239 49 136MB
Portuguese Pages 853 [896] Year 2005
" CIENCIA NOVA
1\
CIENCIA NOVA Giambattista Vico
Tradução de Jorge Vaz de Carvalho
Prefácio de António M . Barbosa de Melo
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN Serviço de Educação e Bolsas
Tradução do original italiano intitulado PRINCIPJ DI SciENZA NuovA
segundo o texto de Fausto Nicolirú - Riccardo Ricciardi Editore
Reservados todos os direitos de harmonia com a lei. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian Av. de Berna Lisboa 2005
pALAVRA
PRELIMINAR
1. Giambattista Vico (Nápoles, 1668-1744), jurisconsulto, historiador, fil6sofo e pedagogo, é autor de uma obra imensa, que espelha, nas palavras de Bluntschli, "uma perspicácia genial" e, nas de Manuel Antunes, uma "erudição histórica e jurídica" e "dotes de intuição e reflexão ... que ... a civilização ocidental raras vezes tem conhecido" 1• Doutorado em 1694 (doctor in utroque) na Faculdade de Jurisprud~ncia de Nápoles acabou por ser professor catedrático de ret6rica na sua Universidade. Apesar das muitas atribulações e infortúnios que pessoalmente o atingiram, partidpou activamente na vida cultural e poUtica napolitana das primeiras décadas do Século XVIII. A sua obra deixou sulcos vislveis no movimento de ideias de que foram emergindo, desde os finais desse Século, o Estado contemporâneo e a nova ordem jurldica e poUtica que o caracteriza: "Vico ou em 'miniatura' ou em 'germen' foi o Século XIX" 2 • Atesta-o, desde logo, a forte injlu~nda que exerceu em Montesquieu, nomeadamente na teoria relativa à diversa natureza das tr~s espédes de governo (democrático, aristocrático e monárquico) e na identificação dos prindpios fundamentais de cada uma delas, temas que formam o núcleo de L'Esprit des lois e por isso foram, e são, parte essendal
J. K. Bluntschli, Geschichte der neueren Staatswissenschtift, 3.• ed., 1881 , p. 281, e Prof. Manuel Antunes, Vico, in Enc. Verbo, vol. 18. 0 (1976) , col. 1037. 2 Como escreveu Benedetto Croce, apud Pasquale Soccio, in Vico Autobiogrqfia- Poesie - Sdenz a Nuova, Ed. Garzanti Editore (1983), p. 199. 1
M
desta espécie de "bíblia" do Estado Constitucional". 3 Mas foi também precursor de Herder e da Escola Histórica alemã. 4 O facto é que ao longo do tempo, com maior ou menor incidência, o pensamento de Vico tem sido centro da atenção do mundo cultural e universitário e objecto da análise crítica de autores de primeira linha de diferentes sensibilidades políticas, filosóficas e religiosas (católicos, laicos, marxistas, idealistas, historicistas.. .). Quando se cumpriram três séculos desde o seu nascimento, a efeméride suscitou, em ambos os lados do Atlântico, importantes manifestações cientificas e académicas: congressos, livros de homenagem, monogrcifias, edições críticas, criação de centros de estudo, lançamento de revistas especializadas, etc. 5 Entre os nomes mais representativos dessa plêiade de estudiosos, admiradores e entusiastas do pensamento viquiano no último Século, permito-me destacar os nomes de Benedetto Croce, Fausto Nicolini, C. Capograsso, Elio Gianturco e Isaiah Berlin.
3
Vide L'Esprit des lois, especialmente Livros II-VIII. Montesquieu fez registar no seu diário Voyages en Europe (1728-1732) a nota "Acheter à Naples: Principii d'una ~ruova Scienza, di joan-Baptista Vico, Napoli, 1725" (Montesquieu, CEuvres completes, 1964, p. 226). Referia-se a um exemplar, claro é, da Scienza nuova prima, editada em 1725 (ed. Garzanti), da qual nasceria, depois de profunda remodelação, a Scie~rza nuova seconda (1744) . 4 Bluntschli, ob. cit., p. 282. A propósito Goethe em Março de 1787 escrevia no seu diário de viagem pela Itália: "Filangieri desde o princípio deu-me a conhecer um antigo escritor, de cuja sabedoria sem limites os modernos juristas italianos se mostram felizes e orgulhosos. O seu nome é Giambattista Vico, que prefiro a Montesquieu. De uma rápida leitura à sua obra, que me foi apresentada como uma relíquia, pareceu-me encontrar nela misteriosos pressentimentos de bondade e de justiça, fundados numa austera meditação da História e da Vida, que um dia reinarão, ou deveriam reinar, sobre esta terra" . Cfr. a versão italiana em Pasquale Soccio, Vrco Autobiogrqfia, ob. cit. , p. Lrv; donde traduzo o passo transcrito; Isaiah Berlin, Karl Marx - The Age > ou tópicos (§§ 915-979). Assim:
Umberto Eco, Kant e o Ornitorri~Jco, tr. port., p. 425. Maria Helena Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica, II Volume - Cultura Romana, Serviço de Educação e Bolsas, 3.• ed. (2002), p. 216. 34 Cfr. também §§ 31, 32, 36, 37. 32 33
[XVII]
4.2.1. Na idade dos deuses o espírito humano anda, em geral, dilu{do na procura do necessário à vida, vive da imaginação e em tudo vê manifestações imediatas da vontade dos deuses; os costumes estão impregnados de piedade e religião; o direito fundamenta-se na vontade dos deuses e, por isso, o governo tem forma teocrática; a ciência jurídica apresenta-se como uma ciência da linguagem divina e os seus cultores (os poetas teólogos) dedicam-se a interpretar e a explicar aos leigos os mistérios dos oráculos; o processo de aplicação do direito - ainda não se chegou a leis gerais e abstractas - consiste na invocação e testemunho dos deuses e na imputação à vontade divina da decisão espontânea dos pleitos. O esp{rito desta idade é expresso, por tudo isso, no ius directum (= um direito natural imediato, que "não impera mas apenas guia e equilibra" as relações humanas). 4.2.2. Na idade dos heróis um grupo restrito (os heróis) atribui-se a si próprio uma origem divina e, por isso, uma nobreza natural que coloca os seus elementos acima da multidão ("os filhos da Terra"); os heróis, dotados de índole violenta, reservam para si as coisas úteis e cómodas da vida; o direito fundamenta-se então na força e o governo assume forma aristocrática, (como governo dos mais fortes); a ciência jurídica passa a ser a ciência da palavra precisa e exacta e a aplicação do direito a consistir na observância escrupulosa das fórmulas legais, sendo o seu objectivo alcançar a equidade civil isto é, a mera justiça externa equivalente à simples conformidade da sentença com uma "razão de estado" que coincide com a opinião dos heróis expressa nas leis. O esp{rito desta idade é, assim, o ius strictum. 4.2.3. Na idade dos homens (de humus, "Terra") os esp{ritos são, em geral, adultos e os homens caracterizam-se por serem inteligentes e comedidos, benignos e razoáveis, reconhecendo por norma a consciência e o dever; o direito fundamenta-se na razão humana, agora plenamente desenvolvida ("riposta"); o governo, porque os homens se consideram [XVIII]
livres e iguais entre si, toma a forma de república, ou de monarquia baseada na igualdade de todos perante as leis; a ciência do direito passa a ser a arte de procurar a verdade nas situações concretas e de qfeiçoar, de modo benigno e segundo a igualdade, a lei formal às causas singulares (equidade natural); as leis tomam-se assim como expressão maleável das exigências da razão e aplicam-se ao caso concreto, segundo a boa-fé, o que exige a ocupação de um grande número de pessoas cultas e experientes na resolução dos conflitos práticos (§ 951). O espírito da idade dos homens é, por isso, o ius aequum. 4.3. A idade dos homens, diriamos hoje, é sobretudo a idade do direito, da equidade, da justiça e dos direitos fundamentais. Para a boa compreensão da relação entre a idade dos homens e o direito, mormen-te os direitos do homem - e para a compreensão de muitas coisas mais ditas ao longo deste trabalho - resta-me indicar, por fim, quatro ideias que enformam ou modelam o pensamento de Vico.
1. o - As "idades" aparecem-nos a{ menos como perfodos temporais do que como categorias racionais aptas a apreender a realidade cultural normalmente complexa, existente no mesmo perfodo de tempo. Em muitos passos exprimem, claramente, três diferentes camadas ou modos de ser possíveis da mesma sociedade concreta (assim, por ex., § 446) . 2. a - A mudança de uma "idade1> para a outra ocorre gradualmente: assim "como um rio, ao lançar-se no mar, conserva ainda durante algum tempo a impetuosidade da corrente e a doçura da sua água1>, assim também as caracterfsticas próprias de uma idade subsistem, em parte, nas que se lhe seguem (§§ 249, 446, 629, 1004, 1006 e 1008). 3. a - A ordenação temporal das três idades processa-se, segundo o pensamer1to de Vigo, em espiral: os homens e as sociedades retornam [XIX]
sempre às mesmas idades, mas vão mudando em humanidade de uma vez para a outra, numa evolução permanente. A seta do tempo histórico-cultural, não sendo uma recta mas uma espiral, torna este tempo, por isso, em parte reversível. 4". - A unidade global da experi~ncia histórica realiza-se em Vico através da provid~ncia divina, que molda a sociedade encaminhando os actos humanos segundo um plano em que todos acabam por colaborar - os que agem conscientemente e os que vagueiam às cegas no seu horizonte de interesses espontâneos e imediatos (§ 11 08). Embora o mundo social seja na concepção de Vico um artefacto humano, a sua estrutura global escapa, em larga medida, à acção humana consciente (conforme resulta da equiparação do princípio homo intelligendo fit omnia ao princípio homo non intelligendo fit omnia, § 405). O que significa, entre outras coisas, que Vico soube conciliar racionalmente o seu historicismo - e, nomeadamente, a sua "lei eterna" da dinâmica da História (§§ 609, 2611 e 13) - com o dado cristão desta cultura mediterrânea-europeia.
4.3. Em jeito de conclusão: O fasánio que a Scienza Nuova Seconda conserva, decorridos mais de dois séculos e meio, deve-se, quer-me parecer, ao vitalismo e criatividade do facere viquiano e à sua "lei" histórica que qferece às nações o "andar para diante e para trás" e ao homem o "prazer divino" - como escreveu alguém - "de criar, construir, modificar e destruir a sua tela histórica", seguindo os ritmos recorrentes na Vida e na Cidade. A Scienza Nuova coloca a história humana sob o signo da Liberdade e do Direito, recusando-se a aprisionar as ideias num qualquer sistema de rifer~ncia, ou paradigma, assente no acaso ou na fatalidade. Coimbra, Janeiro de 2005 ANTÓNIO MOREIRA BARBOSA DE MELO
[XX]
PRINCÍPIOS DE CIÊNCIA NOVA
ACERCA DA NATUREZA COMUM DAS NAÇÕES NESTA TERCEIRA IMPRESSÃO CORRIGIDA, MELHORADA E ACRESCENTADA EM GRANDE NÚMERO DE LUGARES PELO PRÓPRIO AUTOR
1744
IDEIA DA ÜBRA
EXPLICAÇÃO DA PINTURA PREPOSTA NO FRONTISPÍCI0 1 QUE SERVE PARA A INTRODUÇÃO DA OBRA [1] Tal como o tebano Cebes2 fez para as coisas morais\ assim nós aqui apresentamos uma TÁBUA DAS COISAS CIVIS, que sirva ao leitor para conceber a ideia desta obra antes de a ler e para, com a ajuda que lhe faculte a imaginação, trazê-la mais facilmente à memória, depois de a ter lido. [2) A mulher com as têmporas aladas que domina o globo terrestre, ou seja, o mundo da natureza, é a metafisica, pois isso significa o seu nome. O triângulo luminoso que tem dentro de si um olho vidente é Deus, sob o aspecto da sua providência, aspecto pelo qual, em atitude extática, a metafisica o contempla sobre a ordem das coisas naturais, ordem pela qual até agora o têm contemplado os filósofos ; porque ela, nesta obra, elevando-se mais alto, contempla em Deus o mundo das mentes humanas, que é o mundo metafisico, para demonstrar a sua providência sobre o mundo das almas humanas, que
1
Isto é, anteposta tal como está na edição original. Discipulo de Sócrates que assistiu no cárcere aos seus últimos momentos. 3 Alusão ao diálogo Pinax, indicado habitualmente com o nome de Tábua de Cebes, a quem é atribuído. Provavelmente Vico conhecia dele a versão italiana de Agostino Mascardi. 2
[3)
é o mundo civil, ou seja, o mundo das nações; o qual, como pelos seus elementos, é formado por todas aquelas coisas que a pintura aqui representa por hieroglíficos que se põem em evidência na parte inferior. Por isso o globo, ou seja, o mundo físico ou natural, está apoiado apenas numa parte do altar; porque os filósofos, tendo, até agora, contemplado a providência divina só através da ordem natural, dela somente demonstraram uma parte, pela qual os homens oferecem a Deus, como Mente soberana, livre e absoluta da natureza (porquanto, com o seu eterno conselho, nos deu naturalmente o ser, e naturalmente no-lo conserva), as adorações com sacrifícios e outras honras divinas; mas não a contemplaram já pela parte que era mais própria dos homens, cuja natureza tem esta propriedade principal: a de serem sociáveis. À qual provendo Deus, ordenou e dispôs de tal modo as coisas humanas, que os homens, caídos da inteira justiça pelo pecado original, entendendo fazer quase sempre todo o diverso e até, frequentemente, todo o contrário - pelo que, para servir a utilidade, viveram em solidão como animais selvagens - , por aquelas mesmas suas vias diversas e contrárias, pela própria utilidade foram eles levados como homens a viver com justiça e conservar-se em sociedade e, assim, a celebrar a sua natureza sociável; a qual, na obra, se demonstrará ser a verdadeira natureza civil do homem e, assim, existir um direito natural. Essa conduta da Providência divina é urna das coisas de que principalmente se ocupa de reflectir esta Ciência; pelo que, por esse aspecto, vem ela a ser uma teologia civil reflectida da providência divina. [3] Na faixa do zodíaco que cinge o globo terrestre, mais do que os outros, comparecem em majestade ou, como dizem, em perspectiva, apenas os dois signos do Leão e da Virgem, para significar que esta Ciência, nos seus princípios, contempla primeiramente Hércules (porquanto se comprova que toda a [4]
nação gentia antiga refere um, que a fundou) ; e contempla-o no maior dos seus trabalhos, que foi aquele em que matou o leão que, vomitando chamas, incendiou a selva némea, e de cuja pele ornado, Hércules foi elevado às estrelas 4 Qeão esse que aqui se comprova ter sido a grande selva antiga da terra, à qual Hércules, que se comprova ter sido o carácter dos heróis políticos que devem ter vindo antes dos heróis das guerras, pegou fogo e transformou em cultivado) ; e serve igualmente para indicar o princípio dos tempos que, para os Gregos (aos quais devemos tudo o que temos das antiquidades gentílicas) , começaram a partir das olimpíadas, com os jogos olímpicos, dos quais também nos é contado ter sido Hércules o fundador Qogos esses que devem ter começado com os Nemeus, introduzidos para festejar a vitória de Hércules alcançada com a morte do leão) ; e assim, os tempos dos Gregos começaram desde que entre eles começou o cultivo dos campos 5 . E a Virgem, que os poetas descrevem aos astrónomos como andando coroada de espigas, quer dizer que a história grega começou na idade do ouro, que os poetas abertamente contam ter sido a primeira idade do seu mundo, na qual, durante um longo curso dos séculos, os anos se contaram pelas messes do trigo, que se comprova ter sido o primeiro ouro do mundo; idade de ouro dos Gregos à qual corresponde paralelamente a idade de Saturno para os latinos, dito de a "satis", das sementeiras. Idade de ouro na qual também os poetas nos disseram fielmente que os deuses conviviam na terra com os heróis: porque adiante se mostrará que os primeiros homens do gentilismo, simples e rudes, por
4 No sentido de que o Leão, signo do Zodíaco, teria tido origem no leão nemeu morto pelo herói. 5 Vico supõe que, na contagem dos anos, o Gregos antigos seguiam um critério não astronómico mas agrícola.
[5]
forte engano de robustíssimas fantasias~ todas repletas de espantosas superstições, acreditaram verdadeiramente ver na terra os deuses; e depois se comprovará igualmente que, por uniformidade de ideias, sem nada saberem uns dos outros, para os Orientais, Egípcios, Gregos e Latinos, os deuses foram elevados da terra às estrelas errantes e os heróis às estrelas fixas 6 . E assim, a partir de Saturno, que é Xpóvoç para os Gregos (e xpóvoç é, para eles, o tempo) , se dão outros princípios à cronologia, ou seja, à doutrina dos tempos. [4] Nem deve parecer-te indecoroso que o altar esteja por baixo e sustente o globo. Porque se comprovará que os primeiros altares do mundo foram erigidos pelos gentios no primeiro céu dos poetas; os quais, nas suas fabulas, nos transmitiram fielmente ter o Céu reinado na terra sobre os homens e ter deixado grandes benefícios ao género humano, no tempo em que os primeiros homens, como crianças do nascente género humano, acreditaram que o céu não estaria mais acima do que a altura dos montes (como ainda agora as crianças o crêem pouco mais alto do que os telhados das suas casas). E que, depois, à medida que se foram esclarecendo as mentes gregas, foi elevado acima dos cumes dos altíssimos montes, como o Olimpo, onde Homero conta que no seu tempo estavam os deuses. E, finalmente, elevou-se acima das esferas, como agora nos demonstra a astronomia, e o Olimpo elevou-se acima do céu estrelado. Pelo que, conjuntamente, o altar, levado ao céu, aí forma um signo celeste; e o fogo, que aí está em cima, passou, como tu aqui vês, . para a vizinha casa do Leão (o qual, como há pouco foi assinalado 7 , foi a floresta
6
Estrelas errantes são os planetas, aos quais foram dados nomes de deuses; estrelas fixas são as constelações, designadas com os nomes dos heróis. 7 No parágrafo 3.
[6]
nemeia, a que Hércules deitou fogo para a transformar em cultivado); e daí a pele do leão foi elevada, como troféu de Hércules, até às estrelas. [5] O raio da divina providência, que ilumina uma jóia convexa de que se adorna o peito da metafísica, denota o coração terso e puro que aqui a metafísica deve ter, nem sujo nem conspurcado pela soberba de espírito ou pela vileza dos prazeres corporais; com a primeira das quais Zenão indicou o fado, com o segundo Epicuro indicou ao acaso 8 , e ambos assim negaram a providência divina. Para além disso, denota que a cognição de Deus não termina nela mesma, de modo que ela se ilumine particularmente com os inteligíveis e, portanto, regule apenas as suas coisas morais, tal como até agora fizeram os filósofos; o que teria sido significado com uma jóia plana. Mas ela é convexa, onde o raio se refracta e irradia para fora, para que a metafísica conheça Deus providente nas coisas morais públicas, ou seja, nos costumes civis, com os quais vieram ao mundo e se conservam as nações. [6] O mesmo raio irradia do peito da metafísica para a estátua de Homero, primeiro autor da gentilidade que chegou até nós 9 porque, por virtude da metafísica (a qual se construiu, desde irúcio, sobre uma história das ideias humanas, desde que começaram tais homens a pensar humanamente) , é que nós descemos finalmente às mentes tolas dos primeiros fundadores das nações gentias, todos de robustíssimos sentidos e vastíssimas fantasias; e - por isso mesmo, pois não tinham mais do que a única faculdade, e mesmo assim toda confusa e estúpida, de poder usar a mente e a razão humanas -, comprova-se que os
8
Zenão simboliza o estoicismo; Epicuro o epicurismo. Recorde-se que Vico considera os poemas homéricos também como dois «tesouros• de informações históricas relativas a dois momentos da civilização grega das origens. 9
[7]
princípios da poesia eram, não apenas diferentes, mas também totalmente contrários daqueles que, até agora, se pensou, e que, por essas mesmas razões, surgem como princípios ocultos da sabedoria poética, ou seja, a ciência dos poetas teólogos, a qual foi, sem dúvida, a primeira sabedoria do mundo para os gentios. E a estátua de Homero sobre uma base em ruína quer significar a descoberta do verdadeiro Homero 10 (que na Ciência Nova impressa pela primeira vez tinha sido por nós pressentida mas não compreendida, e nestes livros 11 , reflectida, plenamente é demonstrada); o que, até agora desconhecido, nos tem mantido ocultas as coisas verdadeiras dos tempos fabulosos das nações e, muito mais, as que já todos desesperávamos de saber sobre o tempo obscuro e, por consequência, as primeiras origens verdadeiras das coisas do tempo histórico: que são os três tempos do mundo que Marco Terêncio Varrão (o mais douto escritor da antiquidade romana) nos deixou escrito na sua grande obra intitulada Rerum divinarum et humanarum, que se perdeu 12 •
[7] Para além disto, aqui se assinala que, nesta obra, com urna nova arte crítica 13, que até agora tem faltado, entrando na procura da verdade sobre os autores 14 das nações mesmas (nas quais tiveram que decorrer bastante mais de mil anos para poderem surgir os escritores, 15 acerca dos quais a crítica, 16 até
° Cfr. mais
1
adiante o Terceiro Livro, especialmente o parágrafo 873. Isto é, nesta segunda edição da Ci2ncia Nova. 12 A tripartição varroniana dos tempos foi-nos conservada por Censorino, De die naU!Iicio, 21 . 13 Ou «filosófica», ou também •metafisica», conforme Vico lhe chama algures e que ele contrapõe à crítica meramente filológica ou erudita. 14 Fundadores. 15 As fontes histórias escritas não começam nas nações senão um milhar de anos após estas terem sido fundadas . 16 Naturalmente, a crítica meramente e.rudita. 11
[8]
agora, se ocupou) , a filosofia dedica-se aqui a examinar a filologia (ou seja, a doutrina de todas as coisas que dependem do arbítrio humano, como são todas as histórias das línguas, dos costumes e dos factos , tanto da paz como da guerra dos povos), a qual, pela sua deplorada obscuridade das causas e quase infinita variedade dos efeitos, teve quase um horror de sobre ela reflectir; e tradu-la em forma de ciência, ao revelar nela o desenho de urna história ideal eterna, sobre a qual transcorrem no tempo as histórias de todas as nações: 17 de modo que, por este seu outro aspecto principal, vem esta Ciência a ser urna filosofia da autoridade. Pelo que, em virtude de outros princípios de mitologia aqui revelados, que vão no seguimento dos outros princípios da poesia 18 aqui descobertos, se demonstra terem sido as fãbulas verdadeiras e rigorosas histórias dos co~tumes das antiquíssimas gentes da Grécia e, primeiramente, que aquelas dos deuses foram histórias dos tempos em que os homens da mais rude humanidade gentílica acreditavam que todas as coisas necessárias ou úteis ao género humano eram deidades; poesia da qual foram autores os primeiros povos, que se comprova terem sido todos de poetas teólogos19, os quais, sem dúvida, nos contam com as fãbulas dos deuses terem fundado as nações gentias. E assim, com os princípios desta nova arte crítica, se vai meditando em que tempos determinados e ocasiões particulares das necessidades
17 A expressão •história ideal eterna>> tem para Vico dois significados, um legítimo e o outro ilegítimo, mas que bastante frequentemente ele unifica e, portanto, confunde: como determinação das formas, categorias ou momentos ideais do espírito na sua sucessão ideal; e como determinação aprioristicamente empírica da ordem em que, para todas as nações, devem suceder três formas de civilização, de Estados, de direitos, de estilos, etc. 18 N a realidade, aliás,Vico unifica frequentemente (e, portanto, confunde) mito e poesia. 19 Cfr. o parágrafo 216.
[9]
ou utilidades humanas, advertidos pelos primeiros homens do gentilismo, estes, com espantosas religiões que eles mesmos se inventaram e em que acreditaram, fantasiam primeiramente certos deuses e depois outros; essa teogonia natural 20 , ou seja, geração dos deuses, produzida naturalmente nas mentes desses homens primitivos, dá-nos uma cronologia reflectida da história poética dos deuses. As fãbulas heróicas foram histórias verdadeiras dos heróis e dos seus heróicos costumes, que se verifica terem florescido em todas as nações no tempo da sua barbárie; pelo que se comprova serem os dois poemas de Homero dois grandes tesouros para a descoberta do direito natural das gentes gregas ainda bárbaras21. Tempo esse que, na obra, se determina ter durado, entre os Gregos, até ao de Heródoto 22 , chamado o pai da história grega, e cujos livros estão repletos, na sua maior parte, de fãbulas, e o estilo retém muitíssimo do homérico; em cuja propriedade se conservaram todos os historiadores que depois vieram, que usam urna expressão intermédia entre a poética e a vulgar. Mas Tucídides, o primeiro historiador rigoroso e sério da Grécia, no princípio dos seus relatos, declara que, até ao tempo de seu pai (que era o tempo de Heródoto, que era velho quando Tucídides era criança), os Gregos, de facto, nada sabiam, não apenas das antiquidades estrangeiras (as quais, com a excepção das romanas, nós conhecemos todas pelos Gregos), mas também das suas próprias23 : que são as densas trevas que a pintura revela no fundo, das quais, iluminados pelo raio da providência divina que, partindo da metafisica, reincide em Homero, saem à luz todos os hieróglifos, que significam os princípios até agora conhecidos somente pelos efeitos por este mundo de nações. 20
21 22 23
Cfr. o parágrafo 69. Dois grandes documentos históricos da civização grega das origens. Cfr. o parágrafo 98. Cfr. o parágrafo 101 .
[10]
[8] Entre estes hieróglifos, a maior presença é ali a de um altar, porque o mundo civil começou para todos os povos com as religiões, como um pouco atrás um tanto se divisou 24 , e mais se divisará daqui a pouco 25 • [9] Sobre o altar, do lado direito, o primeiro a aparecer é um lítuo, ou seja, a vara com a qual os áugures tomavam os augúrios e observavam os auspícios; o qual pretende dar a entender a adivinhação, a partir da qual começaram as primeiras coisas divinas para todos os gentios. Porque, pelo atributo da sua providência26 , tão verdadeira para os Hebreus - os quais acreditavam ser Deus uma Mente infinita e que, consequentemente, vê todos os tempos num ponto de eternidade; pelo que Deus (ele mesmo, ou através dos anjos, que são mentes, o através dos profetas, pelos quais falava Deus às mentes) advertia das coisas vindouras ao seu povo (como imaginada entre gentios), os quais fantasiaram que os corpos eram deuses e que, por isso, advertiriam através de signos sensíveis as coisas vindouras às gentes -, foi dado universalmente por todo o género humano à natureza de Deus o nome de «divindade)), a partir de uma mesma ideia, à qual os latinos chamaram «divinari», «predizer o futuro)); mas com esta diferença fundamental que foi referida, da qual dependem todas as outras diferenças essenciais (que nesta Ciência se demonstram) entre o direito natural 27 dos Hebreus e o direito natural 24
Cfr. o parágrafo 2. Cfr. o parágrafo 9. 26 Outra palavra que para Vico tem múltiplos significados. Aqui, mais do que outro, assume o de •adivinhação». 27 Também •direito natural» é, para Vico, expressão polissémica, que vale quer pelo que os jusnaturalistas chamavam •direito natural», quer pelo que o próprio Vico entendia como direito das origens (direito da força ou violência), quer ainda por «civilização», etc. etc. Aqui, aliás, ele alude ao Decálogo e o utras normas jurídicas que o Antigo Testamento faz Jahvé comunicar directa ou indirectamente ao povo eleito. 25
(11]
das gentes 28 , que os jurisconsultos romanos definiram29 ter sido ordenado com esses costumes humanos pela providência divina 30 • Portanto, de uma só vez, com esse dito lítuo, se assinala o princípio da história universal gentilica que, com provas físicas e filológicas , se demonstra ter tido o seu começo no dilúvio universa!;3 1 após o qual, ao cabo de dois séculos, o Céu (como também a história fabulosa nos conta) reinou na terra e fez muitos e grandes benefícios ao género humano e, por uniformidade de ideias entre os Orientais, Egípcios, Gregos, Latinos e outras nações gentias, surgiram igualmente as religiões de tantos Jupiteres. Pois, ao cabo de tanto tempo após o dilúvio, assim se prova que o céu32 deve ter relampejado e trovejado, e dos relâmpagos e trovões começaram a tomar essas nações os auspícios, cada uma do seu Júpiter (uma tal multiplicidade de Jupiteres, de que os Egípcios afirmavam ser o seu Júpiter Ámon o mais antigo de todos, tem até agora causado admiração aos filólogos) ;33 e com essas mesmas provas se demonstra a maior antiquidade da religião dos Hebreus sobre aquelas com as quais se fundaram as gentes e, consequentemente, a verdade da cristã.
[lO] Sobre o mesmo altar, junto do lítuo, vê-se a água e o fogo, estando a água contida dentro de um urcéolo; porque entre os gentios, por causa da adivinhação, os sacrifícios provieram daquele seu costume comum a que os latinos chamavam
28
Dos povos gentios. M as os jurisconsultos romanos falavam, não de um «direito natural das gentes» (expressão criada por Vico), mas de um «direito natural» e de um «direito das gentes>> (isto é, comum aos povos diferentes do romano). 30 Semi-fantasiosa asserção de Vico: cfr. os parágrafos 310, 335, etc. 31 Cfr. o parágrafo 369. 32 Cfr. o parágrafo 377. 33 Cfr. o parágrafo 47. 29
[12)
«procurare auspwa», ou seja, sacrificar para bem entender os augúrios, a fim de bem executar os avisos divinos, ou seja, as ordens de Júpiter. E estas são as coisas divinas entre os gentios, das quais lhes provieram depois todas as coisas humanas.34
[11] A primeira destas coisas humanas foram os matrimónios,35 significados pelo archote aceso no fogo sobre esse altar e apoiado no urcéolo; os quais, como todos os políticos concordam, são o seminário das fa.núlias, como as fa.núlias o são das repúblicas. E, para denotar isto, o archote, muito embora seja hieróglifo de coisa humana, está colocado sobre o altar entre a água e o fogo, que são hieróglifos de cerimónias divinas; exactamente como os Romanos antigos celebraram as núpcias 36 (laqua et igni>>, porque depois se compreendeu que, por conselho divino, estas duas coisas comuns (e, antes do fogo, a água perene, como coisa mais necessária à vida) tinham levado os homens a viver em sociedade. [12] A segunda das coisas humanas37 - pela qual para os Latinos, de , «sepultar», deriva primeiro e propriamente «humanitas>> 38 - são as sepulturas, que são representadas por uma urna cinerária, depositada à parte dentro das selvas, a qual indica que as sepulturas foram encontradas desde o tempo em que a geração humana comia frutos no Verão e bolotas no Inverno. E na urna está inscrito «D. M .», 39 que quer dizer: «Às almas boas dos sepultados»; esse moto estabelece o consentimento comum de todo o género humano naquela sentença, depois demonstrada verdadeira por Platão, que as
34
35 36 37
38 39
Sobre todo este parágrafo, cfr. os parágrafos 250, 371 e 382. Cfr. o parágrafo 336. Cfr. o parágrafo 549. Cfr. o parágrafo 337. Cfr. o parágrafo 537. Isto é, «dii manes» , no significado de ),2 1 tanto pela preconceituosa opinião da sua desmedida antiguidade, da qual inutilmente se vangloriavam sobre todas as outras nações do mundo e, assim, de ter dominado antigamente uma grande parte do mundo; e, porque não sabiam o modo como entre os gentios, sem que os povos soubessem alguma coisa uns dos outros, nasceram separadamente ideias uniformes dos deuses e dos heróis (o que será aqui plenamente demonstrado), acreditaram terem surgido do seu Egipto todas as falsas divindades que os das nações que ali acorriam devido aos comércios marítimos ouviam estarem dispersas pelo resto do mundo, e que o seu Júpiter Ámon fosse o mais antigo de todos (dos quais cada nação gentia teve um), e que os Hércules de todas as outras nações (dos quais Varrão chegou a enumerar quarenta? 2 tivessem tomado o nome do seu Hércules egípcio, como sobre um e o outro nos deixou narrado por Tácito.23 E, conquanto Diodoro Sículo,24 que viveu nos tempos de Augusto, adorne os Egípcios com juízos demasiado favoráveis , não lhes atribui maior antiguidade que dois mil anos; 25 e os seus juízos são derrubados por Jacques Cappel, 26 na sua História
21
Nada disto se encontra em Tácito. Mas algo de semelhante surge em Satuminus, 7. Ou 1 elhor, 44: cfr. S ERVIO, Ad Aen ., VIII , 564. Ann ., II , 60, onde, aliás, se discorre apenas sobre o Hércules egípcio. Cfr. I, 23. Pelo contrário, mais de dez mil. O hebraísta e teólogo francês Jacques Cappel (1570-1624).
F LÁVIO V O PISCO, 22
23 24 25 26
[53)
sagrada e eglpcia, 27 que os avalia tal como Xenofonte tinha anteriormente atribuído a Ciro, e (acrescentamos nós) Platão 28 frequentemente imagina acerca dos Persas. Finalmente, tudo isto, acerca da vaidade da altíssima e antiga sabedoria egípcia, é confirmado com a impostura do Pimandro, esmaltado como doutrina hermética, 29 que Casaubon30 revela não conter doutrina mais antiga que aquela dos platónicos explicada com a mesma frase, no restante julgada por Saumaise31 como uma desordenada e mal composta recolha de coisas. [48] A falsa opinião de uma tão grande antiguidade dos Egípcios foi provocada por esta propriedade da mente humana - a de ser indefinida -, pela qual, acerca das coisas que não sabe, amiúde crê deformadamente serem essas coisas mais do que de facto o são. Por isso, os Egípcios foram nisso semelhantes aos Chineses, que ascenderam a tão grande nação fechados a todas as nações estrangeiras, como os Egípcios o tinham sido até Psamético e os Citas até Idantirso, para os quais é tradição vulga2 2 que os Egípcios foram vencidos em mérito de
27 Historia sacra et exotica ab Adamo tHque ad Augustum (Sedan, 1613). Cfr. pág. 43. 28 Cfr. Alcibiade primo, pág. 120 e: porém, aí diz uma coisa completamente diferente. 29 Atribuído durante todo o século XVI a Mercúrio Trismegisto, o jovem, o Poemander seu de potestate ac sapientia divina, que Vico conhecia através da reelaboração de Marsilio Ficino, era considerado na sua totalidade, nos finais do século XVII, ao contrário de hoje, como uma falsificação tardia. 30 O genebrino Isaac Casaubon (1559-1614): cfr. as suas Exercitationes contra os Annales de Baronio, publicadas sob o título De rebus sacris et ecclesiasticis, edição de Frankfurt, 1615, pág. 57. 31 O filólogo e calvinista francês Claude Saumaise (1588-1653) . Cfr. as suas Plinianae exercitationes, edição de Paris, 1629, pág. 19, onde se diz uma coisa completamente diferente. 32 Cfr. v AN HEURN, Op. cit., pág. 200.
[54]
TÁBUA CRONOLÓGICA DESCRITA SOBRE AS TRÊS ÉPOCAS DOS EGÍPCIOS, QUE D IZ IAM TER TRANSCORRIDO TODO O MUNDO ANTES DELES POR TRÊS IDADES, DOS DEUSES, DOS HERÓIS E DOS HOMENS (I) HEBREUS (11)
CALDEUS (III )
C ITAS (IV)
FENÍCIOS M
Anosolo Anoo de
EGfPCIOS (V I)
UHIIIis com a do l'omo. T~u fUnda Alcn.>S c o rdcou o 1\.n:óp.lgo.
Hên:-ulcsjumod.e Evaoodro.,noUcio,ouocj.>. id.>d.edoshcróisd.el J óni.. e d.e Chia (XXXI).
Eoopo. filõsofo monl vulgar (XXXII). Sc Crê-cU; dos quais um. Sólon. onkn~ alibcrd..aontcrn ca r~ agi n esa,aparrir
d>qual con>eç>ahiso6ria ccruronuna,comUvio. oqu:rl,porên>, confcssanlo ubcrdebc.tl ndxinus ciS (XLV).
H..o m~
antiguidade. Tradição vulgar essa que daí tirou necessariamente o motivo por que começa a história universal profana, que, seguindo Justino,33 propõe como anteprincípios, anteriormente à monarquia dos Assírios, dois potentíssimos reis, o cita Tánais e o egípcio Sesóstris, os quais , até agora, fizeram o mundo apresentar-se como muito mais antigo que aquilo que é de facto; e que, primeiro, teria ido Tánais pelo Oriente, com um grandíssimo exército, para subjugar o Egipto, que é por natureza dificílimo de ser penetrado pelas armas, e que depois Sesóstris, com outras tantas forças , teria sido levado a subjugar a Cítia,34 que se manteve desconhecida desses Persas (que tinham estendido a sua monarquia sobre a dos Medos, seus vizinhos) até aos tempos de D ario, dito «maior», que declarou guerra a Idantirso, o rei cita; que se comprova ter sido tão bárbaro nos tempos da hurnaníssima Pérsia, que lhes respondeu com cinco palavras reais de cinco objectos, pois não soube sequer escrever por hieróglifos. 35 E estes dois poderosíssimos reis atravessam com dois grandíssimos exércitos a Ásia, não a fazem província nem da Cítia nem do Egipto, e deixam-na em tal liberdade que ali surgiu depois a primeira das quatro mais famosas monarquias do mundo, que foi a da Assíria! [49] Talvez por isso, não deixaram de se meter no meio de tal disputa de antiquidade os Caldeus, nação também mediterrânica36 e, como demonstraremos, mais antiga do que as outras duas, os quais inutilmente se vangloriavam de conservar as observações astronómicas desde há bem vinte e oito
33
Cfr. I, 1 e 3. A C ítia europeia, isto é, a Rússia. Mas nos tempos de Dario de Histaspes estava longe de se r ignorada pelos Persas. 35 Cfr. os parágrafos 99 e 435 . 36 Do interior. 34
[55]
mil anos: 37 o que talvez tenha dado motivo a Flávio Josefo, o hebreu,38 para acreditar erradamente nas observações antediluvianas descritas nas duas colunas, uma de mármore e urna outra de tijolos, erigidas aquando dos dois dilúvios, e de ele ter visto na Síria essa de mármore. Até que ponto importava às nações antigas conservar as memórias astronómicas, cujo sentido foi morto de facto entre as nações que depois lhes sucederam! Pelo que se deve colocar tal coluna no museu da credulidade. [50) Mas assim foi comprovado escreverem os Chineses por hieróglifos, 39 como antigamente os Egípcios e, além dos Egípcios, os Citas, que nem sequer os sabiam escrever. E, durante milhares de anos, não tendo mantido comércio com outras nações que os pudessem ter informado sobre a verdadeira antiguidade do mundo, como homem que, dormindo, esteja encerrado num quarto escuro e pequerússimo, e que no horror das trevas o crê certamente muito maior que aquilo que com as mãos tocará, assim fizeram os Chineses e os Egípcios e, com ambos, os Caldeus, no escuro da sua cronologia. Também, ainda que o padre jesuíta Michele di Ruggieri 40 afirme ter lido livros impressos antes da chegada de Jesus Cristo;41 e ainda que o padre Martini,42 também jesuíta, na sua História Chinesa, 43 fale de uma grandíssima antiguidade de ConfUcio, o que induziu muitos ao ateísmo, segundo a referência de
37
Aliás, desde há quarenta mil: cfr. CíCERO, De divinatione, I, 1. Cfr. A~1tiquitates iudaicae, I, 2, 3. 39 Mais exactamente, por ideogramas . .o De Nápoles. 41 Nada disso consta nas duas cartas de R u GGLERI publicadas parcialmente nos Nuovi avisi dei Giappone, etc. (Veneza, 1586), pp. 162-167 e 170-174. 42 O tridentino Martino Martini (1614-1661). 43 Sinicae historiae deca prima (Munique, 1658), pág. 128, onde, aliás, se atribui a ConfUcio uma antiguidade não anterior ao VI século a. C. 38
[56]
Martin Schoock, 44 em D emonstratione Diluvii universalis, 45 donde Isaac de la Peyrere, 46 autor da História Pré-Adamica, 47 talvez por isso tenha abandonado a fé católica48 e, assim, tenha escrito que o dilúvio se estendeu apenas sobre a terra dos Hebreus: porém, Nicolas Trigault, 49 melhor informado que Ruggieri e que Martini, escreve na sua Christiana expeditione apud Sinas50 ter sido a imprensa descoberta pelos Chineses não mais do que dois séculos antes dos europeus, e ter Confúcio nascido não mais do que quinhentos anos antes de Jesus Cristo. E a filosofia confuciana, conforme aos livros sacerdotais egípcios, é grosseira e desajeitada nas poucas coisas naturais, e dirige-se quase toda a uma moral vulgar, ou seja, moral ordenada a esses povos através das leis. [51] De uma tal reflexão acerca da vã opinião que tinham estas nações gentias sobre a sua antiguidade e, sobretudo, a dos Egípcios, devia começar todo o saber gentílico, tanto para conhecer cientificamente este importante princípio : - onde e quando teve ele os seus primeiros começos no mundo -; como para apoiar com razões também humanas todo o credível cristão, o qual começa todo a partir disto: que o primeiro povo do mundo foi o Hebreu, do qual foi príncipe Adão, que foi criado pelo verdadeiro Deus com a criação do mundo. 44
O holandês M artin Schoock (1614- 1659). M ais exactamente, no Diluvium Noachi universalis, publicado em apênclice à segunda eclição da Fabula Hamelensis (Groningen, 1692). Mas não se cliz nada do que afirma Vico. 46 O bordalês Isaac de la Peyrêre (1594-1675). 47 Os famosos Praeadamitae (1655, s. 1.), onde se afirmava a existência do género humano anteriormente a Adão. 48 Pelo contrário, preso em 1656, em Bruxelas, abjurou o calvinismo pelo catolicismo. 49 O outro missionário jesuíta Nicolas Trigault de Douai (1577-1628). 50 Augsburgo, 1615; cfi:. a tradução italiana de Antonio Sozzini da Sarzana (Nápoles, s. a., mas 1622). 45
[57]
E [disto deriva] que a primeira ciência que se deve aprender seja a mitologia, ou seja, a interpretação das fãbulas (porque, como se verá, todas as histórias gentílicas têm princípios fabulosos) , e que as fãbulas foram as primeiras histórias das nações gentias. E com este referido método [se hão-de] reencontrar os princípios tanto das nações como das ciências, que surgiram dessas nações e não de outro modo: como ao longo de toda esta obra será demonstrado 51 que essas tiveram os seus começos nas públicas necessidades ou utilidades dos povos, e depois, ao ser-lhes aplicada a aguda reflexão de homens particulares, foram aperfeiçoadas. E assim deve começar a história universal, à qual todos os doutos dizem faltar-lhe os princípios. [52] E, para o fazer, ser-nos-á nisso grandemente proveitosa a antiguidade dos Egípcios, pois conservaram dois grandes fragmentos não menos maravilhosos do que as suas pirâmides, que são estas duas grandes verdades filológicas. Das quais urna é referida por Heródoto: que eles reduziam a três idades todo o tempo do mundo que antes deles tinha decorrido: a primeira, dos deuses; a segunda, dos heróis; e a terceira, dos homens.52 A outra é que, em número e ordem correspondente, durante todo esse tempo se tinham falado três línguas: a primeira, hieroglífica, ou seja, por caracteres sagrados; a segunda, simbólica, ou por caracteres heróicos; a terceira, epistolar, ou por caracteres convencionados pelos povos, segundo a referência de Scheffer, 53 De philosofia italica. 54 Divisão dos tempos que, necessariamente, Marco Terêncio Varrão - porque ele, pela sua 51
Cfr., por exemplo, o parágrafo 498. contamina o que HERóDOTO, II, 36, diz acerca da dupla escrita dos Egípcios - hierática e demótica - com o que diz DIODORO, I, 44, das suas três eras. 53 Jean Scheffer, de Estrasburg (1621- 1679). 54 De ~wtura et constitutione philosophiae italicae (Upsala, 1644). Cfr. a reimpressão de Wittenberg, 1701 , pág. 25. 52 Vico
[58]
imensa erudição mereceu o elogio pelo qual foi chamado o «doutíssimo dos Romanos)) nos seus tempos mais iluminados, que foram os de Cícero - , devêmo-lo dizer, não apenas não soube seguir, mas que não quis; talvez porque entendeu acerca da nação romana aquilo que, por estes princípios, se comprovará verdadeiro acerca de todas as nações antigas, isto é, que todas as coisas romanas divinas e humanas eram nativas do Lácio: pelo que se esforçou por lhes dar a todas origens latinas, 55 na sua grande obra R erum divinarum et humanarum ,56 da qual nos privou a injúria do tempo (tanto Varrão acreditou na fabula da lei das XII Tábuas vinda de Atenas para Roma!), e dividiu todos os tempos do mundo em três, isto é: tempo obscuro, que é a idade dos deuses; depois, o tempo fabuloso, que é a idade dos heróis; e, finalmente, o tempo histórico, que é a idade dos homens de que falavam os Egípcios. [53) Para além disso, a antiguidade dos Egípcios ser-nos-á proveitosa com duas vaidosas memórias, daquela vaidade das nações, as quais, como observa Diodoro Sículo 57 que, fossem elas bárbaras ou humanas, cada uma se considerou a mais antiga de todas, dedicando-se a preservar as suas memórias desde o princípio do mundo; o que veremos ter sido privilégio apenas dos Hebreus. Dessas tais duas vaidosas memórias, observamos que uma é a de que o seu Júpiter Ámon era o mais velho de todos os outros do mundo; a outra, que todos os outros Hércules das outras nações tinham tomado o nome do seu Hércules egípcio: isto é, que para todas decorreu primeiro a idade dos deuses, dos quais em todas se acreditou ser rei Júpiter; e depois a idade dos heróis, que se consideravam ser filhos dos deuses, o maior dos quais se acreditou ser Hércules. 55
De atribuir sempre a palavras latinas etimologias latinas. Certo resumo em SANTo A GOST INH O , D e civitate Dei, VI, 3 e seg. 57 C&. I, 9. Mas o passo é parafraseado por Vico com tanta liberdade que se torna quase irreconhecível. 56
[59)
II
[Hebreus] [54] Erige-se a primeira coluna para os Hebreus, que, segundo as seriíssirnas autoridades do hebreu Flávio Josefo e de Lactâncio Firmiano, que em seguida58 serão aqui apresentadas, viveram ignorados por todas as nações gentias. E também esses faziam com precisão a contagem dos tempos transcorridos no mundo, hoje recebida como verdadeira pelos mais severos críticos, segundo o cálculo de Fílon, o judeu; a qual, se difere daquele de Eusébio, a diferença não é senão de mil e quinhentos anos, 59 que é brevíssimo espaço de tempo em comparação com o quanto o alteraram os Caldeus, os Citas, os Egípcios e, até ao dia de hoje, os Chineses. O que deve ser um argumento invencível de que os Hebreus foram o primeiro povo do nosso mundo e de que preservaram, com verdade, as suas memórias na história sagrada desde o princípio do mundo. III
[Caldeus] [55] Coloca-se a segunda coluna para os Caldeus, tanto porque em geografia60 se mostra ter existido na Assíria a monarquia mais mediterrânica61 de todo o mundo habitável, como porque nesta obra se demonstra que se povoaram
No parágrafo 94. Segundo a era filoniana ou judaica, o mundo teria sido criado no ano 3761 a. C.; segundo a eusebiana, no ano 5202. 60 Na Geogrcifia poética. M as cfr., na realidade, a Cronologia poética (parágrafo 736). 61 Situada na sua maior parte em terra. ;s 59
[60)
primeiro as nações mediterrânicas, depois as marítimas. E os Caldeus foram certamente os primeiros sábios da gentilidade, o príncipe dos quais, recebido pela comunidade dos filólogos, é Zoroastro, o caldeu. E, sem qualquer escrúpulo, a história universal recebe o seu princípio com a monarquia dos Assírios, a qual devia ter começado a formar-se a partir da gente caldeia; da qual, tendo crescido em grandíssimo corpo, deve ter passado para a nação dos Assírios durante o governo de Nino, que aí deve ter fundado tal monarquia, não já com gente para ali trazida de fora , mas nascida dentro da própria Caldeia, com a qual extinguiu o nome caldeu e aí produziu o assírio: que devem ter sido os plebeus daquela nação, com cujas forças Nino se tornou ali monarca, como é demonstrado nesta obra esse costume civil de quase todas, e como sucedeu certamente com a romana. E essa história também nos conta que Zoroastro foi morto por Nino; o que comprovaremos ter sido dito, em língua heróica, com o sentido de que o reino dos Caldeus (dos quais Zoroastro tinha sido carácter heróico) , que tinha sido aristocrático, foi derrubado por meio da liberdade popular dos plebeus de tal gente, que se verá terem sido, nos tempos heróicos, outra nação dos nobres, e que, com a aj uda de tal nação, teria sido Nino estabelecido aí monarca . De outro modo, se estas coisas não tivessem sido assim, surgiria esta monstruosidade de cronologia na história assíria: que, na vida de um só homem, a de Zoroastro, a Caldeia se teria conduzido de vagabundos foras-da-lei a tamanha grandeza de império, que Nino ali fundou uma grandíssima monarquia. Princípios sem os quais, sendo atribuído a Nino o primeiro início da história Universal, nos tem feito até agora parecer que a monarquia da Assíria, como rã numa chuva de verão, nasceu toda de repente. 62 62
Recorde-se a crença popular na terrigenia das rãs, dos sapos e dos outros animais afins.
[61 ]
IV
[Citas] (56] Funda-se a terceira coluna para os Citas, que venceram os Egípcios em competição de antiguidade, como há pouco no-lo narrou 63 uma tradição vulgar.
v [Fenícios] (57] A quarta coluna estabelece-se para os Fenícios, antes dos Egípcios, aos quais os Fenícios, através dos Caldeus, levaram a prática do quadranté 4 e a ciência da elevação do polo65 , de que existe u~ tradição vulgar; 66 e em seguida67 demonstraremos que levaram também os caracteres vulgares.
VI
[Egípcios] (58] Por todas as coisas aqui acima reflectidas, merecem o quinto lugar nesta Tábua Cronológica aqueles Egípcios que no, seu Cânone, Marsham pretende que tenham sido os ma.1s antigos de todas as nações.68
63
Cfr. o parágrafo 48. Do quadrante catóptrico. 65 Da estrela polar. 66 A qual narrava somente que esses tinham sido os primeiros a servir-se de instrumentos náuticos. Cfr. HERóDOTO, II, 109; PLÍNIO, N h., V, 12 e VII, 56. 67 No parágrafo 44. 68 Op. cit., pp. 26-27. 64
[62)
VII
[Zoroastro, ou reino dos Caldeus. - Anos do mundo 17 5 6J [59] Comprova-se nesta obra ter sido Zoroastro um carácter poético dos fundadores dos povos no Oriente, 69 onde se encontram tantos espalhados por aquela grande parte do mundo, quantos são os Hércules pela outra oposta do Ocidente; e talvez os Hércules, que, com o aspecto dos ocidentais, Varrão observou também na Ásia (como o tírio, o fenício) ,70 devessem ser Zoroastros para os orientais. Mas a vaidade dos doutos , que pretendem que aquilo que sabem seja tão antigo quanto é o mundo, fez dele um homem particular comulado de altíssima sabedoria secreta e atribuiu-lhe os oráculos da filosofia/1 que mais não fazem do que vender por antiga uma demasiado nova doutrina, que é aquela dos pitagóricos e dos platónicos. 72 Mas essa vaidade dos doutos não se ficou por aqui, pois inchou mais com o inventar da sucessão das escolas para as nações: que Zoroastro doutrinou Beroso, para a Caldeia; Beroso, Mercúrio Trismegisto, para o Egipto; Mercúrio Trismegisto, Atlante, para a Etiópia; Atlante, Orfeu , para a Trácia; e que, finalmente, Orfeu fixou a sua escola na Grécia. 73 Mas, em breve, ver-se-á 74 quanto foram faceis estas longas viagens
69
Um personagem mítico, ao qual vieram a ser atribuídas características comuns a quantos no Oriente foram fundadores de povos. 70 Mais do que Varrão, discorrem sobre estes Hércules asiáticos DtODORO (1, 7; III, 9, 24 e 55; XVI, 45) e Cíc ERO (De nat. deor., II , 6) . 71 Os chan1ados «oráculos de Zoroastro», recolhidos primeiramente em 1563, de várias fontes gregas, e que Vico provavelmente co nhecia através da tradução latina de van H eurn, do qual se cfr. op. cit., pp. 124-140. 72 Ou seja, dos neopitagóricos e dos neoplatónicos. 73 Nenhwn dos «doutos>>exibiu jamais a particular «sucessão de escolas• (influxos de culturas) aqui afirmada. 74 N o parágrafo 93.
[63]
pelas primeiras nações, as quais, pela sua fresca origem selvagem, por todo o lado viviam desconhecidas até dos próprios vizinhos, e não se conheceram entre elas senão por ocasião das guerras ou por causa dos comércios. [60] Mas, acerca dos Caldeus, os mesmos filólogos, perturbados pelas várias tradições vulgares que deles recolheram, não sabem se eles teriam sido primeiro homens particulares, famílias inteiras, ou todo um povo ou nação. 75 Dúvidas essas que se resolveram todas com estes princípios: que primeiro foram homens particulares, depois famílias inteiras, em seguida todo um povo e, finalmente, uma grande nação, sobre a qual se fundou a monarquia da Assíria; e o seu saber foi, primeiro, em divindade vulgar (com a qual adivinhavam o futuro pelo trajecto das estrelas cadentes à noite) e, depois, na astrologia judiciária, pelo que entre os latinos o astrólogo judiciário permaneceu designado «chaldaeus».76 VIII
Uápeto, do qual provêm os gigantes. - Anos do mundo 185 6] [61] Será demonstrado,77 pelas no interior das fabulas gregas e morais extraídas do interior das existido na natureza em todas as
75
histórias tisicas encontradas provas tanto tisicas como histórias civis, terem estes primeiras nações gentias.
Alusão às discussões quinhentistas e seiscentistas sobre um passo de De divinatione, de Cícero, onde é dito que os Caldeus eram chamados assim «non ex artis (isto é, da sua profissão de astrólogos e, talvez, de charlatães), sed ex gentis vocabulo» (mas sim do nome do seu povo). 76 Cfr. Collatio legum romanarum et mosaicarum, XV, 2, I; Codex theodosia11us, IX, 16, 4; Codex iustinianeus, IX, 18, S. n Cfr. o parágrafo 369-373.
[64]
IX [Nemrod ou confusão das Unguas. - Anos do mundo 185 6] [62] Que sucedeu de uma maneira miraculosa, pelo que no mesmo instante se formaram tantas línguas diversas. 78 Confusão de línguas pela qual pretendem os Padres que se veio a perder, pouco a pouco, a pureza da língua santa antediluviana.79 O que se deve entender para as línguas dos povos do Oriente, entre os quais Sem propagou o género humano. 80 M as para as nações de todo o restante mundo a questão devia passar-se de outra maneira. Porquanto as raças de Cão e Jafeth devem ter-se dispersado pela grande selva desta terra, num errar ferino de duzentos anos; e assim, vagabundas e solitárias, devem ter produzido os filhos , com uma ferina educação, desnudadas de todo o costume humano e privadas de toda a fala humana e, portanto, num estado de animais selvagens. E foi necessário precisamente transcorrer tanto tempo para que a terra, dessecada da humidade do dilúvio universal, pudesse mandar para o ar as exalações secas para se poderem gerar os relâmpagos, 81 devido aos quais os homens, aturdidos e assustados, se abandonaram às falsas religiões de tantos Jupiteres,
78 Para uma plena ilustração deste difícil parágrafo, em que Vico procura, mas sem conseguir, permanecer fiel ao relato bíblico, contra o qual acaba por se opor abertamente, veja-se o terceiro dos ensaios recolhidos por F AUSTO N tCOLINI, La religiosità di C iambattista Vico (Bari, 1949) . 79 Provavelm ente Vico trocou a confusão babélica ou da Babilónia com o «cativeiro da Babilónia», durante o qual o hebraico («língua santa») se corrompeu bastante. 80 «COiifusum est labium• não apenas dos povos emitas, mas • tmiversae te" ae» vem escrito no Cer1esis, XI , 9. 81 Vico fu ndamenta-se na teoria aristotélica, lida provavelmente em S ÉNECA (Natu rales quaestiones, II , 12): que, das exalações terrestres, algumas seriam térreas, ou precisamente «secas» e gerariam vento e relâmpagos.
[65]
dos quais Varrão chega a enumerar quarenta e os Egípcios diziam ser o seu Júpiter Ámon o mais antigo de todos, e entregaram-se a uma espécie de adivinhação para prever o futuro através dos trovões, dos relâmpagos e pelos voos das águias, que acreditavam serem aves de Júpiter. Mas, entre os orientais, nasceu uma espécie de adivinhação mais delicada, pela observação dos movimentos dos planetas e os aspectos dos astros: pelo que é celebrado como primeiro sábio da gentilidade Zoroastro que, segundo Bochart, 82 quer dizer «observador dos astros». E, tal como entre os orientais nasceu a primeira sabedoria vulgar, 83 assim entre eles surgiu a primeira monarquia, que foi a da Assíria. [63] Com esta referida reflexão vêm a desmoronar-se todas as últimas etimologias, 84 que pretendem reportar todas as línguas do mundo às origens dos orientais: quando todas as nações provindas de Cão e J eth fundaram, primeiro, as línguas nativas no interior da terra e, depois, tendo descido para o mar, começaram a conviver com os Fenícios, que foram célebres nas praias do Mediterrâneo e do Oceano pela navegação e pelas colónias. Como na Ciência Nova pela primeira vez impressa demonstrámos sobre as origens da língua latina e, a exemplo da latina, o mesmo deve ser entendido de todas as outras.
82
O erudito e teólogo calvinista Samuel Bochart de Rouen (15991667): di:. a sua Geographia sacra seu Phaleg et Chanaan, edição de Leida, 1692, col. 306, onde, aliás, se diz uma coisa completamente diferente. 83 A astrologia. 84 O já mencionado Bochart, Voss de Heidelberg (1577-1649), etc., e talvez mesmo o colega de Vico na Universidade de Nápoles,Alessio Simmaco Mazzocchi da Santa Maria Capua Vetere (1684-1771).
[66]
X
[Um dos quais
[g~antes],
Prometeu, rouba o fogo do sol. - Anos do mundo 185 6]
[64] Desta fãbula se divisa ter o Céu reinado na terra, quando o criam tão alto quanto os cimos dos montes, como o considera a tradição vulgar, que também refere ter deixado muitos e grandes benefícios ao género humano.
XI [Deucalião] [65] Tempo no qual Témis, ou seja, a justiça divina, tinha um templo sobre o monte Parnaso, e julgava na terra as coisas dos homens. 85 XII
[Mercúrio Trism egisto, o velho, ou seja, idade dos deuses do Egipto] [66] Este é o Mercúrio que, segundo a referência de Cícero, em De natura deorum, 86 foi chamado pelos Egípcios «Theub>87 (do qual, para os Gregos, veio a derivar -ôeóç), que inventou as letras e as leis para os Egípcios, e estes (para Marsham) 88 tê-las-iam ensinado às outras nações do mundo.
85
Vico funde e confunde o mito de Témis, que pronunciava oráculos sobre o Parnaso, com aquele de Astreia, descida do céu à terra, durante a idade do ouro, para administrar a justiça. 86 Cfr. III, 22. 87 Em vez disso, forma referida por PLATÃO, Filebo, p. 186; Fedro, p. 274 c. 88 Cfr. Op. cit., pp. 36 e seg. e 123, onde se fala apenas de «letras>>, não igualmente de «leis• .
(67)
Porém, os Gregos não escreveram as suas leis com hieróglifos, mas com as letras vulgares, que até agora se tem opinado terem-lhes sido trazidas por Cadmo da Fenícia, das quais, como se verá, 89 não se serviram durante mais de setecentos anos depois. Tempo durante o qual surgiu Homero, que em nenhum dos seus poemas nomeia VÓj.LOÇ (como observou Feith,90 nas Antiquidades Homéricas), e deixou os seus poemas à memória dos seus rapsodos , porque no seu tempo as letras vulgares não tinham sido ainda inventadas, como resolutamente sustenta Flávio Josefo hebreu contra o gramá tico grego Apiano. 9 1 E, contudo, depois de Homero, quão diferentes as letras gregas surgiram das fenícias! 92 [67] Mas estas são dificuldades menores em face destas outras: como podem as nações, sem as leis, encontrar-se j á fundadas? e como, nesse Egipto, antes de tal Mercúrio, se tinham já fundado as dinastias? Como se as letras fossem da essência das leis, e como se não fossem leis as de Esparta, onde por lei de Licurgo era proibido saber de letras! 93 Como se na natureza civil não tivesse podido existir esta ordem: - de conceber as leis oralmente e de as promulgar também oralmente, - e não se encontrassem de facto em Homero duas espécies de assembleias: uma chan1ada ~OUÀ.1Í , secreta, onde se reuniam os heróis para deliberar oralmente sobre as leis; e uma outra chamada àyopá., pública, na qual também oralmente as promulgavam! Como se, finalmente, a providência não tivesse acorrido a esta necessidade humana: que, pela falta das letras,
89
No parágrafo 679.
90
O erudito seiscentista holandês Ever:ard Feith: cfr. os seus póstumos
A~rtiquitatum 91 92
93
homericarum libri sex (Leida, 1679), pág. 118. Cfr. Co~rtra Apiorrern, l, 2. Inexacto. Mais exactamente, de pôr as suas leis por escrito.
(68]
todas as nações na sua barbárie se fundassem primeiro com os costumes e, uma vez civilizadas, depois se governassem com as leis! Tal como na barbárie regressada, os primeiros direitos das novas nações da Europa nasceram com os costumes, dos quais os mais antigos são os feudais ; o que deve ser recordado para aquilo que mais adiante diremos: 94 que os feudos foram as primeiras fontes de todos os direitos que, depois, chegaram a todas as nações, tanto antigas como modernas e, portanto, ter sido estabelecido o direito natural dos gentios, não imediatamente com leis, mas com esses costumes humanos. [68] Ora, no que diz respeito a este grande momento da religião cristã: - que Moisés não tenha aprendido com os Egípcios a sublime teologia dos Hebreus - parece obstar fortemente a cronologia, que situa Moisés depois deste Mercúrio Trismegisto. 95 Mas tal dificuldade, para além das razões com que acima foi combatida, vence-se, de facto, com estes princípios, contidos num trecho verdadeiramente de ouro de Iâmblico, De mysteriis aegyptiorum, 96 onde diz que os Egípcios relacionavam com este seu Mercúrio todas as suas descobertas necessárias ou úteis à vida humana civil; de modo que ele deve ter sido, não um homem particular, rico em sabedoria secreta, que depois foi consagrado deus, mas um carácter poético97 dos primeiros homens do Egipto sábios em sabedoria vulgar, que aí fundaram primeiro as fanúlias e depois os povos que, finalmente, formaram aquela grande nação. E, segundo este mesmo trecho de Iâmbico há pouco citado, para que entre os Egípcios subsista a divisão das três idades dos deuses , dos heróis e dos homens, e que seja este Trismegisto seu deus ,
94 95 %
97
N os parágrafos 599 e seg. Cfr. SANTO A GOSTINHO , D e civ. Dei, XVIII, 30 e 37. Cfr. I. Um personagem mítico.
[69]
é necessano, por isso, que a vida desse Mercúrio tenha transcorrido toda a idade dos deuses dos Egípcios.
XIII [Idade do ouro, ou seja, idade dos deuses da Grécia] [69) Da qual a história fabulosa nos narra uma das particularidades: que os deuses conviviam na terra com os homens. E, para certificar os princípios da cronologia, meditamos nesta obra uma teologia natural, 98 ou seja, geração dos deuses, produzida naturalmente nas fantasias dos Gregos para certas ocasiões de necessidade ou utilidade humanas, que advertiam terem-lhes sido lembradas ou fornecidas nos tempos do primeiro mundo infantil, surpreendido pelas mais espantosas religiões: que tudo aquilo que os homens viam ou imaginavam, ou mesmo eles próprios faziam, tomavam como divindade. E, dos famosos doze deuses dos gentios que foram chamados «maiores», ou seja, deuses consagrados pelos homens no tempo das fanúlias, constituindo doze pequenas épocas, determina-se com uma cronologia reflectida da história poética a duração de novecentos anos para a idade dos deuses; assim se fornecem os princípios à história universal profana. XIV
[Heleno, filho de Deucalião, neto de Prometeu, bisneto de ]ápeto, através dos seus três filhos espalha na Grécia três dialectos. Anos do mundo 2082] [70) Deste Heleno foram os Gregos nativos chamados «helenos>>; mas os Gregos de Itália foram chamados «graii»>, e
98
É desenvolvida muito amplamente em todo o segundo livro.
[70]
a sua terra Graikia, 99 donde vieram a ser chamados aos latinos «graeci». Tanto souberam os Gregos de Itália o nome da nação grega principal, que foi a ultramarina, donde eles tinham vindo como colonos para Itália! Porque essa palavra Graikia não se encontra em nenhum escritor grego, como observa Jean Le Paulmier 100 na Descrição da Grécia. XV
[Cécrops, eg{pcio, funda doze col6nias na Ática, das quais depois Teseu formou Atenas] [71] Mas Estrabão 10 1 considera que a Ática, pela aspereza das suas terras, não podia atrair estrangeiros que a viessem habitar, para provar que o dialecto ático é dos primeiros entre os outros nativos da Grécia. XVI
[Cadmo, fen{cio, funda Tebas, na Be6cia, e introduz na Grécia as letras vulgares. -Anos do mundo 2491] [72] E para ai levou as letras fenícias: pelo que a Beócia, letrada desde a sua fundação, devia ser a mais engenhosa de todas as outras nações da Grécia; mas produziu homens de mentes tão estúpidas, que «beócio» se tornou proverbial para designar um homem de engenho obtuso.
99
Inexacto. Jacques (não Jean) Le Pauhnier de Grentmesnil (1583-1670) . Cfr. a sua póstuma Graeciae antiquae descriptio (Leida, 1678), pp. 3-7. 10 1 Cfr. IX, I, 8. 100
(71]
XVII
[Saturno, ou seja, a idade dos deuses do I.Ácio. -Anos do mundo de 2491] [73) Esta é a idade dos deuses que começa nas nações do Lácio, correspondente nas propriedades à idade do ouro dos Gregos, para os quais se comprovará, pela nossa mitologia, que o primeiro ouro foi o trigo,102 por cuja colheita, durante muitos séculos, as primeiras nações contaram os anos. E Saturno foi chamado pelos Latinos a «satis», das sementeiras, e é chamado Xpóvoç pelos Gregos, para os quais xpóvoç é o tempo, de que provém a palavra «cronologia». XVIII
[Mercúrio Trismegisto, o jovem, ou idade dos heróis do Egipto. - Ano do mundo 2553] [74] Este Mercúrio, o jovem, deve ser carácter poético da idade dos heróis dos Egípcios. A qual, para os Gregos, não aconteceu senão novecentos anos depois, ao cabo dos quais vem a terminar a idade dos deuses da Grécia; mas, para os Egípcios, esta decorreu durante o tempo de um pai, de um filho e de um neto. 103 Um anacronismo semelhante a este da história egípcia, observamo-lo 104 na história assíria, na pessoa de Zoroastro.
102
Cfr. o parágrafo 544- 547. Apenas durante três gerações, isto é, no máximo, durante um século. 104 Nos parágrafos 55 e 59. 103
[72]
XIX [Dánao, eglpcio, expulsa os Ináquidas do remo de Argo. -Anos do mundo de 2553] [75] Estas sucessões reais são grandes cânones de cronologia: como Dánao ocupa o reino de Argo, anteriormente dominado por nove reis da casa de Ínaco, durante os quais deviam ter transcorrido trezentos anos (pela regra dos cronologistas), como perto de quinhentos pelos catorze re1s latinos que reinaram em Alba. [76] Mas Tucídides 105 diz que, nos tempos heróicos, os reis se expulsavam do trono uns aos outros todos os dias; 106 como Arnúlio expulsa N umitor do reino de Alba, e dali Rómulo expulsa Arnúlio e repõe Numitor. O que acontecia tanto pela ferocidade dos tempos, como por estarem sem muralhas as cidades heróicas, 107 e não estarem ainda em uso as fortalezas , como aqui 108 se verifica acerca dos tempos bárbaros regressados . 109
105
Cfr. I, 5. M ais exactamente: que os povos mais fortes expulsavam dos seus sítios os mais fracos. 107 T ucíDIDES, loc. cit.; ARISTÓT ELES, Polftica, p. 1330 b 19. 108 Cfr. o parágrafo 1014. 109 Da alta Idade Média. 106
[73)
XX [Heraclidas espalhados por toda a Grécia, onde formam a idade dos heróis. - Curetes em Creta, Satúrnia, ou seja, Itália, e na Ásia, onde formam reinos de sacerdotes. - Anos do mundo 2682] [77] Observa Denis Petau 11 0 que estes dois grandes fragmentos da antiguidade foram lançados na história grega antes do tempo heróico dos Gregos. E os Heraclidas, ou seja, os filhos de Hércules, espalharam-se por toda a Grécia, mais de cem anos antes de ali ter chegado seu pai Hércules, que, para os propagar por tantas gerações, deveria ter nascido muitos séculos antes.
XXI [Dido, de Tiro, vai fundar Cartago] [78] Que nós situamos no fim do tempo heróico dos Fenícios, e assim, expulsa de Tiro, porque vencida em contenda heróica, tal como ela declara ter dali saído devido ao ódio do seu cunhado. 111 Tal multidão de homens tírios foi chamada com frase heróica «temea», 11 2 porque se compunha de débeis e vencidos.
11 0
O cronógrafo jesuíta Denis Petau, de Orléans (1583-1652) . Cfr. o seu De ratione temporum (1626) , edição de Veneza, 1757, II , 37-38, onde, aliás, se discorre somente acerca dos Heraclidas. 111 A tradição afirmava Pigmalião, não cunhado, mas irmão de Dido. Cfr. Virgílio, Aen., I, 310 e seg. 11 2 Segundo Vico, o sexo feminino nos mitos (e ele considera Dido uma personagem mitológica) seria símbolo de fraqueza.
[74]
XXII
[Oifeu e, com ele, a idade dos poetas te6logos] [79] Comprova-se ser este Orfeu, que converte as feras da Grécia à humanidade, um vasto covil de mil monstros. Vem da Trácia, pátria de ferozes Martes, não de humanos filósofos, os quais, durante todo o tempo que se seguiu foram tão bárbaros, que o filósofo Andrócion 11 3 retirou Orfeu do número dos sábios somente pelo facto de ter nascido na Trácia. 114 E , nos seus inícios, surgiu tão douto na língua grega, que nela compôs versos de rnaravilhosíssima poesia, com a qual domestica os bárbaros pelos ouvidos; esses, uma vez organizados em nações, não foram impedidos pelos olhos de dar fogo às cidades cheias de maravilhas. Orfeu encontra os Gregos ainda como animais selvagens; aos quais Deucalião, cerca de mil anos antes, tinha ensinado a piedade, respeitando e temendo a justiça divina, com cujo temor, ante o templo dela colocado sobre o monte Parnaso (que foi depois a morada das Musas e de Apolo, que são o deus e as artes da humanidade), juntamente com Pirra, sua mulher, ambos com as cabeças veladas (isto é, com o pudor do concúbito humano, querendo com isso significar o matrimónio), atiram para trás das costas as pedras que estavam a seus pés (isto é, os estupefactos pela anterior vida ferina), fazendo-as tornar-se homens (isto é, com a ordem da disciplina económica, 115 no estado das famílias) ; - Heleno, setecentos anos antes, tinha-os unido pela língua e tinha ali espalhado três dialectos, através de três filhos seus; - a casa de Ínaco demonstrava terem os reinos sido ali fundados desde há trezentos anos e daí transcorrerem as sucessões reais. Veio
113
Antes, historiador. Cfr. E LIANO, ~riae historiae, VIII , 6. m Com a educação familiar.
11 4
[75]
finalmente Orfeu para lhes ensinar a humanidade; e, a partir do momento que a encontra tão selvagem, conduz a Grécia a nação tão ilustre, que se torna companheiro de Jasão na empresa naval do velo de ouro (quando a náutica e a navegação são as últimas descobertas dos povos), e tem a companhia de Castor e Pólux, irmãos de Helena, por causa de quem foi feita a tão famosa guerra de Tróia. E quantas coisas civis feitas na vida de um só homem, para as quais mal chega o decurso de bem mil anos! Tal monstro de cronologia acerca da história grega, na pessoa de Orfeu, é semelhante às outras duas acima observadas: um sobre a história assíria, na pessoa de Zoroastro, e um outro sobre a egípcia, naquela dos dois Mercúrios. Por tudo isto, talvez, Cícero, De natura deorum , 116 suspeitou que um tal Orfeu jamais tivesse existido no mundo. [80] A estas enormes dificuldades cronológicas acrescentam-se outras, não menores, morais e políticas: que Orfeu funda a humanidade da Grécia sobre exemplos de um Júpiter adúltero, de uma Juno inimiga mortal das virtudes de Hércules, de urna casta Diana que solicita de noite os adormecidos Endimiões, de um Apolo que responde a oráculos e assola até à morte as pudicas donzelas Dafnes, de um Marte que, como se não bastasse aos deuses cometerem adultérios na terra, os transporta para dentro do mar com Vénus. Nem tal desenfreada libido dos deuses se contenta com os proibidos concúbitos com as mulheres : arde Júpiter de nefandos amores por Ganimedes; nem mesmo aqui se detém: excede-se finalmente no bestial, e Júpiter, transformado em cisne, deita-se com Leda: libido a qual, exercitada nos homens e nos animais, constituiu absolutamente a infame ilicitude do mundo fora-da-lei. Tantos deuses e deusas no céu não contraem rnatrirnóruos; e há um deles, o de Júpiter com Juno, e é estéril; não 116
Cfr. I, 38, onde é dita uma coisa bem diferente.
[76]
somente estéril, mas também cheio de rixas atrozes; de tal modo que Júpiter suspende no ar a pudica e ciumenta esposa, e dá ele à luz Minerva pela cabeça; e, afinal, se Saturno faz filhos, devora-os. Exemplos, e poderosos exemplos divinos (ainda que essas fabulas contenham toda a sabedoria secreta desejada, desde Platão até aos nossos tempos, por Bacon de Verulam, De sapíentia veterum) que, tomados à letra, desagregariam os povos mais bem-educados e instigá-los-iam a embrutecer-se como essas feras de Orfeu: tão apropriados e eficazes são para transformar os homens de animais selvagens em humanidade! Repreensão de que é uma pequena parte a que Santo Agostinho, na Cidade de Deus, 11 7 dirige aos deuses da gentilidade, a propósito do Eunuco de Terêncio: 11 8 que Quírio, escandalizado com uma pintura de Júpiter que, em forma de chuva de ouro, se deita com Danae, toma aquele atrevimento, que nunca tinha tido, de violar a escrava, pela qual também tinha enlouquecido com um violentíssimo amor.
[81] Mas estes duros escolhos da mitologia serão evitados com os princípios desta Ciência, a qual demonstrará que tais fabulas, nos seus princípios, foran1 todas verdadeiras, severas e dignas de fundadores de nações, e que, depois, com o longo passar dos anos, obscurecendo-se os significados, por um lado, e por outro, com a mudança dos costumes - que de severos se tornaram dissolutos, porque os homens, para consolar as suas consciências, queriam pecar com a autoridade dos deuses -, passaram aos sórdidos significados com que chegaram até nós. As ásperas tempestades cronológicas ser-nos-ão serenadas com a descoberta dos caracteres poéticos, um dos quais foi Orfeu, observado sob o aspecto de poeta teólogo, que, com as fabulas, no seu significado inicial, primeiro fundou e depois consolidou
117
118
Cfr. II, 7, e cfr. III, 3. Cfr. III , 567.
[77]
a humanidade da Grécia. Carácter esse que sobressaiu, mais do que nunca, nas contendas heróicas com os plebeus das cidades gregas; pelo que se distinguiram, nessa idade, os poetas teólogos, 119 como esse Orfeu, Lino, Museu, Anfíon, o qual de pedras semoventes (uns estúpidos plebeus) ergueu os muros de Tebas, que Cadmo havia fundado trezentos anos antes; precisamente como Ápio, neto do decênviro, 120 cerca do mesmo tempo da fundação de Roma, ao cantar à plebe a força dos deuse nos auspícios, da qual os patrícios possuíam a ciência, estabelece o estado heróico para os Romanos. De cujas contendas heróicas tomou nome o século heróico.
XXIII [Hércules, com quem o tempo heróico da Grécia atinge o cume] [82] Repetem-se as mesmas dificuldades com Hércules, tomado por um homem verdadeiro, companheiro de Jasão na expedição à Cólquida; quando ele, como se comprovará, não seria senão um carácter heróico 121 de fundador dos povos, pelo aspecto dos seus trabalhos. 122
11 9 Expressão que remonta a SANTo A GOSTINHO, D e civ. D ei, XVIII, 14, e que Vico adopta nos mais variados significados (aqui, de «criadores e cantores dos mitos> e, ao mesmo tempo, de «fundadores das nações• ou •de civilização»). 120 Para o set:. discurso, cfr. Lrvro , VI, 41, que o situa no ano 382 de Roma. 121 Mito. 122 Cfr. o pacigrafo 514.
[78)
XXIV [Sanconlaton escreve histórias em letras vulgares. - Anos do mundo 2800] [83] Dito também Sanconiáton, chamado «o histórico da verdade» 123 (segundo a referência de Clemente de Alexandria 12\ nos Stromatt), que escreveu em caracteres vulgares a história ferúcia , enquanto os Egípcios e os Citas, como já vimos, escreviam por hieróglifos, como se comprova que escreveram até aos dias de hoje os Chineses, que se gabam, não menos do que os Egípcios e os Citas, de uma monstruosa antiguidade, porque no escuro do seu fechamento, não convivendo com outras nações, não viram a verdadeira luz dos tempos. E Sancorúaton escreveu em caracteres ferúcios vulgares, enquanto as letras vulgares não tinham sido ainda inventadas entre os Gregos, como acima se disse. 125
XXV [Guerra de Tróia. -Anos do mundo 2820] [84] A qual, tal como é narrada por Homero, cntJ.cos avisados 126 consideram que não deve ter ocorrido no mundo; e os Díctis cretenses e os Dares frígios que a escreveram em prosa como historiadores do seu tempo, são remetidos pelos mesmos críticos 127 para conservação na biblioteca da impostura. 123
tÀaÀ'IÍ'Ôr)Ç:
cfr. Po RFIR.IO, in T EODORETO, Opera, edição Migne, IV,
854 . 124
N ão ele, mas Eusébio (Praeparatio evangelica, passim) . N o parágrafo 66. 126 Quase certamente, alusão ao vero nês monsenhor Francesco Bianchini (1662-1729) , de quem se cfr. a Istoria universale (Roma, 1697), pág. 452. 127 Entre outros, por FABR.ICUS, Bibliotheca graeca, edição Harless, I, 21 125
-22, 25-29.
(79]
XXVI [Sesóstris rema em Tebas. -Anos do mundo 2949]
[85] O qual subjugou sob o seu império as outras três dinastias do Egipto; que se comprova 128 ser o rei Ramsés que o sacerdote egípcio refere a Germânico, segundo Tácito. 129 XXVII [Colónias gregas na Ásia, na Siália, na Itália . - Anos do mundo 2949]
[86] Esta é uma das pouquíssimas coisas nas quais não seguimos a autoridade dessa cronologia, forçados por uma prepotente razão. Pelo que situamos cem anos depois da guerra troiana as colónias dos Gregos fundadas em Itália e na Sicília, e assim, cerca de trezentos anos antes do tempo em que a situaram os cronologistas, ou seja, próximo dos tempos nos quais os cronologistas situam o errar dos heróis, como o de Menelau, de Eneias, de Antenor, de Diomedes e de Ulisses. Nem deve causar admiração, quando esses cronologistas divergem em quatrocentos e sessenta anos sobre o tempo de Homero, 130 que é o autor mais próximo dessas referidas coisas dos Gregos. Porque a magnificência e a delicadeza de Siracusa, nos tempos das guerras cartaginesas, nada tinham que invejar à da própria Atenas: quando nas ilhas, mais tarde que nos continentes, se introduzem a brandura e o esplendor dos costumes, e Crotona, nos tempos dele, provocou a Lívio compaixão, 131 pelo seu escasso número de habitantes, quando nela antes tinham habitado muitos milhões. 128
Conjectura de Vico. Vide acima a nota 191 , ao parágrafo 44. 130 Cfr. o parágrafo 803 . 131 Cfr. XXIII, 30; XXXIV, 3, onde se diz uma coisa muito diferente. 129
(80)
XXVIII Uogos oUmpicos, primeiro ordenados por Hércules, depois interrompidos, e restabelecidos por Ífito. - Anos do mundo 3223] [87] Porque se comprova que se contaram a partir de Hércules os anos pelas colheitas; de Ífito 132 em diante, pelo curso do sol, através dos signos do zodíaco: pelo que a partir destes começa o tempo certo dos Gregos.
XXIX [Fundação de Roma. -Anos de Roma 1] [88] Mas, tal como o sol dissipa as névoas, assim um trecho de ouro de Varrão (em Santo Agostinho, na Cidade de Deus 133) dissipa todas as magnificas opiniões que até agora se foram tendo sobre os princípios de Roma, e de todas as outras cidades que foram capitais de famosíssimas nações: que ela, durante o governo dos reis que aí reinaram duzentos e cinquenta anos, manumitiu mais de vinte povos, e não estendeu o império por mais de vinte milhas. XXX
[Homero, o qual surgiu num tempo em que não se tinham ainda descoberto as letras vulgares e que não conheceu o Egipto. - Anos do mundo 3290, de Roma 35] [89] A história grega deixou-nos no escuro sobre esta primeira luz da Grécia, acerca das suas partes principais, isto
132 133
Cfr. o parágrafo 803. Cfr. III, 15, onde não é citado nunca Varrão.
[81]
é, a geografia e a cronologia, pois não nos chegou nada de certo, nem sobre a sua pátria nem sobre a idade. 134 Homero, no terceiro destes livros, comprovar-se-á ser totalmente diferente daquilo que até agora se tem acreditado. Mas, quem quer que tenha ele sido, não conheceu certamente o Egipto; ele que, na Odisseia, 135 refere que a ilha onde estava então o farol de Alexandria estaria tão distante de terra firme quanto uma nave descarregada, com vento norte pela popa, podia velejar um dia inteiro. Nem conheceu a Ferúcia; pois refere 136 que a ilha de Calipso, chamada Ogígia, era tão distante que o deus Mercúrio, e deus alado, muito dificilmente a atingiria, como se dali à Grécia, onde ele, na flíada , canta que estavam os deuses sobre o monte Olimpo, fosse a distância que existe do nosso mundo à América. De modo que, se os Gregos, nos tempos de Homero, tivessem comerciado na Ferúcia e no Egipto, ele teria então perdido o crédito para ambos os seus poemas. XXXI
[Psamético abre o Egipto apenas aos Gregos da ]ónia e de Cária. - Anos do mundo 3334] [90] Pelo que, a partir de Psamético, Heródoto começa a contar coisas mais acertadas sobre os Egípcios. E isto confirma que Homero não conheceu o Egipto; e as muitas notícias que ele refere, tanto do Egipto como dos outros países do mundo, ou são coisas e factos internos da Grécia, como se demonstrará na Geogrcifia poética, 137 ou são tradições, alteradas ao longo dos
134 135 136 137
Cfr. os parágrafos 788-805. Cfr. rv, 354. Odisseia, V, 43-54. Cfr. os parágrafos 754 e seg.
(82)
tempos, dos Ferúcios, Egípcios, Frigias, que tinham fundado as suas colónias entre os Gregos; ou são notícias dos viajantes fenícios, que desde muito antes dos tempos de Homero mercanc1avam nos litorais da Grécia. XXXII
[Esopo, filósofo moral vulgar. - Anos do mundo 3334]
[91] Na Lógica poétíca 138 comprovar-se-á que Esopo não tinha sido por natureza um homem particular, mas um género fantástico, ou seja, um carácter poético dos associados, ou seja, fàmulos dos heróis, que certamente existiram antes dos sete sábios da Grécia. XXXIII
[Sete sábios da Grécia: dos quais um, Sólon, ordena a liberdade popular de Atenas; outro, Tales de Mileto, dá início à filosrdia com a fisica. -Anos do mundo 3406] [92] E começou por um princípio demasiado insípido o da água - talvez porque tinha observado que, com a água as abóboras crescem. XXXIV
[Pitágoras, de quem Lívio diz que, em vida, nem sequer o nome se podia saber em Roma. - Anos do mundo 3468, de Roma 225] [93] Que Lívio 139 coloca nos tempos de Sérvio Túlio (tanto considerou ele verdadeiro que Pitágoras tivesse sido
138 139
Cfr. o parágrafo 424. I, 18: passo aqui parafraseado um tanto livremente.
