, na elegia— aparecem sensivelmente menos do que seus contrapares masculinos, em uma (des)proporção de aproximadamente 50%, na melhor das contagens, até 20%, no pior dos casos (i.e. que as mulheres aparecem, respectivamente, entre 50% e 80% menos do que os homens). E, ainda importante dizer, para respeitar a divisão de gêneros literários proposto para esta coleção, deixamos de lado autores muito significativos, como Cícero e Tito Lívio, que escreveram pouco antes ou pouco depois de Virgílio, cujas obras, muito provavelmente, nos dariam uma proporção ainda mais sombria pendendo para personagens masculinas. A literatura latina foi marcada, repisamos a assertiva, pela sub-representação das mulheres. A segunda grande questão relacionada ao tema da representação das mulheres na literatura latina é número ínfimo de obras de escritoras romanas que nos chegou, fenômeno que Moses Finley sintetiza no título de um capítulo bem conhecido e não menos pessimista: «The silent Roman women», originalmente publicado em 1965 e que figura em uma obra sobre gênero e sexualidade na Antiguidade, organizada por Laura McClure (2002, 147–160). É dizer, enquanto, no espaço literário romano, os homens se autorrepresentam, as mulheres, ao contrário, são alorrepresentadas. Não possuímos, com efeito, 894

A presença das mulheres na Literatura e na História

nenhuma obra completa de qualquer escritora romana (ou de expressão latina, para ser mais preciso) no período compreendido por este volume, e mesmo o minguado material que nos alcançou tem suscitado polêmicas infindáveis. Desde o século XIX até o fim do século XX, classicistas, homens em sua maioria, têm se recusado a aceitar fato de que este excerto de carta ou aquele poema elegíaco sejam autênticos ou tenham sido escrito por mulheres romanas, preferindo, na dúvida, atribuí-los a um homem —in dubio, pro viro. Alicerçado, é verdade, na penúria de evidência, essa atmosfera científica de pessimismo— expressa, por exemplo, pelo enunciado fatalista de Niklas Holzberg, que sentencia, no início de um artigo: «Roma na Antiguidade é uma espécie de decepção para aqueles interessados em gender studies» (1998–1999, 169) —foi tóxica para o avanço dos estudos da produção literária feminina na Antiguidade Romana. De maneira que, salvos pelo esforço de gerações de mulheres classicistas, que, desde a década de 1970, têm trabalhado para «restaurar as vozes perdidas» das escritoras romanas (Hemelrijk 2004, 140), temos hoje mais instrumentos, seja para compreender o silenciamento dessas mulheres no espaço literário de Roma, seja para reavaliar o minguado material de que dispomos, seja para compreender as obras perdidas, ou seja, as escritoras cujas produções não sobreviveram, mas, ainda assim, foram reconhecidamente importantes no seu tempo. Algumas dessas mulheres romanas escaparam à «dominação masculina» (expressão que tomamos de empréstimo a Bourdieu) da sociedade da Roma antiga e, mais especificamente, às constrições impostas às escritoras romanas. Citamos aqui —julgamos fundamental o seu registro nesta obra—cinco figuras, que nos parecem as mais emblemáticas, por ordem cronológica e sem distinguir as autoras cujas obras (ou fragmentos) sobreviveram daquelas que, em 895

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contrapartida, apenas temos o nome e o testemunho dos antigos. A primeira menção cabe a Cornélia (c. 190–c. 110 aEC), filha de Emília Paula e Cornélio Cipião Africano e mãe dos irmãos Gracos. Embora haja muitas evidências de cartas redigidas por mulheres, aparentemente somente as de Cornélia foram publicadas e alcançaram tal sucesso de modo a serem elogiadas por Cícero (Brutus, 211) e por Quintiliano (Institutio Oratoria, 1. 1. 6). Há controvérsias sobre a autenticidade de dois trechos de uma carta de Cornélia a seu filho Caio Graco, preservada em alguns manuscritos que contém fragmentos de uma obra perdida de Cornélio Nepos, mas, ainda assim, sabemos que produção epistolar da autora era marcada pelos conselhos de uma matrona sobre atuação política dos irmãos Gracos. A personificação da figura da «matrona» na figura literária de Cornélia dá azo a comentários céticos como o de Thomas Hubbard, para quem é impossível saber se essas cartas eram autênticas ou a «construção literária de autores masculinos de uma matrona idealizada» (2004–2005, 189). Muitos anos depois, na última geração da República Romana, temos Cornifícia, poeta pertencente provavelmente ao círculo dos poetas neotéricos, talvez por intermédio do irmão Cornifício, também poeta e amigo de Catulo, ou de seu esposo Camério, igualmente amigo de Catulo, que dedica a ele o poema 55. Nada nos restou de seus poemas, que, entretanto, são citados nas Crônicas de Jerônimo, que ao consignar a morte irmão Cornifício, em 41 aEC, nos informa Chronicon, 184ª Olimpíada, 3a): «huius soror Cornificia, cuius insignia extant epigrammata» (a irmã deste era Cornifícia, cujos notáveis epigramas sobrevivem). Ou seja, sua produção, a julgar pela letra do texto de Jerônimo, teria sobrevivido pelo menos por quatro séculos (até o final do século IV EC). 896

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Já no período augustano, alcançamos a escritora romana que, possivelmente, teve maior renome (e, consequentemente, suscitou mais polêmica entre os classicistas) na contemporaneidade: Sulpícia, poeta elegíaca do círculo de Tibulo (ou, vale dizer, do círculo de Messala), da qual restam seis pequenos poemas no Livro III do Corpus tibullianum — volume apenso, em um manuscrito de época carolíngia, aos dois livros do poeta e possivelmente uma recolha de poemas de amigos de Marco Valério Messala Corvino. Os poemas atribuídos à Sulpícia —precedidos pela assim chamada Grinalda de Sulpícia (3. 8–12), de autoria desconhecida— são os 3. 13–18, conforme a anotação tradicional nas principais edições do século XX. Esses 40 versos em dísticos elegíacos representam o único conjunto cujos manuscritos atribuem a uma mulher romana em toda a literatura latina clássica e, talvez por isso mesmo, sua autenticidade tem sido objeto de calorosas discussões por mais de um século e meio (Hubbard 2004–2005, 177–183). Sulpícia teria sido sobrinha, por parte de mãe, de Valério Messala Corvino (64 aEC–8 EC), patrono das artes e cônsul em 31 aEC, e filha de Sérvio Sulpício Rufo, o que a coloca na mais fina flor da aristocracia romana. Provavelmente teve seu floruit nas últimas décadas do século I aEC (Hemelrijk 2004, 145) e, na amostra de seus poemas que nos chegou, canta seus amores por um certo Cerinto (Cerinthus), que, como ela, era solteiro. E é precisamente este seu status que alimenta grande parte das suspeitas sobre a autoria dos poemas, como vemos no já citado Hubbard, para quem seria inconcebível que uma jovem poeta romana escrevesse com tal liberdade de expressão seus desejos amorosos por Cerinto, seja ele quem fosse — ou seja, mesmo que ele fosse uma mera criação literária (2004–2005, p. 178). Na mesma esteira, Niklas Holzberg, de forma menos sexista, é verdade, atribui os poemas de todo o livro III, incluindo os de Sulpícia, a um imitador de Tibulo, posterior a Ovídio, que 897

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teria escrito sob o principado de Tibério (1998–1999, 178). Para uma análise mais aprofundada sobre o tema, recomendamos a leitura de Emily Hemelrijk, que acolhe a tese da existência real de Sulpícia e da autenticidade da autoria dos poemas (2004, 145 e ss.). Uma escritora consideravelmente diferente das que viveram no século anterior é Agripina Menor (15–59 EC), filha de Agripina Vipsânia e de Germânico. Primeiramente, Agripina tinha uma influência política ímpar em seu tempo: foi esposa do imperador Cláudio e mãe de Nero, sucessor deste — e, a julgar pelos relatos de Tácito, Suetônio e Díon Cássio, responsável por orquestrar essa sucessão. Junto com Lívia, esposa de Augusto, foi talvez a mulher mais atuante politicamente nos primeiros anos do Principado romano, o que não era o caso das poetas referidas anteriormente. Sobre sua posição única na família imperial —com efeito, Agripina era filha de Germânico, aclamado imperator em função de suas vitórias na Germânia, irmã de Calígula e, como já dissemos, esposa de Cláudio e mãe de Nero—, Tácito escreve (Ann. 12. 42. 3): «imperatore genitam, sororem eius, qui rerum potitus sit, et coniugem et matrem fuisse unicum ad hunc diem exemplum est» (único exemplo, até o dia de hoje, de uma mulher filha de um imperator, irmã, mulher e mãe de um imperador). Em segundo lugar, e em decorrência de seu status, Agripina adotou um gênero inusitado para as mulheres romanas: os commentarii, para utilizarmos o nome com que Tácito classifica a obra (Ann. 4. 53. 3), o qual podemos traduzir como «memórias». O livro, provavelmente publicado, é citado também por Plínio, o Velho, ao comentar o mau presságio que marcou o nascimento de Nero (N.H. 7. 46). E o que faz da obra, da qual nada nos restou, tão significativa no espaço literário das autoras romanas é seu próprio gênero, já que os commentarii eram um tipo de autobiografias de políticos —homens 898

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romanos pertencentes às elites— que, embora não tivessem pretensão literária, representando mormente notas destinadas a informar o trabalho dos historiadores propriamente ditos, eram um meio de aumentar sua própria dignitas, de apresentar a sua perspectiva sobre a história política do período. E, a considerar apenas pelas menções presentes em Tácito e em Plínio, o Velho, Agripina conseguiu deixar demarcado o seu legado no espaço extremamente sexista da política romana de meados do século I EC. Finalmente, chegamos a Sulpícia, poeta satírica — também chamada de Sulpícia II, para diferenciá-la da poeta elegíaca homônima, ou de Sulpicia Caleni, i.e. «Súlpícia de Caleno» (esposa de Caleno), forma que, ainda que possa ter sido o modo como os romanos se referiam a suas mulheres e ainda que agradasse a alguns puristas mais apegados às expressões antigas, preferimos evitar. Esta Sulpícia viveu e, possivelmente (Merriam 1991, 303; Stevenson 2005, 45), produziu sob o principado de Domiciano (81–96 EC) e foi celebrada por Marcial nos epigramas 10. 35 e 10. 8. No primeiro, o autor se refere explicitamente à produção poética de Sulpícia (Ep. 10. 35. 1–4) —Omnes Sulpiciam legant puellae/ uni quae cupiunt viro placere (todas as moças que queiram agradar a um só homem leiam Sulpícia)— que é apresentada como modelo de amor e fidelidade conjugal. Sua obra, de acordo com Emily Hemelrijk (2004, 154) e Jane Stevenson (2005, 45), é marcada pela exaltação do amor conjugal e mesmo pelo desejo que sentia por seu marido, o que pode ter lhe valido o julgamento negativo de Ausônio, que a acusa de «licenciosidade» (Merriam 1991, 304). No segundo epigrama, endereçado a Caleno, Marcial comemora os quinze anos de sua união conjugal com Sulpícia, que compara com o casamento mítico da ninfa Egéria e do rei Numa, famoso pela retidão de costumes e pela religiosidade 899

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(Ep. 10. 35. 13–14). Da obra de Sulpícia, nada sobrou, a não ser dois versos iâmbicos trímetros, citados por um escoliasta do século IV EC (Emelrijk 2004, 331). Com esse rol de apenas cinco autoras, cujas obras são ou lacunares ou não nos chegaram, não desejamos desencorajar as futuras pesquisadoras e pesquisadores. Focamos naquelas que nos parecem mais representativas, quer seja do ponto de vista político, como Cornélia e Agripina, quer do ponto de vista literário, como Cornifícia e as duas Sulpícias; mas, em nenhuma hipótese, esta lista deve ser lida como um cânone ou, o que é pior, como uma enumeração exaustiva. Já se passaram muitos anos desde a ideia de «uma meia-dúzia de mulheres de língua latina que tentaram escrever», como Holzberg (98–99, 169) se refere à lista de Santirocco (1979, 229). Houve muitas mais, sobretudo se consideramos a evidência epigráfica e se aumentamos o nosso recorte temporal de modo a alcançar a Antiguidade Tardia. Contudo, ainda assim, no estágio atual das pesquisas, não podemos escapar do que asseveramos acima: o número de escritoras romanas que nos chegou é ínfimo quando comparado ao total de escritores homens. E isso nos reconduz à segunda grande questão relacionada ao tema da representação das mulheres na literatura latina e ao corolário do fenômeno da exiguidade de escritoras: as romanas foram representadas, de forma quase que absoluta, por homens, e não por elas próprias. Sofreram, portanto, uma alorrepresentação, cujas consequências são conhecidas e, em grande medida, estudadas pelos especialistas. Destarte, as mulheres romanas —e gregas, e bárbaras— do espaço literário romano são figuras cinzeladas por homens e não escapam às expectativas e ao ideário de uma sociedade machista e patriarcal. Como seriam, por outro lado, essas mulheres romanas em uma literatura autorrepresentativa é difícil de prever, já que os poucos dados de que ainda dispomos nos impedem de formular hipóteses. 900

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Apresentamos aqui dois fenômenos que dizem respeito à relação entre a literatura latina e a sociedade romana: a sub-representação e a alorrepresentação. E vimos o óbvio, as mulheres aparecem pouco, ocupam em regra um papel menor do que os homens na literatura e, para acréscimo, não há, praticamente, nenhuma autora romana cuja obra nos tenha chegado de forma integral. Cabe, portanto, a nós, contemporâneos, a quem se coloca a nítida questão da representatividade da mulher na nossa sociedade, fazer o melhor que podemos para pôr em evidência essas personagens. É nossa tarefa fazer justiça àquela metade da população de Roma que, embora tenha atuado ativamente na construção da República e, depois, do Império, foram silenciadas, por diversos expedientes, na literatura latina. É preciso relembrar o ânimo guerreiro de Camila, a coragem (que se revelou revolucionária) de Lucrécia, o furor das Medeias romanas. É preciso, além disso, fazer falar as personagens sem voz. Tal tarefa, a tarefa deste volume, só se consegue pelo diálogo entre duas temporalidades: a Antiguidade Romana, nosso objeto de estudos, e a contemporaneidade com nossas próprias lutas e questões. E precisamente isso fazem, cada um ao seu modo, os eruditos autores e autoras dos verbetes contidos neste capítulo. Fontes históricas AUSONIUS. 1919. Volume I: Books 1–17. Translated by Hugh G. Evelyn-White. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press. CATULLUS, TIBULLUS, PERVIGILIUM VENERIS. 2017. Translated by Francis Warre Cornish, J. P. Postgate, J. W. Mackail. Second Editions revised by G. P. Goold, reprinted with corrections. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press. 901

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CATULO, TIBULO. 1992. Poemas. Elegías. Introducciones, traducciones y notas de Arturo Soler Ruiz. Madrid: Editorial Gredos. CICÉRON. 1923. Brutus. Texte établi et traduit par Jules Martha. Collection Budé. Paris: Les Belles Lettres. MARTIAL. 1934. Épigrammes. Tome II, 1re partie: Livres VIII-XII. Texte établi et traduit par H. J. Izaac. Collection Budé. Paris: Les Belles Lettres. PLINE L’ANCIEN. 1977. Histoire naturelle. Livre VII. Texte établi et traduit par Robert Schilling. Collection Budé. Paris: Les Belles Lettres. PROPÉRCIO. 2014. Elegias. Edição bilíngue. Organização, tradução, introdução e notas de Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Autêntica. PROPERTIUS. 1990. Elegies. Edited and translated by G. P. Goold. Loeb Classical Library. Cambridge, MA: Harvard University Press. QUINTILIEN. 1975. Institution oratoire. Tome I: Livre I. Texte établi et traduit par Jean Cousin. Collection Budé. Paris: Les Belles Lettres. SAINT JERÔME. 1838. Oeuvres. Publiées par Benoit Matougues, sous la direction de M. L. Aimé-Martin. Paris: Auguste Desrez. TACITE. 1977–1976. Annales. Tome II: Livres IV-VI. Tome III: Livres XI-XII. Texte établi et traduit par Pierre Wuilleumier. Collection Budé. Paris: Les Belles Lettres. TIBULLI ALIORUMQUE. 1924. Carminum Libri Tres. John Percival Postgate. Revised Edition. Oxford Classical Texts. Oxford: Oxford University Press. 902

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VIRGÍLIO. 2016. Eneida. Edição bilíngue. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Organização, apresentação e notas de João Ângelo Oliva Neto. 2ª Edição. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral DIXON, S. 2007. Cornelia, Mother of Gracchi. London: Routledge. DUPONT, F. 1994. L’invention de la littérature: De l’ivresse grecque au livre latin Paris: Éditions La Découverte. HABINEK, T. 1998. The Politics of Latin Literature. Princeton. HEMELRIJK, E. A. 2004. Matrona Docta: Educated Women in the Roman Elite from Cornelia to Julia Domna. London: Routledge. HOLZBERG, N. 1998–1999. Four Poets and a Poetess or a Portrait of the Poet as a Young Man? Thoughts on Book 3 of the Corpus Tibullianum, Classical Journal, vol. 94, p. 169–91. HUBBARD, T. K. 2004. The Invention of Sulpicia, Classical Journal, vol. 100, p. 177–194. LORAUX, N. 1993. Éloge de l’anachronisme en histoire, Le Genre humain, vol. 27, p. 23–39. McCLURE, L. K. (Ed.). 2002. Sexuality and Gender in the Classical World: Readings and Sources. Oxford: Blackwell. McGINN, T. 2004. Missing Females? Augustus’ Encouragement of Marriage between Freeborn Males and Freedwomen, Historia: Zeitschrift für Alte Geschichte, vol. 53, n. 2, p. 200–208. MERRIAM, C. U. 1991. The Other Sulpicia, The Classical World, vol. 84, n. 4, p. 303–305. RICHLIN, A. 1992. Sulpicia the Satirist, The Classical World, vol. 86, n. 2, p. 125–140. SANTIROCCO, M. S. 1979. Sulpicia Reconsidere, The Classical Journal, vol. 74, n. 3, p. 229–239. 903

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STEVENSON, J. 2005. Women Latin Poets: Language, Gender, and Authority from Antiquity to the Eighteenth Century. Oxford: Oxford University Press.

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Dīdō › Dido

por Paulo Martins

Daquilo que sabemos sobre Dido —também chamada Elisa—, os elementos seguramente mais antigos referem-se à migração de um grupo de fenícios de Tiro (atualmente no Líbano) para Cartago (hoje na Tunísia), em aproximadamente 814 AEC. Foi Dido que, em desavença com seu irmão Pigmaleão, liderou a fuga dos tírios para fundar uma nova cidade (Qart-Hadašt), significado literal de Cartago. Ela tinha se casado com um sacerdote de Hércules, Siqueu —também chamado Sicarbas—, cuja fortuna era disputada pelo rei, seu irmão, Pigmaleão, que o matou. Restou à filha do rei Muto (Agenor ou Belo), a sidônia Dido, fundar uma nova Tiro e obedecendo ao fantasma de Siqueu, achou seu tesouro, tomou a fortuna do irmão e partiu a fim de cumprir sua saga no oeste da África. Em sua jornada para cumprir sua missão, sua esquadra faz uma escala em Chipre onde seus companheiros raptam oitenta jovens moças do serviço à cípria Vênus e as tomam por suas esposas. Tal ação pode, em certa medida, ser responsável por seu trágico futuro. Em seguida, parte da ilha retornando à África mais ocidental, onde funda Cartago (ver Virgílio. Eneida, vv. 1.330–401). Cidade historicamente importante, pois que rivalizará comercial e politicamente com Roma nos séculos vindouros. Rivalidade esta que culminou com as Guerras Púnicas entre 264–146 AEC, quando Roma quase caiu sob os ataques de Aníbal. As referências mais antigas sobre a fundação de Cartago e consequentemente sobre Dido vêm de Timeu de Tauromênio (c.350–260 AEC), cujos textos não chegaram até nós a não ser

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por fonte indireta. Outro documento importante e indireto é de Menandro de Éfeso que, citado por Flávio Josefo (historiador do século I EC), nos apresenta uma lista de reis tírios entre os séculos X e IX AEC. A numismática também nos oferece vários registros extemporâneos acerca de Dido. Um bom exemplo pode ser observado numa moeda (figura 1), que nos oferece uma efígie de Elisa. Essa raríssima tetradracma foi cunhada entre 320–310 AEC, na Sicília, provavelmente em Entela (Ἔντελλα), portanto algo em torno de 150 anos antes das guerras púnicas.

Fig. 1: Tetradracma de Dido - SNG Lloyd, 1628.

Ainda que tenhamos referências à rainha sidônia feitas por historiadores como Valeio Patérculo (c. 19 AEC–c. 31), (História Romana, 1. 6. 4) quando aponta que Cartago fora fundada 65 anos após a fundação de Roma pela rainha ou Tácito (c. 56–117), (Anais, 16.1) que descreve o sonho de um cartaginês que logrou ludibriar Nero, dizendo que em suas terras em Cartago havia um tesouro ocultado por Dido, definitivamente são as fontes poéticas as mais instigantes e detalhadas que temos dessa personagem. Advêm de Névio nos Anais; de 906

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Virgílio (70–19 AEC) na Eneida; de Ovídio (43 AEC–18 EC) nas Heroides, nos Fastos e nos Remédios do Amor, afora as de Marcial (40–104 EC) nos Epigramas, Sílio Itálico (28–103 EC) na Púnica e Aulo Gélio nas Noites Áticas (123–165). Entretanto Virgílio e Ovídio também são fontes importantíssimas. Ambos, ao contrário de Fernando Pessoa, fizeram da história de Dido o seu mito e esse fecundou a poesia. Para o poeta português “a lenda (de Ulisses) se escorre/ a entrar na realidade” (Pessoa. Mensagem, 6), afinal dele vem o nome de Lisboa (Ulissipona). Já para aqueles poetas romanos, Dido, uma realidade, como outras tantas, tornou-se efabulação poética. Nesse viés, a rainha fenícia é uma mescla de personas de três gêneros letrados, sem contarmos a historiografia: a épica, a elegia e a tragédia. Mesmo que tenhamos na historiografia antiga a possibilidade de alusão mítica, em certa medida, referendada por Heródoto na arqueologia (História, Clio, 1–5), essa personagem traz consigo a marca da ficcionalidade e da inventividade poética que irá sendo cristalizada a partir do séc. I AEC, muita vez, com o crivo de validade histórica. Murari (1999, 147–148 e 181), por exemplo, vê na epopeia os princípios da narrativa na questão do valor-utilidade, qual seja, o princípio teleológico e, assim, entendemos que o mito de Dido cumpre uma função literária ligada mas não engendrada por sua “nua” realidade histórica. Decorre, pois, que nesse caso a natureza poética daquilo que “poderia ser”, logo mais verdadeiro do que “aquilo que foi” acaba por ganhar contornos históricos com toda vênia de Aristóteles. A lenda de Dido, reelaborada por Virgílio, tem um ponto de contato com um evento histórico, já que Dido parece ter se matado. As versões mais antigas, informam que assim que a rainha fundou Cartago, um rei de uma cidade vizinha, um tal Jarbas, a propôs casamento ao qual não poderia recusar sob a ameaça de guerra iminente. Ela pediu três meses para 907

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responder, pois cumpria luto pela morte de Siqueu. Ao final do prazo, subiu a uma pira funerária e lá se suicidou. Esse desfecho, ainda que de forma arrevesada, teria contribuído para a construção da narrativa sobre heroína na Eneida. Três momentos na epopeia virgiliana reputo importantes na construção da personagem. Os primeiros contatos entre a sidônia e o troiano, Eneias, no primeiro canto. O enlace amoroso entre ambos, provocado por Cupido, e o desfecho trágico urgido por Vênus no canto quarto. E o reencontro dos dois na catábase do sexto canto. Não que Dido desapareça completamente no decurso da epopeia, afinal sua memória é reestabelecida, a partir de presentes que ofertou ao filho do herói (Eneida, 5. 571), um cavalo e a Eneias, uma cratera (Eneida, 9. 266) e um manto (Eneida, 11. 74). Seu primeiro contato com o protagonista é quando sua flotilha após a tempestade urdida por Juno e apaziguada por Netuno os faz aportar em Cartago. Daí Eneias em sua exploração encontra num templo as imagens da guerra de Troia da qual acabara de participar — uma bela écfrase (ver Martins 2013, 48–68). É neste local que ele vê Dido (Eneida, 1. 496), porém ele ganha a invisibilidade. Outros membros da esquadra chegam e ela mostra toda sua hospitalidade, convidando-os, todos, para um banquete, lamentando que Eneias não esteja presente (Eneida, 1. 516–519). Aí herói reaparece resplandecente (ver figura 2 e Eneida, 586–595). Tais circunstâncias são semelhantes a Odisseu no palácio do rei feácio, Alcino, (ver Martins 2013, 32–46) dado que neste episódio Eneias passa a narrar os eventos dos quais participou até sua chegada a Cartago (ver figura 3). Mas o mais importante: enquanto Eneias manda buscar o filho nos navios, sua mãe Vênus pede a Cupido que “contamine” a rainha com seus poderes e a faça apaixonar-se pelo troiano. 908

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Fig. 2: The Meeting of Dido and Aeneas (1766), Sir Nathaniel Dance-Holland. Tate Britain, Londres.

Nos cantos segundo e terceiro, temos o flashback dos eventos que antecedem a chegada a Cartago. Esses irão linearizar estruturalmente narrativa iniciada. Assim, o canto quatro retoma os eventos presentes do canto primeiro. É nos versos 1. 123–150 que encontramos o himeneu da rainha e do troiano (ver figura 4), uma cilada urdida num conluio entre Vênus e Juno, dupla vingança. De acordo com a causalidade, a rainha afetada pelo Amor/Cupido irá degenerar seu alumbramento em morte. Amor, morte, decepção e sofrimento são temas igualmente explorados na épica, mas na elegia romana ganha contornos interessantes demarcados por alguns lugares comuns como a milícia do amor; a guerra do/no amor; o lamento do amor não correspondido aliado do sofrimento e da decepção; a morte e o suicídio que culmina na descida aos infernos. 909

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Fig. 3: Énée racontant à Didon les malheurs de la ville de Troie. Huile sur toile (1815), Pierre-Narcisse Guérin, Musée des Beaux-Arts de Bordeaux, Bordeaux.

Aponta Oliva Neto em seus comentários à epopeia: “exemplo do refinamento da poética helenístico-romana, o livro dedicado à malfadada paixão de Dido é interlúdio amoroso em meio aos feitos heroicos de Eneias” (Virgílio. Eneida). A incompatibilidade entre sua condição de mulher e rainha com o amor e o poder na união com Eneias a leva a uma condição de degenerescência ética, pois que percorre o caminho que vai do desvelamento da paixão à morte por suicídio (ver figura 5). Nesse sentido, ainda que tenha contornos trágicos, o canto quarto está estreitamente ligado à elegia romana (ver Martins; Rodrigues 2017, 91–108). 910

Fig. 4: Mosaico romano,encontrado em Low Ham, Somerset — c. IV sec. E.C. — Somerset County Museum (Taunton), Somerset, Inglaterra.

Figura 5: La mort de Didon (séc. XVII), Andrea Sacchi. Musée des Beaux-Arts de Caen, Caen.

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A última aparição de Dido na Eneida é significativa. Eneias em sua descida ao mundo subterrâneo, em busca de seu pai, Anquises, que lhe apresentará o futuro a partir de imagens que se caracterizam pela atemporalidade numa mescla de passado, presente e futuro. Nesta viagem o herói é guiado pela Sibila de Cumas, que é capaz de protegê-lo dos perigos que lá estão guardados. Ao chegar no vestíbulo do inferno Virgílio faz com que Eneias conheça divindades próprias, pois que lá “vê” essas como imagens primordiais e não concretas: o Medo, as Doenças, a Fome, a Discórdia etc. São imagens de um mundo essencialmente únicas, logo verdadeiras platonicamente pensando. Logo após a travessia do Aqueronte —onde conhece Caronte— tem contato com os Campos Lugentes, isto é, os campos daqueles que choram eternamente: almas de crianças, de suicidas e daqueles que morreram de amor, pelo o que lhe surge Dido (Eneida, 450–476). Ela a despeito de sua condenação ao sofrimento eterno, ao eterno choro, por vontade própria, de acordo com a narrativa, impõe a Eneias, um desprezo categórico. “Ela, porém, sem olhá-lo de frente, olhos fixos na terra/ não se deixando abalar pelas frases melífluas de Eneias,/ mais parecia de sílex ou pedra a lavrar de Marpeso”, isto é, mais parecia uma estátua de mármore de Paros quase uma referência ao mito de Pigmaleão, aqui não o irmão de Dido, mas o rei da ilha de Chipre que se apaixonou por sua escultura. Quanto à recepção do mito podemos observar que o encontro com o herói troiano que sela sua marca trágica o fez repercutir, por exemplo, tanto nas Heroides de Ovídio em que recupera os minutos anteriores ao suicídio, como na ópera moderna do inglês Henry Purcell (1658–1695) Dido and Aeneas de 1689 a sinalização do trágico é muito acentuada. Já o mosaico romano de Low Ham e a tela de Dance-Holland 912

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de 1766, por seu turno, resgatam o primeiro canto quando Eneias surge majestosamente trajado diante da rainha e o intercurso amoroso do canto quarto, ambos do poema de Virgílio. A tela de Guérin (1815), por sua vez, apresenta a recepção das estórias do herói na presença de Dido dos cantos segundo e terceiro da Eneida. Sachi, por outro lado, nos passa o momento patético do suicídio de Dido que irá repercutir como vimos no canto sexto da Eneida. Entretanto, algo nos parece muito curioso quanto ao mosaico inglês do século IV E.C., no qual vemos a imagem do mito de Dido e Eneias cristianizada, uma vez que ao conluio amoroso une-se uma serpente ao torno do corpo nu de Dido. Por fim, o que devemos guardar desta “mithistória”, Dido, é que sua relação com Roma e com Enéias, ultrapassa a natureza do amor. Antes, as personagens estão ligadas por seus éthe, ambos são fundadores. Eneias tem a incumbência de fundar Roma, a nova Troia; a Dido é dada a função de fundar a nova Tiro, Cartago. A essas duas potências independentemente do amor e da tragédia foi dado o poder comercial e político do Mediterrâneo ocidental. Se mito ou se nada pouco importa. Mas é inegável o poder cartaginês e romano. Se veio com amor ou desamor, é coisa da Fortuna. Fontes históricas DANCE-HOLLAND, N. 1766. The Meeting of Dido and Aeneas. Londres: Tate Britain. Disponível em: em https:// commons.wikimedia.org/wiki/File:Sir_Nathaniel_Dance-Holland_-_The_Meeting_of_Dido_and_Aeneas_-_Google_ Art_Project.jpg. Acesso em: 31 jul. 2021. 913

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Camilla › Camila

por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa

Camila [Camilla, no latim] é uma virgem guerreira volsca aliada de Turno contra Eneias, herói troiano fundador das bases de Roma. Devota à deusa Diana, Camila desde muito nova foi treinada nas artes da caça e da guerra, além de surpreender por sua beleza, extrema velocidade e habilidade em combate. Apresentada no catálogo de guerreiros do sétimo livro da Eneida, Camila é uma personagem feminina cuja criação acredita-se ser quase exclusiva de Virgílio, pois ela não aparece em nenhum outro documento literário ou epigráfico anterior à Eneida (Mota 2020, 134). Desse modo, o poema é a principal fonte para tratarmos dessa personagem. Virgílio produz a Eneida, de 29 aEC até aproximadamente 19 aEC, a fim de valorizar a grandiosidade do passado, presente e futuro de Roma. Para isso, exalta a origem divina e heróica do Império e da linhagem de Augusto, descendente de Eneias. A Eneida narra os feitos de Eneias, herói troiano que, após a derrota para os gregos na Guerra de Troia, navega rumo ao Ocidente a fim de estabelecer na Itália as bases da Troia renascida: Roma. Nos doze livros que formam a obra, Virgílio relata os últimos dias da guerra, a fuga de Eneias, o combate contra os povos itálicos e a vitória final das forças do troiano. Nos Livros VII e XI identificamos a amazona Camila, aliada de Turno contra Eneias. Camila faz parte dos elementos da literatura do período de Augusto. Após longos e intensos conflitos, Roma caminhava rumo a uma reconfiguração do sistema republicano de governo, que resultou no Principado de Otaviano César. Logo após derrotar Marco Antônio na batalha do Áccio, na

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Grécia, Otaviano torna-se o único senhor em Roma. Entre as medidas adotadas para se legitimar no poder, está o investimento e valorização da produção intelectual, principalmente de poetas que tratassem das grandiosidades do Império Romano. Virgílio fez parte do Círculo de Mecenas, grupo de poetas que recebiam apoio de Augusto para que pudessem produzir suas obras. Acredita-se que a história de Camila teve narrativas populares italianas daquele contexto como fundamento. Entretanto, não se sabe detalhes sobre esses elementos locais que inspiraram Virgílio, porém há modelos mais famosos que influenciaram as características da personagem, por exemplo: as características físicas e o desempenho em campo de batalha da rainha amazona Pentesileia; e a história da infância da guerreira Harpálice. A primeira menção a ela ocorre no final do catálogo dos comandantes itálicos aliados de Turno (Virgílio. Eneida, VII. 803–817). Segundo essa parte, suas mãos femininas não foram acostumadas a utilizar o fuso e as agulhas, dons de Minerva, mas se endureceram nos trabalhos duros dos campos de guerra. Sua velocidade ultrapassava até os ventos mais rápidos, parecendo passar sobre os trigais sem esmagá-los ou sobre a superfície das águas sem que seus delicados pés sentissem a umidade da água. Constata-se nessa parte que, diferentemente do que se esperava de uma mulher na cultura romana, a guerreira não se dedica às aptidões domésticas de Minerva (Mota 2020, 135). A passagem de Camila no combate faz com que jovens e mulheres velhas corram para admirar sua elegância, seu manto púrpura que cobre seus ombros delicados, a fivela de ouro que prende seus cabelos, a aljava da Lícia que traz sempre ao lado (Camila é associada a Diana, deusa caçadora, venerada na Lícia) e a lança de mirto com ponta de ferro. A descrição de suas roupagens formam os versos que concluem o Livro VII. 918

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A infância de Camila é descrita em uma sequência conhecida por leitores e ouvintes de epopeias: violência, perseguição, exílio e nutrição por animais ou seres do universo fronteiriço (Mota 2020, 136). Sua vida é narrada pela deusa Diana à ninfa Ópis (Virgílio. Eneida, XI. 535–584). Segundo a deusa, Metabo, pai de Camila, foi rei de Priverno, cidade volsca da qual foi expulso por uma insurreição popular contra seus atos de tirania. Expulso após a morte de sua mulher, Casmila, ele foge através dos bosques levando a recém-nascida Camila. Os inimigos o perseguem até às margens do rio Amaseno, no Lácio, que impede sua passagem, pois o volume das águas havia aumentado pelas chuvas. Metabo consagra Camila à deusa Diana, quando, para protegê-la, a envolve nas cascas de um sobreiro e a atira para a outra margem presa a uma lança. Alcançado pelos perseguidores, ele mergulha e atravessa o rio a nado, encontrando a lança com a criança sã e salva. Ele passa a viver entre os pastores, ensina à filha as artes rurais e a alimenta com leite de uma égua selvagem. Quando mal se sustenta de pé e dá os primeiros passos com dificuldade, Camila começa a lançar seus dardos e já é capaz de abater o grou ou o cisne com sua funda. Esses detalhes evidenciam a introdução precoce de Camila nas artes da caça e, por consequência, militares. Já passível de contrair matrimônio, muitas mães desejam tê-la como nora, porém ela se contenta apenas com o culto à Diana e mantém sua virgindade sem manchas. O próprio nome de Camila dá indícios de sua estreita relação com a divindade. Camilla e Camillus (versão masculina) eram servos ou assistentes empregados em algumas cerimônias religiosas (Glare 1968, 262). Desse modo, esses meninos e meninas eram dedicados ao culto aos deuses, assim como Camila era ao culto de Diana. 919

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No Livro XI ocorre o embate entre as forças de Eneias e Turno; Camila se apresenta a Turno como sua aliada; percebemos sua desenvoltura em combate; e, por fim, temos seus últimos momentos de vida (Virgílio. Eneida, XI. 498–831). A guerreira apresenta-se cheia de autoconfiança e até se propõe a ir, apenas com suas tropas, confrontar Eneias. Em meio à guerra, Camila arremessa dardos uns atrás dos outros com uma mão, maneja um sólido machado com a outra, além de trazer o arco de ouro e as armas de Diana nos ombros. Sua paixão ardente pelos combates faz com que ela exulte em meio à matança. O cenário muda quando, ao longe, ela avista Cloreu, um guerreiro adornado de vestes esplendentes e armas magníficas. Sua juventude e feminilidade, até aí dominadas, saem de seu controle quando a virgem guerreira o vê e não o perde de vista, ficando cega para todo o resto e desejando apenas aqueles despojos (Torrão 1993, 114). Camila se enfurece com um amor feminino pelo saque e despojos: femineo praedae et spoliorum ardebat amore (Virgílio. Eneida, XI. 782). Percebemos a mistura do antigo código heróico (a tomada de despojos) com um desejo feminino inesperado por cetim e brocado (Rosenmeyer 1960, 161). Com olhos apenas para aqueles despojos, ela não vê outro guerreiro, Arrunte, que a persegue de longe sem cessar. A amazona não ouve sequer o ruído do dardo que ia em sua direção, ela apenas sente a dor que ele provoca ao atingir seu seio descoberto. Camila cai, tenta em vão remover o dardo, não resiste ao ferimento e morre. Apesar de ser representada com qualidades masculinas (segundo o ideário romano), Camila é traída pelo seu lado feminino, o desejo de possuir as belas vestes de Cloreu, que a leva à morte por falta de cautela (Vasconcellos 2001, 321). Desse modo, sua morte é atribuída ao desejo irresponsável por despojos de guerra, um desejo caracterizado como tipicamente feminino (Keith 2000, 28). 920

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Em produções posteriores, Camila aparece n’A Divina Comédia de Dante Alighieri (1265–1321), poeta e político de Florença, na Itália. No poema dantesco produzido no início do século XIV, a guerreira é mencionada no verso 104 do Canto II e no verso 124 do Canto IV, ambos do Inferno (primeira parte do poema). Nessa obra, Camila aparece no círculo dos virtuosos da Antiguidade. Desse modo, Dante não julga a amazona pelas mortes que causou em batalha, nem por sua excessiva autoconfiança ou por seu desejo desmedido pelos despojos de Cloreu. Apesar de Dante Alighieri colocar Camila no Inferno, ela está junto àqueles que não pecaram, porém viveram antes da vinda de Cristo ao mundo, portanto não foram batizados e não viveram segundo os ensinamentos cristãos. Camila é um paradoxo para o leitor. Sua velocidade é superior à dos ventos, parece flutuar sobre o chão e as águas. Entretanto, ao mesmo tempo em que sua elegância e beleza pasmam aqueles que a observam, suas mãos delicadas seguram armas e a amazona exulta em meio à matança da guerra. Ademais, sempre muito habilidosa na caça e na guerra, Camila morre por descuido após avistar e desejar as vestes e armas de outro guerreiro. Fontes históricas DANTE. 2016. A Divina Comédia. Tradução de Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34. VIRGÍLIO. 2016. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34. Bibliografia geral GLARE, P. G. W. 1968. Oxford Latin Dictionary. London: Oxford University Press/Clarendon Press. 921

