As veias do Sul continuam abertas: Debates sobre o imperialismo do nosso tempo (Coleção Sul Global) 9786599116810

Para onde quer que olhemos no Sul Global, encontramos situações que requerem explicações globais. A apropriação de bens

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Portuguese Pages 178 [172] Year 2020

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Table of contents :
Sumário
Uma caixa de ferramentas para fechar as nossas veias
Imperialismo na era da globalização
Exploração e superexploração na teoria do imperialismo
Capitalismo moribundo e competitivo
Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos
A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas diante da ascensão da China
Sobre os autores
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As veias do Sul continuam abertas: Debates sobre o imperialismo do nosso tempo (Coleção Sul Global)
 9786599116810

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EMILIANO LÓPEZ (ORG.) AS VEIAS DO SUL CONTINUAM ABERTAS Debates sobre o imperialismo do nosso tempo 1a edição Expressão Popular São Paulo – 2020

SUMÁRIO Uma caixa de ferramentas para fechar as nossas veias Imperialismo na era da globalização Exploração e superexploração na teoria do imperialismo Capitalismo moribundo e competitivo Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas diante da ascensão da China Sobre os autores

UMA CAIXA DE FERRAMENTAS PARA FECHAR AS NOSSAS VEIAS EMILIANO LÓPEZ “Nessas terras, não estamos assistindo à infância selvagem do capitalismo, mas sua decrepitude” As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano “Ali pernoitou a Cerca: de madrugada rastejou para o itararé por onde afunda a estrada de Huánuco. Dois montes intransponíveis vigiam o desfiladeiro: o avermelhado Pucamina e o enlutado Yantacaca, inacessíveis até para os pássaros. No quinto dia a Cerca derrotou os pássaros”. Bom dia para os defuntos, Manuel Scorza

O conceito de imperialismo tem má reputação. Sem dúvida, no mundo intelectual e acadêmico hegemônico, ele é tratado como um termo démodé, centralmente ideológico e com pouca capacidade explicativa sobre nossa realidade atual. Nesta “Era da Globalização”, não precisamos reeditar categorias de outros momentos históricos que nos levariam a velhas receitas para melhorar a vida de nossos povos, mas sim reconhecer o tempo em que vivemos e fazer prevalecer o realismo. Esta visão, mesmo quando motivada por nobres intenções, nos imobiliza e nos conduz a deixar-nos convencer de que este mundo desigual só pode ser transformado em sua dimensão molecular. No entanto, o fato de que boa parte do pensamento crítico tenha abandonado certas categorias a favor de explicações mais amigáveis em relação ao establishment acadêmico e político de nosso tempo faz parte do triunfo do modelo civilizatório ocidental e capitalista após a queda do Muro de Berlim. Para onde quer que olhemos no Sul Global, encontramos situações que requerem explicações globais. A apropriação de bens comuns na África e na América Latina, a expansão das fábricas têxteis em condições sub-humanas de trabalho na Ásia, o domínio da produção

dos países do Sul da Europa e Norte da África por empresas radicadas na Alemanha e na França; a dominação do Estado de Israel sobre a Palestina; a imposição da propriedade privada sobre espaços comunais, transformando-os em espaços para a acumulação de capital; as incontáveis intervenções militares no Oriente Médio; a imposição do American Way of Life através da indústria cultural estadunidense; isso não passa de expressões de que o capitalismo global é, como diz Samir Amin, um “sistema gerador de desigualdade entre países e regiões”. Essa desigualdade não é uma abstração, não é pura elucubração teórica: ela é vivida nos corpos dos oprimidos e oprimidas do Sul. É por isso que consideramos que a categoria mais adequada para entender essa desigualdade global é o imperialismo. Consideramos urgente voltar a dar conteúdo, atualizado para o nosso tempo e para as nossas lutas, a um conceito potente em termos explicativos e historicamente associado às lutas dos povos pela liberação. Imperialismo é tanto um conceito quanto uma categoria nativa dos nossos projetos de emancipação do Sul. A trajetória desse conceito teórico-político é amplamente difundida. Até o fim do século XIX, a Grã-Bretanha viveu seu período de expansão capitalista mais intenso. Após sofrer uma crise econômica de peso, o reimpulso de seu próprio capitalismo implicou uma nova onda de expansão global da civilização capitalista ocidental. Nesse caso, a novidade mais significativa em relação às práticas coloniais prévias foi que a expansão respondeu, sobretudo, às necessidades da acumulação de capital dos centros industriais da Europa. Como apontou Hobson, um liberal crítico das imposições do governo inglês ao resto do mundo, Todos os homens de negócios admitem que o crescimento dos poderes produtivos em seus países excede o crescimento do consumo, que se podem produzir mais bens do que os que podem ser vendidos com lucros, e que existe mais capital do que o que pode ser investido rentavelmente. Esta situação econômica é a que forma a raiz do Imperialismo.

Esta leitura motivou os pensadores marxistas como Lenin, Rosa Luxemburgo, Kautsky, entre outros, a prestar atenção a essa nova etapa que se abria no mundo. O trabalho de Lenin, Imperialismo, estágio superior do capitalismo, marcou sem dúvidas um antes e um depois na discussão sobre o imperialismo. Esse conceito não

apenas explicava a concentração de poder e de renda nos países do Norte, mas também o mecanismo de concentração e monopolização do capital, baseado na exportação de capital dos países imperialistas para as periferias do mundo, favorecida pelo desenvolvimento do capital financeiro e, ao mesmo tempo, se apropriando dos recursos provenientes do Sul para garantir as condições de produção do Norte. Em grande medida, podemos ver esses anos de expansão global do capital do Norte, em particular do inglês, como um emaranhado de capitalismo e colonialismo. De fato, boa parte da operação deste suposto processo civilizatório do Norte se baseou na liberalização econômica e na dependência política de um quarto do mundo. A Ásia, a África e o Oriente Médio foram divididos como propriedade de diferentes países imperialistas da Europa. Assim, um quarto do mundo foi distribuído em colônias às quais as corporações capitalistas transnacionais impuseram o novo dever ser. No caso da América Latina, o imperialismo tomou a forma de dependência econômica em um contexto de suposta independência política nacional. Como o apresentava Manuel Scorza em sua magnífica e angustiante história, o capital estrangeiro se instalou em nossas terras se apropriando da água, das montanhas e até mesmo da própria vida. Para além dessa expansão, o capital global entrou em uma nova e terrível fase de crise. Uma guerra sem precedentes até aquele momento, que destroçou os centros do imperialismo clássico, foi a expressão mais desumanizante desta nova fase de desenvolvimento da ordem mundial geradora de desigualdade. É nesse contexto que surge uma nova hegemonia global que termina de se consolidar após a Segunda Guerra Mundial: os Estados Unidos. Longe de tentar atiçar o conflito entre potências, os Estados Unidos conseguiram ser o melhor representante do capital estadunidense e do capital global por pelo menos 50 anos. Apostaram na reconstrução da Europa para alcançar mercados rentáveis para sua expansão industrial doméstica, viabilizaram negociações para impulsionar fluxos de investimentos produtivos nos países do Sul, exportaram seus padrões culturais de consumo pelo mundo, participaram abertamente nas operações militares

contra os projetos de esquerda de vários países e impuseram regimes ditatoriais em uma série de países do Sul. Como disse oportunamente o historiador Perry Anderson, os Estados Unidos basearam sua nova lógica imperial em uma combinação da força produtiva de sua economia, da sua capacidade de domínio militar e da sua capacidade hegemônica através da legitimidade que sua democracia e seu modelo cultural alcançaram. É, em boa medida, “uma luva de veludo que tem dentro uma mão de ferro”. Para além desse sucesso do imperialismo estadunidense, as resistências populares em todo o Sul global nos anos 1960, a Revolução Cubana e a derrota do império no Vietnã marcaram uma nova crise política dessa ordem desigualitária; ao mesmo tempo, se desenvolvia uma nova crise econômica global, talvez uma das mais significativas para explicar o mundo em que hoje vivemos. A crise da década de 1970 encontrou, novamente, uma saída no imperialismo revigorado. Neoliberalismo e imperialismo se associaram para dar lugar a um novo ciclo de imposições financeiras, produtivas e militares do Norte para o Sul. A nova (des)ordem global nascida dessa crise capitalista dos anos 1970 multiplicou as desigualdades previamente existentes e gerou uma tendência à financeirização e ao saqueio sem precedentes. Depois de declarar a “morte das ideologias” e o “fim da história” a favor de um novo mundo global livre, democrático e capitalista, o suposto novo século estadunidense está, novamente, em uma crise inegável. Mas essa crise não tem como contrapartida necessária as condições de maior dignidade para os povos do Sul. Ao contrário, a crise do imperialismo estadunidense acentua a barbárie: intervém militarmente de maneira direta no Oriente Médio, multiplica suas imposições financeiras, absorve as massas de capital do mundo e as converte em capital financeiro, desenvolve novos formatos de guerra híbrida contra os países que não querem ceder sua soberania, da Síria até a Venezuela. Este livro tenta, com diálogo e debate coletivo, construir uma nova leitura acerca do imperialismo de nosso tempo. É uma caixa de ferramentas para entender o tempo que nos cabe viver e renovar o nosso compromisso militante contra todas as formas de opressão. Compreender como opera hoje o imperialismo, através de que

mecanismo, delimitar a profundidade de sua crise e as possibilidades de hegemonias alternativas permite reeditar o compromisso com a liberação de nossos povos a partir do Sul Global. Permite pensar que, em boa medida, devemos estancar o sangramento causado pela espoliação dos nossos corpos, da nossa cultura, dos nossos bens comuns e do nosso trabalho. Permite reconstruir uma base histórica sobre a qual possamos ficar de pé, o que Che sintetizava dizendo que, para além dos desacordos táticos, “quanto ao grande objetivo estratégico, a destruição total do imperialismo por meio da luta, temos que ser intransigentes”. Incluímos aqui cinco capítulos que atravessam uma série de pontos de debate contra as leituras comemorativas da globalização neoliberal, contra o “não existe alternativa”. Colocam em dúvida o papel que os países imperialistas concedem às nossas economias do Sul como garantidoras de alimentos baratos, as novas (velhas) formas da exploração trabalhista, as características da competição entre capitais em escala global, a nova estratégia militar dos Estados Unidos no contexto de crise de seu projeto hegemônico e os pontos nodais para interpretar a sucessão hegemônica que vivemos como uma oportunidade, ao mesmo tempo que como um grande risco. Esperamos que estas linhas sejam uma contribuição para compreender a monstruosidade do inimigo, mas, ao mesmo tempo, que nos levem a aprimorar nossas ferramentas e fortalecer nossas trincheiras. Porque, definitivamente, por mais terrível que seja a forma de operar do inimigo, sempre lutaremos por nossos sonhos de justiça. Como nos dizia o poeta palestino Samih Al-Qassem em seu “Informe de uma bancarrota”, ainda que apagues teus fogos em meus olhos, ainda que me enchas de angústia, ainda que falsifiques minhas moedas, ou cortes pela raiz o sorriso dos meus filhos, ainda que levantes mil paredes, e enfie pregos em meus olhos humilhados, inimigo do homem, não haverá trégua e hei de lutar até o fim.

IMPERIALISMO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO1 UTSA PATNAIK E PRABHAT PATNAIK Introdução O capitalismo é, acima de tudo, um sistema baseado no uso do dinheiro no qual uma grande porção da riqueza é acumulada tanto na forma de dinheiro quanto na forma de ativos, especialmente os chamados ativos financeiros. Para que o sistema funcione, é essencial que o valor do dinheiro não se desvalorize continuamente frente às mercadorias; caso contrário, as pessoas evitariam o acúmulo de dinheiro, que deixaria de ser uma forma de riqueza e também um meio de circulação. O capitalismo garante a estabilidade do valor do dinheiro de diversas formas. Uma delas é a manutenção de um vasto exército industrial de reserva, não apenas nas metrópoles mas também no terceiro mundo. Esse exército de reserva “distante” também mantém baixos os salários locais e, consequentemente, os preços das matérias-primas lá produzidas, bem como mantém baixos os salários dos trabalhadores na metrópole que são ameaçados pelo desemprego devido à saída de capital para o terceiro mundo, caso insistam em salários mais elevados. No entanto, esses exércitos de reserva não são suficientes. Mesmo que não haja aumento autônomo nos preços das matérias-primas e dos salários em dinheiro devido à sua existência, os preços de algumas commodities escassas ainda passariam por um aumento de preços na medida em que a acumulação aumentaria a demanda por elas. A ameaça que isso representa para o valor do dinheiro também deve ser evitada, e isso é feito através da restrição da demanda por tais commodities fora do setor capitalista, através do estrangulamento do poder de compra em massa nessas localidades (por exemplo, através da imposição de uma “deflação de renda”).

Historicamente, dois instrumentos típicos dessa “deflação de renda” foram a pilhagem, sem qualquer quid pro quo, dos lucros produzidos no terceiro mundo (economistas indianos anticolonialistas chamaram isso de “drenagem de riqueza”), bem como a destruição da produção de menor escala através das importações de produtos da metrópole capitalista (o que os mesmos escritores chamaram de “desindustrialização”) que criou, originalmente, o exército de reserva “distante”. Todo esse arranjo abrangendo o mundo fora do capitalismo propriamente dito é o que constitui o “imperialismo”. Ele não termina com o colonialismo; ao contrário, sua importância aumenta com a “financeirização”, quando a estabilidade do valor do dinheiro se torna uma questão cada vez mais essencial (daí a obsessão atual com “metas de inflação”). Entretanto, o imperialismo como um arranjo se manteve amplamente invisível à disciplina da Economia, mesmo aos seus melhores praticantes, mesmo no período colonial. O próprio John Maynard Keynes, em seu clássico trabalho As consequências econômicas da paz, em que ele elabora sobre o “Eldorado econômico” que a Europa pré-guerra representava, não menciona que esse Eldorado repousava sobre uma elaborada estrutura do imperialismo. O acesso da Europa aos alimentos do “novo mundo”, um importante aspecto desse Eldorado, não teria sido possível se esses alimentos não tivessem sido pagos, por meio de um arranjo complexo, pela apropriação gratuita, por parte da Grã-Bretanha, de uma parte do excedente de suas colônias e semicolônias (“drenagem da riqueza”) e pela exportação de bens manufaturados para suas colônias e semicolônias às custas de seus produtores locais (“desindustrialização”).2 Imperialismo, no entanto, não é apenas um fenômeno limitado à história. É necessariamente subjacente, como já mencionado, ao capitalismo em todas as suas épocas, incluindo a atual era da globalização. Vamos examinar essa questão em detalhe. I O espectro dos “rendimentos decrescentes” sempre assombrou os economistas. Ricardo tinha celebremente visto “rendimentos decrescentes” na agricultura levando a uma queda progressiva na

taxa de lucro, uma mudança progressiva dos termos de troca entre manufatura e agricultura em favor desta última e o desenlace final de um estado estacionário no qual mais crescimento se tornaria impossível. Mesmo Keynes, na obra mencionada, viu “rendimentos decrescentes” na produção de alimentos como prejudicial ao Eldorado, ainda que a guerra não o tivesse feito. E, no entanto, nenhum desses temores se tornou realidade. Os termos de troca entre manufatura e agricultura mostraram uma tendência secular a mudar contra, e não a favor, do último;3 e embora a taxa de crescimento tenha diminuído sob o capitalismo nos últimos tempos, isso não tem nada a ver com qualquer queda na taxa de lucro causada por “rendimentos decrescentes”. Da mesma forma, o mundo capitalista avançado não tem dificuldade até hoje em satisfazer suas necessidades alimentares, desmentindo os temores de Keynes. Como então explicamos esse contraste entre temores e realidade? Não podemos simplesmente afirmar que os “rendimentos decrescentes” são um mito. A limitação do tamanho da terra é sem dúvida uma realidade material a ser enfrentada. É claro que o tamanho da terra pode ser aumentado, não em unidades naturais mas em unidades efetivas, através do progresso tecnológico de aumento de produtividade ou por meio de certos tipos de investimento, como irrigação, que possibilita a implantação de múltiplos cultivos. Em outras palavras, medidas de “aumento de terreno” são certamente possíveis. Mas, na ausência destas, as limitações do tamanho da terra aumentariam com o passar do tempo; com o aumento da demanda, o “custo real” da produção agrícola (para usar o conceito de Keynes), que significa que, para um determinado salário em dinheiro e preços em dinheiro de outros insumos, o preço de oferta desse produto aumentará ao longo do tempo tanto mais ele tenha sido produzido. Tal aumento no preço de oferta, no entanto, cria sérios problemas para o capitalismo. Estes problemas surgem não por causa da diminuição da taxa de lucro ou da queda em direção a um estado estacionário, como temia Ricardo. Tais temores estão relacionados, em todo caso, com as projeções de longo prazo. O aumento do preço de oferta, na medida em que se traduz em um aumento do

preço, prejudica o valor do dinheiro, e essa é uma questão muito séria e imediata para o capitalismo. Se os detentores de riqueza acreditarem que o valor do dinheiro, em termos de mercadorias, declinará com o tempo, ninguém irá reter riqueza em sua forma dinheiro. Pode-se pensar que, uma vez que todas as outras mercadorias têm custos logísticos positivos, enquanto o dinheiro não tem nenhum, uma mudança do dinheiro para alguma mercadoria como a forma de manter a riqueza somente ocorrerá se alguma taxa mínima de inflação no preço daquela mercadoria for esperada (para o qual deve ocorrer primeiro e, portanto, ser esperado) que supere o seu custo logístico; e se essa taxa de inflação limite não for atingida, então não haverá nenhuma mudança do dinheiro para essa mercadoria. Mas dois pontos devem ser observados aqui. Primeiro, se algumas pessoas esperam que a taxa de inflação exceda a taxa de custo logístico de uma mercadoria, mesmo que a maioria não o faça, então elas mudariam do dinheiro para aquela mercadoria; isso, no entanto, forçaria o preço dessa mercadoria para cima e faria com que mais algumas pessoas também passassem do dinheiro para daquela mercadoria, devido às expectativas revisadas em relação ao seu preço, e assim por diante. E se, devido ao aumento do preço de oferta, ninguém espera que o preço da mercadoria diminua, então um processo inflacionário assim iniciado eliminará o dinheiro de seu papel de uma forma de riqueza. Em segundo lugar, e mais importante, dentre terras agrícolas, a massa de terras tropicais ocupa uma posição especial. Seu tamanho é absolutamente fixo (na ausência de medidas de “aumento de terreno”), mas produz uma gama de produtos para o capitalismo que simplesmente não poderiam ser produzidos em outros lugares, embora sejam de importância vital para ele. De fato, a matéria-prima central da Revolução Industrial original que impulsionou o capitalismo, o algodão cru, não poderia ser produzida na metrópole, mas apenas nas regiões tropicais e subtropicais. Consequentemente, à medida que a acumulação prossegue na metrópole, o preço de oferta para uma gama de produtos passíveis de produção na massa territorial tropical fixa aumentaria. A

consequente taxa de inflação excederia em muito qualquer taxa limiar para uma mudança do dinheiro para mercadorias. Qualquer aumento no preço de oferta é, portanto, fundamentalmente incompatível com o papel do dinheiro como forma de deter a riqueza. E, mesmo que guardar dinheiro para fins de transação acarrete em possuir riqueza na forma dinheiro, independentemente se mesmo por um momento fugaz, qualquer coisa que elimine o dinheiro como forma de riqueza, ipso facto, também elimina o dinheiro como meio de circulação e, assim, torna uma economia monetária impossível. Portanto, esse aumento no preço de oferta é fundamentalmente incompatível com uma economia monetária. É essencial para a viabilidade do sistema capitalista que esse fenômeno do aumento do preço de oferta não possa se manifestar. E é exatamente isso o que aconteceu ao longo da história do capitalismo, razão pela qual os prognósticos ricardianos ou mesmo as antecipações keynesianas nunca se materializaram de fato. Não se materializaram não porque os rendimentos decrescentes são um mito, mas porque o capitalismo recorreu a outros meios para garantir que eles não se materializassem. O imperialismo é um desses dispositivos que garante que o fenômeno do aumento do preço de oferta não se manifeste. Com efeito, como veremos, não é apenas um dispositivo possível, mas o dispositivo tipicamente usado pelo capitalismo para esse propósito; daí resulta que o imperialismo é imanente na própria forma dinheiro. Vamos ver a razão e o modo pelos quais o imperialismo se torna pertinente a toda essa questão. II Vamos discutir a agricultura antes de chegar às indústrias extrativistas, cujo caso é similar. O tamanho fixo da massa de terra tropical não seria um problema se o investimento no “aumento de terreno” ou o progresso técnico de aumento da terra pudessem ocorrer em grau suficiente para compensar o aumento do preço da oferta. Mas isso normalmente precisa de investimento público. A irrigação para o cultivo múltiplo nas regiões tropicais, como Marx observou há muito tempo,4 requer o Estado, uma vez que a escala

de investimento excede, em muito, o que é possível ou mesmo lucrativo para um produtor individual, que normalmente é um pequeno produtor. Mesmo o progresso técnico de “aumento de terreno” sob a forma de novas práticas, requer pesquisas que somente o Estado pode levar a cabo e disseminar amplamente para reduzir os riscos para os pequenos produtores. (Mesmo quando as corporações multinacionais desenvolvem e disseminam novas variedades de sementes e outros insumos que podem aumentar os rendimentos, o grau em que essas inovações são adotadas depende da disponibilidade de crédito subsidiado e de outros insumos fornecidos pelo Estado). Mas onde o Estado é obrigado a seguir o princípio de “solidez financeira”, como era o caso dos países tropicais antes da descolonização, quando o Estado tentava equilibrar seu orçamento, e como novamente é o caso sob a globalização, quando a “responsabilidade fiscal”, no sentido de uma proporção de deficit fiscal/PIB de 3% ou menos, se tornou a “norma”, tais iniciativas por parte do Estado se tornaram ainda mais evidentes por sua ausência. A tendência espontânea sob o capitalismo (isto é, com exceção de sua fase transitória de dirigismo pós-colonial) é evitar o “aumento de terreno”. Prevenir, portanto, que o aumento do preço de oferta se manifesta assume, tipicamente, a forma da supressão da demanda ex post de tais mercadorias, mesmo quando a demanda ex ante aumenta. O não aumento da demanda ex post significa efetivamente que o fenômeno do aumento do preço da oferta não se manifeste. A supressão da demanda ex post pode em si ser feita de duas maneiras: uma é por meio do que Keynes chamou de “inflação dos lucros”, isto é, um aumento dos preços em relação à folha salarial em dinheiro e à folha de rendimentos em dinheiro dos trabalhadores; a outra é por meio do que se pode chamar de “deflação da renda”, isto é, uma queda na folha salarial em dinheiro e na folha de rendimentos em dinheiro dos trabalhadores para determinados preços. O primeiro deles implica, mais uma vez, uma ameaça ao valor do dinheiro e, portanto, à estabilidade do sistema monetário.