(83]
mestre de Numa em divindade!) ; e nos mesmos tempos de Sérvio Túlio, que são perto de duzentos anos depois de Numa, diz que, naqueles tempos bárbaros da Itália mediterrânica, teria sido impossível não só que esse Pitágoras, mas até o seu nome, tivesse podido chegar, através de tantos povos de línguas e costumes diversos, de Crotona a Roma. Pelo que se pode compreender quanto foram rápidas e faceis tantas longas viagens desse Pitágoras aos discípulos de Orfeu na Trácia, aos magos na Pérsia, aos Caldeus na Babilónia, aos gimnosofistas na Índia; depois, no regresso, aos sacerdotes no Egipto e, atravessando toda a largura da África, aos discípulos de Adante na Mauritânia; e de lá, tornando a atravessar o mar, aos druídas na Gália; e daí tivesse regressado à sua pátria, rico da sabedoria bárbara de que fala Van Heurn, 140 proveniente daquelas bárbaras nações pelas quais, muito tempo antes, matando monstros e tiranos, Hércules tebano tinha andado pelo mundo disseminando a humanidade; e essas mesmas às quais, muito tempo depois, esses Gregos se vangloriavam de a ter ensinado, mas não com tanto proveito que ainda assim não permanecessem bárbaras. Tanto tem de sério e grave a sucessão das escolas da filosofia bárbara de que fala Van Heurn, um tanto mais acima assinalada, 141 e à qual a presunção dos doutos tanto aplaudiu! [94) Quer isto dizer que há aqui necessidade da autoridade de Lactâncio 142 , que resolutamente nega ter sido Pitágoras discípulo de Isaías? 143 Autoridade essa que ganha muito mais
1 '"'
Ver acima a nota 187. No parágrafo 59. 142 Divinae instituitiones, IV, 2, onde é dita uma coisa bastante diferente. 143 Um lugar-comum da apologética judaico-alexandrina, contra o qual Vico toma posição, era o de que todos os mais conspícuos representantes da filosofia grega teriam directa ou indirectamente consultado o Velho Testamento. 141
[84]
peso devido a um trecho de Josefo hebreu, nas Antiquidades Judaicas,144 que prova terem os Hebreus, nos tempos de Homero e de Pitágoras, vivido desconhecidos não só desses seus vizinhos mediterrânicos, mas também das longinquíssimas nações ultramarinas. Porque a Ptolomeu Filadelfo, que se admirava por nenhum poeta ou historiador ter feito alguma vez qualquer menção às leis mosaicas, Demétrio hebreu 145 respondeu terem sido punidos miraculosamente por Deus alguns que tinham tentado expô-las aos gentios, como Teopompo, que foi privado do siso, e Teodectes, que o foi da vista. 146 Assim, esse Josefo confessa generosamente esta sua obscuridade, e dela nos dá esta razão: «Nós - diz ele 147 -não habitamos nos litorais, nem nos deleitamos a mercantear e a conviver com os estrangeiros por razões de tráficos .» Costume sobre o qual reflecte Lactâncio 148 ter sido isso conselho da providência divina, a fim de que com os comércios gentílicos não se profanasse a religião do verdadeiro Deus; máxima na qual Lactâncio é seguido por Peter Van der Kuhn, De republica hebraeorum. 149 Tudo isto se confirma com uma confissão pública desses Hebreus que, segundo a versão dos Setenta, faziam todos os anos um solene jejum no dia oito do Tebete, ou seja, Dezembro; porquanto, quando ela surgiu, houve três dias de trevas por todo o mundo, 150 como sobre os livros rabínicos observaram 144
Não nestas, mas no Contra Apionem, I, 12. No fim do século XVII, discutia-se se o Demétrio bibliotecário de Ptolomeu Filadelfo, isto é, aquele que o aconselhou a mandar traduzir o Velho Testamento para o grego, seria o peripatético grego Demétrio de Falero ou outro D emétrio: seja como for, hebreu não era, por certo. 146 FLÁVIO J osEFO, Antiquitates, XII, 3. 147 No passo citado do Contra Apionem. 148 N ão ele, mas o mesmo FLAVIO JosEFO, loc. cit. 149 Edição de Saumur citada, pp. 19-20, e cfr. também FLÁVIO ] o EFO, Co~1tra Apionem, I, 24-35 . 150 Fábula inventada pelo Talmud. 145
[85]
Casaubon, nas Exercitações sobre os Anais de Baronia, 151 Buxtorf, na Sinagoga judaica 152 e Hottinger, no Tesouro Filológico .153 E porque os Judeus grecânicos, chamados «helenistas», entre os quais estava Aristarco, 154 considerado chefe dessa versão, lhe atribuíam uma autoridade divina, os Judeus de Jerusalém odiavam-no mortalmente. [95] Mas, pela natureza destas coisas CIVIS [é de reputar impossível] que, por confins proibidos até pelos humaníssimos Egípcios (que foram tão inospitaleiros para com os Gregos, muito tempo depois de lhes terem franqueado o Egipto, que eram proibidos de usar panelas, espetos, facas e mesmo carne talhada com faca que fosse grega), 155 por caminhos ásperos e infestados, sem qualquer comunhão de línguas, entre os Hebreus, que costumavam ser motejados pelos gentios de não indicarem a fonte ao estrangeiro sequioso, 156 os profetas tivessem profanado a sua sagrada doutrina aos estrangeiros, homens novos e para eles desconhecidos, 157 a qual, em todas as nações do mundo, os sacerdotes guardavam arcana ao vulgo dos seus próprios plebeus, pelo que adquiriu entre todos o nome de
15 1
Edição citada, pág. 180. Johann Buxtorf, senior de Kamen (1564-1629): cfr. Synagoga iudaica, V edição (Basileia, 1712), pág. 575. 153 Johann Henrich Hottinger, de Zurique (1620-1667) : cfr. Th esaurus philologicus, sive clavis Scripturae, III edição (Zurique, 1669), pág. 336. 154 Nem «judeu» nem «helenista~ , isto é, «alexandrino», e nem sequer «chefe» da comissão encarregada da tradução dos Setenta, que ele se contentou de sugerir a Ptolomeu Filadelfo. 155 HERóDOTO, II, 42. 156 Pormenor não assertado por qualquer fonte conhecida. T ÁCITO, Historiae, V, 5, fala apenas genericamente da xenofobia hebraica. 157 Motivo, este aqui confutado, assaz caro à apologética judaico-alexandrina (cfr., por exemplo, CLEMENTE DE ALExANDRIA, Stromata, VI, 3) e passado depois para a tardia apologética católica. 152
[86]
«sagrada», que é o mesmo que dizer «secreta». E disto resulta uma prova mais luminosa para a verdade da religião cristã: que Pitágoras, que Platão, por força de uma ciência humana sublirrússima, tivessem sido bastante elevados ao conhecimento das verdades divinas, nas quais os Hebreus tinham sido doutrinados pelo verdadeiro Deus; e, pelo contrário, disso nasce uma grave confutação do erro dos últimos mitólogos, 158 os quais acreditam que as fabulas sejam histórias sagradas, corrompidas pelas nações gentias e, sobretudo, pelos Gregos. E, se bem que os Egípcios tivessem convivido com os Hebreus durante o cativeiro destes, porém, por um costume comum aos primeiros povos, que aqui será demonstrado, de tomar os vencidos por homens sem deuses, eles fizeram mais troça da religião e história hebraica do que a admitiram; os quais , como refere o sagrado Génesis, 159 frequentemente perguntavam por escárnio aos Hebreus porque é que o Deus que adoravam não os vinha libertar das mãos deles.
XXXV [Sérvio Túlio, rei. - A nos do mundo 3468, de Roma 225]
[96] O qual, por erro comum, se acreditou até agora ter estabelecido em Roma o censo base da liberdade popular, que aqui se comprovará ter sido o censo base da liberdade senhorial. 160 Esse erro concorda com aquele outro pelo qual também até agora se acreditou que, nos tempos em que o devedor doente devia comparecer sobre um burro ou dentro da carroça diante do pretor, 16 1 Tarquínio Prisco teria estabelecido as 158 Alusão a Gerard Johann Voss (1577- 1649), a Pierre Daniel Huet, bispo de Avranches (1630- 1721), etc. 159 N ão o narra nem os Génesis, nem o Êxodo. 160 Cfr. os parágrafos 107 e 619-623. 16 1 Cfr. o parágrafo 1430.
(87]
ms1gnias, as togas, as divisas e as cadeiras de marfim 162 (dos dentes daqueles elefantes a que, porque os Romanos os tinham visto pela primeira vez na Lucânia, na guerra com Pirro, chamaram «boves lucas») 163 e, finalmente, os carros de ouro triunfais; esplêndida figura na qual refulgiu a majestade romana nos tempos da república popular mais luminosa.
XXXVI [Hes{odo. -Anos do mundo 3500] [97] Pelas provas que se darão 1ó4 acerca do tempo em que entre os Gregos se inventou a escrita vulgar, colocamos Hesíodo mais ou menos nos tempos de Heródoto e um tanto antes; o qual é colocado pelos cronologistas 165 com franqueza demasiado resoluta trinta anos antes dos tempos de Homero, acerca de cuja idade os autores divergem em quatrocentos e sessenta anos. Além disso, Porfirio (seguindo Suídas) 166 e Velei o Patérculo 167 pretendem que Homero tivesse precedido Hesíodo por muito tempo. E a trípode que Hesíodo consagrou a Apolo em Hélicon, com a inscrição de que ele tinha vencido Homero no canto, se bem que o reconheça Varrão (segundo Aulo Gélio), 168 tal é de conservar-se no museu da impostura, porque foi uma daquelas que, ainda assim, fazem nos nossos tempos os falsários das medalhas para com tal fraude retirar muito lucro.
162
163 164 165
166 167
168
I, S. Nat. hist., VIII, 6; SOLINO, Polyhistor, 25. Promessa não mantida na prossecução da obra. Alusão a Marsham: di:. op. cit., pp. 433-436. Edição Bernhardy, II, 1095, onde se diz uma coisa diferente. I, 7. Noctes atticae, III, II, 3. FLÓ RIO, P LÍN IO ,
[88]
XXXVII
[Heródoto, Hipócrates. - Anos do mundo 3500] [98] Hipócrates é colocado pelos cronologistas no tempo dos sete sábios da Grécia. 169 Mas, não só porque a sua vida está demasiado tingida de fabulas (pois é referido como filho de Esculápio e neto de Apolo), 170 como porque é certamente autor de obras escritas em prosa com caracteres vulgares, por isso é aqui colocado mais ou menos nos tempos de Heródoto, que igualmente escreveu em prosa com caracteres vulgares e teceu a sua história quase toda de fabulas. 17 1 XXXVIII
[Idantirso, rei da Cítia. - Anos do mundo 3530] [99] O qual respondeu a Dario, o Grande, que lhe havia declarado guerra, com cinco palavras reais 172 (as quais, como aqui se mostrará, os primeiros povos deviam usar antes das vocais e, por fim, também das escritas); palavras reais essas que foram uma rã, um rato, um pássaro, um dente de arado e um arco de flechas. Aqui, 173 com toda a naturalidade e propriedade, delas serão explicados os significados; e lamentamos reportar aquilo que São Cirilo alexandrino 174 refere sobre o conselho que Dario tomou de tal resposta, que por si mesmo denuncia
169
Em vez disso, naquele de Sócrates. Cfr. P ETAU , op. cit. , II, 318. Em vez disso, filho de Heraclides, descendente de Esculápio. 17 1 Cfr. o parágrafo 101. 172 No significado de expressões contestes exclusivamente de res tangíveis, indicando ou o próprio objecto que se exibe ou qualquer coisa por ele simbolizada. 173 No parágrafo 435 . 174 Em vez dele, CLEMENTE ALEXANDRINO , Stromata, V, 8. 170
[89]
as ridículas interpretações que lhe deram os conselheiros. E é este o rei desses Citas que venceram os Egípcios em contenda de antiguidade, que nesses tempos tão baixos nem sequer sabiam escrever por hieróglifos! De modo que Idantirso devia ser um dos reis chineses 175 que, encerrados até há poucos séculos atrás a todo o resto do mundo, 176 em vão se vangloriavam de uma maior antiguidade do que a do mundo e, ao fim de tão longa duração dos tempos, podemos comprovar que escreviam ainda por hieróglifos; e, se bem que pela grande brandura do céu tenham engenhos delicadíssimos, com os quais maravilhosamente fazem tantos delicados lavores, porém, não sabem ainda dar as sombras na pintura, sobre as quais possam ressaltar as luzes; pelo que, não possuindo relevo nem profundidade, a sua pintura é desajeitadíssima. E as estatuetas de porcelana que dali nos chegam denunciam serem eles identicamente grosseiros ao que foram os Egípcios na fundição; pelo que é de considerar que, tal como agora os Chineses, assim foram os Egípcios grosseiros na pintura. [100) Destes Citas é aquele Anacársis, 177 autor dos oráculos cíticos, como Zoroastro o foi dos Caldeus, que devem ter sido primeiramente oráculos de adivinhos, que depois, devido à presunção dos doutos, passaram a oráculos dos filósofos. Ver-se-á na Geogrqfia poética se dos hiperbóreos da presente Cítia, ou de outra nascida antigamente no interior dessa Grécia, chegaram aos Gregos os dois mais famosos oráculos do gentilismo, o délfico e o dodónico, 178 como acreditou Heródoto 179 175
Devia ser semelhante a um, etc. Exagero. 177 Vico confunde Anacársis, que velo à Grécia nos tempos de Sólon, com Ábaris, autor dos assim designados oráculos citas e que viveu nos tempos da guerra de Tróia. 178 Nem sequer este, afirmado como de origem egípcia. 179 IV; 33. 176
(90]
e, depois dele, Píndaro 180 e Ferénico,18 1 seguidos por Cícero, De natura deorum, 182 donde Anacársis foi talvez apregoado autor famoso de oráculos e foi relembrado entre os antiquíssimos deuses fatídicos. Sirva 183 agora para entender quanto a Cíntia teria sido douta em sabedoria secreta, saber que os Citas cravavam uma faca 184 na terra e a adoravam como deus, para com isso justificarem os assassinatos que haviam de praticar; feroz religião da qual surgiram as muitas virtudes morais e civis referidas por Diodoro Sículo, 185 Justino, 186 Plínio, 187 e elevadas ao céu com os louvores de Horácio. 188 Por isso Ábaris, querendo organizar a Cítia com as leis da Grécia, foi morto por Caduvido, seu irmão. Quanto proveito ele tirou da filosofia bárbara de Van Heurn, 189 que não entendeu por si as leis válidas para acostumar uma gente bárbara a uma civilidade humana, e teve que aprendê-las com os Gregos! Acerca dos Gregos em relação aos Citas, é precisamente o mesmo do que há pouco 190 dissemos sobre os mesmos em relação aos Egípcios: que, pela vaidade de dar ao seu saber famosas origens de antiquidade estrangeira, mereceram verdadeiramente a censura que eles mesmos sonharam ter sido feita pelo sacerdote egípcio a Sólon (referida por Crítias, segundo Platão em um dos
180
0/impiche, III, 28-29; Pitiche, X, 30. Scolii a Píndaro, edição Boechk, II, 96. 182 III, 23. 183 Veja-se o parágrafo 745. 184 Uma espada desembainhada, símbolo de Marte: cfr. , entre outros, HERóDOTO, Iv, 62. 185 II, 43-44. 186 II , 2- 3. 187 Nat . hist., Iv, 13. 188 Odes , III, 24, 9-24. 189 VAN H EURN, op. cit. , pág. 52, onde se diz uma coisa diferente. 190 Nos parágrafos 89-90. 181
[91]
Alcib{ades): 19 1 que os Gregos foram sempre crianças. Portanto, há que dizer que, por uma tal presun\ .•t' os Gregos, em relação aos Citas e aos Egípcios, tudo quanto ganharam em vanglória, outro tanto perderam em verdadeiro mérito.
XXXIX [Guerra do Peleponeso. Tuddides, o qual escreve que, até ao seu pai, os Gregos nada souberam das suas próprias antiquidades, pelo que se dedicou a escrever sobre essa guerra. -Anos do mundo 3530] [101] O qual era jovem no tempo em que Heródoto era velho, tanto que podia ser seu pai, e viveu no tempo mais luminoso da Grécia, que foi aquele da guerra do Peloponeso, de que foi contemporâneo e, por isso, para escrever coisas verdadeiras, escreveu a história dela; por quem foi dito 192 que os Gregos, até ao tempo de seu pai, 193 que era aquele de Heródoto,194 nada souberam das suas próprias antiquidades. Que havemos de supor acerca das coisas estrangeiras que eles referem, e o quanto eles sobre isso referem sabemos nós outro tanto acerca das antiquidades gentilicas bárbaras? Que havemos de supor, até às guerras cartaginesas, acerca das coisas antigas daqueles Romanos que, até àqueles tempos, a mais não tinham atendido senão à agricultura e ao ofício das armas, quando Tucídides estabeleceu esta verdade acerca dos seus Gregos, e que tão rapidamente se tornaram filósofos? A não ser, talvez, que queiramos dizer que esses Romanos teriam tido nisso um particular privilégio de Deus.
191 192 193 194
Em vez cbsso, no Tim eu, III, pág. 226. No capítulo 8 do Livro I, onde se diz outra coisa. Oloro ou Orolo. Que era o tempo de Heródoto.
[92]
XL
[Sócrates dá in{cio àfilosC!fia moral racional. Platão floresce na metciflsica. Atenas resplandece em todas as artes da mais culta humanidade. Lei das X11 Tábuas. -Anos do mundo 3553, de R oma 303] [102] Tempo no qual se leva de Atenas para Roma a lei das XII T ábuas, tão incivil, grosseira, inumana, cruel e selvagem quanto está demonstrado nos Princ{pios do Direito Universa/. 195 XLI
[Xencifonte, ao levar as armas gregas ao coração da Pérsia, é o primeiro a saber com alguma certeza as coisas persas. - Anos do mundo 3583, de Roma 333] [103] Como observa São Jerónimo Sobre Danie/. 196 E depois de, para a utilidade dos comércios, os Gregos terem começado, durante o governo de Psamético, a saber as coisas do Egipto (pelo que Heródoto começa, a partir desse tempo, a escrever coisas mais acertadas sobre os Egípcios), 197 começaram os Gregos, a partir de Xenofonte, pela primeira vez, e pela necessidade das guerras, a saber coisas mais acertadas acerca dos Persas; sobre os quais também Aristóteles, que para ali foi com Alexandre Magno, escreveu que, anteriormente, os Gregos tinham sobre isso contado fabulas, como se assinala nesta Tábua cronológica. 198 Desta maneira começaram os Gregos a ter certo conhecimento das coisas estrangeiras.
195
Cfr., até melhor, aqui adiante, os parágrafos 1412-1454. Cfr. Opera, edição Migne, V, 65 1 c., onde, de fac to, é genericamente citada a Ciropedia de Xenofonte. 197 C fr. o parágrafo 90. 198 N ada disto surge em Aristóteles. 196
[93]
XLII [Lei Publília. - Anos do mundo 3 65 8, de Roma 416]
(104] Esta lei 199 foi promulgada nos anos CCCCXVI de Roma, e contém um ponto máximo da história romana, pois com esta lei se declarou a mudança de estado da república romana, de aristocrática para popular; pelo que Publílio Filon, que foi o seu autor, foi chamado «ditador popular» .200 E não foi ela considerada, porque não se soube entender a sua linguagem. O que em seguida 20 1 será por nós, de facto, demonstrado à evidência: basta que demos aqui sobre isso uma ideia por hipótese. (105] Jaz desconhecida esta e a seguinte lei Petélia, 202 que é de importância igual à da Publília, devido a estas três palavras não definidas: «povo», «reino» e «liberdade», devido às quais se acreditou com erro comum que o povo romano, desde os tempos de Rómulo, teria sido de cidadãos tanto nobres como plebeus, que o reino romano teria sido monárquico, e que a liberdade ordenada por Bruno teria sido popular. E estas três palavras não definidas fizeram cair em erro todos os críticos, historiadores, políticos e jurisconsultos, porque a partir de nenhuma das presentes puderam fazer ideia das repúblicas heróicas, que foram de uma forma aristocrática severíssima e, portanto, completamente diferentes destas dos nossos tempos. 203
199
Hoje duvida-se da sua autenticidade. No entanto, cfr. Lívto , VIII,
12. 200 Mais exactamente: a sua ditadura é chamada por Lívto, loc. cit., «popularis». 201 Nos parágrafos 662 e seg. 202 Cfr. o parágrafo 115. 203 Cfr. o parágrafo 666.
[94]
[106] Rómulo, dentro do abrigo aberto no bosque, fundou Roma com base nas clientelas, que foram protecções nas quais os pais de família mantinham os refugiados asilados na qualidade de camponeses jornaleiros, que não tinham nenhum privilégio de cidadãos e, portanto, nenhuma parte na liberdade civil; e, porque ali se tinham refugiado para poderem salvar a vida, os pais protegiam-lhes a liberdade natural ao mantê-los separadamente divididos a cultivar os seus campos, com os quais assim se deve ter composto o fundo público do terrritório romano, como a partir desses pais Rómulo compôs o senado.204 [107] Em seguida, Sérvio Túlio estabeleceu aí o censo, ao permitir aos jornaleiros o domínio utilitário dos campos que eram propriedade dos pais, que eles podiam cultivar para si, sob o peso do censo e com a obrigação de servir a expensas próprias aqueles nas guerras, conforme, efectivamente, os plebeus serviram esses patrícios no interior desta até agora sonhada liberdade popular. Lei de Sérvio Túlio essa que foi a primeira lei agrária do mundo, ordenadora do censo base das repúblicas heróicas, ou seja, aristocracias antiquíssimas de todas as nações. 205 [108] Depois, Júnio Bruto, com a expulsão dos tiranos Tarquínios, restituiu a república romana aos seus princípios e, ao estabelecer aí os cônsules, como que dois reis aristocráticos anuais (como Cícero lhes chama nas suas Leis), 206 em vez de um rei vitalício, restabeleceu a liberdade dos senhores em relação aos seus tiranos, mas não a liberdade do povo em relação aos senhores. Mas, cumprindo os nobres com dificuldade a lei agrária de Sérvio com relação aos plebeus, estes criaram os tribunos da plebe, e fizeram com que a nobreza
204 205 206
Cfr. o parágrafo 251. Cfr. os parágrafos 619- 623 . III , 2; e cfr. C o RN ÉLIO N EPOS, Hannibal, 7.
[95]
os jurasse, para que defendessem à plebe essa parte da liberdade natural do dorrúnio utilitário dos campos: tal como, por isso, desejando os plebeus de novo receber dos nobres o dorrúnio civil, os tribunos da plebe expulsaram M árcio Coriolano de Roma, por ter dito que os plebeus deviam ir cavar, isto é, que, uma vez que não estavam contentes com a lei agrária de Sérvio Túlio e queriam uma lei agrária mais ampla e mais sólida, se convertessem nos jornaleiros de Rómulo.207 De outro modo, que estulto luxo dos plebeus desdenharia a agricultura, cujo exercício certamente sabemos que era considerado uma honra por esses nobres? E por razão tão ligeira ateariam uma guerra tão cruel, pois Márcio, para se vingar do exílio, teria vindo para destruir Roma , se as piedosas lágrimas da mãe e da mulher o não tivessem dissuadido da ímpia empresa? [109] Por tudo isto, continuando ainda os nobres a retirar os campos aos plebeus depois destes os terem cultivado, e não tendo estes acção civil para os reivindicar, fizeram então os tribunos da plebe a pretensão da lei das XII Tábuas (da qual, como nos Princlpios do Direito universal se demonstrou, 208 não se dispôs outra questão senão esta), lei com a qual os nobres concederam o donúnio quiritário dos campos aos plebeus; dorrúnio civil esse que, por direito natural das gentes, se concedia aos estrangeiros. E esta foi a segunda lei agrária das antigas nações. [110] Assim - apercebendo-se os plebeus de que não podiam transmitir os campos ab intestato aos seus parentes, porque não possuíam figura jurídica, agnações, gentilidade (direitos pelos quais decorriam então as sucessões legítimas), porque não celebravam matrimónios solenes, e nem sequer os 207 Vico, forçando bastante o texto, adapta às suas ideias o que LiV IO refere no livro II, cap. 34. 208 Melhor ainda, cfr. aqui mais à frente os parágrafos 1446-1449.
[96]
podiam dispôr em testamento, porque não tinham o privilégio de cidadãos209 - , fizeram a pretensão dos conúbios dos nobres, ou seja, do direito de contrair núpcias solenes (pois tal significa «connubium))), cuja maior solenidade eram os auspícios, que eram próprios dos nobres 210 (auspícios esses que foram a grande fonte de todo o direito romano, privado e público) ; e assim foi transmitida pelos pais aos plebeus o direito das núpcias, 211 as quais, segundo a definição do jurisconsulto Modestino,212 sendo «omnis divini et humani iuris communicatio)), que mais não é a cidadania, concederam aos plebeus o privilégio de cidadãos. Assim, segundo a série dos desejos humanos, receberam os plebeus dos pais a transmissão de tudo o que dependia dos auspícios que era de direito privado, como poder paterno, existência jurídica, agnação, gentilidade e, por estes direitos, as sucessões legítimas, os testamentos e as tutelas. Depois, pretenderam o que dependia do direito público, e primeiro receberam a transmissão dos impérios com os consulados e, finalmente, os sacerdócios e os pontificados e, com estes, também a ciência das leis. [111] Desse modo, os tribunos da plebe, a partir da base em que tinham sido criados, de lhes proteger a liberdade natural, conduziram-se pouco a pouco de modo a conseguir-
209 Vico supõe que, até 455 a. C., data da chamada rogação Canuleia, os plebeus não estariam sui iuris, não gozarian1 da sucessão agnaócia, não possuiriam gentes, não poderiam fazer testam ento, etc. N a realidade, pelo contrário, se eles não podiam valer-se do testamento calatis comitiis e não possuíam ainda gentes, gozavam de todos os outros direitos, pelo menos já um século antes da data que crê o nosso autor. 21 Cfr. Lívto, VI, 41, no discurso de Ápio C láudio, o Cego. 211 Isto é, segundo Vico, o direito de contrair, também eles, iustae nuptiae, ou núpcias solenes, na forma da corifarreatio. 212 ln Digesto, XXIII , 2, I.
°
[97]
-lhes toda a liberdade civil. 213 E o censo estabelecido por Sérvio Túlio - ao dispor que, daí em diante, não mais se pagasse privadamente aos nobres, mas ao erário, para que o erário subministrasse as despesas de guerra aos plebeus -, a partir da base da liberdade senhorial, acabou por si próprio, naturalmente, por formar o censo base da liberdade popular; de que aqui2 14 se comprovará o modo. [112] Os mesmos tribunos avançaram com idênticos passos no poder de promulgar as leis. Porque as duas leis Horácia2 15 e Hortênsia não puderam conceder à plebe que os seus plebiscitos obrigassem todo o povo, a não ser em duas emergências particulares: na primeira, a plebe tinha-se retirado para o Aventino, nos anos CCCIV de Roma, tempo no qual, como aqui foi dito por hipótese e, de facto, se mostrará, 2 16 os plebeus não eram ainda cidadãos; e, na segunda, retirou-se para o Janículo, nos anos CCCLXVII, quando a plebe ainda disputava com a nobreza para lhes ser transmitido o consulado.217 M as, com base nas duas leis acima mencionadas, a plebe avançou finalmente para a promulgação de leis universais: pelo que devem ter acontecido em Roma grandes movimentos e revoltas; 218 donde surgiu a necessidade de criar um ditador, 213
Mais ou menos, respectivamente, o status libertatis e o status civitatis da terminologia jurídica romana. 214 Nos parágrafos 619-623. 215 Publicada, segundo a cronologia tradicional, em 449 a. C. Mas, sobre a sua autenticidade levantam-se hoje maiores dúvidas, ainda que não sobre as leges Publiliae. 216 N os parágrafos 583 e seg. 217 N ão apenas nestas duas «emergências» mas, definitivamente, os plebiscitos tornaram-se obrigatórios para todos os cidadãos com a /ex H ortensia, publicada entre 289 e 286 a. C., portanto, uma centena de anos depois da data assertada por Vico. Cfr., entre outras fontes, Epitome di Livio, XI. 218 M era conjecrura de Vico.
[98]
Publilio Fílon, que não se criava senão em caso de extremo perigo para a república, como era este, pois ela tinha caído numa tão grande desordem, ao alimentar dentro do seu corpo dois supremos poderes legisladores, sem nenhuma distinção entre si, nem de tempos, nem de matérias, nem de territórios, com os quais devia caminhar rapidamente para uma ruína certa. Assim, para remediar tamanho mal-estar civil, Fílon estabeleceu que aquilo que a plebe tivesse ordenado com os plebiscitos nos conúcios por tribos, «omnes quirites teneret>>, obrigasse todo o povo nos conúcios por centúrias, nos quais «omnes quirites>> se reuniam (porque os Romanos não se chamavam «quirites» senão nas reuniões públicas, nem «quirites>> se usa jamais no singular na linguagem latina vulgar); 2 19 fórmula com a qual Fílon pretende dizer que não se podiam promulgar leis que fossem contrárias aos plebiscitos. Por tudo isto estando já a plebe completamente igualizada à nobreza, através de leis com as quais esses nobres tinham concordado; e, com esta última tentativa, à qual os nobres não podiam resistir sem destruir a república, tendo-se ela tornado superior à nobreza, pois sem a autoridade do senado ordenava leis gerais a todo o povo; e assim, tendo-se tornado já naturalmente a república romana de liberdade popular; - Fílon, com esta lei, assim o declarou,220 e foi então chamado «ditador popular». [113] Em conformidade com essa mudança de natureza, deu-lhe duas ordenações, que estão contidas nos outros dois capítulos da lei Publilia.221 A primeira dizia respeito à autoridade do senado, que tinha sido a autoridade dos senhores, através da qual, de quanto o povo tivesse disposto antes, «deinde patres
2 19
Pelo contrário, não faltavam exemplos de «quiris» no singular. Outra conjectura de Vico. 22 1 Pelo contrário, segundo o relato tradicional, em duas outras leis diferentes. 2..?0
(99]
fierent auctores» 222 (de modo que as criações dos cônsules, as promulgações das leis, feitas anteriormente pelo povo, tinham sido testemunhos públicos de mérito e demanda pública de direito), este ditador estabeleceu que, dali em diante, fossem os pais autores da defesa do povo, que era já livre e soberano, «Ín íncertum comítíorum eventum»,223 como tutores do povo, senhor do império romano; que, se quisessem ordenar as leis, as ordenassem segundo a fórmula que lhe fora apresentada pelo senado, ou, em vez disso, se servisse do seu soberano arbítrio e «antiquasse» 224 (isto é, declarasse não querer novidade) ; de modo que tudo aquilo que daí em diante o senado ordenasse acerca dos negócios públicos fosse, ou instruções por ele dadas ao povo, ou incumbências a ele dadas pelo povo. Faltava, finalmente, o censo, porque, tendo sido, durante todo o tempo anterior, o erário dos nobres, apenas os nobres se tinham tornado censores: uma vez que, com tal lei, estes se tinham tornado património de todo o povo, ordenou Fílon, no terceiro capítulo, que a censura se transmitisse também à plebe, cujo magistério era o único que faltava ser transmitido à plebe.
[114] Se, daqui em diante, a história romana for lida com base nesta hipótese, com mil provas se comprovará que são sustentáveis todas as coisas que ela refere, que, devido à não definição das três palavras acima mencionadas,225 não possuem qualquer fundamento comum, nem qualquer relação conveniente e particular; donde esta hipótese se deveria tomar, por
222
Frase pronunciada, segundo Lív1o, I, 17, pelo interrex, por ocasião da eleição de Numa Pompílio. 223 Lívio,VIII, 12, que, aliás, emprega a frase no confrontar a organização do seu tempo com aquele do período régio. 224 N as votações romanas escrevia-se no caso do sim > (axio V = digno) . 2 «A fama cresce por difundir-se>> . 3 «A presença das coisas faz diminuir-lhes a fama».
[105]
àquela propriedade da mente humana advertida por Tácito, na Vida deAgricola,4 com aquele mote: «Omne ignotum pro magnifico est>>. 5
II
[122] Outra propriedade da mente humana é que, quando os homens não podem fazer qualquer ideia sobre as coisas longínquas e desconhecidas, avaliam-nas a partir das coisas que lhes são conhecidas e presentes. [123] Esta dignidade indica a fonte inesgotável de todos os erros aceites pelas nações inteiras e por todos os doutos sobre os princípios da humanidade; porquanto, desde os seus tempos iluminados, cultos e magrúficos, nos quais começaram as nações a adverti-los, e os sábios a reflectir sobre eles, todos têm avaliado as origens da humanidade, que deviam ter sido, por natureza, pequenas, grosseiras, obscuríssirnas. [124] São de referir a este género duas espécies de presunções que acima foram assinaladas: 6 uma das nações e uma outra dos doutos. III
[125] Sobre a presunção das nações ouvirnos7 aquele áureo dito de Diodoro Sículo, de que as nações, tanto gregas como bárbaras, tiveram esta presunção: de ter uma encontrado, antes de todas as outras, as comodidades da vida humana e conservado as memórias das suas coisas desde o princípio do mundo.
4
5 6 7
20. «Tudo o que é ignorado é considerado magnífico». Nos parágrafos 53 e 59. No parágrafo 53.
[106]
[126] Esta dignidade dissipa num ápice a vanglória dos Caldeus, Citas, Egípcios, Chineses, de terem sido eles os primeiros a fundar a humanidade do mundo antigo. 8 Mas o hebreu Flávio Josefo expurga disso a sua nação, com aquela confissão magnânima que acima pudemos ouvir: 9 que os Hebreus tinham vivido escondidos de todos os gentios; e certifica-nos a história sagrada ser a idade do mundo quase jovem face à vetustez dele em que acreditaram os Caldeus, os Citas, os Egípcios e, até aos dias de hoje, os Chineses. O que é uma grande prova da verdade da história sagrada. IV
[127] A essa presunção das nações junta-se aqui a presunção dos doutos, que pretendem que a sua sabedoria seja tão antiga quanto o mundo. [128] Esta dignidade dissipa todas as opiniões dos doutos acerca da sabedoria inatingível dos antigos; convence que eram impostura os oráculos do caldeu Zoroastro, do cita Anacársis, que não chegaram até nós, o Pimandro de Mercúrio Trismegisto, 10 os órficos (ou seja, os versos de Orfeu), 11 o Carme aureo de Pitágoras, 12 como todos os críticos mais distintos nisso concordam; e reprova como inoportunos 13 todos os sentidos nústicos 14 atribuídos pelos doutos aos hieróglifos egípcios e aS alegorias filosÓfiCaS atribuídas às rabulas gregas. IS
8
Cfr. os parágrafos 45, 48, 49, 50. No parágrafo 94. 1 ° Cfr. os parágrafos 59, 100 e 47. 11 Isto é, os fragmentos da teogonia atribuídos a Orfeu. 12 Os chamados «Versos áureos» de proveniência neoplatónica. 13 Censura como deslocados. 14 Os significados alegoricamente intelectualísticos. 15 Por Mâneton aos hieróglidos egípcios, por Platão aos mitos helénicos.
9
[107]
v [129] A filosofia, para aproveitar ao género humano, deve levantar e reger o homem caído e débil, não destruir-lhe a natureza nem abandoná-lo na sua corrupção. [130] Esta dignidade afasta da escola desta Ciência os estóicos, que pretendem o enfraquecimento dos sentidos, e os epicuristas, que disso fazem regra, ambos negando a providência, aqueles deixando-se arrastar pelo destino, estes abandonando-se ao acaso, e os segundos opinando que as almas humanas morrem com os corpos, pelo que ambos se deveriam chamar «filósofos monásticos, ou solitários». E admite nela os filósofos políticos e, principalmente, os platónicos, 16 que concordam com todos os legisladores nestes três pontos principais: que exista providência divina, que se devam moderar as paixões humanas e torná-las virtudes humanas, e que as almas humanas sejam imortais. E , por consequência, esta dignidade dar-nos-á os três princípios desta Ciência. 17 VI
[131] A filosofia considera o homem tal como deve ser e, assim, não pode valer senão a pouquíssimos, que desejam viver na república de Platão, e não cair na escória de Rómulo. 18 VII
[132] A legislação considera o homem tal como é, para fazer bons usos dele para a sociedade humana: como da
16
Com esta denominação costuma Vico designar, tanto os neoplatónicos da antiguidade como, e sobretudo, aqueles da Renascença italiana. 17 Cfr. o parágrafo 333. 18 Contraposição ciceroniana: cfr. Ad Atticum, II, 16.
(108]
ferocidade, da avareza, da ambição, que são os três VlClOS que põem à deriva todo o género humar10, fazem as actividades militar, mercantil e de corte, a força, a opulência e a sabedoria das repúblicas; e destes três grandes vícios, que destruiriam certamente a geração humana sobre a terra, deles faz a felicidade civil. 19 [133] Esta dignidade prova existir providência divirta e que ela é uma mente divirta legisladora, que, das paixões dos homens - todos apegados aos seus proveitos privados, pelos quais viveriam como animais selvagens metidos nas suas solidões - , fez as ordens civis, pelas quais vivam numa sociedade humana.
VIII [134] As coisas, fora do seu estado natural, nem se estabelecem nem duram. [135] Esta dignidade, por si só, - uma vez que o género humano, desde que há memória do mundo, viveu e vive convenientemente em sociedade - determina a grande disputa, pela qual os melhores filósofos e os teólogos morais ainda contendem com o céptico Carnéades e com Epicuro (nem mesmo Grócio a deteve 20): se existirá direito natural, ou se a natureza humana será sociável, o que significa a mesma coisa.21 [136] Esta mesma dignidade, conjuntamente com a sétima e o seu corolário, prova que o homem possui livre arbítrio, ainda que débil, para fazer das paixões virtudes; mas que é
19 Aprofundamento e emenda de uma máxima de M aquiavel: di:. Discorsi, I, 3. 20 Nela acertou . 21 Cfi:. GRóCIO (Hugo de Groot) , De iure bel/i et pacis, Prolegome~w . §§ 5 e seg.
[109]
naturalmente ajudado por Deus através da divina providência e, sobrenaturalmente, pela graça divina.22 IX (137] Os homens que não sabem o verdadeiro das coisas procuram apegar-se ao certo, porque, não podendo satisfazer o intelecto com a ciência, ao menos que a vontade repouse sobre a consciência. 23
X (138] A filosofia contempla a razão, donde provém a ciência do verdadeiro; a filologia observa a autoridade do arbítrio humano, donde provém a consciência do certo. (139] Esta dignidade, na sua segunda parte, define serem filólogos todos os gramáticos, historiadores, críticos, que se ocuparam da cognição das línguas e dos factos dos povos, tanto em casa, como são os costumes e as leis, como fora, tal como são as guerras, as pazes, as alianças, as viagens, os comércws. (140] Esta mesma dignidade demonstra terem ficado a meio caminho tanto os filósofos, 24 que não acertaram as suas razões com a autoridade dos filólogos, como os filólogos, que não cuidaram de certificar a sua autoridade com a razão dos filósofos; o que, se o tivessem feito, teria sido mais útil às repúblicas e ter-nos-ia prevenido o meditar desta Ciência.
22
Cfr. o parágrafo 141. Cfr. os parágrafos 138, 144, 321-322, 324-325. 24 Alusão aos cartesianos que, mais ou menos, todos desprezaram a filologia, ou seja, a erudição. 23
[110]
XI [141] O arbítrio humano, de sua natureza muito incerto, certifica-se e determina-se com o senso comum dos homens acerca das necessidades ou utilidades humanas, que são as duas fontes do direito natural das gentes. 25 XII [142] O senso comum é um juízo sem reflexão alguma, comummente sentido por toda uma ordem, por todo um povo, por toda uma nação ou por todo o género humano. [143] Esta dignidade, com a consequente definição, dar-nos-á uma nova arte crítica sobre esses autores das nações, entre os quais devem ter decorrido bem mais de mil anos até surgrrem os escritores, acerca dos quais até agora se ocupou a crítica. 26
XIII [144] Ideias uniformes, nascidas no seio de povos inteiros, desconhecidos entre si, devem possuir um fundamento comum de verdade. [145] Esta dignidade é um grande princípio, que estabelece ser o senso comum do género humano o critério ensinado às nações pela providência divina para definir o certo acerca do direito natural das gentes, 27 através do qual as nações se asseguram pela compreensão das unidades substanciais de tal direito, nas quais, com diversas modificações, todas concordam.
25
26
27
Cfi:. os parágrafos 136 e 142. Cfi:. o parágrafo 392. Cfi:. os parágrafos 321-322.
[111]
Donde sai o dicionário mental, 28 que dá as origens a todas as diferentes línguas articuladas, com o qual está concebida a história ideal eterna29 que nos dê, no tempo, as histórias de todas as nações; dicionário e história dos quais se proporão, em seguida, as suas próprias dignidades. (146] Esta mesma dignidade deita por terra todas as ideias que se tiveram, acé agora, acerca do direito natural das gentes, 30 que se acreditou ter surgido de uma primeira nação, da qual o tivessem as outras recebido; erro de que fizeram escândalo os Egípcios e os Gregos, que se vangloriavam em vão de terem eles disseminado a humanidade pelo mundo: 3 1 esse tal erro deve ter feito certamente chegar a lei das XII Tábuas dos Gregos aos Romanos. 32 Mas, deste modo, seria ele um direito civil transmitido aos outros povos por provimento humano, e não já um direito naturalmente ordenado pela providência divina, com esse costumes humanos, em todas as nações. Este será um dos trabalhos perpétuos que se fará nestes livros: o demonstrar que o direito natural das gentes nasceu privadamente entre os povos sem nada saberem uns dos outros; e que, depois, com as circunstâncias das guerras, embaixadas, alianças, comércios, foi reconhecido como comum a todo o género humano.
28
Cfr. o parágrafo 162. Cfr. os parágrafos 245, 249 e, especialmente, 349 e 393, e veja-se também, acima, a nota 17 ao parágrafo 7. 30 Polemiza-se aqui não tanto contra Grócio e os grocianos, quanto contra o jurisnaturalista inglês John Selden, de Salvington (1584-1654) . Cfr. o parágrafo 396. 31 Cfr. o parágrafo 47 . 32 Cfr. os parágrafos 284-285 e 1414 e seg. 29
[112]
XIV [147) Natureza das coisas não é senão o seu nascimento em certos tempos e em certas circunstâncias que, sempre que são tais, as coisas nascem tais e não outras.33
XV [148) As propriedades inseparáveis dos sujeitos devem ser produzidas pela modificação ou circunstâncias em que as coisas nasceram; pelo que elas nos podem certificar que é tal e não outra a natureza ou nascimento dessas coisas. 34
XVI [149) As tradições vulgares devem ter tido fundamentos públicos de verdade, pelo que nasceram e foram conservadas por povos inteiros durante largos períodos de tempo. [150) Este será outro grande trabalho desta Ciência: o de encontrar os fundamentos do verdadeiro, que, com o passar dos anos e com o mudar das línguas e costumes, nos chega recoberto de falso.
XVII [151) Os falares vulgares devem ser os testemunhos de maior peso dos antigos costumes dos povos, pois que se celebraram no tempo em que eles formaram as línguas.
33 Isto é: a origem histórica de todas as coisas coincide com a sua génese filosófica, ou seja, com aquela que se chama a sua natureza: donde, sempre que uma coisa se repita nas mesmas circunstâncias, ela não poderá ocorrer senão como aconteceu a prin1eira vez. 34 Cfr. a nota precedente.
[113]
XVIII (152] A língua de uma nação antiga, que se conservou reinante até que atingiu a sua plenitude, deve ser um grande testemunho dos costumes dos primeiros tempos do mundo. 35 [153] Esta dignidade assegura-nos que as provas filológicas do direito natural das gentes 36 (do qual, sem dúvida, a romana foi sapientíssima, mais do que todas as outras do mundo) retiradas dos falares latinos são de grande peso. Pela mesma razão poderão fazer o mesmo os doutos da língua alemã, que detém esta mesma propriedade da língua romana antiga. XIX (154] Se a lei das XII Tábuas foram costumes das gentes do Lácio, começados a celebrar desde a idade de Saturno, passando sempre para outros lugares e fixados pelos Romanos no bronze e religiosamente guardados pela jurisprudência romana, ela é um grande testemunho do antigo direito natural das gentes do Lácio. 37 (155] Isto foi por nós demonstrado ser, de facto, verdadeiro, há bastantes anos atrás, nos Prindpios do Direito Universal; o que se verá mais claramente nestes livros. 38 35 Interprete-!e: No caso de uma nação antiga se conservar independente, a sua língua, que deve a isso o ter-se mantido imune a infiltrações estrangeiras, torna-se, por este mesmo facto, uma grande fonte histórica dos costumes do mundo primitivo. 36 Isto é: da vida civil contraposta idealmente àquela ferina. 37 Interprete-s_: os costumes dos tempos antiquíssimos, permanecendo também, junto dos outros povos latinos, não fixados por escrito e, portanto, sempre propensos a mudarem, vieram contrariamente a ser codificados pelos Romanos na.> XII Tábuas, as quais, desse modo, adquiriram valor de documento da antiga vida ético-política do Lácio. 38 Cfr. aqui, mais adiante, os parágrafos 1446 e seg.
[114]
XX [156] Se os poemas de Homero são histórias CIVIS dos antigos costumes gregos, serão dois grandes tesouros do direito natural das gentes da Grécia. 39 [157] Esta dignidade é agora aqui conjecturada: adiante 40 será demonstrada de facto. XXI [158] O s filósofos gregos apressaram o curso natural que devia seguir a sua nação, por surgirem nela quando era ainda crua a sua barbárie, pelo que passaram imediatamente a urna suma delicadeza e, ao mesmo tempo, conservaram-lhes intactas as suas histórias fabulosas, tanto divinas como heróicas; enquanto os Romanos, que em seus costumes caminharam com passo justo, de facto, perderam de vista a sua história dos deuses (pelo que, ao que os Egípcios designavam por «idade dos deuses», Varrão chama «tempo obscuro)) desses Romanos), e conservaram em língua vulgar a história heróica que se estende desde Rómulo até às leis Publília e Petélia, que se comprovará uma perpétua mitologia histórica da idade dos heróis da Grécia.41
39
Cfr. o parágrafo 904. N o terceiro livro. 41 Interprete-se: Os filósofos, surgidos na Grécia quando aquela nação ainda era bárbara, apressaram de tal modo o seu curso, ao ponto de fazê-la ascender quase subitamente a civilização refinadíssirna, ao mesmo tempo que, com linguagem poética, conservaram íntegros e genuínos os mitos formados na mesma Grécia ao longo da idade dos deuses e dos heróis. Pelo contrário, os R omanos, quando chegou a cwnprir-se a sua passagem muito lenta da barbárie para a plena civilização, tinham já esquecido toda a história nútica da sua idade dos deuses, isto é, dos tempos anteriores a 40
[115]
[159) Esta natureza das coisas humanas CIVIS é-nos confirmada pela nação francesa , na qual, porque no meio da barbárie de mil e cem42 se abriu a famosa escola parisiense, onde o célebre mestre de sentenças Pedro Lombarda se dedicou ao ensino da subtilissima teologia escolástica,43 ficou , como um poema homérico, a história de Turpin, bispo de Paris, 44 cheia de todas as fãbulas dos heróis de França que se chamaram «os paladinos», com as quais se encheram depois tantos romances e poemas. E, devido a essa passagem imatura da barbárie às ciências mais subtis, a língua francesa ficou uma língua delicadíssima, de modo que, de todas as vivas, parece ter restituído aos no5sos tempos o aticismo dos Gregos e, mais do que qualquer outra, é boa para a reflexão das ciências, como a grega; e, como aos gregos, ficaram aos franceses muitos ditongos, que são próprios de língua bárbara, ainda dura e difícil para compor as consoantes com as vogais. 45 Em confirmação do que dissemos acerca de ambas estas línguas, acrescentemos a observação, que ainda se pode fazer nos jovens, que, na idade em que a memória é robusta, a fantasia vívida e o engenho fogoso - que exercitariam frutuosamente através do estudo das línguas e da geometria linear, sem dominar com tais exercícios esta aspereza das mentes contraída pelo
Rómulo; e, por outro lado, os nútos formados à medida que se desenvolvia a sua idade heróica, decorrente de Rómulo até aos tempos em que, com as leis Publilia e Pe1élia, o seu regime se mmsformou de aristocrático em democrático, foram por eles conservados não em língua poética, mas sim em prosa: na qual se configurou aquele relato mítico, adoptado depois pela historiografia tradicional, dos primeiros séculos de Roma. 42 Mais exactamente, em 1243. 43 Em Paris sim, e no século XII, mas não na ainda não fundada Sorbone. 44 Pelo contrário, arcebispo de Reirns. 45 Cfr. o parágrafo 461.
[116]
corpo, a que se poderia chamar a barbárie dos intelectos -, passando ainda crus aos estudos demasiado subtis de crítica metafísica e de álgebra, se tornam, para toda a vida, estreitíssimos na sua maneira de pensar e ficam inábeis para qualquer grande trabalho. 46 [160] Mas, nesta obra, com maior meditação, encontramos outra causa para esse efeito, que é talvez mais apropriada: a de que Rómulo fundou Roma no meio de outras cidades do Lácio mais antigas, e fundou-a ao abrir ali o refúgio, que Lívio define geralmente «vetus urbes condentíum consílíum», 47 porque, durando ainda as violências, ele organizou a cidade romana segundo a base sobre a qual se tinham fundado as primeiras cidades do mundo. Portanto, tendo progredido os costumes romanos a partir desses mesmos princípios, em tempos nos quais as línguas vulgares do Lácio tinham feito muitos avanços, deve ter acontecido que as coisas civis romanas, que tinham sido explicadas pelos povos gregos com língua heróica, eles explicaram com língua vulgar; pelo que se comprovará ser a história romana antiga uma perpétua mitologia da história heróica dos Gregos. 48 E esta deve ser a causa pela qual os Romanos foram os heróis do mundo: porquanto Roma se apoderou das outras cidades do Lácio, logo da Itália e, por último, do mundo, sendo o heroísmo jovem entre os Romanos; enquanto, entre os outros povos do Lácio, dos quais, vencidos, proveio toda a grandeza romana, devia ter começado a envelhecer. 49 46
Cfr. em Vico, Autobíogrcifra, II , a digressão pedagógica aqui resumida. Veja-se, acima, a nota 227 ao parágrafo 114. 48 Veja-se, acima, a nota 40 ao parágrafo 157, acrescentando que, aqui, Vico quer dizer que a história mítica romana dos primeiros séculos é modelada pela heróica grega. 49 Sendo Roma, cidade que se mostrou tardiamente na história, ainda rigorosamente bárbara nos tempos em que, pela sua própria civilização avançada, os povos por ela vencidos começavan1 a enfraquecer. 47
[117]
XXII [161] É necessário que exista na natureza das coisas humanas uma língua mental comum a todas as nações, que compreenda uniformemente a substância das coisas factíveis na vida humana social, e a explique nas muitas diferentes modificações e nos vários diferentes aspectos que essas coisas possam apresentar; tal como verificamos ser isso verdadeiro nos provérbios, 50 que são máximas de sabedoria vulgar, e são substancialmente escutadas as mesmas em todas as nações antigas e modernas, expressas de formas tão diferentes, por muitas que elas sejam. [162] Esta língua é própria desta Ciência, à luz da qual, se os doutos das línguas lhe prestarem atenção, poderão formar um vocabulário mental comum a todas as diferentes línguas articuladas, mortas e vivas, de que oferecemos um ensaio particular na Ciência Nova pela primeira vez impressa, 5 1 onde demonstrámos que os nomes dos primeiros pais de fanúlia, num grande número de tinguas mortas e vivas, lhes foram dados devido às diversas propriedades que possuíram no estado das fanúlias e das primeiras repúblicas, tempo no qual as nações formaram as suas línguas. Vocabulário de que nós, tanto quanto nos permite a nossa escassa erudição, fazemos aqui uso em todas as coisas que reflectimos. [163] De todas as proposições acima mencionadas, a primeira, segunda, terceira e quarta dão-nos os fundamentos das confutações de tudo aquilo que se opinou até agora acerca dos princípios da humanidade, e que são resultado das inverosimilhanças, absurdos, contradições e impossibilidade de tais opiniões. As seguintes, da quinta até à décima-quinta, que
50
51
Cfr., mais adiante, o parágrafo 445. Cfr. III, parágrafos 387-389.
[118]
nos dão os fundamentos do verdadeiro, serviram para meditar sobre este mundo de nações na sua ideia eterna, por aquela propriedade de cada ciência, advertida por Aristóteles, de que «scientia debet esse de universalibus et aeternis». 52 As últimas, da décima-quinta até à vigésima-segunda, que nos darão os fundamentos do certo, aplicar-se-ão a ver, de facto, este mundo de nações tal como o meditámos em ideia, segundo o método de filosofar mais acertado de Francis Bacon, senhor de Verulam, que parte das coisas naturais, sobre as quais ele elaborou o livro Cogitata visa, 53 transportado para as coisas humanas civis. [164] As proposições até agora propostas são gerais e estabelecem esta Ciência no todo; as seguintes são particulares, pois estabelecem-na separadamente nas diferentes matérias de que trata. XXIII [165] A história sagrada é mais antiga que todas as mais antigas das profanas que nos chegaram, porque conta muito detalhadamente e ao longo de um período de mais de oitocentos anos 54 o estado de natureza sob o governo dos patriarcas, ou seja, o estado das famílias, baseados nas quais todos os políticos concordam que depois surgiram os povos e as cidades; estado do qual a história profana pouco ou nada nos contou e fê-lo de modo assaz confuso.
52 «Ü objecto das ciências deverão ser as coisas universais e eternas». Mas, mais do que tradução de um passo textual, é resumo do pensamento aristotélico. 53 Cogitata et visa de it1terpretatione naturae, sive de inventione rernm et opernm (1609). 54 Do Dilúvio ao êxodo do Egipto, isto é, de 2328 a 1531 a. C. , segundo PETAU, op. cit., II, 283 e 287.
[119]
[166) Esta dignidade prova a verdade da história sagrada contra a presunção das nações de que acima 55 nos falou Diodoro Sículo, porquanto os Hebreus conservaram tão detalhadamente as suas memórias desde o princípio do mundo. XXIV [167) A religião hebraica foi fundada pelo verdadeiro Deus com base na proibição da adivinhação, 56 baseada na qual surgiram todas as nações gentias. [168) Esta dignidade é uma das principais causas pelas quais todo o mundo das nações antigas se dividiu entre Hebreus e Gentes. 57 XXV [169) O dilúvio universal é demonstrado não já pelas provas filológicas de Martin Schoock, 58 que são demasiado ligeiras; nem pelas astrológicas de Pierre, cardeal d'Ailly,59 seguido por Giovanni Pico della Mirandola, 60 que são demasiado incertas, ou melhor, falsas, recuando a basear-se nas antigas Tábuas afonsinas, 61 confutadas pelos Hebreus e agora 55
No parágrafo 53. Vico quer dizer que, com a proibição a Adão e Eva de comer o fruto fatal, que lhes teria dado a ciência do bem e do mal, Deus ter-lhes-ia, no fundo, proibido a adivinhação. 57 Gentios. 58 Diluvium Noachi cit., pp. 335-346. 59 Pierre d' Ailly (1350-1420), autor, entre outras obras, da Concordantia astronomiae cum thevlogia et concordantia astronomiae cum historia (Viena, 1490; Veneza, 1594). 60 1463-1494. Cfr. os seus Disputationium in astrologiam libri XX, in Opera, edição de Basileia, 1572, I, 553-570. 61 As tábuas astronómicas compiladas por Afonso X de Castela (1226-1284), as quais, por outro lado, são seguidas somente por D 'Ailly, não também por Pico. 56
[120]
pelos Cristãos, os quais, desaprovado o cálculo de Eusébio e de Beda,62 seguem hoje o do judeu Fílon:63 mas demontra-se com histórias fisicas observadas no interior das fãbulas , como nas dignidades que se seguem se divisará. 64 XXVI (170] Os gigantes foram por natureza corpos vastos, que viajantes dizem terem sido encontrados no sul da América, no país dito de los patacones, desajeitados e ferocíssimos. E, deixadas as razões vãs, ou indecorosas, ou falsas que nos foram trazidas pelos filósofos , recolhidas e seguidas por Chassagnon, De gigantibus, 65 são-nos trazidas as causas, em parte fisicas e em parte morais, observadas por Júlio Césa_r66 e por Cornélio Tácito67 , onde falam da gigantesca estatura dos antigos germanos; e, por nós examinadas, formam-se com base na ferina educação das crianças.68
XXVII (171] A história grega, à qual devemos tudo o que possuímos sobre todas as outras da antiquidade gentílica (à excepção da romana) , torna as suas origens a partir do dilúvio69 e dos gigantes70 . 62 O qual coloca no ano 3952 a. C . a criação do mundo. Cfr. Opera , edição Migne, V, 1176 a. 63 Cfr. o parágrafo 54. 64 Cfr. os parágrafos 192-194. 65 O escritor protestante quinhentista Jean Chassagnon de Monistrol, autor do De gigat1tibt1s eorumque reliquiis ac de hominibus qui prodigiosis viribus ad gigat1tum naturam proximi videtJtur accedere (Basileia, 1580; Spira, 1586) . 66 B. g., Iv, I, e cfr. Vl , I. 67 Germ ., 4 e 18. 68 Cfr. o parágrafo 369. 69 Daquele deucaliano. 70 Dos titãs.
[121]
[172] Estas duas dignidades vêm mostrar todo o primeiro género humano dividido em duas espécies: uma de gigantes, outra de homens de justa corporatura; aqueles Gentios, estes Hebreus (diferença essa que não pode ter nascido de outra maneira senão da ferina educação daqueles e da humana destes); e, consequentemente, que os Hebreus tiveram origem diferente daquela que tiveram todos os Gentios.71 XXVIII [173] Chegaram até nós também dois grandes fragmentos da antiquidade egípcia, que foram acima observados. Um dos quais é que os Egípcios reduziam todo o tempo do mundo transcorrido antes deles a três idades, que foram: idade dos deuses, idade dos heróis e idade dos homens. O outro, que durante todas estas três idades teriam sido faladas três línguas, pela ordem correspondente às ditas três idades, que foram: a língua hieroglífica, ou seja, sagrada; a língua simbólica ou por semelhanças, como é a heróica; e a epistolar, ou seja, vulgar dos homens, por signos convencionados para comurucar as necessidades vulgares da sua vida. 72 XXIX [17 4] Homero, em cinco trechos de todos os seus dois poemas que aqui se referirão, 73 menciona uma língua mais antiga do que a sua, que certamente foi língua heróica, e chama-lhe «língua dos deuses».
71
Cfr. os parágrafos 369-374.
n Cfr. os parágrafos 52 e 432 e seg. 73
No parágrafo 437.
[122]
XXX
(175] Varrão teve a diligência de recolher trinta mil nomes 74 de deuses (que outros tantos também enumeraram os Gregos) , nomes esses que se reportavam a outras tantas necessidades, ou da vida natural, ou moral, ou económica75 ou, finalmente, a vida civil dos primeiros tempos. (176] Estas três dignidades estabelecem que o mundo dos povos começou, em toda a parte, com as religiões: que será o primeiro dos três princípios desta Ciência. 76 XXXI
(177] Quando os povos se encarniçam com as armas, de modo que entre eles já não têm lugar as leis humanas, o único meio poderoso para os submeter é a religião. 77 (178] Esta dignidade estabelece que, no estado fora-da-lei/8 a providência divina deu origem a que os ferozes e violentos se encaminhassem para a humanidade e que se ordenassem as nações, ao despertar neles uma ideia confusa da divindade, que eles, devido à sua ignorância, atribuíram a quem ela não convinha; e assim, com o pavor desse divino imaginado, começaram a submeter-se a uma certa ordem. 79
74
Exagero. No entanto, v. SANTo
A GOSTINHO,
De civ. Dei,VI , 2-9, e cfr.
IV; 8. 75
Familiar. Veja-se o parágrafo 333-335, e cfr. MACHIAVELLI, Discorsi, I, II . n Cfr. MACHIAVELLI, loc. cit. 78 No estado originário de barbárie, ou seja, como lhe chama Vico, no «errar ferino>>. 79 Cfr. os parágrafos 377 e seg. 76
[123]
[179] Esse prinCiplO de coisas, entre os seus «ferozes e violentos)), 80 não o soube ver Thomas Hobbes, porque foi procurar encontrar os princípios erradamente com o «acaso)) do seu Epicuro; 81 pelo que, com tão magnânimo esforço, com igualmente infeliz evento, acreditou enriquecer a filosofia grega com esta grande parte,82 da qual certamente tinha carecido (como refere Georges Pasch,83 D e eruditis huius saeculi inventis) ,84 de considerar o homem em toda a sociedade do género humano. Nem Hobbes o teria pensado de outro modo, se o fundamento não lhe tivesse sido dado pela religião cristã, que, em relação a todo o género humano, ordena não só a justiça mas também a caridade. E aqui se começa a confutar Políbio,85 naquela sua falsa afirmação: que, se no mundo existissem filósofos, não fariam falta religiões; que, se no mundo não existissem repúblicas, que não podem ter nascido sem as religiões, não existiriam no mundo filósofos .
XXXII [180] Os homens ignorantes das causas naturais que produzem as coisas, quando não as podem explicar nem mesmo 80 Alusão à concepção hobbesiana do estado de natureza como um período infelicíssimo de uma perene «be/lum omnium contra omnes» (guerra de todos contra te dos»). Cfr. De dve, carta dedicatória e I, 12; Leviathan, cap. 14. 81 Na medida em que levou às últimas consequências o princípio epicurista das origens de contratualidade da vida social e do Estado. Cfr. De dve, cap. 5 e Leviathan, capítulos 17 e 18. 82 Da «philosophia dvilis», que o filósofo inglês asserta não mais antiga que o seu De dv< (1641), de que é de ver a epístola dedicatória. 83 Georges Pasch, de Dantzig (1661-1707), professor de moral lógica e metafisica na Universidade de Kiel e feroz anti-hobbesiano. 84 D e novis in11entis, quorum accuratiori cultui facem pertulit antiquitas (Leipzic, 1700), pp. 190-203. 85 VI, 56: passo aqui parafraseado inexactamente.
[124]
por coisas similares, atribuem às coisas a sua própria natureza, 86 como o vulgo, por exemplo, diz estar a calarnita enamorada do ferro. 87 (181] Esta dignidade é uma partícula da primeira: pois a mente humana, devido à sua natureza indefinida, quando cai na ignorância, faz de si regra do universo no que respeita a tudo aquilo que ignora. 88 XXXIII (182] A física dos ignorantes é urna metafísica vulgar, com a qual atribuem as causas das coisas que ignoram à vontade de Deus, sem considerarem os meios de que se serve a vontade divina .89 XXXIV (183] Verdadeira propriedade da natureza humana é aquela advertida por Tácito, 90 quando disse «mobiles ad superstitionem perculsae semel mentes»: pois, uma vez que os homens são surpreendidos por uma pavorosa superstição, atribuem àquela tudo aquilo que imaginam, vêem e, mesmo, fazem. XXXV (184] O espanto é filho da ignorância; e quanto maior é o efeito admirado, tanto mais cresce proporcionalmente o espanto. 91 86 87
88
89 90 9
'
Cfr. E SPINOSA, Ethica, I, Apêndice. Cfr. o parágrafo 375. Cfr. o parágrafo 120. Cfr. E SPINOSA , /oc. cit. Ann., I, 28. Cfr. o parágrafo 375.
[125]
XXXVI [185) A fantasia é tanto mais robusta quanto mais débil é o raciocínio. 92 XXXVII [186) O mais sublime trabalho da poesia é dar às coisas insensatas sentido e paixão, e é propriedade das crianças tomar coisas inanimadas entre as mãos e, divertindo-se, falar-lhes como se elas fossem pessoas vivas. 93 [187) Esta dignidade filológico-filosófica faz-nos admitir que os homens do mundo infantil foram, por natureza, sublimes poetas. 94 XXXVIII [188] É um trecho de ouro de Lactâncio Firrniano95 aquele onde reflecte sobre as origens da idolatria, dizendo: «Rudes initio homines deos appellarunt sive ob miraculum virtutis (hoc vere putabant rudes adhuc et simplices); sive, ut fieri solet, in admirationem praesentis potentiae; sive ob bendicia, quibus erant ad humanitatem compositi.» 96
92
E SPINOSA, Tractatus theologicus-politicus, edição original de Hamburgo, 1670, pág. 15. 93 Cfr. os parágrafos 187, 206, 211 -212, 231 -232, 375. 94 Cfr. os parágrafos 186 e 376. 95 Div. itJSt., I, 15. 96 «No princípio, homens rudes chamaram deuses ao que parecia um prodígio de capacidades (prodígio em que, rudes e simples como eram, acreditavam de verdade); ou então, como costuma acontecer, àqueles a quem admiravam o actual poder; ou, finalmente, àqueles a quem se sentiam reconhecidos pelo beneficio, que lhes tinham trazido, de tê-los disposto à vida humana.•
[126]
XXXIX [189] A curiosidade, propriedade conatural do homem, filha da ignorância, que gera a ciência, ao produzir a abertura da nossa mente ao espanto, tem este costume: que quando observa um efeito extraordinário na natureza, como cometa, parélio, 97 ou estrela do meio-dia, imediatamente pergunta o que quer dizer ou significar tal coisa.98 XL [190] As bruxas, ao mesmo tempo que são repletas de pavorosas superstições, são sumamente ferozes e imanes; de tal modo que, se for necessário para solenizar as suas bruxarias, matam desapiedadamente e fazem em pedaços amabilíssimos meninos inocentes. [191] Todas estas propos1çoes, começando da v1ges1ma oitava até à trigésima oitava, revelam-nos os princípios da poesia divina, ou seja, da teologia poética; a partir da trigésima primeira, dão-nos os princípios da idolatria; a partir da trigésima nona, os princípios da adivinhação; e a quadragésima, finalmente, dá-nos os princípios dos sacrificios com as religiões sanguinárias, que começaram, desde os primeiros homens cruéis e ferocíssimos, com votos e vítimas humanas. Os quais, como se sabe através de Plauto, 99 ficaram vulgarmente conhecidos entre os Latinos por «Saturni hostiae», 100 e foram os sacrificios de Moloch entre os Fenícios, que passavam pelas chamas os meninos consagrados àquela falsa divindade; 10 1 consagrações
97
Nuvem que, iluminada pelo sol, parece um outro sol. Cfr. HOBBES, Leviathan, cap. 12. 99 Amph., IV, 2, 15-16. 100 «Vítimas de Saturno•. 10 1 Cfr. o parágrafo 517. 98
[127]
das quais se conservaram algumas na lei das XII Tábuas. 102 Coisas essas que, assim como dão o sentido correcto àquele mote:
Primos rn orbe deos Jecit timor103 - pois as falsas religiões não nasceram da impostura alheia, 104 mas da própria credulidade; - também o voto infeliz e o sacrificio que fez Agamérnnon da piedosa filha Ifigénia, de cujo cumprimento proclama Lucrécio 105 :
Tantum relligio potuit suadere malorum, 106 remetem para o conselho da providência. Pois tudo isto era necessário para domesticar os filhos dos polifemos 107 e convertê-los à humanidade dos Aristides e dos Sócrates, dos Lélios e dos Cipiões Africanos.
XLI [192] Pergunta-se, e a pergunta é razoável, como é que a terra, ensopada 108 durante muitas centenas de anos pela humidade do dilúvio universal, não emanou para o ar exalações
102 As quais dispunham que os «insignis ad diformitatem puer» fossem «cito necatus» (que «aos recém-nascidos demasiado disformes• fosse «imediatamente tirada a vida»). 103 ESTÁCIO, Theb., III, 661 (•O temor fez surgir primeiramente na terra o divino»). 104 Alusão, entre outros, a Antonio van Dale (1638-1708), do qual o De oraculis veterum ethrlicorum (Amsterdão, 1683) e as Dissertationes de origine et progressu idolatriae et superstitionum (ibid., 1696) se tinham popularizado em França, através de Fontenelle. 105 I, 102. 106 •A males tão graves pode induzir a religião.» 107 No significado genérico de •ciclopes», «homens das cavernas», etc. 106 Encharcada.
[128]
secas, ou seja, matérias ígneas, de modo a ongmarem-se os relâmpagos. 109
XLII [193] Júpiter fulmina e derruba os gigantes, e cada nação gentia possuiu um. 110 [194] Esta dignidade contém a história física que nos conservaram as fabulas: que foi o dilúvio universal sobre toda a terra. [195] Esta mesma dignidade, junta com o antecedente postulado, permite-nos determinar que, durante esse longuíssimo decurso de anos, as raças ímpias dos três filhos de Noé teriam andado num estado ferino, e com um vaguear ferino se teriam espalhado e dispersado pela grande selva da terra, e com a educação ferina 111 ter-se-iam tornado e comprovado gigantes no tempo em que pela primeira vez o céu relampejou depois do dilúvio.
XLIII [196] Cada nação gentia teve um seu Hércules, que foi filho de Júpiter; e Varrão, doutíssimo da antiquidade, chegou a enumerar quarenta. 11 2 [197] Esta dignidade é o princípio do heroísmo dos primeiros povos, nascido de uma falsa opinião: provirem os heróis de uma origem divina. 11 3
109 11 0 111 112 11 3
Cfr. o parágrafo 63. Não gigantes, mas Jupiteres. Cfr. os parágrafos 170 e 369. Cfr. o parágrafo 47 . Cfr. os parágrafos 666 e seg.
[129]
[198] Esta mesma dignidade, j unta com a antecedente, que primeiro nos dão tantos Júpiteres, depois tantos Hércules, entre as nações gentias - para além de nos demonstrarem que não se puderam fundar sem religião nem engrandecer sem virtude, sendo elas nos seus começos selvagens e fechadas e, por isso, não sabendo nada uma da outra, segundo a dignidade de que «ideias uniformes, nascidas entre povos desconhecidos, devem possuir um motivo comum de verdade» 114 -,dão-nos, além disso, este grande princípio: que as primeiras fabulas deviam conter verdades civis e, por isso, ter sido as histórias dos primeiros povos.
XLIV [199] Os primeiros sábios do mundo grego foram os poetas teólogos, 115 que, sem dúvida, nasceram antes dos heróicos, 116 tal como Júpiter foi pai de Hércules. [200] Esta dignidade, junta com as outras duas antecedentes, estabelecem que todas as nações gentias, uma vez que todas tiveram os seus Jupiteres, os seus Hércules, foram nos seus começos poéticas; e que, entre elas, primeiro nasceu a poesia divina: depois, a heróica.
XLV [201] Os homens são naturalmente levados a conservar as memórias das leis e das ordens que os mantêm dentro das suas sociedades.
114 11 5 116
Cfr. o parágrafo 144. No significado de cantores míticos de gestas dos deuses. Dos poetas épicos.
[130]
XLVI
[202] Todas as histórias bárbaras 117 têm princípios fabulosos. [203] Todas estas dignidades, desde a quadragésima segunda, dão-nos o princípio da nossa mitologia histórica. 118 XLVII
[204] A mente humana é naturalmente levada a deleitar-se com o uniforme. [205] Esta dignidade, a propósito das fabulas, é confirmada pelo costume que tem o vulgo, que, sobre os homens numa ou noutra parte famosos , postos nestas ou naquelas circunstâncias, de acordo com o que em certo estado lhes convém, finge as fabulas apropriadas. 119 As quais são verdades de ideia em conformidade com o mérito daqueles sobre os quais as finge o vulgo; e, no entanto, são por vezes e de facto falsas , na medida em que não seja dado àqueles o mérito naquilo de que eles são dignos. De modo que, se nisto bem se reflectir, o verdadeiro poético é um verdadeiro metafisico, 120 em face do qual o verdadeiro tisico,12 1 que com ele não se conforma, deve considerar-se desde logo falso. Do que resulta esta importante consideração em matéria poética: que o verdadeiro capitão
11 7 No significado de histórias contestes de mitos, presentes apenas no período heróico ou barbárico de todos os povos. 11 8 A «teogonia natural»: cfr. o parágrafo 69. 11 9 Interprete-se: Quando homens famosos nesta ou naquela actividade humana operam em conjunturas determinas, o vulgo, ao contar historicamente aquilo que eles realmente fizeram, prefere imaginar que tenham feito aquilo que, naquelas conjunturas, homens dos seus méritos deveriam ter feito. 120 Ideal. 121 Histórica.
[131]
de guerra, por exemplo, é o Godofredo que Torquato Tasso finge; e todos os capitães que não se conformam no todo e completamente com Godofredo, esses não são verdadeiros capitães de guerra.
XLVIII [206) É da natureza das crianças que, com as ideias e nomes dos homens, mulheres e coisas que pela primeira vez conheceram, a partir delas e com eles aprendem depois e denominam todos os homens, mulheres e coisas que têm com as primeiras alguma semelhança ou relação. 122
XLIX [207) É um trecho de ouro aquele de Iâmblico, De mysteriis aegyptiorum, acima referido, 123 segundo o qual os Egípcios atribuíam a Mercúrio Trismegisto todas as descobertas úteis ou necessárias à vida humana. [208) Essa máxima, assistida pela dignidade precedente, reverterá 124 para este divino filósofo 125 todos os sentidos de sublime teologia natural que ele mesmo concedeu aos mistérios dos Egípcios. 126 [209) E estas três dignidades dão-nos o princípio dos caracteres poéticos, 127 que constituem a essência das fãbulas .
122
Cfr. o parágrafo 186. No parágrafo 68. 124 Reconduzirá a factos de história social. 125 Nas teorias de lâmblico. 126 As interpretações nústicas e teúrgicas dos denominados «mistérios dos Egípcios». 127 «Caracteres poéticos», ou «universais fantásticos», ou «retratos ideais» designam, na terminologia de Vico, as personificações típicas e, portanto, 123
[132]
E a primeira demonstra a natural inclinação do vulgo para fingi-las , e fingi-las com decoro. A segunda demonstra que os primeiros homens, como crianças do género humano, não sendo capazes de formar os géneros inteligíveis das coisas, tiveram natural necessidade de fingir os caracteres poéticos, que são géneros ou universais fantásticos, de referir a eles, como a certos modelos, ou então retratos ideais, todas as espécies particulares a cada um dos seus géneros semelhantes; semelhança pela qual as antigas tabulas não podiam fingir-se senão com decoro. Precisamente como os Egípcios referiam ao género do «sábio civil», por eles fantasiado em Mercúrio Trismegisto, todas as suas descobertas úteis ou necessárias ao género humano, que são particulares efeitos de sabedoria civil, porque não sabiam abstrair o género inteligível de «sábio civil», e muito menos a forma de sabedoria civil em que foram sábios esses tais Egípcios. Tanto os Egípcios, no tempo que enriqueciam o mundo com as descobertas necessárias ou úteis ao género humano, foram eles filósofos e entendiam de universais, ou seja, de géneros inteligíveis! [210] E esta última dignidade, na sequência das antecedentes, é o princípio das verdadeiras alegorias poéticas, que às tabulas davam significados unívocos, não análogos, a partir de diversos particulares compreendidos sob os seus géneros poéticos: os quais, por isso, se chamaram «diversiloquia», 128 isto é, falares compreendendo num conceito geral diversas espécies de homens, ou factos, ou coisas. 129
míticas, sobre as quais se discorreu no parágrafo 205 . Cfr. também os parágrafos 412-427. 128 Diversamente falantes. 129 Cfr. o parágrafo 403 .
[133]
L [211] Nas crianças é a memona vigorosíssima; logo, é vívida em excesso a fantasia, que outra coisa não é senão memória dilatada ou composta. 130 [212] Esta dignidade é o princípio da evidência das imagens poéticas que deve ter formado o primeiro mundo criança. 131
LI [213] Em todas as faculdades, os homens que as não possuem por natureza, alcançam-nas com obstinado estudo da arte; mas em poesia, de facto, está privado de alcançá-la com arte todo aquele que a não possui por natureza. [214] Esta dignidade demonstra que, uma vez que a poesia fundou a humanidade gentílica, 132 da qual e não de outro modo devem ter surgido todas as artes, 133 os primeiros poetas foram-no por natureza.
LII [215] As crianças são poderosamente boas no imitar, porque observamos muito frequentemente divertirem-se a semelhar 134 aquilo que são capazes de aprender. [216] Esta dignidade demonstra que o mundo criança foi de nações poéticas, não sendo a poesia outra coisa senão imitação.
° Cfr. os
13
131 132 133 134
parágrafos 689 e 819. Cfr. o parágrafo 377. No sentido esclarecido nos parágrafos 376 e seg. Tanto as liberais como as mecârucas. «Copian, •imitar».
[134]
[217] E esta dignidade dar-nos-á o prinCiplO disto: que todas as artes do necessário, útil, cómodo e uma boa parte também do prazer humano se descobriram nos séculos poéticos, 135 antes de chegarem os filósofos, porque as artes não são outra coisa senão imitações da natureza e poesias de um certo modo reais. 136 Lili
[218] Os homens primeiro sentem sem advertir, depois advertem com ânimo perturbado e comovido, finalmente reflectem com mente pura. [219] Esta dignidade é o princípio das sentenças poéticas, 137 que são formadas com sentimentos de paixões e de afectos, diferentemente das sentenças filosóficas, que se formam a partir da reflexão com os raciocínios: pelo que estas se aproximam mais do verdadeiro quanto mais se elevam aos universais, e aquelas são tanto mais certas quanto mais se aplicam aos particulares. LIV
[220] Os homens interpretam naturalmente segundo a suas naturezas as coisas dúbias, ou seja, obscuras, que lhes dizem respeito e, portanto, as consequentes paixões e costumes.1 38
135
Intuitivamente, na inf'ancia das nações. Cfr. os parágrafos 498, 794-
-801. 136
Compostas não de sons e ritmos, mas de res. Cfr. os parágrafos 703-704. 138 Segundo as suas naturezas e segundo as paixões e os costumes determinados por estas suas naturezas. 137
[135]
(221] Esta dignidade é um grande cânone da nossa rrútologia, pelo qual as fãbulas, comprovadas entre os primeiros homens selvagens e cruéis todas severas, como convinha à fundação das nações que provinham da feroz liberdade bestial, depois, com o longo volver dos anos e mudar dos costumes, tornaram-se inapropriadas, 139 alteradas, obscurecidas, nos tempos dissolutos e corruptos ainda antes de Homero. Porque, como aos homens gregos importava a religião, temendo ter os deuses tão contrários aos seus votos como contrários eram aos seus costumes, atribuíram os seus costumes aos deuses, e deram às fãbulas sentidos indecorosos, sórdidos, obsceníssimos. 140
LV (222] É um áureo trecho aquele de Eusébio (da sua aplicação particular à sabedoria dos Egípcios elevado à de todos os outros gentios) em que diz: «Primam aegyptiorum theologiam mere historiam fuisse fabulís interpolatam; quarum quum postea puderet posteros, sensim coeperunt mysticos iis sígnificatus affingere.» 14 1 Como fez Manethon, ou seja, Mâneton, sumo pontífice egípcio, que conduziu toda a história egípcia a uma sublime teologia natural, como acima também se disse. 142 (223] Estas duas dignidades são duas grandes provas da nossa rrútologia histórica, 143 e são conjuntamente dois grandes 139
Tornadas impróprias, isto é, tornaram um significado diferente do originário. 140 Veja-se os parágrafos 80-81 e 708. 141 Resumo muito livre e aqui e ali arbitrário do proémio ao segundo livro da Preparatio evangelica. Seja como for, em português o passo soaria assim: «A teologia originária dos Egípcios não foi mais do que uma história interpolada das tabulas; mas, uma vez que, em seguida, se teve vergonha destas, começou-se pouco a pouco a atnbuir-lhes significados nústicos.• 142 No parágrafo 46. 143 Cfr. o parágrafo 203.
[136]
turbilhões para confundir as opiniões sobre a inatingível sabedoria dos antigos, 144 como dois grandes fundamentos da verdade da religião cristã que, na história sagrada, não contém referências de que se envergonhar. LVI (224) Os primeiros autores entre os Orientais, Egípcios, Gregos e Latinos e, na barbárie regressada, 145 os primeiros escritores nas novas línguas da Europa, comprovam-se terem sido poetas. 146 LVII (225) Os mudos explicam-se através de actos ou objectos que possuam relações naturais com as ideias que eles pretendem significar. 147 (226) Esta dignidade é o princípio dos hieróglifos, com os quais 148 se comprova terem falado todas as nações na sua primeira barbárie. (227) Esta mesma dignidade é o princípio do falar natural 149 que Platão, no Crátilo, 150 e, depois dele, Iâmblico, De mysteriis aegyptiorum, 151 conjecturaram ter-se uma vez falado no mundo.
144
Cfr. o parágrafo 128. Na Idade Média. 146 Cfr. os parágrafos 464-471. 147 Cfr. os parágrafos 400-403. 148 Isto é: ou com gestos indicando os contornos de um corpo, ou então indicando ou exibindo este mesmo corpo. 149 Sinónimo, aqui, da «língua muda», ou por hieróglifos, explicada na nota precedente. ISO 425 d e 438 d. 15 1 Cap. VII . 145
[137]
Com os quais estão os estóicos 152 e Orígenes, Contra Celso; 153 e, porque o disseram adivinhando, opuseram-se-lhes Aristóteles, na Peri ermeneia 154 e Galeno, De decretis Hippocratis et Platonis:155 disputa acerca da qual reflecte Públio Nigídio, segundo Aulo Gélio. 156 Fala natural à qual deve ter sucedido a locução poética por imagens, semelhanças, comparações e propriedades naturais.
LVIII (228] Os mudos emitem os sons informes cantando, e os gagos também cantando soltam a língua para pronunciar. LIX
(229] Os homens desabafam as grandes paixões entregando-se ao canto, 157 como se prova nos sumamente atormentados e alegres. (230] Estas duas dignidades supostas (permitem conjecturar] que os autores das nações gentias - (uma vez] que tinham passado a um estado ferino de animais mudos e, por isso mesmo, estúpidos, não se teriam ressentido senão sob o impulso de violentíssimas paixões - devem ter formado as suas primeiras línguas cantando. 158
152
O s passos correlativos estão recolhidos e coordenados por S TEINTHAL, Geschichte der Sprachwissenschafl (Berlim, 1890), I, 288-289, 293, 296-297. 153 Além de Contra Celsum, I, 24 e V, 4, veja-se também o Exortatio ad martyrium, 46 (Opera, edição Migne, I, 701 e seg., 1249 e seg., 625 e seg.). 154 Isto é, «da interpretação». Cfr. as pp. 16 a 19 e seg. 155 Nada disto está nem nesta ob·ra nem nos muitos outros escritos nos quais Galeno discorre acerca de Platão e de Aristóteles. 156 Noctes atticae, X, 4. 157 Presumivelmente, alusão às primitivas nénias funerárias. 158 Cfr. o parágrafo 461.
[138]
LX (231] As línguas devem ter começado por palavras monossilábicas; como as crianças, na presente abundância de falares articulados em que agora nascem, se bem que tenham molíssimas as fibras do instrumento necessário para articular a fala , começam por essas palavras. 159
LXI (232) O verso heróico 160 é o mais antigo de todos e o espondaico o mais tardio, e aqui 161 se comprovará ter o verso heróico nascido espondaico. 162
LXII (233) O verso jâmbico 163 é o mais semelhante à prosa, 164 e o jambo é «pé veloz)), como é definido por Horácio. 165 (234) Estas duas últimas dignidades permitem conjecturar que as ideias e as línguas foram soltas de par e passo. (235) Todas estas dignidades, começando da quadragésima sétima, juntamente com as acima propostas como princípios de todas as outras, 166 compõem toda a matéria poética nas suas partes, que são: a fabula, o costume e o seu decoro, a
159
Cfr. os parágrafos 186, 454 e 462. O hexâmetro. 161 No parágrafo 449. 162 Adaptação ao fins de Vico de quanto é dito na Poética aristotélica (p. 1459 h 34). 163 O senário jâmbico. 164 ARISTÓTELES, loc. cit. 165 Ad Pisones, 252. 166 As primeiras vinte e cinco. 160
[139]
sentença, a locução e a sua evidência, a alegoria, o canto e, por último, o verso. E as sete últimas convencem igualmente que, para todas as nações, primeiro existiu o falar em verso e depois o falar em prosa. LXIII [236) A mente humana é naturalmente inclinada com os sentidos a revelar-se fora no corpo, e com muita dificuldade, por meio da reflexão, a compreender-se a si mesma. [237) Esta dignidade dá-nos o princípio universal da etimologia em todas as línguas, nas quais os vocábulos são levados a significar as coisas da mente e do ânimo a partir dos objectos e das propriedades dos objectos.
LXIV [238) A ordem das ideias deve proceder segundo a ordem dos objectos. 167
LXV [239) A ordem das coisas humanas procedeu assim: primeiro existiram as selvas, depois os tugúrios, logo as aldeias, em seguida as cidades, finalmente as academias. 168 [240) Esta dignidade é um grande princípio de etimologia: pois segundo esta série de coisas humanas se devem referir as histórias das palavras das línguas nativas, como observamos na língua latina ter origens selvagens e camponesas quase todo o corpo das suas palavras. Como, só para dar um exemplo, «lex», que primeiramente devia ter sido «colheita de bolotas)), de 167
168
Cfr. E SPINOSA, Ética, l, prop. 7. O s institutos de cultura.
[140]
que acreditamos ser chamada «ilex», quase «íllex», a azinheira (como certamente «aquilex)) é o colector das águas 169 ), porque a azinheira produz a bolota, à qual se ligam os porcos. Depois, «lex)) foi «colheita de legumes)), da qual estes foram chamados «legumina)). 170 Em seguida, no tempo em que não tinham sido ainda inventadas as letras vulgares com as quais fossem escritas as leis, por necessidade de natureza civil, «lex)) deve ter sido «colheita de cidadãos)), ou seja, o parlamento público; 17 1 pelo que a presença do povo era a lei que solenizava os testamentos que se faziam «cala tis comitiis)). 172 Finalmente, o recolher letras e fazer delas como que um feixe em cada palavra foi chamado «len . LXVI [241] Os homens, primeiro, sentem o necessário; depois, cuidam do útil; em seguida, advertem o cómodo; mais à frente, deleitam-se com o prazer; logo se dissolvem no luxo; e, finalmente, enlouquecem a estragar as substâncias. 173 LXVII [242] A natureza dos povos, primeiro, é cruel; depois, severa; logo, benigna; em seguida, delicada; finalmente, dissoluta. 174
Mais exactamente, «aquarum i~Jdagator» (•pesquisador das águas•). Cfr. CoLUMEllA, De re rustica, II, 2. 17 Cfr. V ARJ.V.o , De re rustica, I, 23 e 32; P LiNtO , Nat. hist., XVIII, 17, 169
°
46. 171
Mera hipótese de Vico. Prinútiva forma patrícia de testamento, segundo a qual o testador manifestava as próprias vontades junto dos conúcios curiais. 173 Tradução do «pecuniam vexant> salustiano (Catil., 20) . 174 Cfr. os parágrafos 916-918. 172
[141]
LXVIII [243] No género humano, primeiro, surgem imanes e desajeitados, como os Polifemos; depois, magnânimos e orgulhosos, como os Aquiles; logo, valorosos e justos, como os Aristides, os Cipiões Africanos; mais próximo de nós, 175 os que aparecem com grandes imagens de virtude acompanhadas por grandes vícios, que junto do vulgo fazem estrépito de verdadeira glória, como os Alexandres e os Césares; mais adiante, os tristes reflexivos, como os Tibérios; finalmente, os furiosos, dissolutos e desavergonhados, como os Calígulas, os Neros, os Domicianos. [244] Esta dignidade demonstra que os primeiros foram necessários para o homem obedecer ao homem no estado das famílias, 176 e dispô-lo a obedecer às leis no estado que havia de surgir das cidades; os segundos, que naturalmente não cediam aos seus pares, para estabelecer com base nas famílias as repúblicas de forma aristocrática; os terceiros, para abrir o caminho à liberdade popular; os quartos, para introduzir as monarquias; os quintos, para as estabelecer; os sextos, para as derrubar. [245] E esta, com as antecedentes dignidades, 177 dão uma parte dos princípios da história ideal eterna, sobre a qual transcorrem no tempo todas as nações através dos seus surgimentos, progressos, estados, decadências e fins .178
175
Mais adiante. Isto é, no regime de famílias isoladas em patriarcado. m LXV, LXVI e LXVII. 178 Cfr. os parágrafos 349 e 393. 176
[142]
LXIX (246] Os governos devem ser conformes à natureza dos homens governados. 179 (247] Esta dignidade demonstra que, por natureza das coisas humanas civis, a escola pública dos príncipes é a moral dos povos. 180
LXX (248] Seja concedido aquilo que não repugna por natureza e que, depois, aqui se comprovará ser verdadeiro, de facto: que do estado nefando do mundo fora-da-lei 18 1 se retiraram primeiro alguns poucos mais robustos, 182 que fundaram as fanúlias , com as quais e pelas quais se transformaram os campos em cultivado; e os outros, muito tempo depois, para aí se retiraram, refugiando-se nas terras cultivadas destes pais. 183
LXXI (249] Os costumes nativos e, sobretudo, o da liberdade natural, não se mudam todos de uma vez, mas gradualmente e ao fim de muito tempo. 184
LXXII (250] Posto que todas as nações começaram a partir de um culto de uma qualquer divindade, os pais, no estado das
179
180 181 182
183 184
Cfr. o parágrafo 1471 combinado com os parágrafos 1409-1410. Cfr. o parágrafo 1471. Do errar ferino (parágrafos 169 e 369 e seg.) . Os gigantes pios (parágrafos 520 e seg.). Cfr. o parágrafo 553. Cfr. o parágrafo 290.