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Lauinia › Lavínia

por Alexandre Agnolon

Lavínia [Lauinia] é uma personagem lendária relacionada aos mitos fundadores da civilização romana. Segundo o conjunto das fontes antigas disponíveis, em linhas gerais, Lavínia é filha única do rei Latino, epônimo dos latinos, e de sua esposa, Amata; foi dada pelo pai em casamento a Eneias, com quem teve posteriormente um filho, fato responsável para a consolidação da aliança entre os troianos que, prófugos, desembarcaram na Itália e os povos aborígenes, habitantes do Lácio naquele tempo, época pouco posterior ao saque e destruição de Troia e que precede, pois, em muitas gerações a fundação de Roma, em 753 aEC, conforme a datação convencional, por Rômulo. Lavínia, por vezes, também é figurada como uma das filhas de Ânio, sacerdote de Apolo em Delos (cf. Aurélio Vítor. Origem do povo romano, 9). Este mesmo Ânio também é representado, nas fontes, simultaneamente como antístite do deus e rei de Delos (cf. Ovídio. Metamorfoses, XIII. 632–3). Diversos são os autores, gregos e romanos, que fazem referência à princesa latina, compreendendo um longo arco temporal que vai desde o século III aEC até a época tardia do império do Ocidente, portanto o século IV da Era cristã. Destaque-se, entre as fontes que de Lavínia tratam, a própria Eneida de Virgílio (séc. I aEC), por certo a obra mais famosa que lhe faz menção, bem como a História de Roma, de Tito Lívio (séc. I aEC–I EC). Além disso, temos à disposição, ainda que fragmentária, a obra Origens, de Catão, o velho (séc. III– II aEC), referenciada amiúde por Sérvio Honorato (séc. IV EC), gramático comentador de Virgílio; As Antiguidades Romanas, de Dionísio de Halicarnasso (séc. I aEC), sobretudo o livro

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primeiro que se debruça sobre os eventos e personagens que antecedem à fundação da Urbe; o primeiro volume da História Romana de Apiano (séc. II EC) dedicado à realeza e, finalmente, as partes iniciais do opúsculo de Aurélio Vítor (séc. IV EC) intitulado Origem do povo romano. Lavínia é citada amiudadas vezes ao longo do canto VII da Eneida. Virgílio inicia o canto pela invocação à Érato (Eneida, VII. 37), como se sabe, musa da poesia erótica. A passagem é tanto imitação de passo análogo das Argonáuticas de Apolônio de Rodes (Argonáuticas, III. 1–3), como, obliquamente, guarda também similitude quanto à matéria, já que a temática amorosa assume papel importante, em ambas as epopeias, para o desenvolvimento da narrativa: em Apolônio, narra-se a paixão de Medeia por Jasão, inspirada por Eros, a mando de Afrodite, fato de fundamental centralidade para o sucesso do herói na conquista do velo de ouro; em Virgílio, os eventos que, prodigiosos, determinam o noivado de Eneias e Lavínia, causa última da guerra entre troianos e rútulos narrada na segunda metade da Eneida. Virgílio pede auxílio à deidade para expor a situação em que se encontrava o Lácio no momento em que Eneias e os troianos alcançaram finalmente, após tantos trabalhos, a foz do Tibre (Eneida, VII. 37–40). Conta o poeta mantuano que os campos e as cidades do Lácio eram governados pelo velho rei Latino, descendente de Saturno e filho de Fauno com a ninfa Marica — em outras fontes, o rei é filho de Héracles (cf. Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, I. 43). Em concórdia com os povos vizinhos, vivia o rei em Laurento, a capital do reino, com Amata, sua esposa (só mencionada nominalmente adiante no v. 343 do canto), e sua filha, Lavínia, já nubente. A princesa latina possuía muitos pretendentes provindos do Lácio e de 924

A presença das mulheres na Literatura e na História

toda a Ausônia, Amata, porém, fazia grande empenho para que Lavínia desposasse Turno, grande guerreiro e rei dos rútulos, povo também habitante das imediações. No entanto, grandes prodígios serviram de óbice aos desígnios da rainha. À época da chegada dos troianos, um grande enxame de abelhas deteve-se, com suas patas enlaçadas mutuamente, no cimo do grande loureiro que se encontrava no palácio e que fora, no tempo da fundação da cidade, dedicado outrora por Latino a Apolo — daí o nome Laurento, derivado de laurus, «loureiro» em latim. Um sacerdote, contemplando a cena, declara de pronto tratar-se de um augúrio: chegaria em pouco um estrangeiro, originário das mesmas terras daquelas abelhas, acompanhado de um grande exército e tornar-se-ia ele o senhor do alto da cidadela. Após isso, Lavínia juntamente com o pai queimava incensos nos altares no momento em que as chamas tomaram seus cabelos, consumindo-lhe os adornos e o véu que portava, as chamas tomaram o palácio. O fogo apagou-se, a princesa restava incólume, donde se interpretou que Lavínia teria enorme fama; o povo, no entanto, sofreria com guerras e pesar. Assustado, Latino resolve consultar seu pai, Fauno, que lhe revela o oráculo: Lavínia casar-se-á com um estrangeiro que elevará o nome latino até os astros; seus filhos e netos, no devido tempo, submeterão os povos do orbe sob seu império. (vv. 37–101). Em seguida, uma delegação troiana liderada por Ilioneu parte para fazer uma visita ao rei Latino em nome de Eneias. Os troianos são bem acolhidos pelo rei que, depois de receber presentes e propostas de alianças por parte dos troianos, todas aceitas, oferece Lavínia em casamento a Eneias, atento que estava o rei dos prodígios que antes presenciara, percebendo que o herói troiano era justamente o estrangeiro prometido (vv. 107–285). Juno, ao notar o que se sucedia, recorre a uma das fúrias, Alecto, para que esta, infundindo a discórdia entre 925

os povos latinos, provoque a guerra e protele os intentos troianos. Para tanto, Alecto busca Amata, enfurecendo-a: a rainha, primeiro, tenta dissuadir o marido do plano de casar a filha com o forasteiro, fracassa (vv. 286–372); depois, em furor, erra pelos bosques em companhia de outras matronas enfurecidas (vv. 373–405). Alecto, por sua vez, transmutada na velha Cálibe, visita Turno, destilando ódio e rancor, porque noivo preterido de Lavínia, recobra-lhe, pois, os brios, para que o rútulo pegue em armas contra os troianos. Logo em seguida, a divindade dirige-se às matas onde Ascânio caçava e, desviando uma flecha disparada pelo jovem, atinge mortalmente um cervo querido de Sílvia, filha de Tirro, guarda do rebanho de Latino. A morte do animal, que falece aos pés de sua dona, provoca, assim, a fúria dos pastores que, instados por Alecto, perseguem Ascânio, salvo por pouco pelos companheiros durante o combate que se segue (vv. 406–515). Turno, então, com o apoio da rainha Amata, passa a liderar os latinos à revelia do rei que, em sua impotência, se refugia no palácio, após se recusar a abrir as portas do templo de Jano —simbologia para a declaração de guerra—; todavia, são elas escancaradas de uma só vez por Juno (vv. 620–622). A guerra se alastra pelo Lácio, tendo como desfecho a vitória de Eneias, e a morte de Turno. Como havia revelado o oráculo, a fama ilustre de Lavínia só seria alcançada à custa de grande mortandade. A narrativa de Virgílio que envolve Lavínia destoa um pouco das fontes historiográficas supérstites. Ademais, elas também tratam muita vez de maneira diversa a própria guerra e as circunstâncias das bodas entre a princesa e Eneias. Ora, Tito Lívio, por exemplo, conta que, quando desembarcara na Itália, Eneias, pressionado pela pobreza, já que nada lhe restara a não ser as armas e as naus, dedicou-se à pilhagem, de modo que o rei Latino recorreu às armas para expulsar os

invasores. O historiador oferece, então, duas versões para a aliança entre troianos e latinos que culmina com o casamento de Eneias e Lavínia: uma assegura que o rei Latino teria se esforçado por fazer as pazes com o herói troiano porque se vira subjugado pelas forças inimigas; a outra versão, mais afim à virgiliana, revela que Latino, quando ambos os exércitos já se postavam para a batalha, decide estabelecer conversações com o invasor inquirindo-lhe o nome e a origem. Ciente agora de que se tratavam dos troianos liderados por Eneias, filho de Anquises e Vênus, admirado por tamanha fama e nobreza, resolve aliar-se a eles e, como prova de amizade, dá ao herói sua filha, Lavínia, em casamento. Diz ainda Tito Lívio —e não só, mas também Apiano (História Romana, I. 1) e Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, I. 59)— que, pouco depois, Eneias funda uma cidade a que chama Lavínio em honra de sua jovem esposa (Tito Lívio. História de Roma, I. 1). A guerra contra os rútulos, comandados por Turno, é posterior, portanto, ao casamento com Lavínia e à fundação de Lavínio, segundo o historiador, destoando, assim, da versão da Eneida. A guerra, a propósito, fora motivada, segundo Lívio, pelo ciúme de Turno que, antigo pretendente de Lavínia, via-se incapaz de ser preterido por um estrangeiro (cf. Tito Lívio. História de Roma, I. 2; Apiano, História Romana, I. 1). Os latinos —assim denominados por Eneias em honra a seu sogro— vencem o conflito, o herói troiano, porém, perece em batalha, sendo sepultado às margens do rio Númico (cf. Tito Lívio. História de Roma, I. 2). Em outra versão, Eneias enfrenta as forças combinadas de Turno e Latino, este último tombando em batalha (cf. Catão, o velho. Origens, fr. 6). Pouco tempo depois da morte de Eneias, Lavínia dá à luz um filho; porque infante ainda, ela assume a regência do reino com pulso firme, preservando, em virtude da tamanha índole de seu caráter, o Lácio dos inimigos e mantendo de

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pé o reino até que o príncipe pudesse governar. Chegada a maioridade, seu filho funda Alba Longa, sob os pés do monte Albano, legando à mãe o governo de Lavínio, cidade já bastante povoada e opulenta (cf. Tito Lívio. História de Roma, I. 3). As fontes disponíveis divergem quanto à identidade do filho de Lavínia: Tito Lívio chama-o Ascânio, mas evita dizer se se trata do filho de Lavínia ou de Creúsa, aquele que acompanhara ao pai na fuga de Troia, amiúde também chamado Iulo, donde a gens Iulia afirmava descender, apenas toma por certo que se tratava do filho de Eneias (cf. Tito Lívio, História de Roma, I. 3). Virgílio, por seu turno, denomina-o Sílvio, seu nome, segundo o poeta, advém do fato de ter sido educado nas matas (educet siluis regem regumque parentem — Eneida, VI. 765; grifo nosso). Há, porém, em Tito Lívio (História de Roma, I. 3), menção a um Sílvio, nascido nas matas, mas este é filho e herdeiro de Ascânio. No comentário ao passo de Virgílio, Sérvio Honorato, aduzindo Catão, o velho, informa que Sílvio é criado nas matas porque Lavínia, temendo Ascânio, foge grávida colocando-se sob a proteção do pastor Tirro, intendente de seu pai (cf. Virgílio. Eneida, VII. 485). Ascânio, morrendo sem filhos, deixa todo o reino para Sílvio, filho de Lavínia e Eneias. Essa versão é contada também por Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, I. 70), mas com variações: segundo o autor grego, o pastor que acolhe Lavínia chama-se Tirreno e é este quem cria o menino e lhe dá o nome de Sílvio. Lavínia é ainda citada por autores posteriores à Antiguidade. Dante, por exemplo, refere-a no verso 126 do canto IV do Inferno, em sua Divina Comédia, ao lado de seu pai Latino, arrolada entre personagens da história romana a habitar o limbo, como César, Eneias e a guerreira Camila. Boccaccio, por seu turno, dedica à Lavínia uma pequena biografia em seu Sobre as mulheres famosas (1361–1362), retomando na 928

A presença das mulheres na Literatura e na História

obra aspectos de sua representação, já canônicas na tradição lendária romana: Boccaccio, inclusive, narra o episódio da fuga de Lavínia, presente em Dionísio de Halicarnasso e nos comentários de Sérvio Honorato à Eneida. O autor do Decamerão faz referência ainda —dado curioso— a uma versão da lenda que, após a morte de Eneias, teria Lavínia contraído novas núpcias com um certo Melampo, homônimo do adivinho mencionado por Apolodoro (Biblioteca, I. 9. 11) que, por salvar umas serpentes, recebera a dádiva de compreender a língua dos animais, enquanto lhe teria Apolo concedido o dom da profecia. Fontes históricas APIANO. 1980. Historia Romana. Introducción, traducción y notas de Antonio Sancho Royo. Madrid: Editorial Gredos. APOLLODORUS. 1921. The Library. Translated by Sir J. G. Frazer. Cambridge: Harvard University Press. APOLLONIO RODIO. 1986. Le Argonautiche. Milano: Biblioteca Universale Pizzoli. BOCCACCIO, G. 1963. Concerning Famous Women. Translated, with an introduction and notes by Guido A. Guarino. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press. DANTE ALIGHIERI. 1998. A Divina Comédia: Inferno. Tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34. DIONYSIUS OF HALICARNASSUS. 1939. Roman Antiquities. Translated by E. Cary. Cambridge: Harvard University Press. LIVY. 1988. History of Rome. Books I and II. Translated by B. O. Foster. Cambridge: Harvard University Press. OVIDIUS. 1988. Metamorphoses. Leipzig: Teubner. 929

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Rhea Siluia › Reia Sílvia

por Caroline Morato Martins

Nas narrativas antigas que comunicaram as origens míticas de Roma, Reia Sílvia {R[h]ea Silvia} foi apresentada como mãe dos gêmeos fundadores da cidade, Rômulo e Remo (Tito Lívio. I, 3, 10 ss.). A única variação sobrevivente registrada de seu nome é o de Ilia, mencionada por por Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas. I, 76, 3), Dião Cássio (Fragmentos do Livro I. 5, 1) e Plutarco (Vida de Rômulo. 3) (Radke 1979). As representações de Reia Sílvia centram-se em seu lugar como mulher que originou os primeiros líderes do que viria a ser a cidade de Roma. Neste sentido, o episódio de onde oriunda a gravidez da personagem, violentada por uma divindade romana, é mencionado em outras fontes antigas, como Virgílio (Eneida. VII, 659), e Ovídio (Fastos. IV, 201). Este episódio, em especial, também foi representado na arte romana e difundiu-se amplamente na tradição moderna ocidental. As menções a Reia Sílvia nas obras antigas concentraram-se especificamente no papel de progenitura dos gêmeos prodigiosos do tempo de fundação de Roma. Como fonte de estudo da linhagem familiar da personagem e, portanto, também de seus filhos, Lívio relata que, após várias gerações de membros da família dos Sílvios, teria havido um homem chamado Proca. Este teve um filho mais velho, Numitor, que foi quem legou o antigo reino da dinastia dos Sílvios. Contudo, Numitor teve seu trono usurpado por seu irmão, Amúlio. Neste ponto da linhagem dinástica, a figura de Reia Sílvia é mencionada, já definida como mãe dos gêmeos Rômulo e Remo. Amúlio destronou o irmão e assassinou seus filhos

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homens e, sob pretexto de honraria, escolheu a filha do irmão, então sua sobrinha, Reia Sílvia, como vestal, impedindo-a de ser mãe pelo voto de virgindade e, portanto, negando-a a possibilidade de gerar sucessores legítimos, que representariam ameaça a Amúlio. De acordo com difundida vertente das narrativas sobre a fundação e origens de Roma à época de Lívio e Virgílio, ou seja, o período de transição da República e estabelecimento do Principado, Réia Sílvia foi restrita pelo tio à condição de vestal, tendo sido vítima de violação. Segundo Lívio, para enobrecer o evento do estupro, ela atribuiu ao deus Marte a paternidade dos gêmeos. A partir deste evento foi relatado o que foi, provavelmente, o mais famoso e mais representado episódio da história das origens de Roma: o rei Amúlio, tio da vestal grávida, puniu a sacerdotisa com prisão e mandou os filhos serem lançados no rio Tibre. Assim, nesta versão lendária, a figueira ruminal abrigou a loba e os bebês. A loba os amamentou e cuidou deles até que o pastor Fáustulo os encontrou. Ele os levou para o estábulo para sua mulher, Larência, criá-los. Em outra tradição, Larência teria sido uma prostituta «loba» (lupa), pois como transmitiu Lívio e é amplo consenso, há uma coincidência do uso deste termo em latim, sendo essa a origem da lenda da loba. Assim, há duas tradições, uma que associa o termo à mulher do pastor, vinculada a um comportamento moral negativo, e outra que associa ao animal, uma loba, de forma que há ao menos dois autores antigos, Valério Antias e Licinius Macer, que divergem narrativamente sobre o passado romano escrito no tempo de Lívio, então fins do século I aEC Catão teria sido o primeiro autor antigo a associar as duas versões. A imagem da loba amamentando os gêmeos é uma das mais conhecidas e difundidas representações no mundo moderno associadas à história de Roma. 932

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A personagem de Reia Sílvia não foi desenvolvida profundamente na obra dos autores antigos, pois seu papel fundamental é ser progenitora dos gêmeos e, cumprida esta contribuição primária, os autores não fornecem detalhes ou ponderações sobre a figura. Pode-se inferir sobre Reia Sílvia que ela foi representada como uma mãe comum sem exercer de fato alguma postura destacada neste lugar. A personagem não exibiu nenhuma atuação proeminente em função dos filhos que, por exemplo, garantiria o exercício de poder dos gêmeos. Neste sentido, a representação de Reia Sílvia como mãe destas figuras masculinas tão importantes da história de fundação de Roma contrasta com a representação de outras mães representadas nas narrativas sobre as origens de Roma, como é o caso de Lavínia, que teria sido liderança política, assegurando por trinta anos o poder, até que seu filho pudesse assumi-lo. Apesar da brevidade e carência de detalhes sobre Reia Sílvia, é notável na narrativa a preocupação do rei, tio da personagem, com a perspectiva de geração de filhos legítimos ao trono. Isto indica informações relevantes para o contexto histórico em que a personagem se insere. As ações de Amúlio contra Reia Sílvia e seus filhos esclarecerem o lugar da progenitura e da maternidade, especialmente neste espaço histórico e geográfico do período chamado inicial da história de Roma, assim como o aspecto da legitimidade de poder envolver descendência sanguínea. Portanto, o vínculo sanguíneo seria elemento importante da disputa política na narrativa contada sobre todo o período monárquico romano. Por esta razão, o rei assassinou os sobrinhos homens, irmãos de Reia Sílvia, e realizou medida preventiva contra a única mulher descendente, sua sobrinha, intervindo e exercendo controle na disputa dentro da linha de sucessão. 933

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O item da preocupação e tentativa de controle masculino sobre a geração de filhos por parte de mulheres que compõem dinastias não funciona de forma drasticamente diferente nos períodos posteriores à monarquia. É importante notar que as narrativas sobre o período da Roma inicial, que contaram as origens lendárias da cidade, foram majoritariamente escritas durante o período de transição da República para o Principado romano. Assim, torna-se relevante que no período de princípios do império romano, a possibilidade de uma mulher da casa governante gerar descendentes seguirá sendo algo relevante. Por outro lado, houve fatores que causaram alterações consideráveis, como a perda da centralidade de laços de sangue por meio da possibilidade de adoções (Saller 1984), e por novas dinâmicas implicadas nos casamentos e divórcios. Fontes históricas DIO CASSIUS. 1914. Roman History. Volume 1. Translated by Earnest Cary with Herbert B. Foster. Massachusetts: Harvard University Press (Loeb Classical Library 32). DIONYSIUS OF HALICARNASSUS. 1937. Roman Antiquities. Volume I: Books 1–2. Translated by Earnest Cary. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library, 319). LIVY. 1919. History of Rome. Volume I: Books 1–2. Translated by B. O. Foster. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library, 114). OVID. 1931. Fasti. Translated by James G. Frazer. Revised by G. P. Goold.  Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library, 253). 934

A presença das mulheres na Literatura e na História

PLUTARCH. 1914. Lives. Volume I: Theseus and Romulus. Lycurgus and Numa. Solon and Publicola.  Translated by Bernadotte Perrin.  Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library, 46). VIRGIL. 1916. Eclogues. Georgics. Aeneid: Books 1–6. Translated by H. Rushton Fairclough. Revised by G. P. Goold.  Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library, 63). Bibliografia geral BEARD, M., NORTH, J., PRICE, S. 1998. Religions of Rome. Vol. 1. Cambridge University Press. CORNELL, T. 1995. The Beginnings of Rome: Italy and Rome from the Bronze Age to the Punic Wars (c. 1000–264 BC). Routledge. MILES, G. B. 1995. Livy: reconstructing early Rome. Ithaca and London: Cornell University Press, p. 137–178. MOMIGLIANO, A. 2007. An interim report on the origins of Rome. Published By: Society for the Promotion of Roman Studies, The Journal of Roman Studies, vol. 53, Parts 1 and 2 (1963), p. 95–121. RADKE, G. 1979. Rea. In:Der Kleine Pauly. Lexikon der Antike. Band 4. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, cols. p. 1344–1345. SALLER, R. 1984. Familia, domus and the Roman conception of the family, Phoenix, 38, p. 336–355.

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Acca Lārentia › Aca Larência

por Sérgio Murilo de Andrade Barbosa

Aca Larência [Acca Larentia, no latim], para os romanos, denotava duas figuras diferentes que acabaram se confundindo ao longo da história: a mãe adotiva dos gêmeos Rômulo e Remo (também associada à loba que os amamentou) e a prostituta que legou aos romanos suas riquezas. As fontes fornecem poucos detalhes sobre sua vida, não encontramos a descrição de sua aparência, origem, infância etc. Sua aparição se dá já adulta como ama de Rômulo e Remo, e esposa de Fáustulo, ou como a meretriz que doou sua herança aos romanos. Aca é mencionada por autores de um longo período, desde o século III aEC até por volta do século V EC. As obras produzidas durante esse extenso recorte temporal tratam de filosofia, política, oratória, história, poesia etc. Em meio às transformações e instabilidades que marcaram a República e o Império Romano, muitos autores retornaram às origens do povo, buscando afirmar a superioridade, a identidade, os direitos e as posses de Roma. Aca Larência está entre os elementos que constituem as produções a respeito dos primórdios de Roma. Aca Larência apresenta duas versões principais. Para compreender a primeira, é necessário analisar uma parte do mito de Rômulo e Remo. Filhos de Marte e Reia Sílvia, foram jogados ainda bebês nas águas do Tibre a mando de seu tio, o rei Amulius. Uma loba, que tinha acabado de parir, os encontrou e os alimentou com seu próprio leite. Um pastor, Fáustulo, se deparou com eles e os levou para casa a fim de que sua esposa, Aca Larência, os criasse (Daly 2009, 128). Segundo Masúrio Sabino (15 aEC–?), jurista romano,

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afirmava-se que Aca era a criadora de Rômulo, a qual teve doze filhos e perdeu um para a morte (Sabino. Memorias apud Gélio. Noites Áticas, VII. 7). Sabino e Plínio, o Velho (23–79), dizem que Rômulo tomou o lugar do falecido filho e chamou a si mesmo e aos seus irmãos de Irmãos Arvais (em latim: Fratres Arvales, «irmãos dos campos») (Sabino. Memorias apud Gélio. Noites Áticas, VII. 7; Plínio. História Natural, XVIII. 2). De acordo com a segunda versão, no reinado de Anco Márcio (ou Rômulo), o guardião do Templo de Hércules, em Roma, convidou Hércules para participar de um jogo de dados. Se vencesse, receberia um presente valioso do deus, se perdesse, serviria um banquete e ofereceria uma prostituta a ele. Hércules venceu e o guardião lhe serviu um banquete e lhe garantiu os favores da mais bela moça que então se falava em Roma: Aca Larência. Hércules a aconselha a se colocar a serviço do primeiro homem que conheceu. Esse foi um etrusco, o rico Tarúcio. Eles se casam, mas ele morre e deixa sua fortuna (vastas propriedades nos arredores de Roma) para Aca. Já velha, Aca desapareceu sem deixar vestígios no Velabro, mesmo local de sepultamento de Larência, esposa de Fáustulo. Ao morrer, ela legou sua herança aos romanos (versão, provavelmente, utilizada para conferir títulos legais à posse de territórios reivindicados por Roma) (Grimal 2005, 2). Catão, o Velho (234 aEC–149 aEC), político de Roma, e Aulo Gélio (125–165), jurista e gramático latino, atribuem a riqueza de Larência à prostituição. Ela teria deixado suas posses para os romanos (ou Rômulo), por isso recebia homenagens e sacrifícios públicos. Catão especifica que as propriedades eram os campos de Túrax, Semurio, Lintirio e Solinio (Catão. Origens apud Macrobio. Saturnais, I, 10. 16; Gélio. Noites Áticas, VII. 7). Gayo Licinio Macro, político e analista romano, afirma que Aca era a esposa de Fáustulo, e Larência era a ama de Rômulo e Remo, a qual se casou com Tarúcio, 938

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recebeu sua herança e, ao morrer, deixou para Rômulo, pois ela o criou, e ele instituiu um sacrifício sagrado e um dia de festa a ela (Macro. Anales apud Macrobio. Saturnais, I, 10. 17). Pela semelhança em alguns aspectos, as duas Acas foram confundidas com o tempo. As fontes não são unânimes ao afirmar que a Larentália, culto funerário celebrado em 23 de dezembro, era dedicada à primeira ou à segunda das Acas, e muitas deixam em aberto (Hraste; Vukovic 2015, 14). No poema Fastos, do poeta romano Públio Ovídio Naso (43 aEC–17 EC), Larência foi a esposa de Fáustulo, ama do povo romano e é associada à Larentália (Ovídio. Fastos, III. 52–58). A respeito do local dos sacrifícios a Larência, Marco Túlio Cícero (106 aEC–43 aEC) afirma que ocorriam num altar localizado no Velabro (Cícero. Cartas a Bruto, XXIV. 8). Mas é Marco Terêncio Varrão (116 aEC–27 aEC), um filósofo romano, que nos fornece informações mais precisas (Mayorgas 2018, 26). Varrão afirma que a Larentália ocorria no sexto dia após a Saturnália e os sacrifícios ocorriam no Velabro, onde terminava na Via Nova, no túmulo de Aca (Varrão. Sobre a Língua Latina, VI. 23–24). Todavia, na obra de Ambrósio Teodósio Macróbio (370–430), filósofo e filólogo romano, a Larentália ocorria no décimo dia antes das Calendas, ou seja, 21 de dezembro (no calendário de Numa), para Aca, a prostituta que se casou com Tarúcio, por conselho de Hércules, e foi enterrada no Velabro após doar aos romanos sua herança (Macróbio. Saturnais, I, 10. 11–15). Lúcio Méstrio Plutarco (46–120), historiador, biógrafo e filósofo grego, separou as duas figuras. Aca recebia honras em abril e foi mãe adotiva de Rômulo. Enquanto isso, a prostituta de Hércules, Larência, cujo sobrenome era Fábula, se tornou conhecida pela já citada história do guardião do templo de Hércules e o casamento com Tarúcio, que lhe doou a herança que depois foi deixada para os romanos (Plutarco. Questões 939

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Romanas, 35). Prestava-se, também, homenagem a ela, que desapareceu no mesmo local onde a Larência antiga havia sido enterrada: no Velabro (Plutarco. Rômulo, V. 1–5). Plutarco registra uma outra ambiguidade sobre Aca: a confusão causada pelo nome lupa (loba). Plutarco explica que os latinos chamavam de lobas as mulheres de «caráter frouxo», tal como era a esposa de Fáustulo, de lupae (lobas), ou seja, o nome fez com que a história fosse para o reino do fabuloso (Plutarco. Rômulo, IV. 3). Dionísio de Halicarnasso (53 aEC – ?), historiador e crítico literário grego, e Tito Lívio (59 aEC –17 EC), historiador romano, corroboram essa ideia. Além disso, para Dionísio, dizia-se que os bebês foram entregues a Fáustulo, que os levou para sua esposa Larência, chamada de lupa por já ter se prostituído (Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, I, 84. 1–4). Isso teria dado origem à história maravilhosa da suposta loba (Tito Lívio. História de Roma, I, IV. 6–9). Aca foi recebida por autores cristãos que basicamente não oferecem novas informações e utilizam a prostituição para atacar a religião pagã (Mayorgas 2018, 25). Lucio Célio Firmiano Lactâncio (250–325), um dos primeiros autores cristãos, retoma as informações já conhecidas: a Larentália ocorria em homenagem à ama de Rômulo e Remo, esposa de Fáustulo, chamada de lupa e representada como fera por ter sido uma prostituta. Em Lactâncio, a meretriz amante de Hércules é Faula, enquanto Flora é a meretriz que adquiriu grande fortuna e deixou para o povo (homenageada na Florália) (Lactâncio. Instituições Divinas, 20). Aca Larência aparece ao lado de Flora na obra de Marco Minúcio Félix (?–250), um apologista latino do cristianismo, como meretriz vergonhosa que deveria ser contada entre as doenças e as divindades dos romanos (Félix. Otávio, 25. 6–7). 940

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Para Tertuliano (155–220), autor romano das fases iniciais do cristianismo, Larentia era uma prostituta, seja como ama de Rômulo (chamada de loba, por ser prostituta), seja como amante deificada de Hércules. Ela se enriqueceu após casar-se com um homem rico, por conselho de Hércules, e legou aos romanos suas propriedades (Tertuliano. Para as Nações, II, 10). Tertuliano descreve Larência como uma prostituta pública (Tertuliano. Apologia, XIII. 9), para a qual, ao lado de Stercolo (divindade agrícola) e Mutuno (divindade de fertilização), os romanos deveriam atribuir suas vitórias, pois eram deuses originários de Roma (ele pontua ironicamente) (Tertuliano. Apologia, XXV. 3). Tertuliano afirma que os romanos nunca prestaram tanta homenagem a outros deuses quanto à prostituta Larência (Tertuliano. Apologia, XXV. 9). Agostinho de Hipona (354–430), teólogo e filósofo dos primeiros séculos do cristianismo, ao falar sobre a loba e Rômulo, menciona a discussão sobre ela ter sido um animal ou uma meretriz (Agostinho. A Cidade de Deus, XXII, VI). Larência seria a meretriz oferecida a Hércules após sua disputa com o guardião de seu templo. Após se casar com Tarúcio por conselho de Hércules, ela deixa o povo romano como herdeiro universal da fortuna herdada de Tarúcio, para ser grata ao favor divino (Agostinho. A Cidade de Deus, VI, VII). Agostinho menciona a dualidade do nome lupae e afirma haver aqueles que diziam que os bebês foram recolhidos por uma meretriz, a qual foi a primeira a amamentá-los. Depois eles foram pegos por Fáustulo e foram alimentados por Aca, sua mulher (Agostinho. A Cidade de Deus, XVIII. XXI). Portanto, a partir das passagens analisadas, pode-se deduzir que a história de Aca Larência apresenta algumas versões, porém alguns elementos são recorrentes, por exemplo, a prostituição, o envolvimento com Hércules, a doação dos bens aos romanos (diretamente ao Estado ou por meio de 941

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Rômulo). De modo geral, Aca Larência não era tratada como uma deusa, pelo contrário, era seu caráter humano, como mãe, esposa e prostituta, que era ressaltado. Desse modo, na Larentália ocorriam os cultos a uma mulher que foi importante na história romana, seja por ter feito um ato de benfeitoria ao povo doando sua herança, seja por ter cuidado de Rômulo, personagem fundamental na origem mítica de Roma. As fontes demonstram que Larência se complexificou e se ramificou, mostrando-se presente na memória dos romanos através da topografia, rituais e produções textuais diversas. Fontes históricas AGOSTINHO. 2000. A Cidade de Deus. Vol. III. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. AGOSTINHO. 1996. A Cidade de Deus. Vol. I. 2ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. CICERO. 1960. Epistulae Ad Brutum. In: The Letters To His Friends. Vol. III. London/Cambridge: William Heinemann/ Harvard University Press. GELLIUS, A. 1927. The Attic Nights. Vol. II. London/New York: William Heinemann/G. P. Putnam’s Sons. HALICARNASSUS, D. 1960. The Roman Antiquities. Vol. 1. Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann. LACTANTIUS. 2007. “The Divine Institutes”. Em The Writings of the Fathers Down to A.D. 325: Ante-Nicene Fathers. Vol. 7. Massachusetts: Hendrickson Publishers. LIVY. 1967. The History of Rome. Vol. 1. Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann. MACROBIO. 2010. Saturnales. Madrid: Editorial Gredos. MINUCIUS FELIX. 1919. The Octavius. London/ New York: Society for Promoting Christian Knowledge/Macmillan. 942

A presença das mulheres na Literatura e na História

PLINY. 1961. Natural History. Vol. 5. Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann. PLUTARCH. 1914. Romulus. Vol. 1. London/New York: William Heinemann/The Macmillan. PLUTARCH. 1962. The Roman Questions. In: PLUTARCH. Moralia. Vol. IV. Cambridge/London: Harvard University Press/William Heinemann. OVIDIO. 2001. Fastos. Madrid: Editorial Gredos. TERTULLIAN. 2007. Ad Nationes. In: The Writings of the Fathers Down to A.D. 325: Ante-Nicene Fathers. Vol. 3. Massachusetts: Hendrickson Publishers. TERTULLIAN. 2007. The Apology. In: The Writings of the Fathers Down to A.D. 325: Ante-Nicene Fathers. Vol. 3. Massachusetts: Hendrickson Publishers. VARRO. 1938. On the Latin Language. Cambridge/London: William Heinemann/Harvard University Press. Bibliografia geral DALY, K. N. 2009. Greek and Roman Mythology A to Z. 3º ed. New York: Clelsea House. GRIMAL, P. 2005. Dicionário da Mitologia: Grega e Romana. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. HRASTE, D. N.; VUKOVIĆ, K. 2015. Virgins and Prostitutes in Roman Mythology, Latomus, 74, n. 2, p. 313–38. MAYORGAS, A. 2018. Acca Larencia o el poder de la memoria femenina en Roma. In: BRAVO, G.; YÉBENES, S. P.; PALACIOS, F. F. Mujer y Poder en la Antigua Roma. Madrid/Salamanca: Signifer Libros. 943

Sabīnae › Sabinas

por Alexandre Agnolon

As sabinas são fundamentalmente conhecidas, na história lendária romana, pelo episódio do «rapto das sabinas», ocorrido nos primeiros tempos de Roma (753 aEC) — Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 31. 1) considera que o fato ocorrera no quarto ano depois da fundação da Urbe, ao passo que Plutarco (Vida de Rômulo, 20), único a fazêlo, situa-o no quarto mês logo após sua fundação. Segundo o conjunto das fontes, elas foram raptadas pelos romanos a mando de Rômulo, durante o festival por este promovido em honra de Netuno equestre, sob o pretexto de prover esposas para os cidadãos, visando a continuidade da raça e a perpetuação, pois, da própria Cidade. Uma vez que o rapto configurara clara violação dos direitos de hospitalidade, seguiram-se ao episódio conflitos sangrentos, principalmente contra os sabinos —povo antigo coabitante do Lácio— que se viram destituídos de suas donzelas. A guerra só chegou ao fim com a intervenção direta das raptadas: agora na condição de esposas e mães, adentraram o campo de batalha, apelando aos maridos e pais que combatiam entre si. A atitude extremada alcançou o resultado desejado, já que, comovidos pela iniciativa das mulheres, genros e sogros reconciliaram-se. A paz promovida por elas foi responsável pela união entre os povos romano e sabino. Variadas são as fontes antigas, inclusive materiais, latinas e gregas, que fazem referência ao episódio. Distinguem-se a História de Roma de Tito Lívio, a Vida de Rômulo de Plutarco, o Sobre a República de Cícero, Os Fastos e a Arte de Amar de Ovídio, as Antiguidades Romanas de Dionísio de Halicarnasso,

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bem como a História Romana de Apiano; sem falar nas reiteradas alusões ao «rapto das sabinas» na tradição literária romana, como ocorrem na Eneida de Virgílio e nas Sátiras de Juvenal, por exemplo. Elas são inclusive representadas em moedas do tempo da República, particularmente as emitidas à época da Guerra Social (91–88 aEC). Ênio, ademais, teria escrito uma praetexta —tragédia de assunto romano— chamada Sabinae, o episódio também é aludido pelo vate nos Anais (fr. 47–50 e possivelmente também o fr. 274; ver Natividade 2009, 8). A Roma dos primeiros tempos, conta-se, cresceu muito rapidamente, fazendo frente desde cedo a outras cidades mais ou menos próximas. Com o intento de aumentar sua população, Rômulo cercou-se de pessoas numerosas de obscura origem, provenientes de vários lugares, formando «toda uma turba indiscriminada de homens livres e escravos» (Tito Lívio. História de Roma, I. 8; cf. também Plutarco. Vida de Rômulo, 20). Grimal (2018, 19) justamente observa que, a fim de povoá-la, Rômulo «atraiu para a Cidade os jovens pastores da vizinhança e, mais tarde, todos os vagabundos, todos os proscritos, todos os sem-pátria do Lácio». Mathisen (2019, 60) vai mais longe incorporando ao contingente dos primeiros romanos não somente populações itálicas variadas e de baixa extração, mas também bandoleiros de toda espécie. Ora, essa origem obscura, como já se disse aqui, e pouco heroica não se coaduna por óbvio com o caráter aristocrático e austero com que a tradição textual romana pintara seus representantes célebres; isso não significa, todavia, que não fossem os romanos amiúde conscientes dessa origem, por assim dizer, espúria e com frequência ironizassem isso (ver Cícero. Cartas a Ático, II. 1; Juvenal. Sátira, 8). Justamente em razão da constituição heteróclita da população de Roma nos primeiros tempos de sua história —população essa, aliás, carente de mulheres, o que comprometia a 946

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perpetuação da própria Cidade— , os povos vizinhos recusavam, de maneira peremptória, a possibilidade de casamentos e alianças com o povo romano, que era tratado com inimizade (Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, II. 30. 2) e grande desprezo (Plutarco. Vida de Rômulo, 20). Acresce ainda o medo que nutriam, haja vista que Roma muito rapidamente crescia e se elevava já ao estatuto de um poder não desprezível na região (Tito Lívio. História de Roma, I. 9). Não importava quantas embaixadas o rei romano enviasse ou benesses oferecesse às cidades das cercanias, não havia boa acolhida, chegando ao ponto de amiúde questionarem de modo zombeteiro os legados romanos, perguntando-lhes, já que Roma acolhia gente de toda sorte, se por acaso não se poderia fazer o mesmo com as mulheres (Tito Lívio. História de Roma, I. 9). Ato contínuo, Rômulo, ressentido diante de tal afronta, arquiteta um plano: organiza jogos em honra de Netuno equestre durante as Consualia, festival dedicado a Conso, divindade agrária, também ligada à morte, cujas festividades ocorriam após o plantio e, depois, na colheita; seu altar mantinha-se ao longo do ano coberto de terra e só era desenterrado por ocasião dos festejos. A respeito do altar subterrâneo, Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 31. 3) refere outra tradição: a de que fora construído posteriormente e era na verdade dedicado a uma deidade, inominável, sentinela dos desígnios ocultos, o que, numa visão prospectiva, pode remeter aos feitos dolosos liderados por Rômulo. Para esse espetáculo, acorreram a Roma massa enorme de pessoas provenientes das cidades vizinhas, como ceninenses, crustuminos e antenates, mas sobretudo os sabinos, em companhia de muitas donzelas. Em meio aos jogos e festividades, segundo Tito Lívio (História de Roma, I. 9; cf. também Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, II. 30. 5), as virgens sabinas são, ao primeiro sinal de Rômulo, tomadas à força pelos romanos — em Plutarco 947