É verdade que se pode imaginar uma situação em que a inflação dos lucros é localizada, sem ameaçar as moedas metropolitanas, isto é, na qual o aumento dos preços em relação aos salários em dinheiro ocorre particularmente em um país ou conjunto de países não metropolitanos, cuja taxa de câmbio se deprecia diante de moedas metropolitanas. Mas mesmo essa localização da inflação dos lucros minaria, necessariamente, o valor do dinheiro local e, consequentemente, destruiria o sistema monetário local; e, além disso, uma fuga de dinheiro para mercadorias dentro desse conjunto de países poderia aumentar os preços de algumas mercadorias, mesmo em termos de moedas metropolitanas e, portanto, causar problemas para o valor do dinheiro na metrópole. Assim, mesmo que ocorra tal inflação dos lucros, o meio mais favorável de suprimir a demanda ex post no capitalismo, para impedir a manifestação do aumento do preço da oferta, é a deflação da renda. Toda uma gama de instrumentos é usada para garantir que a demanda ex post das mercadorias com o aumento do preço da oferta seja suprimida, por meio de uma diminuição na renda em dinheiro dos trabalhadores.5 Surge a questão: trabalhadores de onde? A preservação do valor do dinheiro na metrópole, ao impedir qualquer manifestação do aumento do preço da oferta, pode ser garantida pela imposição da deflação de renda sobre qualquer segmento da população trabalhadora que demande uma mercadoria em particular. Em outras palavras, a deflação de renda pode ser imposta aos trabalhadores tanto na metrópole quanto na periferia (ou em ambos); nos dois casos, serviria a seu propósito. Mas parece irreal imaginar que os trabalhadores da periferia seriam poupados enquanto os da metrópole fossem pressionados. Sobretudo, a estabilidade social do capitalismo metropolitano exigiria exatamente o oposto disso, a saber, transferir o peso da deflação de renda o máximo possível para a periferia. Daí surge a conclusão: o capitalismo metropolitano impõe necessariamente a deflação de renda sobre os trabalhadores da periferia, até mesmo sobre os pequenos produtores cujos produtos estão sujeitos ao aumento do preço da oferta ex ante (ou seja, a taxas inalteradas de ganhos em dinheiro para eles).

O fato de que o capitalismo metropolitano necessariamente impõe a deflação de renda aos trabalhadores da periferia permanece inalterado, não importa de qual fase do capitalismo estamos falando e não importa o que mais aconteça nessa fase. É uma característica determinante do imperialismo. Em um mundo exclusivamente capitalista, onde até mesmo as atividades de “rendimentos decrescentes” estão dentro do setor capitalista, como a situação que Ricardo havia visualizado, o termo “imperialismo” não terá significado; a deflação salarial dentro do capitalismo será então a única forma de deflação de renda. Mas quando existem outros modos de produção e classes com uma existência espacialmente distinta (como na massa territorial tropical ou na periferia em geral, distinta do capitalismo metropolitano que se localiza principalmente nas regiões temperadas), então a imposição da deflação de renda também tem uma dimensão espacial; e essa espacialidade tem sido tradicionalmente referida e capturada pelo termo imperialismo. No período atual, em que o peso das finanças aumentou, a urgência em preservar o valor do dinheiro tornou-se ainda maior. Portanto, a necessidade de impor a deflação de renda em geral, e principalmente sobre os trabalhadores da periferia, tornou-se ainda mais urgente. O imperialismo, longe de desaparecer, tornou-se ainda mais significativo. Que um segmento da burguesia da periferia tenha se integrado ao capital metropolitano, que alguns países da periferia tenham experimentado um alto “crescimento”, que os trabalhadores da metrópole agora estejam sofrendo uma deflação de renda de forma muito mais acentuada do que antes, são diferenças que devem ser registradas com relação ao mundo capitalista contemporâneo em contraste com seu passado. Mas, depois de registrá-las, devemos também deixar claro que elas não fazem um pingo de diferença para a realidade do imperialismo, isto é, para o fato de que o capital metropolitano impõe a deflação de renda aos trabalhadores da periferia. Para alguns, pode até parecer que essa realidade do imperialismo está em foco apenas quando estamos olhando para a esfera limitada da agricultura, como temos feito até agora. Além do fato de que, no cenário global, essa esfera está longe de ser limitada, tudo o que foi dito até agora sobre a agricultura, especialmente sobre os

produtos da massa territorial tropical, vale igualmente para as indústrias extrativistas. A imposição da deflação de renda sobre os trabalhadores da periferia é também um meio de garantir que o problema do aumento do preço da oferta não se manifeste em relação aos produtos das indústrias extrativistas. As indústrias extrativistas, no entanto, têm uma especificidade adicional, a saber, ao contrário de uma massa territorial cultivada por um grande número de camponeses, os minerais são encontrados em locais específicos, cuja propriedade pode ser facilmente monopolizada. Portanto, o capital metropolitano sempre tenta monopolizar essa propriedade. Em um período de rivalidade interimperialista, há rivalidade entre os diferentes segmentos do capital metropolitano para adquirir a propriedade não apenas das fontes minerais comprovadas, mas até mesmo de fontes em potencial, como havia argumentado Lenin. Mas em períodos como o presente, a globalização, levando à formação de um capital financeiro internacional (distinto de um mero acordo internacional entre capitais financeiros nacionais, como Karl Kautsky havia visualizado), silencia as rivalidades interimperialistas em geral, incluindo a rivalidade pela propriedade e controle sobre fontes reais e potenciais de riqueza mineral. É no fato de estar sob o regime neoliberal, em vez de sob o controle do Estado da periferia que geralmente se colocam todos os matizes do capital metropolitano. III O antigo imperialismo, ou seja, o imperialismo com colônias, usou o Estado colonial para impor a deflação de renda aos trabalhadores da periferia, de modo que sua absorção do que a própria periferia produzia pudesse ser reduzida e as mercadorias, assim liberadas, pudessem ou ser levadas diretamente à metrópole, ou abrir caminho para a produção de outras mercadorias demandadas pela metrópole, de forma que as terras até então utilizadas para sua produção pudessem ser transferidas. As duas principais formas de deflação da renda foram: o sistema de tributação colonial, com grande parte da receita sendo usada para comprar essas mercadorias as quais acumuladas gratuitamente pelo poder colonial como a “drenagem de excedente” mencionada anteriormente; e a

criação de desemprego, através da destruição da produção local pelas importações da metrópole, isto é, o processo de “desindustrialização” mencionado anteriormente. A “desindustrialização” também liberou diretamente as mercadorias até então absorvidas localmente, como as matérias-primas usadas na produção têxtil e alimentícia, que haviam entrado na subsistência dos pequenos produtores, agora deslocados. O antigo imperialismo tinha a “vantagem” de que a principal potência metropolitana da época, a Grã-Bretanha, podia manter sua economia aberta aos bens dos países então recém-industrializados sem se endividar (ao contrário, tornou-se o maior exportador de capitais nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial). Por pelo menos quatro décadas, até 1928, a Índia teve o segundo maior excedente de exportação do mundo (atrás apenas dos Estados Unidos); e isso apesar das importações de bens que causaram desindustrialização doméstica. Mas esse excedente de exportação foi totalmente apropriado pela Grã-Bretanha, não apenas para pagar suas dívidas com a Europa continental, América do Norte e regiões de recente povoamento europeu, mas também para permitir-lhe a exportação de capital para essas regiões.6 Isso contrasta com a posição da principal potência metropolitana de hoje, os Estados Unidos, que também é o país mais endividado do mundo, com uma dívida que cresce rapidamente. A diferença entre as duas situações emerge porque os mercados e “drenagens” coloniais não podem mais desempenhar o mesmo papel de antes, embora, sem dúvida, os fenômenos de usurpação do mercado e drenagem de excedente continuem, este último na forma, inter alia, de superlucros do monopólio tecnológico, agora institucionalizado pelo Acordo Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, na sigla em inglês). A importância reduzida da drenagem de excedente e dos mercados da periferia surge não apenas pela descolonização política, mas também porque a possibilidade de maior usurpação desses mercados que já foram penetrados é limitada, enquanto as atuais necessidades do capitalismo metropolitano são enormes. No capitalismo contemporâneo, em contraste com o período colonial, a aplicação de políticas neoliberais é o principal meio para

impor a deflação de renda aos trabalhadores da periferia. Existem pelo menos cinco maneiras óbvias pelas quais essas políticas provocam deflação de renda para os trabalhadores da periferia. A mais óbvia é por meio do aumento massivo das desigualdades de renda. As grandes reservas de força de trabalho que existem na periferia, em países como Índia, China, Indonésia e Bangladesh, longe de estarem esgotadas, aumentam em tamanho relativo, o que mantém baixo não apenas os salários reais dos trabalhadores da periferia, mas também dos trabalhadores da metrópole. Isso ocorre porque os trabalhadores da metrópole agora têm que concorrer com os da periferia, devido à disposição do capital metropolitano, uma disposição que não existia anteriormente, em se mover rumo à periferia, estabelecendo unidades de produção para atender não às necessidades locais, mas sim às necessidades metropolitanas. O vetor dos salários reais mundiais, portanto, não mostra nenhum aumento; até diminui.7 Mas a produtividade do trabalho aumenta em todos os lugares, resultando em um aumento de uma parte do excedente. Isso impõe a deflação de renda ao povo trabalhador, ao mesmo tempo em que cria uma tendência à “superprodução” global. A segunda maneira pela qual a deflação de renda lhes é imposta sob o neoliberalismo é por meio das medidas fiscais do governo. Dado o fato de as economias serem abertas aos fluxos globais de capital, incluindo os fluxos financeiros globais, os governos concorrem entre si para oferecer concessões fiscais ao capital globalizado, a fim de seduzi-lo para a instalação de plantas em seus solos para promover o “desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, uma vez que a “responsabilidade fiscal” impõe um limite ao tamanho relativo do deficit fiscal, as concessões fiscais ao capital são necessariamente equiparadas aos cortes nas despesas sociais, nas transferências para os pobres, nos subsídios alimentares e no fornecimento público de serviços essenciais, tais como saúde e educação, todos elementos que prejudicam os trabalhadores, e todos elementos que reduzem, em termos reais, o poder de compra em suas mãos. A deflação de renda, assim efetuada, restringe o consumo de bens essenciais como os alimentos, de modo que o uso da massa territorial limitada para atender às demandas dos ricos se torna possível sem colocar em risco o valor do dinheiro; o

que acompanha esse processo, no entanto, é o aumento da fome entre as pessoas. Os dados a seguir ilustram o ponto. Considerando o mundo como um todo, entre o triênio 1979-1981 e o triênio 1999-2001, a produção per capita de cereais (produção média anual dividida pela população no meio do ano) caiu de 355 kg para 343 kg. (Os cálculos para o triênio 2015-2017 também indicam 345 kg).8 Com a renda per capita mundial em alta, uma vez que a elasticidade da renda da demanda por cereais é positiva e como não houve uma significativa redução de estoques entre 1999-2001 em comparação com 19791981, seria de esperar um aumento significativo nos preços dos cereais durante essas duas décadas e, portanto, também uma mudança nos termos de troca em favor dos cereais com relação à manufatura. Na verdade, porém, esses termos de troca para cereais diminuíram em 46% entre 1979-1981 e 1999-2001!9 A virulência da deflação de renda imposta aos trabalhadores, especialmente na periferia, pode ser medida a partir disso. A terceira maneira é por meio da redução da participação dos pequenos produtores no valor agregado adicionado ao longo de toda a cadeia produtiva, desde a colheita até o mercado de varejo. Isso ocorre porque os pequenos comerciantes com pouco poder de negociação, e as agências governamentais de compra e venda, que antes existiam para dar uma participação “justa” aos produtores, estão sendo cada vez mais substituídas por monopólios capitalistas, incluindo corporações multinacionais. A quarta maneira é por meio da continuação do processo colonial de deslocamento forçado de pequenos produtores e comerciantes locais por grandes empresas, incluindo corporações multinacionais. O fenômeno da “desindustrialização” agora se espalha também para o setor terciário, em que o Walmart e outras corporações desse tipo precipitam uma nova rodada de deslocamento forçado combinado com desemprego. Tal destino também aguarda artesãos, pescadores e uma série de pequenos produtores. A quinta e a última maneira é, sob muitos aspectos, a mais significativa, a saber, o desencadeamento de um processo de acumulação primitiva de capital em relação ao campesinato, no qual o grande capital, em nome de “desenvolvimento” e “infraestrutura”,

toma para si não apenas as terras comuns ou terras do governo, mas também as terras dos camponeses a preços “de liquidação”. A imposição da deflação de renda ao campesinato afeta não apenas o lado da demanda, mas também o lado da oferta de produtos agrícolas; no entanto, isso significa apenas que, para a preservação do valor do dinheiro, a pressão sobre a demanda deve ser ainda maior. A “globalização”, portanto, acelera acentuadamente o processo de separação dos pequenos produtores de seus meios de produção. Ao mesmo tempo, também aumenta o tamanho do exército industrial de reserva global e ajuda a garantir que ele não se esgote.10 IV A própria existência de um conjunto de força de trabalho desempregada e subempregada atua como uma medida da deflação de renda; mas também impede qualquer possibilidade de aumento salarial em dinheiro, um obstáculo que é vital para a preservação do valor do dinheiro.11 A discussão mais comum sobre o papel do exército de reserva na tradição marxista tende a enfatizar a restrição que este exerce sobre os salários reais e, portanto, o fato de manter o processo de exploração. Foi assim que o próprio Marx discutiu o assunto. Mas enquanto na teoria de Marx as mudanças nos salários reais e em dinheiro caminhavam juntas, uma vez que ele focava em um universo com “dinheiro-mercadoria”, em um mundo com dinheirocrédito, essas duas mudanças não precisam caminhar juntas. Não é suficiente, em tal mundo, que exista um fator restritivo, do ponto de vista do capital, sobre o nível dos salários reais; também deve haver um fator restritivo ao nível dos salários em dinheiro. O exército de reserva em tal mundo, portanto, desempenha o papel de estabilizar o sistema monetário, mantendo o nível dos salários em dinheiro baixo. Não apenas preserva o processo de apropriação da mais-valia; também mantém o sistema monetário em funcionamento, para tanto, é claro, o tamanho do exército de reserva deve ser grande o suficiente. Na era da globalização, quando a mobilidade internacional do capital vincula os salários dos

trabalhadores da metrópole aos dos trabalhadores da periferia, o próprio exército de reserva desempenha um papel global. Mesmo que não esteja localizado na própria metrópole, ele desempenha um papel global de manter baixo o vetor dos salários em dinheiro em todos os países, inclusive na metrópole, transmitindo estabilidade ao sistema monetário metropolitano. A manutenção de um exército de reserva global complementa o processo de deflação de renda e é parte integral da operação do imperialismo. O exército de reserva global é, geralmente reproduzido de maneira espontânea e até aumentado em tamanho relativo na era da globalização. As crescentes desigualdades de renda global elevam, ceteris paribus, a taxa de crescimento da produtividade do trabalho. Isso ocorre porque os ricos, em média, não apenas demandam menos produtos intensivos em trabalho do que os pobres, mas também passam a consumir produtos cada vez mais novos com mais rapidez, os quais são geralmente cada vez menos intensivos em termos de trabalho. Portanto, sob a globalização, para qualquer taxa de crescimento de produção, a taxa de crescimento do emprego sofre uma desaceleração. É verdade que a taxa de crescimento da produção em si foi maior em algumas economias periféricas na era da globalização, mas mesmo isso não tem sido suficiente para impedir um aumento relativo nas reservas de trabalho, como sugere o termo “crescimento sem emprego” usado no contexto de economias como a Índia.12 Uma fonte ainda mais importante para reabastecer e ampliar o exército de reserva é, como vimos, o processo de acumulação primitiva de capital, que se intensifica na era da globalização e lança um vasto número de pequenos produtores deslocados forçosamente em um mercado de trabalho no qual o aumento da demanda por trabalho não é rápido o suficiente. Uma implicação do processo acima referido deve ser observada. O não esgotamento do exército de reserva nas economias periféricas é importante não apenas para as burguesias dessas economias, mas também para o capital metropolitano. Conclui-se que é ingênua a crença de que, com o crescimento das economias periféricas, um estado de escassez de força de trabalho surgirá mais cedo ou mais tarde, colocando uma pressão ascendente sobre os salários e,

portanto, eliminando a pobreza: qualquer desfecho desse tipo estará associado a um colapso do sistema monetário na metrópole, ao qual ela resistirá ferozmente, juntamente com a grande burguesia local que agora está integrada à metrópole. V O imperialismo atende a toda uma gama de exigências do capitalismo, tal como adquirir mercados externos e garantir o suprimento de matérias-primas, sem as quais, como apontou Harry Magdoff,13 não haveria nenhum tipo de manufatura, por menor que fosse sua participação no valor bruto da produção manufatureira. Todos esses requisitos persistem na era da globalização, mas um em particular toma a linha de frente, precisamente por causa da presença abrangente das finanças, e que diz respeito à preservação do valor do dinheiro. Um conjunto de processos associados ao capitalismo na era da globalização, que não estão confinados à metrópole, mas afetam profundamente a periferia, trabalham espontaneamente para esse fim. O processo intensificado de acumulação primitiva de capital (que, como Rosa Luxemburgo observou, não se limita apenas à pré-história do capitalismo, mas o acompanha ao longo de sua história); o reabastecimento e a ampliação das reservas de trabalho na periferia devido a essa acumulação primitiva e também devido às altas taxas de crescimento da produtividade do trabalho no segmento capitalista; a busca de políticas neoliberais que desencadeiam um processo de deflação de renda muito diferente do que se segue por causa do aumento no tamanho relativo do exército de reserva global; tudo isso faz parte desse fenômeno. Todos esses processos que envolvem a periferia em sua rede constituem elementos-chave do imperialismo contemporâneo. Todos eles constituem imposições sobre os trabalhadores da periferia contra os quais são impotentes para agir, apesar da descolonização política, a menos que desvinculem suas economias de um regime de capital liberalizado e fluxos comerciais. Argumenta-se frequentemente que, durante os anos 1950, 1960 e 1970, quando os Estados Unidos, como principal potência capitalista, de fato projetaram a derrubada de governos que

tentavam adquirir maior controle sobre seus recursos nacionais às custas das corporações multinacionais, de Mossadegh a Arbenz e Allende, o imperialismo era um fenômeno real; mas agora não seria mais. Em outras palavras, embora o imperialismo fosse um termo significativo anteriormente, não apenas na era colonial, mas mesmo nas décadas do pós-guerra, não seria mais agora. Nosso argumento é precisamente o oposto disso. O imperialismo tornou-se visível porque os regimes dirigistas que surgiram nas antigas colônias após a descolonização procuraram, de diversas maneiras, livrar-se de seu jugo. Procuraram adquirir maior controle sobre os recursos nacionais; abandonaram o princípio de “solidez financeira”, mesmo quando aumentaram os impostos sobre capitalistas nacionais e estrangeiros, usando o setor público como uma alternativa no caso de resistência capitalista e de não cooperação; realizaram investimentos em “aumento de terras” e progresso técnico sob a égide do setor público, o que evitou a necessidade de qualquer deflação de renda; e comprometeram o Estado com a tarefa de fornecer serviços essenciais. Tudo isso significou um afrouxamento do estrangulamento imperial, razão pela qual o imperialismo era tão visível na oposição a esses regimes. Porém, com a imposição de políticas neoliberais na era da globalização, o escopo para qualquer ação independente por parte do Estado-nação contra as finanças globalizadas que poderiam deixar seus territórios quando bem entendessem, ficaram significativamente reduzidas. Em outras palavras, o Estado do terceiro mundo passa por uma mudança da era dirigista para a era neoliberal: de ser um Estado (mesmo que um Estado burguês) que aparentemente está acima de todas as classes, intervindo para o “bem social” e, portanto, em algumas ocasiões, agindo até mesmo em nome dos oprimidos, a um Estado que promove quase exclusivamente os interesses da oligarquia corporativo-financeira, integrada ao capital globalizado, com o argumento de que seus interesses são concomitantes com o “interesse social”. Com essa mudança na natureza do Estado, de dirigista para neoliberal, colocada em prática em toda parte por meio do processo de globalização, a necessidade de qualquer intervenção imperialista explícita desaparece (exceto para a aquisição de controle direto

sobre o petróleo, como no Iraque). Em suma, a invisibilidade do imperialismo hoje significa que ele se tornou ainda mais poderoso, não que desapareceu. VI O poder do imperialismo não se limita à mera possibilidade de fuga de capitais. A globalização tende a minar, sistematicamente, todas as possibilidades de resistência na periferia contra a hegemonia do capital financeiro internacional. O crescimento do tamanho relativo do exército de reserva dificulta a ação sindical; e os direitos trabalhistas são prejudicados em nome da introdução da “flexibilidade do mercado de trabalho” para atrair capital para impulsionar o “desenvolvimento”. Também gera privatização de unidades do setor público, “terceirização” de trabalho para o setor não organizado, substituição de trabalho ocasional por trabalhadores em tempo integral, mudança para “produção doméstica” com salários extraordinariamente baixos, os quais fazem com que a resistência dos trabalhadores organizados seja dificultada. Simultaneamente, a expropriação do campesinato e a deflação de renda imposta a ele também tendem a tornar a ação camponesa muito mais difícil. As duas “classes básicas”, portanto, ficam enfraquecidas. Mas isso significa apenas que as formas tradicionais de resistência de classe se tornam mais difíceis de replicar, e novas formas de resistência devem ser desenvolvidas. Para distrair-se das dificuldades econômicas que impõem ao povo sob a globalização, os regimes neoliberais procuram encontrar adereços políticos para sua sobrevivência, promovendo distintas formas de conflitos sectários na sociedade, sejam eles étnicos, religiosos, culturais ou de outra natureza. Ao fazê-lo, contribuem para a desintegração da vida social. Tal tendência, no entanto, também cria as condições para a derrubada do neoliberalismo, e um movimento através de estágios em direção à transcendência do capitalismo, à medida que deixa cada vez mais claro para o povo que a escolha, como disse Rosa Luxemburgo, é entre o socialismo e a barbárie.

1

Este artigo foi autorizado a ser incluído neste livro pelos editores da revista Monthly Review. Nós somos profundamente gratos aos autores e editores da revista. A versão original do texto pode ser encontrada em Patnaik, U. and Patnaik, P. “Imperialism in the era of globalization”, Monthly Review, 67(3), julho-agosto de 2015. 2 Sobre o papel de tal “drenagem” e “desindustrialização”, ver Bagchi, A. K. Perilous passage: the global ascendancy of capital, Oxford University Press, Delhi, 2006; e Patnaik, U. “The free lunch: Transfers from the tropical colonies and their role in capital formation in Britain during the Industrial Revolution”, in: K. S. Jomo (ed.) Globalization under hegemony: the long twentieth century, Oxford University Press, Delhi, 2006, p. 30-70. 3 Para uma estimativa recente do movimento secular em termos de comércio, ver Chakraborty, S., “Movements in the terms of trade of primary commodities vis-à-vis manufactured goods: a theoretical and empirical study”, Ph. D. Thesis, Center for Economic Studies and Planning, Jawaharlal Nehru University, Nova Delhi, 2011. 4 Karl Marx, “The british rule in India” [A dominação inglesa na Índia], The New York Daily Tribune, 25 de junho, 1853; reimpresso em Iqbal Husain (ed.), Marx on India, Tulika Books, Nova Delhi, 2006. 5 Para uma discussão no contexto da Índia, ver Patnaik, U., “Deflationary neo-liberalism: an Indian perspective” in: P. Bowles, H. Veltmeyer et al. (eds.), National perspectives on globalization: a critical reader. Londres, Palgrave, 2007. 6 Ver Patnaik, U., “India in the world economy 1900 to 1935: the Inter-war depression and Britain’s demise as world capitalist leader”, Social Scientist, Volume 42, n. 1-2, Janeiro-Fevereiro, 1914. 7 Para os Estados Unidos, por exemplo, Joseph Stiglitz diz que: “ajustado pela inflação, os salários reais estagnaram ou caíram; a renda de um típico trabalhador homem em 2011 (32.986 dólares) era menor do que em 1968 (33.880 dólares)”, New York Times, 13 de janeiro de 2013. 8 Os dados de cereais foram obtidos da FAO. 9 Agradecemos ao dr. Shouvik Chakraborty por este exemplo. 10 A discussão que segue se beneficiou muito do artigo de Foster, J. B., McChesney, R.W., e Jonna, R. J., intitulado “The global reserve

army of labour and the new imperialism”, Monthly Review, vol. 63, edição 6, novembro, 2011. 11 A discussão que segue se baseia em Patnaik, P., The value of money, Columbia University Press, Nova York, 2009. 12 Entre 2004-2005 e 2009-2010, por exemplo, quando o PIB da Índia estava aparentemente crescendo a uma taxa superior a 7% ao ano, o número de trabalhadores cujo “status corrente” era estar empregado cresceu a uma taxa de 0,8%, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra, o que é muito inferior à taxa de crescimento da oferta de força de trabalho. 13 Harry Magdoff, The age of imperialism, Monthly Review Press, Nova York, 1969.