[143]
fanúlias, devem ter sido os sábios nos ausp1c1os divinos, os sacerdotes que sacrificavam para os procurar, ou seja, para bem os compreender, 185 e os reis que levavam as leis divinas 186 às suas fanúlias. 187
LXXIII (251] É tradição vulgar que os primeiros que governaram o mundo foram reis. 188
LXXIV (252] É outra tradição vulgar que os primeiros reis eram eleitos por natureza 189 os mais dignos. 190
LXXV (253] É ainda tradição vulgar que os primeiros reis foram sábios, pelo que Platão 19 1 desejava com voto vão estes antiquíssimos tempos em que reinavam os filósofos e filosofavam os re1s. (254] Todas estas dignidades demonstram que nas pessoas dos primeiros pais andaram unidas sabedoria, sacerdócio e 185 Mais que acerca dos auspícios, •procurar» dizia-se dos sacrifícios, e no significado de os celebrar. 186 As vontades divinas manifestadas através dos auspícios. 187 Nesta dignidade, Vico generaliza e amplifica as informações exibidas por H o MERO, Od., IX, 106 e seg. , e, por fim, alcança PLATÃO, Leis, p. 680 d e ARISTÓTELES, Política, p. 1252 b 22. 188 Cfr., entre muitos, PLATÃO, Leis, p. 928; ARisTÓTELES, loc. cit. 189 Por nascimento. 190 Mas não por nascimento, antes por benefícios prestados ao Estado. Cfr. ARisTÓTELES, Política, loc. cit. e p. 1285 b 3 e seg.; ainda MAC HIAVELLI, Discorsi, I, 2. 19 1 República, p. 473 c-d, onde se diz uma coisa bastante diferente.
[144]
reino, e que o reino e o sacerdócio eram dependências da sabedoria, não já a secreta dos filósofos, mas a vulgar dos legisladores. 192 E por isso, depois, em todas as nações se coroavam os sacerdotes. LXXVI [255] É tradição vulgar que a primeira forma de governo no mundo terá sido a monárquica. 193 LXXVII [256] Mas a dignidade sexagésima sétima, com as outras seguintes e, em particular, com o corolário da sexagésima nona, 194 indica-nos que os pais, no estado das fanúlias, devem ter exercido um império monárquico, somente a Deus sujeito, tanto sobre as pessoas como sobre os aquistos dos seus filhos e muito mais dos fâmulos que se tinham refugiado nas suas terras; e assim é que eles foram os primeiros monarcas do mundo, acerca dos quais há que compreender a história sagrada, quando lhes chama «patriarcas», isto é, «pais príncipes». Direito monárquico esse que lhes foi conservado pela lei das XII Tábuas, durante todos os tempos da república romana: «Patrifamilias ius vitae et necis in líberos esto»; 195 de que é consequência: «Quicquid filius acquirit, patri acquirit. »196
192
Cfr. o parágrafo 250. Cfr. o parágrafo 251. 194 Pelo contrário, com o primeiro das duas da LVIII. 195 •O pai de família terá o direito de vida e de morte sobre os filhos.• Vico dá em forma codificada e em latim aquilo que DIONÍ SIO DE HALICARNASSO , II, 26-27, refere em grego sobre uma lei atribuída a Rómulo. 196 Refazimento operado por Vico de um brocardo de Ulpiano (cfr. Dig., XLI, 2, 4), que em português soaria assim: •Toda a coisa adquirida pelo filho de família, torna-se propriedade do pai.• 193
[145]
LXXVIII
[257] As fanúlias não podem ter sido denominadas, com propriedade, considerando a origem, de outro modo senão a partir destes fàmulos dos pais, no estado de natureza de então. 197 LXXXIX
[258] Os primeiros associados, que propriamente são companheiros com o fim de transmitirem entre si a utilidade, não podem ser imaginados nem compreendidos no mundo antes destes refugiados, para terem a vida salva pelos primeiros pais já mencionados, por eles recebidos para conservarem a sua vida e obrigados a sustentá-la com o cultivar dos campos desses pais. 198 [259] Comprova-se serem esses os verdadeiros associados dos heróis, que depois foram os plebeus das cidades heróicas e, finalmente, as províncias dos povos principais. 199 LXXX
[260] Os homens chegam naturalmente ao direito dos benefícios, quando percebem como reter ou retirar boa e grande parte da utilidade, que são os benefícios que se podem esperar na vida civil. LXXXI
[261] É propriedade dos fortes não relaxar por indolência os aquistos feitos com virtude, mas, por necessidade ou por
197 198 199
Cfr. os parágrafos 552 e 555. Cfr. o parágrafo 555. Alusão aos reges socii do povo romano.
[146]
utilidade, cedê-los pouco a pouco e o menos que lhes for possível. [262) Destas duas dignidades brotam as nascentes perenes dos feudos , que se designam com elegância romana por «beneficia». 200 LXXXII [263) Todas as nações antigas se comprovam cheias de clientes e de clientelas, 201 que já não se podem compreender convenientemente senão como vassalos e como feudos, nem entre os feudistas eruditos 202 se comprovam palavras romanas mais convenientes para os explicar senão «clientes» e «clientelae». [264) Estas três últimas dignidades, com as doze precedentes, começando da septuagésima, 203 revelam-nos os princípios das repúblicas, nascidas de uma qualquer grande necessidade (que adiante 204 se determina) dos pais de família provocada pelos fâmulos, pela qual vieram por si mesmas naturalmente a tornar formas aristocráticas. Porquanto os pais se uniram em ordens, de modo a resistirem aos fâmulos amotinados contra eles; e, assim unidos, para contentar esses fâmulos e sujeitá-los à obediência, concederam-lhes uma espécie de feudos rústicos; e esses viram os seus soberanos impérios familiares (que não se podem compreender senão com base no direito de feudos nobres) submetidos ao império soberano civil das suas próprias ordens reinantes; e os chefes das ordens
200
Cfi:. o parágrafo 559. Cfi:. os parágrafos 556-557. 202 Cfr., entre outros, G u iLLAUME Opera (Basileia, 1557), III, 270. 203 Em vez disso, da LXVIII . 204 Nos parágrafos 582 e seg. 201
B uDÉ,
[147]
Annotationes i~1 Pandectas, in
foram chamados «reis)), os quais, mais animosos, devem ter-lhes servido de chefes contra as revoltas dos fàmulos. Essa origem das cidades, ainda que fosse dada como hipótese (o que adiante se comprova, de facto), por sua natureza e simplicidade e pelo infinito número dos efeitos civis que acima, como à sua própria causa, a regem, deve tornar necessário ser tornada como verdadeira. Porque não se pode de outro modo no mundo compreender como das potestades familiares se formou a potestade civil e dos patrimónios privados o património público, e como se encontrou preparada a matéria para as repúblicas a partir de uma ordem de poucos que nelas comandem e da multidão dos plebeus que nelas obedeça: que são as duas partes que compõem o assunto da política. Geração dos Estados civis que se demonstrará adiante 205 ter sido impossível com as famílias apenas de filhos.
LXXXIII [265] Esta lei acerca dos campos206 constitui-se como a primeira lei agrária do mundo; nem por natureza se pode imaginar ou compreender uma outra que possa ser mais restrita. [266] Esta ei agrária distingue os três domínios, que possam existir na natureza civil, para três espécies de pessoas: o bonitário, 207 para os plebeus; o quiritário, 208 conservado pelas armas e, consequentemente, nobre, para os pais; e o eminente, 209 para essa ordem que é a Senhoria, ou seJa, a soberana potestade, nas repúblicas aristocráticas.
205
206 207 208 209
Nos parágrafos 553 e seg. A primeira concessão de terras feita pelos heróis aos fàmulos. A «bonorum possessio» do direito romano. O «domi~Jium ex iure quiritium». Cfr. os parágrafos 107 e 109. A soberania do Estado.
[148]
LXXXIV (267] É um trecho de ouro de Aristóteles, nos Livros políticos, aquele onde, na divisão das repúblicas, enumera os reinos heróicos, nos quais os reis ministravam em casa as leis, fora administravam as guerras e eram chefes da religião.210 (268] Esta dignidade incide toda a nível dos dois reinos heróicos de Teseu e de Rómulo, como sobre este se pode observar em Plutarco, na sua Vita / 11 e sobre aquele na história romana, ao substituir a história grega pela romana, onde Túlio Hostilio ministra a lei na acusação de Horácio. 212 E os reis romanos eram ainda reis das coisas sagradas, designados «reges sacrorum»; pelo que, expulsos os reis de Roma, para garantir as cerimónias divinas, elegiam um que se chamasse «rex sacrorum», que era o chefe dos feciais, 213 ou seja, dos arautos. LXXXV (269] É também um passo de ouro de Aristóteles, nos mesmos livros, aquele em que refere que as antigas repúblicas não possuíam leis para punir as ofensas e emendar os agravos privados; e diz ser esse costume dos povos bárbaros, porque os povos, desse modo, são bárbaros nos seus começos, porque não estão ainda domesticados pelas leis. 214
21 ° Contaminação de ARISTÓTELES, PoUtica, p. 128 b 9, com DIODORO, I, 13 e com J usTINO, I, I. 2 11 N a Vida de Rómt~lo, passim , e no correlativo Paralelo entre Teset1 e Rómt~lo, 25, onde, aliás, se diz outra coisa. 212 Cfr. o parágrafo SOO. 213 Presididas, em vez disso, pelo magister fetialitlm . 214 Contaminação de erradas reminiscências de três passos da PoUtica: pp. 1268 b 39-40, 1269 a 11- 12, 1374 b 7 e seg.
[149]
[270] Esta dignidade demonstra a necessidade dos duelos e das represálias nos tempos bárbaros, porque nesses tempos faltam as leis judiciárias. 2 15
LXXXVI [271] É também de ouro aquele passo, nos mesmos livros
de Aristóteles,2 1ó onde diz que nas antigas repúblicas 2 17 os nobres juravam ser eternos inimigos da plebe. [272] Esta dignidade explica-nos a causa dos soberbos, avaros e cruéis ·Costumes dos nobres contra os plebeus, que claramente se lêem na história romana antiga: pois, dentro dessa liberdade popular até agora sonhada, muito tempo forçaram os plebeus a servi-los a expensas próprias nas guerras, afogavam-nos num mar de usuras, tal que não podendo depois aqueles infelizes satisfazê-las, os mantinham fechados toda a vida nas suas prisões privadas, para lhes pagarem com trabalhos e fadigas e, assim, de maneira tirânica, batiam-lhes nas costas nuas com as vergas, como a vilissimos escravos. 2 18
LXXXVII [273] As repúblicas aristocráticas preservam-se bastante de entrar em guerras para não aguerrir a multidão dos plebeus.219 l274] Esta dignidade é o princípio da justiça das armas romanas até às guerras cartaginesas.
2 15
Cfr. os parágrafos 959-964. Pag. 1310 a 8. 2 17 Aristóteles, aliás, alude somente a algumas oligarquias dos seus tempos. 2 18 Cfr. o parágrafo 668. 2 19 Cfr. o pacigrafo 1024. 2 16
[150]
LXXXVIII [275) As repúblicas aristocratlcas conservam as riquezas no interior da ordem dos nobres, porque contribuem para o poder dessa ordem. 220 [276) Esta dignidade é o princípio da clemência romana nas vitórias, pois tiravam aos vencidos apenas as armas e, sob a lei de tributo comportável, libertavam totalmente o donúnio bonitário. Essa é a razão por que os pais resistiram sempre às leis agrárias dos Gracos: porque não queriam enriquecer a plebe.
LXXXIX [277) A honra é o mais nobre estímulo do valor militar.
XC [278] Os povos devem comportar-se heroicamente na guerra, exercitam-se em competições de honras entre si na paz, uns para as conservarem, outros para se darem o mérito de consegui-las. [279] Esta dignidade é um princípio do heroísmo romano desde a expulsão dos tiranos até às guerras cartaginesas, tempo durante o qual os nobres naturalmente se consagravam à salvação da sua pátria, com a qual tinham salvo todas as honras civis dentro da sua ordem, e os plebeus cometiam empresas muito assinaláveis para provarem ser merecedores das honras dos nobres. 22 1
° Cfr. MAC HlAVELLI,
22
221
Discorsi, I, 37. Cfr. o parágrafo 668.
[151]
XCI
(280] As competições para se igualarem com justiça, que as ordens exercitam nas cidades, são o meio mais poderoso para engrandecer as repúblicas. (281] Este é outro princípio do heroísmo romano, assistido por três virtudes públicas: pela magnanimidade da plebe de querer que os direitos civis lhes fossem transmitidos com as leis dos pais; pela fortaleza dos pais que as conservaram no interior da sua ordem; e pela sabedoria dos jurisconsultos em interpretá-las e dirigir ponto por ponto a utilidade delas para os novos casos que requeriam o direito. São essas as três causas próprias pelas quais se distingue no mundo a jurisprudência romana.222 (282] To~ estas dignidades, começando da octogésima quarta, expõem no seu justo aspecto a história romana antiga: as três seguintes aplicam-se-lhe em parte. XCII
(283] Os fracos querem as leis; os poderosos recusam-nas; os ambiciosos, para formarem séquito, promovem-nas; os príncipes, para igualarem os poderosos com os fracos, protegem-nas.223 (284] Esta dignidade, na primeira e segunda partes, é o facho das contendas heróicas nas repúblicas aristocráticas, nas quais os nobres pretendem todas as leis na ordem arcana, para que dependam do seu arbítrio e as ministrem com a mão régia: que são as três causas que nos apresenta o jurisconsulto
222
223
Cfr. os pa.-rágrafos 999- 1003 e 1444. Cfr. os parágrafos 952-953, 999-1003.
[152]
Pompónio, 224 quando refere que a plebe romana deseja a lei das XII Tábuas, com aquele mote de que lhe eram graves «ius latens, incertum et manus regia)). 225 E esta é a causa da relutância que mantinham os pais em as conceder, dizendo «mores patrios servandos, leges Jerri non oportere)) / 26 como refere Dionísio de Halicarnasso, que estava melhor informado do que Tito Lívio acerca das coisas romanas (porque as escreveu instruído pelas notícias de Marco Terêncio Varrão, o qual foi aclamado «o mais douto dos romanos))), e nesta circunstância é diametralmente oposto a Lívio, que refere acerca disso: que os nobres, para citar as suas palavras, «desideria plebis non aspernari)). 227 Pelo que, em virtude desta contrariedade228 e outras maiores observadas nos Prinápios do Direito Universal, sendo tão opostos entre si os primeiros autores que, perto de quinhentos anos depois, escreveram sobre essa fabula, melhor será não acreditar em nenhum dos dois. Tanto mais que, nesses mesmos tempos, não acreditaram nela: nem esse Varrão, o qual na grande obra Rerum divinarum et humanarum atribui a todas as coisas divinas e humanas desses Romanos origens todas nascidas no Lácio; nem Cícero, que em presença de Quinto Múcio Cévola, príncipe dos jurisconsultos da sua idade, faz dizer ao orador Marco Crasso que a sabedoria dos decênviros superava grandemente aquela de Drácon e de Sólon, que deram as leis aos Atenienses, e aquela de Licurgo, que as deu aos Espartanos o que é o mesmo que dizer que a lei das XII Tábuas não tinha vindo nem de Esparta nem de Atenas para Roma.
224
O pseudo Pompónio. Cfi:. Dig., I, 2, 2, §§ I, 3 e 6. •Direito oculto, incerto e arbítrio do rei.• 226 •Que era preciso conservar os costumes pátrios, sem qualquer necessidade de publicar leis.• 227 «Não eram alheios a anuir aos desejos da plebe.» 228 Contradições. 225
[153]
E acreditamos acrescentar isto à verdade: que não foi por outro motivo que Cícero fez intervir Quinto Múcio apenas naquele primeiro dia, para que - sendo aquela fabula, no seu tempo, muito acolhida entre os literatos, nascida da presunção dos doutos de atribuir origens sapientíssimas ao saber que eles professavam (o que se percebe daquelas palavras que o mesmo Crasso disse: «Fremant omnes: dicam quod sentio229 ))) - não lhe pudessem objectar que um orador falasse da história do direito romano, saber que devia pertencer aos jurisconsultos (estando então estas duas profissões entre eles divididas); [pelo que], se Crasso tivesse falado erradamente acerca disso, Múcio tê-lo-ia certamente censurado, tal como, segundo a referência de Pompónio, censurou Sérvio Sulpício, que interveio nestas mesmas reflexões, dizendo-lhe «turpe esse patrício viro ius, in quo versaretur, ignorare>>.230 (285] Mas, mais do que Cícero e Varrão, um argumento imbatível para ão acreditar nem em Dionísio nem em Lívio, dá-nos Políbio, que, sem dúvida, soube mais de política do que estes dois e nasceu uns duzentos anos mais próximo dos decênviros do que aqueles dois. Ele (no livro sexto, no quarto número e em vários seguintes, 231 da edição de Giacomo Gronovio) dedica-se a contemplar resolutamente a constituição das repúblicas livres mais famosas dos seus tempos, e observa ser a romana diferente das de Atenas e de Esparta e, mais que de Esparta, sê-lo da de Atenas, da qual, mais do que de Esparta, os que comparavam o direito ático com o romano pretendem terem provindo as leis para organizar a liberdade popular já
229
«Tremam todos: direi aquilo que penso.» «É coisa ir_digna de um patrício ignorar o direito no qual deveria ser versado. » Sobre tudo isto, pois, cfr. os parágrafos 1433-1439. 231 Pelo contrário, no sexto capítulo do livro quarto, onde, aliás, se diz uma coisa bastant diferente. 230
[154]
antes fundada por Bruto. Pelo contrário, observa semelhantes entre si a romana e a cartaginesa, que ninguém jamais sonhou ter sido organizada livre com as leis da Grécia; o que é tão verdadeiro que, em Cartago, existia urna lei expressa que proibia aos Cartagineses conhecerem as letras gregas. 232 E um escritor sapientíssirno sobre repúblicas não faz sobre isto esta tão natural e tão óbvia reflexão, e não investiga a causa dessa diferença: - As repúblicas romana e ateniense, diferentes, organizadas com as mesmas leis; e as repúblicas romana e cartaginesa, símiles, organizadas com leis diferentes? - Portanto, para absolvê-lo de negligência tão dissoluta, é necessário dizer-se que, na idade de Políbio, não tinha ainda nascido em Roma esta fabula das leis gregas, vindas de Atenas para ali organizar o governo popular livre. [286] Esta mesma dignidade, pela terceira parte, abre o caminho aos ambiciosos nas repúblicas populares para se conduzirem à monarquia, ao secundarem esse desejo natural da plebe que, não entendendo de universais, quer uma lei para cada particular. Pelo que Sila, chefe da facção da nobreza, vencido Mário, chefe da facção da plebe, reorganizando o Estado popular com um governo aristocrático, remediou a multidão das leis com as «questões perpétuas». 233 [287] E esta mesma dignidade, na sua última parte, é a razão arcana por que, começando a partir de Augusto, os príncipes romanos fizeram inumeráveis leis de direito privado, e porque os soberanos e as potências da Europa, em toda a parte, nos seus Estados reais e nas repúblicas livres, acolheram o Corpo do direito dvil romano e aquele do direito canónico.234
232 233
234
Proibição, de facto, temporária. Que eram, aliás, cortes judiciárias permanentes para certos delitos. Cfr. os parágrafos 1001 e 1002.
[155]
XCIII [288] Uma vez que, nas repúblicas populares, a porta das honras se abriu totalmente com as leis à multidão avara que aí ordena, nada mais resta na paz senão combater pelo poder, não já com as leis, mas com as armas, e através desse poder ordenar as leis para enriquecer, como sucedeu em Roma com as agrárias dos Graucos; donde resultaram, ao mesmo tempo, guerras civis em casa e injustas fora. 235 [289] Esta dignidade, pelo seu contrário, confirma o heroísmo romano durante todo o tempo anterior aos Gracos. XCIV [290] A liberdade natural é tanto mais feroz quanto mais os bens estão ligados aos próprios corpos, e a servidão civil estorva-se com os bens de fortuna não necessários à vida. 236 [291] Esta dignidade, pela primeira parte, é outro princípio do heroísmo natural dos primeiros povos; pela segunda, é ela o princípio natural das monarquias. 237 XCV [292) Os homens, primeiro, gostam de sair da sujeição e desejam a igualdade: eis as plebes nas repúblicas aristocráticas, que finalmente se transformam em populares; depois, esforçam-se para superar os iguais: eis as plebes nas repúblicas populares, corrompidas em repúblicas de poderosos; finalmente, querem
235
Cfr. MAcHJAVEUI, Discorsi, I, 37, e, aqui mais adiante, o parágrafo
1008. 236
Cfr. o parágrafo 690. m Cfr. os parágrafos 666 e seg. e 1007-1008.
[156]
colocar-se ao abrigo das leis: e1s as anarquias, ou repúblicas populares desregradas, com as quais não se podem produzir piores tiranias, onde são tantos os tiranos quantos os audazes e dissolutos das cidades. E ali, as plebes, dando-se conta dos seus próprios males, para encontrarem remédio para eles, procuram salvar-se sob o governo das monarquias; que é a lei régia natural238 com a qual Tácito 239 legitima a monarquia romana sob o governo de Augusto, «qui cuncta, bellis dvilibus Jessa, nomine "principis" sub imperium accepit». 240 XCVI [293] Desde a nativa liberdade fora-da-lei 241 , quando se criaram as primeiras cidades com base nas familias, os nobres foram avessos tanto a freios como a obrigações: eis as repúblicas aristocráticas, nas quais os nobres são os senhores; depois, desde o aumento dos plebeus em grande número e aguerridos, foram levados a suportar tanto as leis como as obrigações em igualdade com os seus plebeus: eis os nobres nas repúblicas populares; finalmente, para poderem preservar a sua vida cómoda, inclinaram-se naturalmente à sujeição a um só: eis os nobres sob as monarquias. 242 [294] Estas duas dignidades, com as outras anteriores, começando da sexagésima sexta, são os princípios da história ideal eterna que acima se referiu .243
238
Cfr. os parágrafos 1007-1008 e 1455-1472. Ann. , I , I. 240 •O qual, com o título de "príncipe", recebeu sob o seu império todas as coisas devastadas pelas guerras civis.'' 241 Desde o errar ferino. 242 Cfr. os parágrafos 582 e seg., 925-927, 1008. 243 N os parágrafos 145, 245, etc. 239
[157]
XCVII [295] Conceda-se o que não ofende a razão, conjecturando que, após o dilúvio, os homens primeiro habitaram no cimo dos montes, algum tempo depois desceram às plarúcies, muito tempo depois, finalmente, convenceram-se a seguir para as praias do mar.
XCVIII [296] Após Estrabão, 244 existe um trecho de ouro de Platão 245 que diz terem os homens, depois dos particulares dilúvios de Ógiges e de Deucalião, habitado nas grutas dos montes, e reconhece-os nos Polifemos, nos quais, noutro lugar, reencontra os primeiros pais de fanúlia do mundo; depois, nas faldas, e adverte-os em Dárdano, que edificou Pérgamo, que se tornou depois no rochedo de Tróia; finalmente, nas plarúcies, e divisa-os em llo, pelo qual Tróia foi levada para o plano junto ao mar e foi chamada Ílio.
XCIX [297] É também tradição antiga que Tiro foi primeiro fundada terra dentro, e depois levada para a praia do mar Fenício; como é história certa ter sido dali passada para uma ilha lá perto, logo unida por Alexandre Magno ao seu continente. 246 [298] O antecedente postulado e as duas dignidades que o seguem247 revelam que primeiro se fundaram as nações
244
XIII, I, 25. Leis, pp. 677-684. 246 Interpretação erada do que é dito a esse respeito por Samuel BocHART, Phaleg e: Chanaan, edição citada, col. 776, e por Claudio Quinto Cúrcio Rufo, nos seus livros Hístoríarum Alexandrí Mag~li, Iv, 2. 247 Isto é os parágrafos 295-297. 245
[158]
mediterrânicas, depois as marítimas. E dão-nos um grande argumento que demonstra a antiquidade do povo hebreu, que foi fundado 248 por Noé na Mesopotâmia,249 que é a terra mais mediterrânica250 do primeiro mundo habitável, e foi a mais antiga de todas as nações. O que é confirmado porque aí se fundou a primeira monarquia, que foi aquela dos Assírios, sobre a gente caldeia, 251 da qual tinham surgido os primeiros sábios do mundo, dos quais Zoroastro foi príncipe.
c [299] Os homens não se decidem a abandonar completamente as próprias terras, que são naturalmente caras aos nativos, senão por extrema necessidade da vida; ou a deixá-las para sempre, senão pela sofreguidão de enriquecer com os tráficos, ou pelo ciúme de conservar as aquisições. [300] Esta dignidade é o princípio das transmigrações dos povos, feitas com as colónias heróicas marítimas, 252 com as invasões dos bárbaros (sobre as quais escreveu apenas Wolfgang Latius 253 ) , com as últimas colónias romanas conhecidas254 e com as colónias dos europeus nas Índias.
248
Se fixou . Em vez disso, «in mo~Jtibus Armeniae», segundo o Génesis, VIII, 4. 250 No interior de terras. Em vez disso, o nome «Mesopotâmia» derivou de estar situada entre os dois rios Tigre e Eufrates. 25 1 Nativa, em vez disso, da Babilónia. 252 Segundo o nosso autor, aquelas que cada povo, durante o seu período heróico, fundou no ultramar. 253 Wolfgang Latius (1514-1565), médico e historiador do imperador Fernando I, além de autor do De aliquot gmtium migra tio~Jibus, sedibus .fixis, reliquiis, lhrguarumque initiis et imitationibus et dialectis (Basileia, 1557; ibidem, 1572; Frankfurt, 1600). 254 Cfr. o parágrafo 595 . 249
[159]
(301] E esta mesma dignidade demonstra-nos que as raças perdidas dos três filhos de Noé devem ter andado num errar bestial, porque, ao fugirem das feras (que deviam abundar sobejamente na grande selva da terra) e ao perseguirem as mulheres esquivas e relutantes (que em tal estado selvagem deviam ser sumamente relutantes e esquivas) e, depois, para procurarem alimento e água, deviam encontrar-se dispersos por toda a terra, no tempo em que o céu, depois do dilúvio, pela primeira vez relampejou: pelo que toda a nação gentia começou a partir de um seu Júpiter. Porque, se tivessem perdurado na humanidade, como o povo de Deus nela perdurou, ter-se-iam, como aquele, retido 255 na Ásia, pois, tanto pela vastidão daquela grande parte do mundo, como pela escassez de homens de então, não tinham nenhuma causa necessária para a abandonar, dado que não é costume natural que se abandonem os países natais por capricho. 256
CI (302] Os Fenícios foram os pnmerros navegadores do mundo antigo. 257
CII (303] As nações, na sua barbárie, são irnpenetráveis,258 de modo que, ou se devem invadir de fora com as guerras, ou abrir-se desde dentro espontaneamente aos estrangeiros por causa da utilidade dos comércios. Como Psamético abriu o
255 256 257 258
Detido, fixado. Cfr. o parágrafo 369. Cfr. os parágrafos 57 e 727. Cfr. os parágrafos 94-95.
[160]
Egipto aos Gregos da Jónia e da Cária,259 que, depois dos Fenícios, devem ter sido célebres na negociação marítima; pelo que, devido às grandes riquezas, se fundou na Jónia260 o templo de Juno sâmia e se ergueu na Cária o mausoléu de Artemisa, que foram duas das sete maravilhas do mundo: negociação essa cuja glória sobrou para os de Rodes, na barra de cujo porto ergueram o grande colosso do Sol, que entrou no número das referidas maravilhas. Assim os Clúneses, devido à utilidade dos comércios, têm aberto ultimamente a China aos nossos europeus. 261 [304] Estas três dignidades dão-nos o prinClplO de uma outra etimologia das palavras de segura origem estrangeira, diferente daquele acima referido das palavras nativas.Z62 Pode dar-nos igualmente a história das nações que, umas após as outras, se transferiram com colónias para terras estrangeiras: como N ápoles se designou primeiro Sirena,263 com a palavra siríaca264 - que é prova de que os Sírios, ou seja, os Fenícios, teriam para aí levado, antes de todos, urna colónia, por causa das trocas comerciais -; depois, designou-se Parténope, com a palavra heróica grega; e, finalmente, com a língua grega vulgar, designou-se Nápoles - que são provas de que aí teriam passado depois os Gregos, para abrirem sociedades de negócios - : donde devia resultar urna língua mesclada de fenícia e de grega, com a qual, mais do que com a grega pura, se diz ter-
259
Cfr. o parágrafo 90. Em vez disso, na ilha de Samos. 261 Cfr. os Nouvea ux rnémoires sur l'état présent de la Chine do jesuíta Lou ts D AVID L ECOMTE, de Bordeaux (1665-1728), edição de Paris, 1701 , II, 63 e 74. 262 Veja-se, acima, o parágrafo 162. 263 Não foi jamais assim chamada. 264 N os tempos do nosso autor, era costume fazer-se derivar «syrerLa» de «schir». 260
[161]
-se deleitado o imperador Tibério.265 Precisamente como nas praias de Tarento existiu uma colónia siríaca chamada Siri, e cujos habitantes ram designados «siritas», e depois foi designada pelos gregos Políeo,266 e foi chamada Minerva «políade», 267 porque ali possoia um templo seu. [305] Esta dignidade dá-nos igualmente os princípios de ciência para o argumento sobre o qual escreve Giambullari:268 que a língua toscana seja de origem siríaca. A qual não pode provir senão dos mais antigos Ferúcios, que foram os primeiros navegadores do mundo antigo, como pouco acima tínhamos proposto numa dignidade; porque, depois, essa glória pertenceu aos Gregos da Cária e da Jónia, e sobrou por último para os de Rodes.269
CIII [306] Pergunta-se aquilo que é necessano admitir: que tivesse sido estabelecida na praia do Lácio alguma colónia grega, que depois, vencida e destr ída pelos Romanos, tivesse ficado sepultada nas trevas da antiquidade. 270 [307] Se não se admite isto, quem quer que reflicta e conclua acerca da antiquidade, fica estupefacto com a história romana, quando refere Hércules, Evandro, Arcádios, Frígios
265
Contamina?o de imprecisas reminiscências das informações dadas por SUETÓNIO (Tib, 71) e por C ÁSSIO D ioN (LVII, 15) sobre a nenhuma simpatia do taciturno imperador pela língua grega, com o facto da sua predilecção por C;;.pri e, portanto, pela região napolitana. 266 Cfr. EsT!WlÃO, IV, I, 4. 267 N ão «políade», mas •ilíaca». 268 N as Origini de/la lingua italiana, altrimente i/ Gel/o (Florença, 1549). 269 Cfr. o pacigrafo 302. 2 7Q Cfr. os pacigrafos 763 e 772.
[162]
no interior do Lácio, ser Sérvio Túlio grego, Tarquínio Prisco filho do coríntio Demarato, Eneias fundador da gente romana.27 1 Certamente observa Tácito serem as letras latinas semelhantes às gregas antigas, 272 quando nos tempos de Sérvio Túlio, na opinião de Lívio, não puderam os Romanos nem sequer ouvir o famoso nome de Pitágoras, que ensinava na sua celebérrima escola em Crotona, e não começaram a tomar conhecimento com os Gregos de Itália senão por ocasião da guerra de Tarento, que levou em seguida àquela de Pirro com os Gregos de ultramar. 273 CIV [308] É um dito digno de consideração aquele de Díon Cássio: 274 que o costume é semelhante ao rei e a lei ao tirano; que se deve entender acerca do costume racional e da lei não animada pelo direito natural. [309] Esta dignidade, a partir dos efeitos, define igualmente a grande disputa:275 «se existirá direito natural ou residirá ele na opinião dos homens)), que é a mesma que a proposta no corolário da oitava: «se a natureza humana será sociável)). Porque, tendo o direito natural das gentes 276 sido ordenado a partir do costume (que Díon diz governar como rei, por prazer), não ordenado por lei (que Díon diz governar como tirano, pela força), porquanto ele nasceu com esses costumes humanos
271
Cfr. os parágrafos 761-768 e 770-773. Cfr. o parágrafo 550. 273 Cfr. os parágrafos 93 e 116. 274 Em vez dele, de Díon Crisóstomo. Cfr. BootN, De la république, ed. de Lion, 1597, p. 222, de que Vico, errando e ampliando-a, retirou a citação. 275 Cfr. o parágrafo 135. 276 No significado particular de direito consuetudinário, surgido espontaneamente e de modo uniforme em todas as nações. 272
[163]
surgidos da natureza comum das nações (que é o assunto próprio desta Ciência), e tal direito conserva a sociedade humana; nem existindo coisa mais natural (porque não existe coisa que mais agrade) do que celebrar os costumes naturais: por tudo isto, a natureza humana, da qual surgiram tais costumes, é ela sociável. (310] Esta mesma dignidade, com a oitava e o seu corolário, demonstra que o homem não é absolutamente injusto por natureza, mas por natureza caída e fraca. E, consequentemente, demonstra o primeiro princípio da religião cristã, que é Adão inteiro,277 tal como deve ter sido criado na ideia perfeita de Deus. E assim demonstra os princípios católicos da graça: que ela opere no homem que tenha a privação, não a negação, das boas obras, e tenha assim urna potência ineficaz e, por isso, seja eficaz a graça; que, por isso, não pode existir sem o princípio do livre-arbítrio, que é naturalmente ajudado por Deus com a sua providência (como acima se disse, 278 no segundo corolário da mesma oitava dignidade) , acerca da qual concorda a cristã com todas as outras religiões.279 Princípio sobre o qual Grócio, Selden e Pufendorf deviam, antes de mais nada, fundar os seus sistemas e concordar com os jurisconsultos romanos, que definem ter sido o direito natural das gentes ordenado pela divina providência.280
m Antes do p::cado. No parágrafo 136. 279 Cfr. Vico, :ritti AHtobiografici, II, e a sua referência ao jesuíta francês Stéphane Deschamps (1613-1701) que, b o pseudónimo de Antonius Richardus tinha publicado wna Disputatio de libero arbítrio (1645) e o De haeresi ianseniana ab apostolica Sede proscrita (1654). Mas à sua interpretação wn tanto forçada do pensamento de Deschamps, Vico chegará somente no De antiquíssima (1710), ou melhor, de wna forma plena, no Diritto universale (1720). 280 Cfr. o parágrafo 342. 278
[164]
[311] O direito natural das gentes 28 1 surgiu com os costumes das nações, conformes entre si por um senso comum humano,282 sem qualquer reflexão e sem tomar o exemplo urna de outra. [312] Esta dignidade, com o dito de Díon referido na antecedente, estabelece ser a providência a ordenadora do direito natural das gentes, porque ela é a rainha dos assuntos dos homens. 283 [313] Esta mesma estabelece a diferença entre o direito natural dos Hebreus/ 84 o direito natural das gentes 285 e o direito natural dos filósofos .286 Porque as gentes tiveram apenas as ajudas ordinárias da providência; os Hebreus tiveram ainda ajudas extraordinárias do verdadeiro Deus, pelo que todo o mundo das nações era por eles dividido entre Hebreus e gentes; e os filósofos pensam-no mais perfeito que aquilo que costumam as gentes, eles que não chegaram senão uns dois mil anos depois de fundadas as gentes 287 • Por todas estas três diferenças não observadas, devem cair os três sistemas de Grócio, de Selden e de Pufendorf. CVI [314] As doutrinas devem começar desde quando começam as matérias de que tratam.
281
282 283 284 285
286 287
Aqui, no significado de «Vida ético-política». Cfi:. os parágrafos 142 e 145. Cfi:. os parágrafos 308, 309 e 341 e seg. Cfi:. o parágrafo 396. No significado de direito consuetudinário dos povos gentios. O jusnaturalismo. Cfi:. o parágrafo 52.
[165]
(315] Esta dignidade, aplicada aqui para a matéria particular do direito natural das gentes, 288 é universalmente usada em todas as matérias de que aqui se trata; pelo que devia ser apresentada entre as dignidades gerais: 289 mas, foi colocada aqui, porque nesta, mais do que em qualquer outra matéria particular, demonstra a sua verdade e a importância da sua utilização. CVII (316] As gentes começaram antes das cidades, e são aquelas que foram pelos Latinos chamadas «gentes maiores>>, ou seja, casas nobres antigas, como aquelas dos pais com que Rómulo formou o senado e, com o senado, a cidade romana: como, pelo contrário, ~e chamaram «gentes minores» às casas nobres novas 290 fundadas depois das cidades, como foram as dos pais com que Júnio Bruto, expulsos os reis, preencheu o senado, quase extinto devido às mortes dos senadores feitos morrer por Tarquínio, o Soberbo.
C VIII (317] Esta foi a divisão dos deuses: entre aqueles das gentes maiores, ou seja, deuses consagrados pelas famílias anteriormente às cidades, - os quais, entre os Gregos e os Latinos certamente (e aqui se provará que também entre os primeiros Assírios, ou seja, Caldeus, Fenícios, Egípcios) foram doze (cujo número foi tão famoso entre os Gregos que o compreendiam
288
Embora tendo sempre o significado de «direito consuetudinário comum a todos os povos gentios» (cfr. o parágrafo 313), a frase começa a adquirir aquele, mais particular, de direito peculiar àquelas gentes maiores, que o Autor encontra exactamente no princípio de cada povo gentio. 289 Entre as primeiras vinte e duas. 290 Não nobres , segundo a tradição, mas plebeias. Cfr. não apenas Lívio, II, I, mas também aqui, mais adiante, o parágrafo 664.
[166]
apenas com a palavra ÔroÔEXa.29 1), e estão confusamente reunidos num dístico latino 292 referido nos Prindpios do Direito Universaf9 3 ; os quais aqui, porém, no segundo livro, com uma teogonia natural, ou seja, geração dos deuses naturalmente elaborada nas mentes dos Gregos, surgiram assim ordenados: Júpiter, Juno; Diana, Apolo; Vulcano, Saturno, Vesta; Marte, Vénus; Minerva, Mercúrio; Neptuno; - e os deuses das gentes menores/ 94 ou seja, deuses consagrados pelos povos, como Rómulo, a quem, morto, o povo romano chamou deus Quirino. [318] Por estas três dignidades, os três sistemas de Grócio, de Selden, de Pufendorf falham nos seus princípios, pois começam a partir das nações consideradas entre si na sociedade de todo o género humano, o que, em todas as primeiras nações, como será aqui demonstrado, começou a partir do tempo das famílias , sob os deuses das gentes chamadas «maiores».
CIX [319] Os homens de ideias curtas consideram direito o quanto se explicou com as palavras. 295
ex [320] É áurea a definição que Ulpiano estabelece296 da equidade civil: que ela é «probabilis quaedam ratio, non omnibus hominibus naturaliter cognita (como é a equidade natural297 ), sed 29 1
Em vez disso, oi ÔÕExa 9eoí chamavam os atenienses aos doze deuses olímpicos, ou «consentes». 292 Mais exactamente, em três versos de Lucíuo. 293 Cfr. , também aqui em seguida, o parágrafo 448. 294 Aqueles que se acreditava que tivessem ascendido da terra ao céu. 295 Cfr. o parágrafo 938. 296 Não Ulpiano, mas sabe-se lá que tratadista ou jusnaturalista moderno. 297 Cfr. o parágrafo 951.
[167]
paucis tantum, qui, prudentia, usu, doctrina praediti, didicerunt quae ad societatis humanae conservationem sunt necessaria». 298 A qual se chama em bom italiano «ragione di Stato».299 CXI [321] O certo das leis é urna obscuridade do direito unicamente sustentada pela autoridade, que nos faz experimentá-las duras ao pô-las em prática, e temos necessidade de as pôr em prática pelo seu «certo», que em bom latim significa «particularizado»300 ou, como dizem as escolas, «individuado»;301 sentido no qual «certurn» e «commune», com grande elegância latina, são opostos entre si. [322] Esta dignidade, com as duas definições seguintes, 302 constituem o princípio da razão estricta, 303 de que é regra a
equidade civil, a cujo certo, ou seja, à determinada particularidade de cujas palavras, os bárbaros, de ideias particulares, naturalmente se acomodam, e consideram desse modo o direito que a elas se deva. Donde, o que em tais casos Ulpiano diz: «lex dura est, sed scripta est», 304 tu dirias, com maior beleza latina e com maior elegância legal: «lex dura est, sed certa est».
298 •Um certo direito provável, não conhecido naturalmente por todos os homens, mas somente por aqueles poucos que, providos de prudência, prática e doutrina, aprendem quanto é necessário à conservação da sociedade humana.» 299 «Razão de Estado». Cfr. os parágrafos 949-950. 300 «Peculiar». 301 Cfr. o velho Vocabolario degli Aa:ademid de/la Crusca, reimpressão napolitana de 17 4&-17 48, III, 299 e II, 483, que de «individuato» retira um exemplo tirado do Convívio dantesco. 302 Em vez efuso, as dignidades CIX, CX e CXI. 303 Interpretação literal e formalística das leis. Cfr. os parágrafos 999-1003 . 304 Dig., XI, 9, 12, I, onde o passo soa de modo diverso.
[168]
CXII [323] Os homens inteligentes consideram direito tudo o que dita essa utilidade igual das causas.
C XIII [324] O verdadeiro das leis é uma certa luz e esplendor com que as ilumina o direito natural;305 pelo que frequentemente os jurisconsultos306 costumam dizer «verum est>> por «aequum est>>. 307
[325] Esta definição, como a centésima décima primeira, são proposições particulares para mostrar provas naquela matéria particular do direito natural das gentes, surgidas das duas gerais, nona e décima, que tratam do verdadeiro e do certo na generalidade, para obter as conclusões em todas as matérias que aqui se tratam. 308
CXIV [326] A equidade natural da razão humana toda desenvolvida309 é uma prática da sabedoria nos assuntos da utilidade, pois que «sabedoria», no seu amplo sentido, não é senão a ciência de fazer uso das coisas segundo a natureza que possuem.310
305
Que para Vico quereria ser, mas não é sempre, a «natura/is ratio>> dos jurisconsultos romanos (cfr., p. ex., Dig. , I, I, 9) . 306 Nunca estes, mas exactamente Vico, no Liber metaphysicus. 307 Isto é: «é verdade» por «é justo». 308 Cfr. o parágrafo 315. 309 Isto é: própria da mentalidade dos tempos cultos: cfr. o parágrafo 924. 31 ° Cfr. o parágrafo 364.
[169)
[327) Esta dignidade, com as outras duas seguintes definições, constituem o princípio da razão benigna, 3 11 regulada pela equidade natural, que é conatural às nações civilizadas; de cuja escola pública se demonstrará terem surgido os filósofos . [328) Todas estas seis últimas proposições estabelecem que a providência foi a ordenadora do direito natural das gentes, a qual permitiu que, uma vez que, durante longo decurso de séculos, as nações tinham vivido incapazes do verdadeiro e da equidade natural (a qual, depois, foi mais clarificada pelos filósofos) , elas se conformassem ao certo e à equidade civil, que guarda escrupulosamente a palavra das ordens e das leis, e que por estas fossem levadas a observá-las na generalidade, até nos casos em que resultassem duras, para que se conservassem as nações.3 12 [329) E estas mesmas seis proposições, desconhecidas dos três príncipes da doutrina do direito natural das gentes, 313 fizeram com que eles, todos os três, errassem concertadamente ao estabelecer os seus sistemas; porque acreditaram que a equidade natural, em seu perfeito ideal, tivesse sido compreendida pelas nações gentias desde as suas primeiras origens, sem reflectir que foram necessários uns dois mil anos para que nalguma tivessem surgido os filósofos, 314 e sem privilegiar um povo particularmente assistido pelo verdadeiro Deus.315
311 A • legum bt!t1igna interpreta tio» dos ·urisconsultos romanos (veja-se, p. ex., Dig., I, 3, 18; e cfr. aqui atrás o parágrafo 90). À •razão estricta» (cfr. § 322), que domina a fase pré-racional, sucede-se, na fase racional, a «razão benigna: aqui, o direito já não está fundado na força da autoridade, mas na equidade natural. 312 Cfr. os parágrafos 321-322. 313 Grotius, Selden e Pufendorf. 314 Cfr. o parágrafo 52. 315 N aturalmente, o hebreu .
[170]
(SECÇÃO TERCEIRA]
DOS PRINCÍPIOS [330] Agora, para pôr à prova se as proposições enumeradas até agora como elementos desta Ciência devem dar forma às matérias inicialmente dispostas na Tábua cronológica, rogamos ao leitor que reflicta sobre tudo o que se escreveu acerca dos princípios de qualquer matéria de todo o saber divino e humano da gentilidade, e conclua se eles estão em desacordo com todas, muitas ou alguma destas proposições; porque tanto estarão com uma como estariam com todas, porque cada uma delas está de acordo com todas. Pois eles, certamente, fazendo um tal confronto, aperceber-se-ão de que são todos lugares de confusa memória, imagens todas de fantasia mal dirigida, e não ser nenhum produto do entendimento, que se manteve ocioso pelas duas presunções que enumerámos nas Dignidades. 1 Portanto, devido à presunção das nações, de ser cada uma a primeira do mundo, desanimamos de encontrar os princípios desta Ciência nos filólogos; por outro lado, a presunção dos doutos, que pretendem ter sido aquilo que sabem eminentemente compreendido desde o princípio do mundo, desesperamos de encontrá-los nos filósofos: assim, para esta pesquisa, devemos proceder como se não houvesse livros no mundo. [331] Mas, nessa densa noite de trevas de que está coberta para nós a primeira antiquidade, aparece esta luz eterna, que
1
Parágrafos 125-128.
[171]
não declina, esta verdade, que de modo nenhum se pode pôr em dúvida: que este mundo civil foi certamente feito pelos homens, pelo que se podem, porque se devem, descobrir os princípios dentro das modificações da nossa própria mente humana. O que, a quem quer que nisso reflicta, deve causar admiração, como todos os filósofos se esforçaram seriamente por conseguir a ciência deste mundo natural, do qual, porquanto Deus o fez, só ele possui desse a ciência; e negligenciaram o meditar sobre este mundo das nações, ou seja, mundo civil, do qual, porque o haviam feito os homens, dele podiam os homens conseguir a ciência. 2 Extravagante efeito esse que proveio daquela miséria da mente humana, que advertimos nas Dígnidades, 3 a qual, permanecendo imersa e sepultada no corpo, é naturalmente inclinada a sentir as coisas do corpo e deve usar demasiado esforço e fadiga para se compreender a si mesma, como o olho corporal que vê todos os objectos fora de si e necessita do espelho para se ver a si próprio. [332) Agora, uma vez que este mundo de nações foi feito pelos homens, vejamos em que coisas perpetuamente concordaram e ainda concordam todos os homens, porque tais coisas poderão fornecer-nos os princípios universais e eternos, tal como devem ser de toda a ciência, sobre os quais surgiram todas as nações e todas se conservam. [333) Observamos que todas as nações, tanto bárbaras como humanas. se bem que fundadas separadamente, afastadas entre si por imensos espaços de lugares e tempos, conservam estes três costumes humanos: que todas têm alguma religião,
2
Distinção inspirada naquela entre as res divinae e as res humanae dos escritores latinos, mas que, aqui, neste tão importante parágrafo, no qual são lançadas as bases dio historicismo absoluto, assume um significado de facto particular. 3 Cfi:. o parágrafo 236.
[172]
todas contraem matrimoruos solenes, todas sepultam os seus mortos; nem entre as nações, mesmo as selvagens e cruéis, se celebram acções humanas com mais requintadas cerimónias e mais consagradas solenidades do que religiões, matrimónios e sepulturas. 4 Porque, pela dignidade de que «ideias uniformes, nascidas em povos desconhecidos entre si, devem ter um princípio comum de verdade», 5 deve ter sido ditado a todas: que destas três coisas começou em todas a humanidade e, por isso, devem ser santissimamente conservadas por todas, para que o mundo não se enfureça e se torne de novo selvagem. Por isso tomámos estes três costumes eternos e uruversa.1s como os primeiros três princípios desta Ciência. [334) Nem o primeiro será acusado de falso pelos modernos viajantes,6 os quais referem que povos do Brasil, de Cafra e outras nações do mundo novo (e Antoine Arnaule crê o mesmo 8 acerca dos habitantes das ilhas chamadas Antilhas) vivem em sociedade sem qualquer conhecimento de Deus; talvez persuadido por eles, Bayle afirma, no Tratado dos cometas, 9 que podem os povos viver com justiça sem a luz de Deus; que tanto não ousou afirmar Políbio, a quem alguns aplaudiram a máxima: que, se existissem no mundo filósofos que vivessem 4
Cfr. os parágrafos 11-12. Cfr. o parágrafo 144. 6 Entre os quais estão apenas os dois recordados por BAYLE, obra anteriormente aqui citada, que foi a fonte directa de Vico, isto é, o médico holandês Olivier Dapper (?-1690) e o jesuíta Charles Legobien de Saint-Maio (1635-1707), mas igualmente o italiano Pietro della Valle (15861652). Cfr. Viaggi, edição de Bolonha, 1672, II, 99. 7 Naturalmente, Antoine Arnault (1612-1694) . 8 Na Quatrieme dénonciation de la rwuvelle hérésie du péché philosophique (Oeuvres, XXXI, Paris, 1780, p. 274). 9 Pensées diverses écrites à un docteur de Sorborme à l'occasion de la comete qui parut au mois de décembre, e Continuation des Pensées etc., edição de Roterdão, 1721, III, 57 e seg.; IV; 119- 123 e 163. 5
[173]
com justiça por força da razão, e não das leis, não seriam necessárias religiões. 10 Estes são contos de viajantes, que procuram venda para os seus livros à custa de informações monstruosas. Certamente a Andreas Rüdiger, que na sua Ffsica, magnificamente intitulada divina, 11 pretende que seja o único meio termo entre o ateísmo e a superstição, fazem-lhe severamente reparo por tal sentimento os censores da Universidade de Genebra 12 (em cuja república, como popular livre, deve existir bastante mais liberdade em escrever), por «dizê-lo com demasiada segurança», que é o mesmo que dizer, com não pouca audácia. Porque todas as nações crêem numa divindade providente, pelo que se puderam encontrar quatro, e não mais, religiões primárias ao longo de todo o decurso dos tempos e por toda a vastidão deste mundo civil: urna dos Hebreus e, portanto, outra dos Cristãos, que acreditaram na divindade de uma mente infinita e livre; a terceira dos gentios, que acreditaram na de vários deuses, imaginados compostos de corpo e de mente livre, pelo que, quando pretendem significar a divindade que rege e conserva o mundo, dizem «deos immortales»;13 a quarta e última, dos Maometanos, que acreditam na de um deus mente infinita e livre num corpo infinito, pelo que esperam prazeres dos sentidos como prémio na outra vida. [335] Nenhuma acreditou num deus todo corpo, ou mesmo num deus todo mente que não fosse livre. Portanto, nem os epicuristas, que não apresentam mais do que corpo e, com o corpo, o acaso, nem os estóicos, que apresentam
° Cfr.
1
acima o parágrafo 179. Physica divina: recta via, eademque inter superstitionem et atheismum media, homittum f elicitatem natura/em et mora/em ducens, Frankfurt am Mein, 1716). 12 Em vez disso, de Leipzig. E a censura não remonta a eles, mas a um •prl?fessor quidam lipsiettsiso. 13 Mera conjectura do nosso autor. 11
[174]
Deus como mente infinita em infinito corpo, sujeito ao destino (que seriam, por essa parte, os espinozistas), puderam reflectir sobre a república nem sobre as leis, e Bento Espinoza fala de república como se fosse de uma sociedade de mercadores. 14 Pelo que tinha razão Cícero, que dizia a Ático, porque ele era epicurista, não poder ele reflectir consigo acerca das leis, se aquele não lhe concedesse que existia providência divina. 15 Tanto as duas seitas estóica e epicurista são consentâneas com a jurisprudência romana, 16 que coloca a providência divina como seu princípio principal! 17 [336] A opinião, depois, de que os concubinatos, incontestáveis de facto, de homens livres com mulheres livres, sem solenidade de matrimónios, não contêm nenhuma malícia natural, é censurada por todas as nações do mundo como falsa através desses costumes humanos, pelos quais todas celebram religiosamente os matrimónios e por eles definem que, se bem que em grau menor, tal é pecado de animais. Pelo que, no que respeita a esses pais, não os mantendo unidos necessariamente qualquer vínculo de leis, acabam por disperder os seus filhos naturais, que, podendo os seus pais separar-se a qualquer hora, abandonados por ambos, tinham que jazer expostos a ser devorados pelos cães; e, se a humanidade pública ou privada não os alimentasse, teriam que crescer sem ter quem lhes ensinasse religião, nem língua, nem outro costume humano. Pelo que, no que a esses diz respeito, deste mundo de nações, enriquecido e adornado por tantas belas artes da humanidade, vão formar a grande selva antiquíssima, por entre a qual vagueavam com nefando errar ferino as feras selvagens 14 Isto é, utilitaristicamente. Cfr. Tractatus theologicus politicus, ed. cit. , pp. 175-186. 15 De legg., I, 7, onde, porém, é dita uma coisa bastante diferente. 16 Cfr. o parágrafo 979. 17 Cfr. os parágrafos 310 e 342.
[175]
de Orfeu, 18 entre as quais os filhos com as mães, os pais com as filhas, tinham práticas venéreas bestiais. Que é a infame nefas do mundo fora-da-lei, 19 que Sócrates, com razões físicas pouco próprias, queria provar ser proibida pela natureza,20 sendo ela proibida pela natureza humana, porque tais concubinatos são naturalmente repugnados em todas as nações, além de que não foram praticados por alguns senão na sua última corrupção, como pelos Persas. 21 (337] Finalmente, para avaliar quão grande princ1p10 da humarúdade sejam as sepulturas, imagine-se um estado ferino em que os cadáveres humar10s permaneçam insepultos sobre a terra, a servir de engodo aos corvos e cães; pois deve estar certamente de acordo com este costume bestial não só aquele de ficarem os campos incultos, mas também as cidades desabitadas, e o dos homens, à maneira dos porcos, irem comer as bolotas, aparlhadas por entre a podridão dos seus parentes mortos. Daí, terem sido definidas as sepulturas, com grande razão, com aquela expressão sublime ifoedera generis humani»22 e, com menor grandeza, foram descritas «humanitatis commercia»23 por Tácito.24 Para além disso, esta é uma sentença na qual certamente concordam todas as nações gentias: que as almas permaneçam sobre a terra inquietas e andem errando em torno dos seus corpos insepultos 25 e, consequentemente, que não morram com os seus corpos, mas que sejam imortais. E os povos da Guiné 18
Os homens de costumes ainda ferinos. O incesto. 20 XENOFONTE , Memorabilia Socratis, IV, 4, 19-23. 21 Cfr. GRóciO, De iure bel/i et pads, II, 2, 13, 5. 22 «Tratados do género humano•, no significado diplomático da expressão. 23 «Relações recíprocas da humana gente•. 24 Ann. ,VI , 19. 25 Alusão ao episódio homérico de Elpenor (Od., XI, 51 e seg.) e àquele virgiliano de Palinuro (Aen., VI, 337 e seg.). 19
[176]
convencem-nos de que tal consenso teria ainda existido nas nações bárbaras antigas, como atesta Ugo van Linschooten; 26 os do Peru e do México, Acosta, De indicis; 27 dos habitantes da Virgínia, Thomas Harriot; 28 dos da Nova Inglaterra, Richard Whitbourne;29 dos do reino de Sião,Joost Schouten.30 Portanto, Séneca3 1 conclui: «Quum de immortalitate loquimur, non leve momentum apud nos habet consensus hominum aut timentium inferos aut colentium: hac persuasione publica utor.» 32 26
O holandês Ugo van Linschooten (1 563-1611), que, em apêndice ao seu Itinerarium indicum (Haia, 1699), publicou uma Descriptio totius Guineae, na qual, aliás, não está nada do que asserta Vico. Certamente ele trocou com van Linschooten Gottard Flachsbinder, de Danzig (1485-1548), bispo de Ermeland e autor de uma Vera et historica descriptio auriferi regni Guineae, inserida, com outros escritos, entre os quais um de van Linschooten, no volume rniscelânico com o título Indiae orienta/is descriptio (Frankfurt-am-Mein, 1604). Cfr., ai, a pág. 42. 27 D a Historia natural y moral de las Indias (1591) do missionário jesuíta JOSÉ ACOSTA, de Medina dei Campo (1538-1600), Vico viu certamente a versão italiana de Giovanni Paolo Galucci da Salô (Veneza, 1596). Cfr., aí, a pág. 107. 28 O matemático e astrónomo Thomas Harriot, ou Harriot de Oxford (1560-1621), autor de A brief and true rapport sobre a Virgínia (Londres, 1588), inserido, numa versão latina, nas Historiae Americae scriptores: cfr. vol. I (Frankfurt-arn-Mein, 1620). 29 Sir Richard Whitbourne, de Londres (1579-1626) , o escritor da Terra Nova, sobre a qual escreveu um Discourse (Londres, 1620), inserido, numa tradução latina, na trigésima parte dos citados Historiae Americae scriptores (Frankfurt-arn-Mein, 1620). 30 Joost Schouten, cônsul holandês no reino de Sião, queimado vivo por sodomia (1653) e autor dos Beschrijvinge van des Conigricks Siam (1636), traduzidos em francês por Melchisédech Thévenot na R elation de divers voyages curieux (Amsterdam, 1663). Cfr. I, 32, 33. 31 Epist., CXVII, 5-6. 32 •Quando discorremos sobre a imortalidade, é, para nós, argumento de não pequena importância o consenso de homens que, ou temem a vida de além-túmulo, ou nela crêem: este convencimento geral é também o meu .•
[177]
(SECÇÃO
QuARTA]
DO MÉTODO (338] Para o completo estabelecimento dos princ1p10s que foram adoptados por esta Ciência, falta-nos reflectir, neste primeiro livro, acerca do método que ela deve usar. Porque, devendo ela começar donde começou a sua matéria, tal como foi proposto nas Dignidades;1 e assim: - tendo nós que a rever, para os filólogos , desde as pedras de Deucalião e Pirra,2 desde os pedregulhos de Anfíon, 3 desde os homens nascidos ou desde os sulcos de Cadmo 4 ou desde o duro carvalho de Virgilio 5 e, para os filósofos , desde as rãs de Epicuro, 6 desde as cigarras de Hobbes,7 desde os simplórios de Grócio,8 desde
1
Cfi:. o parágrafo 314. C fi:. o parágrafo 79. 3 Cfi:. o parágrafo 81. 4 Cfi:. o parágrafo 697 . 5 Aen., VIII, 315, a propósito dos indígenas do Lácio. 6 Verdadeiramente, a hipótese de que os primeiros homens tivessem nascido da água lodosa do mesmo modo que as rãs, segundo a crença popular, é atribuída por C ENSORINO , De die nata/ido, 4, 9, a Demócrito. Todavia, o mesmo escritor recorda simultaneamente, a propósito de Epicuro, a hipótese afim de certos úteros que, aderentes à terra e fecundados •limo califacto», geram crianças. 7 Cfi:. De dve, VIII, I, onde os homens das origens são comparados aos cogumelos. Quem tinha recordado a este propósito as cigarras tinha sido LUCRÉCIO , rv, 56; VI, 801. 8 De iure bel/i et pads, ll, 2, 2, 3: passo restituído por Vico com um tom irónico. 2
[179]
os lançados neste mundo sem nenhuma preocupação ou ajuda de Deus de Pufendorf, 9 tão desajeitados e ferozes quanto os gigantes chamados los patacones, que dizem encontrar-se junto do estreito de Magalhães, 10 isto é, desde os polifemos de Homero, nos quais Platão reconhece os primeiros pais no estado das famílias 11 (foi esta a ciência que nos deram sobre os princípios da humanidade tanto os filólogos como os filósofos!) ; - e devendo nós começar a reflectir sobre isso desde que aqueles começaram a pensar humanamente; - e, no seu imane orgulho e desregrada liberdade bestial, não existindo outro meio para domesticar aquele e refrear esta senão um pavoroso pensamento de uma qualquer divindade, cujo temor, como se disse nas Dignidades, 12 é o único meio poderoso para sujeitar ao dever uma liberdade furiosa: - para descobrir o modo desse primeiro pensamento humano nascido no mundo da gentilidade encontramos as ásperas dificuldades que nos custaram bem vinte anos de pesquisa, e [devemos] descer destas nossas naturezas humanas civilizadas àquelas completamente ferozes e imanes, as quais nos é completamente negado imaginar e apenas com grande custo nos é permitido compreender. [339] Por tudo isto, devemos começar dê uma qualquer cognição de Deus, de que os homens não estejam privados, mesmo que selvagens, ferozes e imanes. Demonstramos ser esta tal cognição: que o homem, caído no desespero de todos os socorros da natureza, deseja uma coisa superior que o salve. Mas coisa superior à natureza é Deus, e esta é a luz que Deus espalhou sobre todos os homens. Confirma-se isto com este
9 10 11
12
D e iure natura/i et gentium, I, 2, 2: cfr. mais adiante o parágrafo 397.
Cfr. o parágrafo 170. Cfr. o parágrafo 296. Cfr. o parágrafo 177.
[180]
costume humano comum: que os homens libertinos, envelhecendo, porque sentem faltar-lhes as forças naturais, tornam-se naturalmente religiosos. [340) Mas esses primeiros homens, que foram depois os príncipes das nações gentias, deviam pensar sob fortes impulsos de violentíssimas paixões, que é a forma de pensar dos animais. Assim, devemos retroceder a uma metafísica vulgar (a qual se advertiu nas Dignidades,13 e comprovaremos ter sido a teologia dos poetas) 14 e, a partir daquela, repetir o pensamento pavoroso de uma qualquer divindade, que deu norma e medida às paixões animais desses homens perdidos e as tornou paixões humanas. Desse tal pensamento deve ter nascido o conato, que é próprio da vontade humana, de refrear os motos imprimidos à mente pelo corpo, ou para completamente os aquietar, o que é próprio do homem sábio, ou, pelo menos, dar-lhes outra direcção para melhores usos, o que é próprio do homem civil. Este refrear o moto dos corpos é certamente um efeito da liberdade do arbítrio humano e, assim, da vontade livre, que é domicílio e sala de todas as virtudes e, entre outras, da justiça, modelada pela qual, a vontade é o sujeito de todo o justo e de todos os direitos que são ditados pelo justo. Porque dar aos corpos conato é tanto como dar-lhes liberdade de regular os seus motos, enquanto todos os corpos são agentes necessários na natureza; e aqueles a que os mecanicistas chamam «potências», «forças», «conatos» são motos insensíveis desses corpos, com os quais eles ou se aproximam, como pretende a mecânica antiga, do seu centro de gravidade, ou se afastam, como pretende a mecânica nova, dos seus centros do moto. 15
13
Cfr. o parágrafo 182. Cfr. os parágrafos 342 e 366. 15 Tenhamos presente o que no Liber metaphysicus, cap. rv; II-VI, a propósito das duas substâncias cartesianas, tinha sido dito por Vico acerca 14
[181]
[341] Mas os homens, devido à sua natureza corrupta, são tiranizados pelo amor próprio,16 pelo qual não seguem principalmente senão a própria utilidade; pelo que eles, querendo todo o útil para si e nenhuma parte para o companheiro, não podem pôr em conato as paixões para as dirigir no sentido da justiça. Assim, estabeleçamos: que o homem, no estado animal, ama somente a sua salvação; tornada mulher e feitos os filhos , ama sua salvação com a salvação das fanúlias; chegado à vida civil, ama a sua salvação com a salvação das cidades; dilatados os impérios sobre outros povos, ama a sua salvação com a salvação das nações; unidas as nações na guerras, pazes, alianças, comércios, ama a sua salvação com a salvação de todo o género humano: o homem, em todas estas circunstâncias, ama principalmente a utilidade própria. Portanto, por nenhum outro modo senão pela providência divina deve ser mantido dentro de tais ordens para celebrar com justiça as sociedades familiar, civil e, finalmente, a humana; ordens pelas quais, não podendo o homem conseguir aquilo que pretende, pretenda ao menos conseguir da utilidade aquilo que deve; que é aquilo a que se chama , ou seja, compreender o que está escondido aos homens, que é o porvir, ou o escondido pelos homens, que é a consciência; e é aquela que propriamente ocupa a parte primeira e principal do assunto da jurisprudência, que são as coisas divinas, das quais depende a outra que a completa, que são as coisas humanas. Portanto, uma tal Ciência deve ser uma demonstração, por assim dizer, de um facto histórico da providência, porque deve ser uma história das ordens que aquela, sem nenhuma advertência ou conselho humanos e, frequentemente, contra esses propósitos dos homens, 20 deu a esta grande cidade do género humano, pois, se bem que este mundo tenha sido criado particular e no tempo, porém, as ordens que ela nele pôs são universais e eternas. [343) Por tudo isto, dentro da contemplação dessa providência infinita e eterna, esta Ciência encontra certas provas divinas 2 1 com as quais se confirma e demonstra. Pelo que a providência divina, tendo por sua ministra a omnipotência,
19
20
21
Mera conjectura de Vico. Cfr. o parágrafo 344. Cfr. os parágrafos 349 e 360.
[183]
deve explicar as suas ordens por vias tão faceis quanto são os naturais costumes humanos; porque tem por conselheira a sabedoria infinita, tudo quanto dispõe deve ser ordem; porque tem por finalidade a sua própria imensa bondade, tudo quanto ordena deve ser dirigido a um bem sempre superior àquele a que esses homens se propuseram. [344] Por tudo isto, na deplorada obscuridade dos princípios e nas inumeráveis variedades dos costumes das nações, não se podem desejar aqui provas mais sublimes sobre um argumento divino que contém todas as coisas humanas, do que estas mesmas que nos dão a natureza, a ordem e o fim, que é a conservação do género humano. Provas essas que se nos tornarão luminosas e distintas, se reflectirmos na facilidade com que as coisas nascem e em que circunstâncias, tal que provêm amiúde de lugares muito longínquos, e por vezes totalmente contrárias aos propósitos dos homens, e se estabelecem por si próprias; e tais provas fornece-nos a omnipotência. Estabelecê-las e ver-lhes a ordem, em que tempos e lugares que lhes são próprios nascem as coisas, umas que ali devem nascer, e as outras que se diferem para nascer nos tempos e lugares próprios, no que, segundo o parecer de Horácio,22 consiste toda a beleza da ordem; e tais provas são-nos aprestadas pela eterna sabedoria. E, finalmente, considerar se serão capazes de compreender se, naquelas ocasiões, lugares e tempos, podiam nascer outros eneficios divinos, com os quais, nestas ou naquelas necessidades ou malogros dos homens, se podia conduzir melh r para o bem e conservar a sociedade humana; e tais provas nos dará a eterna bondade de Deus. [345] Pelo que a própria prova que continuamente aqui se fará será o e tabelecer e reflectir se a nossa mente humana, na série dos possíveis que nos é permitido compreender, e 22
A d Pisones, 42-45.
[184]
pelo quanto nos é permitido, poderá pensar mais ou menos ou as várias causas daquelas donde provêm os efeitos do nosso mundo civil. O que, ao fazê-lo, provará o leitor um prazer divino, neste corpo mortal, ao contemplar nas divinas ideias este mundo de nações em toda a extensão dos seus lugares, tempos e variedades; e comprovar-se-á ter convencido de facto os epicuristas de que o seu acaso não pode loucamente divagar e passear-se por toda a parte, e os estóicos de que a sua cadeia eterna das causas, com a qual pretendem estar cingido o mundo, depende da omnipotente, sábia e benigna vontade do Óptimo Deus Máximo. 23 [346) Estas sublimes provas teológicas naturais ser-nos-ão confirmadas com as seguintes espécies de provas lógicas: que, ao reflectir sobre as origens das coisas divinas e humanas da gentilidade, atingem-se aqueles outros primeiros para além dos quais se torna estulta curiosidade procurar outros primeiros, que é a própria característica dos princípios; explicam-se os modos particulares do seu nascimento, que se chama «natureza», que é a nota muito própria da ciência; e, finalmente, confirmam-se com as eternas propriedades que conservam, as quais não podem ter nascido de outro modo senão de tais e não de outros nascimentos, em tais tempos, lugares e de tais modos, ou seja, de tais naturezas, tal como sobre isso foram propostas acima duas dignidades.24 [347) Para partir à descoberta de tais naturezas de coisas humanas, procede esta Ciência a uma severa análise dos pensamentos humanos em torno das necessidades humanas ou utilidades da vida social, que são as duas fontes perenes do direito natural das gentes, como também nas Dignidades2 5 se
23
24 25
Cfr. o parágrafo 342. Cfr. os parágrafos 147-148. Cfr. o parágrafo 141.
(185]
assinalou. Donde, por este seu outro principal aspecto, esta Ciência é uma história das ideias humanas, baseada na qual parece dever proceder a metafisica da mente humana; rainha das ciências essa que, de acordo com a dignidade de que ) . 2 Infundada conjecrura de Vico. 3 I, 2, 6, onde, aliás, se discorre somente acerca da precedência ideal e histórica da poesia em relação à prosa.
[235)
temente ordenado pela providência divina nesses tempos religiosos, através daquela eterna propriedade: que, em relação às religiões, importa mais meditar o que falar sobre elas; pelo que essa primeira língua, nos primeiros tempos mudos das nações, como se disse nas Dignidades, 4 deve ter começado com gestos, ou actos, ou objectos que tivessem relações naturais com as ideias: pelo que /..óyoç, ou «verbum» significou também «facto» para os Hebreus, e para os Gregos significou também «coisa», como observa Thomas Gataker,5 D e Instrumenti stylo. 6 E também f..lÜ'ÔOÇ nos chegou definida como «vera narratio», ou seja, «falar verdadeiro» / que foi o «falar natural» que Platão primeiro, e depois Iâmblico, disseram ter sido uma vez falado no mundo; os quais o disseram adivinhando, como vimos nas Dignidades, 8 pelo que sucedeu que Platão não só despendeu a vã fadiga de o ir encontrando no Crátilo, como foi atacado por Aristóteles e por Galeno: porque esse tal primeiro falar, que foi o dos poetas teólogos, não foi um falar segundo a natureza dessas coisas (como deve ter sido a língua santa encontrada por Adão, a quem Deus concedeu a divina onomathesia, ou seja, imposição dos nomes às coisas segundo a natureza de cada uma), 9 mas foi um falar fantástico por substâncias animadas, a maior parte imaginadas divinas. [402) Assim Júpiter, Cibele ou Berecíntia, Neptuno, para dar exemplos, entenderam e, primeiramente com indicações mudas, explicaram serem essas substâncias do céu, da terra, do
4
Cfr. os parágrafos 225-227 . Sobre ele, veja-se acima a nota 957 ao parágrafo 386. 6 De Novi Instrumenti (no significado de Novo Testamento) stylo, in Opera critica (Utrecht, 1698), coll. 89-90, onde, pelo contrário, se confuta qualquer coisa de similar por outrém assertado. 7 Afirmação sem fundamento. 8 Cfr. o parágrafo 227. 9 Cfr. Génesis, II, 19-20. 5
[236]
mar, que eles imaginaram divindades animadas e, por isso, com verdade dos sentidos acreditavam serem elas deuses: três divindades com as quais, por aquilo que acima dissemos sobre os caracteres poéticos, 10 explicavam todas as coisas pertencentes ao céu, à terra, ao mar; e assim com as outras significavam as espécies das outras coisas pertencentes a cada uma das divindades, como todas as flores a Flora, todos os frutos a Pomona. O que nós também ainda fazemos, mas ao contrário, com as coisas do espírito; como com as faculdades da mente humana, com as paixões, com as virtudes, com os vícios, com as ciências, com as artes, de que formamos ideias a maior parte das vezes de mulheres, 11 e àquelas submetemos todas as causas, todas as propriedades e, por fim, todos o efeitos que a cada uma pertencem: porque, sempre que quisermos do entendimento extrair coisas espirituais, devemos ser socorridos pela fantasia para as podermos explicar e, tal como pintores, fingi-las imagens humanas. Mas esses poetas teólogos, não podendo fazer uso do entendimento, com um trabalho mais sublime totalmente contrário, atribuíram aos corpos sentidos e paixões, como há pouco se viu, e corpos vastíssimos. 12 tanto quanto são o céu, a terra, o mar; que depois, reduzindo-se tão vastas fantasias e fortalecendo-se as abstracções, 13 foram tomados como seus pequenos signos. E a metonímia expôs com aparência de doutrina a ignorância destas origens, até agora sepultadas, das coisas humanas: 14 e Júpiter tornou-se tão pequeno e tão ligeiro que é levado em voo por uma águia; corre Neptuno por mar sobre um delicado coche; e Cibele senta-se sobre um leão.
° Cfr. os
1
11
12 13
14
Cfr. Cfr. Cfr. Cfr.
o o o o
parágrafos 205 e 209. final do parágrafo 406.
parágrafo 816. parágrafo 185. parágrafo 406.
[237]
[403] Portanto, as mitologias devem ter sido os falares próprios das fabulas 15 (pois tal significa essa palavra); de modo que, sendo as fabulas, como acima se demonstrou, géneros fantásticos, as mitologias devem ter sido as suas próprias alegorias. Nome esse que, como nas Dignidades se observou, 16 nos vem definido como «diversiloquium» , enquanto, com identidade não de proporção mas, para o dizer em termos escolásticos, de predicabilidade, esses significam as diversas espécies, ou os diversos indivíduos compreendidos sob esses géneros: tanto que devem possuir um significado unívoco, compreendendo urna razão comum às suas espécies ou indivíduos (como de Aquiles, uma ideia de valor comum a todos os fortes; como de Ulisses, urna ideia de prudência comum a todos os sábios); 17 de modo que essas referidas alegorias devem ser as etimologias dos falares poéticos, que nos dariam as suas origens totalmente unívocas, como aquelas dos falares vulgares o são muito frequentemente análogas. E chega-nos também a definição dessa palavra «etimologia», que significa o mesmo que «veriloquium», tal como essa fabula nos foi definida «vera narratio». 18
15 Como no parágrafo 379 «teologia,; assume o significado subjectivo de «língua falada pelos deuses» mediante raios, auspícios, e, portanto, muda, assim, neste lugar, se atribui à mitologia o significado, igualmente subjectivo, de língua peculiar dos mitos, ou composta por mitos e, portanto, também ela muda. 17 Outra amplificação da teoria formulada no parágrafo 205. 18 Cfr. o parágrafo 401.
[238]
[CAPÍTULO S EGUNDO]
COROLÁRIOS ACERCA DOS TROPOS, MONSTROS E TRANSFORMAÇÕES POÉTICAS
[404] Desta lógica poética são corolários todos os primeiros tropas, dos quais a mais luminosa e, porque mais luminosa, mais necessária e mais frequente, é a metáfora, que é então tanto mais louvada quanto às coisas insensatas ela dá sentido e paixão, pela metafisica aqui reflectida: 1 pois os primeiros poetas deram aos corpos o ser de ubstâncias animadas, apenas capazes de tanto quanto eles podiam, isto é, de sentido e de paixão, e assim o fizeram as fabulas; de modo que cada metáfora assim feita vem a ser uma pequena fabulazinha. Assim se faz sobre isso esta cótica, em torno do tempo em que nasceram nas línguas: pois todas as metáforas apresentadas com semelhanças tomadas dos objectos para significarem trabalhos de mentes abstractas devem ser dos tempos em que se tinham começado a polir as filosofias .2 O que se demonstra a partir disto: que, em todas as línguas, as palavras que são necessárias para as artes cultas e para as ciências secretas têm origens campesinas. 3
1
Cfi:. o parágrafo 402. Isto é: forma de expressão nascida do mesmo parto que a própria linguagem, a metáfora permaneceu nos tempos cultos, nos quais serviu também para indicar miticamente as funçõ s mesmas do raciocínio abstracto. 3 Exagero. N o entanto, cfi:. os parágrafos 239 e 240. 2
[239]
[405) É digno de observação que em todas as línguas a maior parte das expressões acerca de coisas inanimadas são feitas com transposições do corpo humano e das suas partes, e dos sentidos humanos e das paixões humanas. Como «cabeça», por cimo ou princípio; «frente», «costas», adiante e atrás; «olhos» das videiras e aqueles que se cham m «luzes» ingredientes das casas; «boca», toda a abertura; «lábio», bordo de copo ou de outra coisa; «dente» de arado, de ancinho, de serra, de pente; «barbas», as raízes; «língua» de mar; «gargantas» ou «embocaduras» de rios ou montes; «colo» de terra; «braço» de rio; «mão>>, por pequeno número; «seio·> de mar, o golfo; «flancos» e «lados», os cantos; «costas» de mar; «coração», pelo meio (que «umbilicus» era dito pelos Latinos); «perna» ou «pé» de países, e «pé» por fim; «planta» para base, ou seja, fundamento; «carne», «ossos» de frutas ; «veio» de água, pedra, mina; «sangue» das videiras, o vinho; «vísceras» da terra; «ri» o céu, o mar; «assobia» o vento; «murmura» a onda; «geme» um objecto sob um grande peso; e os camponeses do Lácio diziam «sitire agros», 4 «laborare fructus», 5 «luxuriati segetes»; 6 e os nossos camponeses «ficarem de amores as plantas», «ficarem loucas as vinhas», «chorarem os regos»; e outras que se podem recolher, inumeráveis, em todas as línguas. O que é tudo consequência daquela dignidade: que «o homem ignorante faz-se regra do universo»/ tal como nos exemplos apresentados ele fez de si mesmo um mundo inteiro. Porque, como a metafísica reflectida ensina que «homo intelligendo fit omnia», assim esta metafísica fantasiada demonstra que «homo non intelligendo fit omnia»; 8 e
4
5 6 7
8
Cfr. CíCERO, Orator, 24. Cfr. H ORÁCIO, Odi, I, 9, 2 e II, 9, 6. Cfr. O víDIO, Her., I, 52-53; Ar:s am ., I, 360. Cfr. o parágrafo 120. Teoria derivada de Tommaso Campanella.
[240]
talvez isto seja dito com mais verdade do que aquilo, porque o homem, ao entender, abre a sua mente e compreende essas coisas mas, ao não entender, ele faz de si essas coisas e, ao transformar-se nelas, vem a sê-lo. II
[406] Por essa mesma lógica, gerada de tal metafisica, 9 devem os primeiros poetas 10 ter dado os nomes às coisas a partir das ideias mais particulares e sensíveis; que são as duas fontes, esta da metonímia e aquela da sinédoque. Porquanto a metonímia dos autores pelas obras nasceu porque os autores eram mais nomeados do que as obras; aquela dos assuntos pelas suas formas e acrescentamentos nasceu porque, como nas Dignidades dissemos, 11 não sabiam abstrair as formas e a qualidade dos assuntos; certamente aquela das causas pelos efeitos delas são várias pequenas fãbulas , com que as causas foram imaginadas ser mulheres vestidas dos seus efeitos, 12 como são a Pobreza feia , a Velhice triste, a Morte pálida. III
[407] A sinédoque passou a transposição 13 depois, ao elevarem-se os particulares a universais, ou comporem-se as partes com as outras com as quais formassem os seus todos. Assim, «mortais» foram primeiro e propriamente denominados apenas os homens, pois eles apenas se devem ter feito sentir mortais. A «cabeça», pelo «homem» ou pela «pessoa», que é tão frequente
9
Pela lógica poética derivada da metafisica poética. Os homens primitivos. 11 Cfr. o parágrafo 209. 12 Cfr. o parágrafo 402. 13 A translato, a tropo.
10
(241)
no latim vulgar, porque dentro dos matagais viam de longe somente a cabeça do homem: palavra «homem» a qual é palavra abstracta, que compreende, como num género filosófico, o corpo e todas as partes do corpo, a mente e todas as faculdades da mente, o ânimo e todos os hábitos do ânimo. Assim deve ter acontecido que «tignum» 14 e «culmem> 15 significaram com toda a propriedade - e «palha» no tempo dos palheiros; depois, com o esplendor das cidades, significaram todos os materiais e o acabamento dos edificios. Assim «tectum» pela «casa» inteira, porque nos primeiros tempos bastava por casa uma cobertura. Assim «puppis» pela «nave» que, por ser alta, é a primeira a ser vista dos terraços; como nos tempos bárbaros regressados se disse uma «vela» por uma «nave». Assim «mucro» pela «espada», 16 porque esta é a palavra abstracta e, como num género, compreende pomo, guarda-mão, gume e ponta; e eles sentiram a ponta, que lhes causava espanto. Assim a matéria pelo todo formado, como o «ferro» pela «espada>>, porque não sabiam abstrair as formas da matéria. Aquele nastro de sinédoques e de metonímias: Tertia messis erat 17 nasceu, sem dúvida, de necessidade de natureza, porque devem ter decorrido bastante mais de mil anos para que nascesse entre as nações este vocábulo astronómico «ano»; tal como no campo florentino ainda dizem «tantas vezes nós colhemos» para dizer «tantos anos». E aquele grupo de duas sinédoques e de uma metonímia: 14 O s léxicos não apresentam nenhum exemplo de «tig11um» no sentido de «materiais de construção•. 15 Mais exactamente, «culmus•. 16 Cfr. Q utNTILIANO, Imt. oral., X, I, 11. 17 «Era a terceira seara» (o terceiro ano) . Frase que, a j ulgar pelo silêncio dos léxicos, não ocorreria em nenhum poeta latino; o que não retira que • messis•, no sentido de •ano», seja de uso comum.
(242]
Post aliquot, mea regna videns, mirabor, aristas, 18 acusa demasiadamente a infelicidade dos primeiros tempos campesinos para se explicarem, nos quais diziam «tantas espigas», que são mais particulares que as «colheitas», para dizer «tantos anos» e, porque era expressão demasiado infeliz, os gramáticos 19 supuseram nela um excesso de arte. IV
[408] A ironia certamente não pôde começar senão a partir dos tempos da reflexão, porque ela é formada a partir do falso em virtude de uma reflexão que toma máscara de verdade. E aqui surge um grande princípio de coisas humanas, que confirma as origens da poesia aqui descoberta: que os primeiros homens da gentilidade, tendo sido simplicíssimos quanto as crianças, que são verdadeiras por natureza, as primeiras fabulas não puderam fingir nada de falso ; pelo que devem ter sido necessariamente, como acima nos foram definidas, verdadeiras narrações. 20
v [409] Por tudo isto se demonstrou que todos os tropos (pois todos se reduzem a estes quatro) , que até agora se acreditou terem sido engenhosas invenções dos escritores, foram modos necessários de expressão [de] todas as primeiras nações poéticas, e tiveram todas as suas propriedades nativas na sua origem: mas, uma vez que, com o exprimir-se mais a mente humana, se encontraram as palavras que significam formas
18 19
20
Buc., I, 70. O s tratados de retórica. Cfr. o parágrafo 401.
VI RGÍLIO ,
[243]
abstractas, ou géneros que compreendem as suas espécies, ou que compõem as partes com os seus conjuntos, tais falares das primeiras nações converteram-se em metáforas. 2 1 E assim se começam a confirmar aqueles dois erros comuns dos gramáticos: que o falar dos prosadores é próprio, aquele dos poetas impróprio; e que primeiro existiu o falar da prosa, depois o do verso. 22
VI [410] Os monstros 23 e as transforrnações24 poéticas resultaram por necessidade dessa primeira natureza humana, pois, como nós demonstrámos nas Dignidades, 25 não podiam abstrair as formas ou as propriedades dos sujeitos; pelo que, com a sua lógica, devem ter composto os sujeitos para comporem essas formas, ou destruir um sujeito para separar a sua forma primeira da forma contrária nele introduzida. Tal composição de ideias produziu os monstros poéticos: como no direito romano, segundo a observação de Antoine Favre/ 6 na Iurisprudentiae papinianeae, se denominam «monstros» os partos nascidos de meretriz, porque têm, ao mesmo tempo, natureza de homem e propriedade de animais, por terem nascido de concúbitos vagabundos, ou seja, incertos; esses (os nascidos de mulher honesta sem a solenidade das núpcias) comprovaremos serem os monstros que a lei das XII Tábuas ordenava que fossem deitados ao Tibre. 27 21
Cfr. o parágrafo 407 . Cfr. o parágrafo 460. 23 Mitológicos. 24 As metamorfoses. 25 Cfr. o parágrafo 209. 26 Não dele, mas do advogado napolitano Domenico Caravita, numa alegação, na qual se citava Favre, tinha sido assertado o que é dito no texto. 27 Cfr. o parágrafo 566. 22
[244]
VII
[411] A distinção das ideias produziu as metamorfoses: como, entre os outros que nos foram conservadas pela jurisprudência antiga, também nas suas frases heróicas os Romanos nos deixaram aquela «jundum fie ri» por «auto rem fie ri», 28 porque, como o profundo sustenta a propriedade ou o solo e o que está nele semeado, ou plantado, ou edificado, assim o aprovador9 sustenta o acto, que sem a aprovação dele se desmoronaria, porque o aprovador, de semovente que é, toma forma contrária de coisa estável.
28 29
Cfr., entre outros, CícERO, Pro Balbo, 8. Aquele de quem provém um direito.
[245]
[CAPíTULO TERCEIRO] COROLÁRIOS ACERCA DO FALAR POR CARACTERES POÉTICOS DAS PRIMEIRAS NAÇÕES (412] A língua, como em virtude desta lógica poética nós meditámos, transcorre por um período tão longo dentro do tempo histórico, quanto os grandes e rápidos rios se derramam muito dentro do mar e conservam doces as águas levadas com a violência do seu curso; 1 devido àquilo que Iâmblico nos disse acima, nas Dignidades: que os Egípcios atribuíram a Mercúrio Trismegisto todas as suas invenções úteis à vida humana; palavras que confirmamos com aquela outra dignidade: que «as crianças, com as ideias e nomes de homens, mulheres, coisas, que viram pela primeira vez, aprendem e chamam depois todos os homens, mulheres, coisas, que têm com as primeiras alguma semelhança ou relação», e que esta era a grande fonte natural dos caracteres poéticos, com os quais naturalmente pensaram e falaram os primeiros povos. Natureza das coisas humanas sobre a qual, se Iâmblico tivesse reflectido e com ela tivesse conformado esse costume dos antigos Egípcios que ele próprio refere, como dizemos nas Dignidades, certamente não teria introduzido à força, nos mistérios da sabedoria vulgar dos Egípcios, os sublimes mistérios da sua sabedoria platónica. 2
1
2
Cfr. os parágrafos 249 e 629. C fr. os parágrafos 207, 206, 209.