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(Vida de Rômulo, 20), o primeiro rei romano, de pé, teria lhes sinalizado dobrando e desdobrando a aba da túnica que portava. Segue-se um grande alvoroço, quando os pais das sabinas raptadas correm em desespero a acusar os romanos de violar os direitos de hospitalidade. Porque narrativa etiológica do próprio casamento romano, diz-se ainda que, durante o rapto, uma das sabinas, a mais bela aliás, é levada para um certo Talássio: uma vez que perguntassem, com o fim de evitar qualquer violência contra a jovem, a quem seria ela entregue, diziam aos clamores «a Talássio», o que dá origem ao grito que se costumava entoar nos casamentos romanos (cf. Tito Lívio. História de Roma, I. 9; Plutarco. Vida de Rômulo, 21). Após o pandemônio provocado pelo rapto, Rômulo em pessoa dirigiu-se a cada uma das sabinas com o intento de lhes acalmar os ânimos, atribuindo a causa de tudo ao ultraje e à obstinação dos pais das donzelas; dizendo ainda que não haveria opróbrio algum, já que se casariam com os romanos, com quem teriam filhos legítimos. O número de mulheres raptadas varia bastante: Plutarco (Vida de Rômulo, 20) informa-nos números muito diversos, mas não endossa nenhum deles com segurança. Menciona que alguns diziam ser trinta as mulheres raptadas —essa quantidade advém do fato de que seus nomes foram dados às trinta linhagens do povo romano— ; outros ainda, como Valério Âncio, escreve o biógrafo grego, diziam ser 527; ao passo que Juba, 683, número este que coincide com o de Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 30. 6). As fontes antigas, em linhas gerais, atribuem o rapto não somente a uma forma de vingança de Rômulo às recusas reiteradas dos povos vizinhos, mas sobretudo à necessidade premente de constituir alianças e perpetuar a raça romana — não à toa, Ovídio, por exemplo, n’Os Fastos (II. 431), alude às sabinas nas partes dedicadas à Lupercalia, festividade de caráter agrário e propiciatório. A ideia, pois, de que a necessidade 948

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motivara as ações do primeiro rei romano parece ser preponderante na maioria das fontes. Assim é em Tito Lívio (História de Roma, I. 9), em Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 30. 2), bem como em Cícero (Sobre a República, 17. 8) e Apiano (História Romana, I. 5). Por outro lado, o mesmo Ovídio (Arte de Amar, I. 101–134) atribui o rapto das sabinas ao desejo e à libidinagem de Rômulo e de seus homens solitários: fundamental notar que, neste caso, as causas do rapto põem-se em harmonia —causa do decoro portanto— com o ambiente licencioso da própria elegia erótica, mais ainda em sua possibilidade erotodidática. O rapto das sabinas gerou efeito imediato: diversas cidades vizinhas entraram em guerra contra Roma. Os ceninenses, primeiro, atacaram os territórios romanos; Rômulo, como resposta, atacou-os e, ao matar rei ceninense, Ácron, segundo Plutarco (Vida de Rômulo, 24), põe em debandada o exército, tomando-lhes em seguida a própria cidade. No local onde seria erguido o templo de Júpiter Ferétrio— «aquele que leva os despojos»— Rômulo depositou as armas do rei vencido (Tito Lívio. História de Roma, I. 10), seria esse, por iniciativa de Rômulo, o primeiro triunfo instituído (Dionísio de Halicarnasso. Antiguidades Romanas, 2. 34. 3). Destino semelhante tiveram os antenates e crustuminos, pois que, derrotados, tiveram suas respectivas cidades ocupadas pelos romanos vencedores. Os sabinos, por seu turno, liderados por Tito Tácio, astutos que eram e desejosos de vingança, tomaram de assalto a cidadela do monte Capitolino com o auxílio da vestal Tarpeia que facilitara a entrada dos inimigos por causa da promessa de ouro. No entanto, logo após, ela foi morta sob o peso das armas dos sabinos — por esse motivo, por muito tempo se chamou o Capitolino de monte Tarpeio, 949

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e seus penedos, de onde eram lançados depois os malfeitores, de «Pedra Tarpeia» (Varrão. Sobre a Língua Latina, 5. 41–43; Plutarco. Vida de Rômulo, 26). A luta entre romanos e sabinos foi tenaz, sobretudo porque os últimos ocupavam posição estratégica em relação ao inimigo, em baluarte acima da planície entre o Palatino e o Capitolino. Por causa disso, os romanos foram desbaratados, mas temporariamente, já que Rômulo, após dirigir preces a Júpiter e prometer-lhe um templo —a Júpiter «Stator», ou seja: «que faz parar»— , reúne os mais fortes romanos que passam agora, sob o comando de seu rei, a perseguir o inimigo, que foge. No meio da peleja, porém, percebendo a gravidade da situação, as sabinas intervêm, suplicando aos maridos e aos pais que cessassem o conflito. Segundo Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas, II. 45. 6), fora Hersília, a líder das sabinas, a responsável pelos rogos; seu papel, pois, é importante, muito embora, nas fontes, ocupe posições diversas: ora é ela, por sua linhagem, a sabina que, após o rapto, Rômulo toma como esposa, ora fora ela a esposa de Hostílio (Plutarco. Vida de Rômulo, 20). Fato é que, após os apelos das sabinas, os homens, comovidos, renunciam à luta e fazem as pazes. Rômulo e Tito Tácio passam a reinar juntos, transferindo para Roma a sede da realeza e unindo, assim, os dois povos. O rapto das sabinas é muitíssimo importante para se compreender a própria forma mentis romana, justamente porque o episódio funda, nas relações matrimoniais muita vez pautadas na violência e na submissão, a própria domus romana, célula mater do Estado. Não é, portanto, coincidência que a história do rapto das sabinas seja, por exemplo, aludida, tão simbolicamente por Virgílio, na écfrase do escudo de Eneias (Eneida, VIII. 635–41) que condensa nas armas do herói troiano os eventos vindouros dos triunfos romanos: nesse sentido, a violência é fato inexorável e constitutivo da 950

A presença das mulheres na Literatura e na História

formação de Roma. Com efeito, o rapto é indicativo não só do papel reservado às mulheres na sociedade romana que, muito embora juridicamente inferior, «não deixa de ser depositária e garante do contrato em que assenta a cidade» (Grimal 2018, 18); outrossim, convertido em topos, o rapto (ou melhor: o estupro), como etapa que antecede à união propriamente dita, recebe tratamento cômico em Plauto e Terêncio. Como o lugar-comum é figurável, é amiúde representado pelas artes, de Giambologna a Picasso. Na mentalidade, por assim dizer, mítico-histórica romana, enfim, a violência contra mulheres se é indicativa de misoginia não deixa de marcar também, como observa Mary Beard (2017, 119), «simbolicamente o início e o fim do período dos reis» — ora, mister recordá-lo: o rapto das sabinas inaugura o efetivo início da monarquia com Rômulo, e a queda da realeza tem como estopim justamente o estupro de Lucrécia. Fontes históricas APIANO. 1980. Historia Romana. Introducción, traducción y notas de Antonio Sancho Royo. Madrid: Editorial Gredos.  CICERO. 1928. On the Republic. Cambridge, MA: Harvard University Press. CICERO. 1999. Letters to Atticus. Cambridge, MA: Harvard University Press.  DIONYSIUS OF HALICARNASSUS. 1939. Roman Antiquities. With an English translation by E. Cary. Cambridge: Harvard University Press.  JUVÉNAL. 1950. Satires. Paris: Les Belles Lettres.  LIVY. 1988. History of Rome. Books I and II. With an English translation by B. O. Foster. Cambridge: Harvard University Press. OVIDE. 1992. Les Fastes. Paris: Les Belles Lettres.  951

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

OVIDE. 1989. Amores; Medicamina Faciei Feminae; Ars Amatoria; Remedia Amoris. Oxoniensis: Oxonii e Typographeo Clarendoniano.  PLUTARCH. 2001. Paralles Lives. Cambridge: Harvard University Press.  VARRO. 1977. On the Latin Language. Cambridge, MA: Harvard University Press.  VIRGÍLIO. 2014. Eneida. Tradução de Carlos Alberto Nunes; Organização, apresentação e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34.  Bibliografia geral BEARD, M. 2017. SPQR: Uma história da Roma antiga. Tradução de Luis Reyes Gil. São Paulo: Planeta.  GRIMAL. P. 2018. A civilização romana. Lisboa: Edições 70.  MATHISEN, R. W. 2019. Ancient Roman Civilization: History and Sources. Oxford: Oxford University Press.  NATIVIDADE, E. S. 2009. Os Anais de Quinto Ênio: estudo, tradução e notas. Dissertação de Mestrado em Letras defendida na Universidade de São Paulo — USP.

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*Thanchuil › Tanaquil

por Caroline Morato Martins

Nas narrativas antigas que transmitiram as origens mitológicas de Roma, Tanaquil foi a primeira personagem definida como rainha e a penúltima a ocupar este lugar em Roma (Tito Lívio. I, 34). Ela foi apresentada como esposa de Lucumã, que teria mudado seu nome para Lúcio Tarquínio Prisco quando o casal emigrou da cidade de Tarquínia para Roma (Tito Lívio. I, 34–35). Na cidade, seu marido se tornou o quinto e primeiro rei etrusco de Roma. Os autores Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades Romanas. III, 47, 4; IV, 2, 2; 10, 6) designam a personagem como apenas Tanaquil (em grego, Θanaχvil, Τανακυ[λ]λίς; em etrusco, Thanchvil, Thanchufil, Thanchfil), enquanto outro autor, Rufo Festo ou Sexto, historiador romano cuja obra sobreviveu através de um epítome, indicou ter a rainha alterado seu nome, resultando na variação Gaia Cecília (Gaia Caecilia) (cf. também Plínio, o Velho. História Natural, VIII, 194). Há menções a figuras femininas do período monárquico romano em diferentes narrativas antigas, mas aquela composta por Lívio apresenta as mais consistentes representações. Nesta fonte, Tanaquil, conjuntamente a Túlia, que foi sua neta e última rainha de Roma, foi representada como a mais proeminente mulher na transição da Monarquia para a República. Em Lívio, Tanaquil foi precedida e próxima, em seus traços morais e pelos temas que guiaram os episódios de que faz parte, de outras figuras femininas, como Hersília, Tarpéia e Horácia. Estas são personagens do mesmo tempo histórico e geográfico de Tanaquil. Se notada a posição de Tanaquil dentro de um coletivo de personagens femininas do tempo da Roma inicial,

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entende-se que sua representação integrou narrativas romanas em que se observa a construção de exemplos morais. Neste sentido, o exemplum de Tanaquil compôs o repertório ético-moral criado por Lívio, que versava mais sobre a regulação do comportamento feminino como debatida à época do historiador latino, ou seja, ao tempo da República tardia e início do Principado Romano, do que propriamente ao passado de fundação da cidade. A intervenção de Tanaquil em questões públicas cruciais aparece na narrativa como uma reminiscência do comportamento de Hersília e Tarpéia, personagens antecessoras no relato, devido ao tema da lealdade ter sido central nos episódios de todas essas figuras. Além dessas, a mulher que imediatamente antecede Tanaquil em Lívio, Horácia, se vincula a ela mostrando a conexão entre todas estas personagens pelo tema da deslealdade familiar e a Roma. Tanaquil, portanto, se conecta como sucessora destas mulheres anteriores na narrativa, sendo não só semelhante a Tarpéia e Hersília, mas estabelecendo contraste com as mulheres sabinas e Clélia. O tema da lealdade ou intervenção, positiva ou negativa, foi central nos episódios de todas essas personagens. O item do não pertencimento a Roma foi outro elemento importante presente no exemplum de Tanaquil, assim como no seguinte, de Túlia, uma vez que elas integram uma linhagem dinástica de reis não romanos. A introdução de Tanaquil ocorreu com a figura de Lucumã (Lucumo), homem rico que não poderia ter cargo político em Tarquínia, na Etrúria, por ser estrangeiro. Com o casamento com Tanaquil, a ambição do homem teria sido intensificada (Tito Lívio. I, 34). Ela foi descrita com origem nobre e como quem não tolerava a humilhação que o marido representava por ser desprezado como estrangeiro em Tarquínia (Tito Lívio. I, 34). O traço moral primário de Tanaquil está na sua ambição vista em seu desejo de migrar para Roma. Ela conseguiu, destaca-se que facilmente, convencer seu marido a abandonar a pátria 954

A presença das mulheres na Literatura e na História

onde viviam (Tito Lívio. I, 34). Esta descrição específica sobre a maneira com que ela persuadiu o marido faz evocar a atitude de influência de personagem anterior da história de fundação, Hersília, que havia influenciado Rômulo, que igualmente acatara facilmente um conselho da recém esposa sobre o conflito entre sabinos e romanos. Hersília, assim como Tanaquil, era uma esposa estrangeira (Tito Lívio. I, 11). Como esposa que estimulou a ambição do marido, Tanaquil foi representada como agente da ascensão de seu marido como rei. Contudo, a interferência principal dela se mostra a partir da morte do rei. Lívio relata que, por volta do trigésimo ano de reinado de Tarquínio, já havia enorme preferência por um sucessor chamado Sérvio Túlio (Tito Lívio. I, 39–41) (Dião Cássio, Fragmentos do Livro IX). Após Tarquínio ser morto pelos inimigos descendentes do antigo trono, Tanaquil atuou de forma fundamental para a ascensão deste sucessor escolhido, também como genro (Tito Lívio. I, 41). Neste sentido, Tanaquil representou o ápice desse tipo de intervenção, essencialmente política, que exibiram mulheres na narrativa sobre a Roma inicial. Ela é diretamente responsável pela ascensão de dois reis estrangeiros em Roma: seu marido e genro. O patrocínio, ou patronagem, que essa mulher concede a eles, causou atrito com outros pretendentes ao trono e ocasionou a morte de ambos. No caso do marido, o papel da mulher se deu já no princípio, escolhendo Roma como lugar para sua ambição e, no caso de Sérvio Túlio, seu desempenho se mostrou também prematuramente na vida desse rei (Tito Lívio. I, 39). Sérvio Túlio crescera no palácio, por isso, a atuação de Tanaquil parece ter sido fundamental em sua criação como futuro rei, atuando na preparação e aceitação do poder desta figura. Lívio atribuiu fala relevante a ela sobre Sérvio Túlio (Tito Lívio. I, 39). Nenhuma outra personagem antes ganhou voz nesta narrativa. 955

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Na situação, em que Sérvio Túlio é salvo de um incêndio quando criança, ela anunciou o presságio sobre o destino grandioso dele, assim como havia recebido o presságio primeiramente sobre o sucesso do marido em Roma. A postura de Tanaquil na morte de Tarquínio Prisco e o aconselhamento do sucessor, seu genro Sérvio Túlio, é a mais substancial descrição e atuação vinculada a uma personagem feminina em relatos da Roma inicial. Assim, Tanaquil se mostra, após inúmeras outras personagens, a mais bem desenvolvida figura feminina. Como rainha que se tornava viúva, ela controlou a situação de assassinato promovido pelos filhos de Anco, que reivindicaram o poder, então tentando salvar o marido, incitando justiça pelo crime, legitimando o poder de Sérvio Túlio, controlando o palácio e omitindo a morte do rei enquanto o sucessor se estabelecia no poder. Em uma segunda fala atribuída à personagem, direcionada a Sérvio Túlio, ela incute-lhe coragem para que assuma o trono, em semelhança ao que fez antes com o marido (Tito Lívio. I, 41). A performance de Tanaquil possui grande proximidade com aquela de figuras posteriores ao tempo histórico dela, especificamente o período em que viveu Tito Lívio. Lívia Drusila, a primeira imperatriz romana, por exemplo, foi descrita como a madrasta cruel que assassinou os concorrentes de seu filho Tibério. Para lhe garantir o poder, como sugerido nos relatos posteriores a Lívio, Tácito (Anais. I, 5–6) e Suetônio (Tibério. III, 22), ela poderia ter ajudado o sucessor com a morte do marido Augusto, fechando o palácio, controlando as notícias da morte do imperador e ainda, teria assassinado Agripa Póstumo a fim de gerir a sucessão do poder imperial. Contudo, no caso de Tanaquil, já que sua filha foi uma mulher de nome desconhecido, favoreceu o genro na sucessão monárquica. 956

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Tanaquil, considerando suas antecessoras femininas, consolidou uma percepção romana de que as mulheres foram percebidas como ameaça ao exibirem agência, uma vez que se mostram como importantes agentes de ligações e mudanças políticas. Essa é uma conclusão inegável pela análise do relato sobre Tanaquil. Outro fator relevante se vincula à monarquia etrusca, uma vez que esta coincide com uma mudança significativa na representação que fez Lívio sobre os exempla femininos. A nova atenção na narrativa dedicada a personagens femininas, então com a relevância dada à Tanaquil e suas sucessoras, sobretudo, Túlia, é uma forma de preparar os leitores para a maior mudança política da primeira parte da obra: da Monarquia à República. Tal mudança foi concluída no relato do episódio de Lucrécia, usada como motivação inicial para queda da Monarquia e instauração da República (Tito Lívio. I, 57–60). Entretanto, há ainda uma especificidade que conecta a virada que Tanaquil inaugura na representação feminina na visão da sociedade, fortemente patriarcal, da Roma augustana do tempo de Lívio: essa sociedade não aprovava o envolvimento de mulheres proeminentes na política. Tal crítica, em Lívio, foi arrematada com Tanaquil e reforçada através de Túlia. No relato, paulatinamente essas mulheres representadas ganharam poder de agência política e pública, havendo uma progressão no fim da Monarquia, representada primeiramente por Tanaquil, e que se intensificou na República, culminando nas mulheres imperiais, igualmente associadas ao tema da corrupção e decadência morais. A despeito dessa tradição em grande parte negativa acerca de Tanaquil, note-se, por fim, que Plutarco (Moralia. 243D) não deixa de mencionar a inteligência dessa mulher, indicando certa ambivalência na valoração feminina pelos autores que escreveram sob o Império Romano. 957

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Fontes históricas DIO CASSIUS. 1914. Roman History. Volume 1. Translated by Earnest Cary with Herbert B. Foster. Massachusetts: Harvard University Press (Loeb Classical Library 32). DIONYSIUS OF HALICARNASSUS. 1937. Roman Antiquities. Volume I: Books 1–2. Translated by Earnest Cary. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library 319). LIVY. 1919. History of Rome. Volume I: Books 1–2. Translated by B. O. Foster. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library 114). PLUTARCH. 1914. Lives. Volume I: Theseus and Romulus. Lycurgus and Numa. Solon and Publicola.  Translated by Bernadotte Perrin.  Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library 46). PLUTARCH. 1931. Moralia, III (Sayings of Kings and Commanders. Sayings of Romans. Sayings of Spartans. The Ancient Customs of the Spartans. Sayings of Spartan Women. Bravery of Women). Translated by Frank Cole Babbitt. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library 245). TACITUS. 1937. Annals. Books 4–6, 11–12. Translated by John Jackson. Cambridge, MA: Harvard University Press (Loeb Classical Library 312). Bibliografia geral BAUMAN, R. A. 1992. Women and Politics in Ancient Rome. London: Routledge. CLAASSEN, J. M. 1998. The Familiar Other: the pivotal role of women in Livy’s narrative of political development in Early Rome, AClass, 41, p. 71–103. 958

A presença das mulheres na Literatura e na História

KOBAKHIDZE, E. 2009. Tanaquil of Tarquinii, Phasis, Greek and Roman Studies, 12, p. 164–172. FANTHAM, E; FOLEY, H. P; KAMPEN, N. B; POMEROY, S. B; SHAPIRO, H. A. 1994. Women in the Classical World: image and text. Oxford University Press: Oxford. SINCLAIR, B.; CARPINO, A. C, 2016. Tanaquil, the Etruscan Queen. In: A Companion to the Etruscans. London: Wiley Blackwell, p. 305–320. WILSON, R. A. 2015. An Attempt at Clarity: Understanding the Lives of Livia, Tanaquil, and Alexandra. Macalester College, Classics Honors Projects. Paper 21.

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Lucrētia › Lucrécia

por Renata Cerqueira Barbosa

Lucrécia [Lucretia], filha de Espúrio Lucrécio Tricipitino (provavelmente cônsul substituto em 509 aEC) e esposa de Lúcio Tarquínio Colatino (Cônsul em 509 aEC) foi utilizada como exempla de pudicitia para as matronas romanas, e seu estupro por Sexto Tarquínio, filho do Rei de Roma, foi considerado um evento de caráter fundador na história da cidade, que acarreta a expulsão dos reis e a instauração da República. Conforme nos conta Tito Lívio (Ab urbe condita libri, I. 57–60) o rei de Roma, Tarquínio Soberbo, tentou tomar Ardéia, nação dos Rútulos que se destacava por sua riqueza. Durante a campanha, os jovens príncipes se reuniam em banquetes e festas e em um desses encontros na casa de Sexto Tarquínio, filho do Rei, o assunto recaiu sobre suas esposas e seus dotes. A discussão, regada a vinho, tornou-se acalorada, quando Tarquínio Colatino sugeriu que todos fossem pessoalmente observar o comportamento das esposas. Enquanto as noras do Rei participavam de um suntuoso banquete com as amigas em Roma, em Colacia, Lucrécia encontrava-se fiando a lã, juntamente com suas servas. Lucrécia gentilmente recebeu seu marido e os Tarquínios em sua casa. Foi então que Sexto Tarquínio teve o desejo de possuir Lucrécia. Conforme Tito Lívio, «a beleza aliada à virtude, o seduziram» (Tito Lívio. Ab urbe condita libri, I. 57). Alguns dias depois, Sexto Tarquínio voltou a Colacia e foi muito bem recebido por Lucrécia, que o convidou a jantar e a se hospedar em sua casa. Quando todos foram dormir, Sexto Tarquínio subiu as escadas e se aproximou de Lucrécia já adormecida em seu leito, dizendo: «— Silêncio Lucrécia.

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Eu sou Sexto Tarquínio e tenho a espada na mão. Se disseres uma palavra, morrerás» (Tito Lívio. Ab urbe condita libri, I. 58). Tarquínio declarou seu amor à Lucrécia, mas diante de sua firmeza que não cedia nem pelo temor da morte, Tarquínio acrescentou ao medo a ameaça de desonra. Ao lado de seu cadáver colocaria o de um escravo estrangulado e nu, para que se dissesse que ela fora assassinada num adultério ignóbil. Sob essa ameaça, Lucrécia cedeu aos desejos de Tarquínio, o qual partiu contente por ter desonrado uma mulher. Abatida por tal acontecimento, Lucrécia enviou um mensageiro a Roma e a Ardéia para pedir ao pai e ao marido que viessem imediatamente acompanhados de um amigo fiel. Espúrio Lucrécio veio com o filho de Públio Valério Volésio e Colatino com Lúcio Júnio Bruto, que havia encontrado a caminho de Roma quando atendia ao chamado da esposa. À chegada do pai e do marido, Lucrécia desfez-se em lágrimas. Quando o marido lhe perguntou «— como vais?», ela respondeu: «— Mal. Como pode ir bem uma mulher que perdeu a honra? Vestígios de outro homem, Colatino, acham-se em teu leito. Aliás só meu corpo foi violado, minha alma permaneceu pura. Minha morte servirá de testemunha. Mas dai-me vossas mãos como garantia de que não deixareis impune o culpado. Foi Sexto Tarquínio quem, sendo nosso hóspede, agiu como inimigo e veio esta noite de espada desembainhada contra mim para conseguir um prazer criminoso» (Tito Lívio. Ab urbe condita libri, I. 58). Todos deram suas palavras, um após outro. Lucrécia então disse: «Vós cobrareis o que aquele homem deve. Mesmo isenta de culpa, não me sinto livre do castigo. Nenhuma mulher há de censurar Lucrécia por ter sobrevivido a sua desonra» (Tito Lívio. Ab urbe condita libri, I. 59). Ao pronunciar essas palavras, cravou no peito o punhal que havia escondido em suas vestes e tombou agonizante em meio aos gritos do marido e do pai. 962

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Deixando-os entregues a sua dor, Bruto extraiu da ferida o punhal ensanguentado e jurou expulsar Lúcio Tarquínio Soberbo e sua família de Roma. Entregou o punhal a Colatino, depois a Lucrécio e a Valério, que se mostravam atônitos diante do acontecimento inesperado e da lucidez de espírito de Bruto. Como lhes foi ordenado, repetiram o juramento. A dor se transformou em cólera, e quando Bruto os convidou a partir imediatamente para combater a realeza, eles o seguiram como a um chefe. O corpo de Lucrécia foi transportado à Roma e depositado no Fórum, onde a população se comoveu com o acontecido, incriminando a violência do príncipe. Diz a tradição, que após esses acontecimentos, os Tarquínios foram expulsos de Roma e teve início a República. O conto de Lucrécia finaliza o livro I de Tito Lívio. Segundo Ogilvie (1965, 218–219), considera-se uma tradição tão bem estabelecida que dificilmente se poderá duvidar do seu suporte histórico. No que diz respeito ao autor, pairam dúvidas sobre a data de nascimento de Titus Livius, cujo cognomen é desconhecido. Com base na crônica de São Jerônimo, ele nasceu em Pádua (Patavium), por volta de 59 aEC. e faleceu na mesma cidade em 17 EC Outra possibilidade proposta por historiadores modernos, seria o ano de 64 aEC, o mesmo ano de nascimento de Valério Messala Corvino. Conforme Vitorino (2012, 69), a datação tradicional adviria de um erro causado por uma confusão entre os nomes dos cônsules do ano 64, César e Fígulo, e os de 59, César e Bíbulo. Pádua, uma das mais antigas cidades do território Italiano, pertencia à Gália Cisalpina, hoje localizada na região de Vêneto. Em 49 aEC Júlio César a conquista e ao anexá-la à Roma, concedeu cidadania à população. A aristocracia da cidade era considerada muito presa às tradições republicanas, 963

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pois após o assassinato de César tomara partido pelos optimates. Provavelmente, este contexto influenciou a ideologia conservadora e moralizante do historiador (Vitorino 2012, 69). Ronald Mellor (1999) destaca que o teor da obra nos leva a crer que Tito Lívio dominava a escrita, a retórica e a História de Roma, tendo em vista que sua obra é considerada a maior que chegou até nós da Antiguidade. Em seu prefácio, Tito Lívio apresenta o tema a ser tratado, a estrutura da obra e explicita o objetivo central, que apresenta uma série de exempla aos cidadãos romanos. Nesse sentido, os historiadores modernos o criticaram por ser impreciso nas narrativas dos fatos. No entanto, hoje, seu estilo é entendido como simbólico no processo de construção da identidade romana. Nessa perspectiva, o prefácio já indicaria aos leitores que o trabalho é uma espécie de conjunto de ações individuais dos personagens, modeladas por Lívio para indicar as realizações coletivas dos Romanos. Defensor das prerrogativas republicanas, mas com viés moralista, Tito Lívio exaltava a liberdade e defendia o mos maiorum. Nesse sentido, o conto de Lucrécia ressalta e estabelece a pudicitia como valor primordial do caráter feminino romano (Marques 2007, 109). Nesse contexto de restauração cultural e política de Augusto, poemas como Fastos de Ovídio e Eneida de Virgílio também relatam o conto de Lucrécia, entre outros autores antigos. A história é convencionalmente reconhecida como política nas versões de Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso e como sentimental na versão de Ovídio. Os críticos raramente notam o contexto político em Ovídio, embora este contexto, transmitido na descrição das origens da festa do Regifugium, seja central no poema (Newman 1994, 304). Dentre as produções que mais se destacaram posteriormente, a obra de Shakespeare, The Rape of Lucrece, ganha evidência. Na análise de Jane Newman, o progresso da narrativa 964

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é frequentemente interrompido por monólogos interiores e peças retóricas que dilatam a história essencialmente política de Lívio e Ovídio sobre o estupro e suicídio de Lucrécia, em uma longa e quase psicológica investigação da motivação e das implicações das ações de Lucrécia e Tarquínio (Newman 1994, 304). Já em meados do século XX, surgem outras obras que tratam da temática, dentre elas está a de Melissa Matthes (1965) que analisa como os teóricos republicanos de diferentes momentos históricos, como Tito Lívio, Maquiavel e Rousseau, recontam a história do estupro de Lucrécia para apoiar suas próprias concepções de republicanismo. Muitos autores, da Antiguidade aos dias atuais, revisitam e reanalisam o conto de Lucrécia, partindo de várias possibilidades. Pierre Grimal (1991, 35–36) interpreta que a paixão é destruidora da ordem, pois teve consequências políticas. Lucrécia não poderia admitir que a carne sem a adesão da alma não comprometesse um ser; o que estava em jogo era o platonismo amoroso que se desenvolveu mais tarde em Roma e, ali como em outros lugares, subordinando o corpo à alma, autorizou todos os sofismas e todos os comprometimentos. Análises comparativas entre personagens literários diversos têm trazido outras possibilidades de estudo, como o caso de Philip Hardie, que ao investigar as ligações entre a versão virgiliana de Dido e Lucrécia, sustenta que, na sociedade patriarcal romana, resguardar o pudor e a fama femininos é essencial para a estabilidade da ordem familiar e social. A agressão pessoal cometida pelo filho do tirano contra o corpo e a reputação de Lucrécia é uma metonímia para a agressão do tirano contra as estruturas políticas e morais da cidade como um todo — a confusão do público e do privado é uma característica definidora da imagem de um tirano na Antiguidade (Hardie 2010, 96). 965

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Para além das possibilidades de interpretação do conto narrado por Tito Lívio, tanto no que se refere à questão política, quanto à questão cultural ou literária, este, reflete a intenção moralizante do autor ao colocar Lucrécia como exempla de pudicitia: «Depois de mim, nenhuma mulher poderá faltar ao pudor, apoiando-se no exemplo de Lucrécia». Fontes históricas TITO LÍVIO. 1989. História de Roma — Ab Urbe Condita Libri. Tradução de Paulo Matos Peixoto. São Paulo: Paumapé. OVID. 1989. Fasti. London: Harvard University Press. VIRGIL. 2007. The Aeneid. Oxford: Oxford University Press. Bibliografia geral GRIMAL, P. 1991. O Amor em Roma. São Paulo: Martins Fontes. HARDIE, P. R. 2010. Dido e Lucrécia, de Virgílio a Shakespeare, Letras Clássicas, vol. 14, p. 92–107. MARQUES, J. B. 2007. Tradições e renovações da identidade romana em Tito Lívio. Tese de Doutorado em História Social defendida na Universidade de São Paulo — USP. MATHEUS, M. 1965. The Rape of Lucretia and the Founding of Republics: Readings in Livy, Machiavelli, and Rousseau. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press. NEWMAN, J. O. 1994. “And Let Mild Women to Him Lose Their Mildness”: Philomela, Female Violence, and Shakespeare’s The Rape of Lucrece, Shakespeare Quarterly, vol. 45, n. 3, p. 304–326. VITORINO, J. C. 2012. Tito Lívio. In: PARADA, M. Os Historiadores Clássicos da História: de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Editora Vozes, p. 68–87. 966

Lēnae › Lenas

por Beatriz Rezende Lara Pinton

O termo latino lena deriva do verbo leno —inculcar, alcovitar, prostituir—, que por sua vez está associado a lenio — abrandar, acariciar, afagar, tornar favorável. As lenas eram mulheres que se dedicavam ao ofício de alcoviteiras, mediando as relações profissionais das meretrizes sob seus cuidados e estabelecendo as regras a serem seguidas pelos amantes. A contraparte masculina, o leno, exerce o mesmo ofício, mas há particularidades relativas apenas ao gênero feminino: em geral são descritas pelos autores romanos como mulheres que já foram também prostitutas na juventude, e que entregam as próprias filhas para o meretrício. Embora o ofício fosse reconhecido em Roma, meretrizes e lenas são juridicamente consideradas infames, status que gera restrições, como a impossibilidade de pleitear perante um tribunal ou casar-se com homens livres, além do estigma social da desonra e da má fama (para a infâmia atribuída às meretrizes, ver Edwards 1997). Na poesia amorosa latina, o estereótipo da lena é associado à mulher idosa, execrável e gananciosa, antagonizando com o jovem amante, já que sua influência sobre a puella entra em conflito com os interesses da persona poética, especialmente no que diz respeito à remuneração (para uma análise mais aprofundada da condição social da lena e sua representação na poesia elegíaca latina, ver Myers 1996). A lena aparece como uma personagem-tipo tanto na elegia como na comédia latina, comparecendo na obra de Tibulo (I. 5) como figura literária familiar (inclusive já sob a perspectiva pejorativa, sendo referenciada como a sua ruína, exitium meum, I. 5. 47–8). A alcoviteira Frina, citada em outra

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elegia (II. 6. 45), é motivo de frustração para o poeta, porque o impede diretamente de ter contato com a amada: manda-o embora, nega que a moça esteja em casa, alega que ela está doente ou recebendo outros clientes (v. 47–52). O tópos da maldição à lena é frequente na elegia e na comédia, gêneros em que o jovem apaixonado externa desgosto pelas atitudes das cafetinas, dirigindo-lhes imprecações (Tibulo, II. 6. 53–54; Ovídio, Amores I. 8. 113–14; Plauto, Asinaria 129–135; Plauto, Mostellaria 191–193, 203, 206–207, 212–213). Em Propércio (IV. 5), temos um poema elegíaco dedicado inteiramente à lena Acândite, cujo nome provém de acanthus, em referência a espinhos. O poeta expressa descontentamento com a intervenção da mulher nas suas investidas amorosas, além de frisar as habilidades mágicas da lena, que a aproximam ainda mais do estereótipo da feiticeira (v. 13–14). Propércio ressalta a capacidade da alcoviteira em ser persuasiva, convencendo a puella a prestar mais atenção ao ouro do que à mão que o traz (v. 53). Também é perceptível o aspecto erótico-didático do discurso da lena, sugerindo estratégias de conquista para a jovem meretriz, de modo a manter o amado interessado e generoso. A prostituta deve se adaptar às vontades de cada um dos homens, desde que eles ofertem presentes e possuam riquezas (v. 29–52). Ovídio, nos Amores (I. 8), narra a conversa entre a sua amada e a lena Dipsas, ouvida em segredo pelo poeta. O tom se assemelha bastante ao da elegia de Propércio, na qual a alcoviteira aconselha a jovem a respeito de como atrair vários pretendentes e manter o interesse dos amantes ricos, recebendo presentes constantemente, sem se apaixonar por nenhum deles. O nome dipsas, atribuído também a uma pequena serpente, estaria vinculado à sede que sua picada supostamente infligia às vítimas, sugerindo também o alcoolismo e a natureza nociva da cafetina (Amores, I. 8. 3–4). 968

A presença das mulheres na Literatura e na História

Os conflitos frequentes entre o poeta e a lena surgem devido à posição de magister/magistra amoris que ambos ocupam, cada um sendo o veiculador de uma lição diferente. O poeta se concentra nos ensinamentos ao adulescens, equiparando amor e guerra (militia amoris) ao lecionar estratégias para conquistar os favores da puella e enganar os inimigos, identificados como os pretendentes rivais e as lenas. A lena direciona os seus conselhos para as jovens meretrizes e, muitas vezes assumindo a responsabilidade de provedora da família, preocupa-se com a segurança financeira dela mesma e das filhas, garantida pela conquista dos divites amatores. Suas atitudes rígidas se justificam por encarar o meretrício como ofício e sustento, no qual há pouco ou nenhum espaço para a imprudência do amor nos moldes que os poetas propõem. Na comédia latina, as lenas aparecem nas peças de Plauto: Cleareta (Asinaria), Syra e Melaenis (Cistellaria), todas ocupando também o papel de mães de meretrizes. Scapha (Mostellaria) não possui tal vínculo com a recém-liberta meretriz Philematium, mas também age como conselheira e protetora. Em segundo plano, os enredos das três obras plautinas abordam a dinâmica da relação entre as prostitutas e as lenas, explorando o tópos das meretrizes apaixonadas e a repreensão das cafetinas, por vezes suas mães. Em Asinaria, a proibição de Cleareta de que a filha, Philenium, volte a se encontrar com o amado (v. 504–44), por mais dura que possa parecer, assegura a sobrevivência de ambas. A prostituição de Philenium é, ao seu próprio modo, um ato de pietas e decorum, através do qual demonstra sua devoção filial ao colocar as necessidades da família como prioridade. Cleareta, em seus confrontos com Argyrippus, lembra-o de que o pagamento é destinado às compras, essencialmente pão e vinho (As. 200). 969

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Na Cistellaria, o tema predominante é o da relação de amizade entre um grupo de meretrizes: Gymnasium e Silenium, duas jovens cortesãs, e as suas mães, Syra e Melaenis, que após a vida de meretrício, tornaram-se também lenae responsáveis pela sobrevivência de suas famílias. Faz-se referência a uma ordo meretricius, ou seja, um coletivo profissional de meretrizes, que ao invés de competirem entre si, estão dispostas a se ajudarem mutuamente. Em Cistellaria, 23, por exemplo, a lena menciona hunc ordinem para se referir ao grupo das meretrizes que deveriam ser benevolentes entre si e, no verso 33, a referência se repete, nostro ordini, também na fala da lena, incluindo a si mesma, a filha e as amigas no mesmo coletivo; para comparação entre meretrizes e matronas (Fantham 2011; Dutsch 2019). Até mesmo a rivalidade citada entre as cortesãs e as matronas é interpretada por elas como injusta, uma vez que as prostitutas não escolheriam o seu ofício, mas seriam levadas a isso pela necessidade. A lena aponta que não foi a vaidade (superbia) que fez com que ela escolhesse o meretrício, mas a fome (ut ne esurirem, Cist. 38–41). Ao final da peça, é esclarecida a origem de Silenium, que era filha do mercador Demipho — reviravolta que lhe permite casar-se com o amado, o jovem Alcesimarchus. Antes disso, porém, Melaenis a aconselha sobre as armadilhas do amor para uma prostituta. Em Mostellaria, embora não tenham um vínculo familiar, Scapha alerta Philematium sobre como ela poderia usar a beleza para atrair os pretendentes e sobre como não deveria restringir-se ao relacionamento apenas com um homem, porque esse seria o dever de uma matrona, não de uma meretriz (v. 189–90). Philolaches, o jovem apaixonado que as escuta escondido, lança maldições à lena, porque ela ensina à amada as estratégias para conquistar o amor, bem como a riqueza do adulescens e dos rivais (v. 212–13). Apesar de o jovem ter 970

A presença das mulheres na Literatura e na História

comprado a liberdade da meretriz, Scapha recomenda que ela não considere esse gesto como suficiente, demandando sempre mais presentes enquanto ainda for nova e atraente (v. 216–17). Se, no seio familiar do adulescens, os assuntos financeiros são comumente discutidos com pais que se negam a emprestar dinheiro para que o filho o desperdice com os caprichos da juventude, a lena assume o papel feminino equivalente ao do pater familias, controlando as finanças e sendo responsável pela segurança e bem-estar de seu núcleo familiar. Plauto usa o conceito de decorum (As. 514) para se referir ao sentimento da filha em relação à mãe, criando um efeito cômico a partir da realidade invertida proposta pela comparação entre a autoridade de uma cafetina sobre a sua filha e a de um cidadão sobre sua família. Fontes históricas OVÍDIO. 2011. Amores & Arte de amar. Tradução de Carlos Ascenso André. São Paulo: Penguin Classics, Cia. das Letras. PLAUTE. 2001. Comédies: Amphitryon, Asinaria, Aulularia.

Tome I. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les Belles Lettres.

PLAUTO. 2004. A comédia da cestinha. Tradução de Aires Pereira do Couto. Coimbra: Festea.

PLAUTO. 2014. A comédia do fantasma (‘Mostellaria’).

Tradução do latim, introdução e comentário de Reina Marisol Troca Pereira. Coimbra e São Paulo: IUC e Annablume.