EXPLORAÇÃO E SUPEREXPLORAÇÃO NA TEORIA DO IMPERIALISMO JOHN SMITH Imperialismo e seus negadores “O comunismo não é uma doutrina, mas um movimento; procede não de princípios, mas de fatos” (Engels, 1977, p. 291). As grandes diferenças internacionais na taxa de exploração, a enorme mudança global da produção e do centro de gravidade da classe trabalhadora industrial para países e regiões onde a exploração é mais intensa, a dependência dramaticamente aumentada de empresas com sede em países imperialistas (e, da mesma forma, de prosperidade e paz social nesses países) sobre os rendimentos dessa exploração – esses são os fatos mais importantes sobre o chamado capitalismo neoliberal a partir dos quais devemos avançar. Taxas extremas de exploração nas fábricas de roupas de Bangladesh, nas linhas de produção chinesas, nas plantações de chá e café e em outros lugares – muito mais altas do que as suportadas pela maior parte dos trabalhadores nos países imperialistas – são um fato palpável e diretamente observável, experimentado todos os dias em carne e osso por centenas de milhões de trabalhadores em países com baixos salários. Não precisamos de uma teoria para saber disso, precisamos apenas remover nossas vendas e abrir os olhos. Mas nós precisamos sim de uma teoria para entender o que podemos ver, e descobrir as consequências que decorrem disso. Não contradiz o postulado fundamental da lei do valor de Marx para a qual a forma salarial oculta a relação intrinsecamente exploradora entre capitalista e trabalhador, ou o princípio da dialética materialista de que a oposição entre essência e aparência é uma lei de todos os sistemas dinâmicos que contêm contradições.14 O que torna o

imperialismo e a superexploração imediatamente visíveis – mesmo que o visível seja apenas a ponta de um iceberg – é precisamente a violação sistemática da igualdade entre os proletários e, consequentemente, uma violação sistemática da lei do valor. Na era da produção globalizada, ainda mais do que nos estágios anteriores da evolução imperialista do capitalismo, os trabalhadores não são igualmente móveis e livres para vender sua força de trabalho pelo maior lance. A remoção de impedimentos aos fluxos transfronteiriços de produtos básicos e capital estimulou a migração da produção para países de baixos salários, mas as fronteiras militarizadas e a crescente xenofobia tiveram o efeito oposto na migração de trabalhadores desses países – não a impedindo por completo, mas inibindo seu fluxo e reforçando o status vulnerável e de cidadãos de segunda classe dos migrantes. E, assim, as fábricas atravessam livremente a fronteira EUA-México e passam com facilidade pelos muros da “Fortaleza Europa”, assim como as mercadorias produzidas nelas e os capitalistas que as possuem, mas os seres humanos que trabalham nelas não têm direito de passagem. Isso é um paradoxo da globalização – um mundo sem fronteiras para tudo e todos, exceto para os trabalhadores. As disparidades salariais globais entre países imperialistas e países em desenvolvimento, geralmente maiores que 10 para 1 e nunca menores que 3 para 1, em grande parte resultantes da supressão da livre circulação de trabalhadores, fornecem um reflexo distorcido das diferenças globais na taxa de exploração (simplesmente, a relação entre o valor gerado pelos trabalhadores e o que eles recebem em salários). A mudança em grande escala da produção para países de baixos salários no quarto de século que levou à crise financeira mundial, impulsionada pela arbitragem laboral global – isto é a redução dos custos de produção e o aumento das taxas de lucro ao substituir os trabalhadores relativamente bem remunerados no país sede por trabalhadores de baixos salários no estrangeiro –, significa que os lucros das empresas sediadas na Europa, América do Norte e Japão, o valor de todos os tipos de ativos financeiros derivados das quais se derivam esses lucros e os padrões de vida dos cidadãos dessas nações tornaram-se altamente dependentes das taxas mais altas de exploração dos trabalhadores das nações de

baixos salários. Portanto, a globalização neoliberal deve ser reconhecida como um novo estágio imperialista do desenvolvimento capitalista, no qual o imperialismo é definido por sua essência econômica: a exploração do trabalho vivo do Sul pelos capitalistas do Norte. Enquanto isso, os capitalistas do Sul dirigem as maquiladoras da mesma forma que o sádico traficante de escravos que bate com o látego nas costas daqueles. Mas ele não é o capitão, para encontrá-lo, temos que ir até o topo da cadeia de valor que está localizada na Europa, América do Norte e Japão. Em vez da superação do imperialismo e da convergência entre países “desenvolvidos” e países eternamente “em desenvolvimento”, o imperialismo hoje se manifesta em um sistema global de racismo, opressão nacional, humilhação cultural, militarismo e violência estatal semelhante ao apartheid, que nega seu status formal de cidadãos livres de sua nação e do mundo e transformou seus países em reserva de força de trabalho superexplorável para alimentar as corporações transnacionais e seus agentes locais. Nada disso está oculto. O caráter abertamente explorador do capitalismo do apartheid na África do Sul foi exatamente isso, aberto, explícito, evidente para todos que tivessem olhos para ver; e isso não é menos verdade no capitalismo imperialista do século XXI. A violação sistemática da igualdade entre os proletários afeta profundamente a operação global da lei do valor. Como poderia ser de outro modo, dado que as relações de valor são relações sociais? A violação sistemática da igualdade entre proletários é incontestável, assim como também o são as taxas divergentes de exploração que necessariamente decorrem disso. Ainda assim, muitos marxistas insistem dogmaticamente que as relações de valor da economia global contemporânea são idênticas às do mercado idealizado analisado por Marx em sua busca por uma “teoria geral” do capital, e que nenhuma das hipóteses simplificadoras que ele fez para esse fim precisam ser ajustadas.15 A teoria de Marx fornece as chaves essenciais necessárias para revelar a relação exploradora e antagônica que está oculta na aparência superficial de liberdade e igualdade entre comprador e vendedor. Mas o que temos aqui é uma inversão perversa disso: o

uso da teoria de Marx não para revelar o que está oculto, mas para ocultar o que é bastante visível para qualquer observador não instruído, mas sem preconceitos. A negação do imperialismo marxista vem em diferentes tonalidades. William Robinson e David Harvey declaram abertamente que a era do imperialismo acabou e que o termo é obsoleto. Muitos outros evitam o assunto o máximo que podem e, quando não o conseguem, evitam se referir ao imperialismo pelo nome, preferindo eufemismos anódinos como “centro e periferia” ou “desenvolvidos e em desenvolvimento”. Por exemplo, Robert Brenner, para quem a mudança global de produção para países de baixos salários significou “enormes, mas frequentemente, redundantes aumentos de capacidade de fabricação ao mercado mundial, que tendem a reduzir os preços e ganhos globais” (Brenner, 2009, p. 9) – mas não é uma nova fonte de superlucros para as empresas transnacionais estadunidenses e europeias. E há aqueles que continuam a descrever a economia capitalista global e suas principais empresas e nações como imperialistas, mas negam a relevância ou inclusive a existência das diferenças internacionais na taxa de exploração. The Global Class War [A guerra de classes global], um artigo da revista Catalyst, é um exemplo recente da última dessas tendências. Nele, Ramaa Vasudevan critica dois livros recentes, incluindo um escrito por mim (Smith, 2016), nos quais se propõe o reconhecimento da realidade da superexploração e a procura de um conceito teórico para ela.16 Nas palavras dela, Um argumento que foi apresentado recentemente [...] é o de que os países capitalistas avançados extraem superlucros imperialistas através da submissão dos trabalhadores da periferia à superexploração. O imperialismo estadunidense, nessas formulações, sujeita sistematicamente trabalhadores nos EUA e trabalhadores em Bangladesh, China e México a diferentes taxas de exploração. Os trabalhadores dos EUA enfrentam uma taxa mais baixa e essa taxa mais baixa depende da superexploração dos trabalhadores nos outros países. Em vez dos trabalhadores de todo o mundo encontrarem uma causa comum contra as investidas do capital, esses argumentos colocam trabalhadores nos EUA e trabalhadores na periferia em posições estruturalmente separadas, e também implicam os trabalhadores dos EUA nos mecanismos de renda imperialistas. (Vasudevan, 2019, p. 112)

Apesar de sua imprecisão com relação: às expressões “depende”, “estruturalmente separadas” e “mecanismos de renda imperialista”

que ficam abertos a diferentes interpretações; a considerar os “EUA” como “EUA e outros países imperialistas”; à condição de que “trabalhadores em Bangladesh, China” etc. se refiram especificamente aos cerca de meio bilhão dos que trabalham nos níveis de baixos salários das cadeias de valor globais; e com o acréscimo de que essa iteração global de dividir e conquistar tem dinâmica muito diferente em tempos de crise, como agora; isso resume adequadamente minha visão. O que ela contrapõe a isso: À medida que o capital corporativo liderado pelos EUA se expande e estreita sua rede de controle através das fronteiras para explorar direta ou indiretamente trabalhadores com salários mais baixos na América Latina, Ásia e África, ele tem à sua disposição uma reserva de trabalho maior, da qual a mais-valia pode ser extraída e reivindicada. O acesso a esse vasto e crescente conjunto global de mão de obra e a crescente concorrência entre os trabalhadores deste grupo permitem que o capital corporativo dos EUA aumente a taxa geral de exploração. Esse é o verdadeiro significado da expansão global do capital corporativo dos EUA e da arbitragem global do trabalho. (Vasudevan, 2019, p. 130)

O que é “a taxa geral de exploração”? Ela se refere à média global? Se sim, isso implica que a taxa de exploração difere em todo o mundo. Ou ela quer dizer que existe apenas uma “taxa geral de exploração” e quaisquer variações são minúsculas e insignificantes? Vasudevan evita essas perguntas óbvias, embora a passagem a seguir sugira que ela acredita na segunda opção: Os defensores da tese da superexploração têm razão em apontar para a degradação absoluta das vidas e dos meios de subsistência dos trabalhadores na periferia. Eles também têm razão em chamar a atenção para o impacto da expansão do exército de reserva global do trabalho a serviço do capital corporativo. Mas o verdadeiro significado da globalização do capital é que ele reforçou um aumento na taxa global de exploração. (Vasudevan, 2019, p. 135)

Em outras palavras, se os trabalhadores nas fábricas de roupas de Bangladesh ou nas linhas de produção chinesas estão sujeitos a uma taxa de exploração mais alta do que os trabalhadores nos países imperialistas, isso não tem importância, não se deve ser tomado em consideração. De fato, até mesmo fazer perguntas sobre isso é “colocar os interesses dos trabalhadores de baixa renda na periferia contra os trabalhadores dos Estados Unidos” (Vasudevan, 2019, p. 110).17 Este é um argumento curioso. Pela mesma lógica, não devemos investigar a desigualdade de gênero, por medo de colocar os

interesses das mulheres contra os dos homens; nem deveríamos reconhecer a discriminação racial, por medo de jogar negros contra brancos – embora a violação da igualdade entre os trabalhadores resultante da divisão e conquista imperialista, refletida nas diferenças no preço da força de trabalho, seja muito mais grave daquela que resulta do racismo e da opressão das mulheres nos países (e o racismo, é claro, é fundamentalmente uma expressão do imperialismo).18 Então, por que Vasudevan ignora a estrutura de apartheid do mercado global de trabalho, suas conexões óbvias com o imperialismo e suas grandes implicações para o funcionamento da lei do valor? Porque, suspeitamos, ela teme as implicações de reconhecer que os dois grupos de trabalhadores estão, de fato, em “posições estruturalmente separadas” e que os trabalhadores nos países imperialistas estão de alguma maneira “implicados nos mecanismos da renda imperialista”. Apesar de seus temores, reconhecer esses fatos não significa que a revolução socialista seja impossível nos EUA, no Reino Unido e em outros países imperialistas, e tampouco contradizem a visão de que trabalhadores de todas as partes do mundo estão presos em uma “corrida global para o fundo do poço”. Tais conclusões, que de fato foram extraídas por alguns autores que os reconhecem (por exemplo, Cope, 2019; Amin, 2018), são demasiado pessimistas por três razões: não reconhecem a profundidade da crise atual do capitalismo, ainda em seu estágio inicial, como a crise mais profunda de sua história e as possíveis consequências e implicações derivadas disso; não reconhecem como nas últimas décadas a classe trabalhadora dentro dos países imperialistas foi transformada pela migração e pela afluência massiva de mulheres em suas fileiras; e subestimam o potencial dos avanços revolucionários nas nações do Sul para catalizar o surgimento do internacionalismo revolucionário dentro dos países imperialistas. Mas reconhecer esses fatos nos ajuda a entender por que o caminho revolucionário é tão difícil e por que a luta econômica espontânea – a tentativa dos trabalhadores de defender ou melhorar sua posição no capitalismo no lugar de travar uma luta política para derrocá-lo – conduz precisamente à sua subordinação à ideologia burguesa, como Lenin argumentou em Que fazer?19

Concepções burguesas versus marxistas sobre produtividade A negação do imperialismo de Vasudevan difere da de seus copensadores em um aspecto importante. Enquanto ela evita expressar uma opinião sobre se as taxas de exploração mais altas são frequentes em países de salários inferiores, outros não são tão tímidos. Nigel Harris expressou a opinião de consenso dos oponentes marxistas da teoria da dependência20 da seguinte maneira: Em igualdade de condições, quanto maior for a produtividade do trabalho, maior será a renda paga ao trabalhador (já que seus custos de reprodução são mais altos), e quanto mais explorado seja, maior será a proporção da produção do trabalhador [de que] o empregador se apropria. (Harris, 1986, p. 119-120)

Ampliando isso, Alex Callinicos argumentou que Um trabalhador altamente remunerado pode muito bem ser mais explorado do que um trabalhador com remuneração inferior, uma vez que o primeiro produz, em relação a seu salário, uma quantidade maior de mais-valia do que o último. De fato, há razões para acreditar que os salários geralmente mais altos pagos aos trabalhadores ocidentais refletem os custos maiores de sua reprodução; mas os gastos, em particular, com educação e treinamento que fazem parte desses custos, criam uma força de trabalho mais altamente qualificada que, portanto, é mais produtiva e mais explorada do que seus colegas do Terceiro Mundo. (Callinicos, 1992, ênfase minha)21

Considerando que todos, exceto os trabalhadores mais bem pagos, gastam todo o seu salário em bens de consumo, “salário” e “custo de reprodução” são sinônimos; não se pode utilizar um para explicar o outro. Essa parte do argumento de Callinicos é uma tautologia que não explica nada. Ele atribui particular importância ao custo da educação e do treinamento dentro dos custos gerais de reprodução dos trabalhadores nos países imperialistas.22 O impacto destes conceitos na capacidade destes trabalhadores para gerar mais-valia é tão grande, argumenta, que necessitam menos tempo para substituir um valor muito maior de sua força de trabalho que os trabalhadores menos produtivos e menos remunerados em países de salários inferiores. Portanto, são mais explorados. Contudo, é difícil entender por que os trabalhadores da linha de montagem dos Estados Unidos e do Reino Unido, enfermeiras, caminhoneiros etc. deveriam ser muito mais habilidosos que seus homólogos mexicanos e chineses. Callinicos e seus seguidores deveriam refletir sobre a sabedoria de Marx:

A diferença entre trabalho superior e trabalho simples, skilled e unskille labour, baseia-se, em parte, em meras ilusões, ou pelo menos diferenças que há muito tempo cessaram de ser reais e só perduram em convenções tradicionais; em parte, baseia-se na situação desamparada de certas camadas da classe trabalhadora, situação que lhes permite menos que as outras exercer pressão para obterem o valor de sua força de trabalho. (Marx, [1894] 1991, p. 242)

Como veremos, o argumento de Callinicos baseia-se em uma confusão subjacente entre as definições de produtividade de valor de uso e valor de troca e a conseguinte reprodução, no jargão marxista, de uma concepção burguesa da produtividade – que serve como pedra angular para tentar, em nome da teoria do valor marxista, negar não só a importância da superexploração nos elos de salários baixos das cadeias de valor mundiais, mas também sua existência. O efeito é normalizar as grotescas diferenças salariais, que se convertem em uma consequência natural do desenvolvimento desigual, não em um local de superexploração em expansão, não em algo importante para a luta pela unidade de classe; e excluir, assim, a possibilidade de que os salários, pensões e assistência médica gratuita posteriores à Segunda Guerra Mundial possam, ao menos em parte, ser resultado da luta de classes dentro e fora, obrigando os capitalistas nos países imperialistas a fazer concessões, mas isso implicaria uma taxa mais baixa de exploração que naqueles países onde as lutas econômicas dos trabalhadores enfrentam metralhadoras e ditaduras militares. A ênfase que Callinicos coloca no trabalho qualificado tem suas raízes intelectuais no trabalho de Michael Kidron, um dos fundadores da “Tendência Socialista Internacional” à qual Callinicos e Harris pertencem. Kidron (1974, p. 100) argumentou que: Se há uma diferença notável [entre trabalhadores britânicos e indianos], ela reside nos diferentes graus em que eles são culturalmente enriquecidos. Espera-se que o trabalhador britânico médio possa ler e dirigir; normalmente, será capaz de lidar com uma ampla gama de ferramentas e conceitos e responder a uma ampla gama de estímulos, com base no conhecimento e não na experiência pessoal. O trabalhador indiano não o será [...]. O custo de mantê-los de maneira efetiva, seu valor, certamente deverá refletir essa diferença. Por exemplo, um motorista de caminhão não se atreve a dormir ao volante e, portanto, deve ser capaz de garantir seu descanso em um lar; um motorista de carro de boi ousa e frequentemente costuma cochilar, então sua moradia é menos importante para o empregador [...] e seu salário não precisará conter um componente de moradia tão grande. Os novos participantes em uma fábrica na Grã-Bretanha precisam ser capazes de ler, e o salário de seus pais precisa conter, portanto, um componente de manutenção

infantil e educação. Os novos trabalhadores das fábricas da Índia não precisam ler, e geralmente não leem, então a pressão sobre o salário de seus pais é menor. E assim por diante.

O argumento de Kidron não é apenas um chauvinismo repugnante (especialmente sua afirmação ultrajante de que os trabalhadores indianos, diferentemente dos britânicos, são incapazes de pensar em conceitos), também é sem sentido. Sem dúvida, os caminhoneiros indianos precisam estar mais alertas e serem mais hábeis do que seus colegas britânicos – uma vez que são mais propensos a ter que se esquivar de bois e buracos enquanto transportam suas cargas. É provável que “os trabalhadores das fábricas” indianas tenham mais filhos e um grupo familiar estendido para sustentar, e seu salário terá que cobrir seus cuidados com saúde e educação, ao contrário da Grã-Bretanha, onde esses serviços são fornecidos gratuitamente pelo Estado.23 A maioria das tentativas de negar a superexploração imperialista, apontando para a maior produtividade dos trabalhadores nos países imperialistas, insiste não na qualificação do trabalho, mas sim nos meios de produção mais avançados e mais intensivos em capital (que geralmente são acompanhados de destreza), por exemplo, em Charles Bettelheim que, em sua crítica da troca desigual, de Arghiri Emmanuel (Bettelheim, 1972, p. 302), argumentou que “quanto mais as forças produtivas são desenvolvidas, mais os proletários são explorados”. Essa visão foi repetida inúmeras vezes por marxistas reconhecidos, por exemplo, Claudio Katz, que escreveu que a taxa de mais-valia é superior no centro. É ali que se concentram os investimentos mais significativos e se obtêm o maior volume de trabalho excedente [...]; a magnitude do trabalho confiscado é claramente superior nas economias mais produtivas do centro. (Katz, 2017, p. 10)24

Em primeiro lugar, essa visão amplamente difundida parece confusa por um fato simples: os bens consumidos pelos trabalhadores no Norte não são mais produzidos exclusiva ou principalmente no Norte; em uma extensão cada vez maior, eles são produzidos por força de trabalho com baixos salários no Sul Global. Sua produtividade, seus salários determinam significativamente o valor da cesta de bens de consumo que reproduz a força de trabalho nos países imperialistas e, portanto, o valor dessa força de trabalho.

Mas isso diz respeito apenas ao valor da força de trabalho, “v”, o denominador em s/v da fórmula enganadoramente simples de Marx para a taxa de exploração. O valor gerado por essa força de trabalho, uma vez que “v” foi subtraído, fornece “s”, trabalho excedente, o numerador. Quando examinamos este elemento da equação, descobrimos que a visão de Callinicos, Bettelheim, Katz entre outros tem um problema muito mais profundo: se baseia em um conceito burguês de produtividade, que é antitético à teoria do valor de Marx. Marx considerava como uma de suas maiores descobertas “o caráter duplo do trabalho, conforme se expressa em valor de uso ou valor de troca” (Marx, [1867] 1987, p. 407).25 Ao caráter duplo do trabalho corresponde o caráter duplo da produtividade do trabalho: a definição universal de produtividade do trabalho, verdadeira para a sociedade humana em todas as suas etapas de desenvolvimento, é a quantidade de valores de uso que podem ser produzidos em um dia ou em uma semana de trabalho. Mas para os capitalistas, a produção de valores de uso é apenas um meio para um fim muito diferente, a produção de valores de troca. Disso deriva um conceito e uma medida de produtividade totalmente diferente e essencialmente burguesa: quanto o “valor agregado” de uma empresa é aumentado em uma hora, um dia ou uma semana de mão de obra. O valor agregado é a base das estatísticas padrão sobre o PIB, a produtividade e muito mais. O conceito de valor agregado – o valor de uma mercadoria é igual ao custo total dos insumos mais o “valor agregado” da empresa, isto é, um aumento em seus custos de produção, se parece muito com o conceito de preço de produção de Marx, sobre o qual ele diz: os mesmos economistas que se voltam contra a determinação do valor das mercadorias pelo tempo de trabalho, pela quantidade de trabalho nelas contido, falam sempre dos preços de produção como centros em torno dos quais flutuam os preços de mercado. Eles se permitem fazê-lo porque o preço de produção é uma forma já totalmente exteriorizada e, prima facie, absurda do valor-mercadoria; uma forma que se apresenta na concorrência, portanto, na consciência do capitalista vulgar e, logo, também na do economista vulgar. (Marx. [1894] 2007, p. 250)

Os preços das mercadorias produzidas em relações capitalistas são “prima facie irracionais” porque a concorrência entre capitais por

lucros faz com que os preços de produção se separem do tempo de trabalho socialmente necessário, por outro lado ocultam que este é o conteúdo do valor da mercadoria. As estatísticas baseadas no valor agregado ou nos preços de produção não revelam o valor e a mais-valia gerados em nenhuma empresa, setor (se há algum, recordando que algumas empresas e setores se dedicam a atividades não produtivas) ou nação; contudo, o que se revela na concorrência e se mede nas estatísticas do PIB e da produtividade são valores transformados, valores irracionais.
 Existe uma ampla e rica literatura de tentativas de derivar a massa e a taxa de mais-valia utilizando dados constituídos a partir do valor agregado, ou utilizar a última como um proxy para a primeira, a fim de calcular a taxa de lucro e a taxa de mais-valia, mas todas elas esbarram neste problema. Seu êxito ou não está além do alcance deste texto, mas, a partir da discussão que vimos até agora, podemos concluir que tal movimento a partir de um alto nível de abstração da realidade concreta, da produção globalizada contemporânea requer, entre outras coisas uma crítica rigorosa do valor e do fetichismo dos preços de produção que este conceito implica, para descobrir o que – na era do imperialismo – está escondido pelos dados sobre o PIB e sobre a produtividade e o comércio (ver Smith, 2012). A produtividade, isto é, a produtividade do trabalho vivo, é definida pela economia vulgar como valor agregado por trabalhador. O conceito marxista de produtividade se opõe radicalmente a essa visão. De forma introdutória, ajuda a refletir sobre o fato de que, medido em termos de valores de uso, os trabalhadores são, hoje, muito mais produtivos que, digamos, há 100 anos. Mas em termos de valor de troca, nenhum tipo de comparação pode ser feito entre hoje e 100 anos atrás, uma vez que os produtos do trabalho vivo de hoje são apenas comparados na realidade com outros produtos do trabalho vivo de hoje. Uma composição de capital mais alta aumenta a produtividade do trabalho dos valores de uso, mas não faz nenhuma diferença na geração de valor de troca (deixo de lado o caso especial de um capital individual que possui um monopólio temporário sobre uma técnica de produção mais avançada). Isso é o que Callinicos e Katz

acreditam: que os trabalhadores dos ramos industriais de alta tecnologia (ou seja, intensivos em capital) produzem mais valor e são, portanto, mais explorados do que os trabalhadores das indústrias de baixa tecnologia. Marx, por outro lado: assumindo que o grau de exploração do trabalho, ou a taxa de mais-valia, é o mesmo [...] nos capitais que põe em marcha quantidades desiguais de trabalho social [isto é, sejam eles intensivos em capital ou trabalho].