[247]
[413] Ora, por essa natureza das crianças e por esse costume dos primeiros Egípcios, dizemos que a língua poética, em virtude desses caracteres poéticos, nos pode oferecer muitas e importantes descobertas acerca da antiquidade.
[414] Que Sólon deve ter sido um homem sábio em sabedoria vulgar, 3 que fosse caudilho da plebe nos primeiros tempos em que Atenas era república aristocrática. 4 O que a história grega também conservou, quando narra que Atenas foi primeiro ocupada pelos optimates - que é aquilo que nós nestes livros demonstraremos ser universal em todas as repúblicas heróicas, nas quais os heróis, ou seja, nobres, devido a uma certa natureza sua acreditada de origem divina, pela qual diziam serem eles próprios os deuses e, por consequência, próprios deles os auspícios dos deuses, em virtude do que encerravam dentro das suas ordens todos os direitos públicos e privados das cidades heróicas, e aos plebeus, que acreditavam serem de origem animal e, por consequência, serem homens sem deuses e, por isso, sem auspícios, concediam apenas os usos da liberdade natural 5 (que é um grande princípio das coisas que serão reflectidas ao longo de quase toda esta obra) - e que esse Sólon teria admoestado os plebeus por eles se considerarem a si mesmos e reconhecerem serem de natureza humana igual à dos nobres e, por consequência, que deviam ser igualados
3 Privado, portanto, daquela cultura intelectualista que lhe foi atribuída por Platão e por outros escritores antigos. 4 Em vez disso, não viveu nesses tempos, isto é, no fim do século nono, mas algumas centenas de anos depois. 5 Cfr. os parágrafos 377, 449 e 110.
[248]
àqueles em direito civil. 6 A não ser que fossem tal Sólon esses plebeus atenienses, considerados sob este aspecto. 7 (415) Porque também os Romanos antigos terão que ter possuído um tal Sólon8 entre eles; os seus plebeus, nas contendas heróicas com os nobres, como abertamente nos é narrado pela história romana antiga, diziam: os pais, com os quais Rómulo tinha composto o senado (dos quais esses patrícios tinham provindo) , «non esse caelo demissos», 9 · to é, que não tinham a tal origem divina de que eles se vangloriavam e que Júpiter era igual para todos. Que é a história civil daquele mote: ... Iupiter omnibus aequus, 10 onde depois introduziram os doutos aquela sentença: que as mentes são todas iguais e que adquirem diversidade da diferente organização dos corpos e da diferente educação civil. 11 Consideração com a qual os plebeus romanos começaram a igualar os patrícios na liberdade civil, até que, de facto, mudaram a república romana de aristocrática para popular, como esta-
6
Em vez disso, a historiografia tradicional contava que, privilégio, até
à sua reforma, dos eupátridas, os direitos civis e pelo menos parte dos políticos, foram, por virtude daquela, estendidos a toda a cidadania. 7 Se, porém, nele não foi personificado, miticamente, o conceito abstracto da desejada, e depois conseguida, paridade política entre eupátridas e plebeus. Ou seja, Sólon, seria um carácter poético, ou seja, personificação das aspirações dos plebeus atenienses. 8 Isto é, uma personificação rrútica do conceito abstracto indicado na nota precedente. 9 Lív10 , X , 8, no qual, por outro lado, a frase possui o significado, meramente irónico, de mão terem chovido do céu•. 10 M ais exactamente: •R ex Iuppiter omnibus idem .• Cfr. VlRGÍUO, Aen ., X, III. 11 Possível alusão específica a Pt OTINO, Enneadi, Iv, 5, ou mesmo alusão genérica aos platónicos e aos estóicos, senão mesmo a Locke e aos empiristas.
[249]
belecemos por hipótese nas Anotações à Tábua Cronol6giet1, 12 onde reflectimos tendo na ideia a lei Publília, e daremos a ver ter isso acontecido, de facto, 13 não apenas na romana, como em todas as outras antigas repúblicas, e com razões e autoridade demonstraremos 14 que, principiando a partir dessa reflexão acerca de Sólon, universalmente os plebeus dos povos mudaram as repúblicas de aristocráticas para populares. (416) Assim, Sólon foi feito autor daquele célebre mote «Nosce te ipsum», 15 que, pela grande utilidade civil que tinha trazido ao povo ateniense, foi inscrito em todos os lugares públicos daquela cidade; 16 e, depois, os instruídos quiseram-no dito como um grande conselho, como de facto o é, acerca das coisas metafísicas e morais, e Sólon foi tornado por sábio de sabedoria oculta e feito príncipe dos sete sábios da Grécia. Desse modo, porque a partir de tal reflexão começaram em Atenas todas as ordens e todas as leis que formam urna república democrática, por isso, por esta maneira de pensar por caracteres poéticos dos primeiros povos, tais ordens e tais leis, como pelm Egípcios todas as descobertas úteis para a vida humana civil o foram a Mercúrio Trismegisto, 17 foram todas referidas pelos atenienses a Sólon. 18
12
Cfr. os parágrafos 104-114. No parágrafo 598. 14 No parágrafo 621 . 15 Atribuído pela tradição não a Sólon, mas diversamente a Tales, Bias e Quílon. 16 Em vez disso, estaria inscrito em Delfos, no templo de Apolo. 17 Cfr. o parágrafo 68. 18 Pelo contrário, as mais importantes ordenações democráticas foram atribuídas à posterior reforma que se conhece com o nome de Clístenes. 13
[250)
II
[417] Assim, devem ter sido atribuídas a Rómulo 19 todas as leis relativas às ordens. 20 III
[418] A Numa, muitas relativas às coisas sagradas e às cerimónias divinas, nas quais se manifestou depois a religião romana nos seus tempos ma.ts pomposos. IV
[419] A Túlio Hostílio, todas as leis e ordens da disciplina militar.
v [420] A Sérvio Túlio, o censo, que é o fundamento das repúblicas democráticas, e outras leis, em grande número, relativas à liberdade popular/ 1 pelo que é aclamado por Tácito 22 «praecipuus sanctor legum)). Porque, como demonstraremos, o censo de Sérvio Túlio foi a base das repúblicas aristocráticas, com o qual os plebeus obtiveram dos nobres o donúnio bonitário dos campos, por causa do qual se criaram depois os tribunos da plebe para lhes defender esta parte da liberdade natural que, depois, pouco a pouco, fizeram com que conseguissem toda a liberdade civil; e, assim, o censo de Sérvio Túlio, porque daí começaram as circunstâncias e os movimen-
19
Cfr. o parágrafo 532. Em torno às várias classes sociais: portanto, leis constitucionais. 21 Cfr. desde os parágrafos 107 e 111 e, mais adiante, os parágrafos 619-623. 22 Arrrr., III, 26. 20
[251]
tos, tornou-se o censo base da república romana popular, como se reflectiu nas anotações à lei Publilia por via de hipótese, e aqui se demonstrará ter de facto sido verdadeiro. VI
[421] A Tarquínio Prisco, todas as insígnias e divisas, com as quais, depois, nos tempos mais luminosos de Roma, resplendeu a majestade do império romano.23
VII [422] Assim, devem ter-se agregado às XII Tábuas muitíssimas leis que aqui demonstraremos terem sido ordenadas nos tempos seguintes; e (como plenamente se demonstrou nos Prinápios do Direito universaQ,24 porque a lei do domínio quiritário dos nobres tornado comum aos plebeus foi a primeira lei escrita em tábua pública (pela qual unicamente foram criados os decênviros), por esse aspecto de liberdade popular todas as leis que igualizaram a liberdade e se escreveram depois em tábuas públicas foram referidas aos decênviros. Disto dará também aqui urna demonstração o luxo grego dos funerais, 25 que os decênviros não devem ter ensinado aos Romanos, pois que o proibiram, mas depois de os Romanos o terem recebido; o que não pôde acontecer senão depois das guerras com os Tarentinos e com Pirro, nas quais começaram a tomar conhecimento com os Gregos; 26 e assim é que Cícero27 observa essa lei transposta para o latim com as mesmas palavras com as quais tinha sido concebida em Atenas. 23
24 25 26 27
Cfr. o parágrafo 96. Cfr. Opp., II , pp. 564-580 e, aqui adiante, os parágrafos 1412-1454. Cfr. o parágrafo 1422. Cfr. o parágrafo 116. De legg., II, 25
[252]
VIII (423] Assim Dragão/ 8 autor das leis escritas com o sangue no tempo em que a lústória grega, como acima se disse,29 nos narra que Atenas estava ocupada pelos optimates: que foi, como adiante veremos, 30 no tempo das aristocracias heróicas, no qual a mesma história grega conta que os Heraclidas estavam espalhados por toda a Grécia, inclusivamente na Ática, 3 1 como acima propusemos na Tábua Cronológica, 32 os quais finalmente se quedaram no Peloponeso e fixaram o seu reino em Esparta, a qual comprovaremos33 ter sido certamente república aristocrática. E esse Dragão deve ter sido uma daquelas serpentes da Górgona 34 gravada no escudo de Perseu, que se comprovará significar o império das leis, escudo esse que petrificava com as pavorosas penas aqueles que o olhavam, tal como na lústória sagrada, porque tais leis eram esses castigos exemplares, se denominam «leges sanguinis» 35 e com esse escudo se armou Minerva, que foi denominada 'At'}llvã como será explicado adiante, de modo mais completo;"6 e, entre os Chineses, que ainda escrevem com lúeróglifos,37 (que deve provocar admiração
28
Drácon. No parágrafo 414. 30 N o parágrafo 592. 31 Vico quer apenas dizer que as severissimas penas heróicas do tempo em que os H eraclidas estavam espalhados por toda a Grécia, foram depois personificadas, miticamente, no tempo posterior de D rácon. 32 Cfr. o parágrafo 77 . 33 N o citado parágrafo 592. 34 Isto é: deve ter sido representado núticamente numa das serpentes da cabeça de M edusa. 35 Isto é, escritas com o sangue. 36 Cfr. D ÉMADES, in P LUTARCO, Sólo11, II . 37 Cfr. o parágrafo 83. 29
(253]
uma tal maneira poética de pensar e de se exprimir entre estas duas nações tão longínquas tanto no tempo como no espaço), a insígnia do império civil é um dragão.38 Porque desse Dragão não sabemos mais nada em toda a lústória grega.
IX [424) Esta mesma descoberta dos caracteres poéticos confirma-nos que Esopo está situado bem antes dos sete sábios da Grécia, como nas Notas à Tábua cronológica39 prometemos mostrar neste lugar. Porque essa verdade filológica nos é confirmada por esta lústória das ideias humanas: que os sete sábios foram admirados desde que começaram a transmitir preceitos de moral ou de doutrina civil através de máximas, como aquela célebre de Sólon (que deles foi o príncipe): «Nosce te ipsum», que acima observámos40 ter sido primeiro um preceito de doutrina civil, depois transportado para a metafisica e para a moral. Mas Esopo tinha antes dado tais pareceres por semelhanças, 41 das quais mais anteriormente os poetas se tinham servido para se exprimirem; e a ordem das ideias humanas é a de observar as coisas similares, primeiro para se exprimirem, depois para provar, e isto primeiro pelo exemplo, que se contenta com uma só, finalmente pela indução, que tem necessidade de mais: pelo que Sócrates, pai de todas as seitas dos filósofos, 42 introduziu a dialéctica com a indução, que 43 depois Aristóteles completou com o silogismo, que não se sustenta sem um universal. M.as, para as mentes curtas,
38 39 40 41
42 43
Cfr. o parágrafo 542. No parágrafo 91 . Nos parágrafos 414 e 416. Com personificações núticas. Vico não tem em conta os pré-socráticos. Não a indução, mas a dialéctica.
[254]
basta-lhes apresentar-se um trecho do semelhante para serem persuadidas; 44 como com uma fãbula, feita a partir daquelas que tinha inventado Esopo, o bom Menénio Agripa submeteu à obediência a plebe romana sublevada.45 [425] Que Esopo tenha sido um carácter poético dos associados, ou seja, fâmulos dos heróis, é-nos revelado com um espírito de adivinho pelo bem-educado Fedro, num prólogo das suas Fábulas: 46
Nunc fabularum cur stt mventum genus, brevi docebo. Servitus obnoxia, quia, quae volebat, non audebat dicere, a.ffectus proprios in fabellas transtulit. Aesopi illius semitam f eci viam, 47 como a fãbula da sociedade leonina evidentemente no-lo confirma: porque os plebeus eram denominados «associados» das cidades heróicas, como nas Dignidades48 nós advertimos, e tinham a sua quota-parte nas fadigas e perigos das guerras, mas não nas presas e nas conquistas. Por isso Esopo foi denominado «servo», porque os plebeus, como adiante será demonstrado,49 eram fâmulos dos heróis. E foi-nos referido que era feio, porque a beleza civil50 era avaliada pelo nascer de rnatri.... Cfr. Q UINTIUANO, v, 13. 45 R efere o episódio lendário em que Agripa teria acalmado a plebe sublevada (494 a.C.), narrando a colaboração dos diversos órgãos do corpo humano. 46 No do terceiro livro. 47 «Ensinarei agora brevemente porque se inventou o género literário chamado "fãbula". Sujeitos à servidão, os escravos, que não ousavam dizer o que queriam: pelo que transferiam para as fãbulas os sentimentos próprios. Eu ampliei a matéria daquele Esopo.• 48 Cfr. os parágrafos 258-259. 49 Nos parágrafos 566 e seg. 50 Símbolo da nobreza.
[255]
mornos solenes, que só os heróis contraíam, como também adiante se mostrará: precisamente como foi feio Tersites, ele que deve ter sido carácter dos plebeus que serviam os heróis na guerra troiana, e é por Ulisses espancado com o ceptro de Agamémnon; 51 como os antigos plebeus romanos, com as costas nuas, eram espancados pelos nobres com as varas, «regium in morem», segundo a referência de Salústio, segundo Santo Agostinho, na Cidade de Deus, 52 até que a lei Porcia53 afastou as varas das costas romanas. [426] Tais conselhos, portanto, ' teis para a vida civil livre, devem ter sido sentimentos que nutriam as plebes das cidades heróicas, ditados pelo direito natural: plebeus dos quais, por esse aspecto, Esopo foi feito carácter poético, ao qual depois foram atribuídas as fabulas em torno da filosofia moral;54 e Esopo foi feito o primeiro filósofo moral, da mesma maneira que Sólon foi feito sábio, pois organizou com as leis a república ateniense livre. 55 E, porque Esopo deu esses conselhos através de fabulas, tornou possível que Sólon, depois, os desse através de máximas. Essas fabulas devem ter sido primeiro concebidas em versos heróicos, 56 como depois existe delas a tradição de que foram concebidas em versos jâmbicos, 57 com os quais
51
flfada, II, 211-277. II, 18, 1. 53 Publicada em 198 a. C . Cfr. L íVIO, X , 9; CíCERO, Pro Rab., 4. 54 As fãbulas de Esopo teriam tido originariamente significado político: as interpretações mcrais que a cada uma se juntaram teriam sido acrescentos dos tempos cultos. 55 Cfr. os parágrafos 414-416. 56 Em hexâmetros: conjectura que pode ter algum fundamento na afirmação de Q u rNTILIANO, V, 13, de que o primeiro autor de algumas daquelas fãbulas ter~a sido Hesíodo. 57 Talvez pareça a Vico divisar uma tradição do género no facto de serem escritas em s-enários jâmbicos as fãbulas de Fedro. 52
[256]
aqui adiante nós comprovaremos 58 terem falado as gentes gregas entre o verso heróico e a prosa,59 na qual finalmente nos chegaram escritas.
X [427] Dessa maneira, foram referidas aos primeiros autores da sabedoria vulgar as descobertas, em seguida, da sabedoria secreta; e os Zoroastros no Oriente, os Trismegistos no Egipto, os Orfeus na Grécia, 60 os Pitágoras na Itália, de legisladores, primeiro, acreditou-se depois finalmente que eram filósofos, como Confúcio hoje o é na China.6 1 Porque certamente os pitagóricos, na Magna Grécia, como aqui se mostrará,62 assim se denominaram com o significado de «nobres», que, tendo tentado converter todas as suas repúblicas de populares em aristocráticas, foram todos extintos. 63 E demonstrou-se acima ser o Carme aureo de Pitágoras uma impostura, como os Oráculos de Zoroastro, o Pimandro do Trismegisto, os Óificos ou os versos de Orfeu; 64 nem por Pitágoras foi escrito para esses antigos qualquer livro em torno da filosofia, e Filolau foi o primeiro pitagórico que o escreveu, segundo a observação de Scheffer, D e philosophia italica. 65
58
Nos parágrafos 463-464. Cfr. o parágrafo 233. 60 Cfr. os parágrafos 55 e 59, 66- 68 e 74, 79, 81 . 61 Cfr. o parágrafo 50. 62 Cfr. o parágrafo 1087. 63 Não todos, mas uns quarenta em trezentos. Faz referência aos pitagóricos de C rotona (entre 460 e 450 a. C.). Cfr. Po LiBIO, II, 39;J usTINO, XX, 4, 1. 64 Cfr. os parágrafos 100 e 128. 65 Op. cit., pp. 2-4, onde se atinge EusÉBIO, Contra Hieroclem, in Opera, edição Migne, rv, 816 b. 59
[257]
(CAPÍTULO QuARTO)
COROLÁRIOS ACERCA DAS ORIGENS DAS LÍNGUAS E DAS LETRAS; E, DENTRO DISTO, A ORIGEM DOS HIERÓGLIFOS, DAS LEIS, DOS NOMES, DAS INSÍGNIAS NOBRES, DAS MEDALHAS, DAS MOEDAS; E, PORTANTO, DA PRIMEIRA LÍNGUA E LITERATURA DO DIREITO NATURAL DOS GENTIOS [428] Agora, a partir da teologia dos poetas, ou seja, da metafisica poética, por meio da lógica poética daí nascida, vamos descobrir a origem das línguas e das letras, em torno das quais existem tantas opiniões quantos os doutos que sobre isso escreveram. De modo que Gerhard Johann Voss, na Gramática, 1 diz: «De /itera rum inventione multi multa congerunt, et jus e et confuse, ut ab iis incertus magis abeas quam veneras dudum. >> 2 E Hermann Hugo,3 De origine scribendi, 4 observa: «Nulla alia res est, in qua plures magisque pugnates sententiae reperiantur atque haec tractatio de literarum et scriptionis origine. Quantae sententiarum
1 Aristarcus sive de arte gramatica, in Opera, edição de Amsterdam, Blaev, 1701 , II, 13. 2 Acerca da invenção das letras alfabéticas foram acumuladas muitas coisas por muitos, difusa e confusamente: tanto que, incerto, melhor é manteres-te longe delas do que te aproximares.• 3 Jesuíta belga (1588-1629). 4 De prima scribendi origine et universae rei literariae antiquitate (1618): cfr. a reedição de U trecht, 1738, pp. 13-14.
[259]
pugnae! Quid credas? Quid non credas?» 5 Pelo que Bernard van Mallinckrot, De arte typographica, 6 nisto seguido por Ingewald Elingius/ D e historia linguae graecae,8 perante o incompreensível da matéria, disse ser invenção divina. [429] Mas a dificuldade da matéria foi originada por todos os doutos devido a isto: terem considerado como coisas separadas as origens das letras e as origens das línguas, que estavam interligadas por natureza; e, no entanto, deviam-no advertir a partir das palavras «gramática» e «caracteres». Da primeira, uma vez que se define «gramática» como «arte de falar» e ypáJ..LJ..La'ta são as letras, de modo que seria de definir-se «arte de escrever», como Aristóteles9 a definiu e como, de facto, ela primeiramente nasceu, como aqui se demonstrará que todas as nações primeiro falaram escrevendo, 10 como aquelas que foram primeiramente mudas. Depois, «caractere_s» querem dizer «ideias», «formas», «modelos», e certamente aqueles dos poetas foram anteriores àqueles dos sons 11 articulados, como Josefo vigorosamente sustenta, contra o gramático grego Ápion, que nos tempos de Homero não se tinham ainda encontrado as letras denominadas «vulgares». 12 Para além disso,
5 «Não existe coisa em que se reconheçam tão diversas op1ruoes contraditórias quanto nesta matéria relativa às origens das letras alfabéticas e das escrituras. Quantas batalhas de opiniões! Em que deves acreditar? Em que não deves?». 6 Não no De ortu et progressu artis typographicae (Colónia, 1640), mas no De natura et usu litterarum (Münster, 1638). 7 Professor da Universidade de Upsala. 8 Leipzig, 1691, pág. 49. 9 Topica, p. 142 b 31. 1 Cfr. o parágrafo 226. 11 Primeiro os mitos, aos quais Vico costuma aproximar os hieróglifos, antes dos caracteres alfabéticos. 12 Cfr. o parágrafo 66.
°
[260]
se essas letras fossem formas dos sons articulados e não signos de pacto, 13 deveriam ser uniformes em todas as nações, como esses sons articulados são uniforme em todas. Devido a essa matéria, desesperante de se conhecer, não se conheceu o pensamento das primeiras nações por caracteres poéticos, nem o falar por fãbulas, nem o escrever por hieróglifos: 14 que deviam ser os princípios, que por sua natureza hão-de ser certíssimos, tanto da filosofia para as ideias humanas, como da filologia para as palavras humanas. [430) Devendo nós entrar aqui nesta referida reflexão, daremos um pequeno ensaio sobre as muitas opiniões que dele foram tidas, as incertas, as ligeiras, as indecorosas, as presunçosas, as ridículas, que, por serem tantas e tais, se devem deixar de referir. O ensaio será este: que, porquanto nos tempos bárbaros regressados, a Escandinávia, ou seja, Escândia, devido à presunção das nações, foi denominada «vagina gentium» 15 e se acreditou ser a mãe de todas as outras do mundo, pela presunção dos doutos, Johann e Olof Magnos 16 foram da opinião que os seus godos teriam conservado as letras desde o princípio do mundo, divinamente descobertas por Adão; sonho do qual se riram todos os doutos. Mas nem por isso deixou de os seguir e de os superar J. von Gorp Becan, 17 que faz provir do
13
Se os caracteres alfabéticos tivessem Íntima relação com os sons que representam e não fossem, em vez disso, meros signos convencionais. 14 Três frases que, para Vico, equivalem a •mitificar». 15 JORNANDES, De rebus geticis, 4. 16 Johann Store ou, à latina, Magnus (1488-1544), arcebispo de Upsala, e o seu irmão Olof (?-1568). Do primeiro, veja-se Gothorum Sueonumque historia (Roma, 1544), reeditada em Basileia, 1558, pp. 30-31. Do segundo, De gentium septentrionalium variis conditior1ibus, edição de Basileia, 1567, pp. 46-47, e tradução italiana (Veneza, 1565), p. 22. 17 O filólogo holandês ]. von Gorp Becan (1512-1578).
[261]
paraíso terrestre a sua língua címbrica, a qual não se afasta muito da saxónica, e diz que será a mãe de todas as outras;18 opinião da qual fizeram as fabulas Giuseppe Giusto Scaligero, 19 Johann Camerarius, 2° Christoph Becmann 21 e Martin Schoock. 22 E, além disso, essa presunção inchou mais e irrompeu naquela de OlafRudbeck,23 , na sua obra intitulada Atlântica,24 que pretende terem as letras gregas nascido das runas, e que estas seriam as ferúcias invertidas, que Cadmo restituiu à ordem e ao som semelhante às hebraicas, e finalmente os Gregos tê-las-iam erigido e restituido com régua e com compasso; e, porque o descobridor é denominado entre eles Mercurouman,25 pretende que o Mercúrio que descobriu as letras para os Egípcios tenha sido godo. Com tanta licença de opinar em torno às origens das letras deve o leitor fazer-se avisado para receber estas coisas que nós sobre elas diremos, não só com a indiferença de ver o que no meio apresentam de novo, mas com a atenção de meditar nelas e de as tomar,
18
Tese pan-goticista sustentada por Becan em todas as suas obras. Cfr. entre outras, as Origi~1es Antverpianne (Anruérpia, 1569), pp. 534 e seg. 19 1540-1609. Cfr. as suas Epistolae tLeyden, 1627), pág. 364. 20 N ão Johann, mas Philipp Liebhard de Nuremberg, dito Camerarius (1537-1624) . Cfr. as suas Horae subcessivae sive meditationes historicae (1610) , reimpressão de Frankfurt, 1650, p. 222. 21 Christian Becmann. Cfr. a sua Manuductio ad /atinam linguam (Hannover, 1629, pp. 23-24). 22 Fabula Ham elensis, Groningen, 1622, pp. 6-7. 23 O muito douto médico, botânico, erudito e também tipógrafo Olaf Rudbeck de Westeras (1630-1702), professor na Universidade de Upsala. 24 Atland eller Mannheim (Atlantica sive Mannheim) (Upsala, 1696 sgg.), em quatro imensos volumes in-fólio máximo, impressos na tipografia do autor. Cfr. I, 843, 740, 733, 736 e 742: passos fundidos e resumidos arbitrariamente por Vico. 25 Em vez disso, Merkissman, com o duplo s alemão, trocado por Vico pelo ditongo grego OU .
[262]
tal qual devem ser, como princípios de todo o saber humano e divino da gentilidade. [431] Porque, partindo destes princípios: de conceberem os primeiros homens da gentilidade as ideias através de caracteres fantásticos de substâncias animadas e, sendo mudos, de se exprimirem com actos ou objectos que tivessem relações naturais com as ideias (tal como, por exemplo, o têm o acto de ceifar três vezes ou três espigas para significar «três anos») , e de se exprimirem assim com urna língua que significasse naturalmente, que Platão e Iâmblico diziam ter sido falada uma vez no mundo 26 (que deve ter sido a antiquíssima língua atlântica, a qual pretendem os eruditos que exprimisse as ideias pela natureza das coisas, ou seja, pelas suas propriedades naturais) Y partindo destes princípios, dizíamos, deviam todos os filósofos e todos os filólogos começar a tratar das origens das línguas e das letras. Duas coisas das quais, como dissemos, por natureza conjugadas, trataram separadamente, pelo que se lhes tornou tão difícil a pesquisa das origens das letras, que envolvia uma dificuldade tão grande quanto aquela das línguas, das quais eles muito pouco ou nada se ocuparam. [432] Portanto, no começo do raciocínio sobre disto, coloquemos como primeiro princípio aquela dignidade filológica: 28 que os Egípcios contavam, durante todo o transcorrer do mundo anterior a eles, terem sido faladas três línguas, correspondentes no número e na ordem às três idades também transcorridas anteriormente ao seu mundo: dos deuses, dos
26
Cfr. os parágrafos 401-403, 407, 227. Provavelmente Vico distorce, de acordo com os seus objectivos, urna observação da sua fonte directa, que devem ter sido as anotações de C ASTELVETRO ao Tim eu e ao Crítia.s platónicos, publicadas em 1727, por Muratori, nas póstumas Opere critiche: di:. aí a pág. 276. 28 Cfr. o parágrafo 173 (e também o 52). 27
[263]
heróis e dos homens; e diziam ter sido a primeira língua hieroglífica, ou seja, sagrada, isto é, divina; a segunda, simbólica, ou por signos, ou seja, por divisas heróicas; a terceira, epistolar, para os afastados entre si comunicarem as presentes necessidades da sua vida. 29 Três línguas das quais existem dois trechos de ouro em Homero, na flíada , pelos quais abertamente vêm os Gregos a concordar nisto com os Egípcios. Dos quais um é aquele 30 que conta que Nestor viveu três vidas de homens de diversas línguas: 3 1 de modo que Nestor deve ter sido um carácter heróico da cronologia estabelecida pelas três línguas correspondentes às três idades dos Egípcios; pelo que aquele mote «viver os anos de Nestor» deve ter significado o mesmo que «viver os anos do mundo». O outro é aquele 32 onde Eneias conta a Aquiles que homens de diversas línguas33 começaram a habitar Ílion, depois de Tróia ter sido transferida para a orla marítima e Pérgamo se ter tornado a cidadela. Com esse primeiro princípio conjugamos aquela tradição, também dos Egípcios, que o seu Theut ou Mercúrio descobriu tanto as leis como as letras. 34 [433] A estas verdades associamos aquelas outras: que, entre os Gregos, os «nomes» significaram o mesmo que «caracteres», dos quais os pais da Igreja35 tomaram com uso promíscuo 29
Interpretação arbitrariamente extensiva de C LEMENTE
Stromata, X , 4 (Obras, ed. Migne, II, 39-42): cfr. também Pitágoras, cap. 11 e 12. 30 fllada, I, 250 e seg.
DE Al..ExANoRIA,
P oRFÍRIO,
Vida de
31 Não «de diversas línguas•, mas simplesmente •falantes», ou melhor, «mortais». 32 flfada, XX, 215 e seg. 33 Também desta vez simplesmente •falantes•. 34 Cfr. o parágrafo 66. 35 o pseudo DIONÍSIO AER.OPAGITA no nEpl. &í.rov ÓVO)lá't e «difznitio» significam a mesma coisa, pelo que, em retórica, se diz «quaestío nominis», com a qual se procura a definição do facto; e, em medicina, a nomenclatura das doenças é aquela parte que define a natureza delas. Entre os Romanos, os «nomes» significaram primeiro e propriamente «casas ramificadas em muitas famílias» .36 E que os primeiros Gregos teriam também eles tido os «nomes» com esse referido significado, demonstram-no os patrorúmicos, que significam «nomes de pais», 37 de que tão frequentemente fazem uso os poetas, e mais que todos o primeiro de entre eles, Homero (precisamente como os patrícios romanos são definidos por um tribuno da plebe, 38 segundo Lívio, 39 «qui possunt nomíne ciere palrem», «que podem usar o apelido dos seus pais»), patrorúmicos esses que depois se perderam na liberdade popular de toda a restante Grécia, e foram conservados pelos Heraclidas em Esparta, república aristocrática. E em direito romano significa «lei» e «aloy>> quer dizer «moeda»; 43 e pelos bárbaros retornados 36 Enquanto, dos três nomes de um cidadão romano, era chamado especificamente •nomen>> aquele relativo à gens. 37 Ilação arbitrária. 38 Públio D écio Mure, polemizando com Ápio Cláudio, o cego. 39 X, 8. 40 Mais do que genericamente «direito», especificamente •direito de crédito>> e tan1bém •devedor» (Dig. , L, 16, 4 e 6). 41 Étim a Nic6maco, p. 1133 a 30. 42 Por exemplo, FESTO, ad v. nummum. 43 Cfr. B ERNARD GIRARD, senhor do H :\ILLAN (1535-1610) , in MÉNAGE, Dictionnaire étymologique, ad v. aloy.
[265]
foi denominado «cânone» tanto a lei eclesiástica como aquilo que é pago pelo enfiteuta ao dono da propriedade que lhe foi dada por enfiteuse. 44 Uniformidade de pensamento pelo qual talvez os Latinos denominassem «ius» o direito e a gordura das vítimas 45 que era devida a Júpiter, que primeiro se denominou «lous», donde depois derivaram os genitivos «Iovis» e «iuris» (o que acima se assinalou 46); como, entre os Hebreus, das três partes que compunham a hóstia pacífica, a gordura vinha naquela devida a Deus, que se queimava sobre o altar.47 O s Latinos chamaram «praedia», devendo ter sido assim denominados os rústicos primeiro que os urbanos, porquanto, como adiante nós mostraremos,48 as primeiras terras cultivadas foram os primeiros prédios do mundo;49 donde, o primeiro domínio foi o dessas referidas terras, que, por isso, se denominaram no antigo direito romano «manucaptae» 50 (das quais ficou a ser denominada «manceps» o obrigado ao erário em bens imóveis); 51 e nas leis romanas ficaram a ser denominadas «iura praediorum» 52 as servidões que se denominam «reais», que se constituem em bens imóveis. E essas terras denominadas «manucaptae» devem primeiro ter sido e denominado «mancipia», a partir do que, certamente, se deve compreender a lei das XII Tábuas, no ponto «Qui nexum faciet mancipíumque», isto é, «quem fizer a
44
Cfr. o parágrafo 489. Mais genericamente, o molho dos pratos cozinhados. 46 No parágrafo 398. 47 Êxodo, XXIX, 11 e seg.; Levftico, III, 2-16; VIII, 14 e seg.; IX, 8-20. 48 Cfr. os parágrafos 486 e 1027-1028. 49 Cfr. I SLDORO DE SEVILHA, Origines, XV, 13. ;o Adjectivo formado por Vico com base nas etimologias tradicionais de •mancipium», •manceps», «mancipatio• e o utras palavras afins (cfr., entre outros, F ESTO, ad v. mancipium) . 51 Cfr. F ESTO, ad v. manceps. 52 Mais exactamente, «servitutes praediorum». Cfr. Dig. , VIII , 1, 1. 45
[266]
entrega do vínculo, também com aquela entregará o poden>; 53 donde, com o mesmo espírito dos antigos Latinos, os Italianos chamaram «poderes», porque adquiridos pela força .54 E com isto ficamos convencidos de que os bárbaros retornados 55 denominaram «presas terrarum» os campos com os seus termos; 56 os espanhóis chamam «prendas» às divisas fortes; 57 os italianos chamam «imprese» às armas nobres e dizem «termini» no significado de «palavras>> 58 (o que permaneceu na dialéctica escolástica), e às armas nobres chamam igualmente «Ínsegne», donde provém para os mesmos o verbo «insegnare-.>:59 como Homero,60 no tempo do qual não se tinham ainda inventado as letras denominadas «vulgares», 6 1 disse ter sido escrita a carta de Preto a Euria 62 contra Belerofonte «com O"lli.I.>; o outro, 89 onde Mercúrio dá a Ulisses um segredo contra as bruxarias de Circe, que é chamado pelos deuses l!Õ>ÂU e é
82
83 84 85
86 87
88
89
Cfr. o parágrafo 83. Valerianus, Kircher, etc. Cfr. a nota 1191 . Cfr. o parágrafo 17 4. I, 403-404. Ibid ., XIX, 291. XX, 74. XII, 61, onde Vico acrescenta um 1tÉ'tpaÇ, que não está no texto. X, 305.
[271]
completamente negado aos homens saber. 90 Acerca daqueles trechos Platão9 1 diz muitas coisas, mas em vão; de modo que, depois, Díon Crisóstomo92 calunia93 Homero acerca disso, como sendo impostura que ele entendesse a língua dos deuses, o que é naturalmente negado aos homens. Mas duvidamos se, nestes trechos de Homero, não se deverão talvez entender os «deuses» como os «heróis», que, como pouco adiante se mostrará, tomaram o nome de «deusesJ> sobre os plebeus das suas cidades, a que eles chamavam «homens» (como nos tempos bárbaros regressados os vassalos se denominaram «homines», o que Hotrnann94 observa com espanto), e os grandes senhores (como na barbárie retornada95) se vangloriavam de possuir maravilhosos segredos de medicina; 96 e assim, estas não serão outra coisa senão diferenças dos falares nobres e dos falares vulgares. Porém, sem qualquer dúvida, entre os Latinos disso se ocupou Varrão, que, como nas Dignidades97 se advertiu, teve a diligência de recolher trinta mil deuses, que devem ter bastado para um copioso vocabulário divino, a fim de explicar às gentes do Lácio todas as suas necessidades humanas, que naqueles tempos simples e parcos devem ter sido pouquíssirnas, pois que eram somente as necessárias à vida. Também os Gregos deles enumeram trinta mil, como nas Dignidades98
90
Junte-se um sexto trecho: fl{ada , II, 811-814. Crátilo, pp. 392 e seg. 92 Orações, XI, p. 157 (e cfr. X , p. 149). 93 Mas trata-se de um dito jocoso. 94 Não E Hotmann, o autor da Disputatio de feudis, mas Giacomo C UIACIO, Observationes, VIII, 14, in Opera omttia, edição de Nápoles, 1758, III, 203. 95 Na Idade Média. 96 Cfr. Opp. , VII, 47-48, 269-270. 97 Cfr. o parágrafo 175. 98 Cfr. o parágrafo 175. 91
(272]
igualmente se disse, os quais de cada pedra, de cada fonte ou regato, de cada planta, de cada escolho, fizeram deidades, em cujo número se encontram as Dríades, as Amadríades, as Oréades, as Napeias; precisamente como os Americanos de cada coisa que supera a sua pequena capacidade fazem deuses. 99 De modo que as fãbulas divinas dos Latinos e dos Gregos devem ter sido os verdadeiros primeiros hieróglifos, ou caracteres sagrados ou divinos, dos Egípcios. [438) O segundo falar, que corresponde à idade dos heróis, disseram os Egípcios ter sido falado por símbolos, aos quais se devem reduzir as divisas heróicas, que devem ter sido as semelhanças mudas que são designadas por Homero O'JÍI!a:ta (os signos com os quais escreviam os heróis); 100 e, por consequência, devem ter sido metáforas, ou imagens, ou semelhanças, ou comparações, que depois, com língua articulada, fazem toda a alfaia da fala poética. Porque certamente Homero, por uma resoluta negação de Josefa Hebreu de que não nos tenha chegado qualquer escritor mais antigo do que ele, 10 1 vem a ser o primeiro autor da língua grega e, possuindo nós dos Gregos tudo aquilo que dela nos chegou, foi o primeiro autor de toda a gentilidade. Entre os Latinos, as primeiras memórias da sua língua são os fragmentos dos Carmina saliari, e o primeiro escritor que nos foi referido é o poeta Lívio Andrónico. 102 E, desde o regresso da barbárie da Europa, tendo aí renascido outras línguas, a primeira língua dos Espanhóis foi aquela que denominam «de romance» e, por consequência, de poesia heróica (porque os rornancistas 103 foram os poetas
99
Cfr. o parágrafo 375. Cfr. a nota 1187 ao parágrafo 433. 101 Cfr. o parágrafo 66. 102 Cfr. os parágrafos 469, 471 , 908. 103 Provável alusão a Turpino. 100
[273]
heróicos dos tempos bárbaros regressados); em França, o primeiro escritor vulgar francês foi Arnaldo Daniel Pacca, 104 o primeiro 105 de todos os poetas provençais, que nasceu no undécimo século; 106 e, finalmente, os primeiros escritores na Itália foram rimadores florentinos e sicilianos. 107 [439] O falar epistolar dos Egípcios, conveniente para explicar as necessidades da presente vida comum entre os afastados, deve cer nascido do vulgo de um povo principal do Egipto, que deve ter sido aquele de Tebas (cujo rei, Ramsés, como acima se disse, 108 estendeu o império sobre toda aquela grande nação), porque, para os Egípcios, esta língua corresponde à idade dos «homens», como se designavam as plebes dos povos heróicos, por diferença em relação aos seus heróis, como acima se disse. E deve conceber-se ter provindo da sua livre convenção, por esta eterna propriedade: que é direito dos povos o falar e o escrever vulgar; pelo que o imperador Cláudio, tendo descoberto três outras letras necessárias para a língua latina, o povo romano não as quis aceitar, 109 como os Italianos não aceitaram as descobertas por Giorgio Trissino, que se sente que faltam à fala italiana. 11 0 [440] Estes falares epistolares, ou seja, vulgares, 111 dos Egípcios devem ter sido escritos com letras igualmente vul-
10 4
Segundo apelido acrescentado por Vico a Arnautz Daniel, provavelmente por causa de uma assonância com o apelido do historiador e professor univenitário napolitano Colaniello Pacca (?-1587) . 105 Vico inter reta como prioridade temporal aquela que em PETRARCA, Trionfo d' amare, rv, 40-42, é prioridade de mérito. 106 Em vez disso, entre os séculos XII e XIII. 107 Toscanos e reirúcolas. 108 Cfr. o parágrafo 44. 109 S UETÓNIO , Claud., 41; T ÁCITO, Ann. , XI, 14. 11 0 O «e» e o «O» longos, para escrever, como ele as escrevia, à grega. 111 A prosa.
[274]
gares, 11 2 que se comprovam semelhantes às vulgares fenícias ; pelo que é necessário que uns as tivessem recebido dos outros. Aqueles que opinam terem sido os Egípcios os primeiros descobridores de todas as coisas necessárias ou úteis à sociedade humana, 11 3 em consequência disto, devem dizer que os Egípcios as teriam ensinado aos Fenícios. Mas Clemente de Alexandria, 114 que devia estar melhor informado do que todo e qualquer outro autor sobre as coisas do Egipto, conta que o fenício Sancuniazione, ou Sanconíaton (que, na Tábua cronológica, 115 está situado na idade dos heróis da Grécia), teria escrito em letras vulgares a história fenícia e, assim, propõe-no como primeiro autor da gentilidade que tenha escrito em caracteres vulgares; situação pela qual haverá que dizer que os Fenícios, que foram certamente o primeiro povo mercador do mundo, por causa dos tráficos entrados no Egipto, para ali tenham levado as suas letras vulgares. Mas, sem qualquer necessidade de argumentos e de conjecturas, a tradição vulgar 11 6 certifica-nos que esses Fenícios levaram as letras para a Grécia; tradição acerca da qual reflecte Cornélia Tácito que para ali levaram, como por eles descobertas, as letras descobertas por outros, entendendo os hieróglifos egípcios. Mas, porque a tradição vulgar terá algum fundamento de verdade (como universalmente temos comprovado todas deverem tê-lo) , digamos que para ali levaram as hieroglíficas recebidas de outros, que não poderiam ser senão os caracteres matemáticos ou figuras geométricas que eles tinham recebido dos Caldeus 11 7
11 2 11 3 114
11 5 11 6 11 7
Alfabéticas. Alude-se particularmente a Marsham. Não ele, mas São Cirilo. Cfr. o parágrafo 83. Cfr. ainda o parágrafo 83. Cfr. , entre muitos escritores antigos, particularmente TÁ M era conjectura de Vico.
[275)
rTO,
XI, 14.
(os quais foram, sem dúvida, os primeiros matemáticos e, especialmente, os primeiros astrónomos das nações; donde o caldeu Zoroastro, assim chamado porque «observador dos astros», como pretende Bochart, foi o primeiro sábio do gentilismo 118), e delas se serviram como formas de números nas suas mercadorias, por causa das quais, muito antes de Homero, conviviam nos litorais da Grécia. O que com evidência se prova a partir desses poemas de Homero e, especialmente, da Odisseia, porque, nos tempos de Homero, Josefo sustenta vigorosamente contra o gramático grego Ápion que as letras vulgares não tinham sido ainda comprovadas entre os Gregos. 119 Os quais, com supremo valor de engenho, no qual certamente se adiantaram a todas as nações, transportaram depois essas formas geométricas para as formas dos diversos sons articulados, e com suprema beleza formaram com eles os caracteres vulgares das letras; que, depois, foram acolhidas pelos Latinos, o que o mesmo Tácito 120 observa terem sido semelhantes às mais antigas gregas. Do que gravíssima prova é aquela de que os Gregos, durante longo tempo, e até aos últimos dos seus tempos os Latinos, usaram letras maiúsculas para escrever os números; pois deve referir-se a isso que o coríntio Demarato e Carmenta, mulher121 do árcade Evandro, terão ensinado as letras aos Latinos, 122 como adiante explicaremos123 que foram colónias gregas/ 24 ultramarinas e mediterrâneas, derivadas antigamente para o Lácio.
118
Cfi:. os parágrafos 55 e 59. Cfi:. o parágrafo 66. 120 Ann., XI, 14. 121 Em vez disso, mãe. 122 Em vez disso, o primeiro, aos Etruscos, e aos Latinos, não Carmenta, mas Evandro. Cfi:. T ÁC ITO, loc. cit. 123 Nos parágrafos 762 e 772. 124 Isto é, personificações núticas de colónias gregas. 119
(276]
[441] Nem vale de nada aquilo que muitos eruditos 125 disputam: - terem as letras vulgares dos Hebreus passado para os Gregos, porquanto se observa ser a denominação dessas letras quase a mesma junto de uns e de outros, - sendo mais razoável que os Hebreus tivessem imitado essa denominação dos ·Gregos do que estes daqueles. Porque, desde o tempo em que Alexandre Magno conquistou o império do Oriente (que depois da sua morte foi dividido entre os seus capitães), todos concordam que a linguagem grega se espalhou por todo o Oriente e o Egipto; e, concordando ainda todos que a gramática foi introduzida bastante tarde entre esses Hebreus, é coisa necessária que os literatos hebreus denominassem as letras hebraicas com a denominação dos Gregos. Além de que, sendo os elementos simplicíssimos por natureza, devem ter primeiro os Gregos acentuado os sons simp ·císsimos das letras, 126 que, devido a este aspecto, se devem ter chamado «elementos»; tal como continuaram a acentuá-las os Latinos com a mesma gravidade (com que conservaram as formas das letras semelhantes às mais antigas gregas): portanto, é necessário dizer que tal denominação das letras com palavras compostas seria introduzida tardiamente entre esses Gregos, e mais tarde, pelos Gregos, seria levada para o Oriente aos Hebreus. [442] Por estas coisas reflectidas se dissipa a opinião daqueles 127 que pretendem ter o egípcio Cécrops levado as letras vulgares aos Gregos. Porque a outra, dos que julgam que o ferúcio Cadmo as teria levado do Egipto, 128 porquanto fundou na Grécia uma cidade com o nome de Tebas, capital da maior dinastia dos Egípcios, resolver-se-á depois com os 125 126
Entre outros, B ocHART, Phal. Et Chan ., edição citada, col. 451 e seg. C hamando-lhes originariamente «a» e não «alfa», «he• e não «beta»,
etc. 127 128
Entre outros, Voss, Aristarcus cit. (Opera, II, 15 e seg.). Entre outros, B ocHART, op. cit., col. 448 e seg.
[277]
prinCiptos da Geogrqfia poética, 129 pelos quais se comprovará que os Gregos, conduzindo-se ao Egipto, por urna qualquer semelhança com a sua Tebas natal, teriam assim chamado àquela capital do Egipto. E, finalmente, entende-se porque críticos avisados, 130 como refere o autor anónimo inglês nas Incertezas das Ciências, 13 1 julgam que, pela sua excessiva antiquidade, esse tal Sanconíaton jamais tenha existido no mundo. Donde nós, para não o excluirmos completamente do mundo, avaliamos dever-se colocá-lo em tempos mais próximos, e certamente depois de Homero; e para conservar a maior antiquidade dos Fenícios sobre os Gregos, acerca da invenção das letras a que chamam «vulgares» (com a justa proporção, porém, do quanto os Gregos foram mais engenhosos que esses Fenícios), deve dizer-se que Sanconíaton teria existido um tanto antes de Heródoto (que foi chamado «pai da história dos Gregos», a qual escreveu com fala vulgar) , devido ao que Sanconíaton foi chamado o «histori dor da verdade», 132 isto é, escritor do tempo histórico de que fala Varrão na sua divisão dos tempos:133 tempo do qual, pela divisão das três línguas dos Egípcios, correspondente às três idades do mundo transcorridas antes deles, esses falaram com língua epistolar, escrita com caracteres vulgares. 134 129
Cfi:. os parágrafos 742 e seg. G1 uuo C ESARE S AGLlERO e o irlandês HENR.v D ooWELL (1641-1771), os quais, aliás, negam não a eJcistência, mas a antiguidade de Sanconíaton. 13 1 O «autor anónimo» é THOMAS BAKER (1656-17 40), autor das Rljlexions upon learning, publicadas em inglês, em Cambridge, em 1699, de cuja obra Vico teria conhecido uma tradução francesa editada em Lion, com o título Traité de l'incertitude des scimces, ou a tradição italiana, Tratato de/la incertezza dei/e scienze tradotto in italiana favella, Veneza, 1735. 132 Cfi:. o parágrafo 83. 133 Cfi:. o parágrafo 52. 134 Cfi:. o parágrafo 440. 130
[278]
[443] Ora, assim como a língua heróica, ou seja, poética, foi fundada pelos heróis, assim as línguas vulgares foram introduzidas pelo vulgo, que nós aq i comprovaremos 135 terem sido as plebes dos povos heróicos: línguas que foram propriamente chamadas pelos Latinos «vernaculae», que não podiam introduzir aqueles «vernae» que os gramáticos 136 definem «servos nascidos em casa dos escravos que se faziam na guerra», que naturalmente aprendem as línguas dos povos em que nascem. Mas aqui se comprovará 137 que os primeiros e propriamente ditos «vernae» foram os fâmulos dos heróis no estado das famílias, dos quais depois se formou o vulgo das primeiras plebes das cidades heróicas, e foram os esboços dos escravos, que finalmente das cidades se fizeram com as guerras. E tudo isto se confirma com as duas línguas de que fala Homero:138 urna dos deuses, outra dos homens, que nós aqui acima explicamos como «língua heróica» e «língua vulgan>, e daqui a pouco explicaremos muito melhor. [444] Mas, acerca das línguas vulgares, foi aceite com demasiada boa fé por todos os filólogos que elas teriam o seu significado por pacto, 139 porque essas, devido às suas origens naturais, devem ter significado naturalmente. 140 O que é fãcil de observar na língua vulgar latina (que é mais heróica que a grega vulgar e, por isso, mais robusta, enquanto que aquela é mais delicada), que formou quase todas as palavras por
m Nos parágrafos 597-598 e passim . FESTO e o seu epitomador PAOLO IA ONO, ad v. vem ae. 137 No parágrafo 556. 138 Cfr. os parágrafos 174 e 437. 139 Por convenção. 140 Devido à sua derivação das originárias línguas poéticas, mesmo a linguagem dos tempos cultos é, na maior parte do seu corpo, composta por imagens e, portanto, produto da fantasia. 136
(279]
translações 141 de naturezas, ou de propriedades naturais, ou de efeitos sensíveis; 142 e geralmente a metáfora constitui a maior parte do corpo das línguas em todas as nações. Mas os gramáticos, prostrados pelo grande número de vocábulos que dão ideias confusas e indistintas das coisas, não sabendo as suas origens, as quais deveriam em primeiro lugar ter formado luminosas e distintas, para dar paz à sua ignorância, estabeleceram universalmente a máxima de que as palavras humanas articuladas significam por pacto, e em apoio disto tomaram Aristóteles mais Galeno e outros filósofos , e armaram-nos contra Platão e Iâmblico, como já dissemos. 143 [445) Mas permanece todavia a enorme dificuldade: como é que, tantos quantos são os povos, existem outras tantas línguas vulgares diferentes? Para ela ser resolvida, há que estabelecer aqui esta grande verdade: que, como certamente os povos, pela diversidade dos climas, surgiram com diferentes naturezas, 144 donde surgiram tanto diferentes costumes, assim, das suas diferentes naturezas e costumes nasceram outras tantas línguas diferentes; de modo que, pela mesma diversidade das suas naturezas, assim como observaram as mesmas utilidades ou necessidades da vida humana com aspectos diversos, donde surgiram tantos costumes das nações, geralmente diferentes e, por vezes, contrários entre si, assim, e não de outro modo, surgiram muitas línguas e tão diferentes quanto eles são. O que se confirma de modo evidente com os provérbios, que são máximas da vida humana, as mesmas em substância,
141
Através de metáforas. Cfr. B ACON, De dignitate et augt~tr.entis scietttiarum , VI, I; e também, a seguir, o parágrafo 458 (e, já anteriormente, o parágrafo 153). 143 Cfr. o parágrafo 227. 144 Urna das raríssimas ocasiões em que, em relação ao curso das nações, Vico admite um poder eficaz do clima. 142
[280]
expressas com aspectos tão diferentes quanto foram e são as nações, como nas Dignidades se advertiu. 145 Portanto, as mesmas origens heróicas, conservadas abreviadamente nas línguas vulgares, produziram aquilo que causa tanto espanto aos críticos bíblicos: 146 que os nomes dos mesmos reis , designados na história sagrada de uma maneira, se leiam de outra na profana; porque uma, porventura, [considerou] os homens no que respeita à aparência, ao poder; a outra, no que respeita aos costumes, às divisas ou a outra coisa que tivesse existido: como ainda observamos as cidades da Hungria serem chamadas de um modo pelos Húngaros, de outro modo pelos Gregos, de outro modo pelos Alemães, de outro ainda pelos Turcos. E a língua alemã, que é uma língua heróica viva, 147 transforma quase todos os nomes das línguas estrangeiras nas suas próprias formas nativas; o que devemos conjecturar terem feito os Latinos e os Gregos, onde reflectem sobre tanta coisa bárbara com um belo aspecto grego e latino: o que deve ser a causa da obscuridade que se encontra na antiga geografia e na história natural dos fósseis, das plantas e dos animais. Por isso, nesta obra editada pela primeira vez, foi por nós meditada urna Ideia de um dicionário mental para dar os significados a todas as diferentes línguas articuladas, convertendo-as todas a certas unidades de ideias em substância que, com várias modificações observadas pelos povos, receberam da parte deles diferentes vocábulos; da qual ainda fazemos uso ao reflectir esta Ciência. E disso oferecemos um completíssimo ensaio no ponto quarto, 148 onde damos a ver os pais de família, observados
145
Cfr. o parágrafo 161. Entre outros, B ocHART, Op. cit. , col. 11; H OTTINGER, Histeria orienta/is, Zurique, 1651 , pág. 75; MARsHAM, Op. cit., pp. 26, 510, 571, 585, 596-597, 609. 147 Cfr. o parágrafo 153. 148 Em vez disso, no terceiro livro. 146
(281]
através de quinze aspectos diferentes no estado das famílias e das primeiras repúblicas, no tempo em que se devem ter formado as línguas (de cujo tempo são gravíssimos os argumentos acerca das coisas que se tomam dos significados nativos das palavras, como foi proposto numa dignidade), 149 serem chamados com outros tantos vocábulos diferentes por quinze nações antigas e modernas; lugar que é um dos três pelos quais não nos arrependemos da edição daquele livro. Dicionário que, por outra via, reflecte o argumento que trata Thomas Hayne, 150 na dissertação De linguarum cognatione e nas outras obras De linguis in genere e Jtáriarum linguarum harmonia. 15 1 De tudo isto, reúne-se este corolário: que quanto mais as línguas são ricas nesses falares heróicos abreviados, 152 tanto mais belas são e, por isso, mais belas porque mais evidentes, e porque quanto mais evidentes são, mais verdadeiras e mais fiéis; e, pelo contrário, quanto mais repletas estão de palavras de tais origens ocultas, 153 menos deleitáveis são, porque obscuras e confusas e, por isso, sujeitas a enganos e erros. O que deve suceder às línguas formadas com a mistura de muitos barbarismos, cuja história das suas origens e das suas transposições não nos chegou. [446] Agora, para entrar no dificílimo modo das formações de todas estas três espécies tanto de línguas como de letras, há que estabelecer este princípio: que, como começaram ao mesmo tempo os deuses, os heróis e os homens (porque eram também homens aqueles que fantasiaram os deuses e acredi149
Cfr. o parágrafo 239. 1582-1645. 15 1 Não três, mas uma única dissertação, com o título: Linguarum cognatio, seu de linguis in genere et variarum li11guarum cog11atione (Londres, 1639). 152 Em metáforas, metonírnias, etc., e, no geral, em espontâneos elementos fantásticos . 153 Vocábulos abstractos, devidos a mera convenção. ISO
[282]
tavam ser a sua natureza heróica mistura daquela dos deuses com aquela dos homens), assim, ao mesmo tempo, começaram essas três línguas (entendendo sempre andarem a par de si as letras), porém, com estas três enormes diferenças: que a língua dos deuses foi quase toda muda, pouquíssimo articulada; a língua dos heróis, misturada igualmente de articulada e de muda e, consequentemente, de falares vulgares e de caracteres heróicos, com os quais escreviam os heróis, que Homero chama crru.ta'ta; 154 a língua dos homens, quase toda articulada e pouquíssimo muda, porquanto não existe língua vulgar tão abundante na qual não sejam mais as coisas que as suas palavras. Portanto, foi necessário que a língua heróica, no seu princípio, fosse sumamente descomposta; que é urna grande fonte da obscuridade das fabulas. Do que será exemplo insigne aquela de Cadmo:155 ele mata a grande serpente, semeia os dentes dela, dos sulcos nascem homens armados, lança uma pedra para o meio deles, estes combatem até à morte e, finalmente, esse mesmo Cadmo transforma-se em serpente. Tanto foi engenhoso aquele Cadmo que levou as letras aos Gregos, sobre quem foi transmitida esta fabula, que, como adiante a explicaremos, 156 contém mais de urna centena de anos de história poética! [447] No seguimento do já dito, ao mesmo tempo que se formou o carácter divino de Júpiter, que foi o primeiro de todos os pensamentos humanos da gentilidade, começou paralelamente a formar-se a língua articulada com a onomatopeia, com a qual ainda observamos explicarem-se felizmente as crianças. E esse Júpiter, do fragor do trovão, foi primeiro denominado pelos Latinos «lous»; do sibilar do raio foi deno-
154 155 156
Cfr. a última nota ao parágrafo 433. Cfr. o parágrafo 433 . No parágrafo 679.
[283]
minado pelos Gregos Zeúç; do som que produz o fogo quando arde, deve ter sido denominado pelos Orientais «Un>, donde provém «Urim», a potência do fogo; daquela mesma origem deve ter provindo aos Gregos a de aminação do céu oupavóç e, aos Latinos, o verbo «uro», «queimar»; aos quais, do mesmo sibilar do raio, deve ter provindo «cel», 157 um dos monossílabos de Ausónio, 158 mas pronunciando-o com a ç dos Espanhóis, para que conste a agudeza do mesmo Ausónio, 159 onde acerca de Vénus assim palreia:
Nata saio, suscepta solo, palre edita caelo. 160 Origens dentro das quais há que advertir que, com a mesma sublimidade de invenção da fãbula de Júpiter, como acima observámos, começa igualmente sublime a locução poética com a nomatopeia, a qual certamente Dionísio Longino 161 coloca entre as fontes do sublime, e a adverte, em Homero, 162 no som que deu o olho de Polifemo, quando nele se cravou a trave inflamada de Ulisses, que fez críÇ. (448) Continuaram a formar-se as palavras humanas com as interjeições, que são palavras articuladas pelo ímpeto de paixões violentas, que em todas as línguas são monossílabos. Donde, não está fora do verosímil que, começado a despertar nos homens o espanto desde os primeiros raios, nascesse a primeira interjeição daquela de Júpiter, formada com a palavra «pa!>>, e que depois ficou dobrada «pape!», interjeição de espanto, donde depois nasceu para Júpiter o título de «pai dos homens
157
Mais exactamente, «cael», mas qual apócope jocosa. Décio Magno Ausónio, Techpoegnion, 14, 17. 159 Epigrammat:J, 52 (33) . 160 «Nascida do mar, acolhida pela terra, pelo pai elevada ao céu.• 161 P SEUDO L ONG INO , De sublimitate, VIII , passo aqui referido inexactamente. 162 Odisseia, Xl , 394. 158
[284]
e dos deuses)) e, assim, em seguida, que todos os deuses fossem denominados «pais)), e «mães)) todas as deusas; de que ficaram para os Latinos as palavras «Iupiten>, «Diespitem, «Marspitem , «luno genitrix)), a qual certamente as fabulas nos narram ter sido estéril; e observamos, acima, tantos outros deuses e deusas no céu não contraírem entre si matrimónio (porque Vénus foi denominada «concubina)), e não «mulher)), de Marte) , e todos se chamavam nada mais nada menos do que «pais)) (do que existem alguns versos de Lucílio, referidos nas Notas ao Direito universaQ .163 E denominaram-se «pais)) no sentido em que «patrare)) deve ter significado primeiro o fazer, que é próprio de Deus, 164 como nisso concorda também a língua santa que, narrando a criação do mundo, diz que no sétimo dia Deus repousou «ab opere quod patrarab>.165 Assim, deve ter sido dito «impetrare)), que se diz quase «impatrare)), que na ciência augurai se dizia «impetrire)), que era «obter o bom augúrio)), de cuja origem dizem tantas frivolidades os gramáticos latinos: 166 o que prova que a primeira interpretação foi das leis divinas organizadas com os auspícios, assim chamada quase «interpatratio)).l67 [449] Ora, um tal título divino, devido à natural ambição da soberba humana, tendo-se dele arrogado os homens poderosos no estado das fanúlias, 168 chamaram-se esses «pais)) (o que talvez tenha dado motivo à tradição vulgar de que os
163
Cfr. , anteriormente, as notas ao parágrafo 188. C fr. ISIDORO DE S EVILHA , Origines, IX, S. 165 Génesis, II , 2, onde, aliás, >, no significado de «querela)) de «querelar-se)), que deve ter provindo da interjeição de lamento «pi, pi)); sentimento no qual pretendem que «pipilum)) , em P_auto, 172 seja o mesmo que «obvagulatio)) 173 das XII Tábuas, palavra 174 que deve provir de «vagire>>, que é propriamente o chorar das crianças. Desse modo, é necessário que da interjeição de espanto tenha nascido para os Gregos a palavra 1tatá.v, começada por 1tat; de que há entre eles urna áurea tradição antiquíssima:175 que os Gregos, assustados pela grande serpente chamada Píton, invocaram em seu socorro Apolo com aquelas palavras: iro 1tatá.v, 176 que primeiro acentuaram três vezes lentamente, estando elanguescidos pelo pavor,
169
Provável referência a um passo de L AC TÂNC IO , talvez a V AR.R.ÃO , in Ad. A en., III 578; m as, seguramente, derivação de uma teoria fundamental dos ateístas napolitanos. 170 Verdadeiramente, a diferença era entre «dii maiorum» e «dii minorum gentium» (cfr. o parágrafo 317) , entre os últimos dos quais entravam os homens deificados depois da morte. 171 Cfr. o parágrafo 170. 172 Aulul., III, 2, 31. 173 Mais exactamente: «obvagulatum ito>>. 174 Precisamente, a palavra «vagulatio». Cfr. F ESTO , ad. v. 175 Deformada totalmente pelo nosso autor. Cfr., entre outros, A TENEU, IV; 62, pág. 701. 176 Mais exactamente: Íll 7tatijov. S ÉRVtO ,
[286]
e depois, com o júbilo por Apolo a ter morto, aclamaram-no outras tantas vezes acentuando-as rápido, ao dividirem o ro em dois o, e o ditongo at em duas sílabas. 177 Donde nasceu naturalmente o verso heróico, primeiro espondaico e que depois se tornou dactílico, e dele permaneceu aquela eterna propriedade de que ele cedeu o lugar ao dáctilo em todos os outros lugares, excepto na última sílaba; e naturalmente nasceu o canto, medido pelo verso heróico, sob o ímpeto de paixões violentíssimas, tal como ainda observamos as grandes paixões dos homens resultarem no canto e, acima de todos, os supremamente aflitos e alegres, como se disse nas Dignidades. 178 Isto dito até aqui, será dentro em pouco de grande utilidade, quanto reflectirmos sobre as origens do canto e dos versos. 179 [450] Começaram em seguida a formar-se os pronomes, pois que as interjeições desafogam as paixões próprias, o que se faz mesmo a sós, mas os pronomes servem para comunicar as nossas ideias aos outros acerca daquelas coisas que, pelos nomes próprios, ou nós não sabemos chamar, ou o outro não saiba compreender. E os pronomes, quase todos também, em todas as línguas, são na sua maior parte monossílabos; o primeiro dos quais, ou pelo menos entre os primeiros, deve ter sido aquele que nos ficou naquele trecho de ouro de Énio: 180
Aspice hoc sublime cadens, 181 quem omnes invocant Jovem, 182 177
Segundo Vico, o primeiro hexâmetro espondaico teria sido iro 1ta.táv, iro 1ta.táv, iro 1ta.táv, que teria sido substituído depois por aquele dactílico ióo 1ta.i:áv, ióo 1ta.i:áv, ióo 1ta.i:áv. Em vez disso, H eráclides de Ponto (in ATENEO, loc. cit.) referia que, nas libações sagradas denominadas cmovõa.í. (donde, «espondeU»), se repetia três vezes ii] 1ta.táv. 178 Cfr. o parágrafo 228. 179 Cfr. o parágrafo 463. 180 Cfr. CícERO, De nat. deor., II, 2 e 25; 4 e 16. 181 Correcção: «candens». 182 «Olha este sublime [Céu) ardente, a que todos chamam Júpiter.
[287]
onde é dito «hoo> em vez de «caelum», e nos ficou , em latim vulgar
Luciscit hoc iam, 183 em vez de «albescit caelum». E os artigos possuem, desde o seu nascimento, esta eterna propriedade: a de se colocarem antes dos nomes a que estão ligados. [451] Depois, formaram-se as partículas, das quais a maior parte são as preposições, que também em quase todas as línguas são monossílabos; as quais conservam, em relação ao nome, esta eterna propriedade: a de se colocarem antes dos nomes que as pedem e dos verbos com os quais formam compostos. 184 [452] Pouco a pouco, foram-se formando os nomes; dos quais, nas Origens da língua latina, comprovadas nesta obra editada pela primeira vez, 185 se relembra urna grande quantidade nascida no Lácio, a partir da vida selvagem daqueles Latinos, através da campesina, até à primeira civil, todos formados por monossílabos, que nada têm de origens estrangeiras, nem mesmo gregas, à excepção de quatro palavras: 186 l3oüç, crüç, j.!ÜÇ, cril'Jf , que para os Latinos significa «sebe» e para os Gregos «serpente». 187 Trecho esse que é outro dos três que consideramos logrados naquele livro, porque ele pode dar o exemplo aos doutos das outras línguas da necessidade de indagar as suas origens, com enorme proveito para a república literária; como certamente a língua alemã, que é língua mãe (porquanto nela jamais penetraram a ordená-la nações estrangeiras), possui todas as suas raízes monossilábicas. 188 E terem nascido os nomes 183 184 185 186
187 188
P LAUTO, Amph. , I, 3, 45. •Já este se ilumina». E os verbos compostos alemães? III, parágrafos 369-370. Inexacto. M ais exactamente: uma espécie particular de lagarto. Cfr. os parágrafos 152-153 e 443.
[288)
antes dos verbos é-nos confirmado por esta eterna propriedade: que uma oração 189 não se sustenta se não começa por nome que, expresso ou subentendido, a reja. [453] Por fim, os autores das línguas formaram os verbos, como observamos as crianças expressarem nomes, partículas, e calarem os verbos. Porque os nomes avivam ideias que deixam firmes vestígios; as partículas, que significam essas modificações, fazem o mesmo; mas os verbos significam movimentos, que comportam o antes e o depois, 190 que são medidos pelo indivisível do presente, dificílimo de ser entendido pelos próprios filósofos. E é uma observação física que sustenta bastante aquilo que dizemos, que entre nós vive um homem honesto, afectado por gravíssima apoplexia, que menciona nomes e se esquece completamente dos verbos. E também os verbos que são géneros dos outros - como são «sum» do ser, ao qual se conformam todas as essências, que é o mesmo que dizer todas as coisas metafisicas; >, «da», «dio>, «]ao>. [454] Esta geração das línguas está conforme com os princípios tanto da natureza universal, segundo os quais os
189 190 19 1
No significado de «período sintáctico• ou , talvez, de «proposição». O passado e o futuro. Por exemplo, no parágrafo 582.
[289]
elementos de todas as coisas são indivisíveis, dos quais essas coisas se compõem e nas coisas se vão resolver, como com os da natureza humana particular, por aquela dignidade 192 de que «as crianças, nascidas nesta abundância de línguas e que possuem as fibras do instrumento de articular as palavras molíssimas, começam-nas monossilábicas»: pois com muito mais devem ser avaliados os primeiros homens dos gentios, que as tinham duríssimas e não tinham ainda ouvido palavra humana. Para mais, ela dá-nos a ordem com que nasceram as partes da oração e, consequentemente, as razões naturais da sintaxe. 193 [455] Coisas essas que parecem todas mais razoáveis do que aquilo que Giulio Cesare Scaligero 194 e Francisco Sánchez 195 nos disseram a propósito da língua latina. Como se os povos que descobriram as suas línguas tivessem primeiro que ir à escola de Aristóteles, com cujos princípios ambos raciocinaram!
192
Cfr. o par.igrafo 231. São as conjecturas expostas nos parágrafos 447-453 acerca da génese das várias partes do discurso. 194 No De causis /inguae latinae (Leão, 1540). 195 Francisco Sánchez (1523-1601). Cfr., dele, Minerva sive de causis linguae latinae, de q·.1e se deve ver a reedição de Amsterdão, 1664, com notas de Gaspar Schoppe. 193
(290]
(CAPÍTULO QUINTO]
COROLÁRIO ACERCA DAS ORIGENS DA LOCUÇÃO POÉTICA, DOS EPISÓDIOS, DA VOLTA, DO NÚMERO, DO CANTO E DOVERSO [456] Dessa maneira foi formada a língua poética pelas nações, composta por caracteres divinos e heróicos, 1 depois expressos com falares vulgares e, finalmente , escritos com caracteres vulgares.2 E nasceu toda da pobreza de língua e da necessidade de se exprimir; o que se demonstra com essas primeiras luzes da locução poética, que são as hipóteses, as imagens, as semelhanças, as comparações, as metáforas, as circunlocuções, as frases explicando as coisas pelas suas propriedades naturais, as descrições recolhidas dos efeitos, ou mais diminutos ou mais ressentidos e, finalmente , pelos acrescentamentos enfaticos e mesm o ociosos. [457] Os episódios3 nasceram dessa grosseria das mentes heróicas, que não sabiam discernir o próprio das coisas que servisse o seu propósito, como vemos usá-los naturalmente os idiotas e, sobretudo, as mulheres. [458] As voltas 4 nasceram da dificuldade de introduzir os verbos na linguagem, que, como vimos,5 foram os últimos a 1 2 3 4
5
Mito, poesia e escrita hieroglífica. Prosa e escrita alfabética. No significado pejorativo de «digressão inútil». Inversões sintácticas. No parágrafo 453.
[291]
ser descobertos; pelo que os Gregos, que foram mais engenhosos, voltearam o fala~ menos que os Latinos, e os Latinos menos do que aquilo que fazem os Alemães. [459] O número prosaico foi entendido tardiamente pelos escritores - na língua grega desde Górgias leontino e, na latina, desde Cícero -, pois antes, segundo refere o mesmo Cícero/ tinham exprimido as numerosas orações com certas medidas poéticas; o que será muito útil daqui a pouco, 8 quando reflectirmos sobre as origens do canto e dos versos. [460] Por tudo isto, parece ter-se demonstrado que a locução poética nasceu, por necessidade de natureza humana, antes da prosaica;9 como por necessidade de natureza humana nasceram essas fabulas, universais fantásticos , 10 antes dos universais reflectidos, ou seja, filosóficos, que nasceram por meio desses falares prosaicos. Pois, antes, tendo os poéticos começado a formar a fala poética com a composição das ideias particulares (como foi plenamente aqui demonstrado) , dessa vieram depois os povos a formar os falares da prosa, ao contraírem em cada urna das palavras, como num género, as partes que tinham composto a fala poética; e, daquela frase poética, por exemplo: «Ferve-me o sangue no coração)) (que é falar por propriedade natural, eterno e universal a todo o género humano), do sangue, da fervura e do coração fizeram urna só palavra, como um género, que foi denominado pelos Gregos O"'tÓJ..I.O.XOÇ 11 pelos Latinos «ira)), pelos Italianos «collera)). Com igual passo,
6
Usaram inversões sintácticas. Orator, 49; De oratore, III, 44. 8 Nos parágrafos 461 e seg. 9 Cfr. o parágrafo 409. 1 Cfr. os parágrafos 205 e 209. 11 N ão por eles (no significado de , como nos assegura Festo;40 pois deve ter nascido em Itália na idade de Saturno, que corresponde à idade de ouro dos Gregos, na qual Apolo, como os outros deuses , convivia na terra com os homens. E Énio, segundo o mesmo Festo,41 diz que, em Itália, os faunos exprimiam com esse verso o factos , ou seja, os oráculos (que, certamente, entre os Gregos. como agora se disse, se exprimiam em versos hexâmetros) ; mas , depois, ficaram denominados «versos saturninos)) 05 jâmbicos senários, talvez porque assim, depois , naturalmente se falava nesses versos
35
Em vez disso, na Metqftsica Poética (parágrafo 381) . Alusão à lendária Fermonoe, sacerdotisa de Apolo, não só pretensa inventora do hexâmetro, como presumida autora do prin1eiro hexâmetro co nhecido. 37 M era conjectura de Vico. 38 Cfr. MACR Ó BIO, Saturn ., l, 17. 39 N o parágrafo 449. 40 Sexto Pompeio Festo (século II d. C.), autor de um epítome do De sign!ficatu verbo rum de V é r rio Fiaco. Os termos estão dispostos alfabeticamente em vinte livros (a primeira metade da obra perdeu-se). Cfr. a palavra Saturnus. 41 Em vez disso, segundo CíCERO , Brutus, 10; Orator, 51. 36
[297]
saturninos jâmbicos, como antes se tinha naturalmente falado em versos saturninos heróicos. 42 [465] Se bem que, hoje, os doutos da língua santa estejam divididos em opiniões diferentes acerca da poesia dos Hebreus, se ela é composta por metros ou verdadeiramente por ritmos, porém, Josefo,43 Fílon, 44 Orígenes45 e Eusébio 46 estão a favor dos metros, e (o que interessa sumamente ao nosso propósito) São Jerónimo 47 pretende que o livro de Job, que é mais antigo que o de Moisés, teria sido urdido em verso heróico desde o princípio do terceiro capítulo até ao início do parágrafo quadragésimo segundo. [466] Os Árabes, ignorantes das letras, 48 como refere o autor anónimo da Incerteza das ciências,49 conservam a sua língua com o guardar na memória os seus poemas, até ao ponto de inundarem as províncias orientais do império grego. [467] Os Egípcios escreviam as memórias dos seus defuntos nas siringas, ou colunas, 50 em verso, chamadas «sin>, que quer dizer «canção»; donde procede o nome «Sirena», deidade sem dúvida célebre pelo canto, no qual Ovídio 51 diz ter sido igual-
42
Insustentável hipótese de Vico. Antiqq. lHdaicae, II, 16, 4; rv, 8, 44; VII, 12 (10), 3. 44 De vita contemplativa, p. 902 b-c. 45 Nada do género nele existe, embora citado a tal propósito pela fonte directa de Vico, isto é, por São Jerónimo. 46 Preparatio evangelica, XI, 5. 47 Praifatio in Job. 48 Ignorantes da escrita alfabética. 49 Baker, recordado no parágrafo 442: cfr. a citada tradução francesa, pp. 311-312. 50 Não •colunas•, mas «subterranei et jluxuosi secessus» (•subterrâneos e tortuosos esconderijos»), em cujas paredes eram inscritos os hieróglifos (AMIANO MARCELINO , XXI, 15, 30). 51 Metam ., I, 690-691 . 43
[298]
mente célebre, tanto quanto em beleza, a ninfa denominada Sírinx: origem pela qual se deve igualmente dizer que teriam primeiro falado em versos os Sírios e os Assírios. 52 [468] Certamente os fundadores da humanidade grega foram os poetas teólogos, 53 e esses foram heróis, e cantaram em verso heróico. [469] Vimos 54 que os primeiros autores da língua latina tinham sido os Sálios, que foram poetas sagrados, dos quais se possuem os fragmentos dos versos sálios, que têm um ar de versos heróicos, 55 sendo a mais antiga memória da fala latina. Os antigos Romanos triunfantes deixaram as memórias dos seus triunfos também com ar de verso heróico, 56 como Lúcio Emílio Regilo aquele:
Duello magno dirimendo, regi bus subiugandis, 57 Acilio Glábrio aquele outro:
Fudit, Jugat, prosternit maximas legiones, 58 e outros três. Os fragmentos da lei das XII Tábuas, se bem neles se reflectir, na maior parte dos seus capítulos vêm a terminar em versos adónios, que são últimos resíduos de versos heróicos; o que Cícero deve ter imitado nas suas Leis,59 que começam assun: 52
Cfr. os parágrafos 304 e 440. A expressão denota aqui, em sentido restrito, somente Orfeu, Lino, Anfíon e o aedo Museu. 54 No parágrafo 438. 55 O s únicos três versos sobreviventes são própria e verdadeiramente saturninos. 56 Em versos sarurninos. 57 Cfr. LiviO, XL, 52. «Combate grande dirimindo, subjugando rei». 58 CÉSIO BASso, in Gramatici latini, edição Keil, VI, 265. «D errota, põe em fuga , aniquila as legiões mais poderosas». 59 II, 8. 53
[299]
Deos caste adeunto. Pietatem adhibento. Donde, segundo referência do mesmo, deve ter provindo aquele costume romano: de as crianças, para dizê-lo com as palavras dele, «tanquam necessarium carmen», andarem a cantar essa lei; 60 não diferentemente, conta Eliano6 1 que o faziam as crianças cretenses. Porque certamente Cícero, famoso descobridor do número prosaico entre os Latinos, como Górgias leontino o tinha sido entre os Gregos (o que acima 62 se reflectiu), devia ter nojo na prosa, e prosa de tão grave argumento, não apenas de versos tão sonoros, incluindo os jâmbicos (que tanto se assemelham à prosa), dos quais se absteve ao escrever mesmo cartas familiares. 6~ Donde, sobre tais espécies de verso é necessário que sejam verdadeiras aquelas tradições vulgares: das quais a primeira se encontra em Platão,64 que diz que as leis dos Egípcios foram poemas da deusa Ísis; a segunda encontra-se em Plutarco, que conta que Licurgo deu aos Espartanos as leis em verso, 65 a quem, com uma lei particular, tinha proibido de saber as letras; a terceira encontramo-la em Máximo de Tiro, 66 que refere ter Júpiter dado a Minos as leis em verso; a quarta e última, referida por Suídas,67 é a de que Drácon ditou em verso as leis aos atenienses, que também nos vem vulgarmente referido tê-las escrito com sangue. 68 60
Diz, aliás, que na escola deviam memorizá-la. Ulriae historiae, II, 39. 62 No parágrafo 459. 63 Cfr. De oral., III, 47 . 64 Leis, p. 637 a, onde se diz algo bastante diferente. 65 Licurgo, 4, 2-3, onde igualmente e diz uma coisa diferente. 66 Oraz ioni, XII, 7 e XXXVIII, 2, onde nada se fala acerca de leis versificadas. 67 Ad v. ôpáKoov, edição Bernhardy, I, 1456, onde se fala realmente de ) como leis de Júpiter; maternas a partir dos quais, nas leis romanas, se denominam «mathematici» os astrólogos judiciários. 15 [478] Dos Romanos é famoso o verso de Énio aqui acima referido: 16 Aspice hoc sublime cadens, quem omnes invocant !ovem, tomado o pronome «hoo>, como se disse, no significado de «coelum»; e entre os mesmos se denominaram «templum coeli», pois também acima 17 assim foram denominadas as regiões do céu desenhadas pelos áugures para recolher os auspícios. E daí se quedou para os Latinos «templum» para designar todo o lugar que em todas as partes tem a perspectiva livre e em nenhuma impedida;18 donde há «ex templo» no significado de «imediatamente»19 e, à maneira antiga, Virgílio denominou «neptunia templa» o mar.20 [479] Dos Germanos antigos refere T ácito 21 que adoravam os seus deuses dentro de lugares sagrados, que denomina «lucos et nemora>>, que devem ter sido clareiras cortadas dentro do refií-
14
Cfr. o parágrafo 391 . (o jurisconsulto), Receptae sententiae, V, 25. 6 ' Cfr. o parágrafo 370. 17 No parágrafo 391. 18 P AULO D IÁCONO, epítome de Festo, ad v. templum . 19 VARRÃO, De língua lat., VII, 13. 20 Mais do que Vt RGiuo, Aen., VIII, 695, que tem «arva nova neptunia», cfr. P LAUTO, Mil . Glor., 413 (e cfr. Rudens, 908-909). 21 Germ., 9. 15
P AULO
[307]
gio dos bosques (costume esse que deu grande trabalho à Igreja para desabituá-los, como se recolhe nos concílios anetense 22 e bracarense/ 3 deixados por Burckhard24 na R ecolha dos decretos), e ainda hoje se conservam vestígios deles na Lapónia e Livónia.25 [480] Dos Peruanos comprovou-se que denominam Deus absolutamente «o Sublime», 26 cujos templos, a céu aberto, são colinas donde se sai de dois lados por escadas altíssimas, altura na qual baseiam toda a sua magnificência. 27 Donde, por todo o lado, a magnificência dos templos é, pois, baseada numa sua muito disforme altura. O cimo dos quais, muito de acordo com o nosso propósito, se comprova, de acordo com Pausânias,28 denominar-se Ó.E'tÓÇ, que quer dizer «águia»; porque se desarborizavam as florestas para ter a perspectiva de contemplar donde provinham os auspícios das águias, que voam mais alto do que todos os pássaros. E, talvez por isso, foram esses cimos denominados «pinnae templorum», donde depois devem ter sido denominado «pinnae murorum», 29 porque sobre os limites 22
Erros (não de Vico, mas da sua fonte) , por •arelatense» e, portanto, alusão ao concílio que decorreu em Arles, em 412, e do qual se deve consultar o cânone XXIII (alias XXII) , em GIANDOMENICO MANsi (1692-1765), Sacrorum conciliorum ~tova et amplissima collectio (Florença e Veneza, 1757 e anos seguintes), VII, 881 (e cfr. 878). 23 Um dos quatro concílios realizados em Braga, Portugal, respectivamente em 412, 563, 572 e 675. Cfr. MANsi, IX, 844. 24 Burchard, bispo de Worms (?-1026). Dos seus Decretorum libri XX cfr. a edição de Colónia, 1548, ff. 133 a e 135 a. 25 Nada do género surge nos livros de viagem mais difundidos no tempo de Vico. Algo, porém, se divisa em FILIPE KLüvER (1580-1623), Germaniae antiquae libri tres (Leiden, 1616), I, 280- 290. 26 Ac o STA, op. e trad. cit., f. 99 a. 27 Troca provável com alguns templos mexicanos, descritos por AcoSTA, f. 107 a- b. 28 X , 19, 3 (cfr. também I, 24, 5) . 29 Cfr., entre outros, VARRÃO, De língua latina, V. 142.
[308]
desses primeiros templos do mundo se ergueram depois os muros das primeiras cidades, como em seguida veremos. E, finalmente, em arquitectura quedaram denominadas «aquilae» o que agora denominamos as «ameias» dos edificios. 30 [481] Mas os Hebreus adoravam o verdadeiro Altíssimo, que está no alto do céu, no refúgio do tabernáculo; e Moisés, por onde quer que o povo de Deus estendia as suas conquistas, ordenava que fossem queimados os bosques sagrados3 1 que Tácito refere, dentro dos quais se fechassem as «luzes)). [482] Donde se apreende que, por toda a parte, as primeiras leis foram as divinas de Júpiter. De cuja antiquidade deve ter resultado, nas línguas de muitas nações cristãs, o tomar «o céu)) por «Deus)): como nós Italianos dizemos «queira o céu)), «tenho esperança no cém, expressões nas quais entendemos «Deus)); o mesmo é usado pelos Espanhóis; e os Franceses dizem «bleu)) por «azul)), e porque a palavra «azul» é expressão de coisa sensível, devem ter entendido «bleu)) pelo «cém; e, assim, como as nações gentias tinham entendido «o céu)) por «]úpite[)), devem ter os Franceses pelo «céu)) entendido «Deus)) naquela sua ímpia praga «moure bleu/)) 32 por «morra Deus! )), e ainda dizem «parbleuf», «por Deus! )). E este pode ser um ensaio do Vocabulário mental proposto nas Dignidades, sobre o qual acima se reflectiu Y II
[483] A certeza dos domínios produziu grande parte da necessidade de comprovar os «caracteres)) e os «nomes)) no 30
T ácito, Hist., III, 71. Êxodo, XL, I (e cfr. XXXIV; 13); Deuterónimo,VII, 5; XII, 3; XVI, 21; e cfr. Selden, Opera, ed. cit. , I, 174 e 232. 32 Morblel{ . 33 Cfr. o parágrafo 162. 31
[309]
significado nativo de «casas ramificadas em muitas famílias)), que com a sua suprema propriedade se denominaram «gentes))34. Assim, Mercúrio Trismegisto, carácter poético dos primeiros fundadores dos Egípcios, como nós demonstrámos, descobriu para eles tanto as leis como as letras35 . De tal Mercúrio, que igualmente se acreditou ter sido deus das mercadorias, os Italianos (cuja uniformidade de pensar e de se exprimir, conservada até aos nossos tempos, deve causar admiração) denominam 42 com o significado de «literato» e, ao contrário, entre os Italianos, como num belo texto de Dante,43 dizia-se «laico» para dizer «homem que não sabia as letras». Antes, entre os mesmos sacerdotes reinou tanta ignorância, que se lêem escritos assinados pelos bispos com o sinal da cruz, porque nem sabiam escrever os seus próprios nomes; e os prelados doutos tão-pouco sabiam escrever, como a diligência do padre Mabillon 44 , na sua obra De re diplomatica , dá a ver gravadas em cobre as assinaturas dos bispos e arcebispos nas actas dos concílios daqueles tempos bárbaros, que se observam escritas com letras mais informes e feias do que aquelas que escrevem os mais ignorantes idiotas de hoje em dia. 45 E, no entanto, tais prelados eram, para mais, os chanceleres dos reinos de Europa, de que restaram três arcebispos chanceleres 46 para as três línguas (um para cada uma) : alemã, francesa e italiana; e a partir desses, por essa maneira de escrever letras
39
No parágrafo 433. Analfabetas. 41 Exagero. 42 MÉNAGE, Dictiormaire, ad v. clergie. 43 N ão de Dante, mas sobre Dante, exibido a partir de uma crónica antiga e referido pelo monsenhor DELLA C ASA, no § 106 do Galateo. 44 O beneditino Jean Mabillon (1632-1707), erudito e filólogo. 45 Exagero. 46 De Maguncia, de Colónia e de Tréveris. 40
[311]
com essas formas irregulares, deve ter sido denominada a «escrita chancelaresca»Y Devido a essa referida escassez, foi ordenado por uma lei inglesa que um réu de morte que soubesse as letns, como excelente em arte, não devesse morrer:48 daí, talvez, que depois a palavra «literato» se alargasse a significar «erud.to». 49 [486] Pela mesma inópia de escritores, nas casas antigas não observamos paredes em que não esteja gravada uma qualquer divisa. Por outro lado, foi denominada pelos Latinos bárbaros «terrae presa» a propriedade com os seus confins, e pelos Italianos foi denominada «podere» a partir da mesma ideia pela qual tinha sido denominada pelos Latinos «praedíum>>; porque as terras transformadas em cultivado foram as primeiras presas do mundo, e as terras foram denominadas «mancípía» pela lei das XII Tábuas, e denominadas «praedes» e «mancípes» as obrigações em bens imóveis, principalmente em relação ao erário, e «Íura praediorum» as servidões que se denominam «reais». Por outro lado, pelos Espanhóis foi denominada «prenda» a «divisa forte», porque as primeiras divisas fortes do mundo foram o dominar e transformar em cultivado as terras: 50 que se comprovará51 ser o maior de todos os trabalhos de Hércules. As divisas, de novo, entre os Italianos foram ditas «insegna», 52 no sentido de «coisa significante:) (donde provém ser dito pelos mesmos «insegnare»53); e diz-se também «divisa», porque
47
Em vez disso, teve esse nome da chancelaria papal, que continuou a usá-la até ao fin: do século XV e o princípio do XVI. 48 O Beneficium clericale remontante a Eduardo, o Confessor. 49 Isto é, pessoa culta. 50 Sobre tudo isto cfr. o parágrafo 433. 51 Nos parágrafos 540 e seg. 52 Insígnias. 53 Ensinar.