PROPÉRCIO. 2014. Elegias. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Autêntica. 971

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Bibliografia geral EDWARDS, C. 1997. Unspeakable professions: public performance and prostitution in Ancient Rome. In: HALLET, J.; SKINNER, M. (Eds.). Roman sexualities. Princeton: Princeton University, p. 66–95. DUTSCH, D. 2019. Mothers and whores. In: DINTER, M. (Ed.). The Cambridge companion to Roman comedy. Cambridge: Cambridge University Press, p. 200–216. FANTHAM, E. 2011. Roman Readings. Roman response to Greek literature from Plautus to Statius and Quintilian. Berlim/Nova York: De Gryuter, p. 157–175. MYERS, K. S. 1996. The poet and the procuress: the lena in Latin love elegy. Journal of Roman Studies 86, p. 1–21. PRADO, J. B. T. Elegias de Tibulo. Introdução, tradução e notas. Dissertação de Mestrado em Letras Clássicas defendida na Universidade de São Paulo — USP, 1990.

972

Meretrīcēs › Meretrizes

por Charlene Martins Miotti & Beatriz Rezende Lara Pinton

Em latim, há mais de cinquenta termos para designar “prostituta”, sendo os mais comuns scortum e meretrix. Enquanto scortum originalmente significava “pele” ou “couro” (referindo-se à vagina, tomada então metonimicamente), a palavra meretrix, composta pelo radical do verbo mereo —receber recompensa, fazer-se pagar, merecer— seguido por sufixo de substantivo feminino -trix, indica, etimologicamente, a mulher que prestava serviços pelos quais era paga (para uma discussão mais detalhada sobre nomes latinos usados para o mesmo propósito, sugerimos ver Adams 1983). Na Roma antiga, embora a prostituição fosse reconhecida como ofício devidamente cadastrado e gerando coleta de impostos, as mulheres que a exerciam, majoritariamente escravas ou libertas, eram privadas de direitos civis, como o de se casar legitimamente, legar testamento ou herdar bens (para um breve resumo sobre o estatuto social da meretriz na antiguidade, sugerimos a leitura de Silva 2012). No mundo helenizado (Egito incluído), as ἑταίραι (hetairai) eram, geralmente, mulheres refinadas, que ofereciam a seus clientes companhia e estímulo intelectual em troca de presentes e participavam de esferas da sociedade normalmente vedadas ao restante das mulheres (tal é o caso de Teodota, cuja conversação com Sócrates é descrita por Xenofonte em Memoráveis, III. 11), como os simpósios — vale lembrar que o termo ἑταίρος (hetairos), no masculino, raramente era empregado com conotação sexual, designando simplesmente um homem bem-educado. As πόρναι (pórnai, provavelmente do verbo

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

πέρνημι, pérnemi, significava exportar ou vender, dado que as prostitutas gregas eram, em sua maioria, comercializadas), por sua vez, trabalhavam nas ruas ou em bordéis, mais expostas a insalubridades. Luciano de Samósata, nos Diálogos das cortesãs, dá voz a elas em cenas dramáticas e preciosas para a análise social do meretrício na sociedade ateniense do século II de nossa era. Ateneu de Náucratis, no início do século III, conta que muitos outros autores (entre os quais Sosícrates de Panagoreia, Niceneto de Samos ou Abdera, Apolodoro, Calístrato e Górgias) escreveram catálogos de mulheres ou tratados sobre meretrizes (Banquete dos Eruditos, XIII). Ele mesmo faz um longo relato sobre as mais célebres de que se tem notícia: Taís, a ateniense (amante de Alexandre, o Grande, e Ptolomeu, primeiro rei do Egito; é um personagem de Luciano e também dá nome a uma das peças mais famosas de Menandro), Gnatena (amante de Dífilo, o comediógrafo), Laís de Corinto (também mencionada por Ovídio em Amores I. 5. 12; filha de Damasandra, amante de Alcibíades), Friné de Téspias (amante de Praxíteles, a qual, famosa por sua beleza e riqueza, teria se oferecido para financiar a reconstrução das muralhas de Tebas destruídas por Alexandre; também nome de uma alcoviteira em Tibulo II. 6. 45), Herpílis (amante de Aristóteles), Arqueanassa de Cólofon (amante de Platão), Aspásia de Mileto (amante de Péricles e de Sócrates), Tígris de Leucádia (amante de Pirro, rei do Épiro), Olímpia (a Lacedemônia, mãe de Bíon de Borístenes, o filósofo), Téoris (amante de Sófocles, poeta trágico), Arquipe (curiosamente, herdeira de todas as propriedades do amante Hegesandro), Metaneira (amante de Isócrates e Lísias), Lágis (amante de Lísias, para a qual Céfalo, o orador, teria escrito um panegírico), Naís (a quem Alcídamas, pupilo de Górgias, também teria composto um panegírico), Lagisca (outra amante de Isócrates, com quem ele teria tido uma filha), Mirrina (a 974

A presença das mulheres na Literatura e na História

Sâmia, amante do rei Demétrio, último dos sucessores de Alexandre), Eirene (amante de Ptolomeu, filho do Filadelfo), Dânae (amante de Sófron, governante de Éfeso, e filha de Leontion, a Epicurista, também ela meretriz), Mista (amante do rei Seleuco), Lampito (amante de Demétrio de Faleros), Nicarete (amante de Estéfano, o orador), Plangon de Mileto (de alcunha “Pasífila”, “por todos amada”), Báquide de Samos (figura que Menandro e Plauto exploram, respectivamente, em Dìs Exapaton e Bacchides), Glícera (amante de Menandro, personagem da comédia Perikeiroméne e do Diálogo das cortesãs; nome também mencionado por Horácio em Odes I. 33. 2), Dórica (a quem Heródoto chama Ródope, ignorando, segundo Ateneu, que fossem duas pessoas diferentes; teria sido amante de Cáraxo, irmão de Safo, a poeta), Arquedice de Náucratis (segundo Heródoto, origem de belas meretrizes, II. 135. 5), Safo de Éreso, Nicarete de Mégara (nascida de pais livres e pupila do filósofo Estilpão), Bilístique (a Argiva, cuja ascendência remontaria aos Atridas), Lide da Lídia (amante de Antímaco), Nano (amante de Minermno), entre outras. Em Roma, foram muitos os autores que pintaram imagens (explícitas ou apenas sugeridas) de prostituição em suas obras. No contexto da poesia amorosa latina, a dualidade amante/meretriz, marcada frequentemente pelo emprego de pseudônimos que remetem a hetairas gregas, reflete —para além do tópos foedus et fides, convencional do gênero elegíaco, em que o jovem apaixonado demanda fidelidade de sua amada, mesmo que entre eles não haja laço oficial— conflitos morais típicos de uma sociedade patriarcal. É o caso de Licóris em Cornélio Galo; das Lésbias em Catulo (2, 3, 5, 7, 8, 11, 13, 38, 43, 51, 58, 60, 68b, 70, 72, 75, 76, 79, 83, 85, 86, 87, 92, 104, 107, 109) e Marcial (Epigramas I. 34; II. 50; V. 68; VI. 23, 34; VII. 14; VIII. 73; X. 39; XI. 62, 99; XII. 44, 59; XIV. 77); de Cíntia em Propércio (I.1, 3, 4, 5, 6, 8a, 8b, 10, 11, 975

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12, 15, 17, 18, 19; II. 5, 6, 7, 13, 13b, 14, 19, 24a, 29b, 30b, 32, 33a, 34b; III. 21, 24, 25; IV. 7, 8); de Délia e Nêmesis em Tibulo (I. 1, 2, 3, 5, 6; II. 3, 4, 5, 6); de Corina (Amores I. 5, 10, 11, 12, 14; II. 6, 13; III.12; personagem também do Diálogo das cortesãs de Luciano) e Cipásside (II. 7 e 8) em Ovídio; Lídia (Odes I. 8, 13, 25; III. 9), Glícera e Mírtale (Odes I. 33) em Horácio. Paralelamente, encontramos mulheres nobres figurando como meretrizes, por exemplo, em Propércio (III. 11. 39–42), que representará Cleópatra como meretrix regina, rainha prostituta, e em Juvenal, que, na famosa sátira contra as mulheres (Sátiras, VI. 115–135), descreve Messalina, esposa do imperador Cláudio, como meretrix Augusta, atuando num bordel sob o pseudônimo Lícisca. Ainda no gênero satírico, são de interesse a descrição de meretrizes (como Origo, que teria atuado em farsas populares chamadas mimos) na sátira horaciana I. 2. 47–134, e as cenas entre os capítulos XVI e XXVI do Satyricon de Petrônio, com o trio Quartila, Psiquê e Paniques (de apenas 7 anos de idade). Na comédia latina, a figura da meretrix contrasta com as da matrona e a da uirgo. Tradicionalmente, a primeira representa a mulher fora do círculo familiar, que não almeja vínculo através de matrimônio (prerrogativa reservada somente às últimas), mas se empenha na conquista e manutenção dos favores masculinos, na maioria das vezes para o próprio sustento. Suas principais artimanhas são a fala suave (blanditia) e os cuidados com a beleza (sobre as estratégias de persuasão das meretrizes em Plauto, ver Rocha 2017). Pelo fato de trocarem serviços por dinheiro, são frequentemente acusadas de serem gananciosas: não se contentam nunca com um único amante e faltam com a lealdade aos valores tradicionais da família. Esses são comportamentos que entram em conflito com o padrão de pudicitia feminina (Strong 2016). Em Plauto, as personagens que se aproximam dessa descrição são Erócia (Menaechmi), 976

A presença das mulheres na Literatura e na História

Fronésio (Truculentus), as irmãs Báquides (Bacchides) e Ginásio (Cistellaria), todas mulheres livres. Entre as libertas e escravas, estão Acropolistis (Epidicus) e Astáfio (Truculentus), criada da meretriz Fronésio. Um segundo tipo de personagem recorrente nas comédias, tanto de Plauto, como de Terêncio, é a bona meretrix, para a qual a designação de prostituta não implicaria necessariamente uma conduta viciosa. Trata-se de uma mulher de baixo status social que, por sua generosidade e virtuosidade, transcende a má reputação associada às meretrizes. Terêncio escreve duas peças em que o roteiro gira em torno do romance entre bonae meretrices (Báquide em Hecyra e Taís em Eunuchus) e jovens provenientes de famílias ricas (para um perfil detalhado da bona meretrix, ver Gilula 1980). Plauto também representa meretrizes apaixonadas, cujo objetivo no enredo não é extorquir seus amantes, como Filênio (Asinaria), Filocomásio (Miles Gloriosus), Selênio (Cistellaria), Palestra (Rudens), Planésio (Curculio), Filemátio (Mostellaria), Pasicompsa (Mercator) e Fenício (Pseudolus). As meretrizes aparecem também como personagens nas controuersiae (gênero associado aos exercícios formativos das escolas de retórica), figurando ao lado de personagens-tipo oriundos do universo cômico, como o senex e o adulescens. A própria representação das prostitutas nas declamações romanas evidencia a influência da comédia sobre o gênero retórico, considerando as notáveis semelhanças de enredo e a retomada dos tópoi. Em Pseudo-Quintiliano, temos o caso da poção de ódio (Decl. maiores, 14–15), em que o amante pobre presta queixa contra a meretriz pelo crime de veneficium (envenenamento): ela lhe teria administrado, sem seu consentimento, uma poção que transformou sua obsessão amorosa em ódio. Na declamação de acusação, vê-se a associação da personagem com a figura da feiticeira (venefica), enquanto a defesa apresenta o ponto de vista da mulher, utilizando argumentos que 977

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

corroboram a percepção da prostituição enquanto um ofício, indispensável para a manutenção da ordem social. Como exemplo do paralelismo entre gêneros, pode-se tomar ainda o argumentum da peça Mercator, de Plauto, e as declamações de Calpúrnio Flaco (Decl. 37) e Pseudo-Quintiliano (Decl. minores 356): o filho de um homem rico é encarregado de comprar a prostituta pela qual o pai é apaixonado. Ao invés disso, usa o dinheiro para comprar a meretriz que ele mesmo amava e, em seguida, é deserdado. As representações literárias das meretrizes refletem, enfim, a curiosa ambivalência que circunscreveu a realidade histórica dessas mulheres simultaneamente entre o desejo e o desprezo. Fontes históricas ATHENAEUS. 2010–2011. The Learned Banqueters. Edited and translated by Olson S. Douglas. Loeb Classical Library, v. VI-VII. Cambridge, MA: Harvard University Press. CALPURNIUS FLACCUS 1994. In: SUSSMAN, L.W. The declamations of Calpurnius Flaccus. Brill: New York. CATULO. 1996. O livro de Catulo. Introdução, tradução e notas de João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Edusp. HERÓDOTO. 2016. Histórias. Livro II: Euterpe. Tradução de Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro. HORÁCIO. 2008. Odes. Tradução de Pedro Braga Falcão. Lisboa: Cotovia. HORÁCIO. 2013. Sátiras. Tradução de Edna Ribeiro de Paiva. Niterói/RJ: Editora da UFF. JUVENAL and PERSIUS. 1928. Satires. English translation by G. G. Ramsay. London: William Heinemann; New York: G. P. Putnam’s Sons. 978

A presença das mulheres na Literatura e na História

LUCIANO DE SAMÓSATA. 2012. Diálogos das cortesãs. In: Luciano [I]. Tradução, introdução e notas de Custódio Mangueijo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. MENANDER. 2008. The plays and fragments. Translation and notes by Maurice Balme. New York: Oxford University Press. OVÍDIO. 2011. Amores & Arte de amar. Tradução de Carlos Ascenso André. São Paulo: Penguin Classics, Cia. das Letras. PLAUTE. 1972. Comédies: Pseudolus, Rudens, Stichus. Tome VI. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les Belles Lettres. PLAUTE. 2001. Comédies: Amphitryon, Asinaria, Aulularia. Tome I. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les Belles Lettres. PLAUTO. 1976. As Bacanas. Tradução de Newton Belleza. Rio de Janeiro: Emembê. PLAUTO. 1978. Comédias (O Cabo, Caruncho, Os Menecmos, Os Prisioneiros, O Soldado Fanfarrão). Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Editora Cultrix. PLAUTO. 1980. Epídico. Introdução, versão do latim e notas de Walter Sousa Medeiros. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra. PLAUTO. 2004. A comédia da cestinha. Tradução de Aires Pereira do Couto. Coimbra: Festea. PLAUTO. 2010. O truculento. Tradução de Adriano Milho Cordeiro. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos. PLAUTO. 2014. A comédia do fantasma (‘Mostellaria’). Tradução do latim, introdução e comentário de Reina Marisol Troca Pereira. Coimbra e São Paulo: IUC e Annablume. 979

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

PLAUTO. 2017. O mercador. Tradução do latim, introdução

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A presença das mulheres na Literatura e na História

PINTON, B. R. L. 2020. Remedium amoris mulier inuenit: o papel da meretrix e a magia nas Declamationes Maiores atribuídas a Quintiliano. Dissertação de Mestrado em Letras: Estudos Literários defendida na Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Letras — UFJF. ROCHA, C. M. 2017. Blandiri officium meretricium est: estratégias de persuasão das meretrizes na comédia plautina, Acta Scientiarum, 39, p. 273–279. SILVA, G. V. da. 2012. As mulheres e os perigos da cidade: casamento espiritual, virgindade e prostituição segundo João Crisóstomo. In: LEITE, L. R.; SILVA, G. V. da; CARVALHO, R. N. B. (Orgs.). Gênero, religião e poder na Antiguidade: contribuições interdisciplinares. Vitória: GM Editora, p. 31–49. SILVA, N. S. C. 2009. Eunuchus de Terêncio: estudo e tradução. Dissertação de Mestrado em Língua e Literatura Latina defendida na Universidade de São Paulo — USP. STRONG, A. K. 2016. Prostitutes and matrons in the Roman world. New York: Cambridge University Press. PRADO, J. B. T. 1990. Elegias de Tibulo. Introdução, tradução e notas. Dissertação de mestrado em Letras Clássicas na Universidade de São Paulo — USP.

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Virgō › Virgo

por Amy Richlin

Virgo é uma importante personagem na comédia de Plauto, Persa. Apropriadamente, ela não tem nome: «Virgo» é apenas um rótulo, que significa «garota livre solteira». Como tal, ela é uma exceção importante à regra de que virgens livres não falam no palco nas primeiras comédias romanas. Em outras peças de Plauto, meninas livres estão fora do palco: dando à luz como resultado de estupro (Aulularia), apenas tendo dado à luz (Truculentus) ou, ainda, usadas como um motivador da ação (Trinummus). Virgo também é única por ser filha de um parasita, um tipo de personagem comum que é um homem pobre sempre com fome, sempre tentando arranjar uma refeição, tentando ganhar o seu sustento contando piadas — muito parecido com os atores nessa forma de comédia. Seu pai no palco, Saturio («O Comilão»), é o único parasita da comédia antiga que tem uma família. Na peça, a fim de manter o acesso a refeições gratuitas na cozinha de seu amigo, o escravo Toxilus, Saturio concorda em emprestar a filha para Toxilus usá-la em uma fraude. Toxilus planeja vendê-la a um cafetão, fazendo-a passar por uma prisioneira de guerra roubada «do fundo da Arábia» durante uma guerra na qual os persas saquearam a Cidade de Ouro árabe. Outro amigo de Toxilus, o escravo Sagaristio, se disfarçará como o comerciante da Pérsia que está procurando vender a garota. Depois que o cafetão a comprar, o plano é que Saturio apareça repentinamente e reivindique sua filha como cidadã local, forçando o cafetão a perder o dinheiro da compra para Sagaristio. Assim que Saturio concorda com o plano, Toxilus manda que busque uma fantasia «estrangeira» para disfarçar a jovem Virgo.

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Virgo, então, está disfarçada desde o primeiro momento em que a vemos. Ela aparece em duas cenas principais da peça: uma discussão com o pai, na qual ela o censura por concordar com tal plano e aponta o que isso significará para ela (linhas 329–399); e a cena da venda (especialmente as linhas 543–675), em que ela mostra ao público como é ser vendida para um cafetão, e demonstra que é a pessoa mais inteligente no palco, falando acima não apenas do cafetão, mas de Toxilus e Sagaristio. Seus discursos, então, apelam, muitas vezes, diretamente ao público (ver Richlin 2017, 260–265). Ela poderia muito bem esperar que eles simpatizassem com ela. As primeiras comédias romanas se desenvolveram durante uma época de guerras constantes em todo o Mediterrâneo, incluindo a Península Itálica, e a guerra frequentemente envolvia escravizações em massa quando as cidades eram saqueadas. Diz-se que Plauto floresceu durante a Segunda Guerra Púnica, durante a qual a Itália foi ocupada pelos exércitos cartagineses sob Aníbal; as estradas estavam lotadas de deslocados e caixões de escravos. Nesse ponto, não havia teatros permanentes na Itália central; As peças de Plauto provavelmente foram encenadas em palcos simples de madeira, montados temporariamente no Fórum ou em frente ao templo da divindade homenageada no festival. O público se sentava em bancos; a entrada era gratuita; o público ainda não era segregado por categoria, e há ampla evidência de que escravos, libertos e livres sentavam-se lado a lado. Muitas pessoas na platéia teriam perdido parentes para a escravidão e, de fato, os palcos foram montados à vista de onde os escravos eram vendidos, enquanto as prostitutas escravas eram fáceis de se encontrar no Fórum. Com base nas piadas nas peças, parece certo que pelo menos alguns dos atores eram escravos, e os personagens escravos costumam ocupar o centro do palco (ver Marshall 2013 sobre escravos sexuais no palco). Em Persa, os únicos personagens livres são o cafetão, Saturio e sua filha. 984

A presença das mulheres na Literatura e na História

Esse ambiente reforça a ideia de Clara Hardy (2005) de que o traje que Saturio consegue para sua filha não é apenas estrangeiro, mas trágico. Sua situação cruza linhas de gênero, e sua entrada na cena da venda pode ser comparada com a impressionante entrada de Cassandra no Agamenon de Ésquilo, ou melhor, de Iole em As Traquínias de Sófocles. Mais próxima do contexto, sua aparência poderia muito bem ter lembrado ao público a da personagem-título da Andrômaca de Ênio, uma peça considerada tão importante que gerações de alunos memorizaram os discursos de Andrômaca, como sabemos por Cícero (Tusculan Disputations, 3. 53). O cruzamento de gêneros, se presente para os espectadores, pode muito bem ter sido visto como engraçado, como quando o Pernalonga se veste de personagem de uma grande ópera. No entanto, mesmo assim, isso só teria reforçado a qualidade de estrela de Virgo. A cena de Virgo com seu pai demonstra tanto sua frieza quanto sua superioridade moral. Ele a vê como sua propriedade; ela vê os dois como vulneráveis à opinião pública, o que é ainda mais severo para os pobres. Ela ressalta que não tem dote e que, se ele permitir que ela seja vendida a um cafetão, mesmo que ele a redima imediatamente, sua reputação ficará irremediavelmente manchada. Ela nunca vai encontrar um marido. Seu pai responde que ela tem um dote em sua coleção de livros de brincadeiras e sugere que ela achará fácil um marido — um mendigo. Resignada com seu destino, ela segue com ele. Na cena da venda, a encenação enfatiza sua importância como um contrapeso para Toxilus (ver Marshall 1997). Perguntada por seu nome, ela se dá um: «Lucris», um trocadilho que pode ser traduzido como «Vendida». Ela foi mercantilizada e mostra que sabe disso. Questionada sobre de onde era (patria), ela responde que só pode ser do lugar onde está agora: verdadeira em três níveis (é isso que o cativeiro faz a você, enquanto sua antiga pátria está perdida; ela está literalmente na terra onde 985

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nasceu; está na situação que o pai criou para ela). Múltiplos significados semelhantes permeiam suas respostas enquanto ela debate com o cafetão que, eventualmente, lhe diz que ela logo será livre — se passar bastante tempo em suas costas. No evento, seu pai chega tarde o suficiente para que ela se preocupe (724). Ela é vista pela última vez seguindo seu pai fora do palco (752). Quando refletimos que por baixo de seu traje pode muito bem haver um jovem menino escravo, talvez ele próprio experiente em exploração sexual, o impacto desse personagem sem nome é redobrado. Porém, falar em Drag em Plauto é algo complexo pelo estado desconhecido dos atores sob o traje envolvente e a máscara coberta que, provavelmente, foram usados (ver Richlin 2017, 281–303). A audiência também era mais complexa do que podemos imaginar, pois eles sabiam o que a escravidão significava por dentro e seus conhecimentos variavam de pessoa para pessoa. Mas Virgo não tem nome. Diante disso, quem vai procurar «Virgo» neste Compêndio? No entanto, ela fala pelos que não têm voz. Tradução do inglês para o português: Semíramis Corsi Silva.

Fontes históricas PLAUTUS. 2011. The Merchant, The Braggart Soldier, The Ghost, The Persian. Edited and translated by Wolfgang de Melo. Cambridge, MA: Harvard University Press. T. MACCI PLAUTI. 1903–1905. Comoediae. 2 vols. W. M. Lindsay (Ed.). Oxford: Oxford University Press. Obras de referência HARDY, C. S. 2005. The Parasite’s Daughter: Metatheatrical Costuming in Plautus’ Persa, Classical World, 99.1, p. 25–33. 986

A presença das mulheres na Literatura e na História

MARSHALL, C. W. 1997. Shattered Mirrors and Breaking Class: Saturio’s Daughter in Plautus’ Persa, Text & Presentation. 18. p. 100–109. MARSHALL, C. W. 2013. Sex Slaves in New Comedy. In: AKRIGG, B.; TORDOFF, R. (Eds.). Slaves and Slavery in Ancient Greek Comic Drama. Cambridge: Cambridge University Press, p. 173–196. RICHLIN, A. 2017. Slave Theater in the Roman Republic: Plautus and Popular Comedy. Cambridge: Cambridge University Press.

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Sȳra › Syra

por Amy Richlin

Syra é uma personagem secundária na comédia O Mercador de Plauto. Ela representa um grande grupo de escravas domésticas colocadas no palco, muitas das quais não têm nenhuma fala ou têm apenas algumas, mas tendem a apoiar suas donas, pelo menos fisicamente (ver James 2012). Ela entra carregando a bagagem de seu dono e, como outros escravizados no palco, ela reclama de seus fardos enquanto seu dono a repreende por sua lentidão (Para as circunstâncias históricas por trás da representação da escravidão nas peças de Plauto, consulte o verbete Virgo). Como uma mulher idosa —Syra se identifica tendo oitenta e quatro anos em seu discurso de entrada— ela representa um grupo de mulheres consistentemente desprezadas no palco, às vezes criticadas como nojentas, bêbadas e fedorentas (ver Richlin 2017, 302–303). Além disso, por seu nome, “Syra”, ela representa outro grupo insultado: os escravizados da Síria, estereotipados tanto nas peças de Plauto quanto em outros lugares como naturalmente servis, feios (se mulher), adequados apenas para trabalho enfadonho (sobre Syra e os estereótipos raciais em Plauto, ver Starks 2010). Syra raramente aparece falando, mas faz um discurso que deveria ser lido em todas as aulas sobre mulheres antigas (ver Richlin 2017, 265–268). Depois de descobrir que (conforme ela pensa) o marido de sua dona comprou uma jovem escrava sexual e a trouxe do mercado para morar na casa da família, Syra dá o alarme e, então, é deixada sozinha no palco para fazer um breve monólogo (linhas 817–829). De forma única em toda a

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literatura latina, ela deplora o duplo padrão que opera nas famílias romanas, segundo o qual um marido pode impunemente “contratar uma prostituta” pelas costas da esposa, mas se a esposa põe os pés fora de casa sem o conhecimento do marido, o marido tem motivos para o divórcio. Syra deseja que mulheres e homens vivam segundo regras iguais e que as esposas tenham os mesmos direitos que os maridos — usar a infidelidade do cônjuge como fundamento para o divórcio. Ela conclui estimando que, se assim fosse, mais maridos se divorciariam de suas esposas do que vice-versa. A importância desse discurso não é realmente prejudicada pelo fato de que as esposas, em várias peças de Plauto, ameaçam se divorciar de seus maridos: Alcumena em O Anfitrião, devido à sua acusação de que ela foi infiel a ele; a esposa de Menecmo em Os Menecmos, cujo marido está de fato visitando uma prostituta e que, por conta disso, chega a chamar seu pai; e o dono de Syra. O divórcio era legal em Roma, e as esposas podiam iniciar o pedido (ver Watson 1971, 23–24), embora o vizinho de Cleustrata fale do divórcio como uma ameaça terrível na peça Cásina. No entanto, a retumbante declaração de Syra se destaca, com sua abertura vigorosa: “Por Castor, as mulheres (mulieres) vivem de acordo com uma lei rígida!” Nós devemos nos perguntar qual teria sido seu efeito desse discurso, falado no palco por um ator masculino vestido como uma velha e decrépita mulher escravizada. Os escravizados não podiam se casar sob a lei romana; por que, então, Syra deveria falar em nome das mulheres casadas? Este é outro exemplo de lealdade, como Sharon James argumentaria? O traje enfraquece a força do discurso? O verdadeiro ponto do discurso é o insulto final aos homens casados, como os da platéia? As peças de Plauto insultam regularmente membros da audiência de várias formas, e os homens casados ​​nas peças geralmente são considerados tolos. Ou seria a escolha das 990

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palavras de Syra importante aqui, já que mulieres como um substantivo de grupo se refere mais frequentemente a mulheres escravizadas do que a todas as mulheres? Tradução do inglês para o português: Semíramis Corsi Silva.

Fontes históricas PLAUTUS. 2011. The Merchant, The Braggart Soldier, The Ghost, The Persian. Edited and Translated by Wolfgang de Melo. Cambridge, MA: Harvard University Press. PLAUTUS. 2 VOLS. 1903–1905. Edited by W. M. Lindsay. Oxford: Oxford University Press. Bibliografia geral JAMES, S. L. 2012. Domestic Female Slaves in Roman Comedy. In: JAMES, S. L.; DILLON, S. (Eds.). A Companion to Women in the Ancient World. Chichester, UK: Blackwell, p. 235–237. RICHLIN, A. 2017. Slave Theater in the Roman Republic: Plautus and Popular Comedy. Cambridge: Cambridge University Press. STARKS Jr., J. H. 2010. Servitus, sudor, sitis: Syra and Syrian Slave Stereotyping in Plautus’ Mercator, New England Classical Journal 37.1, p. 51–64. WATSON, A. 1971. Roman Private Law around 200 BC. Edinburgh: Edinburgh University Press.

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Lesbia › Lésbia

por Alexandre Cozer

Dentre as mulheres que aparecem como personagens na literatura latina, certamente Lésbia está entre as mais famosas. Figurante n’O livro de Catulo, a personagem literária inaugura para os textos romanos uma sequência de personagens femininas presentes nos textos elegíacos e epigramáticos, com os quais interagem os escritores dessas poesias e que os levam à loucura, à possessão sentimental, ao sofrimento, e que os motivam mesmo à escrita. O nome não era o de uma pessoa romana que convivia com Catulo, mas era relacionado à ilha de Lesbos e sua explicação é ambígua: pode ter sido motivada pela inspiração que foi Safo para o poeta romano, já que a autora vivera nessa ilha; pode também ser alusão à fama de que as meninas da ilha fossem bonitas. Entretanto, como primeira personagem do tipo, Lésbia também é identificada com uma mulher na História de Roma: uma das filhas de Apio Cláudio Pulcro, provavelmente a quarta, mais conhecida como Cláudia Metelo. Tal paralelo se dá a partir da percepção de que Lésbia é uma mulher casada por quem Catulo se apaixona e a qual deseja beijar e amar. Em certos trechos, Lésbia é mencionada tendo relação com um Lesbius considerado pulcher pelo poeta em um sugestivo poema que combina com as acusações de Cícero sobre Cláudia em seu Pro Caelio. O fato de Lésbia parecer também superior a Catulo em nível social e talvez até educativo, já que ela demonstra suas opiniões sobre o livro e trata Catulo como cliente, sustentaram os argumentos historicistas de L. Schwabe desde 1862, mantido nas interpretações mais recentes da obra, endossando a conexão entre a personagem real e a literária.

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Com isso, o contexto histórico no qual viveria Lesbia é o mesmo de Catulo, de Cícero, de César — a quem o poeta se opõe em uma de suas poesias de raro engajamento político — e de Cláudia. No último século antes da era cristã, Roma havia se tornado uma República de muitos territórios e de muitas conquistas que haviam trazido ali diversos escravos e permitido a poucas famílias o acúmulo de fortunas outrora inimagináveis. Nesse contexto, estabeleciam-se relações de clientelismo, nas quais algumas famílias ricas de origem menos tradicional dependiam ou se associavam com as mais importantes, como era a dos Metelos ou dos Julios. Também nesse contexto, a cultura romana havia se transformado: a inserção de gêneros poéticos como a elegia e a epigramática ressaltam uma vida social mais próxima dos banquetes, jantares que se ofereciam a tais clientes. Ao mesmo tempo, nos anos finais da República, temos mulheres que agora podem casar-se sine manu, ou seja, sem tornar-se propriedade do marido, o que lhes conferia mais independência e lhes permitia agir politicamente e até mesmo ter a separação. Tudo isso contribui para dois dos fatores que marcam as visões criadas sobre a Lésbia de Catulo: por um lado, a realidade mais aristocrática da azo a uma cultura de festas e de admiração mais criteriosa da poesia; por outro, a maior liberdade das mulheres também convive com uma literatura agora mais agressiva a elas, e com histórias contadas por moralistas sobre a depravação dessas senhoras ou o fato de elas traírem seus maridos, como aconteceria nas próprias páginas de Cícero e depois de outros historiadores romanos do período e posteriores. No que concerne às interpretações, se já é raro interpretar Catulo sem pensar sua relação com Lésbia e o lugar que ela tem em sua poesia —alguns estudiosos como Vasconsellos (1991) chegam a considerar o grupo de escritos a ela um cancioneiro a parte— nossa personagem também é sempre considerada em sua relação com o poeta. Entretanto, as interpretações sobre 994

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essa mulher romana variam muito. Em uma importante leitura sobre O livro de Catulo, Kenneth Quinn (1969) defendia que o poeta iniciara uma revolução na poesia romana: a de opor-se ao gênero épico, ao desejo de guerra e à poesia longa, considerada por muitos a mais erudita valorosa. Em oposição, o poeta valorizaria sua vida cotidiana e, em uma reutilização do termo ovidiano, iniciaria em Roma o movimento da militia amoris: negar a guerra e o político e observar os desejos e sentimentos cotidianos. Nessa poesia, Lésbia apareceria como uma representação de Clódia, mas certamente idealizada e cheia de interferências imaginárias da poesia. A interpretação de Quinn, em certa medida, dá azo a uma visão romantizada da relação de Catulo e Lésbia, na qual se figuraria uma mulher de classe alta e que era, como uma espécie de musa, extremamente desejada pelo poeta que chega a confessar não considerar suficiente para sanar seu desejo nem milhares de beijos (Poesias 5 e 16 do livro de Catulo). De um ponto de vista da historiografia e da crítica literária feministas, a posição se inverte. Amy Richlin (1992), por exemplo, atenta para o quanto Lésbia aparece como objeto de desejo de Catulo, mas chama mais atenção ao fato de que a mulher, além de algumas vezes aproximar-se de realizar os desejos do poeta, também parece consumar relações com outros rapazes por vezes até em um bar, como no Poema 37. Entretanto, em que pese sua relação com o poeta e o afeto que esse lhe demonstra, a Lésbia que se relaciona com outros homens é julgada adúltera pela voz das poesias, apesar de não ser para Catulo uma parceira conjugal. Tal aspecto leva Richlin e outras historiadoras a questionarem a linguagem abusiva das poesias que despreza essa personagem e a trata como objeto de desejo e posse. Lésbia confirmaria, em uma etapa, a contradição da cultura romana que jamais permitiria a uma mulher o comportamento mais livre que essa personagem toma na obra, apesar dos direitos que tinham no período. 995

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Do ponto de vista mais historicista-literário, é comum a afirmação de que Lésbia seria uma representação um pouco exagerada da efetiva mas incognoscível relação entre Catulo e Cláudia, e a poesia ou sua representação seriam o lugar de uma confissão, ao mesmo tempo que de uma crítica um pouco épicas ou dramáticas. Em Wiseman (1985), e com menor debate em Vasconsellos (1991), Lésbia é entendida como uma mulher mal compreendida por sua cultura e, por isso, tão desejada por Catulo e ao mesmo tempo tão ofendida por ele. Enquanto mulher de alto calão, ela estaria acima do poeta e teria com ele uma relação de poder, assim ele confessava seus desejos, a via sendo livre e assumindo uma vida independente do marido, mas ao mesmo tempo retornava sobre ela e, sobretudo, aos amantes dela, em violência contra seus atos sexuais ou suas expressões de desejo. Outra perspectiva interessante sobre a personagem é a que analisa sua presença na poesia de Catulo de acordo com uma divisão técnica da obra. O Livro seria composto em três partes: polímetros que correspondem às poesias 1 até 60; versos longos ou carmina docta, da 61 até 68; epigramas da 69 até 116. De acordo com M. Skinner (2003) e, em seguida, com J. Dyson (2007), a relação de Catulo e Lésbia muda a cada parte da poesia, transformando-se quase em uma história fragmentada em seus versos. Na parte polímetra, Lésbia aparece de forma muito confusa e propositalmente imaginada pelo poeta, mostrando o quanto sua presença ou sedução o deixariam desconectado da realidade. Entre linda, amada, odiada por estar com outros homens, nossa personagem faz prova de tanta sedução que chega a colocar Catulo em um papel que seria feminino (Poemas 2 e 11) para os romanos mais conservadores: estar perdido de amores. No Poema 68, Lésbia sofreria uma mutação com o poeta: ambos deixam de ser jovens e deixam de lado suas puerícias, Catulo passa a vê-la como uma mulher realizada e próxima até de uma deusa, ressaltando sua inferioridade social 996

A presença das mulheres na Literatura e na História

em relação à Lésbia. Em seguida, nos epigramas, o poeta passaria a reconhecer seu papel social e a superioridade, chegando a estabelecer uma relação de amicitia em pé de igualdade. Com todas essas oscilações e interpretações diferentes de Lésbia ressalta-se também uma na literatura brasileira. Em 1890, a escritora Maria Benedita Câmara Bormann, mais conhecida com o nome que emprestou de outra personagem antiga, Delia, escreveu o romance Lesbia. No romance, com certa dúvida biográfica, Delia se inspira na Lésbia de Catulo para narrar a história de uma mulher de elite no Brasil aristocrático que se entediava com seus homens, abandonava o marido e procurava não apenas viver novas paixões como também escrever seus livros. A genialidade da Lésbia brasileira inspirava-lhe um enorme tédio dos homens que lhe desejavam e, em certo ponto do romance, até daquele amante que ela própria nomeara Catulo. A vontade de liberdade, a troca de parceiros, o impulso amoroso e a condição social elevada certamente são reconfigurações que a Lesbia brasileira faz da nossa personagem antiga. Fontes históricas BORMANN, M. B. C. 1999. Lesbia. Florianópolis: Editora Mulheres. CATULO. 1996. O livro de Catulo. Tradução de J. A Oliva Neto. São Paulo: EDUSP. CÍCERO. 2000. Pro Caelio. Cicero: Defense Speeches. Oxford World Classics. Edited and translated by D. H. Berry. New York: Oxford University Press. Bibliografia geral DYSON, J. 2007. The Lesbia Poems. In: SKINNER, M. A companion to Catullus. Oxford: Blackwell publishing, p. 254–275. 997

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QUINN, K. 1969. The Catullan Revolution. Ann Arbor/ Michigan: The University of Michigan Press. RICHLIN, A. 1992. The garden of Priapus: sexuality and aggression in Roman Humor. Nova Iorque: Oxford University Press. SKINNER, M. B. 2003. Catullus in Verona: a reading of the elegiac libellus. Columbus, Ohio: The Ohio State University Press. VASCONCELLOS, P. S. 1991. Catulo: O cancioneiro de Lésbia. São Paulo: Hucitec. WISEMAN, T. P. 1985. Catullus and his world: a reappraisal. Cambridge: Cambridge University Press.

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Cynthia › Cíntia

por Paulo Martins

Cíntia é uma personagem do poeta elegíaco romano Propércio, que viveu entre 43 aEC e 17 EC, o que o posiciona entre os chamados poetas augustanos ou poetas da Época de Otávio Augusto. A poesia de Propércio é exclusivamente elegíaca, tendo como precursores, ora na poesia grega arcaica com Mimnermo de Colofon (630 aEC–600), ora na poesia helenística com o poeta e bibliotecário de Alexandria, Calímaco de Cirene (310 aEC–240), ora na poesia que o antecede em Roma, com os poetas novos (poetae noui) ou neotéricos, Catulo (84 aEC–57) e Cornélio Galo. A vertente elegíaca em Roma é, básica e não exclusivamente, erótica sem obviamente elidir sua vertente histórica, o lamento e seu viés etiológico, mas o que une esses autores, a saber, Galo, Catulo, Tibulo, Propércio e Ovídio é a construção de personagens femininas que servem como alvo de sua poesia, suas «amadas», respectivamente, Licóride, Lésbia, Délia, Cíntia e Corina. O século XIX as transformou, essas elaborações poéticas, essas mulheres, em personagens históricas dissimuladas por pseudônimos, crendo que o autor Apuleio (125 EC–170), no século subsequente, dissesse que fossem mesmo personagens históricas já que dizia que Catulo ocultava Clódia em Lésbia, Tícidas, Metela em Perila, Propércio, Hóstia em Cíntia e Tibulo, Plânia em Délia, um absoluto rumor (Apuleio. Apologia, 10). Queria, sim, Apuleio, autor formado na sofística, dizer que qualquer personagem dissimula alguém pelo simples fato de aquelas são verossímeis a essas, daí serem a expressão de um éthos.