E essa suposição, por sua vez, repousa na “concorrência entre trabalhadores, e uma equalização que ocorre pela constante migração entre uma esfera de produção e outra” (Marx, [1894] 1991, p. 275). A produtividade aparentemente maior dos trabalhadores nos ramos de produção intensiva em capital é uma ilusão criada pelas transferências de valor dos ramos de produção intensivos em mão de obra. O que o capitalista considera lucros obtidos magicamente do trabalho morto, isto é, de sua maquinaria e outros insumos, é de fato um valor criado pelo trabalho vivo empregado por capitalistas rivais com composições orgânicas mais baixas. Quando os marxistas argumentam o contrário, que os trabalhadores das indústrias intensivas em capital produzem mais valor que os das indústrias intensivas em mão de obra, assim como opositores da teoria da dependência aqui considerados, estão pensando em conceitos burgueses, sem importar o quanto estejam vestidos com palavrório marxista. Assumindo uma força de trabalho de intensidade média, e assumindo que ela é trocada pelo mesmo salário e deixando de lado a questão da força de trabalho qualificada ou complexa, o novo valor gerado por uma dada quantidade de trabalho é totalmente independente da composição orgânica do capital que o põe em movimento. Isso significa que, supondo novamente que os dois trabalhos sejam de intensidade média e supondo que recebam o mesmo salário, a quantidade de valor produzido em um dia de trabalho padrão pelo chapeiro de um carrinho de lanche que fica no estacionamento de uma fábrica de aço é a mesma que aquela produzida durante o mesmo tempo pelo metalúrgico dentro dessa fábrica.

Para concluir esta discussão das concepções de produtividade burguesas versus marxistas, imaginemos agora que, devido à organização sindical superior, o metalúrgico recebe um salário maior do que o trabalhador que produz seu almoço. Com todas as outras premissas ainda em vigor, o trabalhador de fast-food agora suporta uma taxa mais alta de exploração. Tudo isso deveria ser elementar para quem é versado nos princípios básicos da lei do valor de Marx. Então por que tantos marxistas têm tanta dificuldade de entender o que acontece quando os trabalhadores que produzem os bens de consumo de nossos metalúrgicos não estão localizados no estacionamento das siderúrgicas, mas em outro país? Já discutimos um fator que contribui para isso: o fetichismo do valor agregado e as concessões às concepções burguesas do valor que implica. Outro, a que agora nos referimos, são os erros e omissões na grande obra de Marx. O imperialismo e O capital de Marx Em continuação à última passagem citada, Marx afirma: Teoricamente parte-se do pressuposto de que as leis do modo de produção capitalista se desenvolvam em estado de pureza. Na realidade, as coisas se dão sempre de modo aproximado; mas a aproximação é tanto maior quanto mais desenvolvido se encontrar o modo de produção capitalista e quanto mais se elimina sua mescla e seu entrelaçamento com os vestígios dos sistemas econômicos anteriores.

Em particular, Marx tratou a divergência dos salários como resultado de fatores temporais ou contingentes que o capital e o trabalho incessantemente móveis erodiriam com o tempo, e que poderiam excluir-se da análise, com segurança, como deixou claro no livro III d’O capital: Por mais importante que seja o estudo deste tipo de conflitos salariais [os obstáculos locais que obstruem a equalização dos salários] para cada trabalho específico, pode-se desconsiderá-los, contudo, no que se relaciona com a investigação geral da produção capitalista, por serem casuais e irrelevantes. (Marx, [1894], 2007, p. 656)

Sabemos agora que Marx estava errado sobre isso. Estes conflitos temporais resultaram exatamente no contrário. No mundo imperialista atual, a condição de igualdade entre os trabalhadores é violada profunda e impactantemente; e a concorrência global não produziu nenhum progresso mensurável com relação à equilização

internacional dos salários reais.26 Ele escreveu eloquentemente sobre por que o imperialismo era uma condição necessária para o surgimento do capitalismo, mas não conseguiu prever como a evolução imperialista do capitalismo resultaria na opressão das nações tornando-se uma propriedade intrínseca da própria relação capital-trabalho. Como Andy Higginbottom apontou, A relação de trabalho assalariado não é apenas entre capital e trabalho, mas entre capital do Norte e trabalho do Sul. Nesse sentido, a exploração de classes e a opressão racial ou nacional são fundidas [...]. A classe trabalhadora das nações oprimidas/Terceiro Mundo/Sul Global é sistematicamente paga abaixo do valor da força de trabalho da classe trabalhadora das nações opressoras/Primeiro Mundo/Norte Global. Isso não ocorre porque a classe trabalhadora do Sul produz menos valor, mas porque é mais oprimida e mais explorada. (Higginbottom, 2011, p. 284)

Essa é a razão fundamental pela qual O capital de Marx não contém uma teoria da superexploração, ou (o que é a mesma coisa) uma teoria do imperialismo; uma lacuna que não pode ser explicada exclusiva ou principalmente por uma decisão de deixar esses assuntos para um volume d’O capital que nunca chegou a ser escrito. Se Marx poderia ou não ter antecipado esse estágio qualitativamente novo na evolução da relação capital-trabalho, é uma questão que está aberta ao debate. A importância excepcional da contribuição de Ruy Mauro Marini para a teoria marxista do imperialismo reside, em parte, em sua observação de que, durante a vida de Karl Marx, as importações de alimentos mais baratos e outros bens de consumo produzidos por mão de obra superexplorada provinham das colônias e neocolônias britânicas que ajudaram a aumentar a mais-valia relativa na própria GrãBretanha, reduzindo o tempo de trabalho necessário sem diminuir os níveis de consumo. Higginbottom ressalta que: Marini coloca a necessidade da superexploração do trabalho da mão de obra em meados do século XIX, isto é, antes do surgimento do imperialismo moderno como um sistema mundial, tal como retratado por Lenin. A transição na Inglaterra, de uma produção dominada por métodos de mais-valia absoluta para mais-valia relativa, dependia de importações baratas e de maior produtividade [...]. O trabalho de Marini mostra que Marx não estava correto em todos os aspectos, mesmo em seu próprio tempo. (Higginbottom, 2014, p. 3132)27

Não se encontra um conceito concreto de superexploração na grande obra de Marx, isso foi deixado para gerações futuras.

Algumas geraçoes depois, a brecha permanece e se tornou terrível. Tanto a necessidade imperiosa de tal conceito quanto a possibilidade de sua existência é colocada pela própria evolução do imperialismo, em particular pela proliferação de cadeias de valor global. Seu lugar no centro de uma teoria marxista daquilo que John Bellamy Foster chamou de imperialismo tardio (Foster, 2019) determinará criticamente se o renascimento do marxismo, no qual repousa o futuro da humanidade, está natimorto. Sim! É realmente tão importante! É claro, nós temos a grande vantagem da perspectiva a posteriori. Para mitigar Marx, se não para eximi-lo completamente, devemos recordar uma premissa fundamental da dialética materialista: não pode haver um conceito concreto de um sistema de interação que não seja totalmente concreto e desenvolvido. Assim como Karl Marx não poderia ter escrito O capital antes da forma madura e totalmente desenvolvida do capitalismo, que surgiu com o capitalismo industrial na Inglaterra, tampouco é razoável esperar encontrar em seus escritos – ou nos de Lenin e de outros que escreveram no tempo do nascimento do estágio imperialista do capitalismo – uma teoria do imperialismo capaz de explicar sua forma moderna completamente evoluída. E Marx não apenas forneceu fundamentos teóricos para uma teoria da forma imperialista da lei do valor, mas também forneceu pistas e ideias copiosas que apontam nessa direção – embora os “marxistas” que negam o imperialismo prestem tanta atenção a elas quanto os “cristãos” de hoje o fazem sobre as palavras de Jesus com relação aos obstáculos no caminho dos homens ricos que entram no reino dos céus. Essa analogia é adequada – nossos marxistas negadores do imperialismo tratam O capital como um texto sagrado, enquanto ignoram o que lhes parece incomôdo. No livro I d’O capital, Marx analisou em profundidade e detalhe duas maneiras pelas quais os capitalistas se esforçam para aumentar a taxa de exploração. Uma é prolongar a jornada de trabalho, aumentando assim a mais-valia absoluta; e a outra é aumentar a mais-valia relativa, por meio do aumento da produtividade dos trabalhadores que produzem bens de consumo, reduzindo assim o tempo de trabalho necessário. Em vários lugares, ele descreve

brevemente uma terceira maneira, como no capítulo intitulado “O conceito de mais-valia relativa”, no qual escreve: O mais trabalho [...] somente seria obtido mediante a compressão do salário do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho. [...] Apesar do papel importante que esse método desempenha no movimento real do salário, ele é aqui excluído pelo pressupostos de que as mercadorias, inclusive portanto a força de trabalho, sejam compradas e vendidas por seu pleno valor. (Marx, [1867] 2001, p. 380-381)

Empurrar o salário do trabalhador para abaixo do valor de sua força de trabalho, ou seja, a superexploração, de acordo com uma definição estrita, já que pressupõe uma economia unitária e idealizada em que a força de trabalho tem um valor único, é algo mencionado novamente dois capítulos depois, durante uma discussão sobre as consequências para os trabalhadores quando a maquinaria [...] gradualmente se apodera de todo o campo da produção [com o resultado de que] uma parte da classe trabalhadora que a maquinaria transforma deste modo em população supérflua [...] inunda todos os ramos industriais mais facilmente acessíveis, enche o mercado de trabalho e, portanto, derruba o preço da força de trabalho para abaixo de seu valor. (Marx, [1867] 2001, p. 524)

Aqui Marx está falando sobre o desemprego setorial esporádico decorrente da mecanização de um novo ramo da indústria, mas sua relevância para a era moderna precisa apenas ser esclarecida. Uma grande parte da classe trabalhadora no Sul Global se tornou supérflua pela incapacidade dos métodos de produção modernos absorverem força de trabalho suficiente para evitar o aumento do desemprego, e isso por si só – mesmo antes de levarmos em conta a violenta repressão à livre circulação de trabalhadores, bem como os regimes trabalhistas mais severos e a repressão política que prevalecem nos países de baixos salários – exerce uma força poderosa, fazendo com que o preço de sua força de trabalho caia abaixo de seu valor. Mesmo antes de estabelecer a conexão precisa entre o salário, o valor da força de trabalho e a taxa de exploração, isso já constitui evidência prima facie de que o valor da força de trabalho foi reduzido muito mais cruelmente nas nações do Sul do que nas do Norte, a ponto de forçar um valor permanentemente mais baixo da força de trabalho sobre esses trabalhadores. Também é uma evidência poderosa de que as diferenças salariais são determinadas, em grande parte, por fatores que são bastante

independentes da produtividade dos trabalhadores no ato do trabalho, tais como a ausência de seguridade social, o desemprego estrutural e os regimes repressivos de trabalho. Marx não apenas deixou de lado a redução dos salários abaixo de seu valor, mas fez uma abstração adicional que, embora necessária para sua análise geral do capital, também deve ser relativizada se quisermos analisar o estágio atual de desenvolvimento do capitalismo: “A diferença entre as taxas de mais-valia em diferentes países e, portanto, entre os graus nacionais de exploração do trabalho, é totalmente irrelevante para a presente investigação” (Marx, K. [1894] (2007), p. 180). Assim, dois elementos cruciais para uma teoria do imperialismo contemporâneo – as variações internacionais no valor da força de trabalho e na taxa de exploração – foram explicitamente excluídos por Marx de sua teoria geral, conforme elaborada n’O capital. Anwar Shaikh estava, portanto, errado ao afirmar que “o desenvolvimento da lei do valor n’O capital contém todos os elementos necessários para sua extensão ao comércio internacional” (Shaikh, 1980, p. 208). Taxa de exploração e taxa de mais-valia Ao longo deste ensaio, “taxa de mais-valia” tem sido utilizado como sinônimo e termo intercambiável de “taxa de exploração”. Mas essa identidade só se mantém em um alto nível de abstração, em outra palavras, só se fizermos várias simplificações significativas. Primeiro, é necessário excluir a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo. Todos os produtos consumidos empregados em tarefas relacionadas com a circulção de títulos de propriedade e a proteção dos direitos de propriedade, inclusive o trabalho vivo, são custos de produção, gastos gerais; seus custos são assumidos pelos capitalistas na esfera da produção, que consomem parte de sua mais-valia e reduzem seus lucros. Estas funções, embora necessárias para a sociedade capitalista, são formas sociais de consumo que se subtraem da massa total de riqueza (isto é, o capital social total, a massa total dos valores de uso mercantilizados), em contraste com os capitais na esfera da produção que são aqueles que agregam valor.

Considerando que seguranças, funcionários de bancos, advogados e outros trabalhadores improdutivos não produzem valor nem maisvalia, é inapropriado falar da taxa de mais-valia nesses casos. Ainda assim, sua jornada de trabalho ainda é dividida entre o trabalho necessário (o tempo necessário para substituir o tempo de trabalho socialmente necessário incorporado em sua cesta de bens de consumo, ou seja, o valor de sua força de trabalho, “v”) – e o trabalho excedente (a quantidade pela qual sua jornada de trabalho excede “v”). Em outras palavras, estes trabalhadores, exceto aqueles que recebem supersalários, são explorados. Esta condição não depende de sua força de trabalho excedente ser utilizada para tarefas de produção ou tarefas que não são de produção, ou mesmo se o trabalho é desperdiçado. Tarefas que não são de produção, tarefas relacionadas à circulação de títulos de propriedade desde publicidade até finanças e seguridade constituem uma grande parte da economia imperialista contemporânea, reduzindo a massa de mais-valia disponível para a redistribuição como lucro em todas as suas formas. Segundo, a “taxa de mais-valia” se aplica apenas ao trabalho vivo empregado por um capitalista para produzir mercadorias, seja porque ele comprou esse trabalho vivo por um salário seja porque é proprietário do trabalhador, como no emprego capitalista de escravos (Higginbottom, 2018). Trabalhadores autônomos não produzem mais-valia; se eles recebem menos do que o valor de seu produto, então estão sujeitos a uma troca desigual. Os trabalhadores empregados capitalisticamente constituem a esmagadora maioria da população economicamente ativa nos países imperialistas, mas isso não acontece na maioria dos países da África, Ásia e América Latina. Como Paul Sweezy apontou, a taxa de exploração é e sempre foi muito maior na periferia do que no centro. No centro, a taxa de exploração é, para todos os efeitos práticos, igual à taxa de mais-valia.28 Isso não é válido para a periferia, onde apenas uma pequena parte da força de trabalho é empregada como assalariada na indústria capitalista, com uma proporção muito maior sendo explorada direta e indiretamente por proprietários, comerciantes e usurários, principalmente no campo, mas também nas cidades e nos povoados. Aqui, todo ou quase todo o excedente extorquido dos trabalhadores não empregados na indústria capitalista é comercializado e torna-se indistinguivelmente misturado com a mais-valia produzida capitalisticamente. Nessas circunstâncias, podemos falar

de uma taxa social de exploração, mas não devemos confundir o conceito com a taxa de mais-valia no sentido usual. (Sweezy, 1981, p. 76)

Em continuação, ele diz (em um argumento que tem muito em comum com a tese de Marini) que a maior taxa de exploração nas nações subordinadas permite que as classes dominantes locais e as elites aliadas vivam em um nível compatível com o das burguesias do centro, ao mesmo tempo que possibilita um fluxo massivo de produto excedente monetizado (na forma de lucros, juros, aluguéis, royalties etc.) da periferia para o centro.

Ele acrescenta, resumindo bastante em um pequeno trecho: a contrapartida da taxa de exploração muito alta (e frequentemente crescente) na periferia é uma taxa mais baixa (e relativamente estável no tempo) de maisvalia no centro. Existem duas razões básicas e inter-relacionadas para isso. Por um lado, a classe trabalhadora do centro é mais altamente desenvolvida e está em uma melhor posição para organizar e lutar por seus próprios interesses. Por outro lado, as burguesias do centro aprenderam, através da experiência histórica, que uma situação que permite que o padrão de vida do proletariado aumente ao longo do tempo (uma taxa estável de mais-valia combinada com o aumento da produtividade) não é apenas funcional, mas também indispensável para a operação do sistema como um todo.

Escrito há quase quatro décadas, estas palavras resistiram ao tempo, com a adição necessária de que esta estratégia de estabilização contém em seu interior as sementes da instabilidade, isto é, novas contradições inerentes. Monopólio e superexploração Antes de nos aprofundarmos na natureza da exploração capitalista e da superexploração imperialista, é válido considerar como essas duas categorias estreitamente relacionadas se colocam em relação a outro elemento constitutivo essencial do capitalismo: o monopólio. O monopólio está inscrito no DNA do capitalismo, os capitalistas individuais não se empenham tanto para concorrer quanto para encontrar uma maneira de evitar a concorrência, obter uma vantagem sobre os rivais, exercitar alguma forma de monopólio que lhes dará lucros acima da média. A lei do valor, que em sua forma mais simples explica que as mercadorias compradas e vendidas livremente são vendidas pelo seu valor, resulta dos esforços incessantes dos capitalistas individuais para violar essa lei. Sua compulsão selvagem só pode ser contida por uma força externa, daí a necessidade de um Estado e de um sistema de leis independentes

dos capitalistas individuais e, portanto, também as tentativas incessantes de capitalistas individuais e grupos de capitalistas de fugir destas leis ou de aparelhar o Estado para obter uma vantagem sobre seus rivais. O monopólio se apresenta de várias formas. Alguns dizem respeito à produção, inovações tecnológicas que permitem que um capitalista individual produza uma determinada mercadoria de forma mais eficiente que outros; outras à distribuição, marca ou outras formas de monopólio no mercado, como barreiras a novos participantes no mercado, captura do Estado, acesso privilegiado a insumos baratos etc.); tudo isso pode ter vida curta ou duradoura. Para cada instância de monopólio corresponde uma renda, um rendimento não derivado do trabalho, um lucro extra pelo monopólio à custa de lucros mais baixos para o restante. O monopólio, portanto, redistribui a mais-valia entre os capitais, mas não agrega nada a ela. Isso vale mesmo para inovações tecnológicas que reduzem a quantidade de trabalho necessária para produzir bens de consumo para os trabalhadores, somente quando essa inovação se generaliza, ou seja, quando deixa de ser monopolizada por um capitalista individual – em outras palavras, quando deixa de ser uma inovação – se traduz em uma redução do valor da força de trabalho e em um aumento correspondente na taxa de mais-valia. Somente então, e se os trabalhadores não obtiverem nenhuma porção destes lucros por meio de salários reais mais altos, a taxa de mais-valia aumenta. Embora o monopólio esteja relacionado à distribuição da mais-valia, a exploração está relacionada com sua extração. E assim como todo capitalista sonha em se tornar um monopolista, também está no DNA de todo capitalista procurar maneiras de maximizar a extração da mais-valia. Como acabamos de ver, n’O capital, Marx analisa detalhadamente duas maneiras pelas quais os capitalistas fazem isso – estendendo a jornada de trabalho para além do “tempo de trabalho necessário”, isto é, o tempo necessário para substituir os valores consumidos pelo trabalhador e sua família, que Marx chamou mais-valia absoluta; e alterando a proporção entre o tempo de trabalho necessário e o tempo excedente de trabalho em um dia

de trabalho inalterado por meio de avanços na produtividade que barateiam os bens de consumo dos trabalhadores, que ele chamou de mais-valia relativa. Ambas são totalmente distintas da redução do tempo de trabalho necessário ao “empurrar salário do trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho” a definição padrão de superexploração, criticada mais adiante neste ensaio. Resulta do exposto que a renda e a superexploração imperialistas são conceitualmente distintas, mesmo que na realidade elas estejam intimamente relacionadas. Samir Amin estava, portanto, errado ao confundir os dois: “a parte visível da renda imperialista [...] surge do grau dos preços da força de trabalho [...]. A parte submersa da renda [surge do] acesso aos recursos do planeta” (Samir Amin, 2018, p. 110). Agora podemos juntar os dois elementos constitutivos do capitalismo – monopólio / concorrência e exploração / superexploração. Todo capitalista sonha em se tornar um monopolista, mas para os capitalistas do Vietnã, Camboja, México e outras nações do Sul, seus sonhos permanecem somente isso, sonhos; eles não têm escolha senão depender exclusivamente da extração da mais-valia de seus próprios trabalhadores, ao explorálos além dos limites, ou mais precisamente, retirar deles o que resta depois que os monopolistas e imperialistas tenham tomado sua parte.29 Em contraste, o capital monopolista imperialista tem a opção de compartilhar parte de suas rendas monopolistas e rendas imperiais com seus próprios trabalhadores, comprar a paz social e expandir o mercado de seus bens , junto com recursos para financiar o gasto estatal com poder duro e brando, a fim de reforçar sua dominação imperialista sobre as nações subordinadas. Se os conceitos de mais-valia absoluta e relativa de Marx são insuficientes para explicar as realidades da exploração nas redes de produção globais contemporâneas, de que mais precisamos? Em poucas palavras, de um conceito teórico de superexploração. Mas antes que possamos conceitualizar a superexploração, precisamos de um conceito mais profundo e rico de exploração. A teoria marxista da exploração (I): o valor da força de trabalho

A fórmula aparentemente simples para a taxa de exploração, s/v, é – em uma análise mais minuciosa – qualquer coisa, menos simples. O valor da força de trabalho e o valor gerado por ela são muito mais diferentes entre si do que normalmente se supõe. O fato de que tanto o numerador quanto o denominador de s/v poderem ser expressos como simples números, cada um expressando duas partes do mesmo dia de trabalho, com a taxa de exploração dada pela simples proporção entre eles, leva muitos a esquecer o quão extremamente diferentes são, de fato, entre si. Isso fica claro quando fazemos duas perguntas elementares. O que determina o valor da força de trabalho? O que determina a quantidade de valor gerado pela força de trabalho? Levando essas perguntas em consideração, os determinantes do valor da força de trabalho podem ser divididos em sete elementos: 1) a fecundidade da natureza, isto é, a disponibilidade imediata de alimentos, materiais de construção; e sua hospitalidade – a necessidade de proteção contra os elementos etc. Por exemplo, se o tempo para pescar um peixe aumentar, o valor da força de trabalho que depende deles para o sustento deve aumentar se os níveis de consumo permanecerem os mesmos; 2) a proporção de valores de uso exigidos para a reprodução da força de trabalho que são fornecidos gratuitamente pelo trabalho doméstico, a economia não capitalista etc.; 3) a produtividade do trabalho nos ramos da economia capitalista que produzem os bens de consumo para os trabalhadores; 4) a incidência de superexploração nesses ramos; 5) o tamanho do chamado componente “moral e histórico” do valor da força de trabalho, isto é, até que ponto a luta de classes e a evolução social geral (diferentes maneiras de dizer a mesma coisa) resultaram na incorporação de novas necessidades à reprodução da força de trabalho; 6) o grau médio de complexidade/qualificação do trabalho em uma economia nacional, que está intimamente relacionado à sua estrutura produtiva, mas que também está relacionado ao elemento “moral e histórico” mencionado anteriormente;