[312]
as insígnias foram comprovadas como signos da primeira divisão das terras, que antes tinham sido, em seu uso, comuns a todo o género humano; pelo que os termos, primeiro reais , desses campos, foram depois tomados pelos escolásticos por termos vocais, ou seja, por palavras significativas, que são os extremos das proposições.54 Uso de termos que, entre os Americanos, como se viu acima, têm precisamente os hieróglifos, para distinguir entre si as famílias. 55 (487) De tudo isto se conclui que a grande necessidade das insígnias terem significação, nos tempos das nações mudas, deve ter sido motivada pela certeza dos domínios, que, depois , passaram a insígnias públicas na paz; donde provieram as medalhas, que, depois, tendo-se introduzido as guerras, se encontraram preparadas como insígnias militares,56 que têm o primeiro uso dos hieróglifos, pois as guerras se faziam geralmente entre nações de palavras articuladas diferentes e, por consequência, mudas entre elas. 57 Coisas essas que, todas aqui reflectidas, admiravelmente nos são confirmadas serem verdadeiras por isto: que, por uniformidade de ideias, entre os Egípcios, 58 os antigos Toscanos, 59 os Romanos e os Ingleses, que o usam como ornamento das suas armas reais, se formou este hieróglifo, entre todos uniforme: uma águia no cimo de um ceptro, que entre estas nações, divididas entre si por imensos espaços de terra e de mares, deve ter igualmente significado que os reinos
54
Cfr. o parágrafo 434. Cfr. o parágrafo 435. 56 As bandeiras ou, mais exactamente, o brasão ou divisa que ali é tecido ou pintado. 57 IsiDORO DE S EVILHA, Origh1es, XVIII, 3: • vexillum ... sigrrum militare mutum». 58 P LUTARCO, De lside et Osiride, § 51, interpretado muito livremente. 59 Etruscos. Cfr. DIONÍSIO DE H ALICA.F..NASSO, III , 61 . 55
[313]
tiveram os seus começos dos primeiros reinos divinos de Júpiter em virtude dos seus auspícios. Finalmente, tendo-se introduzido os comércios com dinheiro cunhado, encontraram-se as medalhas preparadas para o uso das moedas, que, do uso dessas medalhas, foram denominadas pelos Latinos «monetae>>, de «monendo», como das insígnias foi dito «insegnare» pelos Italianos. Assim, de VÓ!lOÇ proveio VÓ!lt>; e os Franceses denominam «loy>> a lei e «aloy>> a moeda; falares esses que não podem ter provindo de outro lado senão da «lei» ou «direito», significado com hieróglifo, que é precisamente o uso das medalhas. 60 Tudo o que admiravelmente nos é con-firmado pelas palavras «ducado», denominado de «ducendo», 6 1 que é próprio dos capitães; «soldo», donde se diz «soldado»; 62 e «escudo», arma de defesa, que antes significou o fundamento das armas nobres, que primeiro foi a terra cultivada de cada pai no tempo das famílias , como adiante será demonstrado. 63 Deve, assim, fazer-se luz sobre as muitas medalhas antigas, onde se vê ou um altar, ou um lítuo, 64 que era a vara dos áugures com que se recolhiam os auspícios, como acima se disse, ou um tripé, onde se exprimiam os oráculos, de que procede aquele mote «dictum ex tripode>>, «dito de oráculo». [488] Dessa espécie de medalhas devem ter sido as asas que os Gregos nas suas fabulas aplicaram a todos os corpos,
60
Cfr. o parágrafo 433. Em vez disso, do ducado de Puglia, onde o ducado foi cunhado primeiramente, em 1140. 62 Cfr. V tNCENZIO B oRGHINI, Colonie militari, in Opere, Florença, 1584, I, 429. 63 No parágrafo 529. 64 Cfr. o parágrafo 475. 61
[314]
significando direitos de heróis fundados nos auspícios. 65 Como Idantirso, entre os hieróglifos reais com que respondeu a Dario, mandou um pássaro;66 e os patócios romanos, em todas as contendas heróicas que tiveram com a plebe (como explicitamente se lê na história romana), para conservarem os seus direitos heróicos, opunham este direito: «auspicia esse sua». 67 Precisamente como, na barbárie retornada,68 se observam as divisas nobres carregadas de elmos com cimeiras que se adornam de penachos e, nas Índias ocidentais, não se adornam de penas senão os nobres.69 IV
[489] Assim, aquele que foi denominado «lous», Júpiter, e, contraído, se disse «ius», deve ter significado, antes de mais nada, a gordura das vítimas devida a Júpiter, conforme aquilo que sobre isto acima se disse.70 Tal como na barbárie regressada se denominou «cânone» tanto a lei eclesiástica como aquilo que paga o enfiteuticário ao dono directo, uma vez que talvez as primeiras enfiteuses tivessem sido introduzidas pelos eclesiásticos/ 1 que, não as podendo cultivar, davam as propriedades 65
No sentido de que as asas, das quais na mitologia grega estão fornecidos Astreia, Mercúrio, Saturno, a Fama, a Vitória, Cupido, o cavalo Pégaso, etc., teriam sido na origem brasões usados pelos heróis para indicar que as suas terras, os seus direitos, etc., lhes proviriam das leis de Júpiter, ou seja, dos auspícios. 66 Cfr. o parágrafo 435. 67 Cfr. o parágrafo 110. 68 Na época medieval. 69 Alusão aos diademas perúgeros dos peles-vermelhas e interpretação arbitrária de AcoSTA, trad. cit., f. 132 b. 70 No parágrafo 433. 71 Em vez disso, usadas na origem apenas pelos primeiros imperadores do Oriente para tornar frutuosos os bens dominiais improdutivos, depois estendida aos dos privados, finalmente codificada por Zenão.
[315]
das igrejas a cultivar a outros. Com estas duas coisas aqui ditas concordam as duas ditas acima: uma, sobre os Gregos, para os quais VÓJ..LOÇ significa a lei e VÓJ..ltcrJ..la a moeda; a outra, sobre os Franceses, que denominam «loy>> a lei e «aloy» a moeda. 72 Da mesma maneira, e não de outro modo, aquele foi denominado «Ious optimus» por > e «pecuniae». 65 Tudo isto comprova com demasiada gravidade o poder monárquico que haviam tido os pais no estado de natureza sobre as suas famílias, o qual depois esses devem ter conservado (como veremos adiante que se conservaram de facto) naquele das cidades heróicas; as quais devem ter nascido aristocráticas, isto é, repúblicas de senhores, porque a mantiveram ainda no interior das repúblicas populares. Coisas essas que serão por nós adiante 66 plenamente reflectidas. [514] A deusa Juno ordena grandes trabalhos a Hércules, denominado tebano, que foi o Hércules grego (porque toda a antiga nação gentia teve um que a fundou, como nas Dignidades foi por nós supramencionado), 67 porque a piedade com
61
Cfr. J usnNIANO, lnstitutiones, l, 19, 7. Cfr., entre outros, U LPIANO, in Dig., L, 16, 195, I. 63 «Seja lei aquilo que o pai de família dispuser por testamento acerca do património e da tutela.» 64 Sobre este carácter imperativo do legado testamentário cfr. U LPIANO, Fragmenta, XXIV, I. 65 Inexacto no que diz respeito aos filhos. 66 Na PoUtica poética. 67 Cfr. o parágrafo 196. 62
[336]
os matrimoruos é a escola onde se aprendem os primeiros rudimentos de todas as grandes virtudes; e Hércules, com o favor de Júpiter, com cujos auspícios tinha sido gerado, 68 todas supera; e foi denominado 'Hpaú.:í'\ç, quase "Hpan xÀÉoç, «glória de Juno», avaliada a glória, com justa ideia, tal como Cícero a define,69 como «fama divulgada por méritos para com o género humano», tanto quanto deve ter sido a dos Hércules por, com os seus trabalhos, terem fundado as nações. Mas - obscurecendo-se com o tempo estas severas significações, e com o efeminizarem-se os costumes, e tomada a esterilidade de Juno como natural, e os ciúmes como consequência dos adultérios de Júpiter, e Hércules por filho bastardo de Júpiter70 - com nome totalmente contrário às coisas, tendo Hércules superado todos os trabalhos, a despeito de Juno, com o favor de Júpiter, foi atribuído a Juno todo o opróbrio, e Juno foi considerada inimiga mortal da virtude. E aquele hieróglifo ou fabula de Juno/' suspensa no ar com uma corda ao pescoço, com as mãos também atadas com uma corda e com duas pesadas pedras presas aos pés, que significavam toda a santidade dos matrimónios (no ar, devido aos auspícios que necessitavam para as núpcias solenes, pelo que a Juno foi dada como ministra Íris e atribuído o pavão, que com a cauda a íris assemelha; com a corda ao pescoço, para significar a força feita pelos gigantes sobre as primeiras mulheres; - com a corda atando as mãos, que, depois, em todas as nações se enobreceu com o anel, para demonstrar a sujeição das esposas aos maridos; com as pesadas pedras nos pés, para denotar a estabilidade das
68
Cfr. o parágrafo 508. No Pro Marcel/o, 8. 7 Cfr. o parágrafo 513. 71 Cfr. H OMERO, II., XV, 18-20, aqui referido inexactamente e fantasiosamente interpretado. 69
°
[337]
núpcias, pelo que Virgílio denomina «coniugium stabile»72 o matrimónio solene), tendo depois sido tomado por cruel castigo do adúltero Júpiter, com esses referidos sentidos indignos que lhe deram os tempos posteriores dos costumes corruptos, tanto atormentou até agora os mitólogos.73 (515] Por estas razões, precisamente, o que Mâneton fez com os hieróglifos egípcios74 tinha feito Platão com as fabulas gregas, observando nelas, por um lado, a inconveniência dos deuses com esses referidos costumes e, por outro, a conveniência com as suas ideias. E na fabula de Júpiter introduziu a ideia do seu éter, 75 que escorre e penetra tudo, por aquele
.. .Iovis omnia plena, como também acima dissemos:76 mas o Júpiter dos poetas teólogos não esteve mais alto que os montes e a região do ar onde se geram os raios. Naquela de Juno introduziu a ideia do ar respirável:77 mas Juno não gera de Júpiter, e o éter com o ar produz tudo. 78 (Tanto com tal mote entenderam os poetas teólogos aquela verdade da física que ensina que o universo se enche de éter; e aquela outra da rp.etafísica, que demonstra a ubiquidade que os teólogos naturais atribuem a
72
Corrija-se para «comtubium•, como escreve VIRGÍLIO, Ae11. , I, 73 e IV;
126. 73 Entre os quais Vico desejava aludir, de um modo particular a Voss, De origine et progressu idolatriae, in Opera, edição citada, V, 268-269. 74 Ilação de Vico. 75 Cfr. o parágrafo 379. 76 Cfr. o parágrafo 490. n No sentido de que entre as possíveis etimologias de "Hpa indicou também ai]p. 78 Entenda-se: no caso de Júpiter e Juno terem sido, respectivamente, símbolos do éter e do ar, o seu matrimónio, em vez de estéril, teria que ter sido ultrafecundo.
(338]
Deus!). Sobre o heroísmo poético ergueu o seu filosófico : que o herói estava acima do homem, 79 não apenas do animal (o animal é escravo das paixões; o homem, posto a meio, combate as paixões; o herói comanda com prazer as paixões) e, assim, que a natureza heróica estava entre a divina e a humana. E achou conveniente o Amor nobre dos poetas (que foi denominado "Eproç a partir da mesma origem donde é denominado Típroç o herói), 80 imaginado alado e vendado, e o Amor plebeu, sem venda e sem asas, para explicar os dois amores, divino e animal: aquele vendado às coisas dos sentidos, este nas coisas dos sentidos absorvido; aquele eleva-se com as asas à contemplação das coisas inteligíveis, este sem asas nas sensíveis se lança.81 E de Ganimedes, raptado por uma águia ao céu de Júpiter, que para os poetas severos quer dizer o contemplador dos auspícios de Júpiter, tornado depois, desde os tempos corruptos, delícia nefanda de Júpiter, com bela oportunidade fez o contemplativo de metafisica, 82 que, com a contemplação do ente supremo, pela via que ele denomina «unitiva», se teria unido com Júpiter. [516] Dessa maneira, a piedade e a religião fizeram os primeiros homens naturalmente prudentes, pois se aconselhavam com os auspícios de Júpiter:- justos, desde a primeira justiça para com Júpiter que, como já vimos,83 deu o nome
79
Verdadeiramente, não (cfr. R epública, p. 391 d); mas, devido à identidade quase completa estabelecida ab antiquo entre o «herói• e o «demónio>> platónicos, também Vico, como outros, cita como definição platónica do herói aquela que no Convfvio, p. 202 c, é dada do demónio. 80 Cfr. o parágrafo 508. 81 P LATÃO , C01wfvio, p. 101 , a-d, com contínuas glosas puramente viquianas. 82 Vico troca o Convfvio de P LATÃO com o de XENOFONTE , do qual se veja VIII, 30. 83 No parágrafo 398.
[339]
ao para dizer «é belo)) 86) ; - nem como a imaginaram os filósofos ,87 que os homens leriam no peito de Júpiter as leis eternas do justo; porque, primeiramente, leram na presença do céu as leis que lhes eram ditadas pelos raios. E, em conclusão, as virtudes dessa primeira idade foram como aquelas dos Citas que acima, nas Anotações à Tábua cronológica, 88 tanto ouvimos louvar, os quais cravavam uma faca na terra e a adoravam como deus (com que, depois, justificavam os assassinatos): isto é, virtudes pelos sentidos, misturadas de religião e de imanidade; como seria a conduta de tais costumes entre eles pode ainda hoje observar-se nas bruxas, como nas Dignidades foi observado. 89
Cfr. HoMERo, Od., IX, 112: portanto, não no discurso de Polifemo a Ulisses. 85 Especialmente no parágrafo 1009. 86 Em vez diss , para dizer •agrada». 87 Alusão aos jusnaturalistas e, designadamente, a G RÓCIO , op. cit., Prolegometta, § 12. 88 Cfr. o parágrafo 100. 89 Cfr. o parágrafo 190. 84
[340]
[517] Dessa primeira moral da supersticiosa e feroz gentilidade proveio aquele costume de consagrar vítimas humanas aos deuses, como se sabe dos mai antigos Fenícios, entre os quais, quando alguma grande calamidade os ameaçava, como uma guerra, fome , peste, os reis consagravam os seus próprios filhos para aplacar a ira celeste, como conta Fílon de Biblos; 90 e faziam ordinariamente esse sacrifício de crianças a Saturno, segundo refere Quinto Cúrcio. 9 1 O que, como conta Justirlo,92 foi conservado depois pelos Cartagilleses, gente sem dúvida procedente da Fenícia (como aqui se observa) , e foi por eles praticado até aos seus últimos tempos, como o confirma Énio 93 naquele verso:
Et poinei solitei sos saemficare puellos, 94 que, depois da derrota infligida por Agátocles, sacrificaram duzentas crianças nobres aos seus deuses para os aplacar.95 E com Fenícios e Cartagineses co cordaram em tal costume impiamente piedoso os Gregos com o voto e sacrificio que Agamérnnon fez da sua filha Ifigénia. O que não deve provocar admiração a quem quer que reflicta sobre a ciclópica potestade paterna dos primeiros pais do gentilismo, que foi praticada pelos mais doutos das nações, como foram os Gregos,96 e pelos mais sábios, como foram os Romanos ,97 ambos os quais, até nos tempos da sua mais culta humanidade, tiveram o arbítrio de matar os seus filhinhos recém-nascidos. Reflexão
90
ln E uSÉBIO, Praepar. Evang., I, 10, 44.
91
rv, 3, 23.
92
XVIII, 5, 12 e XIX, 1, 11. ln f ESTO, ad v. puel/i e em N ON IO MARCELLO, ad v. puel/os.
93 94
95 96 97
«E os Car tagineses sacrificavam habitualmente os próprios filhos». PESCÉNIO FESTO, in LACTÂNCIO, Div. inst. , I, 21, 13. Provável referência à R epública de Platão, p. 460 c. Cfr. o parágrafo 410.
[341]
essa que certamente deve diminuir-nos o horror que nesta nossa mansuetude, até agora, nos é feito sentir por Bruto, que decapita dois fill-_os seus que tinham conjurado para repor no reino romano o tirano Tarquínio, e por Mânlio, denominado «o imperioso», que corta a cabeça ao seu generoso filho que tinha combatido e vencido contra a sua ordem. Afirma César98 que tais sacrifícios de vítimas huma as tinham sido celebrados pelos Galos; e Tácito, nos Anais, 99 conta acerca dos Ingleses que, com a ciência divina dos druídas (cuja presunção dos doutos pretende que tenham sido ricos de sabedoria secreta), das entranhas 100 das vítimas humanas adivinhavam o futuro: feroz e imane religião essa que foi proibida por Augusto aos Romanos que viviam em França, e foi interdita por Cláudio aos próprios Galos, segundo conta Suetónio na vida deste César. 10 1 Assim, os doutos das línguas orientais pretendem que os Fenícios tivessem espalhado pelas restantes partes do mundo os sacrifícios de Moloch (que Mornay, 102 Driesche 103 e Selden 104 dizem ter sido Saturno), com os quais queimavam um homem vivo. Tal a humanidade que os Fenícios, que levaram aos Gregos as letras, andavam ensinando pelas primeiras nações da mais bárbara gentilidade! De um semelhante costume desumaníssimo dizem que Hércules teria purgado o Lácio: o de deitar no Tibre homens vivos sacrificados, e teria introduzido
De bel/o gal/i~ . VI, 16. XIV; 30. 100 Das vísceras. 10 1 Claudius, § 25. Cfr. também PLINTO, Nat. hist., XXXI, 1. 102 Philippe de Morna.y, senhor de Plessis-Ma.rly (1549-1623), o chamado «papa dos huguenotes•. Cfr. dele o De veritatae religiottis christiattiae (1580), reimpresso em Leyden, 1687, p. 485. 103 O hebraísta. holandês J. va.n Driesche (1550-1616) . Cfr. o seu Ad voces hebraicas Novi Testamenti commentarius (Franeker, 1616), I, 119. 104 De diis syrií.i, in Opera, edição citada, II, 318 98 99
[342]
o de os deitar feitos de junco. 105 Mas Tácito 106 conta terem sido solenes os sacrifícios de vítimas humanas entre os antigos Germanos, que certamente, durante todos os tempos de que se tem memória, estiveram fechados a todas as nações estrangeiras, de modo que os Romanos, com todas as forças do mundo, não puderam neles penetrar. E os Espanhóis comprovaram-nos na América, escondida até há dois séculos atrás a todo o resto do mundo: onde aqueles bárbaros se alimentavam de carnes humanas (segundo observa Lescarbot, 107 De Francia nova 108 ), que deviam ser de homens por eles consagrados e mortos (sacrifícios esses que são narrados por Oviedo, 109 De historia indica 11 0) . De modo que, enquanto os Germanos antigos viam na terra os deuses , os Americanos faziam outro tanto (como acima uma e outra coisa foi dita por nós'"), e os antiquíssimos Citas eram ricos em tantas áureas virtudes quantas há pouco ouvimos louvar aos escritores; 11 2 nesses mesmos tempos celebravam tal inumaníssima humanidade! Todas estas foram aquelas que Plauto denominou «Saturni hostiae>>, 113 tempo no qual pretendem os autores que tivesse sido a idade de ouro do Lácio. 114 Tanto foi ela calma, benigna, discreta, tolerante e justa! 105
Cfr., entre outros, CícERo, Pro Roscio Amerino, 55. Cerm ., 9. 107 Marc Lescarbot de Vervins (?-1630) , advogado junto do Parlamento de Paris. 108 Histoire de la nouvelle France (1609) , terceira edição (Paris, 1648), pp. 720 e 724 e seg. 109 O viajan te e historiador asturiano don Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés (1478-?). 11 0 Primera parte de la historia 11atural y gmeral de las Indias, etc. (1547, s. 1.), f. LVIII. 111 No parágrafo 375. 11 2 Cfr. o parágrafo 100. 11 3 Cfr. o parágrafo 191. 114 Cfr. o parágrafo 73. 106
[343]
[518) De t do isto deve concluir-se quanto terá sido vã, até agora, a presunção dos doutos acerca da inocência do século de ouro, observada desde as primeiras nações gentias; que, de facto, foi um fanatismo de superstição, que mantinha sob um certo dever os primeiros homens do gentilismo, selvagens, orgulhosos, ferocíssimos, com um forte pavor de uma divindade por eles imaginada. Reflectindo sobre tal superstição, Plutarco 11 5 põe o problema: se teria sido mal menor venerar assim os deuses impiamente, ou não acreditar de todo nos deuses. Mas ele não contrapõe com justiça tal superstição feroz com o ateísmo: porque com aquela surgiram lurninosíssimas nações, mas com o ateísmo não se fundou no mundo nenhuma, conforme acima, nos Prinápios, 116 se demonstrou. [519) E seja isto dito sobre a moral divina dos primeiros povos do género humano perdido: sobre a moral heróica reflectiremos adiante, no seu devido lugar. 117
115 11 6 117
No tartado De/la superstiz ione, cap. 10, p. 169. Nos parágrafos 333-335. Nos parágrafos 666-668.
[344]
[SEcçÃo QuARTA - ECONOMIA POÉTICA] [CAPíTULO PRIMEIRO]
DA ECONOMIA POÉTICA, 1 E AQUI DAS FAMÍLIAS QUE PRIMEIRO FORAM DE FILHOS [520] Sentiram os heróis, através dos sentidos humanos, aquelas duas verdades que compõem toda a doutrina econórnica,2 que as gentes latinas conservaram com estas duas palavras de «educere» e de «educare»; 3 das qu ·s, com predominante elegância, a primeira pertence à educação do ânimo, e a segunda à do corpo. E a primeira foi , com douta metáfora, transposta pelos físicos para o extrair as formas da matéria; 4 porquanto com tal educação heróica se começou, de certo modo, a extrair a forma da alma humana, que nos vastos corpos dos gigantes estava, de facto, sepultada pela matéria, e começou-se a extrair a forma desse corpo humano de justa corporatura dos seus desmesurados corpos gigantescos. 5
1
Regimento das fanúlias nos tempos pré-históricos. A economia poética tem por objecto as práticas educativas do género humano dos tempos primitivos. 2 Pedagogia familiar. 3 VARRÃO, concordando com N O NIO MARCELLO , V, 105, aqui inexactamente referido. 4 Isto é: a edução, antes de se referir a coisas físi cas (cfr., por exemplo, •gladium>> e ovagina•), foi referida a coisas morais personificadas ou mitificadas (por exemplo, «animus ex corpore>>). 5 Cfr. os parágrafos 371 e 524.
[345]
[521] E, por aquilo que respeita à primeira parte, como nas Dignidades se advertiu,6 devem ter sido os pais heróis, no estado dito «de natureza», os sábios em sabedoria de auspícios, ou seja, sabedoria vulgar; e, em consequência dessa tal sabedoria, devem ter sido os sacerdotes que, como mais dignos, deviam sacrificar para procurar, ou seja, bem compreender os auspícios; e finalmente, os reis, que deviam levar as leis dos deuses às suas famílias , no próprio significado da palavra «legisladores», isto é, «portadores das leis», como depois o foram os primeiros reis nas cidades heróicas, que levavam as leis dos senados reinantes ao povo, como nós acima observámos, nas duas espécies das assembleias heróicas de Homero, uma denominada 13ovÂ:JÍ e a outra àyopá, nas Anotações à Tábua cronol6gica. 7 E , tal como naquela os heróis estabeleciam as leis oralmente, nesta oralmente as publicavam (porquanto as letras vulgares não tinham sido ainda inventadas) ; pelo que os reis heróicos levavam as leis desses senados reinantes aos povos nas pessoas dos duúnviros, que esses tinham criado precisamente para que as ditassem, como fez Túlio Hostilio àquela na acusação de Horácio. De modo que esses duúnviros se tornavam leis vivas e falantes; que é aquilo que, não o entendendo Tito Lívio, não se faz compreender, como acima observámos,8 quando conta o julgamento de Horácio. [522] Essa tradição vulgar sobre a falsa opinião da sabedoria inenarrável dos antigos 9 ofereceu a Platão a tentação de desejar, em vão, aqueles tempos em que os filósofos reinavam ou filosofavam os reis. 10 E, certamente, aqueles pais, como nas
6
Cfr. o parágrafo 250. Cfr. o parágrafo 67 . 8 No parágrafo SOO. 9 Cfr. o parágrafo 128. 1 ° Cfr. o parágrafo 253 . 7
[346]
Dignidades 11 se advertiu, devem ter sido reis monárquicos familiares, superiores a todos nas suas famílias e somente submetidos a Deus, providos com poderes armados de espantosas religiões e consagrados com imarússimas penas, como devem ter sido aquelas dos polifemos, nos quais Platão reconhece os primeiros pais de família do mundo. 12 Tradição essa que, mal recebida, deu grave ocasião a esse erro comum a todos os políticos: 13 o de acreditar que a primeira forma de governo civil no mundo teria sido a monárquica; pelo que aqueles oferecem princípios injustos da coisa política: 14 que os reinos civis nasceram ou pela força declarada ou pela fraude, que depois desembocou na força . Mas, naqueles tempos, todos de orgulho e arrogância, pela fresca origem da liberdade bestial 15 (de que, também acima, propusemos uma dignidade), 16 com a suprema simplicidade e rudeza de tal vida, em que estavam contentes com os frutos espontâneos da natureza, com a água das fontes e o dormir nas grutas; com a natural igualdade do estado, no qual todos os pais eram soberanos nas suas famílias; não se pode, de facto, compreender nem fraude nem força , com que alguém pudesse submeter todos os outros a uma monarquia civil; prova essa que será feita detalhadamente, mais adiante. 17
11
Nos parágrafos 251 e 254. Cfr. o parágrafo 296. 13 Alude-se de modo particular a Grócio, ao seu anotador, o sábio humanista holandês Johannes Fredericus Gronovius (1611-1671) e ao francês Jean Bodin (1520-1596) . 14 Polemiza-se, por um lado, contra os socinianos e, por outro, contra Epicuro, Maquiavel e, especialmente, Hobbes (cfr. o parágrafo 1109). 15 A errância ferina. 6 ' Cfr. os parágrafos 290-291. 17 Cfr. o parágrafo 555 . 12
[347)
[523] Seja agora lícito reflectir aqui somente quanto foi necessário para que os homens do gentilismo, da sua ferina liberdade nativa, ao longo de muito tempo de ciclópica disciplina familiar, 18 se encontrassem domesticados, nos Estados que mais tarde se haveriam de tornar civis, obedecendo naturalmente às leis. Do que quedou aquela eterna propriedade: que aí as repúblicas são mais beatas do que aquela que idealizou Platão, onde os pais não ensinam nada mais do que a religião, e são ali admirados pelos filhos como os seus sábios, reverenciados como os seus sacerdotes e são ali temidos como reis. Tanta e tal força divina era ali necessária para converter aos deveres humanos os gigantes tão desajeitados quanto ferozes! Força essa que, não podendo expressá-la em abstracto, expressaram-na em concreto com o corpo de uma corda, 19 que foi denominada em grego xopõá, e em latim se denominou primeiro para dizer «plebeus», porque, como veremos adiante, 42 os heróis habitavam as cidades, os fimulos os campos. (526] Mas, acima de tudo, por causa das fontes perenes, foi dito pelos políticos43 que a comunidade da água teria sido a ocasião para que se unissem de perto as famílias e que, assim, as primeiras comunidades fossem denomirladas pelos Gregos , «Deus Iacob)). 48 Em torno do que, entre as leis de Cícero,49 existe aquela assim concebida: «Sacrafamiliaria perpetua manento)); donde existe a frase, tão frequente nas leis romanas, com a qual um filho de família se diz estar «in sacris paternis)), e se denomina «sacra patria)) essa potestade paterna, 50 cujos direitos, nos primeiros tempos, como se demonstra nesta obra, se acreditava serem todos sagrados. Devemos dizer ter sido um tal costume observado entre os bárbaros que vieram depois: porque em Florença, nos tempos de Giovanni Boccaccio (como o atesta na Genealogia dos deuse~ 1 ), no início de cada ano, o pai de família, sentado à lareira, deitava incenso e vertia vinho por cima de um cepo a que se pegava fogo; o que se observa entre a nossa baixa plebe napolitana, na noite da vigília do santo N atal, quando o pai de família deve solenemente deitar
47
O jurisconsulto Jacob R aewaerd von Brugge (1534-1568) publicou, em 1563, não uma reconstrução das XII Tábuas, mas uma breve monografia de título Ad leges XII Tabularum : cfr. Opera, edição de Lyon, 1623, I , 102 e seg. Porém, Vico compreende mal um passo de Denis Godefroi (1549- 1622), no qual é citado Raewaerd. Cfr. a sua edição comentada do Corpus iuris dvilis, reimpressão de Genebra, 1781, II, 756- 764. 48 Cfr., por exemplo, Êxodo, III, 15. 49 De legibt1s, II, 9. 50 Deformação de um passo de C~.RLO SJGON IO (1524-1584), De antiquo iure populi romani, edição de Halle, 1718, I , 117. 51 Edição de Veneza, 1497, f. lxxxij b; e cfr. a tradução italiana de Betussi, Veneza, 1588, pág. 206.
[353]
fogo a um cepo assim posto na lareira; 52 e, no Reino de Nápoles, as famílias são enumeradas por fogos .53 Assim, fundadas as cidades, veio o costume universal de que os matrimónios sejam contraído entre os cidadãos; e, finalmente, quedou aquele: que, quando forem contraídos com estrangeiros, tenham entre eles, pelo menos, a religião comum. 54 [527] Ora, regressando do fogo à água, Estige, por quem juravam os deuses,55 foi a nascente das fontes: pelo que os deuses devem ser os nobres das cidades heróicas (como acima se disse) ,56 porque a comunidade de tal água tinha colocado os seus reinos acima dos homens; 57 daí que, até ao ano CCCIX de Roma, os patrícios mantivessem os conúbios incomunicáveis à plebe, como se disse um pouco acima e mais adiante se dirá.58 Por tudo isto, na história sagrada se lêem frequentemente «poço do juramento» ou (fedor) . Cfr., entre outros, Estrabão, V, 4, 6. 61 No parágrafo 162. 53
n.,
[354]
a partir desta coisa, uruca em substância, se chamaram diferentemente na língua articulada. [528] Assim se fantasiou a terceira divindade maior, 63 que foi Diana; que foi a primeira necessidade humana64 que se fez sentir entre os gigantes estabelecidos em certas terras e unidos em matrimónio com certas mulheres. Os poetas teólogos deixaram-nos descrita a história destas coisas em duas fabulas de Diana. Uma das quais significa para nós a pudicícia dos matrimónios: que é aquela de Diana quando, toda em silêncio, no escuro de densa noite, jaz adormecida com Endírnion; de modo que Diana é casta daquela castidade ordenada por urna das leis de Cícero «Deos caste adeunto))65 (que, se alguém fosse sacrificar, fizesse primeiro as lavagens sagradas) . A outra conta-nos a pavorosa religião das fontes, que conservaram o perpétuo predicado de «sagradas)): que é aquela de Actéon, que, tendo visto Diana nua (a fonte viva), sal icado de água pela deusa (para dizer que a deusa lançou sobre ele o seu grande pavor) , se transformou em veado (o mais tímido dos animais) e foi despedaçado pelos seus cães (os remorsos da própria consciência pela religião violada); de modo que «lymphatí)) (propriamente «salpicado de água pura)), que é o que quer dizer «lympha))) devem ter-se primeiro interpretado esses tais Actéones enlouquecidos de supersticioso pavor. História poética essa que os Latinos conservaram na palavra «latíces)) (que deve provir de «latendo))),66 que têm o perpétuo predicado de «purí)) , e significam a água que brota da fonte; e tais «latíces)) dos Latinos devem ser as ninfas companheiras de Diana, entre os Gregos,
62
63 64 65
66
Na forma plural: por exemplo, Cfr. o parágrafo 317. A água. Cfr. o parágrafo 469. Cfr. S ÉRVIO , AdAm. , I, 490.
«Atheua~:», • Theba~:»,
[355]
etc.
para os quais «nymphae» significavam o mesmo que «lymphae»; e tais ninfas foram assim denominadas desde os tempos em que tomavam todas as coisas por substâncias animadas e, na maioria dos casos, humanas, como acima, na Metafisica, 67 se reflectiu. [529) Em seguida, 68 os gigantes pios, que estavam colocados nos montes, 69 devem ter-se ressentido do fedor que exalavam os cadáveres dos seus antepassados, que apodreciam perto deles sobre a terra; pelo que se puseram a sepultá-los (dos quais foram encontrados e ainda se encontram muitos crânios e ossos, a maior parte das vezes no alto dos montes;70 que é um grande argumento de que, apodrecendo insepultos os cadáveres dos gigantes ímpios/ 1 dispersos por todo o lado pelas planuras e pelos vales, 72 foram os crânios e os ossos ou levados para o mar por torrentes ou, por fim, macerados pelas chuvas) e espargiram os sepulcros com tanta religião, ou seja, divino pavor, que quedaram denominados pelos Latinos «religiosa loca», por excelência, os lugares onde estivessem os sepulcros. 73 E, assim, começou a crença universaL que nós provamos acima, nos Prindpios74 (dos quais este era o terceiro que nós estabelecemos para esta Ciência), isto é, da imortalidade das almas humanas, que se denominaram «dii manes» e na lei das XII Tábuas, no parágrafo De parriddio, se chamam «deivei parentum».75 Por outro lado, esses deviam ter, como sinal de sepultura, ou
67
68 69
°
7
71
72 73 74 75
Na MetafiSica poética (parágrafo 397). Depois de ter sido formada a religião das fontes. Cfr. o parágrafo 377. Cfr. o parágrafo 369. Cfr. o parágrafo 553. Cfr. o parágrafo 525. Cfr. o parágrafo 531. No parágrafo 336. Cfr. os parágrafos 12 e 526.
[356)
por cima ou junto de cada túmulo, que primeiro não podia propriamente ser outra coisa senão terra um tanto relevada (como entre os antigos Germanos, que dão lugar a que nós conjecturemos o mesmo costume para todas as outras primeiras nações bárbaras que, segundo refere Tácito/ 6 julgavam que não deviam sobrepesar os mortos com muita terra; donde provém aquela oração pelos defuntos: «Sit tibi terra levis»); deviam ter, dizíamos, como sinal de sepultura, cravado um cepo, denominado pelos Gregos e, assim, «stemmata» passaram a significar, nesses tempos, «insígnias nobres>>. De modo que é uma forte conjectura que as primeiras terras com essas sepulturas tenham sido os primeiros escudos das famílias; donde se deve entender o mote da mãe espartana que consigna o escudo ao filho que vai para a guerra, dizendo: «aut cum hoc, aut in hoo>, pretendendo
76
Germ ., 27 . Mais exactamente, a «coh~mella» quadrada com epígrafe, elevada sobre os sepulcros. 78 Mais precisamente, desenhos de coroas de flores, em cada wna das quais era pintada a imagem de um antepassado com a relativa didascália. Cfr., entre outros, PLÍNIO, Nat. hist. , III , 2. 79 Palavra não registada nos léxicos. 80 Cfr. VAPJV..o, De lingua lat ., V, 113. 77
[357)
dizer «regressa com este ou sobre um esquife»; tal como hoje, em Nápoles, o esquife ainda se denomina «escudo». 81 E porque tais sepulcros ficavam no fundo dos campos, que primeiro tinham sido de sementeiras, assim os escudos são definidos, na ciência do brasão como o «fundamento do campo», que depois foi ·denominado «das armas». [530) Dessa referida origem deve ter provindo a denominação significam propriamente «filhos da Terra»; e, assim, foi-nos fielmente contado pelas fãbulas ter sido a Terra mãe dos gigantes e dos deuses.89 (532] Coisas essas que foram todas por nós acima reflectidas, e aqui, que era o seu lugar próprio, foram repetidas para demonstrar que Tito Lívio 90 atribuiu ~al essa frase heróica a Rómulo e aos pais, companheiros dele, quando aos que recorreram ao abrigo aberto no bosque lhes faz dizer «serem eles filhos daquela terra», e na boca deles faz com que se torne mentira descarada aquilo que na dos fundadores dos primeiros
88 89 90
Linhagens. Cfr. o parágrafo 370. I, 8: passo aqui interpretado arbitrariamente.
[359]
povos tinha sido uma verdade heróica: 9 1 tanto porque era conhecido ser Rómulo rei de Alba, como porque tal mãe lhes tinha sido também demasiado irúqua ao gerar apenas homens, tanto que tiveram necessidade de raptar as Sabinas para terem mulheres.92 Donde, há que dizer que, pela maneira de pensar dos primeiros povos por caractere poéticos, foram atribuídas a Rómulo, visto como fundador de cidades, 93 as propriedades dos fundadores das primeiras cidades do Lácio, no meio de um grande número das quais Rómulo fundou Roma. 94 Erro com o qual está de acordo a definição que o mesmo Tito Lívio dá do abrigo: que teria sido «vetus urbes condentium consilium»; 95 pois nos primeiros fundadores das cidades, que eram simples, não era a reflexão mas a natureza que servia à providência. [533] Então, fantasiou-se a quarta das divindades dos gentios denominadas «maiores», que foi Apolo,96 tomado como deus da luz civil; 97 pelo que os heróis foram denominados xÀEt'tOÍ («claros») pelos Gregos, de xÀÉoç («glória»), e foram chamados «inclyti» pelos Latinos, de «cluen>, 98 que significa «esplendor de armas» e, em consequência, daquela luz à qual Juno Lucina levava os partos nobres. 99 De modo que, depois
91 Recorde-se que, para Vico, «filho da Terra» equivale a «nobre» (cfr. o parágrafo 370). 92 Cfr. o parágrafo 510. 93 Como personificação nútica dos fundadores de cidades (cfr. o parágrafo 417) . 94 Cfr. o parágrafo 160. 95 Cfr. os parágrafos 106, 114, 160. 96 Cfr. o parágrafo 317. 97 Da nobreza. Cfr. o parágrafo 513. 98 Mais exactamente, de ~clueo•. 99 Cfr. o parágrafo 513.
[360]
de Urânia - que acima 100 havíamos visto ser a musa que Homero define como «ciência do bem e do mal», ou seja, a adivinhação, como acima se disse, pela qual Apolo é deus da sabedoria poética, ou seja, da divinação 101 -, assim se deve ter fantasiado a segunda das musas, que deve ter sido Clio, que narra a história heróica; e essa primeira história assim referida deve ter começado pela genealogia desses heróis, tal como a história sagrada começa pela descendência dos patriarcas. A essa referida história dá início Apolo, a partir do seguinte: que persegue Dafue, donzela vagab nda que vai errando pelas selvas (na vida nefaria); e esta, com o auxílio que implorou dos deuses 102 (de cujos auspícios tinham necessidade nos matrimónios solenes), detendo-se, transforma-se em loureiro (planta que sempre reverdece na sua prole certa e conhecida, com aquela mesma significação com que os Latinos denominaram «stípítes» os troncos das famílias; e a barbárie regressada 103 referiu-nos as mesmas frases heróicas, quando denominam «árvores» as descendências das mesmas, e aos fundadores chamam «troncos» e «cepas», e às suas descendências originadas denominam «ramos», e a essas famílias denominam «linhagens))). 104 Assim, a perseguição de Apolo foi própria de nume, a fuga de Dafue própria de animal selvagem; mas depois, desconhecida a linguagem dessa história severa, 105 sucedeu que a perseguição de Apolo foi de impudico, a fuga de Dafue foi a de mulher.
100
No parágrafo 365. Cfr. o parágrafo 508. 102 Não dos deuses, mas de seu pai, ou seja, o rio Peneu, ou do seu aflu ente Ládon: cfr. O víoto, Metam., l, 504. 103 A Idade Média . 104 Cfr. o parágrafo 531. 105 Corrompidos os mitos: cfr. o parágrafo 81. 101
[361]
[534] Para mais, Apolo é irmão de Diana, porque com as fontes perenes os primeiros gentios puderam estabelecer-se à vontade no cimo dos montes; 106 pelo que ele tem a sua sede no cimo do monte Parnaso, onde habitam as musas (que são as artes da humanidade), 107 e junto da fonte Hipocrene, de cujas águas bebem os cisnes, aves canoras daquele «canere», ou «cantare»> que para os Latinos significa «predizer»; 108 com os auspícios de um dos quais, como acima se disse, 109 Leda concebeu os dois ovos, e de um deu à luz Helena, e do outro Castor e Pólux, de um só parto. [535] E Apolo e Diana são filhos de Latona, assim denominada daquele «latere», ou «esconder-se», do qual se disse «condere gentes», «condere regna», «condere urbes» e, particularmente em Itália, foi dito «LAtium>> . E Latona deu-os à luz junto das águas das fonte5 perenes, 11 0 de que falámos; por cujo parto os homens se transformaram em rãs,1 11 que nas chuvas de verão nascem da terra, 112 que foi denominada «mãe dos gigantes», que são propriamente filhos da Terra. 11 3 Uma dessas rãs é a que Idantirso envia a Dario; 114 e devem ser as três rãs, e não
106
Cfr. os parágrafos 526-528. No significado de •profissões nobres», «artes liberais•: cfr. os parágrafos 370, 537 e 556. 106 Cfr. o parágrafo 509. 109 No parágrafo 80. 110 Em vez disso, na ilha Ortígia. 111 No sentido de que, chegada com os dois recém-nascidos à Lícia, junto de um laguinho ela, maldizendo alguns vilãos que queriam impedi-la de se dessedentar, transformou-os em rãs (OvíDIO, Metam. , VI, 313 e seg.). 11 2 Cfr. o parágrafo 55. 113 Cfr. o parágrafo 370. 114 Cfr. o parágrafo 435 . 107
[362]
sapos, nas armas reais de França, 11 5 que depois se modificaram para flores-de-lis de ouro, pintadas com o superlativo do «trêSll, 11 6 que os Franceses conservaram para significar uma rã muito grande, isto é, um filho muito grande e, portanto, senhor da terra. [536] São ambos caçadores 11 7 que, com árvores arrancadas, uma das quais é a clava de Hércule , matam as feras , primeiro para se defenderem e às suas famílias (não lhes sendo já lícito salvá-las fugindo, como aos vagabundos da vida fora-da-lei) , depois para delas se alimentarem a si e às suas famílias. Como Virgílio faz os heróis alimentarem-se dessas carnes, e os Germanos antigos, segundo refere T ácito, com tal fim iam com as suas mulheres caçando as feras. 118 [537] E Apolo é o deus fundador da humanidade e das suas artes, que há pouco 11 9 dissemos serem as musas, artes essas que foram denominadas pelos Latinos «liberales )>, com o significado de «nobres», 120 uma das quais é a de cavalgar: pelo que Pégaso voa sobre o monte Parnaso, ele que está armado de asas, porque tem o direito dos nobres; 121 e na barbárie regressada, porque só esses podiam armar-se a cavalo, os nobres foram denominados pelos Espanhóis «cavaleiros». Essa humanidade teve o seu começo a partir do «humare», «sepultar» (eis o porquê das sepulturas terem sido por nós tomadas como
115
Nos tempos de Vico considerava-se que, originariamente, as armas reais de França constariam de três sapos, modificados para flores-de-lis. 116 Cfr. o parágrafo 491. 11 7 Enquanto tal, usam não a clava, mas a aljava. 11 8 VI RGÍLIO, Aen., I, 184-193; T ÃCIT , Germ ., 46: ambos os trechos referidos inexactamente. 119 N o parágrafo 534. 120 Cfr. os parágrafos 370 e 556. 121 Cfr. o parágrafo 488.
[363]
terceiro princ1p10 desta Ciência); 122 pelo que os Atenienses, que foram os mais humanos de todas as nações, segundo refere Cícero, 123 foram os primeiros a sepultar os mortos. [538] Finalmente, Apolo é sempre jovem (tal como sempre reverdece a vida de Dafue, transformada em loureiro) , porque Apolo, com os «nomes» das linhagens, eterniza os homens nas suas famílias. 124 Ele usa a cabeleira em sinal de nobreza; e dai permaneceu o costume em muitíssimas nações de os nobres usarem cabeleira, e lê-se que uma das penas dos nobres, entre os Persas e os Americanos, era a de arrancar um ou mais cabelos da sua cabeleira, 125 e talvez a «Gal/ia coma ta» tenha sido assim denominada a partir dos nobres que fundaram essa nação, 126 como certamente em todas as nações 127 se rapa o cabelo aos escravos. [539] Mas - estando esses heróis estabelecidos em terras circunscritas, e tendo crescido em número as suas famílias, não lhes bastando os frutos espontâneos da natureza e, para consegui-los em abundância, temendo sair dos seus confins, a que eles mesmos se tirlham circunscrito por aqueles grilhões das religiões por que os gigantes tinham sido agrilhoados debaixo dos montes, 128 e tendo-lhes insinuado essa mesma religião que deitassem fogo às florestas para obterem o aspecto
122
Cfr. os parágrafos 333 e 337. De legibtiS, II, 25, onde é dita uma outra coisa. 124 fr. o pacigrafo 433. 125 Exagero de Vico que, para além do mais, funde inexactamente três passo do De regio Persan11n pri11cipatu o jurisconsulto francês B ARNABA Brus ON (1531-1591). Cfr. a edição de Paris, 1606, pp. 238-240, 250. 126 Em vez disso, os Romanos passaram a chamar assim à Gália transalpina, à excepção da narbonense. 127 Não em todas: por exemplo, não em Roma. 128 Cfr. os parágrafos 367 e 399. 123
[364]
do céu, donde lhes proviessem os auspícios, 129 - entregaram-se com muita, prolongada e dura fadiga a transformar a terra em cultivado e a semear ali o trigo, que, queimado entre dumas e espinhos, teriam talvez observado ser útil para a nutrição humana. E aqui, com belíssima translação natural e necessária, as espigas do trigo denominaram-se ), os obrigados aos bens imóveis; e «mancipes», propriamente, quedaram denominados esses obrigados ao erário. 67 Sobre o que reflectiremos mais adiante. 68 63
Cfr. o parágrafo 487. Od., XI, 555. 65 Intervenção hoje demonstrada como fabulosa . 66 Sobre tudo isto, cfr. C LAUDE DE SAUMAlSE, De modo usurarum, edição de Leida, 1639, pág. 692; M . GowAST (1538- 1635), nos A lemarmicarum ren~m scriptores aliquot vetusti (Francfort, 1606), I, 222; F. H oTMAN, Dictiorrarium feuda le, in Opera (Genebra, 1599), II2, 692. 67 Cfr. o parágrafo 434. 68 No parágrafo 1065. 64
[389]
[560] Assim devem ter começado igualmente as primeiras colónias heróicas que nós denominamos «mediterrânicas»,69 diferentemente de outras, que vieram em seguida, que foram as marítimas, as quais observaremos terem sido bandos de refugiados que, por mar, se salvaram noutras terras (que, nas Dignidades/ 0 foram assinalados): porque o nome, propriamente, não evoca senão a «multidão de jornaleiros, que cultivam os campos (como ainda o fazem) para o sustento diário».71 São histórias dessas duas espécies de colónias aquelas duas fabulas: isto é, das mecliterrânicas, é o famoso Hércules gálico,72 que, com cadeias de ouro poético (isto é, do trigo), que lhe saem da boca, agrilhoa pelas orelhas multidões de homens e os leva atrás de si, aonde quer; o qual tem sido, até agora, tomado como símbolo da eloquência: 73 fabula essa que nasce nos tempos em que os heróis não sabiam ainda articular a fala, como plenamente ficou acirna74 demonstrado. Das colónias marítimas existe a fabula das redes,'5 com que Vulcano heróico arrasta do mar Vénus e Marte plebeus (distinção 76 que será aqui em seguida77 geralmente explicada) , aos quais o Sol descobre completamente nus (isto é, não vestidos pelas luzes civis/ 8 de que refulgem os heróis, como há pouco79 se disse),
69
Dentro de terra: cfr. o parágrafo 595. Cfr. o parágrafo 300. 71 Cfr. VtNCE zo B o R.GHtNt, D e' rmmicipii e colonie romane, in Opere (Florença, 1584), I, 367. 72 Cfr. L uciANO, OpoÀ.aÀ.Ía o 'HpaxÀ.líç, 3-6. 73 Cfr. V oss, D e idolatria, in Opera, 99 e 142. 74 No parágrafo 546. 75 Cfr. H oMERO, Od., VIII, 267 e seg. 76 Aquela dos •caracteres poéticos duplos~ (heróicos e plebeus). n Nos parágrafos 579-581 . 78 Pela nobre~ . 79 No parágr.So 377. 70
v:
[390]
e os deuses (isto é, os nobres das cidades heróicas, tal como acima foi explicado) 80 escarnecem-nos (como fizeram os patrícios à pobre plebe romana antiga). [561] E, finalmente, assim tiveram os refUgi os a sua primeira origem: pelo que Cadmo através do refúgio funda Tebas, antiquíssima cidade da Grécia; Teseu funda Atenas sobre o altar dos infelizes, 8 1 denominados com justa ideia «infelizes» os vagabundos ímpios, pois estavam privados de todos os bens divinos e humanos que para os pios tinha produzido a sociedade humana; Rómulo funda Roma através do refUgio aberto no bosque; pelo menos, mais propriamente, como fundador de uma cidade nova, ele funda-a com os seus companheiros sobre a base dos refúgios, donde tinham surgido as antigas cidades do Lácio, que geralmente Lívio a tal propósito define «vetus urbes condentium consilium» e, por isso, erroneamente lhe atribui aquele dito, como já acima observámos: que ele e os seus companheiros eram filhos daquela terra. 82 Mas, naquilo que o dito de Lívio interessa ao nosso propósito, ele demonstra que os refúgios foram as origens das cidades, das quais é propriedade eterna que os homens ali vivam a salvo da violência. Desse modo, da multidão dos vagabundos ímpios, por todo o lado protegidos e salvos nas terras dos fortes pios, proveio a Júpiter o gracioso título de «hospitaleiro»; 83 porquanto esses referidos refugiados, como mais adiante veremos, 84 foram os primeiros «hóspedes», ou seja, «estrangeiros», das primeiras cidades; e a história poética grega, entre os muitos trabalhos
80
No parágrafo 377 . Fundado, em vez disso, segundo a tradição, pelos H eraclidas (SÉRVtO, A d Aen., VIII, 342). 82 Cfr. os parágrafos 106, 160, 532, 616, etc. 83 Cfr. CíCERO, De .finibus honor. et maior., III, 20. 84 No parágrafo 611. 81
[391 ]
de Hércules, conservou-nos estes dois: que ele andou pelo mundo aniquilando monstros, homens no aspecto e bestas nos seus costumes, e que limpou os sujíssimos estábulos de Augeu. [562] Então, as gentes poéticas 85 fantasiaram duas outras divindades maiores, uma foi Marte, a outra foi Vénus: aquele, a partir de um carácter dos heróis que, primeiro e propriamente, combateram «pro aris et Jocis»; modalidade de combater que foi sempre heróica: combater pela própria religião, a que recorre o género humano quando desespera dos socorros da natureza; pelo que as guerras religiosas são muito sangrentas, 86 e os homens libertinos, ao envelhecerem, porque sentem faltar-lhes os socorros da natureza, tornam-se religiosos; pelo que nós, acima, 87 tomámos a religião como primeiro princípio desta Ciência. Portanto, Marte combateu em verdadeiros campos reais e dentro de verdadeiros escudos reais, 88 que, derivados de «cluen>, foram denominados primeiro «clupei» e depois «clypei» pelos Romanos; tal como nos tempos bárbaros regressados as pastagens e as selvas cerradas são denominadas «defesas» . E esse escudos carregavam-se de verdadeiras armas, 89 que, primeiramente, não existindo ainda armas de ferro, foram hastes de árvores queimadas na ponta e depois arredondadas
85
As gentes maiores, ou seja, as famílias fundadas a partir dos gigantes pios (parágrafos 316-317). 86 Cfr. o parágrafo 958. 87 Nos parágrafos 333-335. 88 Enquanto o escudo teria simbolizado originarian1ente os can1pos de sementeira possuídos pelos heróis (cfr. os parágrafos 529 e 563). 89 Como, em tempos mais evoluídos, nos escudos (armas de defesa) foram efigiadas as armas ou insígnias dos heróis, assim os escudos primitivos (os campos de sementeira) teriam sido «carregados» com as armas dos gigantes pios.
[392]
e aguçadas com o cote para as tornar aptas a ferir; que são as «lanças puras>>, 90 ou não armadas de ferro, que se davam como prénúos militares aos soldados romanos que se haviam comportado heroicamente na guerra. Pelo que, entre os Gregos, são armadas de lanças Minerva, Belona e Palas;9 1 e, entre os Latinos, derivado de «quiris», «lança», Juno é denonúnada «quirina», e Marte «quirino>>, e Rómulo, porque enquanto vivo se serviu da lança, uma vez morto foi denonúnado «Quirino»; e o povo romano, que se armou de dardos (como o espartano, que foi o povo heróico da Grécia, se armou com lanças), foi denonúnado, em assembleia «quirites». 92 Mas a história romana conta-nos acerca das nações bárbaras terem guerreado com as primeiras lanças de que agora falamos, 93 e a nós descreve-las «praeustas sudes», 94 «lanças queimadas na ponta», como se comprovou que se arrnarn os Americanos; e, nos nossos tempos, os nobres armam-se, nos torneios, com as lanças que, primeiro, utilizaram nas guerras. Modelo esse de armamento que foi encontrado a partir de uma justa ideia de força, a de alongar o braço e, com o corpo, manter distante do corpo a injúria, tal como as armas que mais se aproximam do corpo são mais próprias das bestas. [563] Acirna, 95 comprovámos terem sido os fundos dos campos onde estavam os sepultados os primeiros escudos do mundo; pelo que, na ciência do brasão, quedou que o escudo é o fundamento das armas. As cores dos campos foram verda-
90
Ou «sine ferro•. Cfr. GrusTO Lt PSIO , De mi litia romana, in Opera, edição de Antuérpia, 1637 e anos seguintes, III, 207-208. 91 Cfr. o parágrafo 590. 92 Cfr. o parágrafo 112. 93 Cfr. T ÁCITO, Ann., II , 14. 94 Cfr. VIRGÍL IO , Aen ., VII, 523-524. 95 Nos parágrafos 529 e 561.
[393]
deiras: 96 o negro, da terra queimada. a que Hércules pôs fogo ;97 o verde, das searas de erva; e, erroneamente, o ouro foi tornado por metal, sendo o trigo que, lourejando nas suas searas secas, foi a terceira cor da terra, como outra vez se disse;98 como os Romanos, entre prémios militares heróicos, carregavam de trigo os escudos daqueles soldados que se tinham distinguido nas batalhas, e «adorem> se lhes denominou a «glória militar>>, 99 derivado de «ado n>, «grão tostado», de que primeiro se alimentavam, que os antigos Latinos denominaram «adun> , derivado de «uro», «queimar>>; 100 de modo que o primeiro «adorar>> dos tempos religiosos foi , talvez, tostar o trigo; - o azul foi a cor do céu, pelo qual estavam esses bosques101 cobertos (razão pela qual os Franceses disseram «bleu» para o «azul», para o «céu» e para «Deus», como acima e disse 102 ); o vermelho era o sangue dos ladrões ímpios, que os heróis matavam, encontrando-os dentro dos seus campos. 103 As divisas nobres que nos provieram da barbárie regressada 104 observam- se carregadas de muitos leões negros, verdes, dourados, azuis e, finalmente, vermelhos, que, por aquilo que acima observámos sobre os campos de sementeira, que depois passaram a campos de armas, devem ser as terras cultivadas, observadas sob o aspecto, que
96
No sentido de que as cores recorrentes no chamado campo do escudo, enquanto insígnia nobre, não teriam sido ordinariamente senão símbolo das cores naturais assumidas, em diversos momentos e conj unturas, pelos campos de sementeira . w Cfr. o parágrafo 540. 98 Cfr. o parágrafo 544. 99 P LíNIO , Nat. hist., XVIII, 3. 100 P AULO D IÁCONO, epítome de Fesro, ad vv. ador e adorea. 101 Cfr. o parágrafo 481. 102 Cfr. o parágrafo 482. 103 Cfr. os parágrafos 549 e 553 . 104 O s brasões medievais.
[394]
acima se reflectiu, 105 do leão vencido por Hércules, e das suas cores, que . há pouco foram enumeradas; tão carregadas de veiros, 106 que devem ser os sulcos donde, dos dentes da grande serpente, por ele morta, de que os havia semeado, saíram os grandes homens armados de Cadmo; 107 tão carregadas de dardos, que devem ser as lanças com que se armaram os primeiros heróis; - e, por fim, tão carregadas de ancinhos, que são certamente instrumentos de casas de campo. Pelo que, há que concluir de tudo isto que a agricultura, tanto nos primeiros tempos bárbaros, sobre os quais nos certificam os romanos, como nos segundos , 108 constituiu a primeira nobreza das nações. 109 [564) O s escudos dos antigos, depois, foram cobertos de couro, tal como nos dizem os poetas, que vestiram de couro os velhos heróis, isto é, com as peles das feras por eles caçadas e mortas. 11 0 Do que existe um belo trecho em Pausânias, 111 em que refere, acerca de Pelasgo (antiquíssimo herói da Grécia, de quem tomou essa nação o seu primeiro nome, o de «pelasgos»; de modo que Apolodoro, De origine deorum, 11 2 lhe chama ainóxfuva, «filho da Terra», que se denominava, numa palavra, «gigante»11 3) que ele descobriu a veste de couro». E, por maravilhosa correspondência dos tempos bárbaros segundos com os primeiros, falando dos grandes personagens antigos, Dante 114
105
Cfr. o parágrafo 540. E também de arminhos. 107 Cfr. o parágrafo 679. 108 N a Idade M édia. 109 Ilação analógica, com a qual contrastam os factos. 110 Cfr. GI USTO LIPSIO, D e militia romana, in Opera, ed. cit., III , 73. 111 VIII, 1, S. 11 2 III, 8, 1. 11 3 Cfr. o parágrafo 370. 114 Par. , XV, 112-11 3. 106
[395]
refere que vestiam «de couro e de osso», e Boccaccio 11 5 conta que andavam metidos no couro: do que deve provir que as insígnias nobres fossem cobertas de couro, nas quais a pele da cabeça e dos pés, enroladas em cartuchos, constituíam ornamentados acabamentos. Foram os escudos redondos, porque as terras desarborizadas e cultivadas foram os primeiros «orbes terrarum», como acima se disse; 11 6 e daqui proveio, entre os Latinos, a propriedade pela qual «clypeus» era redondo, diferentemente de «scutum», que era angular. 11 7 Eis o porquê de todo o bosque se designar com o sentido de «olho», 11 8 como ainda hoje se denominam «olhos» as aberturas por onde entra a luz nas casas: frase heróica verdadeira que, sendo depois desconhecida, mais tarde alterada e, finalmente, corrompida - que «cada gigante possuía o seu bosque» -, se tinha já tornado falsa quando chegou a Homero, e foi compreendida no sentido de cada gigante ter um olho no meio da testa. Com cujos gigantes de um só olho nos chegou Vulcano, nas primeiras forjas - que foram as selvas, às quais Vulcano tinha posto fogo e onde tinha fabri~ado as primeiras armas, que foram, como já dissemos, as lanças queimadas na ponta -, alargada a ideia de tais armas, a fabricar os raios de Júpiter; porque Vulcano tinha posto fogo às selvas para observar a céu aberto donde enviaria Júpiter os seus raios. 11 9 11 5
Provável troca de Giovanni Boccaccio com GIOVANNI VILLANI, de quem se cfr. Istorie, VI, 70. 11 6 No parágrafo 550. 117 Cfr. GruSTO LI PSIO, op. cit., in Opera, III, 71. 11 8 No sentido de que o conceito de •bosque sagrado• teria sido expresso originariamente com o hierógl:fo de um «olho». 11 9 No mito de Vulcano, f01jador, j untamente com os ciclopes, dos raios com os quais Júpiter aterrou os titãs (parágrafo 399) , teriam sido simbolizados, originariamente, os gigantes pios, seja enquanto incendiários dos bosques para melhor observarem, com finalidade augurai, os rais de Júpiter (parágrafos 391,477 e seg.), seja enquanto manufactores das primeiras lanças lenhosas de ponta queimada (parágrafo 562) .
[396]
[565] A outra divindade, que nasceu entre estas antiquíssimas coisas humanas, foi a de Vénus, que foi um carácter da beleza civil; 120 donde «honestas» ficou a significar tanto «nobreza», como «beleza» e «virtude». Porque, segundo esta ordem, devem ter nascido estas três ideias: - que primeiro teria sido concebida a beleza civil, que pertencia aos heróis; - depois , a natural, que cai sob os sentidos humanos, porém, dos homens de mentes perspicazes e compreensivas, que saibam discernir as partes e combiná-las convenientemente no todo de um corpo, no que consiste essencialmente a beleza; pelo que os camponeses e os homens da bruta plebe nada, ou muito pouco, percebem de beleza (o que demonstra o erro dos filólogos , que dizem que, nestes tempos simples e estúpidos, sobre os quais aqui reflectimos, os reis eram eleitos pelo aspecto dos seus corpos belos e bem feitos; 121 porque essa tradição deve ser entendida em relação à beleza civil, que era a nobreza desses heróis, como já em seguida diremos); - finalmente, concebeu-se a beleza da virtude, que se chama «honestas» e é compreendida só pelos filósofos. Por isso, devem ter sido belos da beleza civil Apolo, Baco, Ganimedes, Belerofonte, Teseu e outros heróis, devido aos quais Vénus foi talvez imaginada masculina. 122 [566] Deve ter nascido a ideia da beleza civil na mente dos poetas teólogos, por eles terem visto que os ímpios refugiados nas suas terras eram homens de aspecto e bestas brutas nos costumes. Dessa beleza, e não de outra, foram bonitos os Espartanos, os heróis da Grécia, que lançavam do monte Taígeto
120
Enquanto nobreza (parágrafos 425 e 566) . Cfr. o parágrafo 252. 122 A denominada «Vénus andrógina», ou «deus Afrodite», de corpo e vestes femininas, mas «cum sceptro et natura virili» (cfr. entre outros, S ÉRVIO , Ad Aen., II, 632). 12 1
[397]
os partos feios e disformes, isto é, engendrados por mulheres nobres sem a solenidade das núpcias;123 que devem ser os «monstros» que a lei das XII Tábuas mandava deitar ao Tibre. Porque não é absolutamente verosímil que os decênviros, naquela parcimónia de leis própria das primeiras repúblicas, tivessem pensado em monstros naturais, que são tão raros, que as coisas raras na natureza se denominam «monstros»; quando, nesta abundância de leis em que agora nos atormentamos, os legisladores deixam ao arbítrio dos juízes as causas que ocorrem raras vezes: de modo que estes devem ter sido os monstros denominados, primeiro e propriamente, «civis» (a um dos quais se refere Pânfilo quando, chegado à falsa suspeita de que a donzela Filomena estaria grávida, disse:
.. .Aliquid monstri alunt); 124 e assim ficaram denominados nas leis romanas, que devem ter falado com toda a propriedade, como observa Antonio Favre, na Iurisprudentiae papinianeae scientia. O que já acima, de outra vez, se observou, com outra finalidade. 125 [567] Portanto, isto deve ser aquilo sobre o que, com tanta boa fé quanto ignorância das antiquidades romanas sobre que escreve, Lívio diz: 126 que, [se] os conúbios tivessem sido transmitidos pelos nobres aos plebeus, deles teria nascido a prole «secum ipsa discors», que equivale a dizer «monstro misturado de duas naturezas>> : uma, heróica, dos nobres; outra, ferina, de tais plebeus, que «agitabant connubia more ferarum»: 127 mote esse que Lívio tomou de algum antigo escritor de anais
123 124
125 126 127
Cfr. o parágrafo 410. Andria, I, 5, 25 : «Alimentam algo de monstruoso». Cfr. sempre o parágrafo 410. rv, 2. É, em seu lugar, frase de H ORÁCIO , Sat., I, 3, 108-110. T ERÊNCIO,
[398]
e que usou sem ciência, porquanto o utiliza neste sentido: «se os nobres se aparentassem com os plebeus)). Porque os plebeus, no seu núsero estado quase de escravos, não podiam pretender tal dos nobres, mas pediram o direito de contrair núpcias solenes (que tal significa «connubium))): direito esse que era apenas dos nobres; mas, entre as feras , nenhuma espécie se une com outra de outra espécie. De modo que é forçoso dizer que foi esse um mote com o qual, naquela contenda heróica, os nobres pretendiam escarnecer dos plebeus que, não tendo auspícios públicos, que com a sua solenidade legitimavam as núpcias, nenhum deles tinham pai conhecido (como, no direito romano, nos quedou aquela definição, que toda a gente conhece, que «nuptiae demonstrant patrem)) 128 ) ; de modo que, nessa referida incerteza, os nobres diziam dos plebeus que se uniam com as suas mães e com as suas filhas , como fazem as feras. [568) Mas foram atribuídas à Vénus plebeia 129 as pombas,
não já para significar exageros amorosos, mas porque são, tal como as define Horácio 130 , «degeneres)), aves vis, com peito de águias (que o mesmo Horácio define iferoces))), mas sim para significar que os plebeus possuíam auspícios privados, ou menores, diferentemente daqueles das águias ou dos raios, que eram próprios dos nobres, e que tanto Varrão como Messala denominaram «auspícios maiores)), ou seja, «públicos)), 13 1 dos quais estavam dependentes todos os direitos heróicos dos nobres, como no-lo confirma claramente a história romana. Mas à Vénus heróica, que foi a «prónuba)), foram atribuídos os cisnes, próprios também de Apolo, que observámos acima ser o deus 128
P AOLO , in Dig., II , 1, S. Recordemo-nos que, para Vico,Vénus é um «carácter poético duplo• (parágrafo 512, 560 e 579), simbolizante, nos mitos gregos, por vezes feitos de heróis, por vezes feitos de plebeus. 130 Odes, IV, 4, 31-32. 131 Cfr. o parágrafo 525. 129
[399)
da nobreza, 132 com os auspícios de m dos quais Leda concebeu de Júpiter o ovo, como acima se explicou.133 [569] A Vénus plebeia foi representada nua, enquanto a prónuba estava coberta com o cesto, como acima se disse 134 (veja-se, portanto, quantas ideias deformadas existem em torno destas antiquidades poéticas!) : que, depois, se acreditou ter sido inventado por incentivo da libido aquilo que foi verdadeiramente encontrado para significar o pudor natural, ou seja, a pontualidade da boa fé com a qual são observadas entre os plebeus as obrigações naturais; porquanto, como daqui a pouco veremos na Política poética,135 os plebeus não tiveram qualquer parte de cidadania nas cidades heróicas e, assim, não contraíam entre si obrigações ligadas com qualquer vínculo de lei civil, de que tivessem necessidade. Assim, foram atribuídas a Vénus as Graças, também desnudas;136 e, entre os Latinos, «caussa» e «gratia» significam a mesma coisa: 137 de modo que as Graças devem ter significado para os poetas os «pactos desnudos», 138 que produzem apenas a obrigação natural. E, assim, os jurisconsultos romanos denominaram «pactos estipulados» aqueles que depois foram denominados «vestidos» pelos antigos intérpretes: 139 porque, entendendo aqueles serem os pactos desnudos os pactos não estipulados, não deve «stipulatio» ser
132 Cfr. o parágrafo 533. m Cfr. o parágrafo 512. 134 No parágrafo 512. 135 Nos parágrafos 597-598. 136 Pelo contrário, estavam vestidas: cfr., por exemplo, PSEUDO HOMERO, Hino a Afrodite, 61. 137 Somente nas frases «exempli gratia», •exempli caussa». 138 Não sancionados por uma fórmula solene: cfr. ULPIANO, in Dig., Il, 14, 7, 4. 139 Pelos glosadores. Cfr. A cCURS10, in Digestum vetus, edição de Lion, 1552, p. 98, nota (k).
[400]
derivado de «stipes» 140 (que, por tal origem, se deveria dizer «stipatio»), com a razão forçada de «que ela sustenta os pactos»; mas deve provir de «stipula», 141 denominada pelos camponeses do Lácio porquanto ela «veste o trigo»: como, pelo contrário, os «pactos vestidos» foram denominados primeiramente pelos feudalistas a partir da mesma origem donde são denominadas as «investiduras» dos feudos , de que certamente procede «exjestucare», o «privar da dignidade». 142 Pelo que reflectimos, «gratia» e «caussa» foram entendidas pelos poetas latinos como uma mesma coisa acerca dos contratos que celebravam os plebeus das cidades heróicas: 143 como, introduzidos depois os contratos «de iure naturali gentium», 144 que Ulpiano denomina «humanarum», 145 «caussa» e «negocium» significaram a mesma coisa; porquanto, em tal espécie de contratos, esses negócios quase sempre são «caussae», ou «cavissae>>, ou «cautelas», que equivalem a estipulações que acautelam os pactos.
140
141 142 143 144
VARRÃO, D e língua latina, V, 182. ISIDORO DE SEVILHA, Origines, V, 24 e XVI, 18. Cfr. H oTMAN, Dictiot~a rium feu dale citado, ad v. infestucare. Cfr. o parágrafo 569. Aqueles que o direito romano denominava •ex iure gentium», ou
«honae jidei•. 145
Frase, não de Ulpiano, mas criada por Vico.
[401]
[CAPÍTULO TERCEIRO] COROLÁRIOS ACERCA DOS CONTRATOS QUE SE ESTABELECEM UNICAMENTE POR CONSENSO ' [570) Porque, pelo antiquíssimo direito das gentes heróicas, que não se preocupavam senão com as coisas necessárias à vida e, não colhendo outros frutos senão os naturais, nem compreendendo ainda a utilidade do dinheiro, e sendo quase unicamente corpo, não podiam certamente conhecer os contratos que hoje dizem estabelecer-se por simples consenso; e sendo sumamente rudes, dos quais é próprio o serem desconfiados , porque a rudeza nasce da ignorância, e é propriedade da natureza humana que quem não sabe sempre duvida: por tudo isto, não conheciam a boa fé , e asseguravam-se de todas as obrigações com a mão, verdadeira ou fingida/ porém, certificada esta, no acto do negócio, através das estipulações solenes;3 de que procede aquele célebre capítulo, na lei das XII Tábuas: «Si quis nexum faciet mancipiumque, uti lingua nuncupassit, ita ius esto.» 4 Dessa natureza das coisas humanas civis surgem estas verdades.
1 Isto é, compra e venda, locação-condução, sociedade e mandato, acerca dos quais Vico exibe conj ecturalmente as origens. 2 Com a mancipatio. 3 Inexacto. 4 Veja-se, acima, o parágrafo 433, nota 1178.
[403)
I
[571] Que aquilo que dizem, que as vendas e compras antiquíssimas foram permutações, 5 quando se tratassem de bens imóveis, devem elas ter sido aquilo que na barbárie regressada foram denominados «libelos»;6 dos quais se compreendeu a utilidade, porque uns possuiriam propriedades em abundância, que lhes dariam grande quantidade de frutos, de que outros teria.m escassez, e assim reciprocamente. II
[572] Os arrendamentos de casas não podiam celebrar-se quando as cidades eram pequenas e as habitações limitadas: de modo que deviam ser elas dadas pelos donos dos solos para que outros aí as construíssem; e, assim, não podiam ser outra coisa senão concessões. III
[573] Os arrendamentos dos terrenos devem ter sido enfiteuses, que foram denominadas pelos Latinos «clientelae»; pelo que os gramáticos7 disseram, adivinhando, que «clientes» teriam sido denominados praticamente «colentes». IV
[574] De modo que esta deve ser a causa pela qual, em relação à barbárie regressada, nos antigos arquivos não se lêem 5 6
7
Cfr., entre outros, PAOLO, in Dig., XVIII, 1, 1. Cfr. o parágrafo 1071. Cfr. IsiDORO DE S EV ILHA, Origines, X. 13.
[404]
outros contratos a não ser de concessões de casas ou de propriedades, seja perpétua, seja temporalmente.
v [575] Que é, talvez, a razão pela qual a enfiteuse é um contrato «de iure civile>>; 8 que, por estes princípios, se comprovará ser o mesmo que , ou seja, simbolizando factos tanto dos heróis, ou palres, como dos famulos, ou plebeus (cfr. o parágrafo 560). 2 HEsíooo, Teogorlia, 886 e 924; H OMERO, fl., I, 592 e seg.; XV, 18. Num e noutro particular, Vulcano seria simbolo de plebeus. 3 H OMERO, fl. ,V, 590; XX, 403. 4 Cfr. o parágrafo 560.
[407]
que Vénus era mulher de Vulcano: mas nós, acima, vimos que no céu não existiu outro matrimónio senão o de Júpiter e Juno, que, porém, foi estériJ;S e Marte não foi denominado «adúltero», mas «concubino» de Vénus, porque entre os plebeus não se contraíam senão matrimónios naturais, como adiante se mostrará, 6 que foram denominados pelos Latinos «concubinatos».7 (580] Tal como estes três caracteres são aqui explicados, assim outros o serão adiante, em seu devido lugar. Entre os quais se encontrarão Tântalo plebeu, 8 que não consegue agarrar as maçãs que estão no alto nem tocar a água ao baixar-se; Midas plebeu, 9 que, porque tudo o que toca transforma em ouro, morre de fome; Lino plebeu, que compete com Apolo no canto e, vencido, é por ele morto. 10 (581] Fábulas essas, ou seja, caracteres duplos, que devem ter sido necessárias no estado heróico, em que os plebeus não possuíam nomes próprios e tinham os nomes dos seus heróis, como acima se disse: 11 para além da suprema pobreza dos falares, que deve ter existido nos primeiros tempos; quando, nesta profusão de línguas, um mesmo vocábulo significa frequentemente várias coisas e, em alguns casos, duas contrárias entre si.
5
Cfr. os parágrafos 80 e 511. Cfr., por exemplo, o parágrafo 597. 7 Inexacto. 8 Cfr. o parágrafo 583. 9 Cfr. o parágrafo 619, onde se fala, sim, de Midas, mas para dizer uma coisa completamente diferente. 10 Vico troca com o mito de Mársias o outro de Lino, filho de Apolo e morto por Hércules (cfr. o parágrafo 649) . 11 No parágrafo 559. 6
[408]
[SECÇÃO
QUINTA-
POLÍTICA POÉTICA]
[CAPÍTULO PRIMEIRO]
DA POLÍTICA POÉTICA COM A QUAL NASCERAM AS PRIMEIRAS REPÚBLICAS NO MUNDO DE FORMA ARISTOCRÁTICA SEVERÍSSIMA [582] Fundaram-se desse modo 1 as famílias desses referidos fâmulos, recebidos por fidelidade, por força ou protecção pelos heróis / que foram os primeiros associados do mundo, como nós acima vimos. 3 Dos quais estavam as vidas em poder dos seus senhores e, em consequência das vidas, estavam também os bens; quando esses heróis, com os impérios paternos ciclópicos, tinham o direito de vida e de morte sobre os seus próprios filhos e, em consequência de tal direito sobre as pessoas, tinham também o direito despótico sobre todos os bens deles.4 O que Aristóteles compreendeu, 5 quando definiu os filhos de família como sendo «instrumentos animados dos seus pais»; e a lei das XII Tábuas, até se ter entrado na mais desobrigada liberdade popular, conservou para os pais de família
1
Naquele referido no capítulo II da secção precedente. Cfr. o parágrafo 523. 3 Nos parágrafos 258 e 555. 4 Cfr. o parágrafo 556. · 5 Ética a Nicómaco, p. 1161 b 3-5, mas somente no que diz respeito aos escravos. 2
[409)
romanos estas duas prorrogativas monárquicas: tanto a da potestade sobre as pessoas como o dorrúnio sobre os bens; e, até que chegaram os imperadores, os filhos , como os escravos, possuíram uma só espécie de pecúlio, que foi o profectício;6 e os pais, nos primeiros tempos, devem ter possuído a potestade de vender verdadeiramente os filhos até três vezes; o que, depois, fortalecendo-se a mansuetude dos tempos humanos, fizeram com três vendas fingidas ,7 quando pretendiam libertar os filhos da potestade paterna. Mas os Galos e os Celtas conservaram uma igual potestade sobre os filhos e os escravos; 8 e o costume de os pais venderem verdadeiramente os seus filhos foi encontrado nas Índias ocidentais,9 e na Europa é praticado até q atro vezes pelos Moscovitas e pelos Tártaros. 10 Tanto é verdade, que as outras nações bárbaras não possuem a potestade paterna «talem qualem habent cives romani»P 1 Clara falsidade essa que surge do comum erro vulgar com que os doutores têm recebido tal mote: mas isso foi referido pelos jurisconsultos em relação às nações vencidas pelo povo romano; às quais, como mais completamente adiante demonstraremos, retirado todo o direito civil com o direito das vitórias, não restaram senão potestades paternas naturais e, em consequência delas, naturais vínculos de sangue, que se denominam «cognações» e, por outro lado, dorrúnios naturais, que são os bonitários e, por tudo isto, obrigações naturais, que se denominam «de iure natura/i gentium», que Ulpiano nos especificou acima com
6
Cfr. o parágrafo 556. A triplice mancipatio: cfr., entre outros, GÉLtO, Noctes atticae, V, 9. 8 Cfr. CÉSAR, B. g., VI, 19. 9 Nada disto se encontra nas fontes habituais de Vico sobre a América. 1 Cfr. StGISMUNDO LIBERO, BARÃo DE lliRBERSTEIN (1486-1560), Remm moscovitamm commentaria (Basileia, 1551), p. 49. 11 Afirmação das InstitHitiones justinianas, já acusadas de falsidade desde o séc. XVI. 7
°
[410]
o adjectivo «humanarum». 12 Direitos esses que todos os povos situados fora do império devem ter possuído civis e, precisamente, tais como os tiveram esses Romanos. [583] Mas, retomando a reflexão, com a morte dos seus pais, ficando livres os filhos de fanúlia desse império monárquico privado, ou melhor, reassumindo-o cada filho inteiramente para si (pelo que, cada cidadão romano, livre da potestade paterna, é designado, em direito romano, «pai de fanúlia»), 13 e os fàmulos, devendo viver sempre em tal estado servil, ao fim de muito tempo, devem ter-se naturalmente aborrecido com isso, de acordo com a dignidade por nós acima proposta: 14 que «o homem sujeito anseia naturalmente subtrair-se à servidão». De modo que estes devem ter sido:- Tântalo, que há pouco 15 denominámos plebeu, que não pode trincar os pomos (que devem ser os pomos de ouro do trigo acima explicadas, que se erguem sobre a terra dos seus heróis), e (para explicar a sua sede ardente) não pode beber urna pequena gota de água, que se aproxima dos seus lábios e depois foge; - Ixíon, que gira sempre a roda; 16 - e Sísifo, que empurra para cima a pedra, que Cadmo lançou 17 (a terra dura que, chegada ao cimo, torna para baixo 18 como, para os Latinos, quedou 12
Cfr. o parágrafo 575. Cfr. U LPIANO, in Dig., I, 6, 4. 14 Cfr. o parágrafo 292. 15 No parágrafo 580. 16 Conjectura que tem por fundamento a outra, aqui subentendida, de que, por uma deformação do mito primitivo, uma originária •serpente que abocanha a própria cauda• viesse a ser substituída por uma roda: um dos súnbolos da terra de sementeira amanhada pelos fàmulos (cfr. o parágrafo 540) . 17 Cfr. o parágrafo 679. 18 Vico pretende dizer que a pedra lançada com o peito por Sísifo simboliza as terras cultivadas com muito esforço pelos fàmulos por conta dos heróis, e recomeçando cada ano sempre do irúcio. 13
[411]
«vertere terram» por «cultivá-la» e «saxum volvere»19 por «fazer com ardor longa e áspera fadiga») . Por tudo isto, os famulos devem ter-se amotinado contra esses heróis. E esta é a «necessidade», que geralmente nas Dignidade?-0 se conj ecturou ter sido imposta pelos fàmulos aos pais heróis no estado das famílias, donde nasceram as repúblicas. [584] Porque assim, nesta grande necessidade, os heróis devem ter sido levados por natureza a unir-se em ordens, para resistirem às multidões dos famulos sublevados, devendo ficar à cabeça deles algum pai mais feroz de entre todos e de maior presença de espírito; e estes foram designados os «reis», do verbo «regere», 21 que é propriamente «sustentar» e «dirigir>>. Desse modo, para o dizer com a frase demasiado bem compreendida do jurisconsulto Pompónio, «rebus ipsis dictantibus, regna condita», 22 dita de acordo com a doutrina do direito romano, que estabelece «ius naturale gentium divina providentia constitutum».23 E eis aqui a origem dos reinos heróicos. E, porque os pais eram reis soberanos das suas famílias, na igualdade desse referido estado e, pela natureza feroz dos polifemos,24 de entre todos eles nenhum devendo naturalmente ceder ao outro, surgiram de si mesmos os senados reinantes, ou seja, de vários reis das suas famílias; os quais, sem percepção ou conselho humano, comprovou-se terem unido os seus interesses privados a cada urna das suas comunidades, que se denominaram > a ordem de batalha em forma de cunha. Portanto: «Timna ou cun.eus são determinados não pelo acaso, ou por um aglomerarnento fortuito, mas sim pelo vínculo familiar ou de parentesco». 27 «Por exemplo dado aos o utros, mais do que por atribuição do comando, alguém se torna chefe: se alguém é animoso, se se distingue, se no combate se coloca à frente do exército, a admiração por isso suscitada vem, de facto, a conferir o poder>>. 28 I, 517. 29 Em vez dela, a Minerva. 30 Não >; porque
a primeira lei foi esta agrária, 68 pela qual os reis heróicos foram denominados «pastores dos povos», como aqui se assinalou e mais adiante se explicará. 69 [608] Assim, os plebeus das primeiras nações bárbaras (precisamente como Tácito 70 o relata a respeito dos Germanos antigos, quando erradamente os crê servos, porque, como se demonstrou, os associados heróicos eram como servos? 1 devem ter sido dispersos pelos heróis ao longo das plarúcies, e aí devem ter permanecido com as suas casas, nos campos que lhes foram atribuídos, contribuindo com os frutos das aldeias para o quanto era necessário ao sustento dos seus senhores. Condições com que se conjuga o juramento, que também de Tácito ouvimos acima, 72 de deverem eles tanto guardá-los como defendê-los, como ainda servir a sua glória; e pense-se em definir tal espécie de direitos com um nome de lei: verificar-se-á com evidência que não lhes pode convir outro nome senão o deste que nós denominamos «feudos». 67 68 69 70 71 72
Cfr. os parágrafos 488 e 604. Cfr. os parágrafos 597 e 604. Cfr. os parágrafos 557 e 1058-1059. Germ ., 25 , interpretado, como de costume, muito livremente. Cfr. os parágrafos 555 e 582. No parágrafo 559.
[441]
[609) Dessa maneira, encontraram-se as primeiras cidades fundadas sobre ordens de nobres e catervas de plebeus, 73 com duas eternas propriedades contrárias, que provêm desta natureza de coisas humanas civis que é por nós aqui reflectida: por parte dos plebeus, o pretenderem sempre mudar os Estados, como sempre os mudam; e por parte dos nobres, o pretenderem sempre conservá-los. Donde, nos movimentos dos governos civis, denominam-se «optimates» todos aqueles que se esforçam por manter os Estados, que tomaram tal nome desta propriedade de estarem firmes e em pé. [610) Ali nasceram as duas divisões: uma entre os sábios e o vulgo, 74 porquanto os heróis fu ndavam os seus reinos na sabedoria dos auspícios, como se disse nas Dígnidades75 e muito acima se reflectiu. A seguir a esta divisão, quedou para o vulgo o perpétuo predicado de «profano»/6 porque os heróis, ou seja, os nobres, foram os sacerdotes das cidades heróicas, como certamente o foram entre os Romanos, até cem anos 77 após a lei das XII Tábuas, como acima se disse; pelo que os primeiros povos, com uma certa espécie de excomunhão, retiravam a cidadania, como se deu, entre os Romanos, a interdição da água e do fogo/ 8 como adiante se mostrará. Por isso, as primeiras plebes das nações foram tidas como estrangeiras/ 9 como em breve veremos (e quedou-nos a propriedade eterna de que não se dá a cidadania a um homem de diferente reli-
73
Cfr. o parágrafo 597. CícERO, B,..Aius, 53, onde a contraposição é meramente literária ou científica. 75 Cfr. o parágrafo 250. 76 H oRÁCIO, Odes, III, 1 1. n Cento e c:.nquenta. 78 Vejam-se os parágrafos 371 e 957, e cfr. SEWEN, De synedriis veterum Hebraeorum , in Opera, I, 924 e seg. 79 No parágrafo 611. 74
[442]
gião); e, de tal «vulgo», quedaram denominados «vulgo quaesiti» os filhos feitos na confusão, 80 por aquilo que acima reflectimos,81 que as plebes, nas primeiras cidades, porquanto não tinham ali a comunhão com as coisas sagradas ou divinas , durante muitos séculos não contraíram matrimónios solenes. [611] A outra divisão foi entre «civis» e «hostis». E «hostis» significou tanto «hóspede», como «estrangeiro» e «inimigo», 82 porque as primeiras cidades foram compostas pelos heróis e os acolhidos por eles nos seus refúgios (sentido no qual se devem tomar todos os hospícios heróicos) ; como, desde os tempos bárbaros regressados, entre os Italianos, quedou «oste» para «hospedeiro» e para os «aquartelamentos de guerra>>, 83 e diz-se «ostello» para «albergue». Assim, Páris foi hóspede da casa real de Argos, isto é, inimigo, pois raptava nobres donzelas argivas, representadas pelo carácter de Helena. 84 Assim, Teseu foi hóspede de Ariana,Jasão de Medeia, que depois abandonam e não contraem com elas matrimónios: que eram reputadas acções heróicas que, aos nossos sentidos presentes, parecem, como o são, acções de homens celerados. Assim, há que defender a piedade de Eneias, que abandona Dido, que tinha estuprado (para além dos enormes benefícios que dela tinha recebido, e da magnânima oferta que aquela lhe tinha feito do reino de Cartago, como dote das suas núpcias), para obedecer aos fados , os quais, ainda que também essa fosse estrangeira, lhe tinham destinado Lavínia por mulher, em Itália. Costume
Cfr. Dig., I, 5, 19 e 23. No parágrafo 567. 82 Cfr. , entre muitos outros, CícERO, De rff., I, 37, um tanto aqui amplificado. 83 M ais exactamente, por •exército». 84 Isto é, Páris teria sido mitificação de estrangeiros que raptam e, depois, se recusam a desposar raparigas argivas. 80
81
[443]
heróico esse que Homero85 conservou na pessoa de Aquiles, o maior dos heróis da Grécia, que recusa qualquer das três filhas que Agamémnon lhe oferece por mulher, com o dote real de sete terras bem povoadas por lavradores e pastores, respondendo querer tomar por mulher aquela que, na sua pátria, lhe dari2. Peleu, seu pai. Em suma, os plebeus eram «hóspedes» das cidades heróicas, dos quais ouvimos Aristóteles dizer várias vezes86 que «os heróis juravam ser inimigos eternos». Esta mesma divisão é-nos demonstrada com aqueles termos «civis» e «peregrinus», tomado o «peregrino» na sua propriedade original de «homem que vagueia pelo campo», denominado «agen> com o significado de «território», ou «distrito» (como «ager neapolitanus», «ager nolanus»), dito assim quase como «peragrinus», 87 porquanto os estrangeiros que viajam pelo mundo não vagueiam pelos campos, mas eguem a direito pelas vias públicas. (612] Assim reflectidas, essas or·gens dos hóspedes heróicos fazem uma grande luz sobre a história grega, quando conta acerca dos Sâmios, Sibaritas, Trezénios, Anfipolitanos, Calcedónios, Cnídios e Citas, que as repúblicas foram ali transformadas pelos estrangeiros de aristocráticas em populares; 88 e ilustram definitivamente o que nós deixámos publicado, há muitos anos atrás, com a impressão dos Prinápios de Direito Universal, 89 acerca da fàbula das leis das XII Tábuas, vindas de Atenas para Roma; que é um dos dois trechos pelos quais avaliamos não ter sido, de facto, inútil aquela obra: que, no capítulo De Jorti sanate nexo soluto, que nós provamos ter sido o assunto de toda
85
II., IX, 373 e seg.