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Essa leitura acabou por confundir a recepção do XIX e de boa parte do século XX, todas as edições de Propércio desde o século XV até o XIX, nas notas não davam nenhuma atenção aos nomes, pois sabiam ser poesia. Assim, ainda que pudessem dissimular uma personagem real e concreta, a persona permanecia como fictícia. Esse jogo entre ficção e realidade é um ato absolutamente deliberado de Propércio e dos outros elegíacos e líricos. Importa ao autor construir um jogo, ludus ou iocus, em que seus leitores acabam por se reconhecer em suas personagens ficcionais. Cíntia, portanto, é persona poética e não persona histórica, já que a distância entre a ficção e a história já fora enunciada por Aristóteles muito tempo antes (Aristóteles. Poética, 9). Mais do que isso, Cíntia e todas suas «companheiras» na poesia possuem características semelhantes, como bem demonstra Maria Wyke (2007). Curiosamente, pode-se dizer isso não só de sua «amada», mas de outras personagens citadas nos quatro livros de Propércio que pertenceriam ao seu «círculo», configuravam-se interlocutores na poesia: Augusto, Mecenas, Galo, Basso, Pôntico, Tulo, Laís, Frina, Taís e a própria Cíntia, afora, uma gama enorme de mitos que são associados às personagens como que, caracterizando o seu éthos, assim como próprio o auctor Propertius. Assim, ainda que a persona elegíaca exista na realidade, ela permanece sempre persona ficta (modelada). O que contribuiu para uma projeção moderna sobre essas personas dando-lhes existência histórica, foi a inobservância da ideia de verossimilhança, associada aos conceitos de fides (fidedignidade) e de éthos (caráter) (Martins 2009). Entretanto, a persona Cíntia não é tão trivial, ao contrário, ela é extremamente complexa e bem desenhada. Assim, ela não é apenas o decalque da realidade, mas a sobreposição de várias camadas de significação que vão sendo alteradas no decurso 1000

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dos quatro livros. Como que ela amadurecesse com o passar da narrativa poética (disjuntiva), ou, simplesmente, expressasse a volubilidade «ética» em estrito senso. Fato esse que permite ao poeta matizá-la O ponto essencial do qual devemos partir para compreendê-la é o fato de ser, antes de tudo, uma matéria poética. Propércio nos dá duas chaves: a primeira é chamá-la de uita (vida) e a segunda de nomeá-la scripta puella (menina escrita). Chamar alguém de «vida» é comum até nos nossos dias, entre pares amorosos isso é muito comum. Aquilo que para nós responde ao nível de importância do «outro» em relação ao «eu», em Propércio é, acredito, sinônimo de narrativa — pensemos no gênero historiográfico «vidas» ou «biói»— de uma elaboração linguística, um enunciado, afinal a vida não passa de uma sucessão de eventos conexos e consequentes, portanto ligados por nexo causal. Já no primeiro poema (Propércio. Elegias, I. 1. 1) ela é enunciada pelo nome. A primeira palavra do primeiro verso, do primeiro livro é Cynthia, no primeiro verso da segunda elegia, o poeta substituí seu nome, por uita (Propércio. Elegias, I. 2. 1). Essa utilização vai se alternando durante a construção da narrativa elegíaca. Propércio sinaliza, portanto, que seu leitmotiv é Cíntia e ela mesmo, sua vida e sua escritura, pois que enunciado, scripta puella, tanto é que, em alguns manuscritos, o primeiro livro aparece nomeado Cynthia. A confirmação desta relação Cíntia é oferecida no segundo livro (Propércio. Elegias, II. 10, 8) quando afirma ser Cíntia sua scripta puella, o próprio enunciado poético. Os dois primeiros níveis de significação de Cíntia estão colocados: ela é amada e ela é poesia. Exatamente da mesma maneira que Propércio é amante e poeta, mantendo-se, assim, a relação literária e existencial. Não satisfeito por esta demarcação simbólica e, obviamente, significativa, o autor/amante 1001

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está sujeito ao ciúmes e no primeiro livro ele expõe esse sentimento em poemas cuja sua interlocução são: Basso (Propércio. Elegias, I. 4); Pôntico (Propércio. Elegias, I. 7 e I. 9) e Galo (I. 5; I. 10; I. 13; I. 20 e I. 21). Assim, num livro que possui vinte e duas elegias, ele dedica oito elegias a figuras supostamente anônimas. Mas há que se lembrar que Cornélio Galo é poeta elegíaco; Pôntico seria um poeta épico, já que pontus (mar) é metáfora de poesia épica e Basso, um poeta «baixo» (é palavra cognata de bassus) de iambos. Assim, Cíntia está sendo assediada por poetas, representantes de gêneros poéticos confins à elegia. Temos então que a poesia/amada (Cíntia) está sendo ameaçada por personas que são simultaneamente rivais amorosos e êmulos poéticos de Propércio, poeta e amante. A polissemia está instaurada. Cíntia, poesia, está encurralada por poetas cortejadores. Cíntia, amada, está sendo posta à prova quanto a sua fidelidade. E assim termina o primeiro livro, Cíntia construída em duas dimensões. Ocorre a partir do início do segundo livro quando surge uma aproximação mítica que contribui para uma amada imaculada ou impoluta. Diz Propércio na primeira elegia do segundo livro que se está com ela nua na cama, em seguida, compõe longas Ilíadas — aplicação do lugar comum do ato amoroso com a guerra (a militia amoris — milícia do amor). E qualquer coisa que ela fale ou faça, ele, poeta e amante, do nada, nasce uma nobilíssima história (maxima ... historia). Corrobora-se nesse caso o caráter narrativo da história de amor, entretanto ao nomear «história» acaba por confundir a recepção em nome do jogo elegíaco. Mas se fosse história realmente, estaríamos em outro gênero que não a elegia. Entretanto, na terceira elegia deste livro (Propércio. Elegias, II. 3. 31–32), a beleza de Cíntia rivaliza com a de Helena de Troia. Se nos dedicarmos àquilo que Helena pensa de si mesma. É literal, chama-se de cadela (Homero. Ilíada, III. 180; VI, 344 1002

A presença das mulheres na Literatura e na História

e 356), então Propércio aponta para uma vulgarização de seu éthos, senão uma desmitificação de Cíntia. Isto é significativo. Na elegia II, 4, o ego-elegíaco, Propércio, —ele também é uma persona fictícia— se afasta de Cíntia, para na próxima elegia afirmar que Cíntia está na boca de Roma, sua fama libertina corre pela cidade. Na seguinte (Propércio. Elegias, II. 6), a rebaixa no limite do jambo. Compara Cíntia com prostitutas arquetípicas, Frina de Tebas, Taís de Atenas e Laís de Corinto. Se repensarmos os três níveis de significação para a tríade amada/poesia, amante/poeta e rival/êmulo, a vulgarização de Cíntia aponta para o entendimento de que Cíntia, muitas vezes, converte-se completamente em poesia. Assim, ao compará-la a Helena, ao dizer que ela está na boca de Roma (uma catacrese); ao colocá-la lado a lado das três meretrizes, Propércio constrói uma alegoria. Afirma na verdade que sua poesia «Cynthia», fez sucesso. Todos a leem. Todos a desejam. Sua poesia é manuseada. No século XVII, o poeta metafísico inglês, John Donne (1572–1663), escrevendo uma elegia, dizia só a poucos homens é dado «ler» uma mistress. Sua mulher também era uma poesia. Mas Propércio não foi tão inovador, um de seus êmulos, Catulo (87–57 aEC), valeu-se do mesmo expediente poético, com sua amada/poesia. Quando diz no poema 58 que Lésbia está nos becos e nas encruzilhadas felando os netos Remo, sendo o mesmo poeta/amante com a qual trocava milhares de beijos sem fim (Poema 5). A construção dos éthe na elegia principalmente entre Tibulo, Propércio e Ovídio é referencial, portanto essas mulheres elegíacas que para Paul Veyne, eram mulheres de vida irregular, nada mais eram do que metáforas para a poesia, ainda que decalcadas em mulheres que circulavam em Roma, como por exemplo Clódia, Hóstia ou Plânia, mais do que isso eram mulheres cultas e sábias (cultae et doctae) nas artes poesia, canto e dança e muito prestimosas também na ars amatoria. (Veyne 2013, 10) 1003

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fontes históricas APULEIO, 2017. Apologia; Florida; De de Socratis. Translated by Christopher P. Jones. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. ARISTÓTELES. 1995. Poetics. Translated by Stephen Halliwell. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. HOMERO. 2013. Ilíada. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin/Cia. das Letras. PROPÉRCIO. 2014. Elegias de Sexto Propércio. Tradução de Guilherme Gontijo Flores. Belo Horizonte: Autêntica. Bibliografia geral MARTINS, P. 2009. Elegia Romana: Construção e Efeito. São Paulo: Humanitas. VEYNE, P. 2013. Elegia Erótica Romana. Tradução de Mariana Achalar. São Paulo: Edunesp. WYKE, M. 2007. The Roman Mistress. Oxford: Oxford University Press.

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Dēlia › DÉLIA

por Maria Ozana Lima de Arruda

Délia é o nome de uma das amadas do poeta romano Álbio Tibulo (Albius Tibullus), associada com o ideal pacífico de vida amorosa no campo (Maltby 2002, 43–44). Délia, conforme retratada por Tibulo, seria uma mulher casada, pois aparece relacionada a um coniunx, ou, uma vez que não use os trajes típicos de uma matrona romana, poderia ser uma libertina, isto é, uma escrava liberta, possivelmente ligada em um relacionamento amoroso a um homem, rival do poeta (Maltby 2002, 44). Tibulo teria vivido aproximadamente entre 55 aEC - 19 aEC e escreveu em dísticos elegíacos uma obra inserida no Corpus Tibullianum, dividido em três livros, no qual encontram-se reunidas obras de três poetas: Tibulo, Lígdamo e Sulpícia. Os dois primeiros livros (o primeiro com 10 poemas e o segundo com 6 poemas) contém apenas elegias de Tibulo e Délia aparece como a amada do poeta apenas no primeiro (composto a partir de 32 aEC e publicado provavelmente em 27 ou 26 aEC), nas elegias 1, 2, 3, 5 e 6. O primeiro livro de Tibulo é também marcado pela forte influência das Éclogas de Virgílio, obra em verso hexamétrico na qual é retratado o ambiente pastoril, e na qual, pela primeira vez, Délia é usado também para referir-se à Diana (Virgílio. Éclogas, VII. 29), irmã de Apolo —que por sua vez, é chamado Délio–, aos quais, segundo a tradição, está devotada a ilha de Delos, ligada à noção de ambiente agrário intocado (Maltby 2002, 43–44). Ainda em relação ao nome Délia, alguns estudos relacionam os nomes das amadas dos elegíacos (além de Délia, Lésbia de Catulo, Cíntia de Propércio e Corina de Ovídio) a nomes associados à poesia; assim, o nome da amada de

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Propércio seria uma referência ao monte Cíntio, que fica em Delos, uma ilha devotada deus da poesia —Apolo—, e da qual viria a inspiração para o nome de Délia. Há ainda uma tentativa de relacionar os nomes das amadas dos poetas elegíacos a mulheres da época dos escritores, nesse sentido, seguindo o que faz com as outras amadas dos poetas elegíacos, Apuleio, escritor do primeiro século EC (Apuleio. Apologia, X), identifica Délia com uma mulher de nome Plânia, tradução do nome grego de Délia (δῆλος = planus), possibilidade que é atualmente refutada e considerada apenas um palpite de Apuleio baseado na equivalência do significado dos dois nomes (Maltby 2002, 44). Tibulo escreveu durante o que chamamos de período Augustano e fez parte do círculo de Valério Messala Corvino, sob cujo comando o poeta participou de algumas campanhas militares. As questões bélicas são abordadas nos poemas e servem de contraponto ao ideal de vida campestre desejado pelo poeta ao lado da sua amada, ainda que na pobreza, mas devotado ao amor, no qual ele é bom combatente e bom soldado (Tibulo. Elegias, I. 1. 75). É nesse contexto idílicoamoroso, sob a proteção das divindades ligados às atividades agrícolas, que Délia figura na primeira elegia de Tibulo, em que o poeta diz não se preocupar com louvores se estiver ao lado dela, com quem espera estar também na hora da morte, segurando-lhe a mão (Tibulo. Elegias, I. 1. 59–60). No entanto, nas elegias seguintes, percebe-se que a história de amor entre o poeta e Délia sofre adversidades e há sempre alguém que se interpõe (Martins 2016, 37): um homem com quem ela se relacione (Tibulo. Elegias, I. 2, 5), a alcoviteira (Tibulo. Elegias, I. 5) ou mesmo a porta trancada (Tibulo. Elegias, I. 2), de modo que o próprio poeta, na elegia 1.5, em mais um episódio de 1006

A presença das mulheres na Literatura e na História

separação, lembra os versos de amor bucólico por ele cantados, retratando-os como fruto da sua imaginação (Tibulo. Elegias, I. 1. 19–36). Além do já mencionado Apuleio, Ovídio, poeta contemporâneo a Tibulo, também menciona Délia nos seus Amores, em um poema no qual lamenta a sua morte prematura, ela é apresentada como o primeiro amor de Tibulo (Ovídio. Amores, III. 9. 31, 51–52), em referência ao fato de que ela é celebrada no primeiro livro, em contraste com Nêmesis, a puella do livro 2. Fontes históricas APULEI PLATONICI MADAURENSIS OPERA QUAE SUPERSUNT: Pro se de magia liber (Apologia). 1972. Ed.: Rudolf Helm. Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana, v. 2, pt. 1. Teubner. VERGILIUS. 1972. P. Vergilius Maro. Eclogae (P. Vergili Maronis Opera). Oxford: Oxford. OUDIUS. 1977. Amores (Ovid in Six Volumes). Cambridge: Harvard University Press. SEXTUS PROPERTIUS ELEGIARUM LIBRI IV. 2006. Edited: P. Fedeli. Müchen & Leipzig: De Gruyter - Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. TIBULLUS. 1971. Albii Tibulii Aliorumque carminum libri tres. Ed.: F. W. Lenz and G. K. Galinsky. Leiden: Brill. Bibliografia geral BACA, A. R. 1968. The role of Delia and Nemesis in the Corpus Tibullianum, Emerita - Revista de Linguística y Filología Clásica, vol. 36, p. 49–56. KENNEDY, D. 2017. What’s in a name? Delia in Tibullus 1.1, The Classical Quarterly, vol. 67, n. 1 p. 193–98. 1007

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

MALTBY, R. 2002. Tibullus: Elegies. Text, introduction and commentary. Cambridge: Francis Cairns. MARTINS, M. H. A. 2016. A Elocução do Amor em Tibulo. Dissertação de Mestrado em Letras defendida na Universidade Federal do Ceará — UFC.

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Corinna › Corina (Ovidiana)

por Guilherme Horst Duque

Corina (Cŏrinna, ae, f. [Gr. κόρη]) é a personagem criada por Ovídio e celebrada pelo poeta ao longo de seus três livros de elegias eróticas, os Amores, seguindo a tradição estabelecida por Catulo, Galo, Tibulo e Propércio de dedicar elegias amorosas a uma puella literária. Seu nome, derivado do grego κόρη — kore (menina), é também uma alusão à poetisa lírica grega homônima do século V aEC. A primeira aparição de Corina nos Amores se dá na quinta elegia do primeiro livro (Am. I, 5.9), onde se lê o desenrolar de uma união sexual em uma tarde quente. O poeta se encontra em um quarto privado, parcialmente escuro e plácido, quando a jovem aparece de cabelos soltos, vestindo apenas uma túnica translúcida, e, após um breve jogo erótico de procura e resistência, o casal se entrega aos prazeres do sexo. A atmosfera onírica dessa primeira aparição da personagem marcará o caráter elusivo da puella ao longo das elegias. Nos Amores, a presença de Corina parece muitas vezes periférica, até mesmo nos poemas em que ela figura como personagem central. Entre eles, destaca-se Am. II, 13, em que a jovem encontra-se em risco de vida após submeter-se a um procedimento abortivo (tema raro na poesia augustana). Ovídio abre a elegia descrevendo o estado delicado da saúde de Corina, demonstrando ao mesmo tempo preocupação e ira, pois a tentativa de aborto teria se dado sem o seu conhecimento. No sétimo verso do poema, no entanto, o poeta se volta a divindades egípcias a quem pede socorro, e o poema se torna um catálogo de deuses à moda alexandrina. Corina retorna apenas nos versos finais, em que Ovídio promete dedicar uma oferta aos deuses, tendo seu pedido atendido,

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

com a inscrição (Am. II, 13, 25): «seruata Naso Corinna» (Nasão, pela cura de Corina). Semelhantemente, Corina também tem um papel importante em Am. II, 6 (elegia em que se lamenta a morte do papagaio da jovem, seguindo o modelo de Catul. II), em Am. II, 11 (em que o poeta lamenta a ausência da jovem, que se encontra em viagem, e os perigos de se partir em jornadas ultramarinas) e em Am. II, 12 (em que o poeta comemora o acesso que conquistou a intimidades com a jovem). Em todos esses casos, porém, a jovem não é mais que o mecanismo introdutor de um outro tema que será desenvolvido pelo poeta, a saber, a morte do papagaio, a invectiva à ausência da amante, e a celebração da habilidade de sedução do poeta, respectivamente. Outras breves menções anedóticas de Ovídio a Corina podem ser encontradas em Am. I, 11; II, 8; II, 17; II, 19; III, 1; III, 7; e III, 12, além de duas outras passagens na Ars Amatoria (Ars III, 538) e nos Tristia (Tr. IV, 10, 60). De fato, muitas outras elegias dos Amores relatam situações pelas quais Ovídio passa com uma amante não nomeada que poderia ser interpretada como Corina. No entanto, em mais de uma ocasião o poeta alude a relações que teve com outras mulheres (cf. por exemplo Am. II, 10 e III, 7, 23–24), o que nos impede de afirmar definitivamente que em todos os encontros eróticos reportados nos Amores a amante anônima seja de fato Corina. A historicidade das puellae elegíacas é um tema debatido desde a Antiguidade clássica, e em duas das menções à Corina listadas acima Ovídio demonstra que sua personagem foi submetida ao mesmo escrutínio da curiosidade popular (cf. Am. II, 17, 28–30 e Ars III, 538). Seguindo comentadores e poetas antigos, o entendimento comum teria sido de que por trás dos nomes usados pelos poetas elegíacos em seus poemas existiriam mulheres reais com quem os poetas teriam casos amorosos. Tal é a interpretação registrada, por exemplo, por 1010

A presença das mulheres na Literatura e na História

Apuleio em Apologia (10.2–4), que identifica Clódia (Lésbia), Hóstia (Cíntia) e Plânia (Délia) como as amantes históricas de Catulo, Propércio e Tibulo — note-se, porém, que a identidade de Corina não figura na lista. Evidentemente, não temos meios de comprovar se tais equivalências seriam factuais ou não, mas desde meados da década de 1980 a crítica literária tem enfatizado a textualidade da puella elegíaca, lendo-a como um recurso literário, um elemento estrutural do gênero elegíaco sem vínculos com a realidade. Esse é um traço que marca, por exemplo, os estudos de Maria Wyke, Paul Veyne e Duncan F. Kennedy em meados das décadas de 1980 e 1990. Estudiosos mais recentes, no entanto, como Sharon L. James, buscam conciliar a ficcionalidade dessas personagens com as condições materiais históricas do período em que os textos que as imortalizaram foram escritos. Em termos gerais, o status social das puellae é ambíguo. Conforme aponta Sharon L. James (2003, IX), elas são mulheres socialmente independentes de uma figura masculina, mas dependentes financeiramente dos homens que seduzem. O jogo elegíaco, portanto, seria a tensão entre as necessidades materiais das jovens e a resistência dos poetas em suprir tais necessidades. Nas raras vezes em que as condições materiais das puellae são mencionadas, o que se tenta enfatizar são geralmente artigos de luxo ou supérfluos. Corina, por exemplo, é dona de duas escravas cuja função destacada é arrumar seu cabelo, Nape (Am. I, 11) e Cipássis (Am. II, 7; 8); além das escravas, ela também tem um papagaio de estimação, personagem principal de uma elegia construída em forte diálogo com Catulo II (Am. II, 6). Se ampliarmos o escopo do inventário para incluir uma elegia contendo uma amante que pode ou não ser identificada como Corina, temos ainda tratamentos capilares e compra de perucas importadas (Am. I, 14) sugerindo um acesso pelo menos moderado a artigos de luxo. 1011

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Mas apesar da dependência financeira dos amantes que, conforme as convenções do gênero, seriam explorados por elas, as puellae desfrutam de certa liberdade social, tendo o poder de rejeitar amantes quando convém (Am. I, 12; II, 17) e cultivar múltiplos romances simultâneos como forma de potencializar os lucros (cf. Am I, 8). Por isso, elas são com frequência comparadas às meretrizes cômicas. No entanto, é importante notar que os acordos de compensação financeira em troca de favores sexuais, cujos termos são geralmente claros na comédia, são muito mais voláteis na elegia. Apesar dos indícios de que as puellae tenham uma expectativa de ganho material em seus romances, os termos da transação não são prescritos ou combinados antecipadamente. O acordo é conduzido informalmente em um jogo de solicitação e resistência entre a amante e o poeta (cf. e.g. Ars I, 417–436). A única menção a uma espécie de contrato formal entre poeta e puella se encontra em Propércio (III, 20), que, na interpretação de Friedrich Leo (1900), se trata de uma elevação dos contratos com meretrizes típicos da comédia ao campo da elegia, onde o objeto do contrato deixa de ser os serviços contratados por meio do pagamento de um valor acordado, passando a ser promessas de fidelidade eterna (cf. por exemplo Am. III, 12, 16). A maior parte das elegias protagonizadas por Corina encontram-se no segundo livro dos Amores, em especial no conjunto que se estende de Am. II, 7 a Am. II, 14. Diferente das demais menções anedóticas à jovem encontradas nos livros I e III (cf. lista no primeiro parágrafo), esse grupo de elegias parece narrar uma série de eventos possivelmente conectados revelando um período turbulento na relação de Corina com Ovídio. Am. II, 7 e 8 indicam que o poeta estaria tendo um caso com Cipássis, uma das escravas de Corina, tendo sido descoberto e confrontado pela jovem. Ele se defende das acusações tentando convencê-la de que ele não teria atração por 1012

A presença das mulheres na Literatura e na História

uma escrava, mas, embora ele suponha que tenha sido convincente (Am. II, 8, 9–10), as elegias seguintes retratam um amante torturado pelo próprio amor (Am. II, 9a e 9b) e indeciso entre duas amantes (Am. II, 10), até que em Am. II, 11, Corina parte em uma viagem apesar dos protestos do poeta. É importante esclarecer que o texto em si não faz nenhuma ligação explícita entre os episódios, mas é possível relacioná-los tendo em mente o lugar comum da viagem como tentativa de se escapar a um amor danoso (ver, por exemplo, Plauto Merc. 80–84, e Ovídio Rem. 213–224). Os eventos de Am. II, 12, elegia seguinte, reforçam tal hipótese, pois o poeta celebra o acesso renovado à jovem, que presumivelmente teria retornado. À união do casal, então, seguem-se as elegias da tentativa de aborto a que Corina se submete, e embora Ovídio inicialmente presuma ser o pai do feto interrompido, nos versos 5 e 6 ele põe em dúvida a própria certeza da paternidade. Entre todas as elegias eróticas romanas que chegaram até nós, Am. II, 13 e 14 são as únicas que retratam uma tentativa de aborto, bem como suas consequentes complicações. Lidas no contexto de um momento turbulento da relação de Ovídio e Corina, levando-se em consideração a própria viagem da jovem, o papel de tais elegias na narrativa dos Amores fica mais claro. Menções a Corina fora do corpus ovidiano são extremamente limitadas mas existem. Marcial refere-se a ela em três epigramas (Epigr. V, 10; VIII, 73 e XII, 44), nas três ocasiões reportando-se à obra de Ovídio, cumprindo, assim, a promessa de Ovídio em Am. I, 3 de que o seu nome e o de sua amante estariam para sempre ligados. Fontes históricas APULEIUS. 2017. Apologia, Florida, De Deo Socratis. Translated by C. P. Jones. Cambridge, MA: Harvard University Press. (Loeb Classical Library 534). 1013

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

CATULLUS. 2010. Carmina. Edited by R. A. B. Mynors. Oxford: Oxford University Press. OVID.1915. Tristium Libri Quinque, Ibis, Ex Ponto Libri Quattuor, Halieutica Fragmenta. Edited by S. G. Owen. Oxford: Oxford University Press. OVID. 1995. Amores, Medicamina Faciei Feminae, Ars Amatoria, Remedia Amoris. Edited by E. J. Kenney. Oxford: Oxford University Press. PLAUTUS. 2011. Mercator; Miles Gloriosus; Mostellaria. Edited and translated by Wolfgang De Melo. Cambridge: Harvard University Press, vol. 3. (Loeb Classical Library 163). PROPÉRCIO. 2014. Elegias de Sexto Propércio. Tradução de Guilherme G. Flores. Belo Horizonte: Autêntica. Bibliografia geral JACOBY, F. 1905. Zur Entstehung der Römischen Elegie, Rheinisches Museum, p. 38–105. JAMES, S. L. 2003. Learned Girls and Male Persuasion: Gender and Reading in Roman Love Elegy. Los Angeles: University of California Press. KENNEDY, D. F. 1993. The Arts of Love: Five Studies in the Discourse of Roman Love Elegy. Cambridge: Cambridge University Press. LEO, F. 1900. Elegie und Komödie, Rheinisches Museum,p. 604–611. VEYNE, P. 1983. L’élegie érotique romaine. Paris: Le Seuil. WYKE, M. 1994. Taking the woman’s part: engendering Roman love elegy, Ramus, n. 23, p. 110–128.

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Dipsas › Dipsas

por Gabriel Paredes Teixeira

Dipsas é uma personagem fictícia presente no oitavo poema do primeiro livro de Amores, de Ovídio. A obra pertence à tradição da elegia erótica latina, que possui como uma de suas principais características a grande ênfase às aventuras e desventuras amorosas do poeta (Citroni et al. 2006, 548). Dipsas é apresentada como uma velha alcoviteira (lena) que tenta convencer a amada do poeta a abandoná-lo em prol de amantes ricos. A velha é descrita como uma feiticeira conhecedora das artes mágicas e seus conselhos à jovem amada (que Ovídio não nomeia no poema, mas que podemos crer tratar-se de Corina) ocupam a maior parte dos versos. A presença da persona do autor no interior da narrativa e sua interação com a lena nos versos finais do poema sugerem que as ações narradas sejam contemporâneas à atividade literária de Ovídio, o que as localizariam durante o período augustano e, provavelmente, em Roma. Os eventos se passam na casa da amada do poeta, que, escondido atrás da porta, ouve todo o monólogo da velha e os conselhos dirigidos à jovem. A posição passiva do autor, que é transformado em mero espectador das palavras da lena durante a maior parte do poema (v. 23–108), enfatiza o poder persuasivo da velha. Esse dado é especialmente relevante quando considerado tratar-se do poema mais longo e que ocupa a posição central no primeiro livro de Amores (que é composto de um total de 15 poemas). O destaque dado à Dipsas pela narrativa sugere que a lena seja uma verdadeira antagonista ao narrador na disputa pelo amor da jovem, que ela tenta aliciar através da retórica — mesma ferramenta utilizada pelo poeta no decorrer da obra (Gross 1996).

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O nome Dipsas é derivado do verbo grego διψάω - dipsáō, que significa «ter sede» ou «estar sedento». Conforme o poema, o nome estaria de acordo com o costume da velha de embebedar-se. Velhas bêbadas (anus ebriae) constituem um tema recorrente na literatura latina (Pollard 2008, 138), tendo sido utilizado por Ovídio nos Fastos (II. 571–582), para caracterizar uma velha feiticeira. O termo dipsas, em latim, também era utilizado para designar um tipo de serpente, cuja picada era capaz de gerar sede extrema em suas vítimas, o que sugere uma natureza traiçoeira da personagem, que é comparada a um animal peçonhento (Cokayne 2003, 146). As capacidades mágicas atribuídas à Dipsas pelo poema são várias: a reversão do curso das águas dos rios, a utilização de ervas, da secreção das éguas no cio (substância conhecida como hippomanes e utilizada para a confecção de poções de amor) e do rhombo (instrumento composto de fios ao redor de um fuso, utilizado para atrair o amor), o controle do clima e dos astros, a invocação de fantasmas e a capacidade de transformar-se em ave. Além disso, os versos atribuem à velha pupilas duplas capazes de lançar raios. A caracterização de Dipsas e seus poderes mágicos a aproxima de outras feiticeiras da literatura latina, como as velhas Canídia e Ságana (de Horácio) ou as feiticeiras da Tessália, representadas por Ericto (de Lucano), Méroe e Pânfila (de Apuleio). A lena que tenta aliciar a amada e é descrita como uma feiticeira constitui um tópos da elegia latina. A fonte mais antiga desse tema é um poema de Tibulo (Elegias, I. 2), que pode ter servido de inspiração para os poemas semelhantes de Propércio (Elegias, IV. 5) e de Ovídio (Amores, I. 8) (Maltby 2009, 281). O autor conscientemente aproxima Dipsas de Circe, ao afirmar que a velha é conhecedora dos «encantamentos de Eeia» (Aeaea carmina) — ilha habitada pela famosa feiticeira grega (Homero. Odisseia, X. 135–6). Contudo, a caracterização da 1016

A presença das mulheres na Literatura e na História

velha recorre mais aos temas populares latinos sobre a feitiçaria do que aos gregos. A presença da pupila dupla, a invocação de fantasmas, a transformação em ave e a utilização do rhombo para atrair o amor são crenças bastante difundidas na cultura latina com relação à feitiçaria. A crença de que mulheres com a pupila dupla pudessem gerar destruição através do olhar pode ser encontrada na enciclopédia escrita por Plínio, o antigo (História Natural, VII. 18). Transformações de feiticeiras nas aves striges —corujas que se alimentavam de sangue, principalmente de crianças— são apresentadas por Ovídio (Fastos, VI. 131–140) e Petrônio (Satyricon, LXIII). A utilização do rhombo como uma ferramenta mágica para atrair o amor foi representada na poesia de Propércio (Elegias, III. 6. 25) e de Marcial (Epigramas, IX. 29. 9). A invocação de fantasmas é outra prática recorrente das feiticeiras e podia ser utilizada para vários fins, como a previsão do futuro (cf. Horácio. Sátiras, I. 8; Lucano. Farsália, VI. 507–830) ou a realização de vinganças e assassinatos (Apuleio. Metamorfoses. IX. 29). Embora tenha sido apresentada em apenas um poema, alguns autores enxergam em Dipsas a inspiração para «a Velha» (la Vieille), personagem do poema medieval Roman de la Rose, de Jean de Meung (séc. XIII). No poema, profundamente influenciado pela obra de Ovídio, a Velha defende a utilização da persuasão pelas mulheres para a obtenção de presentes e favores de amantes ricos, em um discurso muito semelhante àquele utilizado por Dipsas para tentar convencer Corina. No romance de Meung, a Velha cita Ovídio, ao afirmar que o amor do poeta vale menos do que algumas bebidas — o que também a aproxima de Dipsas, com sua caracterização como uma anus ebria e seu desprezo pelo poeta (Fyler 2009, 414). 1017

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

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A presença das mulheres na Literatura e na História

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Canidia et Sagana › Canídia e Ságana

por Semíramis Corsi Silva

Canídia e Ságana são duas personagens feiticeiras (veneficae, sagae, anus, maleficae) criadas por Quinto Horácio Flaco (65–8 aEC), poeta latino que mais escreveu sobre o tema da magia. Elas aparecem nas Sátiras (publicadas entre 35 e 30 aEC) e nos Epodos (publicados em 30). O Livro I das Sátiras foi o primeiro publicado por Horácio, embora seja possível que alguns Epodos tenham sido escritos antes de algumas Sátiras. Não podemos precisar, portanto, a ordem exata de aparição dessas personagens, havendo pesquisadores que apontam o Epodo 5 como tendo sido escrito antes da Sátira I, 8, os dois principais poemas em que Canídia e Ságana são protagonistas (Tupet 1975, 318; Paule 2017, 44). Nos Epodos, a primeira menção à Canídia está no Epodo 3, quando ela é referida como uma mulher pérfida que produz venenos/magias (venena). Depois disso, Canídia aparecerá no Epodo 5. Nesse poema dramático, Horácio relata a morte cruel de um menino para a preparação de uma poção mágica (venenum, potio) a fim de conquistar um homem chamado Varo. Lucano (Farsália, 6, 558–564), também faz alusão a esse tipo de crime relacionado a feiticeiras como Ericto, o que parece ter sido uma crença popular entre os romanos. A morte de uma criança é assassinato forçosamente premeditado, recaindo sobre a Lex Cornelia de sicariis et veneficis, que vigorava na época de escrita dos poemas e que pautou o crime contra praticantes de magia (venefici/veneficae). Uma inscrição encontrada no Esquilino em Roma, no túmulo de Iucundus, uma criança de

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quatro anos, nos remete à crença em assassinatos de crianças realizados por feiticeiras (CIL, VI, 19747, Roma, dat. 1 a 50 EC). Voltando ao Epodo 5, outras feiticeiras aparecem na cena: Véia, Fólia e Ságana. Horácio apresenta o trabalho de feiticeiras em associação, havendo uma hierarquia entre elas. As feiticeiras apresentam características em comum, mas também traços de individualismo, há poderes diferenciados respeitados. Elas também apresentam certo profissionalismo, pois conhecem bem os gestos que compõem o ritual. Canídia se destaca nesse poema e, da mesma forma, ela aparecerá mencionada sozinha novamente nas Sátiras II, 1 e II, 8 e no Epodo 17, esse último sendo um poema dedicado somente a ela, quando o poeta se redime perante à feiticeira (verso 1 ao 52) e lhe deixa falar (verso 53 ao 81). Canídia aparece com Ságana também na Sátira I, 8, considerada pelos críticos como a sátira de caráter mais agressivo escrita por Horácio. Diferentemente do Epodo 5, a Sátira I, 8 não possui um tom trágico e sim um humor satírico. Nesse poema, Horácio imagina um tronco de figueira, no qual foi esculpida a figura do Deus Priapo, assistindo a cena em que Canídia e Ságana procedem encantamentos (carmina). O local do ritual é o Esquilino, antigo cemitério de escravizados e plebeus que Mecenas, o patrono das artes da época do imperador Augusto (27 aEC — 14 EC), transformou em um jardim, onde Canídia e Ságana vão em busca de ossos e ervas maléficas e a fim de atrair a alma dos mortos (manis/animas/umbrae) para um ritual necromântico. Como no Epodo 5, na Sátira I, 8, as feiticeiras se encontram em um grande estado de agitação. Segundo Anne-Marie Tupet (1976, 293), as feiticeiras da Antiguidade conheciam as propriedades de drogas tóxicas de origem vegetal, o uso dessas drogas poderia ser a causa de estados de transe e movimentação 1022

rápida durante os rituais. Dessa maneira, tal representação mais do que uma fantasia do poeta poderia reproduzir uma realidade da feitiçaria antiga. Também na Écloga 8, de Virgílio, pode ser notado este estado de agitação da feiticeira. Tupet (1976, 301) acrescenta que esse é um gesto ritual comum, praticado pelas Bacantes, por exemplo, que usavam vinho para entrar em êxtase. As drogas, o haxixe em especial, eram absorvidas como poções, fumo ou unguentos. Outro elemento interessante das feiticeiras literárias que Horácio não deixa de utilizar em suas personagens é seu estado animalesco em algumas ocasiões. Canídia e Ságana uivam (ululantem), escavam a terra com as unhas e rasgam um cordeiro negro com os dentes na Sátira I, 8. E Horácio compara Ságana a um javali (aper) em fuga no Epodo 5. Na Sátira I, 8, Horácio coloca Canídia, como no Epodo 5, com os cabelos em desordem, o que talvez fosse uma forma usada pelo poeta para lhe conferir um aspecto horrendo e até engraçado. Canídia usa uma longa toga preta e tem os pés descalços. Assim, já em Horácio notamos um estereótipo comum de feiticeiras que dura até os dias atuais em certas representações. No final da Sátira I, 8, o espantalho do deus Priapo não aguenta mais ver a cena e emite sons engraçados para causar o aspecto cômico, parecidos com um flato. Com esse som, Priapo coloca em fuga as duas feiticeiras. Aqui Horácio as expõe ao ridículo. Canídia perde os dentes e Ságana, de cabelos arrepiados, deixa o material que elas recolheram cair de seus braços. O fato de os dentes de Canídia caírem pode nos indicar o uso de uma dentadura, o que poderia se referir à personagem como uma mulher velha (Tupet 1976, 290). Portanto, as feiticeiras de Horácio são mulheres idosas, um modelo comum em outras representações de feiticeiras da literatura latina.