7) a intensidade da opressão e subjugação dos trabalhadores em uma dada economia nacional, incluindo a ferocidade da repressão patronal/estatal, o grau de unidade/desunião da classe trabalhadora, a escassez estrutural ou superabundância da força de trabalho, controles de fronteira suprimindo a livre mobilidade do trabalho. Cada um dos determinantes do valor da força de trabalho requer um capítulo para si próprio, e cada um se presta à pesquisa empírica, bem como à reflexão teórica. Aqui só temos espaço para uma breve discussão. Nenhum desses fatores, nem mesmo o primeiro, são puramente endógenos. Considere, por exemplo, as consequências para as centenas de milhões de trabalhadores em todo o Sul global da pesca excessiva pelas frotas pesqueiras imperialistas ou o impacto das mudanças climáticas provocadas pelo imperialismo sobre a fecundidade e a hospitalidade da natureza. O segundo fator listado, ou seja, a força do patriarcado, o tamanho da economia não capitalista etc. é fundamentalmente uma consequência do imperialismo. De seu “desenvolvimento do subdesenvolvimento” destaca-se a necessidade de que a teoria do valor adote a teoria da reprodução social, cuja negligência por parte da Economia Política marxista tem muito a ver com a reticência desta abandonar as simplificações que Marx fez para alcançar sua “teoria geral” do capital. O terceiro fator passou por uma enorme transformação durante a era neoliberal, com a realocação massiva de indústrias que produzem bens de consumo para os trabalhadores de países de baixos salários. O quarto fator deve ser considerado em conjunto com o terceiro, o valor da força de trabalho é determinado não apenas pela produtividade dos trabalhadores empregados na produção de bens de consumo, mas também pelo grau em que são superexplorados. A produção em oficinas clandestinas barateia estes produtos e reduz o valor da força de trabalho que depende deles. O quinto fator, o elemento “moral e histórico”, é determinado pela luta de classes, e isso ocorre nos níveis nacional e internacional. O que os trabalhadores conseguem incorporar no valor de sua força

de trabalho em qualquer país é o resultado da luta de classes global, não apenas da luta dentro desse país em particular. Por exemplo, foi o aumento das lutas de libertação nacional nas colônias e neocolônias britânicas, não apenas o movimento de reforma social na própria Grã-Bretanha, que convenceu seus governantes imperialistas a conceder assistência médica e educação gratuitas aos trabalhadores britânicos após a Segunda Guerra Mundial. Seu objetivo não era apenas pacificar os trabalhadores dando-lhes o que eles queriam, mas forjar um “contrato social” com líderes dos sindicatos e do Partido Trabalhista, e assim garantir seu apoio ativo às guerras contra os povos insurgentes em suas colônias e neocolônias. Por outro lado, mesmo que os trabalhadores de fora dos países imperialistas tenham sido impedidos de usufruir desses ganhos, eles foram progressivamente incorporados ao que todos os trabalhadores consideravam ser seus direitos, suas prerrogativas. O sexto fator também é uma função do desenvolvimento imperialista: nas nações imperialistas uma proporção muito maior (embora ainda minoritária) da classe operária funciona como mão de obra complexa/qualificada, em comparação com o capitalismo dependente. Mas também devemos lembrar o aviso de Marx de que em grande parte da classe trabalhadora a distinção entre mão de obra qualificada e não qualificada se baseia na “pura ilusão”, como descobriram, por exemplo, as mulheres que lutam por salários iguais. O sétimo fator, por fim, expressa o grau de opressão nacional suportado pelos trabalhadores em uma determinada nação, ou seja, o grau em que sua igualdade com os trabalhadores em outras partes do mundo é violada. Argumenta-se aqui que, na era neoliberal, isso se tornou o fator mais importante de todos e é um determinante-chave do quarto fator, cuja importância também aumentou enormemente. É interessante comparar esta lista de fatores que determinam o valor da força de trabalho com uma lista fornecida por Marx: O valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos meios de subsistência habitualmente exigidos pelo operário médio. A massa destes meios de subsistência, ainda que possa mudar sua forma, em uma época determinada e em uma sociedade determinada, é dada, e, portanto, pode ser tratada como uma magnitude constante. O que muda é o valor dessa massa.

Outros dois fatores entram na determinação do valor alcançado pela força de trabalho. Por um lado, seus custos de desenvolvimento, que variam de acordo com o modo de produção; por outro, sua diferença de natureza, segundo se trate da força de trabalho masculina ou feminina, madura ou imatura. (Marx, [1867] 2001, p. 629)

Disto podemos extrair quatro fatores; sua correspondência com os sete fatores do valor da força de trabalho em minha lista é anotada entre parênteses no final de cada um deles: 1) a quantidade de meios de subsistência exigida pelo trabalhador médio (1, 5, 6); 2) o valor dessa quantidade (ou seja, a quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la) (3, 4, 7); 3) o custo do desenvolvimento da força de trabalho (ou seja, seus custos de reprodução, incluindo os custos dos dependentes do trabalhador) (2, 6); 4) a diversidade natural da força de trabalho (isto é, de homens e mulheres, crianças e adultos): isso não é aplicável. Deixo de lado a força de trabalho das crianças e contesto que haja qualquer coisa de “natural” no valor da força de trabalho masculina e feminina. As diferenças entre as duas listas refletem a diferença nos níveis de abstração empregados por Marx em sua busca por uma “teoria geral” do capital e o objetivo deste trabalho – uma teoria de valor do imperialismo; e também refletem a evolução do capitalismo nos 150 anos desde que Marx publicou o livro I d’O capital. É claro que muitos fatores determinam o valor da força de trabalho e que seu peso relativo muda muito de um período histórico para outro e de um país para outro; tudo isso sublinha por que nosso conceito de exploração deve ser concreto, atualizado e baseado em análises empíricas, não apenas simplesmente retirado d’O capital de Marx e aplicado mecanicamente à realidade imperialista contemporânea, como se as transformações do último século e meio nunca tivessem acontecido. A teoria marxista da exploração (II): o valor gerado pela força de trabalho Agora, passemos a considerar o outro elemento da fórmula da taxa de exploração, “s”. A lei do valor baseia-se em um princípio

fundamental: “o valor que a força de trabalho produz [...] não depende do próprio valor da força de trabalho, mas da duração de seu funcionamento” (Marx, [1867] 2001, p. 656). Além disso, como vimos anteriormente, o valor que a força de trabalho produz em um determinado período de tempo também é completamente independente de seu valor, de sua produtividade e da composição orgânica do capital do qual é parte. Marx enfatizou repetidamente o princípio fundamental em muitos lugares ao longo de sua grande obra, por exemplo: A jornada de trabalho de dada magnitude se representa sempre no mesmo produto de valor, por mais que varie a produtividade do trabalho e, com ela, a massa de produtos e portanto o preço da mercadoria singular. Se o produto de valor de uma jornada de trabalho de 12 horas é, por exemplo, 6 xelins, ainda que a massa de valores de uso produzidos varie com a força produtiva do trabalho e, portanto, o valor de 6 xelins se distribua entre um número maior ou menor de mercadorias. (Marx, [1867] 2001, p. 630-631)

Que outros fatores, além da duração, entram em jogo? A intensidade do trabalho é um deles: um trabalhador que trabalha duas vezes mais rápido que outro produzirá o dobro do valor no mesmo tempo. Entretanto, está longe de ser comprovado que os trabalhadores dos países imperialistas trabalham com maior intensidade do que os dos países de baixos salários, e inclusive a jornada de trabalho e a semana de trabalho tendem a ser muito mais extensas em países de baixos salários. Podemos, portanto, deixar isso de fora da nossa análise e assumir, como o próprio Marx fez na citação, que todo trabalho vivo é gasto com a mesma intensidade. Outro é o grau de qualificação ou habilidade, discutido anteriormente ao refutar o argumento de Callinicos e Kidron, de que as diferenças no grau de qualificação da força de trabalho entre os países explicam tanto as diferenças nos salários entre eles quanto as diferenças na quantidade de valor que geram em um determinado período de tempo. Pelas razões expostas, isso também pode ser excluído do nosso “conceito universal concreto” (Ilyenkov, 1960, pp. 84-88) de exploração capitalista. Também deve-se considerar que o valor gerado pelo trabalho vivo é determinado ex post, quando o valor dos produtos produzidos por esse trabalho é realizado através de sua venda:

O valor de uma mercadoria não se determina pela quantidade de trabalho realmente objetivado nela, mas pela quantidade de trabalho vivo necessário para sua produção. Suponhamos que uma mercadoria representa seis horas de trabalho. Se se realizam invenções graças às quais se pode produzir em três horas, o valor da mercadoria já produzida também cai pela metade. (Marx, [1867] 2001, 653)

Esse é um assunto importante e complexo, mas pode ser excluído com segurança da discussão atual por dois motivos. Primeiro, embora a determinação ex post do valor afete a taxa de mais-valia e a taxa de lucro, ela não tem nenhum efeito sobre a taxa de exploração, uma vez que a divisão da jornada de trabalho em força de trabalho necessária e força de trabalho excedente não se vê afetada pelo fato de a força de trabalho estar sendo empregada produtivamente ou não, ou se é desperdiçada ou se os produtos produzidos por seus produtos são vendidos). Segundo, isso só entra em jogo quando a produtividade do trabalho avança. Isso ocorrerá mais ou menos rapidamente em diferentes ramos da produção e em diferentes países, e está longe de ficar claro que a produtividade esteja avançando nos países imperialistas mais rapidamente que em outras regiões. A subcontratação da produção em países com baixos salários tem sido uma alternativa cada vez mais difundida diante dos lucros obtidos que o investimento doméstico em tecnologias novas e mais produtivas. Finalmente, devemos considerar o caso especial dos trabalhadores empregados por um capitalista individual que possui uma inovação técnica ou tecnológica que lhe permite produzir uma mercadoria de maneira mais eficiente, ou seja, mais barata do que o normal para esse ramo de produção específico. Marx diz: “O trabalho cuja força produtiva é excepcional opera como trabalho potenciado intensificado; isto é, em períodos iguais de tempo gera valores superiores aos produzidos pela média do trabalho social do mesmo tipo.” (Marx, 2001, p. 386). À primeira vista, isso parece contradizer a afirmação de Marx de que o mesmo trabalho produz o mesmo valor total, independentemente da variação da produtividade. A contradição entre as duas afirmações de Marx é apenas aparente porque, na primeira dessas citações, Marx se concentra nos níveis de produtividade específicos da empresa, enquanto na segunda ele abstrai isso. As diferentes taxas de mais-valia que Marx menciona

na primeira citação tratam exclusivamente das diferenças de produtividade entre empresas individuais dentro de um ramo da produção de produtos idênticos, mas em diferente de tempo de trabalho. Transpor essas diferenças de produtividade específicas da empresa para diferenças entre setores inteiros com diferentes composições orgânicas é um erro grave, uma leitura fundamentalmente equivocada da teoria do valor de Marx. Contudo, é exatamente isso que os marxistas negadores do imperialismo argumentam, pois estão muito interessados em “provar” que trabalhadores nas indústrias mais avançadas e intensivas em capital produzem mais valor por hora de trabalho vivo, e que, por extensão, os trabalhadores em nações mais avançadas produzem mais valor do que aqueles em nações subdesenvolvidas e, portanto, são igualmente explorados. A distribuição desigual da mais-valia é entre capitalistas “no mesmo negócio”, isto é, que produzem os mesmos produtos. O capitalista mais produtivo capturará uma parcela extra da mais-valia às custas dos concorrentes cuja produtividade é menor que a média nesse ramo de produção específico.30 Deve ficar claro que isso se aplica apenas aos capitais individuais em concorrência direta entre si, e não implica de forma alguma que os ramos de produção com composições orgânicas mais altas tenham uma taxa de mais-valia mais alta do que aqueles em ramos de produção com menores composições orgânicas. Discuto esse assunto fascinante e importante com mais profundidade em Imperialism in the TwentyFirst Century [O imperialismo no século XXI ](Smith, 2016, p. 241244), concluindo da seguinte forma: [...] supondo uma mão de obra de intensidade e complexidade médias [...] toda a força de trabalho gasta pelos trabalhadores empregados em capitais menos produtivos conta igualmente para o valor total, mesmo que uma parte desproporcional dela seja capturada pelos capitalistas mais produtivos. Os lucros extras dos capitalistas mais produtivos não derivam de seus próprios trabalhadores mais produtivos, mas do trabalho excedente extraído de trabalhadores empregados por capitais tecnologicamente deficientes [...]. Assim, o valor gerado pelos trabalhadores produtivos em um determinado período de tempo é independente de sua produtividade, mesmo se o valor agregado capturado por seus empregadores permanecer altamente dependente disso. Isso é tão fundamental que é preciso repetir: um metalúrgico operando maquinaria mais sofisticada tecnologicamente não produz mais valor de troca, simplesmente permite que seu empregador capitalista capture uma

parcela maior dele. Segue-se que a taxa de exploração, supondo salários iguais, igual intensidade de trabalho etc., não é maior em capitais mais produtivos do que em capitais menos produtivos, como argumentam os críticos marxistas da teoria da dependência.

Com base nas simplificações e esclarecimentos acima, fica claro que nenhum dos sete fatores que determinam o valor da força de trabalho discutido anteriormente têm alguma influência no valor gerado por ela. Mesmo se relativizarmos as simplificações e incluirmos a intensidade, qualificação e determinação ex post do valor, fica claro que os determinantes do numerador e do denominador na fórmula da taxa de exploração têm muito pouco em comum entre si; que nossa pequena e simples fórmula, s/v, é muito mais complexa do que geralmente se supõe; e que as referências à taxa de exploração que não levam isso em consideração de maneira apropriada se configuram como uma ciência pobre. A teoria marxista da superexploração No decorrer deste ensaio, vimos muitos exemplos do “constante entrelaçamento do pagamento da força de trabalho por seu valor e abaixo de seu valor ao longo d’O capital” (Osorio, 2018, p. 166). A maneira como Marx colocou a questão, a “redução dos salários abaixo de seu valor”, se ajustou à sua “análise geral do capital”, na qual assumiu uma economia unitária única e uma concorrência perfeita entre os capitalistas e trabalhadores, condição para que todas as mercadorias fossem vendidas pelo seu valor,31 e para que a força de trabalho tenha um único valor. Conceituar a superexploração no nível não do “capital em geral”, mas da economia capitalista global contemporânea, exige uma modificação significativa da formulação de Marx: em âmbito global, não se trata tanto de os salários estarem acima ou abaixo do comum, de um valor único, mas sim de que o valor da força de trabalho, e não apenas o salário, seja rebaixado em alguns países, mas não em outros. Em outras palavras, o crucial não é tanto se o valor da força de trabalho é violado por sub-remuneração, mas, como enfatizado no início deste ensaio, a vulnerabilidade da igualdade entre trabalhadores, uma violação que se reflete em sua força de trabalho com valores diferentes. A tentativa de Katz de “corrigir” o conceito

de Marini, afirmando que a força de trabalho tem valores diferentes dependendo de onde reside e que, por causa disso, “o conceito de pagamento de força de trabalho abaixo de seu valor deve ser substituído por uma remuneração menor desse recurso” (Katz, 2017, p. 10) não nos leva a lugar algum, por duas razões. Primeiro, se aceitarmos (como deveríamos) que o valor da força de trabalho varia amplamente entre os diferentes países, a pergunta que deve ser respondida é por que varia tão amplamente? Segundo, Katz argumenta que essa correção transforma a superexploração em um fenômeno menor, não sistêmico, que é tão provável de ser encontrado nos países “centrais” quanto na “periferia”.32 Mas isso só pode ser verdade se concordarmos com sua afirmação de que “a magnitude do trabalho excedente [...] é claramente maior nas economias mais produtivas do centro” (Katz, 2017, p. 10). Isso é idêntico ao argumento desenvolvido pelos marxistas negadores do imperialismo, discutidos anteriormente neste ensaio, um argumento enraizado na fusão das definições de produtividade de valor de uso e valor de troca. Em outras palavras, nada mais do que a economia burguesa disfarçada de economia marxista. Como vimos, Marx excluiu repetida e explicitamente a supressão de salários abaixo do valor da força de trabalho de sua “teoria geral” do capital, enfatizando repetidamente a importância disso na vida real. A redução no valor da força de trabalho ao suprimir os níveis de consumo (ou o que equivale à mesma coisa, transferindo a produção para países onde os níveis de consumo e, com eles, o valor da força de trabalho, são muito menores) é uma terceira maneira distinta de aumentar a mais-valia,33 e isso adquiriu uma enorme importância durante a era neoliberal, tornando-se a força motriz de sua maior transformação, o meio mais importante de aumentar a taxa de mais-valia e contrapor a tendência de queda da taxa de lucro. A redescoberta dessa terceira forma de mais-valia é o avanço que torna possível aplicar os conceitos dinâmicos e científicos contidos n’O capital à realidade imperialista concreta e foi feito por Andy Higginbottom em um artigo de 2009 intitulado “The Third Form of Surplus Value Increase” [“A terceira forma de aumento da maisvalia”], no qual ele se baseia no trabalho de Marini, e o desenvolve

ainda mais em uma série de artigos inovadores, alguns deles citados neste ensaio. Em seu artigo de 2009, ele diz: Marx analisa três formas distintas pelas quais o capital pode aumentar a maisvalia, mas ele menciona apenas duas delas, mais-valia absoluta e mais-valia relativa. O terceiro mecanismo, a redução dos salários abaixo do valor da força de trabalho, Marx remete à esfera da concorrência e à parte de sua análise.

Ele desenvolve essa ideia em artigos posteriores, em que, por exemplo, criticando a leitura ortodoxa padrão d’O capital, afirma: Não está claro [...] por que prolongar a jornada de trabalho [mais-valia absoluta]; e o efeito indireto, não intencional e mediado, do aumento da produtividade do trabalho na diminuição do valor da força de trabalho [maisvalia relativa] pertence à natureza intrínseca do capital, enquanto que o capital que diminui diretamente os salários não. Os três mecanismos aumentam a taxa de mais-valia [...]. A redução direta dos salários [é] crucial para a análise do capitalismo como imperialismo e como um sistema mundial. (Higginbottom, 2011, p. 284)

O impulso de monopólio dos capitalistas, ou seja, o desejo de capturar mais-valia às custas de outros capitalistas, junto ao seu desejo insaciável por mão de obra superexplorável, se combinam para ditar a trajetória imperialista inata e inexorável do capitalismo, o único caminho possível que o capitalismo poderia ter tomado. Ambos os elementos, o monopólio e a superexploração, são absolutamente essenciais ao conceito de imperialismo; definir imperialismo unicamente em termos de monopólio é uma análise unilateral e, portanto, falsa, e esquece a outra definição, muitas vezes repetida, de Lenin: “a divisão das nações em opressoras e oprimidas [é] a essência do imperialismo” (Lenin, [1915] 1964, p. 409), que hoje se expressa na estrutura de apartheid da força de trabalho global e da superexploração engendrada por ela. Se é assim, por que a superexploração não está no centro do conceito de imperialismo de Lenin, como exposto em Imperialismo, estágio superior do capitalismo (Lenin, [1916] 1964), ao lado do monopólio? A resposta curta é que ela está no centro, e o leitor pode encontrá-la se procurar, mas está encoberta e por boas razões. Como argumentado anteriormente, não é razoável que esperemos encontrar, nos escritos de Lenin e em outros escritos no momento do nascimento do estágio imperialista do capitalismo, uma teoria do imperialismo capaz de explicar sua forma moderna completamente

desenvolvida. Há um século, a relação entre nações imperialistas e oprimidas era, em grande medida, uma relação entre formações sociais capitalistas e pré-capitalistas, em flagrante contraste com o mundo de hoje, em que as relações sociais capitalistas estabeleceram um domínio quase total, e as relações entre nações imperialistas e oprimidas ocorrem quase inteiramente na órbita da relação capital-trabalho. Lenin não poderia ter incluído uma concepção de como o valor é produzido nos processos de produção globalizados porque a ocorrência em larga escala desse fenômeno pertence a uma fase posterior do desenvolvimento capitalista do que aquela em que vivia. Essas circunstâncias resultaram em uma inevitável desconexão, persistindo até os dias de hoje, entre a teoria do imperialismo de Lenin e a teoria marxista do valor, embora não fosse inevitável que essa desconexão persistisse até hoje; por isso não temos que culpá-lo. Como Lenin disse no prefácio da edição francesa e alemã de sua famosa brochura sobre o imperialismo, “superlucros enormes” se acumulam em “um punhado de países excepcionalmente ricos e poderosos que saqueiam o mundo inteiro” (Lenin, [1921] 1964, p. 193). Esses superlucros surgem do privilégio imperial, da violação monopolista da troca equitativa. Os superlucros imperialistas podem assumir várias formas: da escravidão e todas as outras formas vis de extorsão, roubo e ilegalidade; ou da superexploração, na qual a troca violada é aquela que ocorre entre capital e trabalho (mediada por empregadores diretos, burguesias nacionais etc.). Nesse caso, a igualdade violada é a igualdade entre proletários, cuja importância central foi enfatizada no início deste ensaio. O desejo insaciável dos capitalistas por mão de obra superexplorável, junto com seu desejo permanente de colher onde não semearam, de violar a igualdade de trocas entre agentes livres, fornece o impulso para o imperialismo, razão pela qual o imperialismo não pode ser reduzido ao monopólio ou à maturidade/hipertrofia do capital ou a qualquer outro de seus efeitos. A arbitragem global do trabalho, a substituição de trabalhadores relativamente bem pagos por trabalhadores de baixos salários nos países subordinados, a força motriz da globalização e da mudança

global de produção que caracterizou a era neoliberal, é a expressão mais pura desse impulso. A superexploração do trabalho assalariado desempenhou um papel menor nos estágios iniciais do imperialismo capitalista, quando a pilhagem imperial se manifestou na extração voraz de recursos minerais, frequentemente com o uso de trabalho forçado, junto a diversas formas de usura e extorsão financeiras. A troca desigual, ou seja, os termos de troca desvantajosos e deteriorados das exportações de mercadorias primárias do Sul (já presentes, como Marini apontou, em meados do século XIX), alcançaram uma importância proeminente no longo período que levou à era neoliberal; contribuiu largamente para o aumento exponencial da dívida, que se tornou uma fonte importante e contínua de pilhagem por si só; finalmente, a globalização da produção característica da era neoliberal transformou o trabalho vivo na lavoura a ser cultivada e o recurso a ser extraído. E isso, durante a era neoliberal, tornouse a forma predominante de pilhagem imperial. Isso traz à mente uma ideia luminosa de Evald Ilyenkov, que está anos-luz além das banalidades da “teoria do desenvolvimento desigual e combinado” (que, para muitos marxistas que negam o imperialismo, serve como um substituto insípido de uma teoria do imperialismo): “Muitas vezes [...], a causa objetiva genuína de um fenômeno aparece na superfície do processo histórico depois de sua própria consequência” (Ilyenkov, 1960, p. 217). Conclusão O impulso dos capitalistas ao monopólio, ou seja, seu desejo de capturar mais-valia às custas de outros capitalistas, junto ao seu desejo insaciável por trabalho superexplorável, se combinam para definir a trajetória imperialista inata e inexorável no capitalismo. O imperialismo e a superexploração estão, portanto, inseperavelmente ligados. Uma teoria do imperialismo do século XXI deve explicar como a superexploração modifica a relação de valores. Uma teoria do imperialismo que não o faça é inútil, nula e, necessariamente, uma negação do imperialismo, mesmo se aqueles que o negam continuem a usar “imperialismo” como um termo descritivo.