86
Por exemplo, no parágrafo 271. Etimologia proposta já por Voss, Etym ., II, 529. Generalização não sempre correspondente aos factos. Opp., II, SE4-580.
87
88 89
[444]
aquela contenda, 90 por aquilo que ali tinham dito os filólogos latinos, que o iforte sanate>> era o estrangeiro sujeito à obediência, foi a plebe romana, que se tinha revoltado porque não podia obter dos nobres o donúnio certo dos campos; que certamente não podia durar, se a lei não tivesse sido definitivamente fixada numa tábua pública, com a qual, determinando-se o direito incerto e manifestando-se o direito secreto, ficassem os nobres com as régias mãos atadas para os retomar: que é a verdade daquilo que nos relata Pompónio. Pelo que fez tanto barulho, que foi necessário criar os decênviros, que deram outra forma ao Estado e sujeitaram a plebe sublevada à obediência, ao declará-la, com este capítulo, desobrigada do nó verdadeiro do donúnio bonitário, pelo qual tinham sido «glebae addicti», ou «adscriptitti», ou «censiti»91 do censo de Sérvio Túlio, como acima foi demonstrado, 92 e que permanecesse obrigada com o nó imaginário do donúnio quiritário: mas preservou-se disso um vestígio, até à lei Petélia, no direito da prisão privada que os nobres detinham sobre os plebeus devedores. 93 Estrangeiros esses que, com as «tentações tribunícias», como elegantemente diz Lívio 94 (e nós acima enumerámos, nas anotações à lei Publília, na Tábua cronológica), 95 transformaram finalmente o estado de Roma de aristocrático em popular. [613] Não se ter Roma fundado sobre as primeiras revoltas agrárias, 96 demonstra-nos o ter sido uma cidade nova,97 como 90 Tudo isto vem melhor esclarecido nos parágrafos 1412-1454: cfr., em particular, o parágrafo 1446. 91 Cfr. o parágrafo 604. 92 No parágrafo 597. 93 Cfr. o parágrafo 115. 94 II, 1. 95 Cfr. o parágrafo 112. 96 Não ter surgido pela necessidade de os pais-heróis se aliarem contra os fàmulos amutinados (parágrafos 583-584). 97 Cfr. o parágrafo 160.
[445]
conta a história. Foi ela decerto fundada sobre o refúgio, onde, durando ainda por toda a parte a violência, Rómulo e os seus companheiros tiveram primeiro de se tornar fortes e, depois, ali receber os refugiados e, assim, fundar as clientelas, que foram por nós acima explicadas:98 donde, devem ter passado uns duzentos anos para que os clientes se aborrecessem com aquele estado: tanto tempo precisamente quanto o transcorrido para que o rei Sérvio Túlio lhes trouxesse a primeira lei agrária. 99 Tempo esse que devia ter transcorrido nas cidades antigas durante uns quinhentos anos, por isto mesmo: porque essas eram compostas por homens mais simples, aquela por outros mais espertos; que é a razão pela qual os Romanos se apropriaram do Lácio, em seguida, da Itália, e depois do mundo, porque, mais do que os outros latinos, possuíram o heroísmo jovem. 100 É essa mesma a razão mais apropriada (como se disse nas Dignidades) 10 1 pela qual os Romanos escreveram em língua vulgar a sua história heróica, enquanto os Gregos a tinham escrito com fabulas. [614] Tudo isto que nós meditámos acerca dos princípios da política poética e vimos na história romana, é-nos admiravelmente confirmado por estes quatro caracteres heróicos: primeiro, pela lira de Orfeu, ou seja, Apolo; segundo, pelo crânio de Medusa; terceiro, pelos feixes romanos; quarto e último, pela luta de Hércules com Anteu. [615] E, primeiramente, a lira foi descoberta pelo Mercúrio dos Gregos, 102 do mesmo modo que pelo Mercúrio egípcio
98
No parágrafo 597. Cfr. os parágrafos 619 e seg. 100 Cfr. o parágrafo 160. 101 Cfr. o pacigrafo 159-160. 102 Cfr., entre outros, APoLODORO , III, 10, 2.
99
[446]
foi descoberta a lei. 103 E tal lira foi-lhe dada por Apolo, 104 deus da luz civil, ou seja, da nobreza, 105 porque nas repúblicas heróicas os nobres ordenavam as leis, e com essa lira Orfeu, Anfíon e outros poetas teólogos, que professavam a ciência das leis, fundaram e estabeleceram a humanidade da Grécia, como mais explicitamente diremos adiante. 106 De modo que a lira foi a união das cordas ou· forças dos pais, de que se compôs a força pública, que se denomina «império civil», 107 que fez cessar finalmente todas as forças e violências privadas. Pelo que, com toda a propriedade, a lei quedou definida pelos poetas 108 «lyra regnorum», na qual foram acordados os reinos familiares dos pais, estados esses que andavam anteriormente desacordados, porque estavam todos isolados e divididos entre si no estado das famílias , como dizia Polifemo a Ulisses; 109 e a gloriosa história foi depois, no signo dessa lira, descrita no céu com as estrelas, 110 e o reino da Irlanda, nas armas dos reis de Inglaterra, traz no escudo uma harpa. Mas, em seguida, os filósofos111 fizeram dela a harmonia das esferas, a qual é acordada pelo sol; 11 2 mas Apolo tocou-a na terra, 113 a qual não apenas
103
Cfr. o parágrafo 66. Pelo contrário, foi M ercúrio que a deu a Apolo. tos Cfr. o parágrafo 533. 106 D esignadamente nos parágrafos 667 e 661. 107 Cfr. o parágrafo 523. 108 Pelos poetas teólogos ou fundadores das nações. 109 Cfr. o parágrafo 513. 11 0 N o sentido de que, segundo o mito, as musas teriam obtido de Júpiter que a lira de Orfeu, morto, fosse colocada no firmamento, assumindo a forma da cons telação homónima (cfr., entre o utros, E RATÓSTENES, Catasterismi, 44; Higino, Poetica astronomica, III, 6). 111 O s pitagóricos. 11 2 O símbolo do sistema planetário. 113 Apolo - e, por ele, os pais-heróis de que ele seria símbolo - teria tocado a lira não nas esferas celestes, mas na terra, no sentido de que na 104
[447]
pode, mas deve tê-la ouvido, ou melhor, tê-la mesmo tocado Pitágoras, tomado como poeta teólogo e fundador de nações,114 que tem sido, até agora, acusado de impostura. [616] As serpentes unidas no crânio de Medusa, carregado de asas nas têmporas, 115 são os altos donúnios familiares que os pais possuíam no estado das fanúlias, que vieram a formar o donúnio eminente civil. 11 6 E esse crânio foi gravado no escudo de Perseu, que é o mesmo do qual está armada Minerva, que entre as armas, ou seja, nas assembleias armadas das primeiras nações, entre as quais encontramos ainda a romana, dita as pavorosas penas que petrificam aqueles que a olham. Dissemos acima que uma dessas serpentes tinha sido Drácon, de quem foi dito que escrevia as leis com sangue, porque com ela se tinha armado aquela Atenas (como Minerva foi denominada 'AÔTJvã), no tempo em que estava ocupada pelos optirnates, como também acima se disse; e, entre os Chineses, que ainda agora escrevem com hieróglifos, o dragão é insígnia do império civil, como também acima se observou.117 [617] Os feixes romanos são os lítuos dos pais no estado das fanúlias. 118 A uma dessas referidas varas, na mão de um
terra, ou seja, nas cidades heróicas, esses pais-heróis teriam promulgado as primeiras leis, de que a lira, por sua vez, seria símbolo. 114 Considerado como mito de fundadores de nações e, assim, dos promulgadores das primeiras leis, teria verdadeiramente tocado a chamada lira de Apolo, símbolo daquelas leis. 115 Recorde-se que, para Vico, as serpentes são símbolos das terras cultivadas (parágrafo 541) e as asas de •direitos de heróis» (parágrafo 488) . 116 Cfi:. o parágrafo 602. 117 Cfi:. os parágrafos 423, 542, 590, 602. 118 No sentido de que, com a passagem do regime por famílias isoladas àquele da cidade heróica, os lítuos singulares dos pais-heróis singulares (parágrafos 475 e 487) ter-se-iam reunido num único feixe, simbolizando a majestade da lei.
[448]
desses, 11 9 Homero 120 , com gravidade de palavra, denomina «ceptro», e a esse pai chama «rei» no escudo de Aquiles que ele descreve, no qual está contida a história do mundo; e nesse lugar está fixada a época das familias antes daquela das cidades, 121 como adiante será completamente explicado. 122 Porque, tomados com tais lítuos os auspícios que lhes fossem ordenados, os pais ditavam as penas dos seus filhos, como na lei das XII Tábuas nos chegou aquela do filho ímpio, 123 que observámos acima. 124 Daí que a união dessas varas, ou lítuos, signifique a geração do império civil, 125 sobre a qual aqui se reflectiu. [618] Finalmente, Hércules (carácter dos Heraclidas, ou seja, nobres das cidades heróicas) 126 luta com Anteu (carácter dos fâmulos amotinados) e, erguendo-o ao céu (reconduzindo-o às primeiras cidades situadas no alto), 127 vence-o e ata-o à terra. Do que quedou, entre os Gregos, um jogo denominado do «nó»; 128 que é o nó hercúleo, 129 com que Hércules fundou as nações heróicas, 130 e pelo qual aos heróis era paga pelos
119
Em vez disso, de todos os juízes. fl. , XVIII, 566. 121 Seja recordado o regime por famílias isoladas, ou patriarcado. 122 No parágrafo 683 . 123 Do parricida. 124 Cfr. o parágrafo 526. 125 Génese da autoridade do Estado. 126 Cfr. o parágrafo 591. 127 Cfr. o parágrafo 377. 128 O Ct'YXÓVT]: v. A TENEU , rv, 42; e cfr. MEURS (1579-1639), De ludis graecorum (1622), no Thesaurus graecus, de GRONOV, reimpressa em Veneza, 1735, Vll , 974. 129 Era, em vez disso, um nó corredio, ao qual ficava unido o designado da sorte, se não conseguia cortar a tempo a corda com wna foice. 130 Cfr. o parágrafo 433. 120
[449]
plebeus a décima de Hércules,13 1 que deve ter sido o censo base das repúblicas aristocráticas. Donde, os plebeus romanos foram, pelo censo de Sérvio Túlio, 132 «nexi» dos nobres e, pelo juramento que Tácito 133 conta que prestavam os antigos Germanos aos seus príncipes, tinham a obrigação, a suas próprias expensas, de servi-los como vassalos perangários nas guerras: do que a plebe romana se lamenta dentro desta mesma sonhada liberdade popular. Que devem ter sido os primeiros assíduos, pois «suis assibus militabantl>: 134 porém, soldados não por acaso, mas por dura necessidade.
131
Cfr. o parágrafo 541. Cfr. os parágrafos 619 e seg. 133 Germ., 14, e cfr. acima o parágrafo 559. 134 Etimologia de Vico, em contraste com aquela, tradicional, de •suos asses dare» (cfr., entre outros, CícERo, Top., 3). 132
[450]
(CAPÍTULO TERCEIRO)
DAS ORIGENS DO CENSO E DO ERÁRIO [619) Mas, finalmente, desde as graves usuras e frequentes usurpações que os nobres praticavam nos seus campos (e a tal ponto que, na sua época, 1 Filipe,2 tribuno da plebe, gritava em alta voz que dois mil nobres possuíam todos os campos que deviam estar repartidos por bem trezentos mil cidadãos que, no seu tempo, se contavam em Rorna), 3 porque, passados quarenta anos sobre a expulsão de Tarquínio, o Soberbo, assegurada pela sua morte, a nobreza tinha recomeçado a mostrar-se insolente contra a pobre plebe; e o senado daqueles tempos havia tido que começar a pôr em prática a seguinte ordenação: que os plebeus pagassem ao erário o censo, que primeiro haviam tido que pagar privadamente aos nobres, a fim de que esse erário pudesse subministrar-lhes as despesas, daí em diante, nas guerras;4 tempo a partir do qual, de novo, comparece na história romana o censo, que os nobres desdenhavam administrar, segundo refere Lívio, 5 como coisa não conveniente à sua dignidade (porque Lívio não pode compreender que os nobres não o queriam porque não era o censo ordenado por Sérvio Túlio, que tinha sido a base da liberdade dos senhores,
1
2
3 4
5
Em 104 a. C. Marco Filipe. Interpretação arbitrária de CíCERO, De off., II , 16. Interpretação arbitrária de Lívto , IV; 59. IV; 8: passo, também ele, interpretado arbitrariamente.
[451]
o qual era pago privadamente àqueles nobres, caído no engano, como todos os outros, de que o censo de Sérvio Túlio teria sido a base da liberdade popular: porque, certamente, não existiu magistratura com maior dignidade do que a censura e, desde o seu primeiro ano, foi ela administrada por cônsules): assim, os nobres, pelas suas próprias artes avaras, acabaram eles mesmos por formar o censo, que depois foi base da liberdade popular. De modo que, tendo passado todos os campos para o seu poder, nos tempos do tribuno Filipe, deviam esses dois mil nobres pagar o tributo por trezentos mil outros cidadãos que então se contavam (precisamente como, em Esparta, se tinha tornado pertença de poucos todo o campo espartano), 6 porque tinham sido inscritos no erário os censos que os nobres tinham privadamente imposto aos campos, os quais, incultos, ab antiquo tinham atribuído aos plebeus para que os cultivassem. 7 Por causa de tamanha desigualdade, devem ter acontecido grandes movimentos e revoltas da plebe romana, que Fábio resolveu 8 com sapientíssimas ordenações, pelo que mereceu o cognome de Máximo, ao ordenar que todo o povo romano fosse repartido em três classes, dos senadores, cavaleiros e plebeus, e que os cidadãos nelas fossem dispostos segundo as faculdades; e consolou os plebeus: porque, enquanto anteriormente os magistrados eram escolhidos entre os das ordens senatoriais, que primeiramente tinham sido exclusiva-
6 P LLITARCO,
."'gide e Cleomeru, 5, 3-4. Em tudo isto, Vico confunde, uma vez mais ainda, o censo e os censores com o erário e os quaestores aeran·i (parágrafo 113). No entanto, cfr. o parágrafo 620. 8 A censura e Quinto Fábio Máximo Ruliano (305 a. C.), ao qual foi atribuída a instituição não democrática, mas anti-democrática, das quatro tribos urbanas (Lí·11o, IX, 46), não foi posterior, mas anterior, em dois séculos, ao tribunato de Marco Filipe. 7
[452]
mente de nobres, daí em diante a elas poderiam também aceder com as riquezas os plebeus e, assim, estava aberto aos plebeus o acesso comum a todas as honras civis. [620] Desta maneira é tornada verdadeira a tradição segundo a qual o censo de Sérvio Túlio (porque a partir dele se dispôs a matéria e a partir dele nasceram as circunstâncias) foi a base da liberdade popular, como acima se reflectiu, por hipótese, nas Anotações à Tábua cronológica, naquele trecho acerca da lei Publília. 9 E tal ordenação, 10 nascida dentro da própria Roma, foi verdadeiramente aquela que nela ordenou a república democrática, não j á a lei das XII T ábuas que ali proveio de Atenas: tanto que Bernardo Segni,11 aquela que Aristóteles denomina «república democrática», 12 traduziu ele para toscano por «repubblica per censo», para dizer «república livre popular». O que se demonstra com o mesmo Lívio 13 que, se bem que ignorante acerca do Estado romano daqueles tempos, também conta que os nobres se lamentavam de terem perdido mais na cidade com aquela lei do que tinham ganho fora com as armas, naquele ano, no qual, todavia, tinham alcançado muitas e grandes vitórias. Que é a razão pela qual Publílio, que dela foi autor, foi denominado «ditador popular». 14 [621] Com a liberdade popular, na qual todo o povo é a cidade, 15 aconteceu que o domínio civil perdeu o próprio
9
Cfr. o parágrafo 113. N ão o censo serviano, mas as três leges Publiliae. 11 ?-1558. 12 Em vez disso, no seu Tratatto dei govemi di Aristotile tradotto di greco in volgare, nem politeia nem dhmokratia são alguma vez traduzidas por «repubblica per censo•; mas sim aquela, «repubblica• sem mais; esta, propriamente, •repubblica popolare•. 13 VIII, 12. 14 Cfr. o parágrafo 112. 15 N a qual também os plebeus adquiriram os direitos civis e políticos. 10
[453]
significado de «dorrúnio público» (que, a partir dessa cidade, tinha sido denominado «civil»), e disperdeu-se por todos os dorrúnios privados desses cidadãos romanos, uma vez que todos constituíam a cidade romana. O dorrúnio óptimo acabou por se obscurecer no seu significado original de «dorrúnio fortíssimo», como acima nós dissemos, 16 «não debilitado por nenhum encargo real, mesmo público», e passou a significar «dorrúnio de coisa livre de todo o encargo privado». O dorrúnio quiritário deixou de significar domínio das terras, 17 de cuja posse, se fosse perdida pelo cliente ou plebeu, o nobre, de quem havia recebido o direito do dorrúnio, devia vir defendê-lo; que foram os primeiros «autores íuris» em direito romano, que, através destas e não de outras clientelas ordenadas por Rómulo, 18 deviam ensinar aos plebeus estas leis e não outras. Pois, quais as leis que os nobres deviam ensinar aos plebeus, que, até ao ano CCCIX de Roma, não possuíram privilégio de cidadãos 19 e, até cem anos depois da lei das XII Tábuas, esses nobres mantiveram-nas secretas para a plebe, dentro do seu colégio de pontífices? De modo que os nobres foram, nesses tempos, aqueles «autores íuris», que agora perduraram na espécie que os possuidores de propriedades compradas, quando não estão de acordo com reivindicações de outros, «invocam como autores», para que lhes assistam e os defendam: ora, tal domínio quiritário quedou com o significado de domínio civil privado assistido de reivindicações, diferentemente do bonitário, que se mantém apenas com a posse.
16
No parágrafo 601. Um dorrúnio em que fosse ínsito o conceito de «autoridade• (cfr. os parágrafos 387 e seg. e 603). 18 Com isto, Vico pretende negar que as clientelas tivessem sido instituídas em Roma com aquela lei particular de Rómulo assertada por DIONÍSIO DE HALICARNASSO, II, 9-10. 19 Cfr. os parágrafos 104 e 598. 17
[454)
[622] Da mesma maneira, e não de outro modo, estas coisas acerca da natureza eterna dos feudos retornaram nos tempos bárbaros regressados. Tomemos, por exemplo, o reino de França, no qual as muitas províncias que agora o constituem foram senhorios soberanos dos príncipes sujeitos ao rei daquele reino, onde aqueles príncipes haviam tido que possuir os seus bens não sujeitos a qualquer encargo público: 20 depois, por sucessões, ou por rebeliões, ou por decadências, foram incorporadas naquele reino, e todos os bens daqueles príncipes ex iure optimo foram submetidos aos encargos públicos. Porque as casas e os fundos desses reis, das quais possuíam a sua própria Câmara real, tendo passado para os vassalos, ou por parentescos ou por concessões, encontram-se hoje sujeitas aos impostos e tributos: tanto que, nos reinos de sucessão hereditária, assim se veio a confundir o domínio ex iure optimo com domínio privado sujeito a encargo público, como se o fisco, que era património do príncipe romano, tivesse vindo a ser confundido com o erário. [623] Pesquisa essa sobre o censo e o erário que foi a mais áspera das nossas meditações acerca das c01sas romanas, tal como na Ideia da Obra o advertimos. 21
20 Mas deviarrl, no entanto, pelo menos em teoria, corresponder a prestações pessoais e reais prescritas pelo direito feudal. 21 Cfr. o parágrafo 25 .
[455]
[CAPíTULO QUARTO]
DAS ORIGENS DOS COMÍCIOS ROMANOS [624] Coisas assim meditadas pelas quais a j3ouÂ.Tj e a àyopá, que são as duas assembleias heróicas que Homero refere e, acima, nós observámos, 1 devem ter sido, entre os Romanos, as assembleias curiais, as mais antigas das quais se lê terem existido durante o governo dos reis, e as assembleias triburúcias.2 As primeiras foram denominadas «curiais», de «quim, «lança», cujo caso oblíquo é «quiris», que depois quedou recto, conforme sobre isso reflectimos nas Origens da Ungua latina, 3 tal como de xdp, «a mão», que em todas as nações significou «potestade», deve ter vindo a ser dito pelos Gregos primeiramente KUpÍa, no mesmo sentido no qual é, posteriormente, entre os Latinos, «curia»: donde procederam os curiões, que eram os sacerdotes armados de lanças, porque todos os povos heróicos foram de sacerdotes, e apenas os heróis possuíam o direito das armas; curiões esses que, como acima vimos,4 os Gregos observaram em Satúrnia (ou seja, a antiga Itália), em Creta e na Ásia. E xupía, nesse antigo significado, deve ter sido entendido como «senhorio»; como agora também se denominam «senhorios» as repúblicas aristocráticas: de cujos senados heróicos se denominou xupoç a «autoridade»; mas,
1
2 3
~
No parágrafo 67. Cfr. os parágrafos 590-594. No capítulo XXXVIII do terceiro livro da Nos parágrafos 587 e 593.
[457]
Ci~ncia
nova primeira.
como acima observámos e mais adiante o observaremos,5 «autoridade de domínio»; de cujas origens depois quedaram xúpwç e xupía para «senhor» e « enhora». E, como de XEÍP os «curiões» dos Gregos, assim anteriormente observámos terem sido denominados de «quin> os «quirites» romanos; 6 que foi o título da majestade romana, que se dava ao povo em assembleia pública, como também acima se assinalou, quando observámos acerca dos Galos e dos antigos Germanos, juntamente com aqueles curiões de que falavam os Gregos, que todos os primeiros povos bárbaros celebraram as assembleias públicas debaixo de armas. 7 [625] Assim, um tal título maj estoso8 deve ter começado desde quando o povo era composto apenas por nobres,9 que eram os únicos que possuíam o direito às armas; e que, depois, passou para o povo composto também por plebeus, uma vez Roma tornada república popular. Porque da plebe, que primeiramente não possuiu tal direito, foram as assembleias denominadas «tribunicias», de tribus, «a tribo»; 10 e, entre os Romanos, tal como no estado das famílias 11 essas «famílias» foram denominadas dos «fà..rnulos», 12 assim depois, no das cidades, as tribos foram entendidas como dos plebeus, que nelas se reuniam para receber as ordens do senado reinante; 13 entre as quais, porque a principal e mais frequente foi aquela de deverem os
5
Nos parágr.Jos 387 e seguintes, 6 3, 621, etc. Cfr. o parágrafo 562. 7 Cfr. o parágrafo 594. 8 «Quirites». 9 Cfr. o parágrafo 621. 10 As tribos servianas eram, pelo contrário, compostas por patrícios e plebeus, desde que proprietários fundiários. 11 No regime por fanúlias isoladas. 12 Cfr. o parágrafo 522. 13 Inexacto (cfr. o parágrafo 627) . 6
[458]
plebeus contribuir para o erário, da palavra «tribo» ve10 a ser dito «tributum». 14 [626] Mas, depois de Fábio Máximo 15 introduzir o censo, que distinguia todo o povo romano em três classes, segundo os patrimónios dos cidadãos 16 - porque, anteriormente, apenas os senadores tinham sido cavaleiros, porque, nos tempos heróicos, apenas os nobres possuíam o direito de manejar armas 17 [e], por isso, acerca dessa história se lê que a antiga república romana estava dividida entre «palres» e «plebem»; de modo que, anteriormente, «senadon>tinha significado o mesmo que «patrício>> e, pelo contrário, «plebeu» o mesmo que «ignóbil»: portanto, tal como tinham existido anteriormente apenas duas classes no povo romano antigo, assim tinham existido apenas duas espécies de assembleias: uma, a curial, dos pais, ou nobres, ou senadores; a outra, triburúcia, dos plebeus, ou seja, dos ignóbeis; 18 - mas, depois de Fábio ter repartido os cidadãos, segundo as suas faculdades, em três classes, de senadores, cavaleiros e plebeus, esses nobres deixaram de constituir uma ordem na cidade e dispunham-se, segundo as suas faculdades, por essas referidas três classes. Desse tempo em diante, passou-se a distinguir «patrício>> de «senador» e de «cavaleiro», e «plebeu» de «ignóbil»; e «plebem não se opôs já a «patrício», mas a «cavaleiro» e «senadon>; nem «plebeU>>significou «ignóbil», mas «cidadão de pequeno património», por muito que ele
14
Cfr. VARRÃO, De lingua latina , V, 181, interpretado por Vico segundo o seu ponto de vista. 15 Quinto Fábio: cfr. o parágrafo 619. 16 Vico confunde a repartição de Roma nas três ordens dos senadores, cavaleiros e plebeus, com a outra , fundada precisamente na respectiva in1portância do património fundiário, não em três mas em cinco classes. 17 Gozavam do «direito da lança»: cfr. os parágrafos 590-594. 18 Confusão dos comitia tributa, compostos pelos patrícios e plebeus, com concilium plebis.
[459]
fosse nobre; e, pelo contrário, «senador» não significou já «patrício», mas «cidadão de extensíssimo património», por muito que fosse «ignóbil». [627) Por tudo isto, a partir daqui, foram denominadas «comitia centuriata» as assembleias para todas as três classes, nas quais convergia todo o povo romano, para ordenar, entre outros assuntos públicos, as leis consulares; e quedaram-nos denominadas «comitia tributa» aquelas em que apenas a plebe ordenava as leis tribunícias, 19 que foram os plebiscitos, assim anteriormente denominados no sentido em que Cícero20 os denominaria «plebi nota», isto é, ->, porque, no sentido de «lei que a plebe tinha ordenado», deveria ter sido escrita com dois: «plebisscitum», derivando ela e «sciscon>23 e não de «seio». [628) Finalmente, para a certeza das cerimónias divinas, quedaram denominadas «comitia curiata» as assembleias apenas dos chefes das cúrias,2 4 quando se tratava de coisas sagradas. Porque, nos tempos desses reis, todas as coisas profanas eram observadas sob o aspecto de sagradas, e os heróis eram, por
Confusão reiterada dos comitia tributa com os co~Jcilium plebis. Cfr. De legg., II , 8. 21 Dig., I, 2, 2., 3. 22 Commentariil i11 primam "Digesti vereris> >partem, edição de Veneza, ad Dig., I, 2, 2, 8. 23 Etimologia proposta já por Voss, Etym ., II , 545. 2 ' Dos curio11es e dos }lamines wriales. 19
20
[460]
toda a parte, curiões, ou seja, sacerdotes, como acima se disse,25 armados; pelo que, até aos últimos tempos romanos, tendo quedado com o aspecto de coisa sagrada a potestade paterna (cujos direitos são frequentemente denominados nas leis «sacra patria» 26 ) , por essa razão, nessas tais assembleias, com as leis cu riais celebravam-se as arrogações. 27
25
N os parágrafos 587 e 593. Cfr. o parágrafo 526. 27 As adopções de cidadãos não sujeitos a outra potestade pátria (cfr. S uETÓN IO , Aug., 65 ; G ÉLIO, Noctes att., V, 19). 26
[461]
(CAPÍTULO QUINTO)
COROLÁRIO: QUE A DIVINA PROVIDÊNCIA É A ORDENADORA DAS REPÚBLICAS E, AO MESMO TEMPO, DO DIREITO NATURAL DAS GENTES [629] Acerca desta geração de repúblicas, descoberta na idade dos deuses 1 -na qual os governos tinham sido teocráticos, isto é, governos divinos e, depois, desembocaram nos primeiros governos humanos, 2 que foram os heróicos (que aqui denominamos «humanos» para os distinguir dos divinos), no interior dos quais, como uma grande corrente de verdadeiro rio mantém por longo trecho, no mar, tanto a impressão do curso como a doçura das águas, 3 decorreu a idade dos deuses, porque deve ter perdurado ainda aquela maneira religiosa de pensar pela qual os deuses fariam tudo aquilo que faziam esses homens4 (donde, dos pais reinantes no estado das fanúlias fizeram Júpiter;5 dos mesmos, encerrados em ordens, ao nascerem as primeiras cidades, fizeram Minerva; 6 dos seus embaixadores enviados aos clientes sublevados, fizeram Mercúrio; 7 e, como 1 2 3 4
5 6 7
Cfr. o parágrafo 52. N o significado de •não divinos», e-ia ao direito imposto pelos heróis, isto é, o da força . 31 O que se entende comummente por direito natural.
[468)
vanas vezes acima nos falou, 32 sobre o qual os filósofos e os teólogos morais se apoiaram para compreender o direito natural da razão eterna completamente explicada,33 tal mote passou concordantemente a significar o direito natural das gentes ordenado pelo verdadeiro Deus.
32
33
Cfr. o parágrafo 569. Cfr. os parágrafos 325 e 924.
(469]
[CAPíTULO SEXTO]
SEGUE A POLÍTICA DOS HERÓIS 1 [634] Mas todos os historiadores 2 determinam o princípio ao século heróico com os corsos de Minos e com a expedição naval que Jasão fez no Ponto, a continuação com a guerra de Tróia, o fim com o errar dos heróis, que vêm a terminar com o regresso de Ulisses a Ítaca. Portanto, deve ter nascido nesses tempos a última das divindades maiores, que foi Neptuno, 3 de acordo com esta autoridade dos historiadores, que nós avaliamos com urna razão filosófica , apoiada por muitos trechos de ouro por Homero. A razão filosófica é que as artes naval e náutica são as últimas descobertas das nações, porque lhes foi necessário a fina-flor do engenho para as descobrir; tanto que Dédalo, que delas foi o descobridor,• passou a significar esse engenho, e Lucrécio 5 usa a expressão «daedala tellus» por «engenhosa». Os trechos de Homero encontram-se na Odisseia, onde, sempre
1
Com este título,Vico pretende repegar o primeiro capítulo da presente secção. 2 HERóDOTO, III , 122; T u c íDIDES, I, 4; D IODORO , V, 78, 3; mas todos interpretados por Vico segundo o seu ponto de vista. 3 Vico pretende dizer que, •como a idade dos deuses termina com Neptuno, assim a idade dos heróis começa com os corsos de Minos (Opp. , III , parágrafos 446-447). Cfr. também, acima, o parágrafo 317. 4 N ão da navegação em geral, mas somente daquela à vela. Cfr., entre outros, P LíNIO , Nat . hist. , VII , 57 . 5 I, 228.
[471]
qué Ulisses aproa ou é levado por uma tempestade para terra, sobe a algum morro para no interior dela avistar fumo, que para ele signifique que ali habitam homens. Estes trechos de Homero são confirmados por aquele trecho de ouro de Platão, a que acima ouvimos referir-se Estrabão, nas Dignidades/ acerca do grande horror que tiveram do mar as primeiras nações;8 e a razão foi advertida por Tucídides:9 que, pelo temor dos corsos, as nações gregas só tardiamente desceram para habitar nos litorais. Por isso aqui se conta estar Neptuno armado do tridente, com que fazia tremer a terra, que deve ter sido um grande gancho para aferrar naves, denominado com bela metáfora «dente», e com o superlativo do «três», como acima dissémos, 10 com que fazia tremer as terras dos homens com o terror dos seus corsos: que, depois, já nos tempos de Homero, 11 se acreditou que fazia tremer as terras da natureza, opinião em que Homero foi, depois, seguido por Platão, com o seu abismo das águas, 12 que colocou nas vísceras da terra, mas com quanta subtileza, será adiante demonstrado. 13 (635] Estes 14 devem ter sido o touro com que Júpiter rapta Europa, o rninotauro, ou touro de Minos, com que rapta
6 N ão «sempre que», mas apenas nalguns casos. Cfr., por exemplo, Od., X, 145 e seg. 7 Cfr. o parágrafo 296. 8 Exagero. 9 I, 8. 10 No parágrafo 535. 11 Cfr. II. , VIII , 440; IX, 362 etc. e, sobretudo, XX, 56-65; Od. , V, 423; VI, 326, etc. 12 N ada disto se encontra nos dois lugares platónicos (Critias , p. 112 a e d) nos quais se discorre acerca dos terramotos. Provavelmente, Vico fez confusão com uma teoria similar formulada por Tales e por Demócrito, e à qual acederam os estóicos. Cfr. P LUTAR o , De placitis philosoplwrum, III, 15. 13 N o parágrafo 714. 14 N avios cor:sários.
(472]
rapazes e raparigas dos litorais da Ática (como as velas quedaram denominadas «cornos das naves>>, como usou depois Virgilio 15 ) ; e os Terranteses explicavam com toda a verdade que o minotauro os devorava, pois viam-se com espanto e dor engolidos pelas naves. Assim a Orca 16 quer devorar Andrómeda acorrentada ao rochedo, tornada de pedra pelo pavor (como quedou entre os Latinos «terrore dtifix us>>, «tornado imóvel pelo pavo[))) ; e o cavalo alado, com que Perseu a liberta, deve ter sido outra nave de corso, tal como as velas quedaram denominadas «asas das naves>>. E Virgílio,17 com ciência destas antiquidades heróicas, falando de Dédalo, que foi o descobridor da nave, diz que voa com a máquina que denomina «alarum remigium»; e também nos foi referido ser Dédalo irmão 18 de Teseu. De modo que Teseu deve ser carácter de rapazes atenienses que, pela lei da força que lhes foi imposta por Minos, são devorados pelo touro deste, ou nave de corso; ao qual Ariana (a arte de marear) ensina pelo fio (da navegação) a sair do labirinto de Dédalo (que, antes destes, 19 que são rebuscadas delícias das vilas reais, deve ter sido o mar Egeu, pelo grande número das ilhas que banha e circunda) e, aprendida a arte (pelos Cretenses) , abandona Ariana e torna com Fedra, irmã dela (isto é, uma arte semelhante) e, assim, mata o minotauro e liberta Atenas do tributo cruel que lhe tinha imposto Minos (ao tornarem-se esses atenienses os corsários). E assim, tal como Fedra foi irmã de Ariana, também Teseu foi irmão de Dédalo. [636] Nestas circunstâncias, Plutarco diz, no Teseu, 20 que os heróis tomavam como grande honra e reputavam como 15 16
17
18 19
20
A en., III , 549 (e cfr. V, 831), onde se diz uma coisa muito diferente. Também essa seria figuração rrútica de uma nave corsária. A en., rv, 18-19. Primo (P LUTARCO, Teseo, 19, 10) . Estes labirintos. Em vez disso, na Vida de Pompeu , 24, 2.
[473]
mérito de armas o serem chamados «ladrões», tal como, nos tempos bárbar s regressados, o de «corsário» era um título reputado de senhoria. 2 1 Por volta daqueles tempos, chegado Sólon, diz-se que permitiu nas suas leis as sociedades por motivo dos saques: 22 tão bem compreendeu Sólon esta nossa consumada humanidade, na qual esses não gozam do direito natural das gentes! Mas o que causa maior admiração é que Platão 23 e Aristóteles 24 tenham colocado o latrocínio entre as espécies da caça; e com esses e tantos outros filósofos de uma gente humaníssima concordem, com a sua barbárie, os antigos Germanos, entre os quais, segundo refere César, 25 os latrocínios não apenas não eram infames, mas eram considerados entre os exercícios da virtude, tal como serviam para aqueles que por costume não se dedicavam a nenhuma arte assim fugirem ao ócio. Um tal costume bárbaro perdurou tanto mais, entre nações ilustríssimas, que, segundo conta Políbio, 26 a paz foi concedida pelos Romanos aos Cartagineses, entre as outras leis, com esta: que não poderiam passar o cabo de Peloro, na Sicília, por motivo de saques ou de comércios. Mas isso importa menos, tratando-se de Cartagineses e de Romanos, que, naqueles tempos, afirmavam eles próprios serem bárbaros, como se pode observar em diversos trechos de Plauto, 27 quando diz 21
Cfr. uma d.isressão apologética que Olaf Worm (1558-1654), médico e arqueólogo dinamarquês, escreveu a favor dos antigos reis da Dinamarca, praticantes precisamente da pirataria (Danicorum monHmetJton4m libri sex, Copenhaga, 1634, pág. 269) . Cfr. ainda D ucANGE, Glossarium mediae et infimae latinitatis, arl v. pirata; mas também aqui, mais adiante, o parágrafo 1053. 22 Cfr. GR.óCIO, op. cit., II, 15, 5, 2. 23 S aquele que depois foi denominado «peregrínus». Dois trechos esses que, ordenados conjuntamente, dão a entender que, desde o princípio, os Romanos tomaram os estrangeiros por eternos inimigos de guerra. Mas os ditos dois trechos devem-se entender como referentes àqueles que foram os primeiros «hostes>> do mundo, que, como acima se disse, 37 foram os estrangeiros recebidos nos refúgios, que, depois, passaram à qualidade de plebeus, com a formação das ci ades heróicas, como ficou demonstrado mais acima. De modo que o trecho atrás referido de Cícero significa que, no dia estabelecido, «venha o nobre com o plebeu a reivindicar-lhe o poder», como também acima foi dito. 38 Por isso, a «eterna autoridade>> , como se diz da mesma lei, deve ter sido contra os plebeus, dos quais nos disse Aristóteles, nas Dignidades, 39 que os heróis juravam ser eternos inimigos; direito heróico pelo qual os plebeus, apesar do transcorrer do tempo, não podiam usucapir nenhum fundo romano, 40 porque o comércio de tais fundos pertencia apenas
34
3
;
36 37
38 39
-10
«Contra o inimigo seja eterna a autoridade». rdf., I, 13. •Chegado o dia estabelecido, venha [ao tribunal) com o inimigo». No parágrafo 611. lbid. Cfr. o parágrafo 271. Inexacto. De
[476)
aos nobres; que é boa parte da razão pela qual a lei das XII Tábuas não reconheceu propriedades nuas:41 donde depois, começando a cair em desuso o direito heróico e fortalecendo-se o humano, os pretores cuidavam das propriedades nuas fora de ordem, porque nem explicitamente nem por qualquer interpretação tinham, a partir dessa lei, algum motivo para constituírem juízos ordinários, quer directos quer úteis; e tudo isso porque a mesma lei m antinha que as propriedades nuas dos plebeus eram todas precárias dos nobres. Por outro lado, não se imiscuía nas [acções] furtivas ou violentas dos mesmos nobres, segundo aquela outra propriedade das primeiras repúblicas (de que também nos fala o mesmo Aristóteles, nas Dígnidades 42 ), de que não existiam leis acerca das ofensas e dos danos privados, que esses privados deviam tomar à sua conta pela força das armas, como plenamente demonstraremos no livro quarto; 43 verdadeira força da qual quedou depois, para solenidade nas reivindicações, aquela força fingida que Aulo Gélio 44 denomina «de palha». Tudo isto é confirmado pelo interdito Unde vi, que era dado pelo pretor, e fora de ordem, porque a lei das XII Tábuas não havia compreendido nada, nem sequer falava, das violências privadas; e pelas acções De vi bonorum raptorum e Quod metus caussa, que vieram tarde e foram também pretorianas. 45 [639] Ora, tal costume heróico de tomar os estrangeiros por eternos inimigos, observado privadamente por cada povo na paz, uma vez levado para o exterior, reconheceu-se comum
41
Afirmação contrastante com o testemunho de
42
Cfr. o parágrafo 269. Cfr. os parágrafos 960-961 . Noct. att ., XX, 10. Cfr. Dig., XLIII, 16, passim.
23 . 43
44
45
[477)
CíCERO,
Topica, IV,
a todas as gentes heróicas, que praticaram entre si as guerras eternas com sucessivos roubos e corsos. 46 Assim, das cidades, que Platão diz nascidas com base nas armas, como nós acima observámos, 47 e que começaram a ser governadas à maneira da guerra, antes de terem chegado essas guerras, que são feitas a partir das cidades, proveio que de 1tÓÀtÇ, «cidade», fosse denominada 1tÓÀ.EJ..lOÇ essa guerra. (640] Pelo que, como prova do afirmado, há que fazer esta importante observação: que os Romanos alargaram as conquistas e estenderam as vitórias que alcançaram pelo mundo suportados em quatro leis, que tinham posto em prática com os plebeus dentro de Roma. 48 Porque com as províncias ferozes praticaram as clientelas de Rómulo, ao mandarem para elas as colónias romanas, que transformavam os donos dos campos em jornaleiros; com as províncias pacíficas praticaram a lei agrária de Sérvio Túlio, 49 ao permitirem-lhes o domínio bonitário dos campos; com a Itália praticaram a agrária da lei das XII Tábuas, ao permitirem-lhes o domínio quiritário, que gozavam as terras denominados «soli italici»; com os municípios, ou cidades beneméritas, praticaram as leis do conúbio e do consulado transmitido à plebe. (641] Tal inimizade eterna entre as primeiras cidades não requeria que as guerras fossem declaradas e, assim, tais latrocÍnios foram reputados justos; como, pelo contrário, desabituadas depois as nações do bárbaro costume assim referido, acontece que as guerras não declaradas são latrocínios, 50 não reconhecidos
46
Cfr. G RóCIO, op. cit. , I, 1, 2-4 e I, 3, 1-3. No parágrato 588. 48 Vico confunde, ou funde de propósito, as informações das fontes sobre as cidades itálicas com aquelas sobre as províncias. 49 Cfr. o parágrafo 613. 50 Cfr. G R ÓCIO, op. cit. , II , 3, 1, 2 (e cfr. I, 3, 4, 1-2). 47
[478]
já pelo direito natural das gentes que por Ulpiano são denominadas «humanas)). 5 1 Esta mesma eterna inimizade dos primeiros povos deve explicar-nos que o longo tempo que os Romanos haviam guerreado contra os Albanos foi todo o tempo anterior, porque ambos tinham praticado, uns cont~a os outros, reciprocamente, esses latrocínios de que aqui falamos: pelo que é mais razoável que Horácio mate a irmã porque chora o seu Curiácio, que a tinha raptado, do que por ter sido por este desposada; 52 quando nem esse Rómulo pode conseguir mulher desses Albanos, de nada lhe servindo ser um dos reis de Alba, nem o grande beneficio pelo qual, expulsando o tirano Amúlio, lhes tinha restituído o legítimo rei Numitor. É importante advertir que a lei da vitória se pactua sobre a fortuna do abatimento desses, que eram os principais interessados; como, da guerra albana, foi aquele dos três Horácios e dos três Curiácios e, da troiana, aquele de Páris e Menelau, que tendo ficado indeciso, os Gregos e Troianos depois prosseguiram até terminar: tal como, nos tempos bárbaros últimos, sirnilmente esses príncipes terminavam com os abatimentos das suas pessoas as suas disputas dos reinos, à fortuna dos quais se sujeitavam os povos. E eis que Alba foi a Tróia latina, e a Helena romana foi Horácia (de que existe uma história, de facto a mesma, entre os Gregos, que é reportada por Gerhard Johann Voss, na R etórica), 53 e os dez anos do assédio de Tróia, para os Gregos, devem ser os dez anos do assédio de Veios, para os Latinos, isto é, um número finito por outro infinito de todo o tempo anterior, em que as cidades tinham praticado as eternas hostilidades entre si.
51 Cfr. o parágrafo 569 . 52 Porém, Lív1o , I, 26, di-la não já «desposada» mas prometida em casamento («despoma>)). 53 ln Opera, ed. cit., III , 40, onde é dita outra coisa.
[479]
[642) Porque a razão dos números, porquanto muito abstracta, foi a última a ser compreendida pelas nações (como nestes livros sobre isso se reflecte a outro propósito): 54 do que, desenvolvendo-se mais a razão, quedou para os Latinos «sexcenta» (e assim, entre os Italianos, disse-se primeiro «cento» e depois «cento e mille») para dizer um número inumerável, porque a ideia de infinito pode apenas surgir na mente dos filósofos. Assim, é provável55 que, para dizer um grande número, as primeiras gentes tenham dito «doze»: como doze são os deuses das gentes maiores, 56 de que Varrão e os Gregos enumeraram trinta mil; 57 também doze os trabalhos de Hércules, que devem ter sido inumeráveis; 58 e os Latinos disseram doze as partes do asse, que se pode dividir em infinitas partes; da mesma forma devem ter vindo a ser denominadas as XII Tábuas, 59 pelo infinito número das leis que estavam nas tábuas, de tempos a tempos sucessivamente entalhadas. [643) Porém, nos tempos da guerra troiana, é necessário que, naquela parte da Grécia onde aconteceu, os Gregos se denominassem o:Aqueus» (que antes se tinham denominado «Pelasgos», de Pelasgo, um dos mais antigos heróis da Grécia, sobre o qual acima se reflectiu) e que, depois, esse nome de «Aqueus» se fosse espalhando por toda a Grécia (pois durou até aos tempos de Lúcio Múmio, segundo observa Plínio 60) , como daí e por todo o tempo seguinte quedaram denominados «Helenos». E, assim, a propagação do nome «Aqueus» fez-nos
54
55 56 57
;s 59
60
Cfr. os parágrafos 713 e 1026. Conjectura sem fundamento nas fontes. Cfr. o parágrafo 317. Cfr. o parágrafo 17 4. Cfr. o parágrafo 514. Cfr. o parágrafo 1454. Nat. hist. , XXXV, 8 (4), onde é dita uma outra coisa.
[480]
achar, nos tempos de Homero, que naquela guerra toda a Grécia estaria aliada: precisamente como o nome de «Germânia)), segundo refere Tácito, 6 1 se espalhou ultimamente por toda aquela grande parte da Europa, que assim quedou designada a partir do nome daqueles que, passado o Reno, daí expulsaram os Galos e se começaram a dizer «Germanos)); e, assin1, a glória desses povos difundiu tal nome pela Germânia, como o rumor da guerra troiana espalhou o nome de «Aqueus)) por toda a Grécia. 62 Porque tanto os povos na sua primeira barbárie entenderam de leis, que nem sequer os povos desses reis ofendidos se preocupavam em pegar em armas para os vingar, como se observou acerca do princípio da guerra troiana. [644] A partir dessa natureza das coisas humanas civis, e de nenhuma outra, se pode resolver este extraordinário problema: como a Espanha, que foi mãe de tantas nações que Cícero63 aclama como fortíssimas e belicosíssimas (e César experimentou-o, pois em todas as outras partes do mundo, que a todas venceu, ele combateu pelo império: somente em Espanha combateu pela sua salvação) ; como, dizíamos, perante o fragor de Sagunto (que, durante oito meses seguidos, fez suar Aníbal, com todas as forças frescas e completas da África, com que, depois - já quão diminuídas e exaustas! - pouco
61
Germ ., 2. Interprete-se: pequeno núcleo da chamada guerra de Tróia, que se deu não fora, mas dentro da Grécia (parágrafo 741), deve ter sido uma série de corsos com relativos raptos de raparigas, realizados por piratas troianos contra alguns litorais gregos e, em particular, contra aqueles habitados por um povo cham ado «Aqueus•: denominação que, estendida mais tarde a todos os Gregos, procedimento análogo àquele com o qual, primeiramente, estes tinham sido denominados •Pelasgos• (parágrafo 564) e, depois, •H elenos• (parágrafo 70), deu origem à fab ula que a Grécia inteira se tinha coligado contra Tróia. 63 Philipp., IV, 5. 62
[481]
faltou para que, após a derrota de Canas, não triunfasse sobre Roma no seu próprio Capitólio) e perante o estrépito de Numância (que fez tremer a glória romana, que havia já triunfado sobre Cartago, e fez ganhar juízo à própria virtude e sabedoria de Cipião, triunfador de África); como não uniu todos os seus povos em aliança para estabelecer nas margens do Tejo o império do universo, e deu lugar ao infeliz elogio que lhe fez Lúcio Floro:64 que se apercebeu das suas forças depois de ser vencida por todas as partes? (E Tácito, na Vida de Agricola, 65 advertindo o mesmo costume nos Ingleses, nos tempos dele comprovados como bastante ferozes, reflecte com esta outra bem apropriada expressão: «dum singuli pugnant, universi vincuntum). 66 Porque, embora não apalermados, estavam como feras dentro dos covis das suas fronteiras , continuando a celebrar a vida selvagem e solitária dos polifemos, que acima foi demonstrada.67 [645] Porém, os historiadores, todos despertos pelo rumor do bélico heróico naval e por ele totalmente aturdidos, não advertiram o bélico heróico terrestre, muito menos a política heróica, com que os Gregos, nesses tempos, se deviam governar. Mas Tucídides , ~ escritor muito perspicaz e sapientíssimo, deixou-nos um excelente parecer, quando conta que as cidades heróicas foram todas desprovidas de muralhas, como quedaram Esparta, na Grécia, e Numância,69 que foi a Esparta de Espanha; e, devido à sua natureza orgulhosa e violenta, os heróis expul-
64
II, 17. 12. 66 «Enquanto os indivíduos combatem, a totalidade é vencida». 67 Cfr. o parágrafo 547. 68 I, 6; e cfr., acima, o parágrafo 70. 69 A qual, pelo contrário, era defendida por uma tríplice cintura de muralhas, recordada por APlANO, De rebus hispaniensibus, passim. 65
(482]
savam-se continuamente dos tronos uns dos outros, como Amúlio expulsou Numitor, e Rómulo expulsou Amúlio e repôs Numitor no reino de Alba. Tanto as descendências das casas reais heróicas da Grécia e uma sucessão de catorze reis latinos asseguram aos cronologistas a sua contagem dos tempos!70 Porque na barbárie regressada , quando ela foi mais cruel na Europa, não se lê coisa mais inconstante e mais variada do que a fortuna dos reinos, como se advertiu acima, nas Anotações à Tábua cronológica. 7 1 E, na verdade, Tácito, avisadíssimo, naquele primeiro mote dos Anais advertiu-nos: 72 «Urbem Romam principio reges habuere»/3 usando o verbo que significa a mais débil das três espécies de possessão que distinguem os jurisconsultos/ 4 que são «habere)>, «tenere>>, «possidem>.
[646] As coisas civis celebradas sob estes referidos reinos são-nos contadas pela história poética com as muitas fabulas que contêm competições de canto (tornada a palavra «canto)> daquele «canere)> ou «cantam> que significa «predizen>) e, consequentemente, competições heróicas em torno dos auspícios. 75 [647] Assim, o sátiro Mársias 76 (que, «secum ipse discors )>, é o monstro de que fala Lívio), 77 vencido por Apolo numa competição de canto, é esfolado vivo pelo deus (observe-se a ferocidade das penas heróicas!) ; Lino, que deve ser carácter dos plebeus (porque, certamente, o outro Lino foi poeta herói,
70
Alusão às tabelas exibidas por P ETAU, op. e ed. cit., II, 492-493. Cfr. também o parágrafo 75. 71 Cfr. os parágrafos 75-76 . n I, 1. 73 Literalmente: «na origem, a cidade de Roma foi havida (isto é, dominada] pelos reis». 74 Que, aliás, dizem quase o contrário. Cfr. Dig., XVI, I, 49, 1. 75 Cfr. o parágrafo 508. 76 Assim lhe chamava O víDIO, Metam., VI , 302-400. 77 IV, 2, e cfr., acima, o parágrafo 410.
[483]
que é enumerado juntamente com Anfion, Orfeu, Museu e outros), numa competição de canto similar é morto por Apolo.78 E, em ambas essas fãbulas, as competições são com Apolo, deus da divindade, ou seja, da ciência da adivinhação, isto é, ciência dos auspícios; e nós comprovámos acima 79 ser também ele deus da nobreza, porque a ciência dos auspícios, como com tantas provas o demonstrámos, pertencia apenas aos nobres. [648] As sereias, que adorme em os navegantes com o canto e depois os esganam; a Esfinge, que propõe aos viandantes os enigmas e, não sabendo aqueles resolvê-los, os mata; Circe, que com os encantos transforma em porcos os companheiros de Ulisses (de modo que «cantare» foi depois tomado por «fazer bruxarias», como naquele: .. .cantando rumpitur anguis: 80 pelo que a magia, que na Pérsia deve ter sido, primeiramente, a sabedoria na adivinhação dos auspícios, 81 passou a significar a arte dos bruxos, e essas bruxarias passaram a ser denominadas «encantamentos:-> ): esses referidos navegantes, viandantes, vagabundos, são os estrangeiros das cidades heróicas a que nos referimos acirna, 82 os plebeus que combatem com os heróis para alcançarem que lhes fossem comunicados os auspícios, e são vencidos eo tais movimentos e são cruelmente punidos. 78
O Lino morto, não por Apolo, mas por Hércules, é precisamente o •poeta herói», isto é, o aedo: o «outro Lino» é, por outro lado, o filho de Apolo e de Psárm.te, despedaçado pelos cães enquanto o arrancavam de uma floresta onde se tinha escondido por medo do pai. 79 No parágrafo 508. 80 O hexâmetro inteiro (VtRGíuo , Buc., VIII, 71) pode traduzir-se: •Por obra de encantamento a serpente torna-se rígida ao ponto de morrer». 81 Astrologia. Cfr. o parágrafo 475. 82 No parágrafo 638.
[484]
[649] Da mesma maneira, o sat:lro Pã pretende agarrar a ninfa Sírinx, como acima dissemos, valorosa no canto, e verifica ter abraçado as canas; e, como Pã de Sírinx, 83 assim Ixíon, enamorado de Juno, deusa das núpcias solenes, em vez dela abraça uma nuvem. De modo que as canas significam a ligeireza, a nuvem a vaidade dos matrimónios naturais; donde, de tal nuvem se disseram nascidos os centauros, que é o mesmo que dizer os plebeus, que são os monstros de naturezas discordantes de que fala Lívio, 84 que raptaram aos Lafi.tas as suas esposas, enquanto entre éles celebravam as núpcias. 85 Assim Midas (que aqui acima 86 considerámos como plebeu) traz escondidas as orelhas de burro, e as canas que Pã agarra (isto é, os matrimónios naturais) descobrem-no: precisamente como os patrícios romanos demonstravam aos seus plebeus ser cada um deles um monstro, porque esses «agitabant connubia more Jeramm»Y [650] Vulcano (que também deve ser aqui plebeu) 88 pretende interpor-se numa contenda entre Júpiter e Juno, e com um pontapé de Júpiter é precipitado do céu e ficou coxo. Esta deve ser uma contenda que teriam feito os plebeus para alcançarem dos heróis que lhes fossem comunicados os auspícios de Júpiter e os conúbios de Juno,89 na qual, vencidos, ficaram coxos, no sentido de «humilhados». [651] Assim Fáeton, da família de Apolo e, portanto, crido filho do Sol, quer conduzir o carro de ouro do pai (o carro
83
Cfi:. o parágrafo 467 . rv, 2, e cfi:. o parágrafo 647 . 85 Referência inexacta ao mito : di. O viDIO, Metam ., XII, 210 e seg. 86 No parágrafo 580. 87 Cfi:. o parágrafo 567. 88 Recordemos que, para Vico,Vulcano é personificação ora de patrícios, ora de plebeus (cfi:. o parágrafo 579). 89 Cfi:. o parágrafo 508. 8-1
[485]
do ouro poético, do trigo), 90 e desvia-se para além das vias habituais (que conduziam ao celeiro do pai de sua fanúlia: faz a pretensão do dorrúnio dos campos) e é precipitado do céu. 9 1 [652] Mas, sobretudo, cai do céu o pomo da Discórdia (isto é, o pomo que, acima, 92 demonstrámos significar o dorrúnio dos terrenos, porque a primeira discórdia nasceu por causa dos campos que os plebeus pretendiam cultivar para si), e Vénus (que deve ser aqui plebeia?3 contende com Juno (dos conúbios? 4 e com Minerva (dos impérios). 95 Porque, por boa fortuna, Plutarco adverte, no seu Homero, 96 acerca do juízo de Páris, que aqueles dois versos, lá para o fim da Bíada,97 que a ele se referem, não são de Homero, mas de mão que veio pos-teriormente. [653] Atalanta, ao lançar os pomos de ouro, vence os pretendentes na corrida, 98 precisamente como Hércules luta com Anteu e, erguendo-o ao céu, vence-o, como acima se explicou.99 Atalanta entrega aos plebeus, primeiro, o dorrúnio bonitário dos campos, depois, o quiritário, e reserva para si os conúbios~ precisamente como os patrícios romanos, com a primeira lei agrária de Sérvio Túlio e com a segunda das leis das XII Tábuas, conservaram ainda os conúbios dentro da sua
90
Cfr. os parágrafos 544 e 548. Isto é: das alturas onde deviam morar os pais-heróis teria sido mandado para as lanícies, a fim de cultivar os campos desses. 92 No parágrafo 548 . 93 Cfr. o parágrafo 579. 94 Cfr. o parágrafo 513. 95 Cfr. o parágrafo 589. 96 PsEuso P LUTARCO , De vita et poesi Hom eri, I, S. 97 XXI\1, 28-29. 98 O víDIO, M etam ., X, 560 e seg. 99 No parágrafo 618. 91
[486)
ordem, 100 naquele capítulo: «Conn ubia incommunicata plebi sunto», 101 que era consequência primária daquele outro: «Auspicia incommunicata plebi sunto»; 102 pelo que, três anos depois, a plebe começou a manifestar a pretensão deles e, depois de três anos de contendas heróicas, obteve-os. [654] Os pretendentes de Penélope invadem o palácio de Ulisses (para dizer o reino dos heróis) e declaram-se reis, devoram-lhe os patrimónios régios (apropriaram-se do domínio dos campos), pretendem tomar Penélope por mulher (fazem a pretensão dos conúbios). Numas versões, Penélope mantém-se casta e Ulisses apanha os pretendentes 103 como tordos, à rede, daquela espécie com que Vulcano heróico prende Vénus e Marte plebeus 104 (amarra-os ao cultivo dos campos como jornaleiros de Aquiles, como Coriolano pretendia sujeitar os plebeus romanos, descontentes com a lei agrária de Sérvio Túlio, a jornaleiros de Rómulo, como acima se disse) . 105 Assim também Ulisses combateu com o pobre Iro e o matou 106 (que deve ter sido contenda agrária, na qual os plebeus devoravam os patrimónios de Ulisses). Noutras versões, Penélope prostitui-se com os pretendentes 107 (comunica os conúbios à plebe) , e assun nasce Pã, monstro de duas naturezas discordantes, humana e bestial: que é precisamente o «secum ipse discors»
100
Cfr. o parágrafo 598. (VI RGiuo, Georg., II, 422). 15 CiCERO, De nat. Deor., I , 54. 16 T ÁCITO, A1111., I, 42, mas não segu ramente no significado de «agonizai". 17 CiCERO, Pro Mil. , 18. 18 C oR Éuo N EPOTE, Epa111i11. , 9, 3.
[523]
por «morrer»); donde os fisicos 19 tomaram, provavelmente, o motivo para situar a alma do mundo no ar. E os poetas teólogos, também com justo sentido, situavam o curso da vida no curso do sangue, em cujo justo movimento consiste a nossa vida. (696] Devem ter notado, também com justo sentido, que o ânimo será o veículo dos senti os, porque, entre os Latinos, quedou a propriedade da expres ão «animo sentimus». E, uma vez mais com _1usto sentido, fizeram o ânimo masculino, feminina a alrna/ 0 porque o ânimo opera na alma (que é o «igneus vigon> de que fala Virgílio) ;2 1 de modo que o ânimo deve ter o seu sujeito nos nervos e na substância nervosa, e a alma nas veias e no sangue: e, assim, os veículos serão, do ânimo o éter, e da alma o ar, com aquela proporção com que os espíritos animais são muitíssimo móveis e um tanto mais lentos os vitais. E, como a alma é a agente do movimento, assim o ânimo será do conato e, consequentemente, o princípio; que é o «igneus vigon> de que há pouco nos falou Virgílio. E os poetas teólogos sentiam-no e não o compreendiam e, segundo Homero, denominaram-no «força sagrada» e «vigor oculto»22 e um «deus desconhecido»; como os Gregos e os Latinos, quando diziam ou faziam coisas de que sentiam em si um princípio superior, diziam que um qualquer deus teria querido essa referida c isa: princípio que foi denominado pelos mesmos Latinos «mens animi»Y E assim, rudemente, compreenderam
19
Os filósofos da natureza, isto é, os estóicos, seguidos de certo modo D e civ. D ei, VII , 3, 1. passo famoso de LucRÉ 10, II, 137 e seg., e cfr. VARRÃO, a partir de S ANTO A GOSTINHO, De civ. D ei, VII, 23. 21 Am. , VI , 730. 22 Cfr. o parágrafo 691. 23 LucRÉCIO. IV; 758. por
SANTO A co>.INHO, 20 Recorde-se um
[524]
aquela altíssima verdade, que depois a teologia natural dos metafisicos, em virtude de invencíveis reflexões contra os epicuristas, que as pretendem remontadas dos corpos, demonstra que as ideias provêm ao homem de Deus. 24 [697] Entenderam a geração de tal maneira que não sabemos se, depois, os doutos puderam alguma vez encontrar uma mais apropriada. A maneira está toda contida nesta palavra «concepire», quase dita «concapere», que explica o exercício que, pela sua natureza, celebram as formas fisicas (que agora se deve substituir pela gravidade do ar, demonstrada nos nossos tempos), de tomar em seu redor todos os corpos que lhes são vizinhos, e vencer a sua resistência, e acomodá-los e conformá-los à sua forma. 25 [698] Explicaram muito sabiamente a corrupção com a palavra «corrumpi», que significa a ruptura de todas as partes que compõem o corpo; como oposto de «sanum», porque a vida consiste em estarem sãs todas as partes: tanto que devem ter considerado que os morbos levavam à morte pela corrupção dos sólidos.26 [699] Reduziam todas as funções internas do espírito a três partes do corpo: à cabeça, ao peito e ao coração. E à cabeça referiam todas as cognições; que, porquanto eram todas fantásticas, colocaram na cabeça a memória, que os Latinos designaram por «fantasia ». 27 E, nos tempos bárbaros regressados, 24
Alusão a Descartes, a Arnauld e, especialmente, a Malebranche. Cfr. o parágrafo 515. 2 " R ecorde-se a teoria fisiológica, que concebia a vida do corpo como um complexo de fenómenos meramente mecânicos e materiais, e explicava as do en ças como conseq uência d o ab randamento da circulação e estreitamento dos vasos sanguíneos: aqueles vasos precisamente a que Vico chama «sólidos». 27 T ERÊNCIO, Andria, IV, 1, 1-2; e IV, 3, 1-2, e cfr. CícERO, De in vent., I, 7; Q U JNTILI ANO, I, 3. 25
[525]
«fantasia» foi dita por «engenho» e, em vez de dizerem «homem de engenho», diziam «homem fantástico»; como se conta ter sido Cola di Rienzo, o autor dessa mesma época que em italiano bárbaro descreveu a sua vida, 28 que contém naturezas e costumes mu:.to semelhantes a estes heróis antigos sobre os quais reflectimos: o que constitui um grande argumento do recurso a que, em naturezas e costumes, fazem as nações. Mas a fantasia mais não é do que relevo de reminiscências, e o engenho mais não é que trabalho em torno das coisas que se recordam. Ora, porque a mente humana dos tempos sobre os quais reflectimos não era aguçada por nenhuma verdadeira arte de escrever, não era espiritualizada por qualquer prática de contas e razão, 29 não se tinha tornado abstracta com tantos vocábulos abstractos como os que agora abundam nas línguas, como se disse acima, no Método, 30 ela exercia toda a sua força nestas três belíssimas faculdades , que lhe provêm do corpo; e todas as três pertencem à primeira operação da mente, cuja arte reguladora é a tópica, tal como a arte reguladora da segunda é a crhca; e, como esta é arte de julgar, assim aquela é arte de descobrir, conforme se disse acima nos Últimos corolários da Lógica poética. 31 E, como naturalmente primeiro existe o descobrir, depois o julgar das coisas, assim convinha à infància do mundo exercitar-se em torno da primeira operação da mente humana, quando o mundo tinha necessidade de todos os descobrimentos para as necessidades e utilidades da vida, que tinham provindo antes da chegada dos filósofos ,32 como
28 Verdadeiramente, nesta diz-se uma coisa bastante diferente: no entanto, cfr. Historiae romar.:ae fragmenta, in M UR.AIORI , Antiquitates, III, 516; e cfr., aqui, os parágrafo 784 e 819. 29 De qualquer cognição arinnética. 30 Em vez disso, na Metafisica poética: cfr. o parágrafo 378. 31 Cfr. os parágrafos 495-498 . 32 Cfr. o parágrafo 486 .
[526]
depois demonstraremos plenamente na Descoberta do verdadeiro H omeroY Portanto, com razão os poetas teólogos disseram que a memória é a «mãe das musas», que comprovámos acima34 serem as artes da humanidade. [700] Nesta parte, é de não abandonar de modo algum esta importante observação, que muito releva devido àquilo que no Método acima se disse: 35 qu e, agora, mal se pode entender e, de facto, não se pode imaginar como pensariam os primeiros homens que fundaram a humanidade gentílica, pois eram de mentes tão singulares e precisas, que cada nova aparência da cara consideravam como uma outra nova, como já observámos na fabula de Proteu ;36 cada nova paixão consideravam um outro coração, um outro peito, um outro ânimo: daí existirem aquelas frases poéticas, usadas, não já pela necessidade de medida, mas pela tal natureza de coisas humanas, como são «ora», «vultus», «animi», «pe.:tora», «corda», tomadas pelos seus números do menos. 37 [701] Fizeram do peito a sala de todas as paixões, a que, com justo sentido, submeteram as duas fomentações ou princípios: isto é, o irascível no estômago, porquanto é aí que, para superar o mal que nos oprime, se os faz sentir a bílis contida nos vasos biliares, dispersos pelo ve tríloco, que, ao fortalecer-se o seu movimento peristáltico, espremendo-o, lá a difunde: - situaram a concupiscível, sobretudo, no figado, que é definido como a «fabrica do sangue», que os poetas denominaram «precórdios», onde Titã empastou as paixões dos outros ani-
13 · 3
'
35
y, .1?
Cfr. os parágrafos 792 e seg. N o parágrafo 538. Cfr. o parágrafo 338. Cfr. o parágrafo 688 . Formas plurais usadas pelo singular.
[527)
mais,38 que fossem os mais insignes de cada espee1e; e esboçadamente entenderam que a concupiscência é a mãe de todas as paixões e que as paixões estarão dentro dos nossos humores. [702] Atrib íam ao coração todos os conselhos, pelo que os heróis «agitabanb>, «versabanb>, «volutabant corde curas», porque não pensavam sobre as coisas exequíveis senão sacudidos pelas paixões, tal como aqueles que eram estúpidos e insensatos.39 Portanto, os sábios foram denominados pelos Latinos «cordati» e, ao contrário, «vercordes» os simples; e as resoluções foram denominadas «sententiae» porque, tal como sentiam assim julgavam, pelo ue os juízos heróicos eram todos verdadeiros na sua forma , por mais que fossem falsos na matéria.
38 39
Cfr. HoRAc1o, Odes, 16, 13-16. Cfr. LucRÉoo, III, 140-141.
[528]
[CAPíTULO TER CErRO]
COROLÁRIO: DAS SENTENÇAS HERÓICAS [703] Ora, como os primeiros homens do gentilismo tinham mentes singularíssimas, pouco menos que de animais, às quais cada nova sensação apaga, de facto, a antiga (que é a razão pela qual não podiam combinar e discorrer), deviam ser, por isso, todas as sentenças singularizadas por quem as sentia. ' Donde, aquele sublime, que Diorúsio Longino 2 admira na ode de Safo que depois foi traduzida para o latim por Catulo, 3 em que o enamorado, ante a presença da sua mulher amada, explica através de uma semelhança:
flle mi par esse deo videtur, 4 carece do supremo grau da sublimidade, porque não singulariza a sentença em si mesmo, como faz Terêncio,5 ao dizer:
Vitam deorum adeoti sumus;6 sentimento esse que, se bem que seja próprio de quem o diz, pela maneira latina de usar na primeira pessoa o número do
1
Cfr. o parágrafo 825.
2
PsEUDO LoNGINO, D e sublimitate, XI. Cfr. Catulo, carmen LI , D e divi1'1ari safiano. «Parece-me ser se1nelhante a un1 deus•. H eautont. , IV, 3, 15. «Conseguimos a vida dos deuses>> .
3 4
5 6
[529]
mais por aquele do menos/ porém, tem o aspecto de um sentimento comum. Mas o mesmo sentimento, numa outra comédia, é elevado pelo mesmo poeta ao supremo grau do sublime quando, singularizando-o. o torna próprio de quem o sente:
Deus factus srmr. 8 [704] Por isso, estas sentenças abstractas são próprias de filósofos , porque contêm universais, e as reflexões sobre essas paixões são próprias de poetas falsos e frios .9
7
8 9
O plural pdo singular: veja-se a nota 34 ao parágrafo 700. •Torna-se C.eus» (Ecyra, V, 4, 35; cfr. também Adelphi, IV, 1, 19). Cfr. o parágrafo 825.
[530)
[CAPíTULO QUARTO]
COROLÁRIO: DAS DESCRIÇÕES HERÓICAS [705] Finahnente, reduziam as funções externas do ânimo aos cinco sentidos do corpo, mas apercebidos, vívidos e advertidos, como próprios de quem tinha pouca ou nenhuma razão e todos eles robustíssima fantasia . 1 Serão provas disto os vocábulos que deram a esses sentidos. [706] Disseram «audire», quase ', os que do erário público se davam ao povo, e a «ceia «sagrada», na qual se banqueteavam os sacerdotes denominados «epulones».17 Por isso, Agamémnon mata os dois cordeiros, sacrifício com o qual consagra os pactos de guerra com Príamo. 18 Tanto era então magnífica tal ideia, que agora nos parece ser de carniceiro! Depois, devem ter surgido as carnes cozidas que, para além do fogo, têm a necessidade da água, do caldeirão e, com ele, do tripé; das quais Virgilio 19 também faz alimentar os seus heróis e fa-los assar as carnes nos espetos. Surgiram finalmente os alimentos temperados, os quais, para além de todas as coisas que foram referidas, têm necessidade dos condimentos. - Agora, para regressar às cei::.s heróicas de Homero, se bem que o mais delicado alimento dos heróis gregos seja por ele descrito
15
Referência inexacta a PAULO D IÁCONO, epítome de Festo, ad v. prosicium. 16 Não ele, mas Automedonte e Álcimo (fl., xxrv, 621-626). Pátrocolo é o ministro do sacrifício alimentar, coadjuvado por Automedonte, no banquete oferecido por Aquiles a Ulisses, Fénix e Ájax Telamónio (ibidem, IX, 201 e seg.). 17 Afirmações não sempre exactas. No entanto, cfr. CícERO, De orat., III, 19; Lív10 , XXXIII, 42; GÉLIO, N oct. att., I, 12; PAULO DIÁCONO, epítome de Festo, ad v. epulones. 18 Não desta, mas do duelo, depois desvanecido, entre Páris e Menelau (fl., III, 268 e seg.;. 19 A en., I, 209- 213 .
[610]
como sendo a farinha com queijo e mel, 20 através de duas comparações, 21 porém, serve-se da pesca; e Ulisses, fingindo-se pobrezinho, pedindo esmola a um dos pretendentes, 22 diz-lhe que os deuses, aos reis hospitaleiros, ou seja, caridosos para com os pobres viandantes, dão os mares piscosos, ou seja, abundantes de peixes, que constituem a maior delícia das ce1as. X
(802] Finalmente (aquilo que mais importa ao nosso propósito) , Homero parece ter surgido nos tempos em que, na Grécia, já estava decadente o direito heróico e tinha começado a celebrar-se a liberdade popular, porque os heróis contraem matrimónio com estrangeiras e os bastardos acedem às sucessões dos reinos. E assim deve ter necessariamente acontecido, porque, muito tempo antes, Hércules, tingido do sangue do feio centauro Nessa, e com isso enfurecido, tinha morrido; isto é, como se explicou no livro segundo, tinha terminado o direito heróico. 23 (803] Portanto, pretendendo nós não desprezar, de modo algum, a autoridade acerca da idade de Homero, por todas estas coisas observadas e por ele recolhidas nos seus próprios poemas e, mais do que na fl{ada, naquele da Odisseia, que Dionísio Longino considera ter Homero composto sendo já
Alusão às quatro misturas recordadas, respectivamente, na n., XI, 629-630 e 638-639, e na Od. , X, 234-235 e XX, 69. 21 Pelo menos através de sete: n., XVI, 406-407 e 745; Od., V, 51 e seg. e 432-433; X, 124; XII , 251-254; XXll, 384-388. 22 Em vez disso, ao conversar, sem ser ainda reconhecido, com Penélope (Od., XIX, 113). 23 Cfr. o parágrafo 659. 20
[611]
velho/ 4 corrob ramos a opinião daqueles que o situam muito distante da guerra troiana; tempo esse que transcorre pelo espaço de quatrocentos e sesse ta anos, que vem a ser aproximadamente os tempos de Numa. E também acreditamos agradar-lhes nisto, uma vez que o situamos em tempos mais próximos de nós, porque, depois dos tempos de Numa, dizem que Psamético abriu o Egipto aos Gregos, 25 os quais, segundo infinitos trechos, particularmente da Odisseia, 26 há muito tempo que, na sua Grécia, tinham aberto o comércio aos Fenícios; das relações com os quais, não menos do que com as mercadorias, como agora os Europeus com aquelas das Índias, estavam os povos gregos já acostumados a deleitar-se. Pelo que concordam estas duas coisas: que Homero não viu o Egipto; e que relata tantas coisas, quer o Egipto, quer da Líbia, quer da Fenícia, quer da Ásia e, sobretudo, da Itália e da Sicília, a partir das relações que os Gregos tinham mantido com os Fenícios. [804] Mas não vemos se estes muitos e tão delicados costumes estão bem de acordo com todos aqueles que, ao mesmo tempo, selvagens e ferozes , ele atribuiu aos seus heróis e, particularmente, na flfada . De modo que,
ne placidis coeant immitia, 27 parecem tais poemas terem sido trabalhados e dirigidos em mais tardia idade e por mais mãos. [805] Assim, com estas coisas aqui referidas acerca da pátria e da idade do até agora suposto Homero, prosseguem as dúvidas para a busca do verdadeiro. 24
D e sublimitate, IV Cfi:. o parágrafo 90. 26 Não mais de uma dezena. 27 H ORÁCIO, Ad Pisones, 12 («para que não se rrústurem branduras e ferocidades >>). P sEuoo-Lo'-lGINO,
25
[612]
(CAPÍTULO QuARTO)
DA INATINGÍVEL FACULDADE POÉTICA HERÓICA DE HOMERO (806] Mas a nenhuma filosofia de Homero, que nós acima demonstrámos, e as descobertas feitas acerca da sua pátria e idade, que nos colocam numa forte dúvida sobre se ele não teria sido talvez um homem completamente vulgar, são-nos demasiadamente confirmadas pela desesperada dificuldade, que propõe Horácio, na Arte Poética, 1 de se poder, depois de Homero, inventar caracteres, ou seja, personagens de tragédia, novos na sua composição, pelo que ele dá aquele conselho aos poetas de os tomarem dos poemas de Homero. Combine-se agora essa desesperada dificuldade com aquele dado: que os personagens da comédia nova são também todos na sua composição inventados, ou melhor, por uma lei ateniense, 2 a comédia nova devia representar-se nos teatros com as personagens todas inventadas na sua composição; e com tanta felicidade o conseguiram os Gregos, que os Latinos, no seu fausto, segundo o juízo d~ Fábio Quintiliano,3 desesperaram mesmo de competir com eles, dizendo: «Cum graecis de comoedia non contendimus». 4
1
128 e seg. Aquela famosa, de 404 a. C., proibindo tanto o designar com o seu nome personagens vivas, como o dirigir-se directamente aos espectadores através da pessoa do corifeu. 2
3 4
XII, 10, 30. «Quanto à comédia, não podemos competir com os Gregos».
[613]
[807] A essa dificuldade de Horácio acrescentemos, numa extensão mais ampla, estas duas outras. Das quais, uma é: como é que Homero, que tinha surgido anteriormente, foi um poeta heróico tão inimitável, e a tragédia, que nasceu depois, começou tão tosca, como todos sabem, e nós, com maior minúcia e mais adiante, aqui observaremos? A outra é: como é que Homero, tendo sido anterior às filosofias e às artes poéticas e críticas, foi o mais sublime de todos os mais sublimes poetas, tal como são os heróicos e, depois de descobertas as filosofias e as artes poéticas e críticas, não existiu poeta que pudesse, senão muitíssimo tempo depois, seguir-lhe o exemplo? M as, deixando estas duas nossas dificuldades, a de Horácio, combinada com aquilo que já dissemos acerca da comédia nova, devia também levar à pesquisa os Patrícios, os Scalígeros, os Castelvetros e outros valentes mestres de arte poética, para investigarem a razão da diferença. [808] Tal razão não pode ser refundida em nenhum outro lado senão na origem da poesia, aqui mais acima descoberta, na Sabedoria poética e, consequentemente, na descoberta dos caracteres poéticos, 5 nos quais consiste unicamente a essência da própria poesia. Porque a comédia nova propõe retratos dos nossos presentes costumes humanos, 6 sobre os quais havia meditado a filosofia socrática/ a partir de cujas máximas gerais acerca da moral humana puderam os poetas gregos, naquela profundamente instruídos (como Menandro, em comparação com o qual Terêncio foi denominado, pelos Latinos,8 «Menandro reduzido a metade))), puderam, dizia, inventar certos exem-
5
Cfr. os parágrafos 376 e seg. Cfr. o parágrafo 921. 7 Cfr. a quin:a nota ao parágrafo 666. 8 Não por César, como se acreditava ainda nos tempos de Vico, mas por Cícero. 6
[614]
plos luminosos de homens de ideia, 9 à luz e esplendor dos quais fosse possível despertar o vulgo, o qual é tão dócil para aprender com os exemplos fortes, quanto é incapaz de aprender através de máximas reflectidas. A comédia antiga tomava argumentos, ou seja, assuntos verdadeiros e punha-os em fabula tal e qual eles eram, como numa ocasião o malvado Aristófanes pôs em fabula o boníssimo Sócrates e o destruiu. 10 Mas a tragédia põe em cena ódios, desdéns, cóleras, vinganças heróicas (que procedem de naturezas sublimes, das quais naturalmente provêm sentimentos, falas , acções em geral, de ferocidade, de crueza, de atrocidade), revestidos de maravilha; e todas estas coisas supremarnente conformes entre si e uniformes nos seus assuntos, trabalhos esses que unicamente os Gregos souberam fazer, nos seus tempos de heroísmo, no fim dos quais deve ter surgido Homero. O que se demonstra com esta crítica metafísica: que as fabulas, as quais, quando do seu nascimento, tinham surgido direitas e convenientes, chegaram a Homero tortas e indecentes; como se pode observar ao longo de toda a Sabedoria poética aqui acima reflectida, pois todas foram primeiramente histórias verdadeiras que, a pouco e pouco, se alteraram e se corromperam e, assim corrompidas, chegaram finalmente a Homero. 11 Pelo que ele deve ser situado na terceira idade dos poetas heróicos: :2 depois da primeira, que encontrou essas fabulas em uso como verdadeiras narrações, na primeira e própria significação da palavra J..LÜ'ÔOÇ, que é definida por esses mesmos Gregos como «verdadeira narração));
9
Homens ideais, isto é, tipos, não indivíduos que existiam efectivamente. Assim se acreditava ainda nos tempos de Vico, sem reflectir, para além disso, que entre a récita das Nuvens, de Aristófanes, e a condenação de Sócrates, decorreram bem vinte e cinco anos. 11 Cfr. os parágrafos 80-81 e 814. 12 Cfr. o parágrafo 905. 10
[615]
a segunda, daqueles que a alteraram e corromperam; a terceira, finalmente, de Homero, que assim corrompidas as recebeu. [809] Mas, para retomarmos o nosso propósito, pela razão por nós estabelecida a partir desse efeito, Aristóteles, na Poética, 13 diz que as mentiras poéticas teriam sido encontradas unicamente a partir de Homero, porque os seus caracteres poéticos, que numa sublime composição são incomparáveis, pelo que tanto os admira Horácio, 14 foram géneros fantásticos, tal como foram acima definidos, na MetajTsica poética, 15 aos quais os povos gregos associaram todas as propriedades da virtude heróica e todos os sentidos e costumes provindos de tais propriedades de natureza, como o serem ressentidos, teimosos, coléricos, implacáveis, violentos, que arrogam toda a razão à força , como precisamente os recolhe Horácio, 16 quando lhes descreve o carácter. A Ulisses, que é o sujeito da Odisseia, transmitiram todos aqueles da abedoria heróica, isto é, todos os costumes prudentes, tolerantes, dissimulados, dúplices, enganadores, preservando sempre a propriedade das palavras e a indiferença das acções, quando o tros por si mesmos cairiam no erro e por si mesmos se enganariam. E a ambos esses caracteres associaram as acções dos particulares, segundo cada um dos dois géneros, as mais estrondosas que os Gregos, então ainda aparvalhados e estúpidos, tivessem podido despertar e levar a adverti-las e a referi-las aos seus géneros. Dois caracteres esses que, tendo-os formado toda uma nação, não podiam ser inventados senão naturalmente uniformes (uniformidade na qual, adequada ao senso comum de toda uma nação, consiste
13
Pág. 1460 a 15- 20. llacção retirada dos vv. 129-130 da Epfstola aos Pisões. 15 No parágrafo 381. Mas cfr., até melhor, os parágrafos 209, 402, 412 e seg., 934. 16 Ad Pisones, 119 e seg. 14
(616]
unicamente o decoro, ou seja, a beleza e elegância de uma fabula); e, porque eram inventados por imaginações fortíssimas , não podiam ser inventados senão sublimes.17 Do que permaneceram duas eternas propriedades em poesia: uma das quais é que o sublime poético deva andar sempre unido ao popular; a outra, que aqueles povos que foram os primeiros a trabalhar esses caracteres heróicos não advertem agora de outra forma os costumes humanos senão através de caracteres estrondosos de brilhantíssimos exemplos.
17
Cfr. os parágrafos 144 e 142.
[617]
(CAPÍTULO
Qurr:rro]
PROVAS FILOSÓFICAS PARA A DESCOBERTA DO VERDADEIRO HOMERO [810] Estando essas coisas assim, combinam-se aqui estas provas filosóficas: I
[811] Aquela que foi acima, entre as Dignidades, enumerada: 1 que os homens são naturalmente levados a conservar as memórias das ordens e das leis que os mantenham dentro da sua sociedade. II
[812] Aquela verdade que compreendeu Ludovico Castelvetro: 2 que, primeiro, deve ter nascido a história, depois, a poesia; porque a história é uma simples enunciação da verdade, mas a poesia acrescenta-lhe uma imitação. E o homem,_embora muitíssimo perspicaz, não soube fazer uso disso para remontar aos verdadeiros princípios da poesia, combinando-os com esta prova filosófica , que aqui se expões, pois:
1
2
Cfr. o parágrafo 201. Poética de A ristóteles, ed. cit., pp. 5-6.
[619]
III
[813] Que, tendo sido os poetas certamente anteriores aos historiadm s vulgares, a primeira história deverá ser a poética. IV
[814] Que as fabulas , na sua origem, foram narrações verdadeiras e severas (donde ~U'ÔOÇ, a fabula , foi definida como «vera narratio», como acima, por várias vezes, nós dissemos) ;3 as quais. primeiro, nasceram geralmente indecentes e, por isso, depoi , se tornaram impróprias, portanto alteradas, seguidamente inverosímeis, mais adiante obscuras, daí escandalosas e, por fim, inacreditáveis; 4 que são sete fontes das dificuldades das fabulas, as quais se podem encontrar ao de leve em todo o segundo livro.
v [815] E, como no mesmo livro5 se demonstrou, foram recebidas por Homero assim estragadas e corrompidas.
VI [816] Que os caracteres poéticos, nos quais consiste a essência das fabulas, nasceram da necessidade de natureza, incapaz de abstrair as formas e as propriedades dos assuntos; e, por consequência, devem ter sido maneira de pensar de povos inteiros, que teriam sido introduzidos nessa necessidade
3 4
5
Cfr. o parágrafo 401. Cfr. os parágrafos 80-81 . Cfr. até melhor, aqui, o parágrafo 808.