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Canídia terá mais duas pequenas aparições nas Sátiras. Na Sátira II, 1, ela é mostrada como aquela que usa do veneno de Albúcio, um romano conhecido, possivelmente, como tendo envenenado sua esposa. A aparição de Canídia na Sátira II, 8, nos últimos versos desse que é o último poema dos dois livros de Sátiras, encerra os poemas satíricos, sendo que ela aparece nessa última Sátira como uma mulher capaz de contaminar alimentos. A identidade da possível Canídia que teria inspirado Horácio suscitou diversas hipóteses. Uma delas seria que Canídia era Cecília de Como, que aparece em poemas de Catulo sob o pseudônimo Mecília (Herrmann, 1958). Em outra interpretação, também de Leon Herrmann, Canídia poderia ser a irmã de Canídio Craso, um político romano da gens Canídia que se tornou cônsul em 40 aEC (Tupet 1976, 294). Ou, ainda, ela poderia ser Cecília, filha de Clódia Metelli (Paule 2017, 5). Conforme outra hipótese bastante popular e advinda de informações de Pompônio Porfírio, um escritor do século II EC que comenta as obras Horácio, Canídia seria uma fabricante de unguentos napolitana chamada Gratídia, talvez uma ex-amante que o poeta tinha raiva. Assim, os unguentos de Gratídia seriam identificados com poções mágicas pelo poeta. Horácio não a atacaria diretamente porque isso poderia lhe trazer problemas legais. Sendo possível, por isso, que Horácio tenha empregado uma prática usada pelos poetas romanos de dar às mulheres sobre as quais escreviam um pseudônimo de mesmo padrão métrico do nome real. Maxwell Paule (2017, 3), no entanto, acredita que essa informação de Porfírio pode ter confundido os estudiosos, não havendo nenhuma Gratídia por trás da Canídia literária. Para esse pesquisador, é mais interessante abordar Canídia como uma personagem puramente ficcional, cujos detalhes foram moldados de forma consciente pelo poeta. 1024

A presença das mulheres na Literatura e na História

Já de acordo com estudos filológicos, o nome de Canídia poderia vir de canis (cão, cadela). Ou, talvez, do termo canus, branco, acrescentado ao sufixo idius/idia, dando a ideia de ser uma mulher de cabelos brancos, já envelhecida, no sentido figurado (Tupet 1976, 296). Ságana, por sua vez, poderia ter seu nome vindo do vocábulo saga/ae, que significa feiticeira em latim, dessa maneira, ela seria a feiticeira por excelência. Segundo Cícero (De Divinatione, I, 30), sagire significava ter uma percepção profunda e, por isso, mulheres idosas eram chamadas de sagae anus, aquelas que conheciam muitas coisas, também os cachorros (canes) podiam ser chamados de sagaces. Já Pompônio Porfírio diz que Ságana teria sido uma liberta de um senador chamado Pompônio (Tupet 1976, 297). Ságana é referida na Sátira I, 8 como Sagana maiore, o que poderia dar-nos a entender que ela era uma mulher velha ou que haveria duas feiticeiras com esse mesmo nome, uma mais jovem e a mais velha que acompanha Canídia na Sátira I, 8. Diante do que foi apresentado, acreditamos que, mesmo que filólogos e demais estudiosos tentem encontrar pessoas reais ou raízes para os nomes das personagens, é importante perceber como Horácio lhes atribui um comportamento que acredita ser próprio de feiticeiras, lhes caracterizando como uma espécie de modelo de feiticeira dentro de um novo topos literário, uma vez que, diferentemente das belas feiticeiras da literatura grega, Canídia e Ságana inauguram o modelo da feiticeira feia e velha que será comum na literatura romana a partir de então. Além disso, as feiticeiras de Horácio refletem uma crença generalizada de sua época na capacidade feminina em agir de maneira sobrenatural. Há, dessa forma, elementos interessantes de gênero que podem ser altamente explorados na construção dessas personagens. 1025

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Sobre o momento histórico de escrita e publicação dos poemas, por volta de 40 e 30 aEC, sabemos que em 33 aEC, Agripa, então edil, proíbe a permanência de astrólogos e magos em Roma. Pouco tempo depois, em 27 aEC, a ascensão de Otávio como Augusto e Príncipe inaugura um novo ciclo, em que o governante se vê como único intérprete dos deuses (Grimal 1992, 37) e passa a promover uma série de pautas morais. Era um período de transformações políticas intensas, no qual era preciso controlar os romanos, seus atos e as grandezas do Império conquistado. Assim, a magia (veneficia, maleficium, carmen, ars magica) estaria como a cobiça, a avareza, o adultério, também criticados por Horácio em sua obra, colocando em risco o patrimônio ético sobre o qual se estrutura a sociedade romana. Ao escrever seus poemas, Horácio estabelece um diálogo com a camada social que faz parte e mostra que não admite ser a magia algo masculino, isso contraria o ideal guerreiro romano, indo em oposição à construção do austero, resistente e verdadeiro cidadão de Roma. As ímpias práticas de magia se opunham aos costumes ancestrais (mores maiorum), só podendo ser uma prática de mulheres, consideradas desmedidas, especialmente no que diz respeito à libido e ao amor. Porém, mesmo sendo considerada uma prática feminina, a magia de Canídia e Ságana era cruel e digna de maldição, como mostra as palavras do menino morto no Epodo 5, mas também era ridícula e motivo de risada, como vemos na Sátira I, 8. Fontes históricas CICERO. 1964. De Senectute, De Amicitia, De Divinatione. Translated by William Armistead Falconer. Cambridge/ London: Harvard University Press (Loeb Classical Library). 1026

A presença das mulheres na Literatura e na História

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Mēdēae Latīnae › Medeias Latinas

por Fernanda Messeder Moura

À figura mítica de Medeia (Μήδεια) associam-se quatro atributos míticos essenciais: sua genealogia divina, sua condição de estrangeira, o uso de feitiços e o assassinato dos próprios filhos. A expansão geográfica e cultural das narrativas ligadas à Medeia, desde a sua proveniência da região da Cólquida, na costa do Mar Negro (conforme, por exemplo, Píndaro, ca. 518 aEC - 438 aEC, na quarta ode pítica), até a reelaboração da sua figura pelos latinos, com acréscimos de aspectos ritualísticos de tradição etrusca (como na tragédia Medeia ou Argonautas, de Ácio, 170 aEC - ca. 86 aEC) e a forma com que esses atributos trágicos e místicos foram acrescentados por autores posteriores leva mesmo à necessidade de se falar em Medeias, no plural. As fontes documentais antigas do mito de Medeia estendem-se desde os séculos VIII aEC até depois do século I EC, ou seja, dos primórdios da literatura em grego, com Hesíodo (ca. 700 aEC), até poetas dos últimos estágios da literatura da antiga Roma, como Sêneca (ca. 4 aEC - 65 EC) e Valério Flaco (ca. 45 EC - ca. 90 EC). Passam ainda por diversos gêneros, como as odes de Píndaro, a tragédia de Eurípides (ca. 480 aEC - ca. 405 aEC) e, em latim, de Ênio (239 aEC ca.169 aEC), Ácio, Pacúvio (ca. 220 aEC - 130 aEC), Sêneca e Ovídio (43 aEC-17 EC), este último também a referir-lhe em versos líricos e épicos, e incluem alusões esparsas seja em prosa seja em verso, em Plauto (ca. 254 aEC - ca. 184 aEC), Cícero (106 aEC - 43 aEC), Horácio (65 aEC - 8 aEC),

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Propércio (ca. 50 aEC - ca.15 aEC), Juvenal (ca. 55–60 ECca.125 EC), Quintiliano (35 EC - ca. 100 EC) e Tácito (56 EC - ca.120 EC). Medeia é um dos mitos ligados pela genealogia à primeira geração dos deuses gregos, àquela dos titãs, conforme, historicamente, registros poéticos primeiros (Teogonia 956–960). Ela é filha de Idia, uma Oceânide (cujos pais são os titãs Oceano e Tétis), e de Eetes, rei da Cólquida, ele próprio filho de outra Oceânide, Perseis, e de Helios, deus sol. Em outras fontes, Hécate é apresentada como mãe de Medeia. Aspecto central ao mito de Medeia e às suas adaptações pelos poetas antigos é seu amor por Jasão, herói que liderou os Argonautas, uma geração antes da Guerra de Troia, em busca do velo de ouro. Hesíodo atribuiu à própria deusa do amor, Afrodite, a união de Medeia e Jasão (Teogonia, 961–962); Píndaro reduz a intervenção de Afrodite à divindade que traz do Olimpo a ave com a qual ensinará, a Jasão, o artifício pelo qual será ele a despertar o amor de Medeia e a fazê-la perder o respeito pelos próprios pais (Pítica 4, 213–223). Dois atributos são recorrentes na figuração mítica de Medeia em seu tratamento poético: a ligação de sua condição de estrangeira com feitiços a partir de elementos da natureza (por exemplo em Píndaro, Pítica 4, 233) e sua condição de assassina (Pítica 4, 250). Quanto ao uso da magia, a relação de Medeia com Jasão fê-la ser aos poucos inserida na própria narrativa dos Argonautas: em Homero (ca. 750 aEC), apenas o nome de Jasão é evocado por outra feiticeira, Circe, tia de Medeia, na Odisseia (12. 69–72). Já no período helenístico, Apolônio de Rodes (ca. 295 ᴀEC), nas Argonáuticas, apresenta Medeia como sacerdotisa de Hécate (Arg. 3. 250–255), atribuindo à ação de Eros, com sua flechada, o despertar do amor por Jasão em Medeia (Arg. 3. 284). Antes, Píndaro concedera a Medeia fala profética, na Ilha de Tera (Pítica 4, 13–56), 1030

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acerca da bem-sucedida passagem da nau de Jasão por entre as rochas Simplégades, e atribuíra a ela a preparação dos antídotos (233), que garantiriam a vitória de Jasão. Na tragédia latina, Sêneca enfatiza a escolha das ervas por Medeia (Medeia, 705–730) e expande geograficamente, para muito além da Grécia, para margens dos rios que delimitam as fronteiras do mundo romano, desde o Danúbio até o Tigre (Boyle 2014, 309), as localidades em que ela as busca para sua magia. Ao tratamento trágico do mito de Medeia, a condição de assassina se mostra central. Eurípides constrói o enredo de sua tragédia a partir da chegada de Medeia em Corinto, onde reinava Creonte e onde habita sua filha, Glauce, dada em casamento a Jasão, após sua expulsão de Iolco, região da Tessália, ao lado de Medeia, que fugia por ter sido responsável pela morte de Pélias, rei de Iolco. Exacerba-se, com Eurípides, a figura da assassina, que, nesta versão, além de matar Glauce, torna-se filicida, em vingança à perfídia de Jasão, que aceita receber a filha de Creonte como esposa em detrimento de Medeia. Eurípides ainda retrata Medeia em fuga bem-sucedida após os crimes, por intervenção de seu avô, Helios, que lhe permite fugir pelos ares em uma carruagem por ele enviada para tanto. Conforme referência de Cícero (Da República 3.9.14), o tragediógrafo Pacúvio retratou em latim essa carruagem em que foge Medeia como tendo sido levada por serpentes aladas. A recepção do mito de Medeia pelos romanos e sua expansão em uma Medeia latina criam episódios que oferecem aos séculos seguintes um panorama expandido em relação à apresentação do mito na literatura grega, num movimento que vai da Cólquida a Iolco, atravessa Corinto, passa por Atenas, e retorna a Cólquida. Dos fragmentos que dispomos da tragédia de Ácio, Medeia ou Argonautas, além de recuperar-se a associação de Medeia à arte dos prodígios, soma-se a inspeção das vísceras, prática divinatória empregada pelos romanos 1031

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via tradição sobretudo etrusca, e ganha destaque a reverência com que se endereça a Medeia o irmão, Absirto, ao tratá-la como divindade (dia Medea). Ainda na tradição das antigas peças trágicas em latim, Ênio qualifica a condição de Medeia como a de exilada (Medea exul), fazendo-a evocar em primeira pessoa o exílio para si e, para Jasão, a morte. Dos versos relacionados à sua caracterização trágica, destacam-se a errância, a enfermidade de um espírito acometido por um amor cruel, o enfrentamento do parto pela mulher em ato de coragem três vezes superior ao do homem que combate na guerra, a ira, o crime, a ruína e a invocação ao Sol. Os dois curtos fragmentos de que dispomos da Medeia de Ovídio nos trazem falas da protagonista que denotam sua capacidade de salvar e destruir conforme o seu desejo e o estado em que pode entrar como se tomada por uma divindade. Já no gênero lírico, no terceiro livro dos Tristes, Ovídio condensa em um único verso (9), na nona elegia, caráter, nome e ação quando designa Medeia como ímpia em relação ao pai, e oferece explicação licenciosa e poética no último dístico para o nome da cidade de Tomos, por ter sido aquele o local em que Medeia teria desmembrado o irmão. Ovídio, nas Heróides, compõe um retrato poético de Medeia por seu próprio ponto de vista na carta que endereça a Jasão, sendo notável o passo em que diz ter-se tornado estrangeira. Nas Metamorfoses, Medeia recebe tratamento épico no sétimo canto (Met. 1–424), primeiro referida em relação ao pai, então nomeada na fala que endereça a si mesma (Met. 1. 9–13), passo em que Ovídio esboça o vão duelo entre razão (ratio) e paixão (furor). Destaca-se o testemunho dos deuses do pacto nupcial e das juras de amor (Met. 1. 46–47) de Medeia de modo a ser chamada de esposa (Met. 1. 60–61). A partir do verso 74, enfatiza-se a arte de sua magia, a escolha das ervas e ritos de invocação, aspectos igualmente explorados na Medeia de Sêneca. 1032

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A Medeia em recepção latina ainda se observa significativamente com Cícero, que a menciona inúmeras vezes a partir desses tragediógrafos latinos: nas Tusculanas (4. 32. 69), cita versos de Ênio e Pacúvio, sem nomeá-los, dado representativo no que tange à recepção dessa figura mítica em sua configuração trágica à época da República. Cita-os nesse passo de modo a repreender o amor de Medeia e a série de misérias que ele lhe ocasionou bem como a ousadia de Medeia em dizer ao pai a primazia que confere a seu marido na comparação do amor que nutria por um (Jasão) e por outro (seu pai). Em sua defesa a Célio, já em contexto político, é notória a alusão a Clódia como a Medeia do Palatino (Palatinam Medeam), isto é, a alusão a quem teria tentado vingar-se de quem a abandonou. Do sumário do mito oferecido por Higino (ca. 64 aEC 17 aEC) é clara a distinção feita entre o status de donzela (uirgo) e mulher (mulier) na fala de Alcínoo, quando, entre colcos e argivos, deliberou que Medeia fosse entregue ou ao pai ou ao marido, a depender de sua condição. Por intermédio de Arete, esposa de Alcínoo, Jasão teria sido avisado por um mensageiro dessa sentença e a desvirginado durante a noite numa caverna, de modo a impedir que seu irmão, Absirto, a levasse de volta a seu pai, Eetes. Os atributos que Higino confere à Medeia em seu relato sumário são os de estrangeira (aduenam), feiticeira (ueneficam) e criminosa (scelerata), esse último a razão pela qual a sacerdotisa de Diana teria pedido o seu segundo exílio, o que leva Medeia a retornar à Cólquida. Foi esse aspecto posterior de feiticeira e infanticida que marcou a recepção do mito de Medeia na modernidade. Como sói dos escritos antigos em geral, deu-se pela primeira via do latim, sobretudo por Ovídio e por Sêneca. Shakespeare, por exemplo, faz menção à Medeia que se valeu de ervas encantadas para rejuvenescer o idoso Jasão (Mercador de Veneza, 5. 1. 12–14). Desde a primeira edição da Medeia de Eurípides 1033

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impressa em Florença no século XV, traduções em neo-latim da tragédia foram também realizadas, por exemplo, por George Buchanan, embora tanto as edições quanto suas traduções tenham tido menor circulação e influência que suas versões latinas, sobretudo as de Ovídio e Sêneca. Fontes históricas APOLLONII RHODII ARGONAUTICA. 1961. Hermann Fränkel (Ed.). Oxford: Clarendon Press. BESSONE, F. 1997. P. Ovidii Nasonis Heroidum Epistula XII: Medea Iasoni. Firenze: Le Monnier. ESIODO. 2018. Teogonia. A cura di Gabriella Ricciardelli. Milano: Fondazione Lorenzo Valla: Mondadori. GOUVÊA JÚNIOR, M. 2014. Medeias latinas: Medea Romae. Belo Horizonte: Autêntica Editora. HOMERO. 2011. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34. EURIPIDES. 2002. Medea. Edited by D. J. Mastronarde. Cambridge: Cambridge University Press. OVÍDIO. 2017. Metamorfoses. Tradução, introdução e notas de Domingos Lucas Dias. São Paulo: Editora 34. POWELL, J. G. F. 2006. M. Tulli Ciceronis De Re Publica, De Legibus, Cato Maior de Senectute, Laelius de Amicitia. Oxford: Oxford University Press. Bibliografia geral BOYLE, A. J. 2014. Seneca: Medea. Oxford/New York: Oxford University Press. CLAUSS, J. J.; JOHNSTON, S. I. 1997. Medea: Essays on Medea in Myth, Literature, Philosophy and Art. Princeton: Princeton University Press. 1034

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Erictō › Ericto

por Anderson Martins & Carlos Eduardo da Costa Campos

Os poetas latinos como Horácio e Ovídio povoaram o imaginário social romano e posterior com suas feiticeiras em cenas de amarração amorosa, produção de poções e sacrifício infantil. Entretanto, neste verbete, temos interesse em analisar outra importante personagem deste cenário mágico da literatura latina: Ericto [Ἐριχθώ], a feiticeira que o poeta Marco Aneu Lucano (século I EC) apresenta em sua obra Farsália, também conhecida como Bellum Ciuile. Preliminarmente, frisamos que toda produção literária é obra de um contexto e não há como se desvincular autor e sociedade. Dessa forma, é importante apontar o contexto social de produção e a estrutura da obra, antes de darmos ênfase à personagem. Lucano era de Córdoba (região da Bética) e foi enviado, ainda jovem, para Roma. Era sobrinho de Sêneca, o Jovem e neto de Sêneca, o Velho. Na Vrbs ele teve contato com a filosofia estóica, a literatura latina e grega, bem como os estudos retóricos. Acredita-se que a influência do estoicismo seja o resultado de sua formação com o liberto Aneu Cornuto. Ademais, Lucano teria completado os seus estudos em Atenas entre os anos de 57 e 58 (Zientek; Thorne 2020, 1–14). Segundo Bruno Vieira (2011, 15), Lucano integrou o círculo de poetas que era patrocinado pelo imperador Nero, bem como participou da magistratura e da vida pública romana. Entretanto, a partir de 63, Lucano teve suas relações desgastadas com Nero, tendo sido banido e participando da conspiração de Pisão, que foi descoberta e levou o escritor ao suicídio para evitar a execução de sua condenação (Vieira 2011, 17–18).

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A obra, Bellum Ciuile (Guerra Civil ou Farsália), é uma narrativa dos conflitos entre Júlio César e Pompeu Magno, entre 49 e 48 aEC. Laura Zientek e Mark Thorne (2020, p. 10 -14) argumentam que essa obra plasma os temores da aristocracia romana sob o governo autocrático de Nero. Devemos compreender o poema não apenas na tradição de uma epopeia de cunho histórico, mas também por suas características didáticas, elegíacas, satíricas, epistolográficas, bem como por seus elementos relacionados à dialética platônica e ética estoica, por exemplo. Dessa forma, a obra reúne fatos históricos e ficção, como no episódio da consulta de Sexto Pompeu à feiticeira tessália Ericto (6. 413–830). Enquanto uma saga, compreendemos a personagem Ericto como detentora de um saber — poder que gerava temor em seus contemporâneos, no âmbito da ficção. De acordo com Georg Luck (1995, 41), a saga era quem detinha o controle sobre a natureza para demonstrar o seu poder e fazer valer os seus desejos, assim como sabia canalizar e manipular os sentimentos dos indivíduos que iam buscar o seu auxílio. Ericto morava na Tessália e foi consultada por Sexto Pompeu na véspera da decisiva batalha de Fársalo 48 aEC (6. 333–830). Pompeu procura conhecer o resultado da batalha, e, a fim de profetizá-lo, Ericto executa atos de necromancia. Ela primeiro seleciona o cadáver de um soldado recém-falecido (6. 624–666); então infunde o corpo com poções (6. 667–684) e força sua alma a voltar com ameaças e encantamentos (6. 685–774). Ogden (2002, 197–198) salienta que Ericto era capaz de assumir um comportamento de uma Fúria em direção ao submundo, manipulando cobras e emanando um poder capaz de afrontar mortais e imortais, tanto que ela realmente assume na narrativa a aparência de uma Fúria, bem como se torna capaz de ameaçar Hécate e Perséfone (6. 667–746). 1038

A presença das mulheres na Literatura e na História

Stephen A. Samson (2020) frisa que há vários elementos intertextuais nas ações de Ericto com referências à Sibila de Virgílio (Eneida, 6) e à Medéia de Ovídio (Metamorfoses, 7). Para Samson (2020, 612), Lucano representa Ericto como o oposto da Sibila de Virgílio. Ela, portanto, serve como guia e supervisora do submundo de Sexto Pompeu, assim como a Sibila faz para Enéias, no Livro 6, da Eneida. Entretanto, a função de Ericto é realizar a necromancia solicitada para fins espúrios. Os ingredientes de sua magia envolvem desde uma cobra voadora até a fênix, fato esse que para Ogden (2002, p. 197) alude às maravilhas do Egito, descrito por Heródoto (Histórias, 2. 73–5). Ericto produz sons tenebrosos na narrativa para iniciar o seu feitiço (6. 667–718), completamente inarticulados, ao contrário das voces magicae, mas como eles, havia um significado especial nessa forma de comunicação (Ogden 2002, 197). Vale ressaltar que Ericto também circulou no imaginário social através dos séculos, assim sendo objeto de diversas releituras. A representação da feiticeira em Lucano pode ter partido das Heroides de Ovídio, que teria fornecido a primeira menção à personagem. Thea S. Thorsen (2014, 96–122) explora a querela literária sobre a autenticidade da epístola XV, que se desenvolveu no século XIX e se arrasta até os dias atuais. De um lado, autores como Lachmann (1848) e Tarrant (1981), criticando o estilo de sua composição, argumentam que a epístola XV não se aproxima do modelo de Ovídio. Em posição contrária, outros eruditos encampam a possibilidade de que a epístola seja ovidiana, fazendo com que a menção a furialis Erichtho, «furiosa Ericto» (15. 139) represente a introdução da personagem no imaginário latino e tornando-se a base para Lucano, que retoma as características de errante e temível, como Thorsen apresenta em seu texto (2014, 96–122). 1039

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Uma das recepções de Ericto ocorreu na Divina Comédia, do poeta florentino Dante Alighieri (século XIV). No canto 9 (vv, 22–27), Dante dialoga com Virgílio sobre os círculos do inferno e, precisamente nesse trecho, vemos a menção a Ericto, que vagava pelo mundo dos mortos para pegar almas e utilizar em rituais de necromancia. Outra recepção da nossa feiticeira está na peça Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe (século XIX). Destacamos que, no segundo ato, Ericto estabelece um discurso em que se representa como uma vítima de disforização pelos poetas, como uma referência à construção de seu retrato por Lucano. Em suma, Ericto é uma personagem complexa e intrigante tanto em Lucano como em suas recepções. Entretanto, sobre a Ericto de Lucano, cabe salientar que a compreendemos como a representação da ordem moral invertida, ela transgride cada limite cuidadosamente mantido em torno do mos maiorum, como piedade, lei, religião, os deuses, vida e morte. Logo, o discurso de Lucano sobre Ericto é, provavelmente, a mais elaborada, exagerada e assustadora descrição de uma feiticeira na literatura clássica. Fontes históricas LUCANO. 2011. Farsália: cantos de I a V. Tradução de Brunno V. G. Vieira. Campinas, SP: Editora da Unicamp. M. ANNEO LUCANO. 1984. Farsalia. Introducción, traducción y notas de Antonio Holgado Redondo. Madrid: Editorial Gredos. Bibliografia geral LUCK, G. 1995. Arcana Mundi: Magia y ciencias ocultas en el mundo griego y romano. Madrid: Editorial Gredos. OGDEN, D. 2002. Magic, Witchcraft and Ghosts in the Greek and Roman Worlds. New York: Oxford University Press. 1040

A presença das mulheres na Literatura e na História

SAMSON, S. 2020. Typhonic Voices Sounds of Hesiod and Cosmic War in Lucan’s Bellum civile 6. 685–694, Mnemosyne, n. 73, p. 609–632. THORSEN, T. S. 2014. Ovid’s early poetry from his single Heroides to his Remedia amoris. Cambridge: Cambridge University Press. ZIENTEK, L.; THORNE, M. 2020. Introduction: Lucan and His World. In: ZIENTEK, L.; THORNE, M. Lucan’s Imperial World: The Bellum Civile in its Contemporary Contexts. London/New York, NY: Bloomsbury Publishing, p. 1–14.

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MULHERES GUERREIRAS

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

Mulheres Guerreiras

por Mateus Dagios

Abordar o tema mulheres guerreiras, em um Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade, como uma categoria de experiência, ou seja, um saber, uma prática, um modo de estar, construída por povos da Antiguidade, é uma proposta desafiadora. Não porque o tema seja exíguo; os textos que compõem este volume demonstram a diversidade das mulheres guerreiras no mundo antigo. O desafio reside em reconhecer a presença das mulheres na guerra, reconstituir a pluralidade de maneiras de se viver no passado e admitir sociabilidades que não sejam as idealizadas pelo pensamento masculino. O passado é um território de disputas. Escrever uma história é colocar-se de forma consciente ou não a serviço de programas, projetos de poder ou ideologias. É também pensar relações de gênero, legitimá-las ou discuti-las, na esteira de processos históricos. É reconhecer que a esfera guerreira confortavelmente aceita como pertencente aos homens foi construída também pelas mulheres. Quando abordamos a história das mulheres, esse caráter de disputa apresenta-se de forma ainda mais evidente. Durante muito tempo, as vozes masculinas foram mais destacadas que as femininas. Basta atentarmos para que nosso contexto editorial nacional tem constantes relançamentos de A Cidade Antiga (1864) de Fustel de Coulanges (1830–1889), de A Cidade Grega (1928) de Gustave Glotz (1862–1935) e dos trabalhos do russo Mikhail Rostovtzeff (1870–1952), mas permanece mudo para as obras de Jane Ellen Harrison (1850–1928). Os livros da autora, como Prolegomena to the Study of Greek Religion (1903)

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

ou Ancient Art and Ritual (1913), que em erudição e rigor metodológico nada deixam a dever a nenhum dos autores considerados clássicos, ainda não receberam traduções. Michelle Perrot afirma que escrever uma história das mulheres é querer superar o espinhoso problema das fontes (Perrot 1995). É ousar um passo para além do reconhecimento dessas dificuldades e perceber que durante muito tempo as fontes foram a própria sustentação de uma história predominantemente masculina. Frases como «não existem fontes sobre a presença das mulheres» ou «as fontes nada dizem sobre as mulheres» legitimaram silêncios, criaram a falsa sensação de uma voz uníssona, de uma história na qual a presença das mulheres fosse descrita apenas como alegórica e não como humana em seus conflitos e significações. Ao inquerirmos a Antiguidade, o problema das fontes aumenta. Mais exíguas e exigindo um aparato linguístico, elas são escritas em sua maioria por homens, dimensão que não anula as potencialidades do texto. Ao contrário, ressaltam operações de silenciamento e fazem emergir representações idealizadas sobre o feminino e sobre posturas normatizantes. As historiadoras Sandra Boehringer e Violaine Cuchet afirmam que o problema das fontes antigas não está no gênero, mas em serem geralmente um discurso normativo: as fontes raramente apresentam um caráter desviante em relação à norma (Boehringer; Cuchet 2011, 27). Assim, por mais que tenhamos acesso aos espaços ocupados pelas mulheres, raramente as fontes alcançam o comportamento considerado desviante. Se muitas fontes modernas são sobre esses comportamentos considerados marginais, como relatórios de polícia, textos sobre padrões de conduta e outros manuais corporais, as fontes antigas testemunham outras situações e discursos. 1046

A presença das mulheres na Literatura e na História

Além da dificuldade dos documentos que se configuram como um desafio do ofício da escritura, é preciso renegar também padrões estruturantes das potencialidades das mulheres e dos homens. Perrot destaca que é comum encontrar nas narrativas históricas produzidas no século XIX associações das mulheres às forças da natureza, ora tranquilas e plácidas, ora inconstantes e revoltosas, enquanto aos homens são delegados os ideais construtores da cultura, engajados em transformações e guiados pelo espírito empreendedor da vontade. Para a autora, historiadores como Michelet interpretaram o papel das mulheres na História sempre em dois pólos: a maternidade e o doméstico em contraposição à superstição, à crueldade e à loucura (Perrot 1995). Norberto Luiz Guarinello lembra que é impossível para um historiador compreender o passado sem formas. As formas não são inofensivas. São elas que determinam maneiras de acesso ao conhecimento histórico. Ter consciência das formas do parti pris morfológico é o que nos possibilita olhar o passado de maneira alternativa às comumente apresentadas, procurando novas significações (Guarinello 2003). Em uma época de transformações e de reivindicações identitárias, é preciso abandonar maneiras canônicas, baseadas no eurocentrismo, e procurar na experiência da Antiguidade lógicas que dialoguem também com o presente, reconhecendo no passado um outro que nos constitui. Assim, na dinâmica entre as possibilidades de buscar no passado novas abordagens e sem abandonar as conquistas da operacionalidade historiográfica, esse volume investiga as mulheres guerreiras. O conceito de mulheres guerreiras é particular em cada uma das abordagens. A própria noção do que modernamente consideramos guerra ou conflito é plural na Antiguidade. 1047

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Cada civilização antiga possui os próprios códigos, noções de honra, vergonha, coragem, rituais de iniciação e posturas frente aos papéis desempenhados na guerra. É preciso lembrar que reivindicações masculinas contraditoriamente fazem de representações de mulheres guerreiras emblemas de suas lutas, enquanto os próprios direitos das mulheres são esquecidos. Um caso icônico é o da Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a famosa Marianne, símbolo da República Francesa, inspirada na república romana e retratada geralmente pela iconografia da revolução como uma mulher guerreira com os seios desnudos. Contudo, como aponta Lynn Hunt, a maioria dos círculos revolucionários do final do século XVIII defendia que as mulheres eram incapazes para o mundo público (Hunt 2006, 50). As contradições entre símbolos e práticas não se limitam somente à Revolução Francesa. Donna Zuckerberg (2018) explica como uma noção idealizada de Antiguidade vem sendo utilizada por grupos de extrema direita para a propagação de ideias discriminatórias sobre gênero e raça na Internet. Isso torna ainda mais necessária a publicação de um Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade para desconstruir lugares comuns e possibilitar ao leitor acadêmico e ao grande público outra via de acesso ao passado. As mulheres guerreiras colocam na encruzilhada um tema que é cada vez mais relevante: o acesso das mulheres ao poder. Mary Beard, em um texto-manifesto, aponta que quanto mais recuamos na história ocidental mais percebemos uma separação real e imaginada entre as mulheres e as instâncias de acesso ao poder (Beard 2018). O estudo das mulheres guerreiras como uma forma de sociabilidade embaralha a percepção masculina de serem os únicos que possuem o legítimo acesso à força e à violência, 1048

A presença das mulheres na Literatura e na História

colocando em evidência uma história das mulheres que não é simplesmente paralela à história dos homens, mas é única, com caminhos próprios, com silenciamentos e desafios. Cabe aqui repetir uma interrogação posta por Beard: «O que seria preciso para modificar o lugar das mulheres no âmbito do poder?» (Beard 2018). A resposta a essa pergunta é mais difícil do que aparenta. Qualquer esboço de resposta está ancorado em séculos de construções sobre o que acreditamos desenvolver como cultura e civilização. Ela passa principalmente pelo que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie chamou de «o perigo de uma história única» (2009). A história como disciplina deve ser plural. É preciso encontrar outros passados para desenvolver outros futuros. A história única cria estereótipos, reduz o passado sempre às mesmas vias de acesso. Adichie recorda que «as histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar» (Adichie 2009, 32). Que as mulheres guerreiras aqui apresentadas e aquelas que nós conhecemos nos ajudem a pensar uma outra história. Bibliografia geral ADICHIE, C. 2019. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras. BEARD, N. 2018. Mulheres e poder: um manifesto. São Paulo: Crítica. BOEHRINGER, S.; CUCHET, V. S. 2011. Hommes et femmes dans l’Antiquité grecque et romaine. Paris: Armand Colin. COOK, B. 2006. Women and War: A Historical Encyclopedia from Antiquity to the Present. Santa Barbara, Califórnia: ABC-CLIO. DUBY, G.; PERROT, M. 1991. Histoire des femmes en Occident. Paris: Plon. 1049

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

FABRE-SERRIS, J.; KEITH, A. 2015. Women and War in Antiquity. Baltimore: Johns Hopkins University Press. GUARINELLO, N. 2003. Uma morfologia da história: as formas da História Antiga, Politeia: História e Sociedade, vol. 3, n. 1, p. 41–61. HALL, E.; WYLES, R. 2016. Women classical scholars: unsealing the fountain from the Renaissance to Jacqueline de Romilly. Oxford: Oxford University Press. HUNT, L. 2006. Revolução Francesa e vida privada. In: ARIÈS, P.; DUBY, Georges (Orgs.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, p. 21–51. PERROT, M. 1995. Escrever uma história das mulheres: relato de uma experiência, Cadernos Pagu, n. 4, p. 9–28. ZUCKERBERG, D. 2018. Not All Dead White Men: Classics and Misogyny in the Digital Age. Massachusetts: Harvard University Press, 2018.

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Ἀμαζόνες › Amazonas

por Iván Pérez Miranda

As amazonas, descendentes do deus Ares e da ninfa Harmonia (Apolônio de Rodes. Argonáuticas, II, 990), constituíam um povo mítico de mulheres guerreiras que viviam na orla do mundo civilizado, na fronteira da Cítia e Sarmácia (Heródoto. 4, 110–117) ou em Temiscira, onde seriam derrotadas pelo herói Hércules (Diodoro Sículo. II, 45–46; IV, 16). Filóstrato, por sua vez, as coloca nos Montes Touro (Heroico, 57). Entre as amazonas mais famosas estão as mencionadas por Higino (Fábulas, 163): Ocíale, Dioxipe, Ifínome, Jante, Hipótoe, Otrera, Antíoque, Laómaque, Glauce, Ágave, Teseida, Hipólita, Clímene, Polidora, Pentesileia (sendo Teseida, na realidade, um epítome de Hipólita). Nelas, os gregos viam um reflexo invertido do patriarcado, da civilização. Desse modo, elas eram governadas por uma rainha e eram as mulheres que detinham o poder político e militar, sendo comum terem os homens em condição de servidão e o infanticídio masculino seletivo (Estrabão. XI, 5,1–2), enquanto as meninas recebiam treinamento nas tarefas que no mundo civilizado eram destinadas aos homens, como a guerra, a caça ou o trabalho agrícola. Eram mulheres guerreiras, bárbaras e selvagens, que o casamento não podia domar, representando o que era indesejável para a sociedade e o perigo que as mulheres podiam representar fora do controle de seus pais ou maridos. Por isso, os maiores heróis civilizadores irão enfrentar essas temíveis guerreiras e derrotá-las, trazendo ordem ao caos que elas simbolizavam.

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Hércules consegue, em uma das provas que enfrenta, obter o cinturão da rainha Hipólita (Apolodoro. Biblioteca, II, 5, 9), para isso conta com a ajuda de Teseu, que, com o rapto de Antíope, irmã da rainha, provoca a invasão da Ática pelas belicosas amazonas, a quem o herói ateniense tem que derrotar. Por sua vez, Belerofonte, montado em seu cavalo alado Pégaso, luta contra as amazonas que invadem a Lícia (Homero. Ilíada, VI, 186) e Aquiles as derrota diante dos portões de Troia, ao lutar contra as guerreiras ao lado dos troianos, por sua amizade com o rei Príamo (Alonso del Real 1956, 34–36). Aquiles enfrenta, em um único combate, a rainha Pentesileia, finalmente conseguindo feri-la até a morte no peito direito. As representações em cerâmica grega conseguiram mostrar de forma formidável o momento da morte de Pentesileia, o momento em que o seu olhar encontra o de Aquiles, que não pôde deixar de se apaixonar por aquela mulher viril. A cena foi objeto de múltiplas representações do século VII–VI a.C. até o final do período helenístico e do Império Romano (Blázquez 1999, 69–74). A fraqueza sentimental de Aquiles provocaria a zombaria do tortuoso e traiçoeiro Tersites. Aquiles reagiu imediatamente a essas piadas, encerrando a vida de Tersites sem cerimônia. Em tempos históricos, as amazonas teriam um culto heróico, sendo possíivel encontrar esculturas e tumbas de amazonas em diferentes partes da Grécia, bem como festas em sua homenagem. As amazonas gozaram de uma existência semi-histórica nos tempos antigos (Proulx 2008, 220 ss.), Aparecendo nas fontes relacionadas com os citas, com quem supostamente lutaram, e até visitando Alexandre e provocando a gargalhada de um incrédulo Antípatro, que se perguntou onde ele estava então (Plutarco. Vida de Alexandre, 46). Alguns pesquisadores tentaram encontrar vestígios da sociedade amazônica 1052

A presença das mulheres na Literatura e na História

em algum lugar do nordeste da Grécia, embora essas tentativas tenham fracassado; o mito das amazonas parece não ter base histórica e é uma lenda que surgiu para tipificar a barbárie, justamente como uma inversão da ideia de civilização que os gregos tinham (Salinas de Frías 2005, 103). O mito das amazonas nos informa sobre a concepção que se tinha sobre qual deveria ser o papel das mulheres na sociedade grega, ou seja, o oposto do papel que as mulheres amazônicas desempenhavam: a civilização oposta à barbárie. O mito do matriarcado, que se manifesta nas amazonas ou nas mulheres lemnianas, fala da oposição entre civilizado e bárbaro, entre o tempo presente e o passado remoto. Matriarcado, mundo bárbaro e primitivismo são três formas de alteridade intimamente relacionadas no pensamento grego (Iriarte 2002, 164–165). Isso fica evidente em diferentes representações artísticas da Amazônia, “o combate das amazonas” que aparece corporificado em pinturas em cerâmica e em baixos-relevos de sarcófagos ou monumentos. Foi o motivo das metáforas da fachada oeste do Partenon, em relação às representações das fachadas remanescentes (queda de Troia, gigantomaquia e batalha entre centauros e lapitas), que também evocou a luta da ordem e do caos, da civilização e da barbárie. Porém, se até a contemporaneidade as amazonas eram terríveis adversárias que ameaçavam a masculinidade dos heróis, durante o século XX foi forjada uma imagem idealizada de um matriarcado amazônico que não constitui mais um inimigo a ser vencido, mas um modelo heróico a ser imitado, como se reflete em algumas manifestações da cultura popular, com poderosas protagonistas de comics como a Wonder Woman (a Mulher Maravilha), criada por William Moulton Marston (1941), concebida como um símbolo da mulher livre-pensadora, emancipada, pacifista e sufragista e que, apesar dos altos e baixos sofridos ao longo de sua história, pode ser considerada 1053

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

a personagem feminina mais importante dos quadrinhos de super-heróis (Cañas Pelayo 2017). Seguindo em seu rastro, encontramos a amazona Xena, personagem da série Xena: a princesa guerreira, obra de John Schulian e Robert Taper (1995), inicialmente idealizada como uma antagonista de Hércules, se tornaria a heroica protagonista de sua própria série (com diversos quadrinhos, livros e videogames dela derivados) e referência na cultura popular atual. Essas amazonas contemporâneas abririam o caminho para uma nova geração de heroínas de ação, demonstrando a poderosa influência do legado clássico e a importância de reinterpretar seus mitos a partir de novas perspectivas. Tradução do castelhano para o português: Semíramis Corsi Silva

Fontes históricas APOLODORO. 1985. Biblioteca. Madrid: Gredos. APOLONIO DE RODAS. 1996. Argonáuticas. Madrid: Gredos. DIODORO DE SICILIA. 2001. Biblioteca Histórica. Libros I– III. Madrid: Gredos. ESTRABÓN. 2003. Geografía. Libros XI–XIV. Madrid: Gredos. FILÓSTRATO. 1996. Heroico. Madrid: Gredos. HERÓDOTO. 2006. Historia. Madrid: Gredos. HIGINIO. 1997. Fábulas. Madrid: Ediciones Clásicas. HOMERO. 1991. Ilíada. Madrid: Gredos. Bibliografia geral ALONSO DEL REAL, C. 1967. Realidad y leyenda de las amazonas. Madrid: Espasa-Calpe. 1054

A presença das mulheres na Literatura e na História

CAÑAS PELAYO, M. R. 2017. Feminismo en Temiscira: las facetas de Wonder Woman, Raudem, Revista de Estudios de las Mujeres, vol. 5, pp. 69–93. PROULX, G. 2008. Femmes et féminin chez les historiens grecs anciens (Ve siècle avanta J.-C.–IIe siècle après J.-C.). Tesis doctoral, Univeristé du Québec à Montréal. BLÁZQUEZ, J. M. 1999. Mitos, dioses, héroes en el Mediterráneo antiguo. Madrid: Academia de la Historia. IRIARTE GOÑI, A. 2002. De Amazonas a Ciudadanos. Pretexto ginecocrático y patriarcado en la Grecia antigua. Madrid: Akal. SALINAS DE FRÍAS, M. 2005. Figuras femeninas en las relaciones políticas entre griegos y bárbaros durante la época antigua, Studia Historica, Historia Antigua, vol. 23, p. 95–111.