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VASUDEVAN, R. The global class war. In: Catalyst (3)1, 2019 14

“Vemos, cotidianamente, ‘sair’ o Sol, dar uma volta à Terra, para depois se esconder. Sabemos, não porque o vemos, mas por conhecimentos, que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas o contrário” (Osorio, 2019, p. 2). 15 “O que é uma hipótese para a ‘análise geral do capital’, isto é, ao nível do modo de produção, é assumido por algumas correntes marxistas como uma lei de ferro. Se assume com isso que hipótese deve prevalecer no capitalismo em todos os níveis de análise, em todos os lugares e espaços e o tempo todo” (Osorio, 2018, p. 157). 16 O outro livro criticado por Vasudevan é Amin, 2018. 17 Esta citação é da epígrafe que antecede o artigo de Vasudevan. Não está claro se as palavras são dos editores do Catalyst ou de Vasudevan. 18 Não é minha intenção fazer uma comparação loquaz entre a opressão imperialista e a opressão das mulheres, que em qualquer caso não pode ser medida pelo acesso relativo a bens materiais. É verdade que as mulheres contribuem com uma vasta quantidade de trabalho doméstico não remunerado – mas o ponto relevante aqui é que os níveis de consumo, acesso à saúde e educação etc. dependem muito mais da nacionalidade do que do gênero. 19 Diz Lenin: “O movimento espontâneo da classe trabalhadora é o sindicalismo [...], e o sindicalismo significa a escravização ideológica dos trabalhadores pela burguesia. Portanto, nossa tarefa [...] é combater o espontaneísmo e desviar o movimento da classe trabalhadora do sindicalismo espontaneísta que se esforça para ficar sob o controle da burguesia, e colocá-lo sob o controle da social-democracia revolucionária” (Lenin, [1902] 1978, p. 50). 20 “Dependência” é um eufemismo para o imperialismo, uma concessão feita ao desejo da burguesia nacional e “elites modernizadoras” das nações sujeitas para o desenvolvimento capitalista independente, e para as partes falsamente chamadas de “comunistas”, que procuravam formar um bloco com aqueles nessa base. O termo agora passou para a história e não pode ser reescrito, mas pode ser e está sendo preenchido com novo conteúdo revolucionário, especialmente no renascimento vívido e

em rápida expansão do marxismo e da teoria da dependência na América Latina. 21 Callinicos voltou brevemente neste tema em seu livro: “Da perspectiva da teoria do valor de Marx, o erro crítico [dos teóricos da dependência] é não levar em conta a importância dos altos níveis de trabalho produtividade nas economias avançadas” (Callinicos, 2009, p. 179-180). 22 A participação do trabalho no PIB nos países imperialistas caiu aproximadamente 60%, enquanto o gasto em educação no Reino Unido, em 2019, consumiu 4% do PIB, ou aproximadamente 7% da receita bruta do trabalho. Esta aproximação indica a magnitude relativa dos custos de educação diante dos custos totais de reprodução da força de trabalho. A “participação do trabalho” fica distorcida pelos supersalários dos CEOs das principais empresas. Por outro lado, o gasto com educação dos trabalhadores compõe apenas uma parte do gasto total em educação, pois a proporção real entre eles não se distanciará de 7%. Com relação aos custos de treinamento... a maioria dos trabalhadores não recebe treinamento. 23 Estas conquistas estão agora sob grave ameaça já que o imperialismo do Reino Unido se afunda cada vez mais na crise e seus governantes procuram acelerar a destruição do contrato social posterior à Segunda Guerra Mundial. 24 Ele afirma que Marini “sempre” concordou com isso e também afirma que “este diagnóstico é aceito também pelos defensores contemporâneos do conceito de superexploração”. Infelizmente, ele não apoia essas afirmações com uma única citação de qualquer uma das fontes por ele mencionadas. 25 A sentença da qual isso se derivou: “os melhores pontos em meu livro são: 1) o caráter duplo do trabalho, segundo o modo com que é expresso em valor de uso ou valor de troca (toda a compreensão dos fatos depende disso) [...] 2) o tratamento da mais-valia, independentemente de suas formas particulares, como lucro, juros, aluguel de terreno etc.”. 26 Ao contrário, a dispersão salarial internacional e intranacional aumentou durante a era neoliberal. Se a China ficar fora da cena, há pouco evidência de convergência salarial ou de entradas, e a hipótese de convergência fica ainda mais débil. Durante a crise

financeira mundial, quando as taxas de crescimento nos países imperialistas ruíram, ao mesmo tempo, se produziu um “superciclo de matérias-primas” alimentado pela especulação que melhorou temporalmente os termos de troca e o crescimento econômico em uma franja de nações do Sul. 27 Como apontou Amanda Latimer (2016, p. 1.142), “o trabalho de Marini mina o mito de que a mudança para a mais-valia relativa na Inglaterra foi inteiramente o produto da luta de classes nacional”. 28 Como em seus outros escritos, Sweezy desconsidera a distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, uma distinção que é sem dúvida muito mais importante nos países imperialistas desenvolvidos do que em suas colônias e neocolônias. 29 A China é uma exceção extremamente importante, mas ainda parcial, e é por isso que está em rota de colisão com as potências imperialistas em exercício, principalmente o Japão e os Estados Unidos 30 “Quando Marx afirma que as empresas que operam com uma produtividade abaixo da média obtêm menos do lucro médio [...] tudo isso [...] significa que o valor ou mais-valia realmente produzido por seus trabalhadores é apropriado no mercado pelas empresas que funcionam melhor. Isso não significa, em absoluto, que eles tenham criado menos valor ou mais-valia do que o indicado pela quantidade de horas trabalhadas nelas” (Mandel, 1975, p. 101). 31 Ou melhor, vender a preços que correspondam à forma modificada de seu valor, que Marx chamou de “preços de produção”, preços consistentes com a equalização da taxa de lucro entre diferentes capitais. 32 Com base nisso, Claudio Katz argumentou que “a teoria da dependência não precisa de um conceito de superexploração omitido por Marx” (Katz, 2017, p. 15); Jaime Osorio respondeu que a proposta de Katz de “reformulação da teoria marxista da dependência nada mais é do que um chamado ao seu repúdio” (Osorio, 2018, p. 179). 33 Em A dialética da dependência, Marini argumenta: “o conceito de superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa – a que corresponde ao aumento da intensidade do trabalho. Por

outra parte, a conversão do fundo de salário em fundo de acumulação de capital não representa rigorosamente uma forma de produção de mais-valia absoluta, posto que afeta simultaneamente os dois tempos de trabalho no interior da jornada de trabalho, e não somente o tempo de trabalho excedente, como ocorre com a maisvalia absoluta. Por tudo isso, a superexploração é melhor definida pela maior exploração da força física do trabalhador, em contraposição à exploração resultante do aumento de sua produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a força de trabalho se remunera abaixo de seu valor real (Marini, 1973, p. 93). Citado conforme a edição brasileira “Sobre a dialética da dependência”. In: Stedile, J. P; Traspadini, R. Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

CAPITALISMO MORIBUNDO E COMPETITIVO E. AHMET TONAK34 Um dia, na década de 1980, meu avô materno estava sentado em um parque no subúrbio de Londres. Um britânico idoso aproximou-se dele e apontou-lhe um dedo na cara. “Por que você está aqui?”, o homem exigiu saber. “Por que você está no meu país?” “Porque somos os credores”, respondeu meu avô, que nasceu na Índia, trabalhou toda a sua vida no Quênia colonial e agora estava aposentado em Londres. “Vocês levaram toda a nossa riqueza, nossos diamantes. Agora nós viemos para cobrar”. “Estamos aqui”, disse meu avô, “porque vocês estiveram lá”. Suketu Mehta. This land is our land

Introdução Nessa era da globalização, o conceito de imperialismo perdeu parte de seu prestígio teórico; até mesmo uma referência passageira pode agora ser considerada banal e pouco sofisticada. Curiosamente, a popularidade relativamente recente do conceito e a formulação de novas teorias concorrentes do imperialismo se concentram principalmente em suas manifestações políticas (como guerras e invasões militares) ou nas consequências econômicas das relações capitalisticamente imperialistas35 (como desigualdade e pobreza). Sem negar o significado político e a urgência de desenvolver análises do domínio político dos países capitalistas avançados (o Norte Global) sobre os menos avançados (o Sul Global), concentrome aqui no papel desempenhado pelas relações econômicas desiguais entre o Norte e o Sul em constituir a base da dominação política. Ao mesmo tempo, vejo as fontes de desigualdade doméstica e internacional como características embutidas no desenvolvimento capitalista, para as quais a motivação do lucro é fundamental. É dentro desse marco que os mecanismos de transferência de valor devem ser vistos como os meios de

reproduzir desigualdades entre as economias capitalistas sustentadas pelos processos globais de acumulação de capital. Certos participantes ativos nos debates atuais sobre o novo imperialismo, notadamente David Harvey, argumentam que a interpretação clássica do imperialismo não tem mais muito poder explicativo e que a direção da transferência de valor foi revertida nos últimos anos.36 Embora as interpretações clássicas do imperialismo – por exemplo, as de Bukharin, Luxemburgo e Lenin – não sejam livres de falhas, não posso concordar com a rejeição de Harvey às contribuições anteriores. E mais: acredito que a especulação de Harvey quanto à reversão da direção da transferência de valor seja infundada, tanto teórica quanto empiricamente. Contra tais opiniões, eu argumentaria que o imperialismo está vivo e bem e, mais importante, que limita as tentativas de desenvolvimento econômico autônomo no Sul. Sem negar a dificuldade empírica de estimar seu valor total e líquido, não há dúvida de que os países imperialistas continuam a extrair riqueza do Sul Global. Também é digno de nota que a maioria das novas conceituações do imperialismo desde Lenin (e até mesmo desde Hilferding e Hobson) se basearam na ideia de poder, especificamente do poder de grandes empresas monopolistas. A afirmação de Lenin era bastante direta: o capitalismo finalmente chegara ao seu estágio final – capitalismo de monopólio – que era o imperialismo. Devo acrescentar que várias modificações conceituais ao conceito de capitalismo monopolista foram propostas desde a formulação superficial de Lenin sobre o último estágio do capitalismo. Em particular, a reconceitualização devida a Paul Baran e Paul Sweezy, que consideraram o monopólio como a ausência de concorrência e argumentaram pela inaplicabilidade da teoria do valor de Marx, dominou a maioria das análises do capitalismo moderno na esquerda. Mas realmente é assim? E como exatamente a concorrência desapareceu durante o final do século XIX? Eu argumentaria, ao contrário, que a concorrência se intensificou em vez de desaparecer, à medida que o capitalismo se desenvolveu e passou pelo processo de centralização e concentração do capital. Aqueles que alegaram que o estágio atual do capitalismo deveria ser entendido como

monopolista se basearam principalmente na noção implícita de livre concorrência (ou concorrência pura ou perfeita) em relação à fase anterior do capitalismo,37 uma noção que não tem relação com a concepção de Marx de concorrência real como guerra entre unidades de capital (e entre os próprios trabalhadores).38 Marx supôs que essa concorrência bélica opera dentro e através das nações, em outras palavras, que é um processo regulador central que funciona tanto doméstica quanto internacionalmente.39 Obviamente, a própria base dessa concorrência é o fato de que o capital é principalmente – e de fato exclusivamente – impulsionado pelo lucro, e que essa preocupação não apenas produz ciclos e crises, mas também aumenta o exército de reserva de força de trabalho em escala global. Embora geralmentese considere exatamente o oposto, eu argumentaria que o papel do Estado se tornou mais, e não menos, significativo à medida que o capitalismo se expandiu globalmente. A principal função do Estado capitalista sempre foi criar um terreno fértil para a obtenção de lucro, tanto em âmbito nacional como internacional. O cumprimento dessa função anda de mãos dadas com um arcabouço ideológico no qual os conceitos de liberdade (leia-se: mobilidade do capital) e concorrência são não apenas centrais, mas usados de forma fetichizada. Como David Gordon disse, o fio da navalha da concorrência capitalista se tornou mais afiado: empresas locais são cada vez mais obrigadas a se igualar aos produtores de menor custo nos mercados concorrentes globais ou correm o risco de terem seus pulsos cortados. Gordon (1998, p. 28)

Hoje em dia, costuma-se dizer que todos os países devem se submeter aos ditames da concorrência mundial. Sem produtos de “classe mundial”, diz a tese, é provável que o padrão de vida de um país se estagne, se não declinar catastroficamente. A seguir, revejo brevemente as principais formas de transferência de valor a partir do Sul, observando que sua importância relativa mudou nas últimas décadas. Depois, foco no conceito de Marx de “taxa de mais-valia”, e mostro como pode ser usado empiricamente. Nesse contexto, aproveitarei a oportunidade para comentar sobre o uso e abuso do termo superexploração. Por fim, sugiro algumas das áreas de pesquisa menos exploradas e necessárias para melhorar

nossa compreensão da natureza das relações imperialistas na economia mundial extremamente integrada de hoje. Formas de transferência de valor Antes de listar algumas das formas mais importantes de transferência de valor – ou seja, da apropriação da riqueza gerada pela classe trabalhadora do Sul pelos capitalistas do Norte –, devese salientar que a própria existência da transferência de valor não deve ser interpretada como a causa da desigualdade entre as regiões do mundo. A acumulação de capital e a expansão global do capitalismo têm sido desiguais e integradas desde o início. Os processos históricos correspondentes são, por sua natureza, amplamente determinados por vários fatores econômicos e políticos. A direção e a quantidade de transferência de valor líquido entre as regiões são bastante complicadas; enquanto fluem do Sul para o Norte, obviamente contribuem para a perpetuação das relações imperialistas, quando para a sua criação.40 Uma das formulações marxistas mais proeminentes sobre a transferência de valor do Sul para o Norte é a teoria da troca desigual de Arghiri Emmanuel. Ao desafiar a visão de Sweezy de que a equalização da taxa de lucro em escala mundial não é possível devido à imobilidade do capital, Emmanuel apontou que, embora se possa falar da relativa imobilidade do trabalho, que produz diferenças salariais internacionais persistentes, o capital é móvel e tende a igualar as taxas de lucro em todo o mundo. Esse processo de equalização implica que a taxa de lucro nos países do Sul seja geralmente menor do que a do Norte, devido à transferência de lucros (mais-valia) em virtude da menor composição orgânica do capital no Sul (Shaikh, 1980, p. 298).41 Uma apresentação crítica da aplicação altamente criativa que Emmanuel fez da teoria do valor de Marx para a economia mundial estaria além do escopo do presente ensaio. Devo observar, no entanto, que a teoria da troca desigual de Emmanuel foi criticada e aprofundada por outros marxistas, incluindo Javier Iguiñiz, Charles Bettelheim, Samir Amin, Ernest Mandel, Anwar Shaikh e Nail Satlıgan.

Outra forma de transferência de valor é baseada nos investimentos em carteira e no endividamento internacional do Sul. O primeiro tem a ver com a repatriação dos lucros obtidos com o investimento especulativo de capital monetário em ações, títulos, câmbio e uma variedade de outros instrumentos financeiros; o último baseia-se nos ganhos de pagamentos de juros exorbitantes impostos aos países devedores do Sul. Historicamente, uma das principais formas de transferência de valor tem sido o repatriamento de lucros com base no investimento direto dos capitalistas do Norte nos países do Sul. Desde a brochura de Lenin sobre o imperialismo, o investimento estrangeiro direto (IED) tem sido considerado uma característica principal do imperialismo capitalista moderno. À medida que o capitalismo se desenvolveu, a primazia do capital mercantil (tanto na apropriação de recursos naturais e matérias-primas do Sul quanto na venda de mercadorias acabadas para o Sul) foi substituída pelo capital produtivo (investimento estrangeiro direto).42 Dada sua importância histórica, a centralidade desta forma de transferência de valor e a ênfase exagerada (pelos primeiros teóricos do imperialismo) no IED são compreensíveis. No entanto, algumas observações devem ser feitas, considerando padrões recentes de fluxos de IED. O primeiro ponto tem a ver com o fato de que os ingressos de IED para as economias desenvolvidas têm sido, ultimamente, maiores do que os das economias em desenvolvimento (44% em 2018, excluindo a China). Na era atual da globalização, os ingressos de IED para as economias em desenvolvimento excederam os das economias desenvolvidas pela primeira vez em 2018 – 54%, incluindo a China (UNCTAD, 2019). No entanto, este primeiro fenômeno é uma anomalia, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD): Os fluxos de IED para as economias desenvolvidas atingiram o ponto mais baixo desde 2004, diminuindo 27%. Os ingressos para a Europa caíram para menos de 200 bilhões de dólares, devido aos ingressos negativos em uma grande parcela de países, como resultado de repatriações de fundos e a uma queda considerável no Reino Unido. Os ingressos nos Estados Unidos também caíram 9%, para 252 bilhões de dólares. Os fluxos para os países em desenvolvimento permaneceram estáveis, aumentando 2%. Como resultado do aumento e da queda anômala do IED nos países desenvolvidos, a participação

dos países em desenvolvimento no IED global aumentou para 54%, um índice recorde. (UNCTAD, 2019)

Participação do IED das Economias em Desenvolvimento, com e sem China

Fontes: Baseado nos dados da UNCTAD (2019). Em segundo lugar, e ao contrário do pressuposto geral da esquerda, o capital estrangeiro não flui para o Sul porque os salários são em sua maioria baixos. Isso foi convincentemente argumentado por David Gordon, que descobriu que a importância de fatores como baixos salários e trabalho excedente foi muito exageradas no exterior, e que existem outros fatores que influenciam a decisão do capital de investir em outros países. Gordon identificou três fatores como os mais importantes: proximidade com grandes mercados domésticos; horizontes de preço e comércio relativamente estáveis; e o clima institucional geral e seu prospecto de evolução ao longo de uma década (Gordon, 1988, p. 59). Ainda neste ano, quando 754 executivos de grandes corporações multinacionais foram questionados sobre os fatores relevantes para suas decisões de investir em países estrangeiros, o fator de baixos salários não foi citado entre os mais importantes (Banco Mundial, 2018). De fato, dentre os fatores considerados “criticamente importantes” ou “importantes” para as decisões de investimento estavam a estabilidade e segurança política, o ambiente jurídico e regulatório, a amplitude do mercado interno, a estabilidade macroeconômica e a taxa de câmbio favorável, o talento e a habilidade disponíveis da força de trabalho, boa infraestrutura física

e taxas de imposto baixas, com respectivamente 87%, 86%, 80%, 78%, 73%, 71% e 58% de afirmações positivas na pesquisa. Por outro lado, o fator de baixo custo da força de trabalho e insumos foi considerado como importante em 53% das respostas (Banco Mundial, 2018). É notável que o que Gordon identificou há 32 anos atrás como razões mais importantes do que os baixos salários nas decisões sobre investimento estrangeiro permaneçam vigentes dentre aquelas consideradas pelos tomadores de decisão das corporações multinacionais!

Fatores Principais do Investimento Estrangeiro Direto

Fontes: Baseado em dados do Banco Mundial. 2018 Um ponto final a respeito da importância dos lucros estrangeiros do ponto de vista do capital dos EUA (e dos trabalhadores) é ilustrado no gráfico a seguir. Os lucros repatriados das multinacionais estadunidenses como uma porcentagem do lucro total dos EUA flutuaram entre 20% e 50% (se excluirmos o período da crise de 2007-2009) desde 1998.

Lucros estrangeiros como porcentagem do total de lucros dos EUA e salários domésticos nos EUA, 1998-2018

Fontes: Lucros corporativos do NIPA. Tabelas 6-16 B-D: linha 2, Indústrias domésticas; linha 6, Receitas do resto do mundo; Remuneração dos funcionários da NIA; Tabela 1.13, linha 6, Remuneração dos empregados (Post, 2010, p. 21). Considerando o fato de que apenas cerca de 50% desses “lucros estrangeiros” são originários dos países do Sul, não se deve exagerar sua contribuição, que variou entre 10% e 25% do total dos lucros nos EUA. Da mesma forma, com relação à questão de se a “aristocracia trabalhadora” nos EUA é sustentada por lucros transferidos, eu destacaria o fato de que a parcela dos lucros repatriados do Sul corresponde aproximadamente a apenas 6-7% do salário total. Este último número baseia-se na suposição extremamente irrealista de que todos os lucros estrangeiros transferidos são totalmente alocados aos trabalhadores dos EUA, enquanto as multinacionais dos EUA não retêm lucro algum (Post, 2002). A taxa de mais-valia e imperialismo A taxa de exploração é um dos conceitos mais importantes na teoria do valor de Marx. É a base da distribuição de renda – consequentemente, da taxa de lucro –, bem como é central para nossa compreensão da natureza específica da sociedade capitalista (Amsden, 1981, p. 229). Ademais, é essa medida, ou seja, a proporção de um componente do valor agregado (mais-valia) para o

outro (capital variável, isto é, os salários dos trabalhadores produtivos), que nos permite mostrar quanto o trabalhador contribui para o aumento de valor no processo de produção e como esse valor agregado é dividido entre capitalistas e trabalhadores. Deve ser notado que, mesmo que o trabalhador receba mais, a taxa de exploração ainda aumenta em virtude da mecanização (barateamento dos bens de consumo) e do gerenciamento eficiente do processo de produção (aumentando a intensidade do trabalho). Como a taxa expressa quantitativamente os interesses contraditórios dos capitalistas e dos trabalhadores, há uma política radical implícita na análise da taxa de exploração. Isso permite que os trabalhadores vejam quanto da parcela do valor produzido lhes é expropriada pelos capitalistas e, portanto, defendam uma maneira diferente de organizar a produção e colocar fim à exploração (Tricontinental, 2019). Os trabalhadores vendem sua força de trabalho por uma dada quantia de dinheiro, conhecida como capital variável. Quando eles começam a trabalhar na produção de mercadorias, apenas uma fração de sua jornada de trabalho é usada para produzir mercadorias suficientes para cobrir seus próprios salários. Marx chamou isso de tempo de trabalho necessário. Era necessário porque os trabalhadores deveriam reproduzir continuamente sua força de trabalho empobrecida. No entanto, a quantidade de tempo de trabalho necessário (ou a quantidade correspondente de salários) varia em diferentes épocas e países, devido ao fato de que as cestas de consumo dos trabalhadores consistem em diferentes quantidades de bens e serviços. Em alguns países, o padrão de vida é mais baixo que em outros, o que significa que o tempo de trabalho necessário também é menor, mantendo os salários baixos. O restante da jornada de trabalho, passado o tempo de trabalho necessário, é o tempo de trabalho excedente. É o tempo que o trabalhador gasta produzindo mercadorias que estão acima e além da quantidade que precisam produzir para pagar seus próprios salários. Portanto, a taxa de mais-valia também pode ser expressa como uma razão entre o tempo de trabalho excedente e o tempo de trabalho necessário. Seja na forma da razão entre a mais-valia (S) e o capital variável (V) ou entre o tempo de trabalho excedente e o

tempo de trabalho necessário, a taxa de mais-valia é considerada uma expressão quantitativa da exploração do trabalhador. O que apresentei brevemente acima é bem conhecido de qualquer pessoa familiarizada com o básico da economia marxista. O terreno menos familiar é a maneira pela qual a taxa de mais-valia se expressa concretamente na realidade das economias capitalistas e em sua estimativa empírica. Meu trabalho com Anwar Shaikh apresentou um método, passo a passo, para estimar a taxa de maisvalia para a economia dos EUA no período de 1948 a 1989 (Shaikh e Tonak, 1994).43 Como este trabalho está disponível para os leitores que se interessarem, simplesmente reiterarei uma de suas principais conclusões: a taxa de mais-valia (S/V; a taxa de exploração de trabalhadores produtivos) aumentou em mais de 40% no pós-guerra, de 170% em 1948, para 244% em 1989 (e, de acordo com as estimativas atualizadas de Mohun, para quase 300% em 2001). Tanto o nível da taxa de mais-valia nos EUA quanto seu aumento impressionante nos permitem fazer alguns comentários adicionais sobre a extraordinária visão de Marx sobre o ritmo e a finalidade da taxa. Marx previu que, à medida que o capitalismo se desenvolvesse, a taxa de mais-valia necessariamente aumentaria – e assim o foi, quase duas vezes em 50 anos no caso dos EUA. Novamente, como apontado por Marx, os capitalistas recorrem a uma variedade de meios para aumentar a taxa de mais-valia, especialmente durante períodos de queda nas taxas de lucro, a fim de neutralizar a tendência de queda da lucratividade. Agora é um fato já bem estabelecido que “a repressão direta contra os trabalhadores iniciada na era Reagan teve o claro efeito de reverter o padrão de lucratividade do pós-guerra” (Shaikh, 2016, p. 731), como manifestado no aumento da taxa de mais-valia em 200%, na década de 1980, para 300%, na década de 2000 (Mohun, 2005). Como a diferença entre as taxas de mais-valia nos países do Norte e do Sul tem sido uma questão central no desenvolvimento da noção de “superexploração” (e, nessa base, até mesmo de uma teoria do imperialismo), vale a pena citar algumas das estimativas para o Sul. Vamos examinar primeiro as estimativas da taxa de

mais-valia na Turquia e na Grécia, e depois citar brevemente algumas outras estimativas para estabelecer uma base comparativa. Com relação às estimativas para a Turquia, inquestionavelmente, a análise mais abrangente e sofisticada foi feita por Karahanoğulları em seu livro O valor de Marx é mensurável? Karahanoğulları analisou o período 1988-2006 e documentou o fato de que o valor médio da taxa de mais-valia durante esse período era de 239% – passando de 254%, em 1988, para 312% em 2006 (Karahanoğulları, 2009).44 Em outro trabalho empírico relevante para a discussão do imperialismo no contexto da Turquia, Tonak (1998) explorou as razões lucro-salário (um pseudoindicador da taxa de mais-valia) em algumas das empresas intensivas em IED durante 1996. Baseado nos dados das 500 principais empresas, coletados pela Câmara dos Industriais de Istambul, e das seis principais joint ventures com capital estrangeiro, os resultados foram consistentes com nossas expectativas teóricas. Como essas joint ventures são tecnologicamente sofisticadas e capazes de implementar a supervisão gerencial para aumentar a intensidade do trabalho, todas apresentaram índices de lucro-salário muito mais altos do que a média das 500 empresas. Para dar uma noção concreta da amplitude da “exploração”, conforme indicado pela razão lucrosalário, podemos citar o fato de que 4 empresas (de setores variados, incluindo tabaco – Philip Morris – e automotivo – Renault) tiveram suas razões de lucro-salário entre quatro e seis vezes acima da média, e as outras duas (ambas as fabricantes de automóveis – Toyota e Fiat – que são joint ventures com o capital turco) tiveram um pouco mais de três e duas vezes a média, respectivamente. O trabalho relativamente recente sobre a taxa de mais-valia na Grécia é de Tsoulfidis e Persefoni (2014), e eles descobriram que a taxa estimada de mais-valia mudou de aproximadamente 150% em 1970 para cerca de 200% em 2006 (Tsoulfidis e Persefoni, 2014). Uma das primeiras contribuições importantes na literatura para a análise comparativa das taxas de mais-valia na indústria de transformação, no período 1969-1977, foi feita por Alice Amsden (1981). Tanto a originalidade de sua análise quanto sua relevância

para nossa compreensão do capitalismo antes do atual período de globalização podem ser vistas em sua observação introdutória: Uma comparação internacional das taxas de mais-valia lança luz sobre as dimensões e as possibilidades de criação de mais-valia sob várias condições históricas e institucionais. Serve como ponto de partida para a disseminação desigual do capitalismo em escala global, que afeta a extração de mais-valia em contextos sociais díspares. (Amsden, 1981, p. 229)