[620]
de natureza, existente nos tempos da sua maior barbárie. 6 Das quais é eterna propriedade engrandecer sempre as ideias dos particulares: sobre o que existe um belo trecho de Aristóteles, nos Livros morais, onde reflecte que os homens de ideias curtas fazem máximas de todo o particular. A razão de tal dito deve ser: porque a mente humana, a qual é indefinida, estando angustiada pela robustez dos sentidos, não pode de outro modo celebrar a sua natureza quase divina senão engrandecendo com a fantasia esses particulares. Daí, talvez, que entre os poetas gregos, de igual modo que entre os latinos, .as imagens tanto dos deuses como dos heróis apareçam sempre maiores do que aquelas dos homens; e, nos tempos bárbaros regressados, as pinturas, particularmente de Deus-Pai, de Jesus Cristo e da Virgem Maria, sejam exibidas com unia excedente grandeza. VII [817] Porque os bárbaros carecem de. reflexão, a. qual, .mal usada, é mãe da mentira, os primeiros poetas latin~s heróicos cantaram histórias verdadeiras / isto é, as guerras romanas. E, nos tempos bárbaros regressados, devido a essa referida natureza da barbárie, os mesmos poetas latinos não cantaram senão histórias, como aconteceu com os Guntheres, os Guglielmos di Puglia e outros; 8 e os romancistas dessa mesma ·época acreditaram que escrevi4ffi histórias verdadeiras: pelo que Boiardo, ou Ariosto, surgidos nos tempos iluminados pelas filosofias, tornaram os assuntos dos seus poemas da história de Turpin, bispo de Paris.9 E, devido a esta mesll_la natureza da barbárie, 6
7
8 9
Cfr. o parágrafo 209. Cfr. o parágrafo 471. lbidem. Cfr. o parágrafo 159.
[621]
a qual, por defeito de reflexão, não ~abe inventar (pelo que é ela naturalmente verdadeira, aberta, fiel, generosa e magnânima) , 10 Dante, ni:uito embora fosse douto em altíssima ciência secreta, na sua Commedia, apesar disso, fez comparecer pessoas verdadeiras e representou factos verdadeiros dos defuntos 11 é, por isso, deu ao~ poema o título de «co~édia)), 12 tal como foi a antiga dos · Gregos que, como acima dissemos, 13 punha em fabula pessoas verdadeiras. E Dante assemelhou-se nisto ao Homero da flíada , a qual Dionísio Longino 14 diz ser toda «dramática)), ou seja, representativa, tal como diz ser a Odisseia toda «narrativa)). E Francesco Petrarca, se bem que doutíssimo, também decidiu cantar em latim a segunda guerra cartaginesa; e em toscano, nos Trion.fi, os quais são de tom heróico, outra coisa não faz senão uma colectânea de histórias. E aqui nasce uma luminosa prova do seguinte: que as primeiras fabulas foram histórias. Porque a sátira dizia mal de pessoas não apenas verdadeiras . mas; sobretudo; conhecidas; 15 a tragédia tomava como argumentos personagens da história poética; a comédia antiga punha em fabula claros personagens vivos; a comédia nova, nascida nos tempos da mais .esclarecida reflexão, finalmente, invento persnnagens todos de cunho novo (tal como, na língua italiana, a comédia nova não regressou senão tendo começado já o século adrniravehnente instruido pela era quinhentista) :16 nem entre os Gregos nem entre os Latinos jamais
° Cfr. os
1
parágrafos 516 e 708. Cfr, o parágrafo 786. 12 Ver D ANTE, D e vulg. eloq ., II, 4; e cfr. IACOPO MAzZONI, D!fesa de/la «Commedia» di D a'lte (Cesena, 1587), p. 308. 13 N o parágrafo 808. 14 De sublimitate, IX. 15 Contaminação viquiana do chamado drama satrr1co grego com aquilo que, nas literaturas modernas, pouco a pouco, se tornou ·a s~tira . 16 Alusão à comédia literária de imitação de Plauto e, sobretudo, de Terêncio. 11
[622]
se inventou um personagem de cunho no\'o que fosse o sujeito principal de uma tragédia. E o gosto do vulgo no-lo confirma gravemente, pois não quer dramas por música, cujos argumentos são todos trágicos, senão são retirados de histórias;17 e, entretanto, suporta os argumentos inventados nas comédias, porque, sendo particulares, e, por isso, desconhecidos, os crê verdadeiros. · VIII
[818] Tendo sido esses os caracteres poéticos, as suas alegorias poéticas, necessariamente, como acima se demonstrou ao longo de toda a Sabedoria poética, 18 devem conter unicamente significados históricos dos pnmerros tempos da Grécia. IX [819] Que tais histórias devem ter sido naturalmente conservadas para memória da generalidade dos poVos, pela primeira prova filosófica ·há pouco mencionada: 19 que, como crianças das nações, devem ter-se admiravelmente valido da memória. E isto, não sem a intervenção da providência divina: pois, uma vez que, até aos tempos de Homero, e bastante depois dele, não tinha sido ainda descoberta a escrita vulgar (como por várias vezes, acima, se ouviu a Josefa contra Apiano) / 0 em tal necessidade humana, os povos •. os quais eram quase todos corpo e quase sem nenhuma reflexão/ 1 deviam possuir todos vívido sentido para sentirem os particulares, forte fantasia para
17
Alusão aos melodramas, efectivamente todos históricos, de Metastásio. Cfr., especialmente, o parágrafo 403. 19 No parágrafo 811 : cfr. também o parágrafo 211. 20 Cfr. o parágrafo 66. 21 Cfr. o parágrafo 375. 18
[623]
os aprender e aumentar, agudo engenho para os reportar aos seus géneros fantásticos e robusta memória para os reter. Faculdades essas que pertencem, é verdade, à mente, mas adentram as suas raízes no corpo e pelo corpo ganham vigor. Pelo que a memória é o mesmo que a fantasia,22 a qual, por isso, era denominada «memoria» pelos Latinos (como, em Terêncio, se encontra «memorabíle>), no significado de «coisa que . se pode imaginar»,23 e vulgarmente «comrr#nisci» por «inventar», 24 que é próprio da fantasia, donde temos «commentum», que é uma descoberta inventada 25 ) ; e, do mesmo modo, a «fantasia)) é tomada pelo engenho (como, nos tempos bárbaros regressados, se disse , quando significa o «fiador», porquanto esse .liga conjuntamente o credor ao devedor. Origem essa . que é tão longínqua e forçada quanto é plausível e apropriada para significar o nosso Homero, que foi o que ligou, ou seja, compôs as fabulas.
XIV [853] Que os Pisistrátidas, 13 tiranos de Atenas, dividiram e dispuseram, ou fizeram dividir e dispor, os poemas de Homero, na fltada e na Odisseia: donde se pode compreender quanto deviam ter estado, mteriormente, numa confusa con-
12
13
Cfr. o parágrafo 66. Pisístrato e o seu filho Hiparco
[634]
(PLUTARCO ,
Teseu, 20, 3).
gérie de coisas, 14 uma vez que é infinita a diferença que se pode observar entre os estilos de um e do outro poema homérico. XV [854] Que os mesmos Pisistrátidas ordenaram que, a partir de então, fossem cantados pelos rapsodos nas festas panatenaicas, como escreve Cícero, De natura deorum, 15 e Heliano, 16 nisto seguido por Scheffer. 17 XVI [855] Mas os Pisistrátidas foram expulsos de Atenas poucos anos antes dos Tarquínios o serem de Ror:p.a: de modo que, situando-se Homero nos tempos de Numa, como nós acima provámos, também deve ter transcorrido muito tempo ao longo do qual os rapsodos teriam continuado a conservar na memória os poemas dele. Tradição essa que retira, de facto, o crédito à outra, 18 de Aristarco, segundo a qual, nos tempos dos Pisistrátidas, teria sido feita uma tal purga, divisão e ordenação dos poemas de Homero, porque tal não se podia fazer sem a
14 Com o que Vico não admite a redacção, atribuída pela história tradicional a Licurgo {PLUTARCO , licurgo, 4, 5) . 15 Não · ali, mas na De orat. , III, 34. 16 Ulriae historiae, VIII, 2. 17 Na sua edição das Ulriae historiae, cfr. a edição de Estrasburgo, 1713, p. 397. 18 Aquela dos setenta e dois gramáticos que, convocados por Pisístrato para reordenar, cada uma separadamente, as rapsódias homéricas, teriam, uma vez cumprido o seu trabalho, declarado concordant.e mente que as recensões de Aristarco eram melhores do que as de Zenódoto. Cfr. ALLACI, op. cit., p. 52.
[635]
escrita vulgar e, assim, daí em diante, não havia já necessidade de que os rapsodos os cantassem parcialmente e de memória. 19 XVII [856] De modo que Hesíodo,20 que deixou obras por si escritas, porquanto não possuímos qualquer testemunho de que tivesse sido conservado de memória pelos rapsodos , como Homero, e é situado pelos cronologistas, com uma vaníssima diligência, trinta anos antes de Homero, deve ser situado depois dos Pisistrátidas. A não ser que os poetas cíclicos fossem como os rapsodos homéricos, que conservaram toda a história fabulosa dos Gregos, desde o princípio dos seus deuses até ao regresso de Ulisses a Ítaca. Poetas esses que, a partir da palavra xÚxÀ.oç, não podiam ser outra coisa senão homens idiotas que cantariam as fãbulas à gente vulgar, reunida em círculo, em dias de festa; 2 1 círculo esse que é aquele, precisamente a que Horácio se refere, na Arte, como «vilem patulumque orbem», 22 e acerca do qual Dacie~3 não fica nada satisfeito com os comentadores, que interpretam que Horácio pretende ali dizer «os longos episódi s». E talvez a razão de não ficar nada satisfeito
19 Vico refuta a tradição segundo a qual Aristarco de Samotrácia (c. 217...:c. 145 a. C.) teria acedido à revisão do texto homérico, conjuntamente com. outrós . gr.im.áticos, no tempo de Pisístrato. Segundo Vico, naquele tempo, nãó ·.exiStia ainda a escrita. 20 Cfr. os parágrafos 97 e 855. 21 Hipéitese s gerida a Vico pelos chamados «Rinaldos» que, no cais de N ápoles, liam e parafraseavam a seu modo os poemas cavaleirescos. 22 Ad Pis., 132 («Círculo aberto a todos, mesmo a gente baixa», ou, como o próprio Vico parafraseia a frase neste mesmo parágrafo, «vis e amplos círculos de gente vadia») . 23 Oeuvres d'Horace en latin, traduites en français par M. Darcier et /e pere Sanadon, ecc. , VIII (Arnsterdão, 1735), p. 133, onde, por outro lado, é dita uma coisa bastante diferente.
[636]
com isso seja esta: porque não é necessário que o episódio de uma fabula, porquanto seja longo, deva também ser víl: como, a título de exemplo, são seguramente longos aquele das delícias de Rinaldo com Armida, no jardim encantado, e o do raciocínio que faz o velho pastor a Herrnínia, mas, todavia, não são vis, porque um é adornado, o outro é ténue ou delicado, e ambos são nobres. Porém, aqui, (endo Horácio recomendado aos poetas trágicos que tomassem os argumentos dos poemas de Homero, defronta-se com a dificuldade de que, deste modo, esses não seriam poetas, porque as fabulas seriam as descobertas por Homero. Porém, Horácio respondelhes que as fabulas épicas de Homero se converteriam nas suas próprias fábulas trágicas , se eles seguissem estas três recomendações. Das quais, a primeira é: - se eles não fizessem delas ociosas paráfrases, como observamos ainda haver homens que lêem o Orlando, o Furioso ou Enamorado , ou outro romance em rima, aos círculos vastos e vis de gente ociosa, nos dias das festas 24 e, recitada cada estância, explicam-na eles em prosa com outras palavras; - a segunda, se não forem delas fiéis tradutores; - a terceira e última recomendação, finalmente, é: se não forem delas servis imitadores mas, seguindo os costumes que Homero atribui aos seus heróis, eles fizerem surgir, desses mesmos costumes, outros sentimentos, outros discursos , outras acções conformes a eles, e desse modo, em relação aos mesmos assuntos, serão poetas diferentes de Homero. Assim, na mesma Arte, o mesmo Horácio denomina «poeta cíclico>> um poeta trivial e de feira. 25 Lê-se que esses referidos autores são ordinariamente denominados xÚxÀtOt e Eyxú xÀ.tOt e a sua colectânea foi denominada xÚxÀoç bttxóç, xÚxÀta E1tTJ, 1tOÍ.TJflU
24
Alusão ainda mais clara aos ta. 18 Mi/. gl., II, 2, 32. 19 Vico esquece todos os anti-homeristas e, entre estes, Scaligero. 20 Cfr. os par (•digo que tu me deves dar a tal soma a :itulo de pagamento de um empréstimo•). 16 •Valesse na incerteza daquela que teria sido a deliberação dos conúcios•.
[687]
sabedoria e, por isso, autoridade de conse1ho, a partir da qual os jurisconsultos, durante o governo dos imperadores, foram denominados· «autores». 17 E essa autoridade deve ter sido a dos senados durante o governo dos monarcas, que têm a plena e absoluta liberdade de seguir ou não aquilo que lhes aconselham os senados.
17
Livre interpretação de quanto o jurisconsulto Pompónio, ou alguém por ele, escreve no conhecido fragmento recolhido no Digesto. Cfr. I, 2, 2, 37.
[688]
[SECÇÃO N ONA]
TRÊS ESPÉCIES DE RAZÕES [CAPíTULO PRIMEIRO]
RAZÃO DIVINA E RAZÃO DE ESTADO (947] Houve três espécies das razões. 1 (948] A primeira, divina, que unicamente Deus compreende, e de que os homens sabem tanto quanto o que lhes foi revelado: - primeiro, aos Hebreus e, depois, aos Cristãos, por falas interiores, às mentes, porque são vozes de um Deus todo mente; mas também com falas exteriores, tanto de profetas, como de Jesus Cristo aos apóstolos, e por estes revelados à Igreja; - aos gentios, através dos auspícios, através dos oráculos e outros signos corpóreos que se acreditava serem avisos divinos, porque se acreditava que provinham dos deuses, que esses gentios acreditavam serem compostos por corpo. De modo que, em Deus, que é todo razão, a razão e a autoridade são uma mesma coisa; pelo que, na boa teologia, a autoridade divina tem o mesmo lugar que a razão. Donde, á que admirar a providência que, nos primeiros tempos, em que os homens do gentilismo não compreendiam razões (o que, sobretudo, deve ter acontecido no estado das familias), 2 lhes permitiu que caíssem no erro de tomar, em lugar da razão, a autoridade
1
2
No significado de como a «vítima.>>. 17 Portanto, quedou em todas as nações uma espécie de excomunhão: da qual, sobre os Galos, nos deixou César 18 uma memória bastante desenvolvida; e, entre os Romanos, quedou a interdição da água e do fogo, como acima se reflectiu. 19 Dessas referidas consagrações, muitas passaram para a lei das XII Tábuas: como «consagrado a Júpiter>>quem tinha atentado contra um tribuno da plebe, 20 «consagrado aos deuses pelos pais» o filho ímpio, «consagrado a Ceres» quem tinha posto fogo às searas de outrém, o qual devia ser queimado vivo 21 (veja-se a crueldade 14 Lív1o , XLI, 10; F ESTO, ad vv. mmcupatio, ~1uncupatus, nuncupo. 15
Cfr. MAc R.ÓBIO, Saturn., III, 9. No parágrafo 101. 17 Cfr. o parágrafo 776. 18 B. C. , VI, 13. 19 No parágrafo 610. 20 N ão refundida no código decenviral, teria sido, em vez disso, segundo o relato tradicional, publicada depois da queda dos decênviros (Lív10, III, 55). 21 Vico funde e confunde a disposição decenviral prescrita ao ladrão nocturno de searas, a consagração a Ceres e a morte per m spensionem 16
[701]
de penas divinas, semelhante à imanidade, que tínhamos referido nas Dignidades, 22 das mais ímanes bruxas!) , que devem ter sido aquelas denominadas acima por Plauto «Saturni hostiae»Y (958] Com estes juízos praticados privadamente, começaram os povo&a fazer as guerras que se denominaram «pura et pia bella»; 24 e eram feitas «pro aris et Jocis>},25 pelas coisas civis tanto públicas como privadas, porque todas as coisas humanas eram observadas sob o aspecto de divinas. Pelo que todas as guerras heróicas eram religiosas, porque os arautos, ao declará-las, chamavam os deuses ao exterior das cidades às quais as levavam, e consagravam os inimigos aos deuses.26 Pelo que os reis vencidos eram apresentados pelos Romanos a Júpiter Ferétrio, no Capitólio e, depois, eram mortos, 27 segundo o exemplo dos ímpios violentos, que tinham sido as primeiras hóstias, 28 as primeiras vítimas, que Vesta tinha consagrado sobre as primeiras aras do mundo; e os povos submetidos eram considerados h mens sem deuses, 29 segundo o exemplo dos primeiros fàmulos: pelo que os escravos, como coisas inanimadas, foram denominados em língua romana «mancipia»30 e foram considerados pela jurisprudência romana «loco rerum>}.
(PLíNIO, Nat. hist. , XVIII, 3) com outra disposição condenando à fogu eira o incendiário das searas de outrém (GAJO, in Dig., XLVIII, 9, 9) . 22 Cfr. o parágrafo 190. 23 •Para os altares e para as lareiras>, isto é, para a religião e para a família. 2 ' Cfr. os parágrafos 191 e 517. 25 Cfr. o parágrafo 562. 26 Cfr. o parágrafo 550. v Inexacto: cfr. L íVIO, I, 10; rv, 20. 28 Cfr. os parágrafos 549 e 776. 29 Cfr. o parágrafo 1050. 30 Cfr. o parágrafo 433.
[702]
[CAPÍTULO SEGUNDO]
COROLÁRIO: SOBRE OS DUELOS E SOBRE AS REPRESÁLIAS [959] De modo que, na barbárie das nações, os duelos foram uma espécie de juízos divinos, que devem ter nascido sob o governo antiquíssimo dos deuses e decorrido durante muito tempo dentro das repúblicas heróicas. Das quais referimos, nas Dignidades, 1 aquele trecho de ouro de Aristóteles, nos Livros poltticos, onde diz que não possuíam leis judiciárias para punir as culpas e emendar as violências particulares: o que até agora não se acreditou, com base na falsa opinião até agora sustentada pela soberba dos doutos acerca do heroísmo filosófico 2 dos primeiros povos, que era consequência da sabedoria inatingível dos antigos. 3 [960] Por certo, entre os Romanos , foram introduzidos tardiamente, e pelo pretor, tanto o interdito Unde vi, como as acções De vi bonorum raptorum e Quod metus caussa, como noutra ocasião se disse. 4 E, pelo recurso da última barbárie, as represálias privadas duraram até aos tempos de Bártolo, 5 que
1
Cfi:. o parágrafo 269. Cfi:. o parágrafo 666. 3 Cfi:. o parágrafo 128. 4 Cfi:. o parágrafo 638. 5 Isto é, pelo menos até que, em 1354, o jurista B ARTOLO D t SASSOFERRATO compôs o seu Tractatus de rappresaliis. Mas a asserção não é exacta. 2
[703)
devem ter sido «condições», ou «acções pessoais» impostas pelos antigos Romanos, porq e «condicere», segundo Festo, 6 quer dizer «avisar>> (de modo q e o pai de família devia avisar aquele que lhe tinha tirado injustamente aquilo que era seu de que o devia restituir, para depois usar a represália) ; pelo que esse aviso quedou como solenidade das acções pessoais: o que foi argu:amente compreendido por Uldarico Zase. 7 [961) Mas os duelos continham juízos reais que, porquanto se faziam in re praesenti, não tinham necessidade da denúncia; donde quedaram as «vindiciae», as quais as coisas eram retiradas ao possuidor ilegítimo com uma força fingida, que Aulo Gélio 8 denomina Se modo, resolver cada coisa arravés do duelo». 14 Antigos cavaleiros alemães. Do alemão «R eiter» ou «R euter» («homem a cavalo», ou •cavaleiro>>). 15 Cfr. o parágrafo 296. 16 Cfr. os parágrafos 269-270. 12
[705]
pouco, a respeito da romana antiga); 17 e, por isso, também nos disse Aristóteles, nas Dignidades, que esse costume era próprio dos povos bárbaros, 18 porque, como ali advertimos, nos seus inícios, os povos são bárbaros, .precisamente porque não estão ainda domesticados pelas leis. [963] Mas, desses duelos, existem dois grandes vestígios um, na história grega, um outro na romana - de que os povos devem ter começado as guerras (que foram denominadas pelos antigos Latinos «duella») 19 a partir dos combates entre esses particulares ofendidos, muito embora fossem reis, e sendo ambos os povo espectadores, que queriam defender ou vingar publicamente as ofensas. Como, certamente, a guerra de Tróia começa assim, com o combate entre Menelau e Páris (este a quem havia sido raptada a mulher, Helena, aquele o que a detinha), o qual, tendo quedado indeciso, continuou depois a travar-se na guerra entre Gregos e Troianos; e nós advertimos, acima, 20 acerca do mesmo costume das nações latinas na guerra entre Romanos e Albanos, que e concluiu definitivamente com o combate entre os três Horácios e os três Curiácios (um dos quais deve ter raptado a Horácia). Nestes referidos juízos armados, o direito era avaliado pela fortuna da vitória: o que foi conselho da providência divina, a fim de que, entre gente bárbara e de curtíssimo raciocínio, que nada entendia de direito, de guerras não se semeassem guerras e, assim, adquirissem a ideia de justiça ou injustiça dos homens com o terem eles os deuses propícios, ou então, contrários: tal como os gentios escarneciam o santo Job por ter perdido a
17 18 19 20
Cfr. o parágrafo 960. Cfr. novamente os parágrafos 269-270. Cfr. GRóoo, op. cit., I, 1, 2, 4 n. No parágrafo 641.
[706]
sua fortuna real, porquanto teria tido Deus contra ele.2 1 E, por isso, nos tempos bárbaros regressados, à parte vencida, mesmo que justa, se cortava barbaramente a mão direita. [964] Deste referido costume, celebrado pelos povos privadamente, brotou a justiça exter a, como dizem os teólogos morais, das guerras, 22 com que as nações repousassem na certeza dos seus impérios. Assim, aqueles a spícios que, no estado das famílias, fundaram para os pais os impérios paternos monárquicos, e lhes dispuseram e conservaram os reinos aristocráticos nas cidades heróicas e, tendo-lhes sido transmitidos, para as plebes dos povos produziram as repúblicas livres (tal como nos é abertamente contado pela história romana), finalmente, legitimam as conquistas, com a fortuna das armas, aos felizes conquistadores. Tudo isto não pode provir de outra coisa senão do conceito inato da providência que universalmente possuem as nações, à qual se devem conformar, quando vêem afligir-se os justos e prosperar os celerados, como na Ideia da obra, noutra ocasião, se disse.23
21 22
23
R eferência inexacta ao Livro de Job, II, 11 ; IV, 7-9; V, 8. Cfr. o parágrafo 350. Cfr. o parágrafo 27 .
[707]
[CAPÍTULO TERCElRO)
[SEGUNDA ESPÉCIE: JUÍZOS ORDINÁRIOS] [965] Os segundos juízos, pela recente origem dos juízos divinos, foram todos ordinários, observados com um supremo escrúpulo de palavras, que, a partir dos juízos divinos 1 que tinham existido anteriormente, deve ter ficado denominado «religio verborum)); conforme as coisas divinas são universalmente concebidas com fórmulas consagradas, de que não se pode alterar a mínima letrinha; pelo que, acerca das antigas fórmulas das acções, era dito: «qui cadit virgula, caussa cadit>>. 2 Que é o direito natural das gentes heróicas, 3 observado naturalmente pela jurisprudência romana antiga, e foi o ifari)) do pretor, que era um falar inalterável, a partir do qual foram denominados «dies fastú> os dias nos quais o pretor praticava a justiça.4 A qual, porque apenas os heróis dela participavam, nas aristocracias heróicas, deve ser o ifas deorum)) dos tempos em que, como explicámos acima, os heróis tinham tomado para si o nome de «deuses)), 5 donde foi depois denominada «Fatum )) 6 a
1
Cfr. o parágrafo 953. M ais exactamente: «cadere fo rmulum , cadere causam»: isto é, se por qualquer razão a fórmula da acção é reconhecida como nula, perde-se o processo». 3 Cfr. o parágrafo 953. 4 Cfr. VARRÃo, D e língua lat., VI, 29 e 30. 5 Cfr. o parágrafo 449. 6 S ANTO A GOSTINHO , De civ. D ei, V, 9. 2
[709]
ordem inelutável das causas que produzem as coisas da natureza, porque esse seria o falar de Deus: pelo que, provavelmente, vem a ser denominado pelos Italianos «ordinareJ>, e especialmente em discurso de leis, por «dar ordens que se devem necessariamente cumprir». [966] Por essa ordem (que, em discurso judicial, significa «fórmula solene de acção») / que tinha ditado a pena vil e cruel contra o ínclito réu Horácio, os diúnviros não podiam por si mesmos absolvê-lo, muito embora fosse comprovado inocente, e o povo, a quem apelou, o tivesse absolvido, como Lívio conta, «magis admiratione virtutis quam iure caussae». 8 E essa ordem de juízos foi necessária, nos tempos de Aquiles, que depositava wda a razão na força, 9 devido àquela propriedade dos poderosos que Plauto descreve 10 com a sua graça habitual: «pacturn non pactum, non pactum pactum», quando as promessas não estão em conformidade com as suas orgulhosas pretensões, ou eles não têm a intenção de cumprir as promessas. Assim, para que não irrompessem em pleitos, rixas e assassinatos, foi conselho da providência que tivessem naturalmente essa opinião sobre o justo, que tanto e tal fosse o seu direito quanto e qual fosse explicado através de solenes fórmulas de palavras; 11 pelo que, a reputação da jurisprudência romana e dos nossos antigos doutores foi a de defender os clientes. Direito natural das gentes heróicas esse que forneceu os argu-
7
Em vez disso, no dito processo formular romano, introduzido em Roma na segunda metade do segundo século a. C., a frase «ardo iudiciorum• indicava ambas as fases do processo, • i~1 iure» e •in iudicio>> , perante o pretor e perante o tribu:1al julgador. 8 Cfr. o pal>. Mas não pela razão aqui aduzida. Cfr. o parágrafo 191. Entre 55 e 44 a. C . S uETÓN IO, Octav. , 33.
[712]
ou foram miseravelmente oprimidas ou , serenamente, desprezaram a ira dos vencedores. [971] Miseravelmente oprimidos foram os Cartagineses, que tinham acolhido a paz do Romano, com base na lei de que lhes seriam salvas as vidas, as cidades e os haveres, entendendo aqueles por «cidades» os «edificios», que os Latinos denominam «urbs>>. Mas, porque tinha sido usada pelos Romanos a palavra «civitas», que significa «conjunto de cidadãos», quando, depois , em execução da lei, tendo sido obrigados a abandonar a cidade situada à beira-mar e a retirar-se para o interior, eles se recusaram a obedecer e, de novo, se armaram para se defenderem, foram declarados rebeldes pelo Romano e, por direito heróico de guerra, tomada Cartago, foi barbaramente incendiada.23 Os Cartagineses não se apaziguaram com a lei da paz que lhes fora outorgada pelos Romanos, e que eles não tinham compreendido ao pactuá-la, porque antes do tempo se tinham tornado inteligentes, tanto pela perspicácia africana, como pelos comércios marítimos, pelos quais se tornam mais sagazes as nações. Nem por isso os Romanos tomaram aquela guerra por injusta; porquanto, por muito que alguns considerem que os Romanos começaram a fazer guerras injustas a partir daquela de Numância, que foi concluída por Cipião Africano, todos concordam, porém, que lhes deram início com aquela de Corinto, que fizeram mais tarde. 24 [972] Mas, a partir dos tempos bárbaros regressados, confirma-se melhor o nosso propósito. Tendo o imperador Conrado III outorgado a lei da rendição a Weinsberg, que tinha apoiado o seu competidor pelo império, concedendo que dela saíssem a salvo somente as mulheres com quanto elas
23
APl ANO,
D e rebus puníeis, 76, referido inexactam ente; e cfr. G R ÓCIO ,
II , 16, 5. 24 C fr. o parágrafo 274.
[713]
conseguissem carregar às costas para fora da cidade, então, as piedosas mulheres weinbergenses carregaram os seus filhos, maridos e pais; e, estando o imperador vitorioso às portas da cidade, no momento de fazer uso da vitória (que, por natureza, geralmente impele à insolência) , não escutou já nenhuma cólera (que é espantosa nos grandes e deve ser muito funesta sempre que nasça do impedimento que se lhes faça de alcançarem ou de conservarem a sua soberania), colocado à cabeça do exército, qu estava preparado, com as espadas desembainhadas e as lanças em riste para massacrar os homens weinbergenses, ao ver isso, permitiu que passassem a salvo, diante de todos, todos aqueles que havia querido passar a fio de espada. 25 Tanto o direito natural da razão humana explicado por Grócio, por Selden e p r Pufendorf transcorreu naturalmente, ao longo de todos os tempos, em todas as nações! 26 [973] Aquilo que até agora se reflectiu, e tudo aquilo que será reflectido em seguida, nasce daquela definição que nós acima propusemos, entre as Dignidades, acerca do verdadeiro e do certo das leis e dos pactos; 27 e que, nos tempos bárbaros, é assim tão natural a razão estrita observada nas palavras, que é propriamente o ifas gentium», como, nos tempos humanos, o é a razão be::Ugna, considerada por essa igual utilidade das causas, que deve denominar-se propriamente > .6
E é a última seita dos tempos da jurisprudência romana, começando a partir do tempo da liberdade popular. Pelo que, primeiramente, os pretores, para adaptar as leis à natureza, aos costumes, ao governo romano, já entretanto mudados, devem ter abrandado a severidade e atenuado a rigidez da lei das XII Tábuas, ordenada, quando era natural, nos tempos heróicos de Roma; e, depois, os imperadores devem tê-la desnudado de todos os véus, com que a tinham coberto os pretores, e feito comparecer a equidade natural, toda aberta e generosa, como convém à gentileza a que as nações se tinham acostumado. 7 [979) Por isso, os jurisconsultos8 justificam com a «seita dos seus tempos» (como podem ser observados) aquilo que reflectem acerca do justo: porque estas são as seitas próprias da jurisprudência romana, nas quais coincidiram os Romanos com todas as outras nações do mundo, e que lhes tinha ensinado a prmcdência divina, que os jurisconsultos romanos estabeleceram por princípio do direito natural das gentes; 9
6
Cfr., entre o tros, C ELSO, in Dig., I, 3, 24. Interprete-se: a terceira e última orientação social seguida pela humanidade, coincide com aquilo em que se inspirou a jurisprudência romana, isto é, com a equidade natural, que, entrevista desde os tempos em que Roma, de república aristocrática, se transformou em república democrática (parágrafos 112-113), por obra dos jurisconsultos, dos pretores e, por último, dos imperadores, se veio substituindo, pouco a pouco, ao rígido ius âvile (parágrafo 952) . 8 Não eles, mas os imperadores. 9 Interprete-se: estes (as três orientações, ou três «seitas dos tempos») são os três princípios sucessivamente predominantes na jurisprudência romana, nos quais, ao inspirarem-se, os Romanos em nada diferiram das outras nações, porque foram ensinados a todas pela Providência, ou seja, a própria lógica das coisas. 7
[718]
não Ja as seitas dos filósofos , que introduziram forçadamente alguns intérpretes eruditos do direito romano, como acima se disse, nas Dignidades .10 E esses imperadores, quando querem dispôr em direito as leis ou outros ordenamentos por eles ditados, dizem terem sido induzidos a fazer isso pela «seita dos seus tempos», 11 como o recolhe em vários trechos Bernabé Brisson, 12 em De formulis romano rum: 13 porquanto a escola dos príncipes são os costumes do século, tal como Tácito 14 chama à seita degradada dos seus tempos, quando diz «corrumpere et corrumpi seculum vocatur» , 15 que agora se denominaria «moda». 16
° Cfr., sobretudo, nos
1
Prinápios, o parágrafo 335. Verdadeiramente, dizem uma coisa bastante diferente. Ainda assim, cfr. , entre outros, G IO RDANO , in Cod. Iust. , X, 11 , 1. 12 O francês Bernabé Brisson (1531- 1591). 13 D e fo rmulis et solemnibus populi romani Urbis, edição C onrad (Halle e Leipzig, 1731), livro III, capítulo 18. 14 Germ., 18. 15 «Corromper e ser corrompido é chamado costume>>. 16 M ais exactamente, «USO», «costume». 11
[719)
[SECÇÃO DÉCIMA SEGUNDA]
OUTRAS PROVAS RETIRADAS DAS PROPRIEDADES DAS ARISTOCRACIAS HERÓICAS [INTRODUÇÃO) [980] Uma tal constante, perpétua e ordenada sucessão de coisas humanas civis, dentro da forte cadeia de tantas e tão variadas causas e efeitos que se observaram no curso que fazem as nações, deve compelir as nossas mentes a acolher a verdade destes princípios. Mas, para não deixar qualquer lugar a dúvidas, acrescentamos a explicação de outros fenómenos civis, os quais não podem ser explicados senão com a descoberta, a qual se fez acima, das repúblicas heróicas.1
Isto é, da índole rigidamente aristocrática dos Estados, no período heróico (parágrafos 581 e seguintes). 1
(721)
[CAPíTULO PRIMEIRO]
[DA CUSTÓDIA DAS FRONTEIRAS] [981] Pelo que as duas eternas propriedades máximas das repúblicas aristocráticas são as duas custódias, como acima se disse, uma das fronteiras , a outra das ordens. 1 [982] A custódia das fronteiras começou a observar-se, como se viu acima, 2 com religiões sanguinárias, durante os governos divinos, porque se tinha que pôr limites aos campos, que os protegessem da infame comunhão das coisas do estado bestiaV com base em tais limites havia que fixar as fronteiras , primeiro, das famílias, depois, das gentes ou casas, em seguida, dos povos e, por fim, das nações. Pelo que os gigantes estavam, como Polifemo diz a Ulisses, cada um com as suas mulheres e filhos dentro das suas grutas, e não se importavam nada com as coisas uns dos outros, 4 conservando nisto o vício da sua imane origem recente, e matavam ferozmente aqueles que entrassem dentro das fronteiras de cada um, como Polifemo queria fazer a Ulisses e aos seus companheiros (gigante no qual, como por várias vezes se disse, 5 Platão reconhece os pais no estado das famílias); donde demonstrámos, acima, 6 ter
1 2 3 4
5 6
Cfr. o parágrafo 586. Cfr. os parágrafos 517, 776, 925. Cfr. o parágrafo 369. Cfr. o parágrafo 516. Cfr. o parágrafo 296. Nos parágrafos 637 e seg.
[723]
derivado, depois, o costume de, durante bastante tempo, as cidades se terem visto como eternas inimigas entre si. Tanto é suave a divisão dos campos que relata o jurisconsulto Hermogeniano, e com tão boa fe foi recebida por todos os intérpretes do direito romano! 7 E deste primeiro e antiquíssimo princípio de coisas humanas, donde começou a matéria, seria razoável começar também a doutrina que ensina D e rerum divisione et acquirendo earum dominio. 8 Esta custódia das fronteiras é naturalmente observada nas repúblicas aristocráticas, que, como advertem os políticos, não são feitas para as conquistas. Mas, depois que, dissipada de facto a infame comunhão das coisas, foram bem fixadas as fronteiras dos povos, vieram as repúblicas populares, que são feitas para dilatar os impérios e, finalmente, as monarquias, que para isso valem muito mais. [983] Esta, e não outra, deve ser a causa pela qual a lei das XII Tábuas não conheceu propriedades nuas; 9 e a usucapião, nos tempos heróicos, servia para solenizar as tradições naturais, 10 como os melhores intérpretes lêem na sua definição, ao dizer «dominii adiectio1>, 11 adição do domínio civil ao dorrúnio natural anteriormente adquirido. Mas, depois, nos tempos da liberdade popular, vieram os pretores e protegeram as propriedades nuas com os interditos, e a usucapião começou a ser «dominii adeptio», 12 modo de adquirir desde princípio o domínio civil; e enquanto, antes, as propriedades não compareciam, de forma
7
Cfr. o parágrafo 550. Polémica apontada contra GRóCIO, II, 3-8; e contra PuFENDORF, rv; 4 e seg. 9 Cfr. o parágrafo 638. 10 Outra po:émica apontada contra GRó 10, II , 4, 12 e contra PUFEND RF, IV; 12. 11 Tal como tinha sido definida por MoDESTINO (Díg., XLI, 3, 3) . 12 ULPIANO, Fragm ., XIX, 8. 8
[724]
nenhuma, a juizo, porque o pretor as conhecia extrajudicialmente, 13 por aquilo que acima se disse, hoje, os juízos mais acertados são aqueles que se denominam «possessoríí». (984] Portanto, na liberdade popular de Roma, em grande parte, e completamente, sob a monarquia, cai aquela distinção entre os domínios bonitário, quiritário, óptimo e, finalmente, civil, 14 os quais, nas suas origens, tinham significados bastante diferentes dos significados presentes: - o primeiro, de domínio natural, que se conservava com a perpétua propriedade corporal; - o segundo, de domínio que podia ser reivindicado, que corria entre os plebeus, a eles transmitido pelos nobres com a lei das XII Tábuas, mas que deviam reivindicar aos plebeus esses nobres, exalçados como autores, dos quais os plebeus recebiam a origem do domínio, como plenamente foi acima demonstrado; - o terceiro, de domínio livre de qualquer encargo, não apenas público mas também privado, que celebravam entre si os patrícios, antes de ser ordenado o censo que foi a base da liberdade popular, como acima foi dito; - o quarto e último, de domínio que possuíam essas cidades, que agora se denomina «eminente». 15 De sas diferenças, aquela entre óptimo e quiritário tinha sido já obscurecida, desde esses tempos da liberdade, tanto que os jurisconsultos da última jurisprudência não tiveram sobre ela qualquer pleito. Mas, sob a monarquia, aquele que se denomina «domínio bonitário» (nascido da nua tradição natural) e o denominado «domínio
13 No sentido de que a sua concessão de um qualquer interdito tutelador da posse era já um acto processual, mas administrativo e de imperium . 14 Verdadeiramente, a distinção entre o • dominium ex iure quiritilltn» e o •in bonis habere> surgiu em Roma precisamente nos últimos tempos da república, qual atenuação do rígido ius civile, que não conhecia formas de domínio diferentes daquele quiritário. 15 Cfr., sobre tudo isto, os parágrafos 109, 619 e seg., 266.
[725]
qumtano» (nascido da mancipação, ou tradição civil) foram completamente confundidos por Justiniano com as constituições De nudo iure quiritium tollendo e De usucapione transJormanda, 16 e a famosa diferença entre coisas mancipi e nec mancipi foi completamente eliminada; e quedaram «domínio civil», no significado de domínio válido para produzir reivindicações, e «donúnio óptimo», no significado de domínio não sujeito a qual _uer encargo privado. 17
16
Cfr. Cod. lust., VII, 25, 1 e VII, 31, 1. Na terminologia jurídica quedou somente a expressão «dominium civileo , não a outr.a • dominium optimum•. 17
(726]
[CAPÍTULO SEGUNDO]
DA CUSTÓDIA DAS ORDENS 1 [985] A custódia das ordens começou a partir dos tempos divinos com os ciúmes (pelo que vimos acima ser ciumenta Juno, 2 deusa dos matrimónios solenes) , a fim de que daí proviesse a certeza das famílias, contra a nefasta comunhão das mulheres. Essa custódia é propriedade natural das repúblicas aristocráticas, que pretendem que os parentescos, as sucessões e, portanto, as riquezas, e por meio destas, o poder, permaneçam dentro das ordens dos nobres; pelo que as leis testamentárias chegaram tarde às nações 3 (tal como Tácito conta 4 que, entre os antigos Germanos, não existia qualquer testamento): eis o porquê de, querendo introduzi-las o rei Ágis em Esparta, ter sido feito estrangular pelos éforos, guardiões da liberdade senhorial dos Lacedemónios, como noutra vez foi dito. 5 Assim, compreenda-se com quanta sagacidade os comentadores das leis das XII Tábuas fixam , na décima-primeira tábua, o capítulo «Auspicia incommunicata plebi sunto», 6 donde, primeiramente, dependeram todos os direitos civis tanto públicos como pri-
1 O que é o mesmo que dizer: «defesa do regime aristocrático•, ou seja, relutância de conceder aos não nobres os direitos civis e políticos. Cfr. o parágrafo 586. 2 Cfr. os parágrafos 511 e 513. 3 Cfr. o parágrafo 992. ' Germ. , 20. 5 No parágrafo 592. 6 Cfr. o parágrafo 653.
[727]
vados / que se conservam todos dentro das ordens dos nobres; e os privados foram as núpcias, poder paterno, existência jurídica, agnações, gentilidade, sucessões legítimas, testamentos e tutelas, como foi acima reflectido;8 - de modo que, depois de, nas primeiras tábuas, ao transmitirem todos esses direitos à plebe, terem estabelecido as leis próprias de uma república popular, particularmente com a lei testamentária,9 logo na tábua décima-primeira, num só parágrafo, a fazem totalmente aristocrática. 10 Mas, nessa tamanha confusão de coisas, dizem 11 também, ainda que adivinhando, esta verdade: que, nas duas últimas tábuas, passaram a lei alguns costumes antigos desses Romanos; afirmação essa que assevera que o Estado romano antigo foi aristocrático. [986) Agora, regressando ao nosso propósito, depois de se ter fixado por todo o lado o género humano com a solenidade dos matrimónios, surgiram as repúblicas populares e, muito mais tarde, as monarquias; nas quais, por meio dos parentescos com as plebes dos povos e das sucessões testamentárias, houve perturbações nas ordens da nobreza e, deste modo, pouco a pouco, foram saindo as riquezas das casas nobres. 12 Porque foi acima plenamente demonstrado que os plebeus romanos, até ao ano trezentos e nove de Roma, 13 quando finalmente lhes
7
Isto é, os direitos políticos e os civis. Nos parágrafos 110 e 598. 9 Referênci a à disposição • Uti pater legassi», etc., sobre a qual se deverá ver, por exemplo, o parágrafo 513. 10 Ao reservarem os auspícios e tudo o que deles dependia apenas aos patrícios, vêm reafirmar que, ainda no tempo da lei das XII Tábuas, a república romana era rigidamente aristocrática. 11 Mas não o dizem apenas esses: tinha-o dito inexactamente o próprio Vico, na Seconda risposta ai «Giornale de' letterati". 12 Cfr. o parágrafo 619. 13 Isto é, o ano 445 a. C. Cfr. o parágrafo 598. 8
[728)
foram transrrútidos pelos patncws os conúbios, ou seja, o direito de contraírem núpcias solenes, contraíram matrimónios naturais; nem, naquele estado tão rrúserável quase de vilissimos escravos, como a história romana no-los refere, podiam pretender aparentar-se com esses nobres. O que é uma das coisas mais importantes, pelo que, na primeira edição desta obra, 14 dizíamos que, se não se conferem estes princípios à jurisprudência romana, a história romana é mais incrível do que a história fabulosa dos Gregos, tal como até agora ela nos tem sido contada. Porque, desta, não sabemos o que se tenha querido dizer; mas, da romana, sentimos na nossa natureza ser isto completamente contrário à ordem dos desejos humanos : que homens rrúserabilíssimos pretendesse~ primeiro, a nobreza, na contenda dos conúbios; depois, honras, com aquela de que lhes teria transrrútido o consulado; finalmente, riquezas, com a última pretensão que fizeram, dos sacerdócios; 15 quando, por eterna natureza civil comum, os homens, primeiro, desejam riquezas, depois destas, honras e, por último, nobreza. 16 [987] Pelo que se deve necessariamente dizer que, tendo os plebeus alcançado dos nobres o domínio seguro dos campos com a lei das XII Tábuas (que nós demonstrámos, acima, 17 ter sido a segunda lei agrária do mundo) , e sendo ainda estrangeiros (porque tal domínio só podia ser concedido aos estrangeiros), foram-se dando conta, com a experiência, de que não podiam deixá-los ab íntestato aos seus cônjugues, porque, não contraindo
14
Scienza Nuova prima, II , 45, parágrafo 185. R esumo errado do trecho citado da Scienza Nuova prima, onde tinha sido dito, em vez disso, ser impossível que os plebeus romanos desejassem primeiro a nobreza, depois cargos e honras, e apenas, por último, no tempo dos Gracos, riquezas. 16 Cfr. MAQUIAVEL , Discorsi, I, 37. 17 Cfr. o parágrafo 638 . 15
[729]
núpcias solenes entre si, não possuíam existência jurídica, agnação, gentilidade; muito menos por testamento, não sendo cidadãos. Nem tal é extraordinário, posto que eram homens de nenhuma ou pouquíssima inteligência, como o comprovam as leis Fúria, Vocónia e Falcídia, 18 que foram plebiscitos todas as três; e toda5 elas foram necessárias para que, com a lei Falcídia, se fixasse finalmente a desejada utilidade de que as heranças não fossem absorvidas pelos legados. Por isso, com as mortes desses plebeus, que tinham acontecido em três anos, 19 dando-se conta de que, por essa via, os campos que lhes tinham sido destinados regressavam aos nobres, pretenderam com os conúbios a cidadania, como acima se reflectiu. 20 Mas os gramáticos, 21 confundidos por todos os políticos,22 que imaginaram ter sido Roma fundada por Rómulo com base no estado em que agora se encontram as cidades, não souberam que, durante vários séculos, as plebes das cidades heróicas foram tidas como estrangeiras23 e, portanto, contraíram rnatri-
18 A primeira das três leis que consideravam o direito testamentário, a /ex Furia, foi proposta, depois de 200 a. C., pelo tribuno Caio Fúria, e proibia que se recebesse mais de mil asses a título de legado; a segunda, a /ex Voeonia, apresentada pelo tribuno Quinto Voconio Saxa, em 169, impedia às mulheres, entre outras coisas, de receberem a título idêntico mais do que o herdeiro; a terccira, a /ex Falcidia, votacb em 40, sob proposta do tribuno Caio Falddio, dispunha que ao herdeiro fosse assegurado, pelo menos, a quarta parte do património herdado e que os legados excedentes «dodrans hereditatis» (nove décimos do património hereditário) fossem proporcionalmente « reduzidos~. 19 Aqueles que teriam existido entre a lei das XII Tábuas e a rogação Canuleia. 20 Veja-se sempre o parágrafo 598. 21 Os filólogos. 22 Os historiadores. 23 Que é uma das maiores •descobertas• de Vico, tornada só hoje communis opinio.
[730]
mónios naturais entre si; e, por isso, não advertiram que, embora, de facto, inconveniente, tanto mais nas palavras quanto menos latina, era urna expressão histórica aquela: que «plebei tentarunt connubia patrum», que teria querido dizer «cum patribus» (porque as leis conubiais dizem assim, por exemplo: «patruus non habet cum fratris filia connubium»), 24 como acima se disse. Pois, se isto tivessem advertido, teriam certamente compreendido que os plebeus não pretenderam ter o direito de se aparentar com os nobres, mas o de contrair núpcias solenes, direito esse que pertencia aos nobres. [988] Assim, se se consideram as sucessões legítimas, ou seja, as ordenadas pela lei das XII Tábuas - que ao pai de família defunto lhe sucedessem, em primeiro lugar, os seus/ 5 na sua falta, os agnados e, na ausência destes, os nobres -, a lei das XII Tábuas parece ter sido precisamente uma lei sálica dos Romanos; a qual, nos seus primeiros tempos, se observou também na Germânia 26 (pelo que se pode conjecturar o mesmo para as outras nações da barbárie regressada) e, finalmente, se conservou em França e, fora de França, na Sabóia.27 Direito de sucessões esse que Baldo, bastante convenientemente para o nosso propósito, denomina «ius gentium gallorum»: 28 dessa mesma maneira, a tal direito romano de sucessões agnatícias e gentilícias se pode chamar, com razão, «ius gentium romanorum», acrescentando-lhe a palavra «heroicarum» e, para dizê-lo com maior propriedade, «romanum»; que seria precisamente o «ius
24
N a realidade, as Istituz ioni giustir1ianee, I, 10, 3, escrevem: • Fratis vel sororis filiam uxorem ducere rwn licet». No entanto, permanece o facto que, em direito romano, estavam proibidas as núpcias entre tio e sobrinha. 25 Os sui heredes. 26 Assim se pensava geralmente nos tempos de Vico. 27 Cfr. B ODIN, op. cit., 5 (texto francês, p. 1012; texto latino, p. 1166) . 28 Cfr. o parágrafo 657.
[731]
quiritium romanarum», que nós aqui acima provámos ter sido o direito natural comum a toda as gentes heróicas. 29 [989] Nem isto de alguma forma perturba, embora pareça, as coisas por nós aqui ditas acerca da lei sálica, na medida em que exclui as mulheres da sucessão dos reinos: que Tanaquila, uma mulher, governou o reino romano. 30 Porque isto foi dito com expressão heróica, pois ele foi um rei de ânimo débil, 31 que se deixou controlar pelo astuto Sérvio Túlio, que invadiu o reino romano com o favor da plebe, à qual tinha levado a primeira lei agrária, como acima foi demonstrado. De forma idêntica a Tana uila, pela mesma maneira de falar heróica, que voltou nos tempos bárbaros regressados, foi o papa João 32 chamado mulher (fãbula contra a qual Leone Allaci escreveu um livro inteiro33 ), porque mostrou a grande debilidade de ceder a Fócio, patriarca de Constantinopla, como bem assinala Barónio34 e, depois dele, Sponde. 35 [990] Resolvida, portanto, esta referida dificuldade, digamos que, da mesma maneira que primeiro se havia dito «ius quiritium romanorum», no significado de «ius natura/e gentium heroicarum romanorum», 36 assim também, sob o governo dos imperadores, 29
Cfr. o parágrafo 990.
30
A historiografia tradicional não diz isto, mas apenas que ela exortou
Sérvio Túlio a uscrpar o trono. Cfr. Lfvto, I, 41. 31 Cfr. o parágrafo 78. 32 O sétimo ou oitavo, segundo as várias versões da fantasiosa lenda. 33 La Confutat:o fabu lae Ioha~mae papissae, reeditada, nos tempos de Vico, no volume IX, pp. 779-816, de Amoenitates litterariae (frankfurt e Leipzig, 1728). 34 Amwles ea:lesiastici, a. 879, §§ 57 e seg. (reedição de Lucca, 1738 e seg. XV, 343 e seg.). 35 O francês Henry de Sponde (1568-1643), a partir de 1626 bispo de Poitiers. Cfr. os seus Annales ea:lesiastici &ronii Ítl epitomem redacti, reedição de lion, 1688, II, ó26. 36 Cfr. os parágrafos 988 e 965.
[732]
quando Ulpiano o define, com graves palavras diz «ius naturale gentium humanarum», 37 que ocorre nas repúblicas livres e, muito mais, nas monarquias. E, por tudo isto, o título das Instituta38 parece dever ler-se: De iure naturali gentium civili, não apenas, com Hermann Vulteio, retirando a vírgula entre as palavras «naturali» e ), mas também a partícula «et>> antes da palavra «civili». 39 Porque os Romanos devem ter atendido ao seu próprio direito, tal como, introduzido desde a idade de Saturno, o tinham conservado, primeiro, com os costumes e, depois, com as leis, tal como Varrão, na grande obra R erum divinarum et humanarum, tratou as coisas romanas de acordo com origens todas elas nativas, nada lhes misturando de estrangeiras. [991] Ora, regressando às sucessões heróicas romanas,40 temos bastantes e muito fortes motivos para duvidar se, nos tempos romanos antigos, a todas as mulheres sucederiam as filhas; 4 1 porque não temos nenhum motivo para acreditar que os pais heróis tivessem sentido qualquer ternura por elas; em vez disso, temos muitos e bem grandes totalmente contrários. Porquanto a lei das XII Tábuas chamava um agnado, mesmo em sétimo grau, 42 para excluir um filho, que se encontrava
37
Cfr. o parágrafo 569. I, 2. 39 M as Vulteio, na ln Institutiones huis civilis a Justiniano compositas commentarius, reeditada em Marburgo, 1631, p. 11 , longe de suprimir a vírgula, escreve, também ele, conforme as Institutiones, D e iure natura/i, gentium 38
et civili.
Àquelas legitimas, codificadas pela lei das XII Tábuas. Antecipação, muito embora de forma excessiva, das fortes dúvidas dos estudos modernos, se no antigo direito sucessório romano os dois sexos estariam equiparados também no facto. 42 Sem qualquer limitação de grau. 4()
41
[733]
emancipado, da ucessão do seu pai. 43 Porque os pais de familia possuíam um direito soberano de vida e de morte e, portanto, um domínio despótico sobre as aquisições desses filhos: eles contraíam os parentescos pelos próprios filhos, para fazer entrar nas suas casas mulheres dignas delas (história essa que nos é contada por esse verbo «spondere», que é, propriamente, «prometer por outro», 44 donde provém «sponsalia»45 ); consideravam as adopções tanto quanto as próprias núpcias, para que reforçassem as farrúlias decadentes, ao elegerem educandos estranhos46 que fossem aptos para procriar; consideravam a emancipação no âmbito do castigo e da pena; não compreendiam legitimações,47 porque os concubinatos 48 não existiam senão com libertas e estrangeiras, com as quais, nos tempos heróicos, não se contraíam matrimónios solenes,49 com que os filhos degenerariam da nobreza dos seus avoengos; os seus testamentos, por qualquer razão frívola, ou eram nulos, ou eram anulados, ou se rompiam, ou não conseguiam o seu efeito, a fim de que se prolongassem as sucessões legítimas. Tanto foram naturalmente cieslumbrados pela clareza dos seus nomes privados, donde foram por natureza inflamados pela glória do comum nome romano! Todos costumes próprios de repúblicas aristocráticas, como foram as repúblicas heróicas, as quais são todas propriedades condizentes com o heroísmo dos primeiros povos.5°
43
Cfr. J usTIN IANO, Instit. , 44 F ESTO, ad v . spondeo, e
III , 1, 9. cfr. acima o parágrafo 570. 45 U LPlANO, in Dig., XXIII, 1, 2. 46 De outro smgue. " Per subsequem matrimonium , introduzidas no direito romano somente por Constantino. 48 Reconhecicbs legalmente em Roma pela lex lu/ia et Papia Poppaea. 49 Cfr. os parágrafos 526, 659 e 802. 50 Cfr. os parágrafos 670 e eg.
[734]
[992] E é digno de reflexão o seguinte erro indecentíssimo, tomado destes eruditos comentadores da lei das XII Tábuas, as quais pretendem ter sido levada de Atenas para Roma: que a herança ab intestato devia ter sido incluída, pelos pais de família romanos, durante todo o tempo anterior a que essa lei trouxesse as sucessões testamentárias e legítimas, na espécie de coisas que são denominadas «nullius». 51 Mas a providência dispôs, para que o mundo não recaísse na infame comunhão das coisas, que a certeza dos domínios fosse conservada com essa e por essa forma das repúblicas aristocráticas: pelo que tais sucessões legítimas devem ter sido naturalmente praticadas por todas as primeiras nações antes de se conhecerem os testamentos, que são próprios das repúblicas populares e, muito mais, das monarquias, tal como acerca dos antigos Germanos (os quais nos permitem compreender o mesmo costume em todos os primeiros povos bárbaros) nos é referido claramente por Tácito; 52 pelo que, há pouco, conjecturámos ter sido a lei sálica, a qual foi certamente praticada na Germânia, universalmente observada pelas nações, no tempo da segunda barbárie.53 [993] Porém, os jurisconsultos da última jurisprudência, 54 devido àquela fonte de inumeráveis erros (os quais foram notados nesta obra) de avaliar as coisas dos primeiros tempos não conhecidos por aquelas dos seus últimos tempos, acreditaram que a lei das XII Tábuas tivesse chamado as filhas de família à herança dos seus pais, que tivessem morrido ab intestato, apoiados na palvra «suus», com base naquela máxima de que o género masculino inclua também as mulheres. Mas a jurisprudência heróica, sobre a qual nestes livros tanto se
51 52
53 54
Asserção que jamais alguém formulou . Cfr. o parágrafo 985 . Cfr. o parágrafo 988. Os do período clássico e, de um modo particular, Ulpiano.
[735)
reflectiu, tomava as palavras das leis no seu significado mais próprio; de modo que a palavra < ·suus» não significasse outra coisa a não ser os filhos de fanúlia. Do que, com uma prova invencível, nos convence a fórmula da instituição dos póstumos, introduzida tantos séculos depois,55 por Galo Aquilio, a qual está assim concebida: «Si quis natus natave erit», 56 por poder haver dúvida de que apenas com a palavra «natus» não se entendesse incluída a póstuma.57 Donde, por ignorância destas coisas, Justiniano, nas Istituta, 58 diz que a lei das XII Tábuas teria designado igualmente com a palavra «adgnatus» tanto os agnados masculinos como os agnados femininos, e que, depois, a jurisprudência intermédia teria tornado essa lei mais rígida, restringindo-a apenas às irmãs consanguíneas; o que deve ter acontecido presisamente ao contrário, tendo-se estendido, primeiro, a palavra «suus» ainda às filhas de fanúlia e, depois, a palavra «adgnatus» às irmãs consanguíneas. Pelo que, por casualidade, todavia bem, tal jurisprudência é denominada «intermédia», porque ela começou a abrandar, a partir destes casos, os rigore da lei das XII Tábuas: que surgiu depois da jurisprudência antiga, que tinha guardado com supremo escrúpulo as palavras, tal como acerca de uma e de outra, acima, plenamente se disse. [994] Mas, tendo o império passado dos nobres para o povo, porque a plebe põe todas as suas forças, todas as suas riquezas e todo o seu poder na multidão dos filhos, começou-se a sentir a ternura do sangue, que anteriormente os plebeus das cidades heróicas não devem ter sentido, porque geravam
55
Nos tempos de Cícero. Cfr. SÉVOLA , in Dig., XXVIII, 2, 29, pr. (•se houver algum filho ou filha nascidos póstumos»). 57 A filha nascida depois da morte do pai. 58 III , 2, 3. 56
[736]
os filhos para fazer deles escravos dos nobres, pelos quais eram postos a gerar, no tempo certo, para que os partos se dessem na estação da primavera, a fim de que nascessem não apenas sãos, mas também robustos 59 (pelo que foram denominados «vernae», como pretendem os etimologistas latinos, a partir dos quais, como se disse acima, foram as línguas vulgares denominadas vernaculae) ,f>>, que a história nunca lê. [997] Pelo que a república romana livre foi toda concebida com este mote, dividido nestas três partes: «senatus autoritas)), «populi imperium·>,«tribunorum plebis potestas)). E estas duas palavras quedaram nas leis com essas suas nativas elegâncias: pois o «império)) diz-se dos magistrados maiores, como os cônsules, os pretores, e estende-se até ao poder de condenar à morte; a «potes ta de)) diz-se dos magistrados menores, como os edis,78 e «modica coercirione continetum.79 [998] Finalmente, explicitando os princípios romanos toda a sua clemência em relação à humanidade, decidiram favorecer a escravatura e refrearam a crueldade dos senhores contra os seus míseros escravos; ampliaram nos efeitos80 e restringiram nas solenidades as manumissões;81 e a cidadania, que inicialmente não era concedida senão a grandes estrangeiros beneméritos do povo romano, concederam-na a qualquer um que, mesmo que de pai escravo, desde que de mãe livre (se não nascida, alforriada), tivesse nascido em Roma. A partir desta maneira de nascer livre nas cidades, o direito natural, que anteriormente era denominado «das gentes)), ou das casas nobres
n Cfr. Lív to, rv, 6. Magistraturas. 79 N aturalmente, daqueles da plebe. 110 Resumo inexacto de um passo de P AOLO (Dig., I, 21 , 5, 1). 81 Precisamen:e o contrário. Aliás, é necessário esperar por Justiniano para que todos os libertos obtenham indistintamente a civitas e desaparece toda e qualquer distinção entre ingenui e libertini. 78
[740]
(porque, nos tempos heróicos, todas as repúblicas haviam sido aristocráticas, 82 das quais era próprio esse direito, como acima foi reflectido), depois de surgirem as repúblicas populares (nas quais as nações inteiras são senhores dos impérios) e, logo, as monarquias (em que os monarcas representam as nações inteiras a eles sujeitas), quedou denominado «direito natural das nações».83
82
No sentido de que às antigas formas manurrussonas solenes se acrescentaram, ao longo do império, aquelas menos solenes •per epistolas» , •inter amicos• e •per cotwivium». 83
Cfr. o parágrafo 990.
[741]
[CAPÍTULO TERCEIRO]
DA CUSTÓDIA DAS LEIS [999] A custódia das ordens arrasta consigo a das magistraturas e dos sacerdócios e, portanto, também a das leis e da ciência de as interpretar. Razão pela qual se lê, na história romana, nos tempos em que essa era república aristocrática, 1 que dentro da ordem do senado (que, então, era todo constituído por nobres) 2 estavam encerrados tanto os conúbios, como os consulados e os sacerdócios e, dentro do colégio dos pontífices (no qual não se admitiam senão os patrícios) ,3 como em todas as outras nações heróicas, era custodiada como sagrada, ou seja, secreta4 (que são o mesmo) a ciência das suas leis: que, entre os Romanos, durou até depois da lei das XII Tábuas, segundo relata o jurisconsulto Pompónio. 5 E quedaram denominados «viri», que, naqueles tempos, significou para os Latinos o mesmo que «heróis» tinha significado para os Gregos, e com esse nome foram designados os maridos solenes, os magistrados, os sacerdotes e os juizes, como noutra ocasião se disse. 6 Porém, aqui, nós reflectiremos sobre a custódia das leis, como
1
Até às leges Publiciae (parágrafo 104) . C fi:. o parágrafo 619. 3 Vico estava a pensar em Tibério Coruncâillo, primeiro pontífice máximo plebeu (parágrafo 113). 4 Cfr. o parágrafo 953. ~ Dig., I, 2, 2, 6. 6 Cfr. o parágrafo 657 . 2
[743]
aquela que era uma propriedade maxuna das aristocracias heróicas; pelo que foi a última a ser transmitida pelos patrícios à plebe. [1000] Essa custódia foi escrupulosamente observada nos tempos divinos;7 de modo que a observância das leis divinas é denominada ~religião» , a qual foi perpectuada por todos os governos posteriores, nos quais as leis divinas devem ser observadas com certas fórmulas inalteráveis de palavras consagradas e de cerimónias solenes: custódia das leis essa que é mais própria das repúblicas aristocráticas do que qualquer outra coisa. Por isso, Atenas (e, segundo o seu exemplo, quase todas as cidades da Grécia) passou rapidamente à liberdade popular, devido àquilo que os Espartanos (que viviam numa república aristocrática) diziam aos Atenienses: que se escreviam demasiadas leis em Atenas, enquanto as poucas que existiam em Esparta eram observadas.8 [1001] Os Romanos, no esta o aristocrático, foram guardadores rigidíssimos da lei das XII Tábuas, como acima se observou; 9 tanto que foi denominada por Tácito 10 >). 2
[753]
livres todos cuidam dos seus interesses privados, ao serviço dos quais põem as suas armas públicas para excídio das suas nações, para que se conservem as nações é necessário surgir nelas pelo menos alguém (como, entre os Romanos, um Augusto) que, pela força das armas, chame a si todas as causas públicas e deixe que os súbditos se ocupem das suas coisas privadas e dediquem às públicas tanto e tal cuidado quanto e qual o monarca lhes permita; e assim se salvem os povos que, de outro modo, acabariam por destruir-se. 7 Verdade com a qual concordam os doutores vulgares, quando dizem que «universitates sub rege habentur loco privatorum»,8 porque a maior parte dos cidadãos não se ocupa já do bem público: o que, nos Anais, 9 Tácito, sapientíssimo de direito natural das gentes, circunscrevendo-se apenas à família dos Césares, ensina com esta ordem de ideias humanas civis: aproximando-se do fim, Augusto, «pauci bona liberta tis incassum dissere» ;10 assim que chegou Tibério, «omnes principis iussa adspectare»; 11 em seguida, sob o governo dos três Césares, primeiro veio «incuria» 12 e, finalmente «ignorantia reipublicae tanquam alienae»: 13 pelo que, tendo-se tornado os cidadãos quase estrangeiros das suas nações, é necessário que os monarcas, nas suas pessoas, os governem e representem. Ora, porque as repúblicas livres, para um poderoso ser elevado à monarquia é necessário que o povo tome o seu partido, as monarquias, por isso, governam-se por
7
Cfr. o parágrafo 1006. •N as monarquias a condição das comunidades é a mesma que a dos privados». 9 I, 1. 10 «Poucos dissertavam em vão sobre os beneficias da liberdade•. 11 «Todos esFeravam as ordens do príncipe». 12 A indiferença pela política. 13 «A ignorância dos assuntos de Estado, como se estes fossem coisa estranha» . 8
[754]
natureza popularmente: primeiro, com as leis, com as quais os monarcas pretendem todos os súbditos iguilizados; depois, por aquela propriedade monárquica de que os soberanos, ao humilharem os poderosos, mantêm a multidão segura e livre das suas opressões; em seguida, por aquela outra de mantê-la satisfeita e contente relativamente ao sustento que é necessário à vida e relativamente aos usos da liberdade natural; e, finalmente, com os privilégios, 14 que os monarcas concedem, ou a ordens inteiras (que se denominam «privilégios de liberdade»), ou a pessoas particulares, ao promoverem, fora da ordem, homens de extraordinário mérito às honras civis (que são leis singulares ditadas pela equidade natural). Pelo que as monarquias são as mais conformes à natureza humana da mais desenvolvida razão, como noutra ocasião se disse. 15
14
15
Cfr. o parágrafo 1001. Cfr. os parágrafos 924 e 927 .
[755]
(CAPíTULO T ER CEIRO]
CONFUTAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA DOUTRINA POLÍTICA FEITA SOBRE O SISTEMA DE JEAN BODIN [1009] A partir do que, até agora, aqui se reflectiu, compreenda-se com quanta ciência Jean Bodin estabeleceu os princípios da sua doutrina política, que dispõe as formas dos Estados civis na ordem assim referida: que, primeiro, existiram os monárquicos, depois, através das tiranias, passaram a populares livres e, finalmente, vieram os aristocráticos. 1 Aqui, bastaria apenas tê-lo completamente refutado com a sucessão natural das formas políticas, especialmente com as tão inumeráveis provas demonstradas, de facto, neste livro. Mas compraz-nos, ad exuberantiam, refutá-lo no impossível e no absurdo dessa sua posição. [1010] Concorda ele, certamente, naquilo que é verdadeiro: que as cidades foram criadas com base nas farnílias. 2 Por outro lado, por erro comum, que aqui acima se censurou,3 ele acreditou que as famílias seriam apenas de filhos. 4 Ora, perguntamos nós: como podiam, com base nessas famílias, surgir as monarquias? 1
Cfr. o parágrafo 663. De republica, I, cap. 1 e 2: texto francês, pp. 1 e 10; texto latino, pp. 1 e 12. Cfr. também rv, 1, p. 503 I 570. 3 C fr. o parágrafo 552. 4 Inexacto. Cfr. , contra esta afirmação, B oDIN, I, 5 e 6: texto francês, pp. 46 e 69; texto latino, pp. 48 e seg. e 72. 2
[757]
[1011] Dois são os metas: ou a força , ou a fraude. [1012]5 Pela força, como é que um pai de farrúlia podia violentar os outros? Porque, se nas repúblicas livres (que, por isso, 6 surgiram depois das tiranias 7 ) os pais de farrúlia se consagravam, a si e à~ suas farrúlias, às suas pátrias, que lhes conservavam as farrúlias (e, por isso, aqueles já tinham sido acostumados às monarquias), não seria mais de considerar que os pais de farrúlia, então polifemos, na recente origem da sua ferocíssima liberdade bestial, mais depressa se teriam deixado todos matar, com as suas farrúlias inteiras, do que suportariam a desigualdade?E [1013] Pela fraude, ela é utilizada por aqueles que ostentam o governo nas repúblicas livres, ao proporem aos aliciados liberdade, poder ou riqueza. Se liberdade, no estado das farrúlias, os pais eram to:los soberanos. Se poder, a natureza dos polifemos9 era de se manterem todos isolados nas suas grutas, a tratar das suas farrúlias, e de não se importarem nada com as dos outros, cortcordantemente com o vício da sua origem imane. Se riquezas, naquela simplicidade e parcimónia dos primeiros tempos, elas não eram de modo algum compreendidas. [1014] A dificuldade cresce desmesuradamente porque, nos primeiros tempos bárbaros, n ~o existiam fortalezas , e as cidades heróicas, que eram compostas por farrúlias , foram
5 No presente parágrafo, Vico pretende referir-se à tese sustentada por Bodin, no sexto capítulo do primeiro livro da sua obra, mas de certo modo atenuada no primeiro capítulo do quarto livro. Cfr. o tex"to francês, pp. 68-69 e 503; texto latino, pp. 71-72 e 570. 6 Para Bodin. 7 Cfr. o parágrafo 663. 8 Cfr. os parágrafos 522 e 584. 9 Cfr. o parágrafo 516.
(758)
durante bastante tempo desprovidas de muralhas, como acima nos assegurou Tucídides; 10 e, nas invejas de Estado, que foram muitíssimo funestas nas aristocracias heróicas por nós acima referidas, Valério Publicola, por ter construído uma casa no alto, tornando-se suspeito de afectada tirania, a fim de justificar-se, re-la desmantelar numa noite e, no dia seguinte, convocada a assembleia pública, 11 fez os lictores lançarem-lhe as fasees consulares aos pés do povo; 12 e o costume das cidades sem muralhas durou mais onde as nações foram mais ferozes : de modo que se lê que, na Alemanha, Henrique, cognominado «O Passarinheiro», foi o primeiro que começou a transmudar os povos, a partir das aldeias onde anteriormente tinham vivido dispersos, e a convertê-los às cidades e a cingir as cidades com muralhas. 13 Tanto os primeiros fundadores das cidades foram aqueles que, com o arado, desenharam delas os muros e as portas, que os etimologistas latinos dizem terem-se assim denominado como «trazendo arado» porque o trariam ao alto quando queriam que se abrissem as portas! 14 Assim, devido tanto à ferocidade dos tempos bárbaros, como à pouca segurança dos paços reais, nas cortes de Espanha, em sessenta anos, 15 foram mortos mais de oitenta monarcas;16 de modo que os padres
° Cfr.
1
os pa.rágrafos 76 e 645. Convocados os corrúcios. 12 L ív10, II , 7. 13 Cfr. , entre o utras fontes, o Chronicorr universo/e, de EKKARD, nos Momnnenta G ermaniae historica, Scriptores, VI, 182. Depois do ano 925, Henrique iniciou a construção de cidades fortificadas para defesa contra as incursões dos Húngaros. 14 Bodin tinha acedido a esta etimologia de Varrão (sobre a qual cfr. os parágrafos 950 e 788) . 15 De 572 a 636. 16 Em vez disso, não mais de três, mais um morto sob suspeita de envene nan1ento. 11
[759]
do concílio iliberitano, 17 uin dos mais antigos da Igreja latina, condenaram com graves excomunhões um crime tão frequente. [1015) Porém, a dificuldade atinge o infinito se considerarmos as famílias compostas apenas por filhos. Pois, ou pela força ou pela fraude, os filhos devem ter sido os ministros das ambições de outros, e terem traído ou assassinado os próprios pais; pelo que as primeiras teriam sido, não já monarquias, mas ímpias e celeradas tiranias: como os jovens nobres, em Roma, conjuraram contra os seus próprios pais a favor do tirano Tarquínio, pelo ódio que tinham ao rigor das leis, 18 próprio das repúblicas aristocráticas (como as benignas o são das repúblicas populares, as clementes dos reinos legítimos, as dissolutas dos governos dos tiranos) ; 19 e esses jovens conjurados experimentaram-nas à custa das suas próprias vidas; e, entre eles, dois filhos de Bruto, tendo este pai ditado a severíssima pena; foram ambos decapitados. Tanto o reino romano tinha sido monárquico e popular a liberdade ordenada por BrutoF0 [1016) Por essas muitas dificuldades, tem Bodin (e, com ele, todos os outros políticos) que reconhecer as monarquias familiares no estado das famílias, que foram aqui demonstradas, e reconhecer as famílias, para além de filhos, também de fàmulos (a partir dos quais, principalmente, foram denominadas as famílias), os quais foi aqui comprovado terem sido esboços dos escravos, que surgiram depois das cidades, com as guerras. E, desse modo, a matéria das repúblicas são os homens livres
17 Não no único concílio de lliberis, de 313, mas sim nalgum dos posteriores concílios toledanos: por exemplo, no sexto, de 638. Cfr. Nicolini (Comm ., 1014). 18 LíVIO , II, 3 19 Cfr. os parigrafos 242-243. 20 Cfr. os parigrafos 662-665 .
(760]
e os servos, que Bodin considera como matéria das repúblicas, mas não o podem ser, pela sua posição. 21 [1017] Por essa dificuldade de poderem ser homens livres e servos a matéria das repúblicas, com a sua posição, o pn)prio Bodin se admira de que a sua nação tenha sido denominada dos «Francos», uma vez que observa terem eles sido, nos seus primeiros tempos, tratados como vilissimos escravos; 22 porque, por essa sua posição, não pôde ver que as nações se constituíam com base nos libertados do nó pela lei Petélia.23 De modo que os Francos, dos quais se admira Bodin, são os mesmo que [os] «homines» de que se admira Hotrnann de terem sido denominados os vassalos rústicos,24 a partir dos quais, como nestes livros foi demonstrado, foram compostas as plebes dos primeiros povos, que eram de heróis. 25 Multidões essas que, como também foi demonstrado, levaram as aristocracias à liberdade popular e, finalmente, às monarquias;26 e isto, em virtude da língua vulgar, com a qual, em cada um dos dois últimos Estados, foram concebidas as leis, como acima se
21 Portanto, o próprio Vico acaba por reconhecer que também para Bodin os escravos faziam igualmente parte das fanúlias originárias: daí que a verdadeira discrepância entre o estadista francês e o filósofo napolitano consista, sobretudo, no facto de, segundo o primeiro, a escravatura, tal como o Estado, ter origem num acto voluntário de violência, enquanto, para o segundo, o fundamento de uma e do outro é a própria lógica das coisas. 22 BODIN, p. 2761298, não diz senão que os Hunos, ao devastarem meia Europa, o tinham feito também aos Francos, • Gallorum veteres colonos, ad dominatum rerum omnium occupandum» (•já antigamente colonos dos Galos, a assenhoriar-se do donúnio de tudo•); como o que parece que pretenderiam aludir à colónia franca fundada pelo imperador Constâncio, na Gália, no ano 293 d. C. 23 Cfi:. os parágrafos 615 e 658. 24 Cfi:. o parágrafo 437 . 25 Cfr. o parágrafo 597 . 26 Cfr. o parágrafo 1008.
[761]
reflectiu: 27 pelo que a língua latina foi denominada «vernacula» pelos Latinos, porquanto proveio destes servos nascidos em casa, que é o que significa «vema», e não «feitos na guerra»; o que acima demonstrámos ter ocorrido em todas as nações antigas, até ao fim do estado das familias. 28 Foi essa a razão pela qual os Gregos deixaram de se denominar >, «tenere>>, >; 47 e empregou a palavra «urbem», que são propriamente os edificios , para significar a possessão conservada com o corpo: não disse «dvitatem », que é a comunidade dos cidadãos, que formam, no seu conjunto, ou na maior parte, com os seus ânimos, a razão pública.48
41
Cfr. o parágrafo 1014. Cfr. os paiágrafos 584-585. 43 De Legíbus, III, 2. 44 Cfr. os parágrafos 108 e 664. 45 Cfr. o paiágrafo 76. 46 Cfr. o parágrafo 1014. 47 Cfr. o paiágrafo 654 . ..a O direito público. Cfr. o parágrafo 971. 42
[764]
[SECÇÃO DÉCIMA QuARTA]
ÚLTIMAS PROVAS QUE CONFIRMAM ESSE CURSO DAS NAÇÕES [CAPíTULO PRIMEIRO]
[PENAS, GUERRAS, ORDENS DOS NÚMEROS) [1020) Existem outras conformidades dos efeitos com as causas que lhes atribui esta Ciência, nos seus princípios, para confirmar o curso natural que as nações fazem ao longo da sua vida. A maior parte das quais foram ditas acima , dispersamente e sem ordem, e aqui, dentro dessa sucessão natural das coisas humanas e civis, se unem e se dispõem. [1021) Como as penas, que no tempo das farrúlias eram crudelíssimas, tanto quanto eram aquelas dos polifemos, em cujo estado Apolo esfola vivo Mársias; 1 e prosseguiram nas repúblicas aristocráticas: pelo que Perseu, como acima explicámos, petrificava com o seu escudo todos os que o olhavam. 2 E as penas foram denominadas pelos Gregos 1tapaOEÍ.YJ.LCX:ta, com o mesmo sentido com que foram denominadas pelos Latinos «exempla», no sentido de «castigos exemplares»; 3 e, a partir dos tempos bárbaros regressados, como também foi
1 2 3
Cfr. o parágrafo 627. Cfr. os parágrafos 423 e 524. Cfr. o parágrafo 501.
[765]
acima observado, as penas de morte foram denominadas «penas ordinárias». 4 Pelo que as leis de Esparta (república que, com tantas provas, nós demonstrámos ter sido aristocrática) , julgadas selvagens e cruéis tanto por Platão5 como por Aristóteles, 6 fizeram com que um rei iluminadíssimo, Ágis, fosse estrangulado pelos éfi ros/ e as de Roma, enquanto foi de estado aristocrático, fizeram com que um ínclito Horácio vitorioso fosse espancado nu com as chibatas e, em seguida, enforcado na árvore infeEz,8 como a outro propósito se disse acima, sobre um e sobre outro. Pela lei das XII Tábuas eram condenados a ser queimados vivos aqueles que tinham incendiado as colheitas alheias,9 precipitados do monte Tarpeu abaixo os falsos testemunhos, despedaçados vivos os devedores falidos: 10 pena essa a que Túlio Hostílio não poupou Mécio Fufécio, rei de Alba, seu par, que lhe tinha faltado à fidelidade na aliança; 11 [e] o próprio Rómulo, anteriormente, fora feito em pedaços pelos pais por ma simples suspeita de Estado. 12 Seja isto dito para aqueles que pretendem que tal pena nunca foi praticada em Roma. [1022] Depois, vieram as penas benignas, praticadas nas repúblicas populares, onde governa a multidão, que, porque 4
Antes num passo da redacção de 1730, suprimido nesta, de 1744. No entanto, no antigo direito germânico, as penas capitais eram, pelo contrário, raríssimas. 5 Leis, p. 635 b. 6 Politica, p. 1324 b 1 e seg. 7 Cfr. o parágrafo 592 . 8 Cfr. o parágrafo 500. Mas Horácio não devia ter sido •enforcado», isto é, dependurado, mas antes cruxificado, segundo a «/ex horrmdi carminis». 9 Cfr. o parágrafo 957 . 10 G ÉL10, odes atticae, XX, 1, 54. 11 U v1o, I, 28 e cfr. G ÉLIO, XX, 1, 54. 12 L ív1o, I, 16, onde, por outro lado, nunca é dito que a morte de Rómulo teria ocorrido por esquartejamento.
(766]
de débeis , é naturalmente inclinada à compaiXao; e aquela pena - da qual Horácio (ínclito réu de uma cólera heróica, com que tinha assassinado a irmã, que via chorar perante a felicidade pública) foi absolvido pelo povo romano «magis admiratione virtutis quam iure caussae» (conforme a elegante expressão de Lívio, noutra ocasião acima observada) -, na mansuetude da sua liberdade popular, como, um pouco atrás, ouvimos que Platão e Aristóteles, nos tempos da livre Atenas, censuravam as leis espartanas, 13 assim Cícero 14 grita ser inumana e cruel para ser aplicada a um cavaleiro romano particular, Rabírio, que era acusado de rebelião. Chegou-se, finalmente, às monarquias, nas quais os príncipes desfrutam de escutar o gracioso título de «clementes». [1023] Como, a partir das guerras bárbaras dos tempos heróicos, em que se arruinavam as cidades vencidas e os rendidos, transformados em rebanhos de jornaleiros, eram espalhados pelas planícies para cultivarem os campos para os povos vencedores (que, como acima reflectimos, foram as colónias heróicas mediterrânicas) 15 - , pela magnanimidade das repúblicas populares, que, até que se fizeram regulamentar pelos seus senados, 16 retiravam aos vencidos o direito das gentes heróicas e deixavam-lhes completamente livres os usos do direito natural das gentes humanas, de que falava Ulpiano 17 (pelo que, [ao] estenderem-se as conquistas, foram restringidos aos cidadãos romanos todos os direitos, que depois foram denominados «propriae civium romanorum», 18 como são núpcias, 13 14 15 16
17
Para tudo isto, cfr. o parágrafo 1021. Pro R.abirio, 4. Cfr. os parágrafos 560 e 595. Cfr. o parágrafo 945. Cfr. os parágrafos 569 e 990 e, sobre o parêntesis seguinte, o parágrafo
582. 18
«Peculiares dos cidadãos romanos».
[767]
poder paterno, existência jurídica, aganação, gentilidade, donúnio quiritário, ou seja, civil, mancipações, usucapiões, estipulações, testamentos, tutelas e heranças; direitos civis esses que, antes de serem sujeitos, devem ter sido todos eles próprios das ilações livres) - , assim se chegou, finalmente, às monarquias .que, sob. o governo de Antonino Pio, 19 pretendem fazer de todo o mundo romano uma só R oma. Porque é voto próprio dos grandes monarcas fazer uma só cidade de todo o mundo, como já Alexandre Magno dizia que todo o mundo era, para ele, uma cidade, da qual em fortaleza a sua falange . Pelo que o direito natural das nações,20 promovido pelos pretores romanos nas províncias, veio, ao fim de bastante tempo, a ditar as leis em casa desses Romanos; posto que, cai o direito heróico dos Romanos sobre as províncias, porque os monarcas pretendem todos os úbditos igualizados com as suas leis.21 E a jurisprudência romana, que, nos tempos heróicos, se praticou totalmente com base na lei das XII Tábuas, 22 e depois, desde os tempos de Cícero (como ele refere, num livro De legibus23 ), tinha começado a ser praticada com base no édito do pretor romano, finalmente, a partir do imperador Adriano, fixou-se inteiramente em torno do Édito perpétuo, ordenado por Sálvio Juliano e composto quase exclusivamente por éditos provinciais.24 19 Em vez disso, sob o governo de Caracala, e não certamente pelo motivo idealista alegado por Vico, o qual, por outro lado, atinge BoDLN,
p. 83186. 20 A expressão· denota que, habitualmente, não era o direito natural, mas antes aquele qt.:e os jurisconsultos romanos denominavam , etc. 31 Veja-se agora o parágrafo 1028, e cfr. P AULO, in Digestum , XLI, 2, 2, 1. 32 Cfr. o parágrafo 961. 33 Isto é, intimar, advertir antecipadamente a represália. 34 Cfr. o parágrafo 960. 35 Cfr. os parágrafos 215-216.
[775]
samente imitar a verdade de que são capazes, faculdade na qual consiste a poesia, que outra coisa não é senão imitação. [1033] Trouxeram-se para a praça tantas máscaras quantas são as pessoas, pois «persona» outra coisa não quer propriamente dizer senão «máscara», 36 e quantos são os nomes, os quais, nos tempos dos falares mudos, que se faziam com palavras reais, 37 devem ter sido as insígnias das famílias, 38 com as quais se comprovou · que os Americanos di tinguiam as famílias , como acima se disse;"9 e, sob a pessoa ou máscara de um pai de família, escondiam-se todos os filhos e os servos daquela, sob um nome real, ou seja, insígnia de casa,. escondiam-se todos os agnados e todos os gentios da mesma. Pelo que vemos tanto Ájax ser a torre dos Gregos, como Horácio sustentar sozinho, sobre a ponte, toda a Toscânia e, nos tempos bárbaros regr~ssados , encontramos quarenta heróis normandos expulsarem de Saler o um exército inteiro de Sarracenos; e, assim, foram cridas as estupendas forças dos paladinos de França (que eram príncipes soberanos, como assim quedaram denominados na Gerrnânia 40 ) e, acima de todos, do conde Rolando, depois chamado Orlando. 41 Cuja razão brota dos princípios da poesia que foram acima comprqvados: 42 que os autores do direito romano, na idade em que não podiam compreender universais inteligíveis, formaram uruversais fantásticos; e como os poetas, depois, por arte, levaram os personagens e as máscaras
36
Cfr., entre os escritos autobiográficos de Vico, Dai Cartegio, XVII. Cfr. os parigrafos 99, 435, 929. 38 Cfr. o parásrafo 433. 39 Cfr. o parágrafo 435 . >, 44 que significa «ressoar por toda a parte»45 - pois não era necessário, nos teatros assaz pequenos das primeiras cidades (quando, como diz Horácio,46 os povos espectadores eram tão pequenos que se podiam contar) , que se usassem as máscaras para que dentro deles a voz ressoasse de maneira tal que enchesse um amplo teatro; nem isso consente a quantidade da sílaba, que, derivando de «sono», deve ser breve -; mas deve ter provindo de «personari», 47 verbo que conjecturamos ter significado «vestir peles de feras» (o que não era licito senão aos heróis) , e ficou-nos o verbo companheiro «opsonari», que deve ter significado primeiramente «alimentar-se de carnes selvagens Caçadas», que devem ter sido as primeiras mesas abundantes, como precisamente as descreve Virgílio a propósito dos seus heróis. 48 Pelo que os primeiros despojos abundantes 49 devem ter sido essas peles das feras mortas, que os heróis trouxeram das . primeiras guerras, que eles fizeram primeiramente éontra as feras, para se defenderem a si e às suas famílias, como acima se reflectiu, e os poetas vestem com essas peles os heróis e, sobretudo, Hércules, com aquela do leão. E conjecturamos que, dessa origem do verbo «personari», no seu primeiro significado qu~ nós lhe restituímos, denominem
43
Cfr. o parágrafo 910. Etimologia de Gavio Basso, refrida por Ghro, V, 7. 45 Mais exactamente, •ressoar ruidosamente•. 46 Ad Pis., 206. 47 Forma depoente não mencionada nos léxicos. 48 Am. , III, 223-224, mas referindo-se a uma mesa preparada com abundância. 49 Cfr. o parágrafo 958 . 44
[777]
os Italianos «personaggi» os homens de alta posição e de grande representação.50 [1035] Por estes mesmos princípios, porque não compreendiam formas abstractas, nem imaginaram formas corpóreas, 51 e as imaginaram, por sua natureza, animadas.52 E fingiram que a herança era senhora das coisas hereditárias,53 e reconhecem-na por completo em cada coisa particular hereditária: precisamente como uma gleba ou torrão da propriedade, que apresentavam ao juiz, esses denominavam com a fórmula da reivindicação hunc >; e interprete-se: nos tempos heróicos, incapazes de abstracções, as coisas incorpóreas foram imaginadas corpóreas (parágrafo 1035); enquanto, sobrevindo os tempos humanos, ou históricos, e tendo-se começado a conceber as abstracções, as coisas não materialmente tangíveis vieram a despir-se, pouco a pouco, da sua imaginada corporalidade, até se tornarem abstracções puras, perceptíveis não já pela imaginação, mas pelo intelecto. 58
[779]
passaram a designar-se, dai em diante, por «consistere in intellectu iun's». 61 Intelecto esse que é da vontade que o legislador exprimiu na sua lei (vontade essa que se denomina «ius»), 62 que foi a vontade dos cidadãos uniformizados numa ideia de uma utilidade comum razoável, a qual devem ter compreendido ser por sua natureza espiritual, porque todos aqueles direitos que não possuem corpos em que se exercitem (os quais se denominam «nuda iura», direitos despidos de corporalidade) foram ditos «in intellectu iuris consistem>. Pelo que, portanto, os direitos são modos de substância espiritual, pelo que são indivisíveis e, assim, são também eternos, porque a corrupção outra coisa não é senão divisão de partes.63 [1039) Os intérpretes do direito romano colocaram toda a reputação da metafísica legal em considerar a indivisibilidade dos direitos, com base na famosa matéria De dividuis et individuis.64 Mas não consideraram outra, não menos importante, que era a eternidade, a qual também deviam advertir naquelas duas regras de direito que estabelecem: - a primeira, que, «cessante fine legis, cessat lex»; 65 donde, não dizem «cessante rationl!l>, porque a finalidade da lei é a igual utilidade das causas,66 que pode faltar; mas a razão da lei é uma conformação da lei ao facto, revestido de tais circunstâncias, que, sempre que revestem o facto, reina \oiva sobre ele a razão da lei; 67 - a outra, que
61
Cfr., entre outros, P APIANO , in Dig. , XLV, 3, S. Cfr. o parágrafo 398. 63 Cfr. o parágrafo 698. 64 Cfr. os parágrafos 1035 e 1038. 65 Trata-se do retocar de um trecho de V ULTE tO , op. cit. , p. 432: •quando cessa a finalidade da lei, cessa também a lei•. 66 Uma utilicbde comum a todos os cidadãos. 67 Isto é, a rario leges coincide com o facto contemplado pela própria lei. 62
[780]
«tempus non est modus constituendi vel dissolvendi íurís)),68 porque o tempo não pode começar ou terminar o eterno e, nas usucapiões e prescrições, o tempo não produz nem termina os direitos, mas é prova de que quem os detinha teria querido despojar-se deles; a título de exemplo, nem por se dizer «terminar o usufrutm o direito termina, mas da servidão se reconduz à sua primeira liberdade. Do que nasceram estes dois importantíssimos corolários: o primeiro, que existindo os direitos eternos no intelecto deles, ou seja, nas suas ideias, e existindo os homens no tempo, não podem os direitos provir aos homens de outra fonte senão de Deus; o segundo, que todos os inumeráveis, vários e diferentes direitos, que existiram, existem e existirão no mundo, são várias diferentes modificações da potestade do primeiro homem, que foi o príncipe do género humano, e do domínio que ele deteve sobre toda a terra. (1040] Ora, uma vez que, seguramente, primeiro existiram as leis, depois os filósofos, 69 é necessário que Sócrates, a partir da observação de que os cidadãos atenienses, ao ordenarem as leis, se passavam a unir numa ideia conforme de urna utilidade igual repartidamente comum a todos, tivesse começado a esboçar os géneros inteligíveis, ou seja, os universais abstractos, por meio da indução, 70 que é uma colecção de particulares uniformes, que vão formar um género daquilo em que aqueles particulares são uniformes entre si. (1041] Platão, partindo da reflexão que as mentes dos homens particulares, que estão apaixonadas cada uma pelo útil próprio, em tais assembleias públicas se conformavam
68
«0 tempo não é wn dos modos pelos quais se constitua ou cesse
wn direito>). Outro retocar viquiano de um trecho de V ULTEIO , p. 468, que
condensa outro de P AULO (Dig., XLIV, 7, 44, 1). 69 Cfr. o parágrafo 1043. 7 ° Cfr. o parágrafo 499.