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Ἱππολύτη › Hipólita

por Paulina Nólibos

Hipólita, cuja etimologia do nome sugere «aquela que desata, solta ou deixa ir os cavalos», ocupou a eminente posição de rainha mítica das Amazonas, reinando em um matriarcado, de linhagem matrilinear, tendo governado o grupo na mesma época em que Herakles executava seus 12 trabalhos, e sendo conhecida especialmente por ser co-protagonista do nono deles. Seu reino tinha uma estrutura social guerreira e, pela maioria das fontes, era composto apenas por mulheres. Não teria deixado herdeiras, passando o poder diretamente para sua irmã, Pentesileia. As Amazonas teriam vivido na Ásia, numa região próxima às costas do Mar Negro. Alguns falam em tribo, outros se referem à existência de uma cidade. Pausânias e Pseudo-Apolodoro mencionam a cidade de Temiscira, onde vivia sua rainha, Hipólita, e onde Herakles certa vez aportou. Hipólita seria filha de Ares e da rainha Otrera, e irmã de Pentesiléia, Melanipe e Antíope. Como rainha, recebeu de Ares um cinturão, símbolo de sua excelência guerreira e de seu consequente poder, cuja obtenção foi o nono dos Doze Trabalhos de Herakles, pois a filha de Euristeu, Admeta, desejava possuí-lo. Não há narrativas sobre ela antes deste episódio do ciclo de Herakles, e seu mito, como os de muitas outras mulheres gregas e asiáticas eminentes, é vago e mal fixado, com inúmeras variantes, sem narrativas longas mais complexas. No período clássico, Eurípides (482–406 aEC), na tragédia Hipólito, de 428 aEC, faz referência ao jovem filho de Teseu como filho da Amazona, mas não diz seu nome. A tradição aponta Antíope, mas Eurípides não deixa claro, e versões alternativas mencionam Hipólita.

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Outros escritores fizeram referência às Amazonas, e Pseudo-Apolodoro e Pausânias mais especificamente à rainha Hipólita. Heródoto (485–425 aEC), Hipócrates (460–370 aEC), Diodoro Sículo (90– 30 aEC), Estrabão (63 aEC-23 EC), Plutarco (46–120 EC), Pseudo-Apolodoro (entre o século I e II EC), Pausânias (115–180 EC) e Quinto de Esmirna (entre III e IV EC) oferecem ao leitor moderno alguns fragmentos de suas aventuras, seus contatos com os homens, em suas inúmeras variantes, sua maestria na arte da guerra e a força que estas mulheres impunham no campo de batalha, até a narrativa da morte de Pentesiléia por Aquiles, na fase final da Guerra de Tróia. Na Biblioteca, grande compêndio mitológico da antiguidade romana, Peudo-Apolodoro (II, 5, 9) diz que tendo atracado no porto de Temiscira, Herakles recebeu uma visita de Hipólita, que o questionou sobre sua vinda, e prometeu dar-lhe o cinturão. Mas Hera, na figura de uma amazona, espalhou entre o grupo que os estranhos recém-chegados estavam levando a rainha. Então as amazonas se armaram e se dirigiram na direção do navio. Quando Herakles as viu armadas, suspeitou de traição, matou Hipólita e lhe despojou do cinturão. E depois de lutar com as outras, ele navegou para longe, chegando a Tróia. Nesta versão, comumente reconhecida, não há sequer menção de Teseu ou de qualquer outra das amazonas sendo nomeada. Mas em outras narrativas a situação é mais complicada. Pausânias, em seu Guia da Grécia, descreve sua chegada em Atenas, e os monumentos ou ruínas que encontrou, com suas respectivas histórias. Vindo do antigo porto de Falero, no sudeste da cidade antiga, ele avistou uma estátua dedicada a Antíope, a amazona que teria sido a mãe de Hipólito, esposa de Teseu e irmã de Hipólita. Segundo Pausânias (I, 2, 1), que discute as fontes da tradição enquanto descreve o cenário, quando você entra na cidade, você se depara com o monumento a Antíope. 1058

A presença das mulheres na Literatura e na História

Píndaro diz que ela foi raptada por Teseu e Perítoo, mas Hegias de Trezena escreveu num poema sobre ela que, quando Herakles estava sitiando Temiscira, nas margens do Termodonte, incapaz de conquistá-la, Antíope se apaixonou pelo seu companheiro Teseu, e traiu a cidade. Isso é o que diz Hegias, mas a versão dos atenienses é que, com a chegada das Amazonas, Antíope foi morta por Molpadia, e Molpadia foi morta por Teseu. Os atenienses também tem um memorial para Molpadia. Ainda em Atenas, o autor (Pausânias. Guia da Grécia, I, 41, 7) apresenta a narração de outra versão da morte de Hipólita. Segundo ele, próximo ao altar de Pandíon está o memorial de Hipólita; e relembra a lenda megárica sobre ela. Quando as amazonas vieram guerrear contra Atenas por Antíope e foram vencidas por Teseu, a maioria delas morreu lutando, mas a irmã de Antíope, Hipólita, que era chefe naquela época, escapou com algumas delas para Megara. Ela estava desesperada com a situação depois do fracasso da expedição, e mais ainda pelas perspectivas de retornar em segurança para Temiscira; ela morreu de tristeza e eles a enterraram: a pedra do memorial foi talhada no formato do escudo da amazona. Relata uma variante que Hipólita morreu na batalha contra Teseu e os atenienses para libertar Antíope, raptada por ele (ou ela teria se apaixonado e abandonado o grupo), durante o nono trabalho de Herakles. Antíope lutou ao lado de Teseu, defendendo Atenas contra as antigas companheiras, e morreu atingida na batalha. Em outra variante, a luta das amazonas foi para vingar Antíope, que teria sido abandonada por Teseu ao se unir a Fedra. De qualquer forma, Hipólita teria sido morta ali, e Antíope também. A luta destes homens gregos, heróis civilizadores, contra as amazonas assumiu um papel fundamentar para descrever o conflito entre a alteridade radical que elas representavam enquanto mulheres, estrangeiras, livres e guerreiras e o modelo 1059

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grego de feminilidade. A morte dessas mulheres significava, portanto, uma ratificação da ordem masculina, e a das rainhas Hipólita, por Herakles ou Teseu, e Pentesiléia, por Aquiles, foram muito exploradas na iconografia grega. A representação plástica mais antiga da icônica cena de Herakles lutando com as amazonas, segundo Carpenter (1991, p.125), está num alabastron coríntio do final do século VII a.C, onde ele e dois companheiros lutam com três amazonas, todos nomeados, e a líder das amazonas se chama Andrômeda e não Hipólita. Durante o período arcaico, o tema da luta de Herakles e as amazonas se tornou muito popular entre os pintores de vasos de figuras negras. Ele, sempre reconhecido por sua pele de leão e sua espada, enquanto elas são representadas inicialmente como um hoplita, depois com trajes Citas e arco e flecha, e, após 479 aEC, em função do saque da Acrópolis ateniense pelos persas, como persas. Suas armas são invariavelmente arcos e flechas, e tardiamente, machados. O pico dessa popularidade na pintura foi atingido por volta de 525 aEC, decrescendo entre os pintores de figuras vermelhas até 450 aEC, depois disso se tornando pouco comum. Datado entre 490 – 480 aEC, um cântaro raríssimo, pois assinado por Douris como ceramista e pintor, acervo do Museu Real de Arte e História, de Bruxelas, apresenta a cena do combate de Herakles com uma amazona ferida mortalmente no Lado A, e um outro grego matando outra amazona no Lado B, entre muitas outras guerreiras beligerantes. Infelizmente, esse vaso de pinturas vermelhas do alvorecer do período clássico não tem os nomes das figuras acompanhando o desenho, prática usual nos primeiros vasos narrativos de figuras negras. Mas pelo estabelecimento tradicional da narrativa, considera-se que a amazona do Lado A seja Hipólita, seguindo a versão literária tardia que conhecemos através de Pseudo-Apolodoro. 1060

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Esta cena em variantes foi a que ficou mais marcada pela tradição, migrando do tema da beligerância dessas mulheres para a piedade e a dor da agonia das guerreiras e de sua rainha e ficou conhecida como «Amazonomaquia». A rainha Hipólita foi recuperada no século XIX entre os Pré-rafaelitas ingleses. Em 1880, Hipólita é representada de espada na mão num trabalho de tecelagem assinado pelas duas mulheres responsáveis pelo segmento na empresa Morris & Co., Jane Morris, sua esposa e modelo, e Elizabeth Burden. Esta peça de tapeçaria era parte de um projeto maior, decorar as paredes da Red House com imagens de «mulheres ilustres». Nesta representação há um sincretismo entre a rainha guerreira antiga, usando uma coroa de louros, e uma figura medieval, vestindo o conjunto completo de armadura metálica, lança e espada, coberta com uma longa veste trabalhada em tons de verde e creme, uma mulher guerreira em seu pleno vigor e poder. Com o surgimento de comics e novas formas de narrar os mitos, uma ressignificação das amazonas e de Hipólita aconteceu com a Mulher-Maravilha, personagem criada por William Moulton Marston, sob pseudônimo de Charles Moulton, e sua esposa, a advogada Elizabeth Marston, e desenhada por Harry G. Peter. Sua primeira aventura apareceu na revista All Star Comics #8, de dezembro de 1941. Em maio de 1942, ganhou sua própria revista, a Wonder Woman #1. Embora muitos elementos tenham sido alterados nestas décadas, a linhagem da heroína remonta à Hipólita, que é sua mãe, e rainha de Temiscira, descrita como uma ilha paradisíaca. As mais recentes aventuras no cinema foram os dois filmes da Mulher Maravilha, protagonizados por Gal Gabot, de 2017 e de 2020, ambos dirigidos por Patty Jenkins, nos quais a rainha Hipólita é encarnada pela atriz dinamarquesa Connie Inge-Lise Nielsen. Nos filmes, Ares passa a ser o vilão, e as amazonas são representadas como guardiãs da Paz, 1061

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Antíope é quem treina a pequena herdeira de Hipólita, chamada de Diana, numa confusa referência à deusa Ártemis em seu nome romano. Hipólita, como rainha, tem preservado sua imponência e uma longa trajetória narrativa, mantendo viva na imaginação um governo de mulheres como um ideal de paz e justiça muito além do mundo grego. Fontes históricas APOLODORUS. 1954. The Library, Cambridge: Harvard University Press. PAUSANIAS. 1971. Guide to Greece, Vol. I – Central Greece. London: Penguin Classics. Bibliografia geral BONNEFOY, Y. (Org.). 1996. Diccionario de las Mitologías. Vol.II – Grécia. Barcelona: Ed. Destino. CARPENTER, T. H. 1991. Art and Myth in Ancient Greece. London: Thames & Hudson. MARSH, J. 1995. Pre-Raphaelite Women. London: Weidenfeld & Nicolson. MOORMANN, E. M.; UITTERHOEVE, W. 1997. De Acteon a Zeus: temas sobre la mitología clásica en la literatura, la música, las artes plásticas y el teatro. Madrid: Akal. REEDER, E. D. 1995. Pandora – Women in Classical Greece. New Jersey: Princeton University Press.

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Πενθεσίλεια › Pentesileia

por Ivan Vieira Neto

Um skýphos com datação entre o fim do século VI e o início do século V aEC, decorado com figuras negras, exibe uma cena de combate muito comum na cerâmica ática deste contexto: Akhilleús, portando um escudo em estilo beócio, levanta a hasta contra uma mulher que traja vestes estampadas e porta na cabeça um barrete frígio (Beazley Archive, Vase 632). É Penthesíleia a figura feminina apresentada defronte ao Pelida. A Amazona é a comandante de um destacamento de guerreiras que acorreu à Trôade após o assassinato de Héktōr. A cena, em que dois oponentes parecem medir forças, tornou-se um tópos frequente na iconografia da cultura material na Antiguidade (Pérez Miranda 2021, 1051). Πενθεσίλεια, latinizada Penthesileia, era filha do deus Árēs e da rainha Otrḗrē. Conforme o mito, sua pátria era a cidade de Themíscyra, na foz do rio Thermṓdōn, mas sua grei conquistara outras regiões, localizadas às margens do Ponto Euxino e também na Thrácia. As Amazonas foram mencionadas duas vezes na Ilíada: primeiro, durante a chamada Teikhoskopia, ocasião em que das muralhas Príamos e Helénē observam as hostes aqueias quando o velho rei lembra um episódio de sua juventude: certa vez as mulheres guerreiras foram se juntar a uma aliança de troicos e trácios na Phrýgia (Γ. 189); e, por último, Glaûkos, ao apresentar sua linhagem a Diomḗdēs, refere-se à façanha do ancestral Bellerophō̂n, conquistador das Amazonas (Ζ. 186). Penthesíleia seria nomeada numa narrativa posterior aos eventos ocorridos na Ilíada, no poema Aithiopís ou Etiópida, uma das obras perdidas que integravam o conjunto do Ciclo Épico de Troia.

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Conhecemos seu enredo pelo resumo na Chrēstomathía de Proclos (c. II EC). A Amazona Penthesíleia vai ao encontro dos dardânios e participa na Guerra de Troia; no auge de suas proezas bélicas, Penthesíleia enfrenta Akhilleús e é abatida por ele; os troianos se encarregam do seu funeral. Contemplando o belo cadáver da Amazona, Akhilleús se apaixona pela inimiga; Thersítēs escarnece dos sentimentos do herói pela oponente morta e recebe um golpe do Eácida, caindo morto (Chrēstomathía, 175–81). Embora absente da Ilíada, o confronto seguido por desejo necrófilo e assassinato inspirou as posteriores representações iconográfica dessas duas personagens. Um famoso escólio à Ilíada ambicionou antecipar a chegada das Amazonas e o encontro de Penthesíleia e Akhilleús. Sugerindo um acréscimo ao último verso, «ὣς οἵ γ’ ἀμφίεπον τάφον Ἑκτορος ἱπποδάμοιο» (Ω. 804), o escólio anuncia o enredo da Etiópida: «ἧλθε δ’ Ἀμαζών, Ἄρηος θυγάτηρ μεγαλέτορος ἀνδροφόνοιο» (Schol. Iliás, Ω. 804a). A guerreira é relacionada aos adjetivos descritivos do deus Árēs: «μεγαλέτορος» sugere epítetos heróicos. Os elementos «ἦτορ» e «θυμός» convergem no sentido do ânimo ou coração, órgão de força e coragem. Na Ilíada, «θυμολέων», coração de leão, aplica-se tanto a Hēraklē̂s (Ε. 639) quanto a Akhilleús (Η. 228). Junito de Souza Brandão explicou etimologicamente o nome de Penthesíleia a partir do verbo «πάσχειν», forma médio-passiva de «πάσχω», experimentar uma dor, associando-o ao substantivo «λαός» ou «λεώς», o povo (Brandão 2014 [1991], 499). Interpretação distinta foi oferecida por Ken Dowden, evidenciando uma equivalência entre Akhilleús e Penthesíleia. A primeira parte do nome da Amazona de Themíscyra se formaria do substantivo «πένθος», dor, tristeza, refletindo de modo direto «ἄχος», componente do designativo de Akhilleús: aflição, dor, desgosto 1064

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(Dowden 1997, 99). Ambos os nomes se completam com a terminação «λαός» que remete não somente ao povo, mas ao povo em armas —aos exércitos comandados pelas personagens. Mais que uma simples correspondência entre a heroína e o semideus, Penthesíleia é «a contraparte feminina» de Akhilleús (Dowden 1997, 99). Penthesíleia também se associa aos heróis pan-helênicos Hēraklē̂s e Thēseús. Diodoro Sículo e Pseudo-Apollodoro informam que esses filhos de Zeús e Poseidō̂n expedicionaram contra o País das Amazonas. Sob as ordens do rei Eurystheús, Hēraklē̂s enfrentou as mulheres guerreiras para conseguir o cinturão de Hippolýtē. Conforme algumas versões do mito, Thēseús o acompanhava e tomou à força uma Amazona —Antiópē, Melaníppē ou Hippolýtē—, com quem teve um filho: Hippólytos. Após capturar Hippolýtē, Hēraklē̂s precisou enfrentar os contingentes das Amazonas. O herói derrotou o contingente inimigo e reduziu de maneira permanente suas forças —permitindo que as populações dominadas insurgissem contra essas conquistadoras (Bibliothḗkē Historikḗ, II. 46.3–4). Em resposta ao rapto de uma Amazona por Thēseús, as guerreiras se organizaram e marcharam desde a foz do Thermṓdōn até Attikḗ, sendo massacradas pelos homens de Athē̂nai (Bibliothḗkē Epitome. I.16–17). Destarte, quando deixou Thermíscyra e se dirigiu à Trôade, Penthesíleia comandava um grupo muito reduzido de guerreiras sobreviventes (Bibliothḗkē Historikḗ, II. 46.5). Numa das versões, ela sequer é chamada de «βασίλισσα» (Bibliothḗkē, Epitome. V.1). Diodoro a denomina «τὴν βασιλεύουσαν τῶν ὑπολλειμμένων Ἀμαζονίδων», informando que após matar alguém de sua própria estirpe, «φόνον δ’ ἐμφύλιον», Penthesíleia deixou a sua pátria para protegê-la da própria conspurcação, «μύσος» (Bibliotheca Historica, II. 46.5). A informação apresentada pelo Pseudo-Apollodoro indica que 1065

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a companheira acidentalmente assassinada por Penthesíleia foi Hippolýtē e acrescenta que a Amazona —sem nenhuma menção à dimensão da sua escolta— se dirigiu à Trôade em busca de purificação, «καθαίρειν», recebendo-a pelas mãos de Príamos (Bibliotheca, Epitome. V.1). Os crimes de sangue eram considerados causa de contaminação ou «μίασμα». Frequentemente requeriam purificação, «κάθαρσις», incluindo o exílio do culpado e o expurgo de seu dolo pela intervenção de outrem. Após assassinar Thersítēs, Akhilleús também precisou sacrificar a Apóllōn, Ártemis e Lētṓ, sendo em seguida purificado por Odysseús (Chrēstomathía, 182–184). O mito se desenvolve de maneira mais elaborada na Ephemeris Belli Troiani, falsificação tardia atribuída a Díctys de Krḗtē, tradicionalmente considerado um dos correligionários do herói Diomḗdēs; na De Excidio Troiae Historia de Dárēs Phrýgios, personagem igualmente fictícia que os antigos identificavam como sacerdote troiano de Hḗphaistos; e na Posthomerica de Quintus Smyrnaeus, obra que dedica à heroína quase a totalidade do primeiro de quatorze livros. A partir destas fontes mais tardegas é possível propor uma interpretação do mitema dos feitos heróicos de Penthesíleia independentemente do espelho oferecido por Akhilleús. Díctys descreve uma tentativa de embaixada de Héktōr de Troia a Penthesíleia. Os argivos descobrem suas intenções e armam uma emboscada para sua guarnição, Akhilleús assassina Héktōr, amarra-o ao seu carro e arrasta o cadáver diante de Ílion, para desespero dos dardânios (Ephemeris., III. 15). Durante os funerais de Héktōr, Penthesíleia chega à Trôdade liderando um destacamento formado pelas Amazonas. As mercenárias são persuadidas a aderir ao lado troiano ao receberem promessas de recompensas em ouro e prata. Amazonas e guerreiros anatólios são conduzidos por Penthesíleia. A «regina» enfrenta os maiores comandantes das hostes dos aqueus: 1066

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Agamémnōn, Menélaos, Aías, Diomḗdēs e Akhilleús. Muitos soldados arruínam-se sob as setas de Penthesíleia antes que o Pelida consiga desmontá-la de sua sela. Penthesíleia tomba do cavalo sem vida, causando a debandada das linhas anatólias. Os gregos discutem sobre como proceder com o cadáver. Enlevado por sua beleza e admirando sua audácia e bravura na refrega, Akhilleús quer assegurar sua inumação. Diomḗdēs, entretanto, convence as hostes helênicas a punir os excessos da donzela, por contrariar a sua natureza feminina. Com o apoio dos soldados, toma-a pelos pés e lança o cadáver ao Skámandros (Ephemeris., IV. 2–3). Os eventos são invertidos na narrativa de Dárēs. Hekábē consegue persuadir Páris a emboscar Akhilleús no templo de Apóllōn Thymbraîos, onde o herói cai morto. Agamémnōn convoca os dardânios à guerra em resposta ao ultrajante assassinato. Príamos consegue garantir a fortificação da cidade enquanto espera pelas Amazonas. Penthesíleia impõe uma amarga derrota aos gregos e destruiria todas as suas naus, não fosse pelo ímpeto combativo de Diomḗdēs. As Amazonas assediam os aqueus; Agamémnōn resiste às suas investidas enquanto espera o retorno do irmão Menélaos que viajou a Skýros para trazer à guerra Neoptólemos, filho de Akhilleús e Dēïdámeia. Assumindo o comando dos Myrmidónes, Neoptólemos vai de encontro a Penthesíleia e acaba ferido por sua oponente. O guerreiro revida sua investida com um golpe tão certeiro que a inimiga desfalece instantaneamente (De Excidio Troiae Historia,36). Neoptólemos não é de modo algum um combatente inferior a Akhilleús —entretanto, parece ser imune à beleza heróica do cadáver da Amazona. O relato mais tardio sobre a participação de Penthesíleia na Guerra de Troia está contido no «liber primus» da obra Posthomerica, pelo poeta Quintus Smyrnaeus. Dispensando maior atenção aos detalhes narrativos posteriores ao 1067

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final da Ilíada, Quintus constrói um panorama bem elaborado sobre o aparecimento de Penthesíleia. Sua chegada à Trôade foi ocasionada por sua ânsia pela guerra ou porque ela fugia de uma fama sinistra na terra natal (Posthomerica, I. 18–21). O rapsodo de Smýrnē nos oferece informações sobre o incidente que culminou na morte da rainha Hippolýtē (Posthomerica, I. 27–30) e os nomes das doze guerreiras em sua comitiva, todas nobres Amazonas «ἀγακλειταί» a seu serviço (Posthomerica, I. 33–36). Nesta versão, os dardânios se entusiasmam com a chegada das Amazonas e Penthesíleia é recebida «como uma filha» no palácio de Príamos. O velho rei de Ílion oferece-lhe presentes preciosos e promete muitos mais pela vitória sobre os inimigos (Posthomerica, I. 93–95). Penthesíleia responde à solicitação com ingênua confiança, marca que o autor do poema imprime ao longo dos muitos versos a ela dedicados. A Amazona se apresenta para a guerra com uma ferocidade impressionante e trágica, pois à medida que seus prodígios militares aumentam também se aproxima o Destino: «οὕνεκα Μοῖρα ποτὶ κλεινὸν ὀτρύνουσ’ Ἀχιλῆα» (Posthomerica, I. 389a). Akhilleús fere-a no seio direito, derrubando-a da sela. Penthesíleia tenta implorar por clemência, mas a morte é mais rápida em cobrir-lhe os olhos. Os aqueus retornam seu corpo a Príamos e os troianos sepultam sua valiosa aliada junto às famosas muralhas de Troia (Posthomerica, I. 782–788). O episódio evoca a morte e a profanação do cadáver de Héktōr. Mas, desta vez, Akhilleús não se atreveu a macular o corpo de sua oponente. Penthesíleia guarda algumas semelhanças com outra personagem, Atalántē, identificada como o arquétipo das Amazonas, segundo Adrienne Mayor (2014, 10). Enfrentando Pēleús no pugilato (Berquó 2021, 190), Atalántē prefigura o combate entre Akhilleús e Penthesileía —em condições mais amistosas e com resultado melhor que a heroína épica. 1068

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Continuando a tradição, Penthesileía também se apresenta como modelo para outras destemidas personagens femininas, como a guerreira Camilla, apresentada na Eneida (Barbosa 2021, 918). Uma sequência de mulheres fortes que representam uma alternativa à submissão exigida ao sexo feminino pelas normas de condutas impostas pelo patriarcado. Fontes históricas ATHENIAN black-figure skyphos (525 – 475 bc), s.n. A: Amazonomachy, Penthesilea in patterned suit and Achilles with Beotian (?) shield, between Hermes and Thetis, device satyr mask. B: Fight (warriors between women). Attributed to Theseus Painter. Basel: Münzen und Medaillen A.G. LIMC ID: 8793. Beazley Archive: Vase 632. APOLLODORUS. 1921. The Library. Translated by Sir James George Frazer. London: William Heinemann & New York: Putnam’s Sons. Loeb Classical Library, 121–122. DARETE FRIGIO. 2015. Storia della Distruzione di Troia. Introduzione e traduzione di Nicoletta Canzio. Milano: Bompiani. DIODORUS SICULUS. 1935. Library of History. Translated by C. H. Oldfather. London: William Heinemann & Cambridge, MA: Harvard University Press. DITTI DI CRETA. 2015. Diario della Guerra di Troia. Premessa ed Introduzione di Valentina Zanusso. Milano: Bompiani. GREEK EPIC FRAGMENTS. 2003. From the Seventh to the Fifth Centuries BC. Edited and translated by Martin Litchfield West. Cambridge, MA: Harvard University Press & London: William Heinemann. Loeb Classical Library 497. HOMER. 1924–1925. Iliad. Translated by Augustus Taber Murray. Cambridge, MA: Harvard University Press & London: William Heinemann. Loeb Classical Library 170–171. 1069

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A presença das mulheres na Literatura e na História

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*Teutana › Teuta

por Paulo Pires Duprat

Teuta (ca. 260 aEC) foi uma rainha celto-ilírica do reino Ardieu, entre 230 e 228 aEC, uma das primeiras mulheres guerreiras a lutar contra o imperialismo dos gregos e romanos. Teuta, cujo nome significa «aquela que dirige o povo», controlava as rotas no Adriático com sua poderosa frota naval e desafiou os interesses de Roma, que acabara de firmar-se como potência naval ao derrotar os cartagineses na Primeira Guerra Púnica (264 e 241 aEC). Essa mulher fez estremecer os mares e suas ações levaram Roma a declarar uma guerra total contra ela. Contudo, passou para a História como uma rainha «pirata» por causa do caráter tendencioso dos registros. Todos descrevem Teuta e os ilírios com desdém e preconceito; eles eram os «outros»: «bárbaros», ladrões, piratas e criminosos, que mereceram ser excluídos da História. As histórias sobre Teuta foram escritas em grego por autores que cobriram a Primeira Guerra Ilírica (230–229 aEC): Políbio (203–120 aEC), Apiano (95–165 EC) e Dião Cássio (163–229 EC), todos posteriores ao evento e simpatizantes do lado que venceu. Historiadores antigos costumavam ser soberbos e parciais com os povos que consideravam inferiores. E historiadores atuais costumam usar essas fontes sem qualquer visão crítica, perpetuando suas imprecisões e injustiças. Histórias, de Políbio, considerada a obra mais completa e próxima do tempo narrado, é a mais veiculada, embora seja misógina e preconceituosa. Políbio descreve Teuta como mulher sem juízo e os ilírios como os «inimigos em comum de todos os povos» (II, 12. 6). Mas ele baseou-se nas obras do político Fábio Pictor (254–201 aEC), o mais antigo historiador

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romano, ufanista e pouco confiável. De modo que os ilírios devem ser lembrados como um povo indômito e guerreiro, que resistiu ao imperialismo das culturas hegemônicas; Teuta merece ser destacada como vulto histórico e uma espécie de baluarte do feminino na Antiguidade, ao lado de Cleópatra, Boudica e Zenóbia, entre outras. Durante o Período Helenístico, o mundo greco-romano convencionou chamar de ilírios as várias tribos que ocuparam a costa leste do mar Adriático, a despeito de sua diversidade étnica e linguística. O termo «ilírio» possui em si uma conotação pejorativa, pois provém das obscuras palavras gregas ἰλλίς e ἰλλός (torcido, torto ou sinuoso). Como o idioma Ilírio não chegou até nós, tudo o que resta deles são os nomes inscritos em suas lápides funerárias e os termos que os gregos e romanos lhes atribuíram. No que concerne às acusações criminais sobre a pirataria de Teuta e seguidores, há muitas controvérsias acadêmicas sobre o tema: como distinguir o que seria pirataria, banditismo, guerra ou guerrilha neste período? Passagens célebres de Aristóteles (Pol. 1255a–1.1256b) e Tucídides (Tuc. 1.5.1–3) deixam claro que a pirataria antiga era legal e estava associada ao escravismo, atividade econômica muito lucrativa, onde não só bens como também pessoas eram apropriadas, o que garantia muita liquidez. Todos os povos do Mediterrâneo praticaram o saque e a pirataria e a atividade podia conferir ao praticante o honroso status de «conquistador», era o modo de vida de muitos. Esse caráter ambíguo persistiu por muito tempo: milhares de anos depois, já em Período Moderno, corsários praticaram pirataria ao depredar o Império espanhol com autorização expressa da rainha da Inglaterra. Somente a instituição de um sistema legal que vem evoluindo há milênios tem sido capaz de mudar isso, mas até certo ponto. 1074

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Teuta foi a esposa do rei Agron, o primeiro a reunir sob sua liderança as diversas comunidades ilíricas na costa do Adriático, situadas entre a Ístria (atual Eslovênia) a Lissus (Norte da Albânia). Agron faleceu de pleurisia após festejar em excesso sua vitória sobre os Etólios, «o mais orgulhoso dos povos na época» (Pol., Histórias, II, 4.5). A rainha Teuta assumiu como tutora do menor Pines, filho de Agron com a esposa anterior, que se chamava Triteuta. Teuta não ficou lamentando a morte do marido por muito tempo: ampliou e transformou a marinha ilírica em uma máquina de guerra eficiente e continuou sua política expansionista com ainda mais agressividade. Habilidosa, Teuta foi confrontada com muitas revoltas internas, mas conseguiu lidar com a situação. Em seguida, capturou a cidade de Fênice, no Epiro e, logo após, atacou a Córcira (atual Corfu). As Ligas Aqueia e Etólia, duas das maiores potências navais da época, enviaram uma frota combinada contra ela, mas Teuta e seus aliados as derrotaram. Estaria Teuta praticando pirataria ou imperialismo, expandindo seu território e poder? Como os ilírios, povo considerado inferior e criminoso, pôde reunir conhecimento bélico, naval e tático a ponto de ameaçar os interesses das maiores potências da Antiguidade? A resposta está na tecnologia. Os ilírios eram «experts» e usavam navios adaptados às condições do local: a «lembi» foi o artefato tecnológico que permitiu que os ilírios estivessem na vanguarda do progresso militar. Servia tanto como navio de assalto, quanto para o transporte de tropas ou bens. De pequena dimensão e manobrável, era veloz e capaz de embarques e desembarques rápidos, encontrava refúgio nas menores enseadas, perfeitos seja para abordar e saquear navios mercantes, ou para o desembarque de tropas nas praias. Comparáveis aos modernos destroieres, o projeto da «lembi» foi copiado e incorporado à marinha romana logo após o confronto. 1075

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Reiteradas queixas de comerciantes itálicos acerca da ameaça ilírica chegaram ao Senado em Roma, que enfim decidiu intervir, pois isso estava prejudicando o abastecimento da cidade. A Primeira Guerra Ilírica foi muito importante, pois trata do primeiro passo de Roma rumo à conquista do mundo mediterrânico, que começou pelo Oriente, o objetivo declarado era auxiliar os gregos, que estavam divididos e enfraquecidos por intermináveis lutas intestinas, mas foi a oportunidade perfeita para os romanos estenderem sua influência. Segundo a versão de Políbio (Histórias, 2.2–8), Roma enviou para a Ilíria os irmãos Coruncânios, que eram os legados do período, para protestar e pedir reparações; o mais jovem teria sido arrogante e a rainha Teuta, tomada por um «capricho feminino», mandou matá-lo a caminho de casa. Seguiu-se uma declaração romana de guerra, que enviou uma força avassaladora em 229 aEC, com duzentos navios, vinte mil homens de infantaria e dois mil cavaleiros; Teuta ofereceu combate mas foi traída por um de seus principais aliados, Demétrio de Faros, que não só se rendeu como ajudou os romanos. Teuta foi obrigada a ceder e sua posição como líder da Ilíria foi assumida por Demétrio de Faros, que agora era títere dos romanos. Várias cidades gregas se submeteram à «proteção» de Roma e foram impostas graves restrições às futuras ações navais dos ilírios: não poderiam navegar mais do que duas embarcações desarmadas, além dos limites de Lissus. A versão de Apiano (História Romana, 2.7) é muito diferente. Segundo ele, a embarcação que trazia a comitiva foi atacada no mar de forma fortuita por guerreiros ilírios. No ataque, foram mortos não só um dos irmãos Coruncânios, como também Cleemporos, um dos enviados dos issenos. Ou seja, seria uma comitiva conjunta que jamais se encontrou com Teuta. É possível que Teuta não tenha mandado matar 1076

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ninguém. Alguns acadêmicos preferem a versão de Apiano. Já Dião Cássio (História Romana, 12, fragmentos, 94; Zonaras 8.19.3–7), ao relatar o destino dos legados, oferece também um relato misógino, apresentando Teuta segundo o estereótipo de mulheres com «visão curta, caprichosas e irracionais», mencionando que um dos legados foi morto e que os demais foram aprisionados por Teuta. Teuta refugiou-se com alguns correligionários em Rhizon; ao perceber que não poderia resistir, enviou uma embaixada para Roma e apresentou um pedido de desculpas formal, concordando em pagar tributo. Mas conseguiu que o direito sucessório de Pines fosse respeitado, renunciando a seguir, segundo Dião Cássio. Sob a anuência dos romanos, Demétrio de Faros casou-se com Triteuta, a mãe legítima de Pines e assumiu a regência. Demétrio trairia os romanos dez anos depois, causando a Segunda Guerra Ilírica (220–219 aEC). A versão de Apiano é a mais objetiva; Políbio sequer menciona Pines, cuja existência é corroborada por Dião Cássio. De modo que Teuta lançou mão de seu poder e habilidades náuticas para apropriar-se das riquezas e territórios dos estrangeiros e foi hábil até ao render-se. Mas o discurso de seus rivais acabou por convencer historiadores de todos os tempos de que os ilírios eram facínoras, piratas e os inimigos comuns de todos os povos. Referir-se à pirataria como crime no período de Teuta é anacronismo; a atividade deve ser entendida como guerrilha, uma tática de guerra legítima dos oprimidos perante o imperialismo das potências. Suas virtudes continuaram presentes no imaginário popular nos tempos que se seguiram. Chaucer fez a seguinte dedicatória a ela em The Canterbury Tales (1392): «O Teuta, rainha! A tua castidade conjugal, para todas as esposas, deve ser um espelho». Em 1602, o «bardo» William Shakespeare 1077

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escreveu uma peça, Twelfth Night («Noite de Reis»), onde muitos estereótipos de gênero são desafiados e ocorrem em uma «cidade da Ilíria». Muitos séculos depois, o nacionalismo albanês fez dela um ícone de sua causa, erguendo diversas estátuas em sua homenagem. Inclusive, há um time de futebol albanês que leva seu nome e sua égide figura em moedas comemorativas. Em suma, muitas construções literárias são concebidas para produzir discursos pejorativos. Mas a coragem dessa mulher guerreira, que exerceu o poder defendendo as causas do seu povo, transformou-a em um ícone feminista imortal para os períodos posteriores da História. Então, cabe a nós continuar escrevendo versões mais justas de sua história. Fontes históricas APPIAN. 1899. The Roman history of Appian of Alexandria. Translated by Horace White. New York, London, Macmillan. ARISTOTLE. 1944. Aristotle in 23 Volumes, vol. 21. Translated by H. Rackham. Cambridge: Harvard University Press; London: William Heinemann. CHAUCER, G. 1988. Os contos de Cantuária (The Canterbury Tales, 1392). Tradução e notas de Paulo Vizioli. São Paulo: T. A. Queiroz. POLYBIUS. 1922. Histories. 1–2. Translated by W.R. Paton. Cambridge, Mass.: Harvard University Press (Loeb Classical Library, 128). CASSIUS DIO. 1914–1927. Roman History, V. (Books 46–50). Translated by Earnest Cary. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. SHAKESPEARE, W. 2000. Twelfth Night. (1602). Edited by Sidney Lamb. Foster City, CA: IDG Books. 1078

A presença das mulheres na Literatura e na História

THUCYDIDES. 1910. The Peloponnesian war. London/New York: Translated by J. M. Dent/E. P. Dutton. Bibliografia geral DEROW, P. S. 1973. Kleemporos, Phoenix, vol. 27, n. 2, 1973, p. 118–134. GABRIELSEN, V. 2003. Piracy and the slave trade. In: ERSKINE, A. (Ed.). A Companion to the Hellenistic World. Oxford: Blackwell, p. 389–404. MARQUETTI, F. R.; FUNARI, P. P. A. (Orgs.). 2019. Autorretrato: gênero, identidade e liberdade. Londrina: EDUEL. SASEL KOS, M. 2005. Appian and Illiricum. Lujublijana (Slovenia): Narodni Musej Slovenije. WILKES, J. 1992. The Illyrians. Oxford: Blackwell.