O resultado final das descobertas de Amsden, mesmo considerando que seus cálculos foram setoriais e não agregados para o período pré-globalização, bastante inesperado: ela descobriu que as taxas de mais-valia nos países do Sul excederam substancialmente as do Norte. Curiosamente, a taxa de mais-valia entre os países de renda média do Sul tende a ser maior do que a dos países de renda baixa do Sul (Amsden, 1981, p. 242).

Taxas comparativas de mais-valia

Fontes: Compilado de vários estudos pelo autor Como mencionado anteriormente, a diferença entre as taxas de mais-valia nos países do Norte e do Sul tem sido uma ideia central no desenvolvimento da noção de superexploração e, com base nisso, no desenvolvimento de uma teoria do imperialismo, desde a contribuição original de Ruy Mauro Marini.45 Os proponentes mais recentes dessa abordagem são Andy Higginbottom (2010) e John Smith (2016). Em particular, o livro premiado de Smith recebeu muita atenção e gerou um debate substancial. Em vez de resumir as questões do debate, que estão disponíveis especialmente através do blog mantido por M. Roberts (2019), simplesmente quero destacar alguns dos pontos de concordância e discordância entre mim e Smith.

Não há dúvida de que a expansão global do circuito do capital produtivo, na forma de cadeias de valor, seja um fenômeno relativamente recente e muito importante. É uma área que definitivamente requer mais atenção e precisa de trabalho adicional, tanto teórico quanto empírico, a partir do uso da teoria do valortrabalho. Também foi demonstrado por alguns trabalhos empíricos incluindo o nosso no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social (2019) que essas empresas integrantes das cadeias de valor no Sul impuseram taxas de mais-valia muito mais altas a seus trabalhadores do que suas contrapartes no Norte. Nosso trabalho mais recente sobre o iPhone 10 estimou que a taxa de exploração dos trabalhadores envolvidos em sua produção seja acima de 2.000% (Tricontinental, 2019). Além desses pontos de acordo, no entanto, o fato de a transferência de valor entre o Norte e o Sul (ou das economias capitalistas mais fracas para as mais fortes, tanto doméstica quanto internacionalmente) ter múltiplas fontes, como indicado anteriormente, torna bastante complicado determinar a direção e o valor líquido dessas transferências, bem como destacar uma fonte particular (por exemplo, taxas mais altas de mais-valia) para tentar construir uma teoria do imperialismo em torno dela. O conceito de superexploração requer uma definição clara e empiricamente aplicável. Smith tentou fazer o primeiro em seu livro, definindo a superexploração como surgindo no Sul quando a taxa de mais-valia é mais alta que a taxa média de mais-valia no Norte.46 No entanto, não há uma única estimativa comparativa das taxas de mais-valia no próprio livro, embora afirme que o próprio conceito de superexploração não apenas serve como base de uma nova teoria do imperialismo, mas também inicia o renascimento do marxismo. Conclusão Para recapitular, a teoria do imperialismo precisa de uma teoria da concorrência global, e tal teoria pode ser desenvolvida com base na noção de concorrência doméstica de Marx, apresentada n’O capital. Essa tentativa envolve teorias do comércio internacional, da determinação da taxa de câmbio real e da formação de preços através da aplicação de uma teoria real da concorrência entre

setores e dentro de setores, internacionalmente.47 Portanto, o próprio imperialismo não deve ser entendido como um exercício de poder pelas empresas monopolistas do Norte sobre as mais fracas do Sul. Em vez disso, as relações imperialistas devem ser vistas como manifestações da natureza muito desigual, e historicamente determinada, do desenvolvimento capitalista global. Essas relações contêm várias formas de transferência de valor, que são os próprios meios de perpetuar as relações imperialistas já existentes, em vez de serem suas causas. Referências AMIN, S. Imperialism and unequal development. Nova York: Monthly Review Press, 1977. AMSDEN, A. “An international comparison of the rate of surplus value in manufacturing industry” Cambridge Journal of Economics, (5) 3, p 229-249, 1981. BOTWINICK, H. Persistent inequalities: wage disparity under capitalist competition. Princeton: Princeton University Press, 1993. EMMANUEL, A. Unequal exchange: a study of the imperialism of trade. Nova York: Monthly Review Press, 1972. GORDON, D. “The global economy: new edifice or crumbling foundations?” New Left Review, março-abril, 168, p. 24-64, 1988. HARVEY, D. “A commentary on A theory of imperialism”, in: Patnaik, U. & Patnaik, P. A theory of imperialism, Nova York: Columbia University Press, 2017. HIGGINBOTTOM, A. “Underdevelopment as super-exploitation: Marini’s political-economic thought”. Historical materialism: crisis and critique, 7th Annual Conference; 11-14 de novembro, Londres, U.K. (no prelo), 2010.

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Sem implicá-los, sou muito grato à I. C. Schick, V. Prashad, e Z. Ü. Kutlu pelas sugestões. 35 Uso o termo capitalisticamente imperialista para distinguir meu foco de outras relações imperialistas que existiram historicamente entre países fortes e fracos (territórios, comunidades etc.) nos modos de produção pré-capitalistas. 36 Como frequentemente citado, Harvey escreve que “aqueles de nós que pensam as antigas categorias do imperialismo não se enquadram muito bem nos tempos atuais, não negam os fluxos complexos de valor que expandem a acumulação de riqueza e de poder em uma parte do mundo às custas da outra. Nós

simplesmente achamos que os fluxos são mais complicados e que mudam de direção constantemente. A drenagem histórica de riqueza do Oriente pelo Ocidente por mais de dois séculos, por exemplo, tem sido, em boa medida, revertida ao longo dos últimos 30 anos.” (Harvey, 2017, p. 169). John Smith identifica estes autores, utilizando um termo um tanto quanto pesado, como os “negadores do imperialismo”, e aqueles que têm diferentes formulações sobre os mecanismos de transferência de valor como “Euro-marxistas”, outro adjetivo politicamente carregado. (Smith, 2016 and 2018) 37 Curiosamente, vários aspectos da concorrência capitalista real, como formulados inicialmente por Marx, são atribuídos ao monopólio. Para demonstrar o desnecessário uso do monopólio e o significado e a aplicabilidade funcional da concorrência ao capitalismo moderno, substituí o termo “monopólio” por “concorrência” (com pequenas modificações) na seguinte citação do novo livro de Smith sobre imperialismo. Como os leitores podem ver, a citação modificada faz todo sentido e a necessidade do termo “monopólio” é, digamos,no mínimo, questionável: “A concorrência ocorre de várias formas. Algumas dizem respeito à produção, isto é, inovações tecnológicas que permitem que um capitalista individual produza uma determinada mercadoria com mais eficiência do que outras; outras, à distribuição (marca ou outras formas de concorrência no mercado, barreiras para novos entrantes, captura do Estado, acesso privilegiado a insumos baratos etc.); tudo pode ter vida curta ou duradoura. É comum a todas as formas de concorrência que elas redistribuem a mais-valia entre os capitais, permitindo que capitalistas individuais ou grupos de capitalistas obtenham lucros extras vendendo mercadorias por mais que valores (isto é, mais que preços diretos que são proporcionais aos valores de mercadorias) aos custos de lucros mais baixos para o resto” (Smith, 2018). 38 A noção de concorrência de Marx como guerra é um dos conceitos fundamentais do recente livro de Shaikh, Capitalismo, em que a chamou de concorrência real, “[...] antagônica por natureza e turbulenta em operação. É o mecanismo regulador central do capitalismo e é tão diferente da chamada concorrência perfeita

quanto a guerra é diferente do balé. A concorrência dentro de um setor obriga os produtores individuais a estabelecerem preços que os mantenham no jogo, assim como os obriga a reduzir custos para que possam reduzir os preços para competir de maneira eficaz. Os custos podem ser reduzidos cortando salários e aumentando a duração ou a intensidade da jornada de trabalho, ou pelo menos reduzindo o crescimento salarial em relação ao da produtividade. Mas estes devem enfrentar a reação do trabalho, razão pela qual a mudança técnica se torna o meio central no longo prazo. Nesse contexto, os capitais individuais tomam suas decisões com base em julgamentos sobre um futuro intrinsecamente indeterminado. A competição coloca vendedor contra vendedor, vendedor contra comprador, comprador contra comprador, capital contra capital, capital contra trabalho e trabalho contra trabalho. Bellum omnium contra omnes.” (ênfase minha; Shaikh, 2016, p. 14). 39 É um fato frequentemente citado que Marx planejou, mas nunca foi capaz de completar, um volume específico d’O capital, o sexto, inteiramente dedicado à economia global (“o mercado mundial e as crises”, nas palavras de Marx) (Mandel, 1976). 40 Para uma discussão detalhada desses pontos, consulte o fértil artigo de Shaikh sobre comércio exterior, lei do valor e troca desigual (1979, 1980). Este artigo também é útil para identificar as diferenças entre os principais teóricos da troca desigual, como Arghiri Emmanuel, Ernest Mandel e Samir Amin. Devo indicar que alguns dos pontos do texto de Shaikh também foram desenvolvidos por Javier Iguiñiz em sua tese de doutorado (orientada por Shaikh) na New School (Iguiñiz, 1999). 41 Um trabalho empírico recente sobre troca desigual sugeriu que, para o Sul, a transferência de saída de valor variou entre 10% e 20% (Ricci, 2019). 42 Uma conceituação altamente original e precoce da transição da dominação de um tipo de circuito de capital para outro foi proposta pelo marxista francês Christian Palloix (1977). 43 Este trabalho forneceu a base metodológica de outras estimativas semelhantes em muitos países diferentes, incluindo as da Grécia por Paitaridis e Tsoulfidis (2012), Tsoulfidis e Persefoni, (2014), e da Turquia por Karahanoğulları (2009). Devo também mencionar as

importantes contribuições de Simon Mohun na atualização de nossas estimativas (com algumas correções) com base na disponibilidade de conjuntos de dados mais recentes (Mohun, 2005). 44 Algumas das primeiras estimativas foram feitas por Tonak (1980), que aponta que os números mudaram de 376% em 1950 para 352% em 1975. 45 Do nosso ponto de vista, os defensores do conceito de superexploração, em última análise, pertencem à escola do subdesenvolvimento, uma vez que, para eles, a questão tem sido como identificar a fonte do “desenvolvimento do subdesenvolvimento” dentro do domínio das chamadas causas externas, isto é, o imperialismo. Entretanto, nessa perspectiva, o subdesenvolvimento do Sul é o produto do desenvolvimento do Norte e, nesse sentido, os dois processos estão entrelaçados. Ademais, a abordagem da superexploração implica uma passividade atribuída às classes trabalhadoras tanto no Sul quanto no Norte. 46 De acordo com Smith, a troca desigual entre capitalista e trabalhador (no sentido de que os trabalhadores são pagos abaixo do valor da força de trabalho) leva à superexploração. Dentro de um país, alguns relatos devem ser feitos sobre o “problema da habilidade” em Smith, Ricardo e Marx. Um artigo sobre Shaikh e Glenn (2018), sobre o qual taxas iguais de exploração mesmo dentro de um país implicam salários desiguais, é: https://ideas.repec.org/p/new/wpaper/1811.html 47 Algumas dessas áreas de pesquisa foram abordadas em nosso livro anterior (Shaikh e Tonak, 1994), mas também de forma mais abrangente no livro recente de Shaikh (2016).

NOTAS SOBRE A ATUALIDADE DO IMPERIALISMO E A NOVA ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA NACIONAL DOS ESTADOS UNIDOS ATILIO A. BORON Introdução Nas páginas que seguem, compartilharemos algumas observações sobre a atualidade do imperialismo e seu impacto sobre a guerra e a paz no mundo atual e, especialmente, sobre o presente e o destino da América Latina e do Caribe. Trata-se, sem dúvida, de um conjunto de assuntos da maior importância porque o capitalismo esteve desde seu nascimento associado à guerra e à arte militar. Diversos escritos de Marx e Engels comprovam o cuidadoso acompanhamento que ambos faziam das guerras em curso dentro e fora do continente europeu. Em sua “Introdução”, de 1857, Karl Marx nos diz que “a guerra se desenvolveu antes do que a paz” e, por isso, ele se propõe a “mostrar a maneira com que certas relações econômicas, tais como o trabalho assalariado, o maquinismo etc., foram desenvolvidos pela guerra e nos exércitos antes do que no interior da sociedade burguesa” (Marx, 1974, p. 5657). Mas dos dois jovens amigos, foi Friedrich Engels quem se especializou no estudo sistemático da problemática militar. Este, a quem, por sua paixão pelas questões da guerra, Marx havia apelidado de “o general”, deixou inúmeros escritos dispersos ao longo de sua obra que são uma fonte fundamental de reflexão sobre o tema que nos interessa, e que nós, latino-americanos, deveríamos estudar em profundidade.48

Obviamente que, por mais importante que seja este tema – sobretudo em um continente como o nosso que, atualmente, alberga 80 bases militares dos Estados Unidos e algumas da Otan –, não será o objetivo desta apresentação pesquisar as reflexões de Marx e Engels sobre o assunto. Tampouco farei uma análise do corpus de teorias acerca da guerra surgido no calor da Primeira Guerra Mundial, em que Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Kautsky e, mais tarde, Gramsci fazem extensa referência. O propósito desta intervenção está fortemente marcado pelas exigências impostas pela conjuntura e, por conseguinte, me limitarei a convidar os leitores a buscar esses escritos militares dos pais fundadores e das principais figuras do marxismo clássico. Em todo caso, será suficiente apontar aqui que, na medida em que a tradição marxista coloca no centro da dinâmica histórica o enfrentamento social, é evidente que suas análises sociológicas e econômicas acabassem se referindo, de alguma maneira, à guerra social, realizada aberta ou encoberta. Por isso, no célebre Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels falam da “guerra civil mais ou menos encoberta” que se desenvolve nas sociedades burguesas, e de aí também a permanente referência aos escritos sobre a guerra de Carl von Clausewitz, o mais importante teórico da guerra naquele tempo.49 Dito isso, passemos a abordar a problemática central deste trabalho: o imperialismo. Caracterização da fase atual do capitalismo: a terceira onda da expansão imperial A expansão/globalização do modo de produção capitalista é um aspecto estrutural deste sistema econômico. Isso adquire um impulso especial após a Segunda Revolução Industrial, que, em meados do século XIX, modificou radicalmente o panorama dos transportes e dos meios de comunicação. A revolução na navegação e nas ferrovias, bem como na telegrafia sem fios, deu um novo impulso ao comércio mundial e à expansão territorial do capitalismo. Pouco mais de um século depois, na época atual, as telecomunicações, a internet e os avanços nos transportes aéreo, marítimo e terrestre produziriam idênticos resultados, mas em uma escala e com uma profundidade incomparavelmente maior.

Hoje estamos imersos no que apropriadamente poderia ser chamado de “a terceira onda” da expansão imperialista. A primeira teve sua origem como toque final da Segunda Revolução Industrial e fez com que as principais potências coloniais europeias repartissem o mundo, um ato de pilhagem consagrado e legalizado na Conferência de Berlim de 1884-1885 que, embora tenha tido como eixo das discussões o desmembramento da África, também teve implicações para o resto dos países que, em seguida, seriam denominados como o Terceiro Mundo. As consequências dessa divisão criminosa e irresponsável são sofridas por muitos povos até hoje. A tragédia que cobre de luto muitos países africanos e o Oriente Médio tem nessa conferência uma de suas causas mais significativas. Esta primeira onda de expansão imperialista culmina com a carnificina da Primeira Guerra Mundial; a queda de quatro impérios: o tsarista, o alemão, o austro-húngaro e, em câmera lenta, o otomano; e nada menos do que com o triunfo da Revolução Russa, abrindo assim uma nova etapa na história universal. Não obstante, o que se seguiu não foi a paz, mas um armistício. Para alguns autores, como Immanuel Wallerstein em vários de seus escritos, na realidade não houve duas guerras mundiais, mas apenas uma, com uma trégua de duas décadas até que, após serem realinhadas as forças e as alianças, se produziu a batalha definitiva no que normalmente se reconhece como a Segunda Guerra Mundial. Se na anterior caíram quatro impérios, nesta foram derrubados os dois que continuavam em pé: o império britânico e o francês, sobrevivendo em extrema precariedade aventuras imperiais marginais como a dos portugueses, belgas e holandeses. Mas a Segunda Guerra Mundial, além disso, foi testemunha de um acontecimento assustador: a sobrevivência da Revolução Russa e seu incrível fortalecimento. Ela não apenas havia resistido aos horrores da guerra civil e à invasão de cerca de 20 exércitos das “democracias ocidentais” dispostas a afogar a peste soviética em seu berço, mas que, duas décadas mais tarde, foi protagonista decisiva para derrotar o nazismo. Mais do que isso: com a derrota das Potências do Eixo, faliu também a velha e complexa estrutura de um sistema internacional baseado nos voláteis acordos entre as principais potências europeias e cujo eixo integrador era o Reino

Unido, dando lugar a uma mais simplificada, de caráter bipolar e que colocava no auge um confronto de duas superpotências e seus aliados: os Estados Unidos e a União Soviética. A segunda vida do imperialismo A redistribuição do poder econômico, político e militar internacional, unida à fenomenal destruição de vidas humanas, territórios e forças produtivas provocada pela conflagração, só podia deixar profundas marcas na consciência da época, especialmente se se leva em conta que foi nesse contexto que se realizaram os dois maiores atentados terroristas da história universal: o bombardeio atômico sobre as cidades indefesas de Hiroshima e Nagasaki. É um lugar comum dizer que o segundo pós-guerra abriria o capítulo mais esplendoroso da história do capitalismo, o famoso “quarto de século de ouro” transcorrido entre 1948 e 1973. Foi nesse breve lapso que, segundo a recentemente falecida teórica marxista Ellen Meiksins Wood, o capitalismo deu o melhor que podia oferecer. A adoção da perspectiva keynesiana nessa fase se traduziu na expansão da cidadania, dos direitos sociais e trabalhistas; favoreceu a construção de regimes democráticos, o fortalecimento das organizações populares, dos sindicatos, dos partidos comunistas e socialistas. Mas esse período chegou a seu fim abrupto em meados dos anos 1970 com o auge do neoconservadorismo nos países desenvolvidos – com Margaret Thatcher e Ronald Reagan à frente – e a implementação de sangrentas ditaduras militares em quase toda a América Latina. Assim como afirmava Meiksins Wood, essa primavera não voltaria a se repetir nunca mais. Com a desintegração da União Soviética, o capitalismo retornou à sua normalidade e as antigas conquistas populares foram ou suprimidas totalmente, ou severamente reduzidas, enquanto que as democracias burguesas foram sofrendo uma perversa metamorfose que terminou convertendo-as, atualmente, em vergonhosas plutocracias (Brooks, 2016).50 Na Europa, a soberania popular não brota mais do povo, mas repousa nos tentáculos da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) que tira e coloca governos a seu bel prazer, como o demonstram vários casos, sendo a Grécia o mais evidente de todos,

embora longe de ser o único. Em outras palavras, se a dominação do capital admitiu avanços em matéria de direitos civis e organização democrática, foi devido à presença ameaçadora da União Soviética e do perigo de um “contágio” do “vírus russo” que derrubasse os regimes burgueses que imperavam na época. Mas com a desaparição da URSS, as coisas mudaram. Porém, como lembra em sua notável obra o historiador catalão Josep Fontana, entre o fim da Segunda Guerra e o início do “quarto de século de ouro”, houve três anos terríveis. A URSS perdeu 27 milhões de vidas, especialmente de homens jovens. A ocupação alemã arrasou 1.710 cidades e cerca de 70 mil aldeias. Alemanha e Japão viram grande parte de seus territórios serem destruídos pelos bombardeios. E a essa devastação se acrescentou a fome, produto da destruição da agricultura, a seca que arruinou as colheitas de 1946 e o frio incomum do inverno de 1946-1947. “Aos milhões de mortos causados pela guerra” – observa Fontana – “teriam que ser somados outros milhões de vítimas das grandes fomes de 1945 a 1947” (Fontana, 2011, p. 25). Uma sequência de fatos que, somando as pessoas que morreram não apenas no cenário europeu mas também no asiático, sobretudo por causa dos horrores da ocupação japonesa, chega facilmente a cerca de 100 milhões de pessoas sacrificadas no altar da taxa de lucro do capital. Este foi o necessário preâmbulo daqueles anos “gloriosos” de 1948-1973, que coincidiram com a veloz expansão do imperialismo estadunidense em escala planetária, cujas origens remetem ao roubo de grande parte do território do México na metade do século XIX, à sua precoce expansão na região centroamericana e caribenha no fim daquele mesmo século e, sobretudo, ao seu sequestro da vitória cubana sobre o colonialismo espanhol em 1898. Depois da Segunda Guerra Mundial, com o Reino Unido e a França despedaçados, suas colônias em franca rebeldia e sem rivais à vista, a expansão imperial estadunidense parecia não conhecer limites. Esta foi a segunda onda imperialista, que coincide em termos gerais com os “anos gloriosos”. Só que, com a recuperação europeia e japonesa, visível desde os anos 1960, a paisagem do imperialismo começa a reconhecer múltiplas bandeiras e não só a das estrelas e listras dos Estados Unidos. As

transnacionais estadunidenses pouco a pouco começaram a se ver desafiadas pela rápida aparição de grandes conglomerados corporativos de origem europeia e japonesa primeiro, e em seguida de outros países, principalmente a Coreia do Sul. A segunda onda imperialista culminou com o abandono do keynesianismo, o retorno da ortodoxia (no dizer de Raúl Prebisch), o auge da globalização neoliberal impulsionada pelos enormes avanços tecnológicos no campo da informática, as telecomunicações e o transporte. Tudo isso em um clima conservador orquestrado por um formidável tridente reacionário composto por Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o Papa João Paulo II. Ao fim da década de 1980 se derruba o muro de Berlim e, pouco depois, se desintegra a União Soviética. Parecia então que a vitória do Ocidente estava garantida e, assim, alguns intelectuais e acadêmicos estadunidenses e seus seguidores latino-americanos, de pensamento ligeiro e superficial, concluíram que havia chegado a hora do “novo século (norte) americano” e que de agora em diante a estrutura do sistema internacional seria “unipolar”. Sem perder tempo, as corporações e as agências do governo federal começaram a alimentar financeiramente uma fundação criada com o objetivo de elaborar o roteiro desse novo século, que parecia tão propício para os Estados Unidos. Centenas de acadêmicos, especialistas e intelectuais se dedicaram à tarefa de elaborar os contornos de tão promissória jornada. Bill Clinton, na companhia de seus mordomos britânicos, fez a sua parte: desmontou as últimas peças que restavam em pé das regulações financeiras e criou o mundo sonhado por Wall Street e a City londrina. Parecia, efetivamente, que tudo estava sob controle. A Alca não era nada além da manifestação hemisférica desse processo de reorganização global de um império sem rivais. Porém, como diz Rubén Blades, “a vida te dá surpresas”, e óbvio que Washington teve as suas. Antes de mais nada, no meio desses hinos e cantos de alegria pelo novo século estadunidense se produziram os atentados de 11 de Setembro, o primeiro ataque em território estadunidense em quase dois séculos. Lembre-se de que os Estados Unidos haviam participado das duas Guerras Mundiais sem que um tiro sequer tivesse sido disparado em seu território.