(781]
numa ideia desapaixonada de utilidade comum7 1 (que é aquilo que dizem: «os _ omens, separadamente, são levados pelos seus interesses privados, mas em comum, queremjustiça» 72 ), elevou-se a meditar nas ideias inteligíveis óptimas das mentes criadas, separadas dessas mentes criadas, 73 que não podem existir senão erri Deus, 74 e se elevou a formar o herói filosófico, que ordene com prazer as paixões. 75 (1042] Pelo que Aristóteles / 6 depois, divinamente nos deixou definida a boa lei: que será uma «vontade separada de paixões», que é o mesmo que dizer, vontade de herói; 77 entendeu a justiça como rainha, que tem a sua sede no ânimo do herói e ordena todas as demais virtudes. 78 Porque tinha observado que a justiça legal79 (a qual tem a sua sede no ânimo da potestade civil soberana) ordenava a prudência no senado, a fortaleza nos exércitos, a temperança nas festas, 80 a justiÇa particular, tanto a distributiva nos erários,81 como, 71 Provável alusão ao carácter da pesquisa realizada na R epública, de que se devem ver as páginas 351 a e 433 b. Mas, que do útil privado os homens tenham sido guiados até ao conceito do ·til comum, ou seja, ao conceito de justiça, é uma :nterpretação viquiana. Cfr. o parágrafo 341. 72 Outra glosa. viquiana. 73 Referência vaga e imprecisa ao Parménides, p. 130 b-c. 74 Doutrina não platónica, mas da interpretação patrística de Platão. 75 Doutrina mais estóica que platónica. 76 Politica, p. 1287 a 32. 77 Glosa viquiana, na qual o herói é aquele filósofo, sobre o qual se discorreu no parágrafo 1041 , não certamente o herói passional dos tempos bárbaros. 78 Resumo da Ética. a Nicómano, p. 1129 b 12 e seg. 79 Frase retirada da Etica di Aristotele tradotta in li~tgua volgare florentina e commentata da BERNARDO SEGNI (Florença, 1556), p. 216 e passim. 80 Eco do capítulo sexto do De mundo, do PsEUDO ARISTÓTELES, p. 401 a 13 e seg. 81 Resumo do sétimo capítulo do quarto livro da Ética a Nic6mano (p. 1131 b 29 e seg.).
[782)
gerahnente, a comutativa no foro, e que a comutativa usava a proporção aritmética e a distributiva a geométrica. 82 E deve ter advertido esta pelo censo, 83 que é a base das repúblicas populares,84 que distribui as honras e os encargos com a proporção geométrica, segundo os patrimónios dos cidadãos: porque, anteriormente, nada mais se tinha compreendido a não ser apenas a aritmética; pelo que Astreia, a justiça heróica, nos foi representada com a balança, 85 e nós lemos, na lei das XII Tábuas que, de todas as penas - que, agora, os filósofos, os teólogos morais e os doutores que escrevem de iure publico dizem que devem ser dispensadas da justiça distributiva com a proporção geométrica -, aquelas em dinheiro são todas referidas como «duplio»86 e as que afligem o corpo [como] «talio»87 • E , uma vez que a pena de talião foi inventada por Radamanto, por esse mérito foi ele feito juiz no inferno, onde seguramente se distribuem as penas. E o talião foi denominado por Aristóteles, nos Livros morais, 88 ; 80 e os nobres, até ao fim da lei Petélia, que desobrigou a plebe romana do direito feudal do vínculo, detiveram o direito do cárcere privado sobre os plebeus devedores. 81 [1070] Regressaram as possessões pr:ecárias, que devem ter sido primeiramente de terrenos dados pelos senhores, perante os rogos dos pobres, para se puderem sustentar cultivando-as;82 que são essas precisamente as possessões que a lei das XII Tábuas jamais conheceu, como foi acima demonstrado. 83 [1071] E porque, com as violências, a barbárie rompeu a confiança dos comércios, e não deixou qualquer outra preocupação aos povos senão as coisas apenas mais necessárias para a sua vida natural e, porque todas as rendas devem ter sido em
76 77 78
79
80 81
82 83
Cfr. H oTMANN, Opera , IF, 915. Cfr. o parágrafo 263. Cfr. os parágrafos 107, 619 e seg. H oTMANN, Opera, IF, 909-910. Cfr. o parágrafo 618. Cfr. os parágrafos 115 e 658. H OTMANN, Opera, IF, 950. Cfr. o parágrafo 638.
[809]
frutos que se dizem «naturais)), 84 por isso, nesses mesmos tempos, surgiram também os livelli85 como permutações dos bens imóveis. Do que se deve ter compreendido a utilidade, como noutra vez se disse,86 pois tendo uns abundância de campos que dessem uma espécie de fru tos de que outros tivessem escassez, e assim reciprocamen e, por isso os trocassem entre Sl.
[1072] Regressaram as mancipações, com as quais o vassalo punha as mãos nas mãos do seu senhor, para significar fidelidade e sujeição;87 pelo que, um pouco acima, dissemos terem sido os vassalos rústicos os primeiros «mancipes)) dos Romanos.88 E, com a mancipação, regressou a divisão das coisas mancipi e nec mancipi,89 porque os corpos feudais são nec mancipis, ou seja, inalienáveis pelo vassalo, 90 e são rnancipes pelo senhor; precisamente como as propriedades das províncias romanas foram nec mancipi pel s provinciais e mancipi pelos Romanos. No acto das mancipações, regressaram as estipulações, com as infestucações, ou investiduras, 9 1 que nós acima92 demonstrámos terem sido a mesma coisa. Com as estipulações regressaram aquelas que observámos acima terem sido denonúnadas propriamente e em primeiro lugar pela antiga jurisprudência romana «cavissae)), que depois abreviadamente quedaram deno-
84
Exagero. Contratos agrários adoptados difusamente na Idade Média, pelos quais uma terra era concedida para usufruto durante um certo período de tempo, em determinadas condições. 86 Cfr. o pacigrafo 571. 117 Cfr. H OTMANN , Opera, IF, 932. 88 Cfr. o pa · grafo 1065. 89 Cfr. CutAOO, Opera, II , 1256. 90 Cfr. Zase, Opera, IV, 298 . 91 Cfr. H o TMANN, Opera, II 2 , 932. 92 N o parágrafo 569. 85
[810]
minadas «caussae», 93 que, desde os tempos bárbaros segundos, a partir da mesma origem latina, foram denominadas «cautelas»;94 e o solenizar com aquelas os pactos e os contratos foi denominado «homologare>>, 95 a partir daqueles «homens» dos quais aqui acima podemos ver os termos «hominium» e «homgium»:96 porquanto todos os contratos daqueles tempos devem ter sido feudais. 97 Assim, com as cautelas, regressaram os pactos cautelares no acto da mancipação, que foram denominados «stipulatí» pelos jurisconsultos romanos, que acima comprovámos serem denominados a partir de «stipula» que reveste o grão; e, assim, no mesmo sentido em que os doutores bárbaros, a partir dessas investiduras, denominadas também «infestucações», denominaram «pactos vestidos», e os pactos não cautelados, com o mesmo significado e palavra, a partir de ambos foram denominados «pactos nus». 98 [1073) Regressaram as duas espécies de donúnio directo e útil,99 que correspondem respetivamente ao quiritário e bonitário dos antigos Romanos. 100 E o donúnio directo nasceu, como entre os Romanos, primeiramente, tinha nascido o donúnio quiritário, que nós comprovámos, no seu início, ter sido donúnio dos terrenos dados aos plebeus pelos nobres; da possessão dos quais, se estes viessem a declinar, deviam mani-
93
C&. os parágrafos 569, 939 e 1044. Verdadeirame nte (salvo e os passos não forem, como parece, interpolados), já por U LPIANO, in Dig., III , 3, 15, e XIII, 7, 6, pr. 95 C&. H oTMANN, Opera, IF, 929-930. % C&. o pa.rágrafo 1057. 97 Exagero. 98 C&. o parágrafo 569. 99 Z ASE , Opera, IV, 245 e 268; CutAIO, Opera, II , 1181; C&., contra, H OTMANN, II 2, 814. 100 C&. o parágrafo 582. 94
[811]
festar a reivindicação com a fórmula «Aio hunc Jundum meum esse ex iure quiritium»,101 no sentido de que (tal como acima demonstrámos) essa reivindicação mais não· seria do que urna louvação de toda a ordem dos nobres (que na aristocracia romana tinha feito essa cidade 102) enquanto autores, dos quais esses plebeus recebiam o direito do dorrúnio civil, pelo qual podiam reivindicar essas propriedades. 103 Esse dorrúnio da lei das XII Tábua5 foi sempre denominado «autoritas», a partir dessa autoridade que esse senado reinante detinha sobre o extenso território romano, no qual o povo, depois, com a liberdade popular, deteve o soberano. império, como acima se reflectiu . 104 [1074) De tal «autoridade» da barbárie segunda, sobre a qual nós, como sobre inumeráveis outras coisas, nesta obra fazemos luz com a antiguidade da priineira (tanto nos resultaram mais obscuros estes tempos da segunda barbárie do que os da primeira!), quedaram três vestígios assaz evidentes nestas três palavras feudais: primeiro, na palavra «directo», a qual confirma que tal acção, 105 prlm.eiramente, estava autorizada pelo patrão directo; depois, ·na palavra «laudérnio», que foi dito também para o pagamento que fosse devido pelo feudo, em virtude dessa louvação enquanto autores a que nos referirnos; 106 finalmente, na palavra «laudo», que deve ter significado primeiramente a sentença do juiz nessas espécies de causas, que depois quedou para os juízos que se denominam «com-
101
Cfr. os parágrafos 562, 621 e 961. Vico pretende. dizer que, até Roma se tornar aristocrática, cidadãos verdadeiros e propriamente ditos eram apenas os patricios (parágrafo 597) . 103 Cfr. o parágrafo 984. 104 Cfr. os parágrafos 386 . e 944-946. 105 A reivindicatio. Cfr. C uiA 10, Opera, II, 1179. 106 Cfr. BuDÉ, Opera, III , 270. 102
(812]
promissos», 107 porque tais JUIZos parecem concluir-se arrugavehnente, em comparação com os juízos que se agitavam em torno dos alódios (que Budé opina terem sido denominados assim, quase «allaudi», 108 como entre os Italianos de «laude)) se produziu «Iode»), pelos quais, primeiramente, os senhores se deviam ter de bater com as armas em duelo, como acima foi demonstrado:109 costume esse que perdurou até à minha época, no nosso Reino de Nápoles, onde os barões vingavam, não através de juízos civis, mas através de duelos, os atentados feitos por outros barões dentro dos territórios dos seus feudos. 11 0 E tal como o domínio quiritário dos antigos Romanos , também o directo dos antigos Bárbaros quedou finalmente para significar o domínio que produz uma acção civil real. [1075] E aqui aparece um trecho assaz luminoso para contemplar, no retorno que fazem as nações, também o retorno que fez a espécie dos jurisconsultos romanos últimos 111 com aquela dos doutores bárbaros últimos:11 2 pois, tal como aqueles tinham já, nos seus tempos, perdido de vista o direito romano antigo, como com mil provas nós acima mostrámos, assim estes, nos seus últimos tempos, perderam de vista o antigo direito feudal. Por isso, os intérpretes eruditos 113 do direito
107
M era conjectura de Vico. Cfr. BuoÉ, loc. ât. 109 Cfr. o parágrafo 961. 11 0 Mais exactamente: para além de acções judiciárias, também através dos duelos. Dos quais se têm notícias em documentos do tempo em que Vico escrevia. Cfr., por exemplo, no Arquivo do Estado de Florença, Mediceo, filas 1438 e 1439, dois «avisos» de N ápoles de 1O de Fevereiro de 1728 e de 2 de Setembro de 1732. 111 Aqueles do período clássico e dos tempos posteriores, até Justiniano. 11 2 Bártolo e os bartolistas. 11 3 Entre outros, VULTEIO, op. e ed. cit., p. 153 (e cfr. 227). Ver igualmente BoDIN, texto francês, p. 275. 108
[813]
romano negam resolutamente terem sido estas duas espeoes bárbaras de dorrúnio conhecidas do direito romano, atendendo ao diferente som das palavras, não entendendo em nada essa identidade das coisas. [1076] Regressaram os bens «ex iure optimo», como os feudalistas eruditos 11 4 definem os bens alodiais, livres de qualquer encargo não apenas público como privado, e o confrontam com aquelas poucas casas que Cícero observa que quedaram «ex iure optimo», nos seus tempos, em Roma. 115 Porém, tal como se perdeu a notícia dessa espécie de bens nas últimas leis romanas, assim de ses alódios, de facto, não se encontra, nos nossos tempos, absolutamente nada. E , tal como os prédios «ex iure optimo» dos Romanos anteriores, assim depois, os alódios voltaram a ser bens imóveis livres de todo o encargo real privado, mas sujeitos aos encargos reais públicos; porque regressou a maneira pela q al do censo ordenado por Sérvio Túlio se formou o censo que foi a propriedade do erário romano: maneira essa que acima foi comprovada. 116 De modo que os alódios e os feudos, que preenchem a suprema divisão das coisas em direito feudal, se distinguem entre si, em primeiro lugar, porque os bens feudais traziam como consequência a louvação do senhor, os alódios não. Pelo que, sem estes princípios, é forçoso que se percam todos os feudalistas eruditos, como os alódios, que esses, como Cícero, traduzem em latim como «bana ex iure optimo», foram-nos denominados «bens do fuso», os quais, no eu significado próprio, como acima se disse, 117 eram bens de um direito fortíssimo, não debilitado por qualquer encargo estranho, nem mesmo público;
114
115 116 11 7
H OTMANN, Opera, IP, 907 ; C ·acio, Opera, II, 1181. Cfr. o parágrafo 601. Cfr. os parágrafos 619-623. Cfr. o parágrafo 657 .
[814]
que, como também acima nós dissemos, 11 8 foram os bens dos pais no estado das fanúlias, e duraram muito tempo naquele das primeiras cidades, bens esses que esses tinham conquistado com os trabalhos de Hércules. Dificuldade essa que, por estes mesmos princípios, facilmente se dissolve graças àquele mesmo Hércules que depois fiava , 11 9 tornado servo de Iole e de Onfale: isto é, que os heróis se efeminaram e cederam os seus direitos heróicos aos plebeus, que eles mesmos tinham considerado como mulheres (em comparação com os quais eles se consideravam e se denominavam «viri», como acima foi explicado), 120 e suportaram submeter os seus bens ao erário através do censo, que foi primeiramente a base das repúblicas populares e, depois, se considerou apropriado para ser imposto às monarquias. 121 [1077] Assim, por esse direito feudal antigo, que nos tempos posteriores se tinha perdido de vista, regressaram os fundos «ex iure quiritium», 122 que explicámos como «direitos dos Romanos em assembleia pública, armados de lanças», que denominavam «quires»; 123 a partir dos quais se concebeu a fórmula da reivindicação: «Aio hunc fundum meum esse ex iure quiritium», que era, como se disse, uma louvação enquanto autor da cidade heróica romana; 124 - como a partir da barbárie segunda os feudos seguramente se denominaram «bens da lança», os quais levavam a louvação dos senhores enquanto autores, diferentemente dos alódios últimos, denominados «bens de fuso» (com o qual Hércules, envilecido, feito servo de mulheres, 11 8 11 9 120 121 122
123 124
Ibidetn. Ibidem. Cfr. o parágrafo 657 . Sobre tudo isto, veja-se o parágrafo 622. Cfr. os parágrafos 594-595, 603, 624, etc. Cfr. o parágrafo 562. Cfr. os parágrafos 603, 961, 1073, etc.
[815)
fia): pelo que, acima, atribuímos a origem heróica ao mote das armas reais de. França, inscríto «Lilia non nent>>, pois naquele reino as mulheres não entram na sllcessão. 125 Porque regressaram as sucessões nobres da lei das XII Tábuas, que comprovámos serem «ius gentium romanorum», tal como ouvimos Baldo dizer que a lei sálica se denominava «ius gentium gallorum>>; a qual foi certamente cele rada pela Alemanha e, assim, deve ter sido observada por todas as outras primeiras nações bárbaras da Europa, mas depois ·restringiu:-se à França e à Sabóia.126 [1078] Regressaram finalmente as cortes armadas, 127 tal como comprovámos terem sido as assembleias heróicas que se reuniam debaixo de armas, denominadas de «curetes» gregos e de «quirites» romanos; 128 e os primeiros parlamentos dos reinos da Europa devem ter sido primeiramente de «barões», como aquele de França o foi certamente de «pares». Sobre o qual a história de Fr~nça claramente nos conta terem sido chefes, no início, esses reis, que na qualidade de comissários nomeavam os pares da cúria, que jUlgavam as causas; donde, depois, quedaram denominados os «duques e pares» de França. Precisamente como o primeiro juízo, que Cícero 129 diz ter sido agitado pela vida de um cidadão romano, foi aquele em que o rei Túlio Hostilio criou os diúnviros na qualidade de comissários, que, para dizê-lo com aquela fórmula que Tito Lívio nos apresenta, «Ín Horatium perduellionem dicerent>>, que tinha matado a sua irmã. 130
125
Cfr. o parágrafo 657. Cfr. o parágrafo 988. 127 No sentido de que os vários parlamentos europeus tiveram origem directa ou indirecta nas cortes armadas dos feudatários, convocadas, no período feudal, pelo rex. 128 Cfr. o parágrafo 624. 129 Pro Milone, 3. 130 Cfr. o parágrafo SOO. 126
(81 6]
[1079] Porque, na severidade desses tempos heróicos, todo o assassínio de um cidadão (quando as cidades eram compostas apenas por heróis, como acima plenamente se demonstrou) era considerado como uma hostilidade praticada contra a pátria, que é precisamente o significado de «perduellio»; e cada um desses assassinatos era denominado «parricidium», porque era praticado na pessoa de um pai, ou seja, de um nobre, tal como vimos acima que, nesses tempos, Roma estava dividida entre pais e plebe. 131 Por isso, desde Rómulo até Túlio Hostílio, não existiu qualquer acusação de um nobre assassinado, porque os nobres deviam estar atentos a não cometer tais ofensas, praticando entre eles os duelos, sobre os quais acima se reflectiu; 132 e, porque, no caso de Horácio, não houve quem vingasse privadamente pelo duelo o assassínio de Horácia, foi pela primeira vez ordenado por Túlio Hostílio um juízo. -133 Por outro lado, os assassínios dos plebeus ou eram praticados pelos seus próprios senhores, e ninguém os podia acusar, ou eram praticados por outros e, como servos. de outrém, o senhor era ressarcido pelo dano, 134 como é costume ainda na Polónia, Lituânia, Suécia, Dinamarca, Noruega. 135 Mas os intérpretes eruditos do direito romano não viram esta dificuldade, porque
131 Isto é: se perduellio era todo o crime de lesa pátria, ou seja, contra a res patrum (parágrafo 584) , quem assassinava um cidadão, o que é o m esmo que dizer um daqueles palres, que, nas origens, eram os únicos cidadãos de Roma (parágrafo 597), cometia um delito contra a res patrum: pelo que o «parricidium», que era, originariamente, o .assassínio não do próprio pai, mas de um pater, ou patrício, coincidia com a «perduellio>>. 132 Cfr. o parágrafo 1074. 133 Tudo isto é, naturalmente, uma mera hipótese de Vico. 134 Isto refere-se exclusivamente aos primeiríssimos tempos de Roma, durante os quais, segundo Vico, não teriam existido propriamente verdadeiros plebeus, mas simplesmente fâmulos, sujeitos ao ius vitae et necis do senhor (parágrafos 521 e seg.). 135 Cfr. B oDIN, p. 60 1 64.
[817]
repousaram sobre a vã opinião da inocência do século de oiro, 136 tal como os políticos, pela mesma razão, repousaram sobre aquele dito de Aristóteles: ue, nas antigas repúblicas, não existiam leis acerca dos agravos e ofensas privados; 137 pelo que Tácito, 138 Salústio 139 e outros muito perspicazes autores, quando se referem às origens das repúblicas e das leis, contam, acerca do primeiro estado anterior às cidades, que os homens, inicialmente, levaram uma vida como tantos Adãos no estado da inocência. J'vlas, depois de entrarem nas cidades aqueles «homines» dos quais se admira Hotmann 140 e dos quais procede o direito natural das gentes que Ulpiano denomina «humanarum», 141 daí em diante o assassínio de qualquer homem foi denominado «homicidium». 142 [1080] Ora, nesses referidos parlamentos devem-se ter discutido causas feudais acerca [d]os direitos, ou sucessões, ou devoluções dos feudos por razões de felonia ou de caducidade; causas essas que, confirmadas várias vezes por tais juízos, 143 constituíram as leis feudais consuetudinárias, que são as mais antigas de todas as outras da Europa, e que nos atestam que o direito natural das gentes nasceu com tais costumes humanos dos feudos , como foi acima plenamente provado. 144 136
Cfr. o parágrafo 547. Cfr. o parágrafo 269. 138 Arm., III, 26. 139 Cat. , 2. loW Cfr. o parigrafo 437 . 141 Cfr. o parigrafo 569. 142 No sentido de que, com a concessão dos direitos civis e políticos à plebe, os antigos fàmulos, ou homines, tornaram-se também eles cives (parágrafo 599): razão pela qual o assassinar wn lromo foi considerado o mesmo que assassinar um pater, com a consequência de que o antigo •pa"icidium» passou a ser denominado •homicidium». 143 Os juízos feudais celebrados pelas cortes judiciárias armadas (parágrafo 1078), análogas ao parlamento originário de Paris. 144 Cfr. os parágrafos 599 e seg. 137
(818]
[1081] Finahnente, como da sentença, com que tinha sido condenado Horácio, o rei Túlio permitiu ao réu a apelação ao povo, que então era composto apenas por nobres, como acima foi demonstrado, 145 porque perante um senado reinante os réus não têm outro remédio senão o recurso ao próprio senado; assim, e não de outro modo, devem ter feito os nobres dos tempos bárbaros regressados, queixando-se a esses reis nos seus parlamentos, como por exemplo aos reis de França, que primeiramente foram os seus chefes. 146 [1082] Parlamentos heróicos dos quais conserva uma grande vestígio o Sacro Conselho napolitano, 147 a cujo presidente se dá o título de «Sagrada Majestade Reah>, 148 os conselheiros são denominados «milites» 149 e exercem ali a função de comissários (porque, nos tempos bárbaros segundos, 150 apenas os nobres eram soldados, e os plebeus serviam-nos nas guerras, como desde os tempos bárbaros primeiros. observamos em Homero e na história romana antiga), 151 e das sentenças dele não existe apelação para outro juiz, mas somente o recurso ao mesmo tribunal. 152 [1083] De todas estas coisas aqui enumeradas se deve concluir que, por todo o lado, existiram reinos, não diremos 145
Cfr. o parágrafo SOO e 1078. Adaptação ou defeituoso entendimento de um passo de BODIN, p. 233 1 253. 147 Instituído em 1442 por Monso I de Aragão e substituído em 1808 pela Corte di Cassazione [Supremo Tribunal de Justiça). 148 M ais exactamente : as súplicas ap rese ntadas àquele Conselho supunham-se dirigidas ao rei e, por isso, era-lhes anteposta a fórmula •Sacrae R egiae Maiestati•. 149 Em vez disso, «smatoreso. 150 N a Idade Média. 15 1 Cfr. os parágrafos 425 , 558, 559, etc. 152 Cfr. NlCCOLÓ T OPPI, De origir1e tribrmalium rwnc in Castro Capuano fidelissimae civitatis Neapolis existentium , II, (N ápoles, 1659), p. 22. 146
[819]
de Estado, mas de governo aristocráticos; 153 como ainda agora no frio Setentrião o é a Polónia (como, há cento e cinquenta anos, o eram a Suécia e a Dinamarca) , 154 que, com o tempo, se não impedirem o seu curso natural razões extraordinárias, chegará a ser uma monarquia perfeitíssima. [1084] O que é tão verdadeiro, que Bodin chega a dizer sobre o seu reino de França que foi, não já de governo (como dizemos nós), mas de Estado aristocrático, durante as duas linhas merovíngia e carolíngia. 155 Ora, aqui, perguntamos a Bodin: - Como é que o reino de França se tornou, como é agora, perfeitamente monárquico? Talvez por urna qualquer lei régia, pela _ual os paladinos de França se despojaram do seu poder e o conferiram aos reis da linha capetíngia? - Se ele recorre à fabula da lei régi imaginada por Triboniano, 156 pela qual o povo romano se despojou do seu livre império soberano e o outorgou a Octávio Augusto, para a reconhecer como uma fabula, basta ler as primeiras páginas dos Anais de Tácito, onde narra as últimas coisas de Augusto, com as quais legitima na pessoa dele ter iniciado a monarquia dos Romanos, que todas as nações sentiram ter começado com Augusto.157
153
Cfr. o parágrafo 663. Em vez di.•so, o reino da Suécia tinha-se transformado de electivo em hereditário, eles e 1544, diferentemente da Dinamarca, tornada monarquia hereditária somente em 1660. 155 Em relação aos Merovíngios, ODtN afirma precisamente o oposto; e, quanto aos Caro • gios, mais não escreve senão que os filhos de Pepino, o Breve, se fizeram eleger pela nobreza simplesmente para «claurre la bouche à ceux qui restoyent de la maison de Merovée» (op. cit., texto francês, pp. 983 e seg., e cfr. 266 seg.). 156 Cfr. os parágrafos 1007-1008 e 1455-1456. 157 Pelo contrário, Boo1N (texto francês, pp. 986 e seg.), longe de recorrer à hipótese de urna cessação d so erania feita pelo povo de França aos reis cristianíssimos, insiste e torna a insistir no princípio de que esses 154
[820]
- Talvez porque a França foi conquistada por algum dos Capetos pela força das armas? - Mas de tal infelicidade a mantêm distante todas as histórias. Portanto, Bodin, e com ele todos os outros políticos e todos os jurisconsultos, que escreveram de iure publico, devem reconhecer esta eterna lei régia natural, 158 pela qual o poder livre de um Estado, porque livre, deve realizar-se: de modo que, tanto quanto o afrouxem os optimates, outro tanto o devem fortalecer os povos, até que se tornem livres; tanto quanto o afrouxem os povos livres, outro ·tanto o devem fortalecer os reis, até que se tornem monarcas. Pelo. que, como aquele dos filósofos (ou seja, dos teólogos morais) e do direito, assim este das gentes é direito natural da utilidade e da força; que, como dizem os jurisconsultos, «usu exigente humanisque necessitatibus expostulantibus», é praticado pelas nações. 159 [1085] De tantas, tão belas e tão elegantes expressões da jurisprudência romana antiga, com as quais os feudalistas eruditos mitigam, de facto, e podem mitigar ainda mais a barbárie da doutrina feudal (expressões sobre as quais se demonstrou aqui concordarem as ideias com suprema propriedade), 160 compreenda Oldendorp (e todos os demais com ele) se o direito feucW nasceu das faúlhas do incêndio ateado pelos bárbaros ao direito romano; 16 1 pois o direito romano nasceu das faúlhas dos recebiam o seu ceptro «ny du pape, ny de l'archevesque de Rheims, ny du peuple, ains de Dieu seu/•. 158 Aquela do curso histórico, pelo qual um Estado, depois de ter passado da ar istocracia à democracia, é conduzido inelutavelmente à monarquia (parágrafo 1008). 159 •Exigindo-o o uso e pedindo-o as necessidades humanas» . Cfr. lstituz ioni g iustiniauee, I, 2, 2, a que Vico acrescenta a sua palavra «expostu-
lantibus» . 160
Cfr. os parágrafos 1057 e seg. Cfr. J. Ü LDENDORP, A ctionum forensia prog ymr1asmata (Colónia, 1544), p. 845, onde se diz outra coisa. 161
[821]
feudos , praticados pela primeira barbárie do Lácio, 162 com base nos quais nasceram todas as repúblicas no mundo. 163 O que, tal como numa reflexão particular acima (quando reflectimos sobre a Política poética das primeiras) 164 se demonstrou, 165 assim neste livro (conforme tínhamos prometido demonstrar, na Ideia da obra) 166 se observou que se encontram na natureza eterna dos feudos as origens dos novos reinos da Europa. (1086) Mas, finalmente, com os Estudos abertos na Universidade de Itália, ensinando-se as leis romanas compreendidas nos livros de Justiniano,167 que estão concebidas com base no direito natural das gentes humanas, as mentes, já mais esclarecidas e tornadas mais inteligentes, dedicaram-se a cultivar a jurisprudência da equidade natural, que iguala os ignóbeis e os nobres em direito civil, corr_o são iguais na natureza humana. E precisamente como, desde que Tibério Coruncânio começou a ensinar publicamente as leis, em Roma,168 começou o arcano a escapar das mãos dos nobres 169 e, a pouco e pouco, enfraqueceu-se o poder destes; assim sucedeu aos nobres dos reinos da Europa, que se tinham regido por governos aris ocráticos, e assim proveio às repúblicas livres 170 e às perfeitíssimas monarquias.17 1 162 Existentes, desde as primeiras origens de Roma, nas clientelas de Rómulo (parágrafos 110, 1057, etc.) . 163 Cfr. o parigrafo 599. "'' «Primeiras» refere-se a «repúblicas>>, no significado de «Estados•: portanto, «dos primeiros Estados surgidos no mundo». 165 Cfr. os pa.-ágrafos 599 e seg. 166 Cfr. o parigrafo 25. 167 Cfr. o par.ígrafo 1002. 168 No sentido de que ele foi o prim iro pontífice máximo plebeu (cfr. o parágrafo 113). · 169 Cfr. o parágrafo 999. 170 Alusão às Províncias Unidas da Holanda e aos Cantões suíços. 17 1 Alusão às monarquias unitárias e absolutas formadas, na Europa, entre os séculos XV e XVI e, de modo particular, à França (cfr. o parágrafo 1061).
[822]
[1087] Formas de Estado essas que, porque comportam ambas governos humanos, podem consentaneamente intercambiar-se urna com a outra; mas referir-se a Estados aristocráticos é quase impossível em natureza civil. Tanto que Díon siracusano, embora da casa real, e apesar de ter expulso um monstro dos príncipes, como foi Dionísio, tirano de Siracusa, e de ser tão adornado de belas virtudes civis que o tornaram digno da amizade do divino Platão, por ter tentado reorganizar o Estado aristocrático, foi barbaramente assassinado; 172 e os pitagóricos (isto é, como acima explicámos, os nobres da Magna Grécia) , pela mesma tentativa, foram todos feitos em pedaços, e uns poucos, que e tinham refugiado em lugares fortificados , foram queimados vivos pela multidão. 173 Porque os homens plebeus, uma vez que reconhecem serem de natureza igual aos nobres, naturalmente não suportam não lhes serem igualizados em direito civil; o que conseguem, ou nas repúblicas livres, ou sob o governo das monarquias. Daí que, na presente humanidade das nações, as repúblicas aristocráticas, das quais nos quedaram pouquíssimas, 174 mantenham a multidão no cumprimento do dever e, ao mesmo tempo, contente com mil solícitos cuidados, habilidades e sábias disposições. 175
172 Vico bebe segu ramente das biografias de Díon escritas por C RNÉLIO N EPOTE e por PurrARCO. Cfr. também DIODORO, XVI, 20; também P LATÃO, Cartas, passim . 173 Cfr. o parágrafo 427. 174 Cfr. os parágrafos 10 18 e 1094. 175 Resumo de Bo 01 , texto francês, p. 955.
[823]
[CAPÍTULO TERCEIRO)
DESCRIÇÃO DO MUNDO ANTIGO E MODERNO DAS NAÇÕES OBSERVADA CONFORME O DESENHO DOS PRINCÍPIOS DESTA CIÊNCIA [1088) Este curso das coisas humanas civis não foi seguido por Cartago, nem Cápua, nem Numância, as três cidades de que Roma temeu o império sobre o mundo: porque os Cartagineses foram dotados com a nativa acuidade africana, 1 que aguçaram mais com os comércios marítimos; os Capuanos foram dotados com a brandura do céu e com a abundância da Campânia feliz; 2 e, finalmente, os Numantinos, porque no primeiro florescer do seu heroísmo foram oprimidos pelo poder romano, comandado por Cipião, o .Africano, vencedor de Cartago e apoiado pelas forças do mundo. 3 Mas os Romanos, sem serem dotados de nenhuma destas coisas, caminharam com passos justos, fazendo-se regular pela providência através da sabedoria vulgar, e através de todas as três formas dos Estados civis, 4 segundo a sua ordem natural, que com tantas provas nestes livros foi demonstrada, mantiveram-se em cada uma delas até que, naturalmente, às primeiras formas sucedessem
1
2 3 4
Cfr. o parágrafo 971. Cfr. o parágrafo 769. Cfr. o parágrafo 971. Aristocracia, democracia, monarquia.
[825]
as segundas; e custodiaram a aristocracia até às leis Publilia e Petélia, 5 custodiaram a liberdade popular até aos tempos de Augusto, 6 custo:liaram a monarquia até que puderam humanamente resistir as causas internas e externas que destroem tal forma de Estados. 7 [1089) Hoje, uma completa humanidade parece ter-se espalhado por todas as nações, urna vez que poucos grandes monarcas regem este mundo de povos; e, se existem ainda bárbaros, a razão é porque as suas monarquias permaneceram com base numa sabedoria vulgar de · religiões fantásticas e altivas, ao conjugar-se em algumas a natureza menos justa das nações a elas sujeitas. 8 [1090) E, começando pelo frio Setentrião, o czar de Moscovo, apesar de cristão, senhoreia homens de mentes preguiçosas.9 O Cnez ou Cão da Tartária domina gente mole, quanto o foram os antigos Séricos, que constituíam a maior parte do seu grwde império, que agora ele uniu ao da China. 10 O negus da Etiópia e os poderosos reis de Éfeso e Marrocos reinam sobre povos demasiado débeis e parcos. 11 5
Cfr. os parágrafos 104-115 . Cfr. os parágrafos 1106 1108. 7 Cfr. os parágrafos 1105 e 1106. 8 Interprete-se: o clima, concorrendo para tornar os habitantes daquelas regiões de índole menos equilibrada, ou seja, ou preguiçosa, ou mole, ou débil (parágrafo 1090), foi causa, para esses, de um «curso>> menos perfeito. 9 Razão pela :]Ual, na Rússia (e, analogamente, na Tartária e na Etiópia, Fez e M arrocos) teria persistido uma regim e feudal heróico ou sem.ibárbaro. 10 Imprecisas reminiscências de dois factos bem distintos: que, em , 1640, o trono chinês tinha sido ocupado por urna dinastia tártara; e que, precisamente no século XVIII, tinha sido constatado que o Cataio, longe de terem feito parte da Tartária, conform acreditavam os velhos geógrafos, era constituído pelas sete províncias setencrionais da China, correspondentes à antiga Sérica, acerca de cuj os habitantes cfr. P LÍNIO, Na t. hist., VI, 20, 2. 11 Cfr. Bomr-·, texto francês, pp. 276 e 487. 6
[826]
[1091] M as, no meio da zona temperada, onde nascem homens de naturezas harmoniosas, começando desde o mais longínquo Oriente, o imperador do Japão celebra ali uma humanidade 12 semelhante à romana 13 nos tempos das guerras cartaginesas, de que imita a ferocidade nas armas14 e, como observam doutos viajantes, há na língua um ar semelhante à latina; 15 mas, devido a uma religião fantástica , assaz terrível e orgulhosa de deuses horríveis, todos carregados de armas infestas, 16 conserva muito da natureza heróica. Porque os padres missionários que ali foram, referem que a maior dificuldade que encontraram para converter aquelas gentes à religião cristã é que não se podem persuadir os nobres de que os plebeus têm a mesma natureza humana que eles possuem. 17 Aquele dos Chineses, porque reina por uma religião pacífica e cultiva as letras, é humarússimo. 18 O outro das Índias19 é bastante humano e exercita-se sobretudo nas artes da paz. 20 O persa e o turco misturaram à moleza da Ásia, por eles dominada, a rústica doutrina das suas religiões; e assim, particularmente os
12
Isto é, uma civilização dos tempos humanos. Cfr. a Hístoíre de l'établíssemerrt, des progrés et de la décadence du christiarr isme dam l'empire d11 ]apon (Rouen, 1715), I, 11 , do jesuíta PtER.R.E FRANÇOIS C HARLEvotx de São Quintino (1682-1761) . 14 Cfr., entre o utras obras de missionár ios, a primeira parte da Ásia do padre D ANtELLO B ARTOLI (1608-1685) , edição de Roma, 1667, p. 129; também a Histoire de l'église du j apo11 , do o utro jesuíta j EAN CRASSET, de Dieppe (1618-1692), 2.' edição (Paris, 1715), I, 14- 18. 15 M á interpretação de um passo de C RASSET, I, 7. 16 R eminiscência confusa de BARTOLI, op. cit., p. 172. 17 Cfr. C RASSET, op. e loc. cit. 18 Cfr., entre o utros, T RtGAULT, op. cit., pp. 41 e seg. 19 O denominado Grão M ogol. 20 Precisam ente o contrá rio, a julgar por aquilo que, quase simultaneamente a Vi co (1732), esc revi a LA M AR.TINIERE, no Dictionnaire géographíque, ad v. Mogol. 13
(827)
Turcos, temperam o orgulho com a magnificência, com o fausto, com a liberalidade e com a gratidão. 21 [1092) M as, na Europa, onde por todo a parte se pratica a religião cristã (que ensina urna ideia de Deus infinitamente pura e perfeita e ordena a caridade para com todo o género humano) , existem grandes monarquias nos seus costumes humarússimos. Porque as situadas no frio Setentrião (como desde há cento e cinquenta anos foram a Suécia e a Dinamarca, assim. hoje igualmente a Polónia 22 e também a Inglaterra) ,23 muito embora ejam de Estados monárquicos, parecem governar-se aristocraticamente; mas, se o curso natural das coisas humanas civis não lhes for impedido por razões extraordinárias, chegarão a ser perfeitíssimas monarquias. 24 Apenas nesta parte do mundo, porque cultiva as ciências, existe um grande número de repúblicas populares que não se observam, de facto, nas outras três. Aliás, pelo retorno das mesmas utilidades e necessidades públicas, foi ali renovada a forma das repúblicas dos Etólios e Aqueus; e, tal como aquelas foram planeadas pelos Gregos pela necessidade de se protegerem do enorme poder dos Romanos, assim fizeram os Cantões suíços e as Províncias U nidas, ou seja, os Estados da Holanda, que a partir de várias cidades livres populares organizaram duas aristocracias, nas q ais estão unidas em liga perpétua, na paz e na guerra. E o corpo do império germânico é um sistema de muitas cidades livres e de príncipes soberanos, cujo chefe é o imperador, e que, nos assuntos que dizem respeito ao estado desse império, se governa aristocraticamente. 25 21
Eco provável de quanto sobre isso escreve B ODIN, texto francês, pp. 211 e 867. 22 Cfr. o parágrafo 1084. 23 Cfr. o parigrafo 1087. 24 Isto é, monarquias absolutas. 25 Cfr. BoDtN, texto francês, pp. 301 e 320 e seg.
[828]
[1093] E, aqui, deve observar-se que as potências soberanas, ao unirem-se em ligas, perpétua ou temporalmente, vêm a formar por si Estados aristocráticos, em que entram as ansiosas suspeitas próprias das aristocracias, como acima foi demonstrado. 26 De modo que, sendo esta 27 a última forma dos Estados civis (porque não se pode entender na natureza civil um Estado que fosse superior a essas referidas aristocracias), esta mesma forma deve ter sido a primeira, que com tantas provas demonstrámos nesta obra que foram aristocracias de pais, reis soberanos das suas famílias, unidos em ordens reinantes nas primeiras cidades. 28 Porque esta é a natureza dos príncipes: que desses primeiros começam e em outros últimos vão as coisas terminar. [1094] Agora, regressando ao nosso propósito, na Europa, hoje, não existem mais que cinco, a saber: Veneza, Génova, Lucca, em Itália; Ragusa , na Dalmácia; e Nuremberg, na Alemanha; e qu~se todas possuem breves fronteiras. 29 Mas, por . toda a parte, a Europa cristã resplandece de tanta humanidade, pois muito abunda de todos os bens que p~dem tornar feliz a vida. humana, não menos pelas comodidades do corpo que pelos ·prazeres tanto da mente como do ânimo. E tudo isto por força da religião cristã, que .ensina verdades tão sublimes, que se aprestaram ~ servi-la30 as mais doutas filosofias dos gentios, 3 1 e cultiva três línguas como suas: a mais antiga do
26
Cfr. os parágrafos 273 e 1023. A confederação. A este propósito é necessário acentuar fortemente o facto de, na CiJncia nova primeira , Vico ter m esmo almejado uma confederação compreendendo as «nações unidas como numa grande cidade do mundo•, isto é, como se diría hoje, «os Estados Unidos do mundo». 28 Cfr., por exemplo, o parágrafo 584. 29 Cfr. o parágrafo 1018. 30 Confirmá-la. 31 O platonismo e o aristotelismo: cfr. o parágrafo 40. 27
[829]
mundo, a hebraica; a mais delicada, a grega; a maior, que é a latina. De modo que, também para fins humanos, é a cristã a melhor de todas as religiões do mundo, porque une uma sabedoria ordenada com a reflectida, em virtude da mais excelsa doutrina dos filósofos e da mais culta erudição dos filólogos. [1095] Finalmente, atravessando o oceano, no novo mundo, os Americanos 32 corroborariam agora tal curso das coisas humanas, se não tivessem sido descobertos pelos europeus. [1096] Agora, com esse retor o das coisas humanas civis, que particularmente neste livro se reflectiram, reflita-se sobre os confrontos que, ao longo de toda esta obra, se deram num grande número de matérias em torno dos tempos primeiros e os últimos das nações antigas e modernas; e assim ficará completamente explicada a história, não já particular e de uma época das leis e dos factos dos Romanos e dos Gregos, mas (com base na identidade substancial de compreender e a diversidade dos seus modos de se explicar)33 ter-se-á a história ideal das leis eternas, sobre as quais transcorrem os factos de todas as nações, nos seus surgimentos, progressos, estados, decadências e fins ,34 se bem que acontecesse (o que é certamente falso) que, de tempos a tempos, da eternidade nasciam mundos infinitos. 35 Pelo que nós não podemos fazer outra coisa senão dar a esta obra o invejoso título de Ciência nova, porque seria defraudá-la demasiado injustamente do seu direito e razão, que possuía com base num direito universal como o é aquele que gira em torno da natureza co um das nações, por aquela
32
N aturalmente, os peles-vermelhas indígenas. Tendo presente que as diversas nações exprimem os mesmos conceitos em línguas diversos e, portanto, de modos diversos. 34 Cfr. especialmente os parágrafos 349 e 393. 35 Cfr. o pari.grafo 348. 33
[830]
propriedade que possui toda a c1encia perfeita na sua ideia, e que foi explicitada por Séneca 36 com aquela vasta expressão: «Pusilla res hic mundus est, nisi id, quod quaerit, omnis mundus habeat>>. 37
36
Nat . quaest ., VII, 31, 2: passo que Vico, ao citá-lo de memória, refaz bastante. 37 «Pequeníssima coisa é este mundo, se por acaso esse todo não tiver aquilo que procura», advertindo que «omnis mundus», nos tempos de Vico, costumava ser interpretado como «homines om11ium aetatum et saewlorum» («homens de qualquer tempo»). Cfr. Luc u ANNAEI SENECAE, Opera a lu TO L! PSIO emet1data et scholiis illustrata, edição de Antuérpia, 1652, p. 811, nota 212.
[831]
CoNCLUSÃO DA OBRA
SOBRE UMA ETERNA REPÚBLICA NATURAL, ÓPTIMA EM CADA UMA DAS SUAS ESPÉCIES, ORDENADA PELA DIVINA PROVIDÊNCIA~ [1097] Concluamos, portanto, esta obra com Platão/ que estabelece uma quarta espécie de república, na qual os homens honestos e de bem seriam os senhores supremos: que seria a verdadeira aristocracia natural. Essa república, tal como a entendeu Platão, conduziu assim a providência desde os primeiros começos das nações, ordenando que os homens de gigantescas estaturas, mais fortes, que deviam divagar pelos cimos dos montes, como fazem as feras que são de natureza mais forte, 3 eles, aos primeiros raios após o dilúvio universal, prostrando-se por si mesmos dentro das grutas dos montes, submeteram-se a uma força superior, que imaginaram Júpiter e, todos eles estupefacção, tanto quanto eram todos orgulho e altivez, humilharam-se a uma divindade: 4 pois, nesta ordem das coisas
1 Para todo este capítulo conclusivo deveremos ter presentes os parágrafos 342 e 629-633. 2 Vico, ainda que partindo, ou iludindo-se de partir do Estado ideal eterno almejado por Platão, e propondo-se também a não introduzir retoques nesta concepção abstracta, acaba, em vez disso, por transformá-la de abstracta em concreta, de contemplação ou sonho em realidade, o que significa identificar a dita «respublica universa• no mesmo curso histórico em todas as suas fases, ou seja, na história efectiva da humanidade. 3 Cfr. os parágrafos 369-373. 4 Cfr. os parágrafos 377-379.
[833]
humanas, não se pode entender que tenha sido usado outro conselho pela providência divina para os deter do seu errar bestial dentro da grande selva da terra, a fim de introduzir a ordem das coisas humanas civis. [1098] Porque, ali, formou-se um estado de repúblicas, por assim dizer, monásticas, ou seja, de soberanos solitários, sob o governo de um Óptimo Máximo, que eles mesmos se imaginaram e se acreditaram ao relampejar daqueles raios, entre os quais lhes refulgiu esta verdadeira luz de Deus: - pois ele governa os homens; - donde, depois, imaginaram que todas as utilidades humanas que lhes foram subministradas e todas as ajudas levadas às suas necessidades humanas eram deuses e, como tais, os temeram e reverenciaram. Portanto, entre fortes freios de espantosas superstições e pungentíssimos estímulos de libido bestial (que devem ter sido ambos, em tais homens, violentíssimos), porque sentiam que o aspecto do céu lhes era teróvel e, por isso, lhes impedia a prática do apetite carnal, eles devem ter detido as energias do movimento corpóreo da libido; e assim, começando a usar a liberdade humana (que é a de refrear os movimentos da concupiscência e dar-lhes outra direcção que, não provindo do corpo, do qual provém a consupiscência, deve ser da mente e, portanto, próprio do homem), chegaram a isto: que, apoderando-se das mulheres à força, naturalmente relutantes e esquivas, arrastaram-nas para dentro das suas grutas e, para as usarem, retiveram-nas ali dentro detidas na perpétua companhia das suas vidas; e, assim, com os primeiros concubinatos humanos, isto é, púdicos e religi sos, deram irúcio aos matrimónios, pelos quais com mulheres certas fizeram filhos certos e tornaram-se pais certos; e, assim., fundaram as famílias, que governaram com donúnios familiares ciclópicos sobre as suas mulheres e sobre os seus filhos , próprios de naturezas assim ferozes e orgulhosas, a fim de que, depois, ao surgirem as cidades, os homens se [834]
encontrassem dispostos para temer os impérios civis. 5 Assim, ordenou a providência certas repúblicas económicas de forma monárquica 6 sob o governo dos pais (que, naquele estado, eram príncipes) , os melhores por sexo, por idade e por virtude; os quais, no estado que se deve denominar «de natureza» (que foi o mesmo que o estado das fanúlias), devem ter formado as primeiras ordens naturais, tal como aqueles que eram pios, castos e fortes, que, fixados nas suas terras, para se defenderem e às suas fanúlias, não podendo mais viver fugindo (como tinham feito anteriormente, no seu vaguear ferino) , devem ter morto feras, que as infestavam e, para se sustentarem e às suas famílias (não mais vagueando para encontrar alimento), domesticado as terras e nelas semeado o trigo; e tudo isto para salvação do nascente género humano. [1099] No princípio de longa era, homens ímpios - expulsos pela força dos próprios males, que lhes causava a infame comunhão das coisas e das mulheres, na qual tinham ficado dispersos pelas planuras e pelos vales em grande número -, que não temiam os deuses; impúdicos, que praticavam os desavergonhados actos carnais animais; nefandos, que frequentemente os praticavam com as mães e com as filhas; débeis, errantes e solitários, perpetuamente perseguidos por violentos robustos, devido às brigas nascidas por essa infame comunhão, correram a proteger-se nos refiígios dos pais; e estes, recebendo-os sob a sua protecção, começaram a ampliar com as clientelas os reinos familiares com base nestes fâmulos . E, assim, desenvolveram repúblicas com base em ordens naturalmente melhores , graças a virtudes certamente heróicas; como a piedade, pois adoravam a divindade, se bem que, devido às suas poucas
5
Sobre tudo isto, cfr. os parágrafos 502-519 e 520-552. Ou seja: governos familiares monárquicos; com o que se alude ao regime por famílias isoladas, ou patriarcado. 6
[835]
luzes, multiplicada e dividida por eles nos deuses, e deuses formados segundo as suas várias compreensões7 (como se deduz e é confirmado em Diodoro Sículo e, mais claramente, em Eusébio, nos livros De praeparatione evangelica, 8 e em São Cirilo Alexandrino, nos livros Contro Giuliano apostata9 ); e, por essa piedade, adornados de prudência, pelo que se aconselhavam com os auspícios dos deuses; de temperança, pois cada ·um praticava pudicamente com uma só mulher que, com os auspícios divinos, havia tomado como perpétua companhia da sua vida; de fortaleza, para matar feras, dominar terrenos; e de magnanimidade, para socorrerem os débeis e prestar ajuda aos que estão em perigo: que foram, por natureza, as repúblicas hercúleas, nas q ais os pios, sábios, castos, fortes e magnâniinos aniquilariam os soberbos e defenderiam os débeis, 10 que é a forma excelente dos governos civis. (11 00] Mas, finalmente, os pais das farrúlias, graças à religião e virtude dos seus maiores, engrandecendo-se à custa da fadiga dos seus cliente , abusando das leis da protecção, delas faziam áspero governo; e, tendo saído da ordem natural, que é a da justiça, os clientes amotinaram-se então contra eles. Mas, porque sem ordem (que é o mesmo que dizer sem Deus) a sociedade humana não pode reger-se, nem por um só momento, conduziu a providência naturalmente os pais das fanúlias a unirem-se, com os seus próximos, em ordens contra aqueles; e, para os
7 Isto é, moldados segundo os diversos modos de percepção daqueles mesmos que as fantasiaram, ou seja, à sua imagem e semelhança. Advirta-se, pois, que os pa::êntesis que se seguem são acrescentados nas provas por sugestão ou imposição do revisor eclesiástico canónico Giulio Torno. 8 II, 2, in Opera, edição Migne, III, 114-120, onde é transcrito um longo passo do disperso livro sexto de DIODORO. 9 Adversus Iulianum imperatorem, in Opera, edição Migne, IX, 860 e seg. 10 Eco do famoso verso virgiliano já citado no parágrafo 553.
[836]
pacificarem, permitiram-lhes, com a primeira lei agrarta que existiu no mundo, o donúnio bonitário dos campos, conservando eles para si o donúnio óptimo, ou seja, soberano familiar: donde nasceram as primeiras cidades, com base nas ordens reinantes dos nobres. 11 E, pela falta da ordem natural que, conforme então ao estado de natureza, tinha sido por espécie, por sexo, por idade, por virtude, a providência fez nascer a ordem civil, com o nascimento dessas cidades e, ante de tudo, aquilo que mais se aproximava da natureza: - pela nobreza da espécie hl.;lmana (pois, em tal estado de coisas, não se podia supor outra nobrez"a que não fosse a da geração humana com as mulheres tomadas com os auspícios divinos); - e assim, pelo seu ·heroísmo, os nobres reinariam sobre os plebeus (que não contraíam matrimónios com essa referida solenidade); e, terminados os reinos divinos (com as quais as famílias se tinham governado por meio dos auspícios divinos) , devendo esses heróis governar por força da forma dos próprios governos heróicos, a principal base de tais repúblicas seria a religião custodiada dentro dessas ordens heróicas e, por essa religião, seriam todos os direitos e todas as razões civis pertença apenas dos heróis. 12 Mas, porque tal nobreza se tinha tornado um dom da fortuna, fez surgir entre esses nobres a ordem dos próprios . pais de família que, pela idade, eram naturalmente mais dignos; e entre esses mesmos fez surgir como reis os mais animosos e ro~ustos, que devem ter feito de chefes aos demais e fixá-los em ordens para resistirem e atemorizarem os clientes amotinados contra eles.
11
Cfr. os parágrafos 583- 598. Terminando a ordem natural, pela qual os mais fortes (os gigantes pios) governavam os mais fracos (os famulos) sucedeu-lhe urna ordem civil, em virtude da qual os nobres, ou «patrícios», descendentes dos gigantes pios, passaram a governar os plebeus, descendentes, por sua vez, dos famulos. 12
[837]
[1101] Mas. com o passar dos anos, desenvolvendo-se cada vez mais as mentes humanas, as plebes dos povos mudaram finalmente de opinião em relação à vaidade de tal heroísmo, e entenderam serem eles de natureza igual à dos nobres; pelo que pretenderam eles também ter entrada nas ordens civis das cidades. Pelo que, ao cabo de algum tempo, devendo esses povos ser soberanos, a providênci permitiu que as plebes, durante muito tempo a seguir, competisse com: a nobreza na piedade e na re ·gião nas contendas heróicas, a fim de que a nobreza tivesse que transmitir aos plebeus os auspícios, para alcançarem que lhes fossem transmitidos todos os direitos civis públicos e privados que se consideravam subordinações; e, assim, o próp: io cuidado da piedade e o mesmo afecto da religião levaria os povos a serem soberanos nas cidades: no que o povo romano superou todos os outros do mundo e, por isso, foi o povo >enhor do mundo. 13 Deste modo, imiscuindo-se cada vez mais entre essas ordens civis a ordem natural, nasceram as repúblicas populares: nas quais, uma vez que, posto que se tiriha que reduzir tudo ou à sorte ou à balança, para que o acaso ou o destino não reinassem ali, a providência ordenou que o censo fosse a regra das honras; 14 e, assim, os industriosos e não os preguiçosos, os parcos e não os pródigos, os próvidos e não os ociosos, os magnânimos e não os avarentos de coração e, num a palavra, os ricos com alguma virtude ou com alguma imagem de virtude e não os pobres com muitos e desavergonhados vícios, seriam considerados os óptimos para o governo. De repúblicas assim referidas - os povos inteiros,
13
Cfr. os parágrafos 598, 646-661. Não o censo primitivo, «base das repúblicas aristocráticas» (parágrafo 107) , mas o modo como esse se encontra estabelecido nas repúblicas democráticas (parágrafos 622-623), ou seja, distribuidor de honras e encargos, segundo o património dos cidadãos. 14
[838]
que aspiram em comum à justiça, 15 ordenam leis justas, porque universalmente boas, que Aristóteles divinamente define como «vontade sem paixões>> e, assim, vontade de herói que ordena as paixões16 - surgiu a filosofia, 17 da forma dessas repúblicas despertada para formar o herói 18 e, para formá-lo, interessada pela verdade; ordenando assim a providência: que, em seguida, não conseguindo através dos sentidos da religião fazer mais (como se tinham feito até aí) acções virtuosas, a filosofia fizesse compreender as virtudes na sua ideia, reflexão por força da qual, se os homens não possuíssem virtude, ao menos que se envergonhassem dos vícios, pois ela somente pode conformar ao dever os povos adestrados nas más acções. E das filosofias permitiu que surgisse a eloquência, que a partir da mesma forma dessas repúblicas populares, donde se ordenam boas leis, fosse apaixonada pelo justo; a qual, a partir dessas ideias de virtude, inflamasse os povos para ordenarem as boas leis. Eloquência essa que resolutamente definimos como tendo surgido em Roma, nos tempos de Cipião Africano, em cuja época a sabedoria civil e o valor militar, que ambas, sobre as ruínas de Cartago, estabeleceram em Roma com felicidade o império do mundo, deviam trazer necessariamente, em seguida, uma eloquência robusta e sapientíssima. [1102] Mas - corrompendo-se também os Estados populares e, portanto, também as filosofias (que, caindo no cepticismo, puseram-se os doutos estultos a caluniar a verdade), e nascendo, assim, uma falsa eloquência, disposta igualmente para apoiar nas causas ambas as partes opostas - sucedeu que,
15
R esumo parcial do parágrafo 1038. Cfr. o parágrafo 1032. 17 Generalização de quanto é dito, no parágrafo 1043, sobre Atenas. 18 Das próprias formas das repúblicas democráticas induzidas para modelar o ideal do herói filósofo (parágrafo 1041). 16
(839]
usando mal a eloquência (como os tribunos da plebe na romana) 19 e não se contentando já os cidadãos com as riquezas para instituir a ordem, quiseram fuzer dela poder; [e], como austros furiosos o mar, agitando guerras civis nas suas repúblicas, conduziram-nas a uma desordem total e, assim, de uma perfeita liberdade, fizeram-nas cair debaixo de uma perfeita tirania (que é a pior de todas), que é a anarquia, ou seja, a desenfreada liberdade dos povos livres. 20 [1103] A esse grande mal-estar das cidades aplica a providência um destes três grandes remédios de acordo com esta ordem de coisas humanas civis. [1104] Porquanto dispõe, primeiro, que se encontre dentro desses -povos um que, como Augusto, ali surja e ali se estabeleça como monarca, que, urna vez que todas as ordens e todas as leis encontradas para a liberdade já nada valessem para a regular e a manter refreada, ele detenha em sua mão todas as ordens e todas as leis pela força das armas; e, pelo contrário, essa forma do estado monárquico constranja a vontade dos monarcas, naquele seu império infinito, dentro da ordem natural de manter contentes os povos e satisfeitos com a sua religião e com a sua liberdade. natu.ral/ 1 sem cuja satisfação universal e contentamento dos povos os Estados monárquicos não são duradouros nem seguros. 22
19
Naturalmer:te, durante a época das guerras civis. Generalização dos danos causad s a Roma pela plutocracia dos últimos tempos da república (parágrafos 819 e 1036). 21 Cfr. os parágrafos 1007-1008. 22 Com o qu!! Vico reafirma o seu ideal de monarquia, absoluta, se bem que iluminada (parágrafo 1086) e, enfim, da monarquia burguesa instaurada em Náfoles, em 1734, por Carlos de Bourbon. 20
[840)
[1105) Depois, se a providência não encontra esse referido remédio dentro, vai procurá-lo fora ; e, uma vez que tais povos, de tão corruptos, se tinham tornado j á antes escravos por natureza das suas paixões desenfreadas (do luxo, das comodidades, da avareza, da inveja, da soberba e do fausto) e, pelos prazeres da sua vida dissoluta, caíam em todos os vícios próprios de vilissimos escravos (como o serem mentirosos, ardilosos, caluniadores, ladrões, cobardes e fingidos) , tornam-se escravos por direito natural das gentes que surge de tal natureza das nações, e passem a estar sujeitas a nações melhores, que as tenham conquistado pelas armas, e por estas se conservem reduzidas a províncias. No que também refulgem duas grandes luzes da ordem natural: das quais, uma é que quem não pode governar-se por si, deve deixar-se governar por outros que possam; a outra, é que governem o mundo sempre aqueles que são por natureza melhores. [1106) Mas, se os povos apodrecem naquele último mal-estar civil, que nem dentro consentem um monarca nativo, nem chegam de fora nações melhores para os conquistar e os conservar, então a providência, a este seu mal extremo aplica este extremo remédio: que - uma vez que tais povos, à maneira dos animais, se tinham acostumado a não pensar em mais nada senão nos seus próprios interesses particulares, e cada um tinha atingido o cume das comodidades ou, para melhor dizer, do orgulho, à maneira de feras que, ao serem minimamente contrariadas, se ressentem e se enfurecem, e assim, na sua maior celebridade ou loucura dos corpos, 23 viveram como animais imanes numa suprema solidão de ânimos e de vontades, acabando por não conseguirem pôr-se duas de acordo, seguindo
23 No momento precisamente em que, tornados materialmente mais numerosos, tinham também crescido na sua fama .
[841]
cada uma das duas o seu próprio prazer ou capricho -, por tudo isto, com obstinadíssimas facções e desesperadas guerras civis, passam a fazer das cidades elvas e das selvas covis de homens; e, desse modo, ao longo de vários séculos de barbárie, vão-se enferrujar as grosseiras subtilezas dos engenhos maliciosos, que tinham feito deles feras mais imanes com a barbárie da reflexão do que tinham sido com a primeira barbárie do sentido. Porque esta descobria uma ferocidade generosa, da qual outros se podiam defender, ou salvar-se ou evitar; mas aquela, com uma ferocidade vil, com as lisonjas e os abraços, arma ciladas à vida e às fortunas dos seus confidentes e amigos. Por isso, os povos dessa referida malícia reflexiva, assim aparvalhados e estúpidos com este último remédio aplicado pela providência, nã são sensíveis já a abastanças, comodidades, prazeres e fausto, mas apenas às utilidades necessárias da vida; e, com o pouco número dos homens que por fim ficaram e com a abundância das coisas necessárias à vida, tornam-se naturalmente decorosos; e, pela regressada primeira simplicidade do primeiro mundo dos povos, serão religiosos, verdadeiros e leais; e, assim, regressará entre ele a piedade, a fé , a verdade, que são os fundamentos naturais da justiça e são graças e belezas da ordem eterna de Deus. 24 [1107] Se, ante esta simples e pura observação feita sobre as coisas de todo o género humano, a outra coisa não se tivesse chegado, a partir dos filósofos , historiadores, gramáticos e jurisconsultos, dir-se-ia certamente ser esta a grande cidade das nações fundada e governada por Deus.25 Porquanto são
Isto é: regressou-se, com ~ um retorno», ao errar ferino, do qual brotará uma nova civilização. 25 O Estado ideal almejado por Platão e interpretado por Vico no modo acima esclarecido, na primeira nota do parágrafo 1097. 24
[842]
elevados ao céu com eternos louvores de sábios legisladores os Licurgos, os Sólones, os decênviros, pois que se opinou, até agora, qu e se tinham fundado com as suas boas ordens e boas leis as três mais luminosas cidades que jamais tinham resplandecido com as mais belas e maiores virtudes civis, como foram Esparta, Atenas e Roma; as quais, porém, foram de curta duração e também de curta extensão em relação ao universo dos povos, organizado com tais ordens e fixado com tais leis, que das suas próprias corruptelas tome aquela forma de Estados, com as quais possa unicamente conservar-se por toda a parte e durar perpetuamente. E não devemos dizer ser isto conselho de uma sabedoria sobre-humana, a qual, sem a força de leis (que, pela sua força , nos disse acima Díon, nas Dignidades, serem semelhantes ao tirano) ,26 mas fazendo uso dos mesmos costumes dos homens (dos quais os hábitos são tão livres de toda a força quanto o é, para os homens, realizar a sua natureza, pelo que o mesmo Díon nos diz que os hábitos são semelhantes ao rei, porque ordenam com prazer) , divinamente ela a regula e a conduz? (1108] Porque também os homens fizeram este mundo de nações (que foi o primeiro princípio não questionado desta Ciência, depois que desesperámos de encontrá-la nos filósofos e nos filólogos); 27 mas este mundo, sem dúvida, nasceu de uma mente muito diferente e, por vezes, completamente contrária e sempre superior aos fins particulares a que esses homens se tinham proposto; estes fins restritos, convertidos em meios para servir fins mais amplos, foram sempre empregues para conservar a geração humana nesta terra .28 Uma vez que os homens
26
27 28
Cfr. o parágrafo 308. Cfr. o parágrafo 331. Cfr. o parágrafo 342.
[843]
pretendem usar a libido animal e espalhar os seus partos, estabelecem a castidade dos matrimónios, donde nascem as familias; 29 os pais pretendem exercitar imoderadamente os poderes paternos sobre os clientes, e são sujeitos aos poderes civis, donde nascem as cidades; 30 pretendem as ordens reinantes dos nobres abusar da liberdade senhorial sobre os plebeus, e passam à servidão das leis, que estabelecem a liberdade popular;31 pretendem os povos livres soltar-se do freio das suas leis, e passam a estar sujeitos aos monarcas; 32 pretendem os monarcas, com todos os vícios da devassidão que os assegura, envilecer os seus súbditos, e dispô-los para suportar a escravidão de nações mais fortes; 33 pretendem as nações dispersar-se a si mesmas, e vão salvar os seus restos nas solidões, donde, qual fénix, novamente renascem. 34 Quem fez tudo isto-foi também a mente, porque o fizeram os homens com inteligência; não foi destino, porque o fizeram por escolha; não acaso, porque com perenidade, fazendo sempre assim, produzem as mesmas coisas.
[1109) Portanto, Epicuro é, de facto, refutado, pois que atribui ao acaso, como os seus seguazes, Hobbes e Maquiavel; é, de facto, refutado Zenão, e com ele Espinosa, que atribuem ao destino: pelo contrário, de facto, é decidido a favor dos filósofos políticos, dos quais é príncipe o divino Platão, que estabelece que as coisas humanas são ordenadas pela providência. Pelo que tinha razão Cícero, que não podia reflectir com Ático sobre as leis, se este não deixasse de ser epicurista e não lhe concedia primeiro que a providência regulava as coisas
29
30 31 32
33
34
Cfr. Cfr. Cfr. Cfr. Cfr. Cfr.
os parágrafos SOS e S20 e seg. o parágrafo 584. o parágrafo S98. os parágrafos 1006-1008 e 1104. o parágrafo 1105. o parágrafo 1106.
[844]
humanas:35 a qual Pufendorf ignorou nas suas hipóteses, Selden supôs e Grócio dela prescindiu; 36 mas os jurisconsultos romanos estabeleceram-na como primeiro princípio do direito natural das gentes.37 Porque se demonstrou plenamente nesta obra que, com base na providência, tiveram os primeiros governos do mundo por sua forma completa a religião, com base na qual unicamente restituiu o estado das famílias; daí, passando aos governos civis heróicos, ou seja, aristocráticos, essa religião deve ter sido deles a principal e mais firme base; logo, embrenhando-se nos governos populares, a mesma religião serviu de meio aos povos para a eles chegarem; detendo-se, finalmente, nos governos monárquicos, essa religião deve ser o escudo dos príncipes. Pelo que, se os povos perdem a religião, nada mais lhes resta para viverem em sociedade; nem escudo para se defenderem, nem meio para se aconselharem, nem base em que se apoiem, nem forma pela qual eles estejam, de facto, no mundo. [1110] Portanto, Bayle que veja se podem existir, de facto, nações no mundo sem nenhuma cognição de DeusP8 E Políbio que veja quanto será verdadeiro o seu dito: que, se existissem no mundo filósofos, não haveria necessidade no mundo de religiões! 39 Que as religiões são o único motivo pelo qual os povos praticam obras virtuosas para os sentidos, que levam eficazmente os homens a fazê-las , e as máximas reflectidas pelos tilósofos sobre a virtude servem somente à boa eloquência para inflamar os sentidos para praticar os deveres da virtude. Com aquela diferença essencial entre a nossa cristã, que é
35 36 37
38 39
Cfr. Cfr. Cfr. Cfr. Cfr.
os parágrafos 130, 179 e 335. os parágrafos 392-397. os parágrafos 342, 569, 584. o parágrafo 334. o parágrafo 179.
[845]
verdadeira, e todas as outras dos outros, falsas: que, na nossa, a graça divina faz obrar virtuosamente 40 para um bem infinito e eterno, que não pode cair sob os sentidos e, consequentemente, pelo qual a mente leva os sentidos às acções virtuosas; ao contrário das falsas, que tendo proposto bens finitos e caducos, tanto nesta vida como na outra (onde esperam uma beatitude de prazeres corporais), os sentidos, por isso, devem arrastar a mente para praticar obras de virtude. [1111] Mas também a providência, pela ordem das coisas civis que são reflectidas nestes livros, se nos faz abertamente sentir naqueles três sentimentos: - um de admiração, outro de veneração que tiveram, até agora, todos os doutos em relação à sabedoria inatingível dos antigos e, o terceiro, do ardente desejo em que ferveram para procurá-la e para consegui-la;porque estas são, de facto, três I ze da sua divindade, que lhes despertou os três belíssimos sentimentos correctos anteriormente referidos, que, depois da presunção dos doutos, unida à presunção das nações (que nós acima propomos como primeira dignidade e que ao longo de todos estes livros são retomadas), 41 neles se depravaram; os quais são que todos os doutos admiram, veneram e desejam unir-se à sabedoria infinita de Deus. [1112] Em resumo, de tudo isto que nesta obra se reflectiu, deve-se finalmente concluir que esta Ciência traz indivisivelmente consigo o estudo da piedade, e que, se não se é piedoso, não se pode en verdade ser sábio.
40 41
Cfr. os parágrafos 125 e 127. Cfr. os parágrafos 125 e 127.
[846]
ÍNDICE
IDEIA DA OBRA
Explicação da pintura preposta no frontispício . .. .. .. . . .. . . . ..
3
Tábua cronológica ... ............... ..... .... ..... .......... .... ........ .. . . LIVRO PRIMEIRO- DO ESTABELECIMENTO DOS PRINCÍPIOS SE ÇÃO PRIMEIRA -ANOTAÇÕES À TÁBUA CRONOLÓGICA NAS QUAIS SE APRESENTA O APARATO DAS MATÉRIAS .... ... . .. .. ..... .. . . ... . . .. . ..... ... . . ....... .. . .. ... ... . .... . ... .
49
SE ÇÃO SEGUNDA- DOS ELEMEN TOS ··· ·· ··· ··o ··················
105
SECÇÃO T ERCEIRA - DOS PRINCÍPIOS .............................
171
SEC ÃO Q UARTA - DO MÉTODO .. . .... .. .. .. .. .... .... .. ... .. .. . .. .. .
179
LIVRO SEGUNDO -DA SABEDORIA POÉTICA PROLEGÓMENOS .. .... .... ............. ............ .... .... .. .. .. .... .
195
Introdução ......... ........... ..... ............ ........................... o.....
195
Capítulo primeiro - Da abedoria em geral .. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
199
Capírulo segundo - Proposições e divisões da sabedoria poética o.... o....... o............. .... o......... .. ... o... ..... .......... .. .....
203
Capítulo terceiro - Do dilúvio universal e dos gigantes...
205
SECÇÃO PRIMEIRA - METAFÍSICA POÉTICA ...... .. .. .. .... .. ..
211
Capírulo primeiro - Da metafísica poética, que nos dá a origem da poesia, da idolatria, da adivinhação e dos sacrifícios .. .... ......... ................. ..... ... ... ............ .............. ... ....... ..
211
(847]
Capítulo segundo - Corolário acerca dos aspectos principais desta Ciência ............................
223
SECÇÃO SEGUND - LÓGICA POÉTICA .......................... ...
235
Capítulo primeiro - Da lógica poética . . .. . . . . .. . .. . . . .. . . . . .. . . . .
235
Capítulo segundo - Corolários acerca dos tropos, monstros e transformações poéticas .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . . .
239
Capítulo terceiro - Corolários acerca do falar por caracteres poéticos das primeiras nações .. ................. ... ..... ...
247
Capítulo quarto - Corolários acerca das origens das línguas e das letras; e, dentro disto, das origens dos hieróglifos, das leis, dos nomes, das insígnias nobres, das medalhas, das moedas; e, portanto, da primeira língua e literatura do direito natural dos gentios . . .... . ... . ... ... ..... .
259
Capítulo quinto - Corolários acerca das origens da locução poécica, dos episódios, da volta, do número, do canto e do verso ........ ... .... .. ........ ...... ..... ...... ..... ..........
291
Capítulo sexto - Os outros corolários que no princípio foram propostos .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . . .. . .. . . ..
305
Capítulo sétimo - Últimos corolários acerca da lógica dos instruídos. ...... .... ..... ............................................ ........
321
00 • • • 00 • • 00 • • • • • • • •
00 • • • 0 0 . 0 0 . 00
SECÇÃO TER EIRA - MORAL POÉTICA.. ..........................
327
Capítulo único - Da moral poética, e aqui das origens das virtudes vulgares ensinadas pela religião através dos matrimónios . . .. . . . .. . . . .. . . .. . .. . . . . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . . . .. .
327
SECÇÃO
ECONOMIA POÉTICA ... .. ... . .... .. .... ...
345
Capítulo primeiro - Da economia poética, e aqui das famílias que primeiro foram de filhos ................. .. .... ..... ....
345
Capítulo segundo - Das famílias dos fàmulos antes das cidades, sem os quais, de facto, as cidades não podiam ter nascido . . . . .. . . . .. . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . .. . . .. . . ... . . . . .. . .. . . . .
381
Q uARTA -
[848)
Capítulo terceiro - Corolários acerca dos contratos que se estabelecem unicamente por consenso . . .. . .. . . .. . . .. . . .. . . . ..
403
Capítulo quarto - Cânone mitológico . ...... ... .. .... . .... ..... ..
407
SECÇÃO Q uiNTA- POLÍTICA POÉTICA.. ...................... .. .
409
Capítulo primeiro - Da política poética com a qual nasceram as primeiras repúblicas no mundo de forma aristocrática severíssima .. .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. ..
409
Capítulo segundo - Todas as repúblicas nasceram de certos princípios eternos dos feudos .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
431
Capítulo terceiro- Das origens do censo e do erário...........
451
Capítulo quarto - Das origens dos comícios romanos .. .... ....
457
Capítulo quinto - Corolário: que a divina providência é a ordenadora das repúblicas e, ao mesmo tempo, do direito natural das gentes .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ..
463
Capítulo sexto- Segue a política dos heróis .........................
471
Capítulo sétimo - ·Corolários acerca das coisas romanas antigas e particularmente do sonhado reino romano monárquico e da sonhada liberdade popular ordenada por Júnio Bruto ...... ............................... ................................
495
Capítulo oitavo - Corolário acerca do heroísmo dos primeiros povos.................................... .....................................
501
SECÇÃO SEXTA- HISTÓRIA POÉTICA ................ .. ....... .. ..
511
Capítulo único - Epílogos da história poética .. .. .. ... .. .. .. ..
511
SECÇÃO SÉTIMA - FÍSICA POÉTICA .... ..... ........... .... .. ... .....
517
Capítulo primeiro - Da tisica poética .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .
517
Capítulo segundo - D a física poética em torno do homem, ou seja, da natureza heróica...........................
521
Capítulo terceiro - Corolário: das sentenças heróicas .. ....
529
Capítulo quarto - Corolário: das descrições heróicas .. .. ..
531
[849]
Capítulo quinto - Corolário: dos costumes heróicos .......
533
SE ÇÃO OITAVA - COSMOGRAFIA POÉTICA..... .. ........ ..
535
Capítulo único - Da cosmografia poética ... ....................
535
SECÇÃO N ONA -ASTRONOMIA POÉTICA ....... .. ..... .......
549
Capítulo primeiro - Da astronomia poética .... ............... .
549
Capítulo segundo - Demonstração astronómica fisico-filológica da uniformidade dos princípio em todas as antigas nações gentias..................................... .. ......... ......
551
SE ÇÃO DÉCIMA - CRONOLOGIA POÉTICA ... .... ..... ......
555
Capítulo primeiro - Da cronologia poética ........... ..........
555
Capítulo segundo- Cânone cronológico para estabelecer os princípios da história universal, que devem preceder a monarquia de Nino, a partir da qual essa história universal começa .................... ....................................
561
SE ÇÃO DÉCIMA PRIMEIRA - GEOGRAFIA POÉTICA.. .... .
567
Capítulo primeiro - Da geografia poética ............ .... .......
567
Capítulo segundo - Corolário: da chegada de Eneias a Itália ........ ... ....................... .... .. ..... ...... ....... .................
583
Capítulo terceiro - Da denominação e descrição das cidades heróicas ................................................. ...............
587
CoN
LUSÃO .. ..... ...... .. .. . ... .. . ...... ......... . . ..... . ...... ... . ...... .... ... . . ..
593
LIVRO TERCEIRO - DA DESCOBERTA DO VERDADEIRO HOMERO SECÇÃO PRIMEIRA - BUSCA DO VERDADEIRO HOMERO 597 Introdução .. ...... .. ...... ....... ..... ..... ....... ..... .... ...... ..... ..........
[850)
597
Capítulo primeiro - Da sabedoria secreta que atribuíram a Homero ........ ..... ..... .. .. ... ..... ..... ... .. ... .... .. .. .. ... .. .... ... ..
599
Capítulo segundo - Da pátria de Homero .. .... .... ... ..... .. ..
605
Capítulo terceiro - Da idade de Homero ........................
607
Capítulo quarto - Da inatingível faculdade poética heróica de Homero ... .. ..... ... ....... .. .... ... ... .... ... .................
613
Capítulo quinto - Provas filosóficas para a descoberta do verdadeiro Homero ... ..... ... .. ... ...... .. ....... .... ........ ... .. ....
619
Capítulo sexto - Provas filológicas para a descoberta do verdadeiro Homero ..... ............................................ ...
631
SECÇÃO SEGUNDA - DESCOBERTA DO VERDADEIRO HOMERO. .. .. ... ... .... ..... .... .. ... ... ........... ... ...... ...... ... .... ....
643
Introdução ..... ... .. .... ....... ..... ...... ..... .... ....... ..... .. .... .. .. .. ... .. Capítulo primeiro - As inconveniências e inverosimilhanças do Homero em que se acreditou até agora tornam-se conveniências e necessidades no Homero aqui descoberto .. .. .. ... ......... ... .... .. ... .... .... .... ..... ..... .... .. Capítulo segundo - Comprova-se serem os poemas de Homero dois grandes tesouros do direito natural das gentes da Grécia ......................................................... Apêndice - História reflectida dos poetas dramáticos e líricos .... .... ...... ...... .... .. ... .... .. .... .. .. .. ... .. .... ... .. .. .. .... .. ... .
643
645
655 657
LIVRO Q uARTO - DO CURSO QUE FAZEM AS NAÇÕES Introdução ... ...... ......... .. .... .. ........ ... .. .... .. .... .. . .. ... .. .... ...... .
667
SECÇÃO PRIMEIRA - TRÊS ESPÉCIES DE NATUREZAS ........ ...... .... ... .. .... ....... .. ... ............. ... ... ......... .. .. .....
669
SECÇÃO SEGUNDA - TRÊS ESPÉCIES DE COSTUMES
671
SECÇÃO TER EIRA - TRÊS ESPÉCIES DE DIREITOS NATURAIS .... ... ... ........ ........ ........ ....... ... ........ .. .. .. ....
673
SECÇÃO Q uARTA - TRÊS ESPÉCIES DE GOVERNOS
675
(851]
SEcçÃo QuiN A- TRÊS ESPÉCIES DE LÍNGUAS
000000
677
SECÇÃO SEXT.a. -TRÊS ESPÉCIES DE CARACTERES
679
SEcçÃo SÉTuM - TRÊS ESPÉCIES DE JURISPRUDÊNCIAS o o
683
SECÇÃO OITAVA - TRÊS ESPÉCIES DE AUTORIDADES oooooooooooooooooooooooooooo ooooo oo ooooooooooooooo oooooooooooooooooooooooo o
685
SECÇÃO N oNO .. - TRÊS ESPÉCIES DE RAZÕES
689
00
0 00 0000 00
0 00000 0
000 0 00 0
000
0 00000 00 00 0 0000
0 0000 00 00 00 0000 0
00000
0000000000
Capítulo primeiro - Razão divina e razão de Estado
00 00 00
689
Capítulo segundo - Corolário: da sabedoria de Estado dos antigos romanos ooo ooo oooooooo ooo ooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
691
Capítulo terceiro - Corolári : história fundamental do direito romano
695
SECÇÃO DÉCIMA - TRÊS ESPÉCIES DE JUÍZOS
699
000000 0000000000 0000000000000000000000000000000 00000 0000 00 00
000000 0000
Capítulo primeiro - Primeira espécie: juízos divinos
0000000
699
Capítulo segundo - Corolário: sobre os duelos e sobre as represálias o oo oo o o
703
Capítulo terceiro - Segunda espécie: juízos ordinários
709
00 00
00 00 00 00 00
00 00
00 00 00 0000
00 00
00 00 00 00 00 00 00 00 00
00 00 00 00 00
Capítulo quarto - Terceira espécie: juízos humanos
0000
00 0000 000
715
SECÇÃO DÉCL'v1A PRIMEIRA -TRÊS SEITAS DOS TEMPOS OOOOooo ooooooooooOOoooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo
717
Capítulo único - Seitas dos tempos religiosos, obstinados e civis oooooooo oooo oooooo oooo oooooooooooooooooo oo ooooooooooooooooooooooooo
717
SE ÇÃO DÉCL'v1A SEGUNDA- OUTRAS PROVAS RETI-
RADAS DAS PROPRIEDADES DAS ARISTOCRACIAS HERÓICAS
721
Introdução ooooo ooo oooo oo ooo ooooooooooooooooo ooooooooOOo OOOooooo ooo ooooo oo ooo oo oo
721
Capítulo primeiro - Da custódia das fronteiras
723
00000000 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 000000 00 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0000 00 00
Capítulo segundo - Da custódia das ordens Capítulo terceiro - Da custódia das leis
00
00
00 00
00 00
00 00
o
00 00 00 00 00 00 00 00 00 00
00 00 00 00 0000 00 00 00 00 00 00
o
SECÇÃO DÉCIMA TER EIRA oo oo oo oo oo OO oooooo Oooo oooooooooooooooooo oo ooooo [852]
727 7 43 749
Capítulo primeiro - Outras provas tiradas do temperamento das repúblicas, formado pelos Estados das segundas com os governos das primeiras .... .. ..... .. .............. .. .
749
Capítulo segundo - De uma eterna lei régia natural, pela qual as nações procuram o repouso sob as monarquias
753
Capítulo terceiro - Confutação dos princípios da doutrina política feita sobre o sistema de Jean Bodin .. .. .. .. ....
757
SECÇÃO D ÉCIMA QUARTA - ÚLTIMAS PROVAS QUE CONFIRMAM ESSE CURSO DAS NAÇÕES ..... ..
765
Capítulo primeiro - Penas, guerras, ordens dos números .
765
Capítulo segundo - Corolário: o direito romano antigo foi um poema sério e a antiga jurisprudência foi uma poesia severa, na qual encontramos contidos os primeiros esboços da metafisica legal, e como, entre os Gregos, das leis nasceu a filosofia ... ... .. .... ........ ..... ...
771
LrVRo Q urNTo- DO RETORNO DAS COISAS HUMANAS NO RESSURGIMENTO DAS NAÇÕES Introdução .................... ..................................................
789
Capítulo primeiro - A história bárbara última esclarecida com o retorno da história bárbara primeira .... .......... ..
791
Capítulo segundo - Retorno que fazem as primeiras nações à natureza eterna dos feudos e, portanto, o retorno do direito romano antigo feito com o direito feudal
799
Capítulo terceiro - Descrição do mundo antigo e moderno das nações observada conforme o desenho dos princípios desta Ciência ............................................. .
825
CONCLUSÃO DA OBRA ... ...... .. ...... ... .. ...... .. .. .... ...... ..... .
833
Sobre uma eterna república natural, óptima em cada uma das suas espécies, ordenada pela divina providência .....
833
[853]
Esta 1.' edição da CI ÊNC IA N o vA de Giambattista Vico, foi impressa e brochada para a Fundação Calouste Gulbenkian na G.C . - Gráfica de Coimbra, Lda. A tiragem é de 2 000 exemplares Julho de 2005 Depósito Legal n. 0 229457 / 05
ISBN 972-31-1116-0