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Τόμυρις › Tômiris

por Rodrigo dos Santos Oliveira

Tômiris (Τόμυρις [Tomyris]) foi uma rainha massageta que viveu por volta do século VI aEC. Os massagetas, por sua vez, foram uma confederação nômade de origem iraniana que habitou partes da estepe eurasiática ao nordeste do Mar Cáspio (Melykova 1990). Pouco se sabe sobre a vida de Tômiris, apenas que liderou a confederação dos massagetas, era viúva, tinha um filho chamado Espargapises e protagonizou uma das versões da morte de Ciro, o Grande, governante do Império Persa Aquemênida. Grande parte das informações que se têm sobre Tômiris advém do Livro I das Histórias de Heródoto. Há também uma versão diferente que reconta o episódio da morte de Ciro pelas mãos de Tômiris na obra Estratagemas, de Polieno, escritor romano do século II EC. Ademais, a rainha massageta também foi brevemente mencionada por alguns outros autores mais tardios, como Jordanes (Getica, X. 61), que citou Tômiris como rainha dos getas. De acordo com Heródoto (Histórias, I. 205–207), Ciro o Grande, insatisfeito com o que havia conquistado até aquele momento, desejou conquistar a terra dos massagetas e, para isso, ofereceu à Tômiris, que era viúva, um pedido de casamento. Contudo, sabendo que o objetivo de Ciro era conquistar o reino dos massagetas, Tômiris o recusou. Descontente com a resposta da rainha massageta, o rei persa deu início aos preparativos para a guerra, mas Tômiris o alertou dizendo que a invasão persa não traria resultados positivos e que o rei deveria ficar contente em governar seu próprio reino. Ciro, então, reuniu seus conselheiros, que em sua maioria aconselharam-no a seguir seus planos de invasão contra os massagetas. Todavia, Creso, antigo rei da Lídia e um dos

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conselheiros do rei, demonstrou-se descontente com os conselhos e afirmou que o rei não era imortal, mas um homem cuja sorte poderia mudar. Creso acreditava, no entanto, que Ciro não deveria ceder a uma mulher, e por isso deveriam elaborar outros planos para a conquista. O conselheiro, por conseguinte, explicou a Ciro que a fraqueza, assim como a força dos massagetas, era o fato de não estarem acostumados às «decadentes luxúrias» da Pérsia. Como nômades, os massagetas bebiam somente leite e nunca haviam experimentado o vinho. Creso, portanto, recomendou a Ciro que invadissem o território massageta, montassem acampamento, preparassem um banquete e então retornassem para a Pérsia. Ciro aceitou o conselho de Creso e invadiu as terras massagetas, preparou o acampamento e retornou a suas terras. Acreditando terem os persas abandonado o acampamento, os massagetas invadiram, embriagaram-se com o vinho persa e caíram no sono. No outro dia, os persas retornaram ao acampamento e capturaram e mataram os massagetas, dentre os cativos estava Espargapises, filho de Tômiris (Heródoto. Histórias, I. 207–211). Quando a rainha massageta descobriu sobre o ocorrido, enviou a Ciro uma carta, afirmando que o rei persa não possuía razões para se orgulhar, já que não havia vencido seu filho pelo combate, mas sim através da astúcia. Tômiris então ameaçou Ciro, declarando que se o rei persa não entregasse seu filho, «preencheria a sede de sangue» de Ciro, que parecia «insaciável mesmo após ter conquistado tanto». Ciro novamente ignorou Tômiris e não libertou Espargapises. Após retomar a sobriedade, todavia, o filho de Tômiris cometeu suicidou em cativeiro (Heródoto. Histórias, I. 212–213). Sabendo disso, Tômiris mobilizou as forças massagetas para lutar contra Ciro. Após uma batalha descrita por Heródoto como a «maior lutada por não-gregos», os persas foram derrotados. Tômiris, então, preencheu um odre de vinho com sangue 1082

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humano e fez o cadáver de Ciro bebê-lo, dando a ele «sua cota de sangue». Heródoto observou que essa é apenas uma das diversas versões existentes sobre a morte de Ciro, mas que acreditava ser a versão mais digna de verdade (Heródoto. Histórias, I. 214). A outra versão que reconta o momento da morte de Ciro por Tômiris foi descrita por Polieno (Estratagemas, 31). Na versão de Polieno, contudo, é Tômiris quem deixa para trás um acampamento com grandes quantidades de vinho. Nessa versão, após os persas saquearem o acampamento e ficarem imoderadamente bêbadas, os massagetas retornaram, matando e prendendo a todos, Ciro é morto nesse contexto. Tômiris o mata, corta em pedaços, e força seu cadáver a beber um odre com sangue humano. Segundo Johan Weststeijn (2016, 92–93), a história de Tômiris pode ser comparada a outras histórias de mulheres da Antiguidade no espaço do Oriente Próximo, mais especificamente as histórias de Judite, Zenóbia de Palmira e Jalila. Para Weststejin (2016), todos esses contos giram em torno de uma temática central, a queda de tiranos gananciosos e lascivos, além disso, tais histórias possuem, para o pesquisador, uma estrutura narrativa muito próxima. Weststeijn (2016, 94–95), à vista disso, acredita que há uma espécie de «tipo de conto» comum ao Oriente Próximo, transmitido através da oralidade, sobre o qual diversos autores se debruçaram para construir suas narrativas, como é o caso de Heródoto, do autor bíblico de Judite e dos contadores de história árabes responsáveis pelas narrativas em torno de Zenóbia e Jalila. Tômiris também possui diversas representações na Modernidade. No teatro, foi citada por William Shakespeare na peça Henrique VI, Parte 1 (1588–1590). Foi também representada por pintores barrocos, como exemplo das obras de Peter Paul Rubens e Mattia Preti, onde Tômiris foi pintada segurando a 1083

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cabeça decepada de Ciro, o Grande. A rainha massageta também esteve presente na ópera, com a peça Tomyris, Queen of the Scythia (1707), produzida por John James Heiddeger. Mais recentemente, Tômiris é encontrada em diversas mídias contemporâneas, como é o caso do filme cazaque Tomyris (2019), produzido pela Kazakhfilm e dirigido por Akan Satayev. No filme, tanto a rainha quanto os massagetas são representados falando turco antigo, o que pode ser interpretado como uma decisão política, já que o cazaque, língua oficial do Cazaquistão, faz parte das línguas turcas. Nesse sentido, é bastante possível que o filme tenha buscado representar Tômiris como uma espécie de rainha heroica na gênese do Cazaquistão, ignorando questões como a veracidade ou não da morte de Ciro pelas mãos da rainha ou a própria língua iraniana falada por massagetas, citas, sármatas e outros grupos nômades do mesmo período. Por fim, no âmbito dos jogos eletrônicos, Tômiris também é uma personagem do jogo de estratégia Sid Meier’s Civilization VI (2016), produzido pelas empresas Firaxis e 2K Games, e pode ser selecionada pelos jogadores para liderar a «civilização» (utilizando-se aqui da linguagem do jogo) dos citas. Fontes históricas SID MEIER’S CIVILIZATION VI. 2016. Lead designer: Ed Beach. Califórnia: 2K Games (Jogo eletrônico). HERÓDOTO. 1969. The Persian Wars. Translated by A. D. Godley. Cambridge, MA: Harvard University Press. JORDANES. 1915. The Gothic History of Jordanes. Translated by C. C. Rielow. Princeton: Princeton University Press. P O L I E N O . 1 7 9 3 . S t r a t a g e m s o f Wa r . Translated by R. Shepherd. Londres: George Nicol. TOMIRIS. 2019. Direção de Akan Satayev. Cazaquistão: Kazakhfilms (195 min.). 1084

A presença das mulheres na Literatura e na História

Bibliografia geral MELYUKOVA, A. I. 1990. The Scythians and Sarmatians. In: SINOR, D. (Ed.). The Cambridge History of Early Inner Asia. Cambridge: Cambridge University Press, p. 97–117. WESTSTEIJN, J. 2016. Wine, Woman, and Revenge in Near Eastern Historiography: The Tales of Tomyris, Judith, Zenobia, and Jalila, Journal of Near Eastern Studies, vol. 75, n. 1, p. 91–107.

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Blenda › Blenda de Småland

por Renan Marques Birro

A narrativa sobre Blenda (ou Blända) de Småland (uma região da atual Suécia), como muitas outras que remontam a passados quase imemoriais e semilendários da história escandinava, está mergulhada em densas brumas. A separação dos elementos ali amalgamados se mostra inexequível na atualidade, mas a evocação da personagem recobre processos complexos de construção e/ou de narrativas folclóricas e populares. De maneira sintética, a tradição atesta que Alle, rei dos Getas, teria lançado um ataque contra seus vizinhos do Oeste, o que deixou suas terras indefesas. Como o monarca confiava muito em Blenda, ela ficou encarregada pelo rei das mulheres e crianças. Entrementes, os dinamarqueses, que viviam no Sul, souberam que Småland estava desguarnecida de seus guerreiros. Diante do cenário, Blenda armou uma estratégia: ela convocou as mulheres da região, convencendo-as a atrair os terríveis inimigos para um ardil. As líderes foram ao encontro dos dinamarqueses e disseram estar impressionadas com suas capacidades de batalha. Por isso, eles foram convidados para um banquete na terra que pretendiam pilhar. Iludidos, os dinamarqueses seguiram as mulheres e aceitaram a oferta. Contudo, as espertas mulheres capitaneadas por Blenda tinham recorrido a um tipo de sonífero para entorpecer os visitantes. A medida rapidamente fez com que todos os homens caíssem em um profundo e inerte estado de sonolência. Tão logo eles se mostraram incapacitados, as mulheres

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mataram todos os inimigos, lançando mão das armas que eles tinham deixado cair ao dormir. A medida salvou Småland, que permaneceu em paz até o retorno do rei. Elle, ao tomar conhecimento do que aconteceu, imediatamente premiou as líderes com direitos e privilégios como prova da estima e gratidão pelo feito alcançado. Um deles envolvia o alto grau de independência do patrimônio feminino dos bens do marido. A rigor, um esposo não poderia vender as terras de sua mulher sem o consentimento da companheira – ao menos, o tema foi alvo de uma intensa controvérsia quanto aos direitos de cada parte após o matrimônio durante meados do final do século XVII e o início do século XVIII. De fato, uma referência indireta da narrativa desponta na obra O antigo direito dos suecos e dos godos (De iure sueonum et gothorum vetusto, 1672) do advogado e jurista Johan Stiernhöök. Na ocasião, ele teria celebrado o «costume antiquíssimo» garantido às mulheres das cinco regiões habitadas do sul de Småland pelo rei sueco Hakon Ring após seus feitos contra o rei dinamarquês Haraldr hilditǫnn (Haroldo Dente de Guerra, outro monarca lendário que teria reinado sobre a Dinamarca, Noruega e partes da Suécia nos séculos VIII–IX). Assim, as mulheres dali foram premiadas por suas realizações, justificando posteriormente o direito feminino vigente naquela região (1672, 186). No entanto, o nome de Blenda não é citado no documento. Em 1686, uma comissão legal sueca propôs um novo regramento de heranças e matrimônio, na intenção de suprimir os costumes locais e adotar o gozo compartilhado dos bens de homens e mulheres. Outrossim, ela foi fortemente inspirada por conotações econômicas e bíblicas, tal como por ideais de autocontrole e comedimento. Quando a proposta chegou ao sul de Småland, Peter Rudbeck, um proprietário de moinho e parente do famoso Olof Rudbeck (intelectual, 1088

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anatomista e reitor da Universidade de Uppsala), reagiu ao intento e recobrou rapidamente o feito de Blenda em um manuscrito conhecido atualmente como Smålendske Antiqviteter (Antiguidades de Småland, 1693), no qual justificava, além do enorme protagonismo regional (na visão do autor, a perdida cidade de Tróia estaria ali), o benefício feminino pelas razões outrora expostas e, portanto, a manutenção das tradições locais. No entanto, o texto de Rudbeck teve alcance limitado e permaneceu coberto por um véu de obscuridade até o século XIX. O mesmo pode ser dito sobre os feitos da heroína, que mantiveram seu apelo apenas na esfera regional. Considerando a natureza do trabalho de Rudbeck, o feito de Blenda parece compor uma parte do esforço para destacar a relevância de Småland não apenas na história sueca, mas também da humanidade. Não por acaso, a charneca de Brávellir, o suposto palco do estratagema da heroína, talvez abrigou a batalha entre godos e hunos, assim como do conflito entre Ring e Haroldo. É importante frisar que, tal qual na narrativa das mulheres de Småland, estes acontecimentos são marcados de controvérsia e incorporam o status de lendas e construções historiográficas. Diante do exposto, é curioso notar que a controversa história dos feitos da heroína parece ter servido como um dos argumentos evocados na disputa sobre os direitos femininos após o matrimônio, que foram paulatinamente colocados em xeque no transcorrer do século XVIII. Neste sentido, as mulheres de Småland, que desde o período medieval gozaram dos bens transmitidos pela linhagem familiar independentemente do patrimônio de origem marital, perderam sua prerrogativas, sua relativa independência patrimonial e legal e assim tiveram que assumir normas de vida mais generalizadas da sociedade sueca do tipo «mãe e esposa». 1089

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No início do século XIX, os feitos de Blenda foram rememorados e amplamente popularizados pelo poeta Erik Stagnelius (1793–1823) em uma composição de 1818 dedicada às mulheres nórdicas. No poema, apesar de citar a virtude doméstica feminina, Stagnelius chamou atenção que os corações de homens e mulheres podem queimar igualmente em benefício da glória, do Rei e da terra natal. Pouco tempo depois, em 1821, inspirado pela composição poética anterior, Magnus Bruzelius redigiu uma nova versão da narrativa, porém voltada para o público jovem, na qual recobra os feitos da antiga heroína e de suas companheiras. A partir de então, é possível notar um renovado interesse acadêmico, artístico e intelectual em torno de Blenda. Um bom exemplo é a litografia de Hugo Hamilton (1802–1871), que representa as mulheres de Småland armadas no alto de uma colina, cercadas por altas árvores, enquanto a líder aponta para os inimigos dinamarqueses, aludidos de maneira diminuta no fundo, a partir da ilustração de um acampamento. Consequentemente, a conjunção dos valores femininos com a nova estrutura legal fez com que apenas as viúvas pudessem usufruir de seus bens e recursos econômicos. Em época, com as mudanças demográficas em curso no reino, a relação de dependência feminina se mostrou penosa, visto que muitas mulheres solteiras não tinham homens à disposição para se casar e, deste modo, viam-se desprovidas de quem as sustentasse; ao mesmo tempo, elas estavam desamparadas pela lei. Apesar do conservadorismo, a pressão social aumentou, juntamente com os motins estudantis e a abertura das universidades para as mulheres. Assim, a segunda metade do século XIX foi notável por uma onda de valorização de personagens femininas, em parte pela pressão imposta pelas próprias mulheres por sua representatividade populacional, por outras graças à maior participação delas nos círculos intelectuais, 1090

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e ainda como uma espécie de compensação tardia pelos direitos perdidos. Esta parece ser uma das chaves para compreender a recorrente presença feminina nas representações artísticas, históricas e literárias escandinavas do século XIX. Por exemplo, no Encontro dos Estudantes Escandinavos de 1875 realizado em Uppsala, entre brindes, canções e declamações de poemas, as mulheres foram celebradas como amorosas, belas, de olhos sorridentes, esposas e mães, em uma clara emulação das «boas mulheres», dos valores conservadores e do controle masculino. Doutra feita, personagens femininas corajosas reais ou semilendárias (ainda que em época não fossem tratadas assim) foram rememoradas, como Blenda. Neste ínterim, o arranjo extrapolou supramencionado modelo «mãe e esposa» para acatar outros igualmente aceitáveis, como uma líder ou uma «patriota» extemporânea (caso de Blenda). A meu ver, é preciso considerar este novo cenário ao ponderar sobre a representação de Blenda criada pelo pintor e professor sueco Johan August Malmström (1829–1901). Reconhecido por seu interesse pela mitologia e cultura nórdica, o artista dedicou grandes esforços em um curto intervalo de tempo para retratar iconograficamente narrativas do passado escandinavo ligadas direta e indiretamente a Blenda (Konung Ellas sändebud inför Ragnar Lodbroks söner em 1857 e Bråvallaslaget em duas versões inacabadas: a primeira entre 1859 e 1862 e a segunda entre 1867 e 1901). Conquanto guarde semelhanças com a obra de Hamilton, nesta há um maior destaque para as crianças (aparentemente indefesas), além da maior expressividade e plasticidade das mulheres retratadas, que portam clavas, machados, facas e arcos. Em 1891, quando o manuscrito não publicado de Rudbeck foi lido diante do rei Carlos IX, as mulheres do sul de Småland tiveram seus antigos privilégios reestabelecidos. Sendo assim, os feitos de Blenda, reais ou lendários, juntamente com a 1091

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própria ação feminina e as transformações socioculturais suecas da segunda metade do século XIX, parece ter contribuído para a paulatina consolidação dos direitos das mulheres escandinavas e para a construção de uma maior igualdade entre homens e mulheres na Suécia contemporânea. Fontes históricas STAGNELIUS, E. J. 1913. Samlade skfrifter. Vol. 2. Estocolmo: Bonnier. STJERNHÖÖK, J. 1672. De iure Sueonum et Gothorum vetusto. Wankif. Bibliografia geral AGREN, M. 2007. A Domestic Secret: Marriage, Religion and Legal Change in Late Seventeenth-Century Sweden, Past & Present, 194 (1), p. 75–106. BRUZELIUS, M. 1821. Swerges historia för Ungdom. Lund: Berlingska Boktryckeriet. ENEFALK, H. 2011. “Three the Nordic countries are, the Nordic maid but one”. A different perspective on Ninetenth-Century University Festivities. In: DHONDT, P. (Ed.). National, Nordic Or European?: Nineteenth-Century University Jubilees and Cooperation. Leiden: Brill, p. 215–239. NICKLASSON, P. 2014. Sven Nilsson i Blendaland. HumaNetten 32, p. 67–77. STENROTH, I. 2015. Dateringen av Stagnelius epos Blända. Gotenburgo: Citytidningen.

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Hervǫr › Hervör

por Pablo Gomes de Miranda

Hervör (Hervǫr) é o nome dado a uma série de guerreiras e valquírias em diversos textos escandinavos medievais. Um nome incomum, sempre atrelado ao exercício marcial, ela surge no poema Vǫlundarkvíða, a Balada de Völunðr, que a corteja enquanto ela fia linho sentada em um lago. Tal balada pode ser encontrada no núcleo da mitologia nórdica, que hoje tradicionalmente chamamos de Edda Poética, é o manuscrito 2365 4to conhecido como Codex Regius, ou Konungsbók, escrito na segunda metade do século XIII. Na Hervarar saga ok Heiðreks duas personagens recebem esse nome, ambas são guerreiras, mas a primeira se retira da atividade marcial após o casamento, enquanto a segunda morre na batalha entre os Godos e os Hunos, um tema popular do escopo poético germânico, concluindo o destino da donzela de escudo de morrer em batalha ao invés de se domesticar. Não há uma única fonte para essa saga, e seus fragmentos são encontrados em diferentes manuscritos, dos quais os principais são o AM 544 4to, também conhecido como Hauksbók, datado do século XIV, e o GKS 2845 4to, escrito no século XV, portanto bastante tardia. É importante notar uma relação de transmissões entre tais manuscritos: parte do conteúdo do Konungsbók é encontrado no Hauksbók e, apesar de não estar circunscrito a Hervör, não se pode excluir a possibilidade de seus compiladores terem se familiarizados com os elementos pertinentes a essas narrativas. Sendo uma personagem lendária, a localização espaço-temporal de suas narrativas não são nos dadas com exatidão, ao menos na Vǫlundarkvíða, aqui Völunðr e seus irmãos são filhos

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de um rei fínico e as valquírias voam de Myrkviðr, a Floresta Negra, mencionada em diversas fontes lendárias, o que pode nos levar a pensar essa Floresta Negra como uma referência a Escandinávia oriental, possivelmente na Suécia. Contudo, ela também é citada nas fontes lendárias pertinentes aos Burgúndios, em especial na batalha entre Godos e Hunos, presente em diversas narrativas escandinavas medievais, incluindo a Hervarar saga ok Heiðreks. Unir todas as referências desse conflitos, os personagens históricos e lendários e tentar historicizar essa narrativa ainda é tema para debate, já que a famosa batalha dos Campos Cataláunicos, onde o conflito entre os hunos liderados por Átila e a aliança do general romano Aécio com os soldados germanos do rei visigótico Teodorico, para além de seus próprios desafios historiográficos, também é apenas um de vários conflitos possíveis que podem ter servido de inspiração para a menção dessa batalha nas fontes tardias. De todo modo, pode —se imaginar as narrativas fazendo menção aos esforços de guerra contra os Hunos na Gália, entre 451 e 454. Na Balada de Völunðr os três irmãos Slagfiðr, Egill e Völundr caçam animais selvagens em um lugar chamado Vale do Lobo, onde constroem uma cabana e se instalam. Entre as suas caças, os irmãos encontram três valquírias que fiam linho sentadas em um lago. Uma delas é Hervör que se enamora por Völunðr e permanecem juntos por nove anos, quando elas partem por necessidade e para cumprir seus destinos (o poema não deixa claro o que seriam tais destinos). Enquanto seus irmãos vão no encalço das valquírias, Völunðr permanece em casa forjando anéis e esperando o retorno de Hervör. Duas mulheres distintas, avó e neta, protagonizam a Hervarar saga ok Heiðreks cuja a narrativa é centrada na espada Tyrfingr. Aqui, o rei Svarfilami ou Sigrlami força dois anões 1094

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a criarem uma espada mágica que também é amaldiçoada pelos seus forjadores. Svarfilami morre em combate contra o renomado berserkr Arngrímr que toma posse da espada. Esse Arngrímr é pai de Angantýr e avô de Hervör e naturalmente agracia o filho com a espada. Angantýr e os seus irmãos morrem na ilha de Samsø combatendo os heróis ÖrvarOddr e Hjálmarr. Hervör cresce forte e distinta, treinada como guerreira, iniciando a vida primeiro como bandoleira para adquirir riquezas próprias e logo depois como pirata, assumindo o nome de Hervarðr. Ocasionalmente suas aventuras lhe encaminham para Samsø onde desembarca sozinha, pois com medo os homens teriam fica para trás. Lá ela é advertida por um pastor sobre os fantasmas e o fogaréu que protegiam um montículo. Desejosa por confrontá-los, ela acaba se apresentando e sabendo de sua parentela, pois aqueles eram os fantasmas de seus pai e tios (até então Hervör não sabia o destino deles). Enfim, a heroína toma para si a espada Tyrfingr. Após incontáveis aventuras, Hervör se cansa da vida de guerreira e retorna a corte do rei Bjartma, seu avô, abandonando a vida em armas e ocasionalmente se casando com um homem justo de nome Höfundr com quem tiveram dois filhos: Angantýr e Heiðrekr. Depois de suas próprias aventuras, Heiðrekr se torna rei dos godos e casa-se com Hergerðr com quem tem uma filha também nomeada Hervör, em homenagem a sua mãe. Essa menina cresceu parecida em tudo com a sua avó, vindo a ser treinada nas armas e comandando um forte com o seu padrinho além Myrkviðr, a Floresta Negra, protegendo as fronteiras góticas contra as invasões dos hunos. É na defesa de um desses ataques que ela tomba em batalha, não sem antes tocar a sua corneta para anunciar a aproximação dos inimigos, organizar os seus homens e lutar contra as forças esmagadoras dos invasores. 1095

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Há uma diferença crucial na representação das duas mulheres. Segundo Luciana de Campos (2018, 194–196) a Hervör avó precisou se rebelar e matar para pontuar sua rejeição pela vida doméstica, se dedicando à vida guerreira, enquanto a Hervör neta já nos é apresentada como uma mulher que se dedicou desde cedo a vida guerreira e encontra o destino correspondente ao desempenho de suas atividades marciais. Contudo ambas as personagens ressignificam ao seu jeito as possibilidades de tomar as rédeas de suas vidas pessoalmente desafiando os papeis lhes atribuídos socialmente. A neta herda de sua avó não só o nome, mas também a vocação para a guerra, talvez demonstrando de alguma forma uma continuidade entre as personagens, que deviam ser populares para diferentes tipos de audiência que ouviriam essa saga oralmente. Como lembrado por Langer (2015, 246; 247), as narrativas de Hervör foi tema de diferentes pinturas românticas. No início do século XIX, Christian Gottlieb Kratzenstein Stub pintou Hervør henter sværdet Tyrfing hos Angartyr, representando o momento em que ela argumenta com o seu pai morto, demandando a espada amaldiçoada Tyrfingr. Em 1885, Jenny Nyström pintou a tela Hervör onde também representa a mesma cena onde a guerreira demanda sua espada após acordar o cadáver de seu pai. Cinco anos antes, Peter Arbo pintou a tela Hervors død, provavelmente a representação mais famosa da guerreira, e não diz respeito ao encontro da heroína com o seu pai, mas a representação da donzela no momento em que ela falece após a luta contra os hunos. Uma outra versão menos conhecida mostra Hervör em um corcel branco e liderando seus homens em campo de batalha. A título de curiosidade, o poema Hervararhvöt ou Hervararkviða foi considerado uma evidência importante no estudo de cultos guerreiros indo-europeus e comparações diversas foram traçadas com costumes ainda observados no 1096

A presença das mulheres na Literatura e na História

Rajastão dentro do contexto colonial britânico. Mais uma tendência orientalista e carregada de problemas coloniais que uma perspectiva acadêmica válida, houve uma intensa busca pelas raízes da cultura religiosa e mitológica germânica em práticas ainda observáveis entre os indianos do século XIX, como observados em Rix (2010) e Miranda (2012). Fontes históricas VǪLUNDARKVÍÐA. 2014. In: Eddukvæði – vol. I, Goðakvæði. Reykjavík: Hið Íslenzka Fornritafélag, p. 428–437. HERVARAR SAGA OK HEIÐREKS KONUNGS. 1892– 1896. In: Hauksbók. Copenhagen: Thieles Bogtrykkeri. Bibliografia geral CAMPOS, L. 2018. Literatura e Mito na Escandinávia Medieval. Aspectos da Mulher Guerreira na Saga de Hervör. Tese de Doutorado em Letras defendida na Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa – UFPB. LANGER, J. 2015. Hervör. In: LANGER, J. (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica – Símbolos, Mitos e Ritos. São Paulo: Hedra, p. 245–247. MIRANDA, P. G. 2012. Ninguém Pode Entender os Rajputs de Outrora, Medievalis, vol. 2, p. 83–97. RIX, R. W. 2010. Oriental Odin: tracing the east in northern culture and literature, History of European Ideas, vol. 36, p. 47–60.

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Hlaðgerðr › Lagertha

por Pablo Gomes de Miranda

Na tradição latina, Lagertha é uma guerreira norueguesa que figura no nono livro da crônica Gesta Danorum (Os Feitos dos Dinamarqueses), atribuída à pena de Saxão Gramático no século XII, onde ela consta no quarto capítulo do mencionado livro. Vários dos elementos encontrados na Gesta Danorum são comuns às outras fontes da vida de Ragnar Lóðbrók, como as suas calças especiais utilizadas para lutar contra as serpentes, seus filhos, inimigos e feitos, mas apenas aqui Lagertha é mencionada. A obra foi escrita com uma notável erudição e é possível alegar que, em razão de sua educação, Saxão descreveu suas guerreiras seguindo modelos da literatura clássica, a exemplo de Camila, personagem de Eneida pertencente a tribo dos Volscos. A sua primeira aparição está no encontro com o herói Regner, este que é conhecido na poética nórdica antiga como Ragnar Loðbrók (Saxão. Gesta Danorum, IX, 4, 2–4): aqui, Lathgertha lidera grupos de mulheres que lutam contra as forças invasoras do rei sueco Frø, que aproveitou a morte do rei Siwardo e a ausência de Regner no trono da Noruega, para tomar o reino e colocar as mulheres nobres em um lupanar como forma de humilhar os homens. Grupos de guerreiras rebeldes começaram a se vestir como homens a fim de proteger sua castidade. Lathgertha tinha a mente de um homem em corpo de mulher e combatia na linha de frente com as suas madeixas esvoaçantes, única maneira de lhe identificar como mulher na luta.

A sua valentia e proezas em batalha garantiram a vitória de Regner contra Frø, que pediu aos seus homens que intercedessem no cortejo, o que ela aceitou com desdém. Um encontro foi marcado e, deixando seus homens em Gaulardal, ele procedeu para a casa dela e precisou vencer um urso e um cão que guardavam a sua casa, para aí sim ganhar os favores da moça. Tiveram duas filhas que não sabemos os nomes e um rapaz chamado Fridlev, que manteve em serviço os homens que foram dispensados por seu pai. Anos depois eles se divorciam para que Regner se casasse com Thora, filha do rei Heroth. Ela surge novamente nos esforços guerreiros contra duas tribos dinamarquesas (Saxão. Gesta Danorum, IX, 4, 9–11): anos depois os Jutos e os Escanos se revoltaram e para combatê-los, Regner precisou de todos os seus aliados, enviando emissários para contactar todos os noruegueses que lhe mantinham amizade. Prontamente Lathgertha, que ainda lhe mantinham sentimentos, foi socorrê-lo com seus navios e um novo marido. Saxão Gramático não poupa as palavras na descrição de sua atuação em batalha, em especial na liderança dos guerreiros que inspirava com exibição de bravura e manejando seus bandos de forma a cercar os inimigos e se lançar para a matança. Após o retorno para casa, ela assassina o marido com um dardo, reinando sozinha, uma atividade que achou ser mais prazerosa fazer sozinha que dividir com alguém, o que é desaprovado por Saxão que a classifica como de disposição arrogante, insolente, ao invés de encontrar alegria no governo com um cônjuge. Novamente, a presença de mulheres guerreiras na literatura de Saxão Gramático é abundante, tanto aquelas que batalharam em Brávellir, como Sela, Hetha e Visna, bem como Rusila que possivelmente seria a personagem histórica Ingean Ruadh, a donzela vermelha citada nos Anais Irlandeses,

segundo Langer, (2015, 321). Todavia, apesar de sua ferocidade, elas lutam para serem vencidas por homens no final, seja em guerra ou pelo casamento, quando abandonam suas armas e armaduras por vestidos. Como nos lembra Judith Jesch (2001, 177–178), mesmo quando elas lideram bandos guerreiros, elas mesmas descritas como possuindo qualidades masculinas, são abatidas no combate. Quando transcendem esse estágio, elas são «ganhas» pelos seus pretendentes após vencer testes de virilidade, que envolve o abate de bestas (dragões, serpentes, ursos e cães). Para Saxão Gramático a existência das mulheres guerreiras é pertinente ao passado pagão da Dinamarca. Não à toa, no momento em que é apresentada a história dinamarquesa após a conversão (notadamente no livro seguinte), já não há mais corajosas guerreiras em sua crônica. Desse modo, interpretamos que Lathgertha, como a última representante desse gênero, já não aceita a companhia de um marido, preferindo governar sozinha, pondo fim também a essa tradição, sendo a única guerreira na Gesta Danorum que lidera diretamente os seus bandos, vencendo batalhas em razão de suas capacidades táticas. Desse modo, o argumento de que ela assume o papel de valquíria, representando uma função marcial em que o herói se torna vencedor por receber benesses e proteções mágicas da contraparte feminina (a exemplo das baladas de Helgi da Edda Poética) não se sustenta de maneira sólida, pois o que garante a vitória que Regner precisa são suas qualidades guerreiras (liderando os homens, lutando na linha de frente, utilizando as táticas corretas). O termo utilizado aqui é circumvolare, que de fato poderia indicar que ela estaria voando, ou simplesmente correndo ao redor dos inimigos.

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Fora a narrativa em Saxão Gramático, a verdade é que não temos quase nenhuma informação sobre uma possível historicidade dessa personagem, mas é possível traçar algumas possíveis conjecturas acerca de seu nome segundo apresentadas em Davidson (2008, 151–152): há uma probabilidade do seu nome em nórdico antigo ser Hlaðgerðr, semelhante a uma personagem da Hálfdanar saga Brunufóstra. Se este for o caso o seu nome é uma referência a Lade, um poderoso distrito da Noruega Central e Norte, as atuais Trøndelag e Hålogaland, e que se opôs politicamente a formação do reino norueguês a partir do Sul. Os antagonismos políticos entre essas regiões estão narrados nas sagas dos reis noruegueses (em especial as sagas do rei Óláfr Tryggvason). Se esse for o caso, Saxão Gramático estaria se referindo a um histórico de conflitos e tensões políticas entre os reis da Dinamarca, o crescente reino da Noruega e aristocratas locais noruegueses na virada do século X para o século XI, quando a região começa a ser cristianizada, e a Era Viking ruma para um fim, reforçando ainda mais a oposição entre a memória pagã e o presente cristão na Gesta Danorum. Tudo isso, claro, são conjecturas. Podem ser considerados ainda as possibilidades do seu nome ser uma referência a Gaulardal, localidade na Noruega que é mencionada no nono livro de Saxão Gramático, ou o seu nome pode vir de uma tradição franca, a exemplo de Luitgarda de Vermandois, esposa de Guilherme Espada longa da Normandia. O leitor que tiver interesse de examinar a crônica que menciona Lagertha pode fazê-lo no site da Biblioteca Real Dinamarquesa que mantém uma cópia pública em dinamarquês e em latim do texto no endereço kb.dk além disso a tradução de Peter Fisher dos primeiro nove livros com as anotações de Hilda Ellis Davidson foram revistos e 1102

A presença das mulheres na Literatura e na História

organizados por Karsten Friis-Jensen, sendo publicada em 2015 em uma edição bilíngue, sendo uma obra de referência para os interessados. Fontes históricas SAXO GRAMMATICUS. 2015. Gesta Danorum – The History of the Danes, vol. I. Ed. by Karsten Friis-Jensen. Translated by Peter Fisher. Oxford: Claredon Press. Bibliografia geral DAVIDSON, H. E. 2008. Commentary On The Text. In: SAXO GRAMMATICUS. Gesta Danorum – The History of the Danes, books I–IX. Edited by Hilda Ellis Davidson. Translated by Peter Fisher. Suffolk: D. S. Brewer. JESCH, J. 2001. Women in the Viking Age. Suffolk: The Boydell Press. LANGER, J. 2015. Mulheres Guerreiras. In: LANGER, J. (Org.). Dicionário de Mitologia Nórdica – Símbolos, Mitos e Ritos. São Paulo: Hedra, p. 321–323.

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ÍNDICE DE AUTORAS E AUTORES Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade Volume I

A presença das mulheres na Poesia e na História

Sobre as/os autoras/es deste Compêndio Histórico: Adriane da Silva Duarte Livre-docente em Língua e Literatura Grega pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1D.

Alexandre Agnolon Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

Alexandre Cozer Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Amy Richlin Doutora pela Yale University, EUA. Docente do Department of Classics da University of California, Los Angeles, EUA.

Ana Lina Rodrigues de Carvalho Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Anderson Martins Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 1107

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Anderson Zalewski Vargas Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Anita Fattori Doutoranda em História pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, França. Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Antonio Orlando Dourado-Lopes Doutor em Filosofia pela Université de Strasbourg, França. Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Ariadne Borges Coelho Doutoranda em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Docente do Centro Universitário Projeção (UniPROJEÇÃO).

Ariane Ribeiro Santana Graduanda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Beatriz Rezende Lara Pinton Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 1108

A presença das mulheres na Poesia e na História

Bruno Palavro Mestrando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Camila Jourdan Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-doutoranda da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Camilla Ferreira Paulino da Silva Doutora em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Carlos Eduardo da Costa Campos Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Docente colaborador do Mestrado PROFHISTÓRIA da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).

Carolina Kesser Barcellos Dias Doutora em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

Caroline Morato Martins Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 1109

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Cauana Harz de Lima Graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Charlene Martins Miotti Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Christian Werner Livre-docente em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.

Clara Lacerda Crepaldi Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Pós-doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Clara M. Sperb Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Daniel Barbo Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 1110

A presença das mulheres na Poesia e na História

Dolores Puga Doutora em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Fábio Amorim Vieira Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente colaborador da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Fábio de Souza Lessa Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.

Fábio Vergara Cerqueira Doutor em Ciências Sociais (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 1D.

Fabrício Sparvoli Mestrando em História pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 1111

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Félix Jácome Neto Doutor em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Pós-doutorando da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Fernanda Messeder Moura Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Flávia Regina Marquetti Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/campus de Araraquara). Pós-doutoranda (UNICAMP).

da

Universidade

Estadual

de

Campinas

Flavia Vasconcellos Amaral Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutoranda da University of Toronto, Canadá.

Francisco Marshall Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Gabriel Paredes Teixeira Doutorando em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 1112

A presença das mulheres na Poesia e na História

Bolsista de Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Gilberto da Silva Francisco Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Gisela Chapot Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-doutoranda do Museu Nacional/UFRJ. Docente da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSB-RJ).

Giuliana Ragusa Livre-docente em Língua e Literatura Grega pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade de São Paulo (USP).

Gláucia Loureiro de Paula Doutoranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Área de concentração em Literatura Sagrada. Docente da Faculdade da Igreja Ministério Fama (FAIFA). Docente da Faculdade ISCON – DF. Bolsista de Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Glória Braga Onelley Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente do Programa de Pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 1113

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Guilherme Horst Duque Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Monash University, Austrália. Helinny L. Machado da Silva Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Henrique Edington da Costa e Silva Graduando em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL). Bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

Henrique Hamester Pause Mestre em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Isabella Demarchi Mestranda em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Iván Pérez Miranda Doutor em História pela Universidad de Salamanca (USAL), Espanha. 1114

A presença das mulheres na Poesia e na História

Ivan Vieira Neto Docente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Doutorando em Performances Culturais pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Janaína de Fátima Zdebskyi Doutoranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista de Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Jaqueline da Silva Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Joana Campos Clímaco Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Joel Antônio Ferreira Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Área de concentração em Literatura Sagrada. Docente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Juarez Oliveira Doutorando em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 1115

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Júlia Batista Castilho de Avellar Doutora em Letras: Estudos Literários (Literaturas Clássicas e Medievais) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

Karine Lima da Costa Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR).

Karine Marques Rodrigues Teixeira Doutoranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Área de concentração em Literatura Sagrada. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Katia Maria Paim Pozzer Doutora em História pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, França. Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Leni Ribeiro Leite Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da University of Kentucky (UKY), EUA.

Lilian Amadei Sais Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). 1116

A presença das mulheres na Poesia e na História

Liliane Cristina Coelho Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE). Docente do Instituto Tecnológico e Educacional (ITECNE).

Lolita Guimarães Guerra Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Lucia Sano Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Luis Filipe Bantim de Assumpção Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente da Universidade de Vassouras (FUSVE). Professor Mediador Presencial do Curso de Graduação EAD em História no Polo Cantagalo do consórcio UNIRIO/CEDERJ/ UAB.

Luiz Alexandre Solano Rossi Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Docente da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR). Docente do Centro Universitário Internacional (UNINTER). 1117

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Margaret Marchiori Bakos Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Mary Macedo de Camargo Neves Lafer Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade de São Paulo (USP).

María Cecilia Colombani Doutora em Filosofia pela Universidad de Morón, Argentina. Docente da Universidad de Morón, Argentina. Docente da Universidad de Mar del Plata, Argentina.

Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Maria Ozana Lima de Arruda Doutoranda em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

Marina Lacerda Machado Mestranda em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista de Mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 1118

A presença das mulheres na Poesia e na História

Marina Regis Cavicchioli Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Marta Mega de Andrade Doutora em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.

Mateus Dagios Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente substituto do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso (IFMT).

Miguel Spinelli Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Santo Tomás, ANGELICUM, Itália. Docente colaborador aposentado da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Moacir Elias Santos Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Docente do Instituto Tecnológico e Educacional (ITECNE). Docente do Centro Universitário Campos de Andrade (UNIANDRADE). 1119

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Murilo Tavares Modesto Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista de Mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Nádia Maria Weber Santos Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente do Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2.

Nayara do Vale Moreira Mestranda em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Área de concentração em Literatura Sagrada. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Nátalle Garcia dos Santos Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Nathália Pawlowski Mariano Doutora em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

Pablo Gomes de Miranda Doutor em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). 1120

A presença das mulheres na Poesia e na História

Paulina Nólibos Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Paulo Martins Livre-docente em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade de São Paulo (USP).

Paulo Pires Duprat Doutorando em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Pedro Baroni Schmidt Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Pedro Paulo Abreu Funari Livre-docente em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutor em Arqueologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

Pérola de Paula Sanfelice Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). 1121

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Priscila Scoville Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Rafael Brunhara Doutor em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Rafael de A. Semêdo Doutorando em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Raisa Barbosa Wentelemn Sagredo Doutoranda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Raquel dos Santos Funari Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP).

Renan Marques Birro Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade de Pernambuco (UPE)/campus Mata Norte. 1122

A presença das mulheres na Poesia e na História

Renata Cardoso Belleboni Rodrigues Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Fundação de Ensino Superior de Bragança Paulista (FESB).

Renata Cerqueira Barbosa Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/ campus de Assis). Pós-doutoranda da Universidade Estadual Paulista (UNESP/campus de Assis). Docente colaboradora da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Renata Senna Garraffoni Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Rodrigo dos Santos Oliveira Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Rosemary Francisca Neves Silva Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). Área de concentração em Literatura Sagrada. Docente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet Doutora em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 1123

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Sarah Silva Tolfo Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Semíramis Corsi Silva Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/campus de Franca). Docente da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Sérgio Murilo Pereira de Andrade Barbosa Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás).

Simone Aparecida Dupla Doutora em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Pós-doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Simone Silva da Silva Mestra em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Sue’Hellen Monteiro de Matos Doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Área de concentração em Linguagens da Religião. Docente da Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES). Bolsista de Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 1124

A presença das mulheres na Poesia e na História

Tailiny Femi Fabris Graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Teodoro Rennó Assunção Doutor em Histoire et Civilisations pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França. Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Thais Rocha Carvalho Doutoranda em Letras (Letras Clássicas) pela Universidade de São Paulo (USP).

Thais Rocha da Silva Doutora em Egiptologia pela University of Oxford, Inglaterra. Docente colaboradora da Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP). Research Fellow no Harris Manchester College, University of Oxford.

Thirzá Amaral Berquó Doutoranda pelo Departamento de Estudos Clássicos da Bar-Ilan University, Israel.

Valmor da Silva Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Área de concentração em Literatura Sagrada. Docente da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). 1125

Compêndio Histórico de Mulheres da Antiguidade

Vander Gabriel Camargo Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica do Programa BIC UFRGS.

Victor Passuello Doutor em Classics pela University of Reading, Inglaterra. Docente da Universidade Estadual de Goiás (UEG).

Wellington Rafael Balém Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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