Subitamente o país se deu conta da sua vulnerabilidade, e de que o enorme orçamento militar não garantia sua inviolabilidade. Se militarmente os Estados Unidos deixavam de ser inexpugnáveis, a vertiginosa ascensão da China – não inesperada, mas sim prematura, segundo os analistas do império, que a estimavam para o ano 2030, aproximadamente – junto ao inquietante retorno da Rússia aos primeiros planos da política mundial, a impetuosa entrada da Índia nos assuntos internacionais e a consolidação de uma série de potências regionais, como Brasil, África do Sul, Indonésia, Coreia do Sul e Turquia configuraram um cenário global muito mais desafiante do que o da era bipolar. Porque agora, com a desintegração da União Soviética e os avanços da informática, a não proliferação nuclear se transformava em uma quimera, e a “segurança nacional” dos Estados Unidos demonstrava ser mais incerta do que antigamente. Relançamento imperial É neste cenário que a liberalização financeira e comercial, junto à violenta aplicação das políticas neoliberais em quase todo o mundo, deu lugar ao terceiro ciclo de expansão imperialista, que ganha impulso precisamente na década de 1990 e que continua até nossos dias, incorporando profundamente, como áreas de caça do capital imperialista, regiões e países outrora vetados a suas ambições: Rússia, os países do Leste Europeu, China, Vietnã. Isso permite falar de um imperialismo revigorado e estimulado por novos horizontes nos quais desenvolver seus projetos. Vários são os sinais distintivos deste tempo, mas gostaria de chamar atenção para dois deles. Em primeiro lugar, o acelerado ritmo de concentração da riqueza em todos os países, da China aos Estados Unidos, sem nenhuma relevante exceção em âmbito mundial. Isso foi denunciado pela Oxfam em seu relatório no Fórum Econômico de Davos, ao apontar que, segundo estimativas oficiais, no momento atual, o 1% mais rico da população mundial detém o controle de 51% da riqueza do planeta, ou seja, mais do que os 99% restantes da população mundial possuem. Relacionado a isso, um estudo realizado pela Universidade de Zurique demonstrou que 147 megacorporações controlam 40% da riqueza do planeta. O segundo sinal

característico da fase atual é a intensificação da corrida armamentista, o surgimento de várias zonas de extrema tensão bélica e o aumento no número de guerras e de suas vítimas. Existem, hoje em dia, três pontos quentes no sistema internacional: o barril de pólvora do Oriente Médio, infame consequência da rapacidade dos Estados Unidos e seus comparsas europeus que não hesitaram nem por um minuto em destruir países inteiros (Líbano, Iraque, Líbia e atualmente a Síria) a fim de apropriar-se de seu petróleo, que é a única coisa que lhes interessa. Desencadearam uma série de dramas humanitários como o mundo não via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo ponto quente: a Ucrânia e sua extensão na Europa do Leste, em que o ímpeto da Casa Branca e da União Europeia de conter o “urso russo” (nada soviético!) levou a promover um golpe de Estado naquele país, com o ativo protagonismo do Departamento de Estado na pessoa de sua subsecretária, Victoria Nuland, e deslocar as tropas da Otan para a própria fronteira russo-ucraniana. E isso considerando que, quando caiu a URSS, os líderes das “democracias” ocidentais juraram solenemente que a Otan “não se movimentaria nem uma polegada para o Leste”. Não o fizeram. Só que se movimentaram várias centenas de quilômetros para os confins da fronteira russa. O terceiro ponto quente se localiza no mar do sul da China, rico em petróleo, e que é um território em disputa entre vários países: China, Japão e Vietnã, entre os mais diretamente envolvidos. Esta é uma situação que pode facilmente sair do controle, bem como as já apontadas, e de uma gravidade especial: Washington pode reagir mornamente diante de uma invasão da Rússia na Ucrânia, ou a uma retaliação de Moscou contra a Turquia por causa de uma avião russo derrubado. Mas só pode reagir com toda a sua força se a China, o segundo maior orçamento militar do planeta, decidir atacar o seu sócio e vassalo japonês. Em resumo, esta fase, terceira na história da expansão imperialista, apresenta, como todas as demais, a guerra como sua necessária contrapartida. Esta lacerante realidade demonstra, pela enésima vez, os erros da teoria do superimperialismo, ou ultraimperialismo, elaborada inicialmente por Karl Kautsky e continuada por muitos de

seus seguidores contemporâneos que insistem em rechaçar a tese de que o imperialismo poderia hoje, não necessariamente no passado, mas sim hoje, desembocar em uma guerra entre potências capitalistas. Apesar de seu glorioso passado soviético, a Rússia é uma delas e, com suas peculiaridades, também o é a China. E para os mais recentes documentos do Pentágono e do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a Rússia é, explicitamente, não um competidor mas sim o inimigo a ser derrotado. Fora isso, há que se levar em conta que, ainda durante os anos da bipolaridade Estados Unidos-União Soviética, as guerras proliferaram sem cessar na periferia do sistema e, na atualidade, o panorama, longe de ter melhorado, só se agravou. Fatores determinantes desta retomada do impulso expansivo do imperialismo Como entender esta delicada situação atual? Falando sucintamente, e sob o risco de simplificar demasiadamente esta apresentação, digamos que existem três aspectos do sistema internacional que podem oferecer algumas chaves interpretativas para compreender esta escalada de guerra. Em primeiro lugar, a instabilidade do equilíbrio geopolítico mundial é um elemento de decisiva importância na geração das tensões e conflitos que agitam o sistema internacional. Cada vez mais os diversos documentos elaborados pelos organismos militares e de inteligência dos Estados Unidos insistem em apontar que o novo cenário mundial está cheio de ameaças à segurança nacional e que, consequentemente, o país deve se preparar para várias décadas de guerras. Isso não para expandir a dominação global dos Estados Unidos, mas para conservar as posições relativas no tabuleiro geopolítico mundial. A paz, ou a busca por ela, é algo que nem se menciona nesses documentos; a suposição básica é a continuação indefinida da guerra, seja de caráter “preventivo”, como propunha George W. Bush, seja de tipo “retaliatório”, diante de um ataque aos Estados Unidos, aos seus cidadãos ou a países aliados e seus cidadãos. A multipolaridade atual é um formato do sistema internacional relativamente novo. Houve no passado algo parecido, que se chamou “Concerto de Nações”, mas era um sistema

exclusivamente europeu: nem os Estados Unidos, nem o Japão e menos ainda a China faziam parte desses acordos que duraram desde a paz de Westfália (1648) até seu estrepitoso colapso gerado pela Primeira Guerra Mundial. Durante esses quase três séculos, nenhum país de fora da Europa tinha algo a dizer nas mesas de negociações. Hoje é muito diferente, porque as potências não europeias diminuíram a gravitação da declinante e decadente Europa, e os consensos difíceis do passado, entre nações que compartilhavam basicamente uma mesma cultura, são muito mais difíceis de alcançar atualmente, quando quem faz parte da discussão são nações e governos que carregam histórias e cosmovisões muito diferentes e, em mais de um sentido, contraditórias. E que, logicamente, carregam interesses em conflito e, em boa medida, irreconciliáveis. Sob essas condições, a paz se converte em uma missão que deve superar enormes dificuldades para se realizar, e marca também a excepcionalidade da América Latina que, de longe, é a região mais pacífica, a única zona de paz deste convulsionado planeta. Os principais líderes da esquerda e o progressismo latino-americano não deixaram de marcar essa singularidade, ratificada também formalmente pela aprovação, em janeiro de 2014, na Segunda Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que aconteceu em Havana, de que a América Latina e o Caribe são uma “Zona de Paz”. Segundo, um fator que estimula e promove as guerras e a violência é a crescente gravitação do complexo militar-industrial-financeiro no processo decisório do governo estadunidense e, em menor medida, de seus aliados europeus. Essa maquinaria infernal vive da guerra e para a guerra. Para eles, a paz significa sua ruína, sua falência, e a única estratégia positiva para essas megacorporações é estimular os conflitos e as rivalidades por todos os meios possíveis. Sua taxa de lucro está diretamente associada com a guerra e é inversamente proporcional à paz. Seu poderio é imenso: foi denunciado nada menos do que pelo presidente Dwight Eisenhower em seu discurso de despedida de 17 de janeiro de 1961, que o descreveu como a mais séria ameaça para a liberdade e a democracia dos Estados Unidos. Ao longo de mais de meio século, esse imenso poder não

fez nada além de crescer, até assumir proporções monstruosas. Se naquela época era uma ameaça, hoje ele é quem realmente manda nos Estados Unidos, acelerando a passagem de uma república democrática para um regime plutocrático.51 Quer dizer, uma forma política que, parafraseando Lincoln, é o governo do dinheiro, pelo dinheiro e para o dinheiro. E dado que o gasto militar dos Estados Unidos é o principal motor da economia, aglutinando em si setores industriais, financeiros e petroleiros, está no interesse dos governos oferecer todo tipo de garantia às empresas desse setor. E estas, por sua vez, dispondo de fenomenais recursos, se transformaram nas principais e indispensáveis financiadoras das onerosas carreiras políticas de representantes, senadores, governadores e presidentes, prostituindo definitivamente o funcionamento da democracia nos Estados Unidos e abrindo as portas para a constituição da plutocracia que hoje governa esse país. Não é de estranhar, consequentemente, que da Guerra da Coreia em diante, os Estados Unidos não tenham passado um ano sequer sem ter tropas combatendo no exterior. Tampouco se estranha que, apesar dos otimistas anúncios oficiais, o gasto militar tenha aumentado inclusive depois da desaparição daquele que durante os longos anos da Guerra Fria havia sido seu inimigo fundamental: a União Soviética. Neste sentido, a operação propagandística do império, proclamando os supostos “dividendos da paz” como fonte de uma renovada ajuda para o desenvolvimento, foi rapidamente descoberta. Nem se melhorou a distribuição de recursos para facilitar o progresso econômico e social dos países da periferia, nem se reduziu o aumento do gasto militar. Segundo os cálculos mais rigorosos, o gasto militar total dos Estados Unidos superou o limite considerado até pouco tempo atrás como absolutamente insuperável de 1 bilhão de dólares, o que equivale aproximadamente à metade do gasto militar mundial.52 Com perfis menos acentuados do que nos Estados Unidos, o complexo militar-industrial-financeiro atua também nos países europeus, no Japão e na Coreia do Sul. Em outras palavras, a acumulação capitalista sempre esteve marcada pela violência (senão, como explicar a “conquista da América”, ou o massivo saqueio dos camponeses nos países do capitalismo metropolitano, para não falar do que é prática cotidiana na periferia) e, em tempos

recentes, esta violência se institucionalizou e se aprofundou pari passu com o fenomenal crescimento do aparato militar, o que impulsiona as guerras ao mesmo tempo que destrói os fundamentos da democracia tanto no mundo desenvolvido quanto na periferia do sistema. Um terceiro elemento que impulsiona as guerras é o que Michael Klare denominou “a caça aos recursos naturais” (Klare, 2012). Em um mundo cada vez mais ameaçado pelo esgotamento de certos bens comuns de caráter estratégico, começando pela água e seguindo pelo petróleo, a biodiversidade, os minerais estratégicos e os alimentos, e diante de um aumento ininterrupto da população mundial que, até meados deste século, pode cruzar a marca dos 10 bilhões de habitantes, as principais potências se lançaram com toda sua força em uma campanha mundial para garantir para si os insumos básicos requeridos por um padrão de consumo capitalista caracterizado pela utilização irracional e o irresponsável esbanjamento dos recursos naturais. Não é um mistério para ninguém que a vigorosa expansão da China em direção aos países do Terceiro Mundo tem como objetivo fundamental garantir para si o fornecimento de certos recursos naturais imprescindíveis para sua economia, fenômeno este que se manifesta sobretudo na África, mas também, embora em menor medida, na América Latina. Não é necessário ser um pessimista radical para reconhecer que, muito frequentemente, o que começou como uma guerra comercial acaba sendo uma guerra no sentido mais integral do termo. Um único dado, dos muitos existentes, servirá para comprovar o que significou, em termos de uso de recursos naturais, a modernização capitalista da China. Um informe recentemente divulgado pela revista de negócios estadunidense Forbes demonstra que, entre os anos 2011 e 2013, a China consumiu mais cimento do que os Estados Unidos ao longo de todo o século XX (McCarthy, 2014). Deixando de lado o caso particular do gigante asiático, uma boa perspectiva sobre a gravidade da “caça aos recursos naturais” é oferecida pelo cálculo da “pegada ecológica” realizado pelo Global Footprint Network. Este indicador nos diz que, no ritmo atual de consumo, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França requerem de 3 a 5 planetas e meio para sustentar seu nível atual de consumo.

Isso nos dá uma informação extremamente eloquente e torna desnecessário fazer maiores comentários, e serve por si só para demonstrar a insustentabilidade do padrão de consumo “ocidental”, tão publicitado pelos meios de comunicação e tão promovido pelos governos capitalistas de todo o mundo. Esse padrão de consumo desenfreado só pode funcionar se uma parte significativa da população mundial for condenada à pobreza e à indigência. Simplesmente, não há ferro para todos, cimento para todos, petróleo para todos, fosfato para todos, água para todos! Por isso o imperialismo foi se tornando cada vez mais agressivo e sanguinário, estimulado pela pressão para preservar um modelo de sociedade, o “american way of life”, ao qual só uma minoria da população mundial pode ter acesso. Um último exemplo: o papel é produzido a partir da pasta de celulose, extraída das árvores. Boa parte do desmatamento pelo qual passa o planeta se origina no grande aumento que ocorreu nos anos recentes em termos de consumo de papel. Mas nem todo o mundo o consome de maneira igual. O consumo por pessoa/ano nos Estados Unidos é de 270 kg e, na Europa Ocidental, de 230 kg. Mas na Indonésia e no Brasil é de 35 kg por pessoa/ano, e de apenas 5 kg por pessoa/ano na Índia e na África Subsariana!53 A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos para enfrentar os desafios contemporâneos Em fins de 2017, a Casa Branca apresentou uma nova versão de sua Estratégia de Segurança Nacional, a primeira com Donald Trump na presidência. Este documento, emitido com a data de dezembro de 2017, foi publicado pouco depois de sua versão anterior, de fevereiro de 2015, elaborado no final da administração de Obama. Houve outro anterior produzido pela equipe da Casa Branca depois de ele assumir a presidência, publicado em maio de 2010. Passaram-se cinco anos entre a edição dos dois primeiros documentos, 2010 e 2015, e apenas dois anos entre este último e o de 2017. Não é alheio a tudo isso o ritmo vertiginoso em que a cena internacional tem se transformado nestes últimos anos e o verdadeiro terremoto político que significou a irrupção e o ingresso na Casa Branca de um personagem extravagante e alheio à

nomenclatura de Washington como Donald Trump. Nas páginas seguintes trataremos de analisar alguns dos aspectos mais relevantes das duas últimas versões da Estratégia de Segurança Nacional (ESN, NSS na sigla em inglês), especialmente no que cabe à América Latina e Caribe. Se no último documento de Obama, o pano de fundo era o reconhecimento explícito da acelerada passagem do sistema internacional na direção da multipolaridade ou do policentrismo – transição impossível já de negar e cujo ritmo foi extraordinariamente acelerado pela pandemia do Covid-19 –, o que se elabora sob a inspiração (para dizê-lo de alguma maneira) de Donald Trump proclama, desde as primeiras linhas, que sua missão é de que os Estados Unidos “voltem a ser grandes outra vez” e a nova configuração do poder mundial é olimpicamente ignorada, ou pelo menos desprezada.54 A formulação não poderia ser mais explícita: China e Rússia desafiam o poder estadunidense, sua influência e seus interesses, em uma tentativa de erodir a segurança e a prosperidade americanas. Eles estão determinados a tornar as economias menos livres e menos justas; a expandir suas forças militares e a controlar a informação e os dados necessários para reprimir suas sociedades e expandir sua influência. (NSS, 2017, p. 2)

Note-se a linguagem utilizada neste documento: anunciam a emergência de um desafio integral à segurança e prosperidade dos Estados Unidos e um plano maligno para que as economias sejam menos justas e livres, junto com um crescimento do músculo militar da Rússia e da China e uma intenção de controlar e reprimir suas respectivas sociedades e expandir sua influência. O diagnóstico se insere sem atritos na retórica da Guerra Fria. Mas, atenção: estes são os únicos inimigos de Washington? De maneira alguma: além dos vilões principais há vários “Estados vilões”, dos quais três concentram poderosamente a atenção dos redatores do informe: Coreia do Norte e Irã, aos quais agrega o denominado “Estado Islâmico”. Como não podia deixar de ser, os governos da Rússia e da China reagiram iradamente uma vez que o documento foi tornado público. O porta-voz da chancelaria chinesa disse que o documento reflete uma mentalidade da Guerra Fria e uma concessão de soma zero da arena internacional que distorce os objetivos estratégicos de seu

país. O Kremlin, por sua vez, classificou o documento como um anacronismo que revela uma vocação imperialista ancorada nos anos da Guerra Fria prenhe de consequências abomináveis. À luz destes antecedentes, torna-se evidente a obstinação da administração Trump em se negar a reconhecer que o mundo já não é o que era e que por mais que os Estados Unidos deseje retomar seu esmagador poder global, tal aspiração está condenada ao fracasso. A nova ordem multipolar, detectada com clareza e uma evidente dose de resignação no segundo documento da administração Obama, apenas se fortaleceu com o passar do tempo. A China não apenas é uma grande potência econômica, mas se transformou também na segunda maior economia do planeta – ou a primeira, se se mede seu PIB pela paridade de poder de compra – e a principal locomotiva industrial e comercial do mundo, tirando os Estados Unidos deste posto. Cabe acrescentar que os Estados Unidos nunca, em sua história, foi o primeiro sócio comercial ou financeiro de 133 países, coisa que a China conquistou em 2019. A Rússia, por sua vez, com uma liderança que demostrou uma capacidade incomum para ler corretamente o tabuleiro da política mundial e uma atitude cerebral que lhe permitiu contornar todas as armadilhas e provocações que o Ocidente lhe armou, recuperou seu papel protagonista nos assuntos mundiais, fechando o ignominioso parênteses aberto pela infausta dupla Mikhail Gorbachov/Boris Ieltsin. De uma maneira mais lenta, a Índia está emergindo aos primeiros planos da política internacional. Atualmente, sua área de influência se circunscreve sobretudo à Ásia, mas em poucos anos começará a jogar no cenário global. Por sua vez, ainda debilitados, os BRICS se reafirmam como uma constelação de poder cuja presença já não pode ser menosprezada e muito menos ignorada. Na Nossa América, a Unasul e a Celac, apesar da perda de vigor devido à derrota do impulso progressista e de esquerda que aflorara com força no início do século, ainda assim são incômodas realidades para o império, o que explica o empenho de Washington e o de seus aliados, como Mauricio Macri e outros, em enfraquecê-las e, se possível, desmantelá-las definitivamente.

Sem dúvida, todas essas mudanças, muito brevemente esboçadas, expressam a profundidade do processo de transição hegemônica em curso, bem como do caráter irreversível do declínio do poderio imperial dos Estados Unidos, refletido com intensidade incomum no âmbito interamericano no qual anteriormente as políticas dos Estados Unidos se impunham sem resistência, salvo Cuba, que foi por eles expulsa do sistema interamericano. Claro que a Casa Branca não se resigna a perder o controle da estratégica massa continental que se estende até o sul do rio Bravo e recentemente lançou uma contraofensiva para restaurar a “harmonia interamericana” em função, é claro, de seus interesses. Convém esclarecer que ao falar de transição hegemônica não significa que haverá outra potência – China, Rússia? – que vai ocupar o trono deixado vago pelos Estados Unidos porque esse sólio não existe mais. Com a passagem da unipolaridade dos anos 1990 para a multipolaridade da segunda década do século XXI, o lugar do hegemon inexpugnável desapareceu. O que existe em seu lugar é uma constelação de grandes potências com capacidade de veto recíproco e sem que nenhuma possa impor unilateralmente sua vontade em todos os terrenos da vida internacional. Os Estados Unidos são agora o “primus inter pares” e não mais a onipotente nação do passado. É a principal potência militar do planeta, seus exércitos conseguem arrasar países, mas não conseguem ganhar guerras. Podem destruir países inteiros, mas não podem ocupá-los, normalizá-los e explorar seus recursos em seu proveito. Cinco transições Sobre o documento elaborado pela equipe de Trump, é possível dizer, sem exageros, que pretende ser um guia para a política externa, mas prescinde de oferecer um mapa de navegação para o piloto da Casa Branca. Ademais, analistas do sistema internacional concordam em assinalar que o magnata nova-iorquino elabora e executa sua política externa sem atender minimamente as regras institucionais que tradicionalmente estiveram em vigor nos Estados Unidos. Como os monarcas absolutistas, são os seus caprichos que fazem a política internacional dos Estados Unidos, volúvel e instável como seus óculos e suas mudanças de humor.

O eixo da ESN 2017 está na proteção do território estadunidense, de suas fronteiras, contra o juhadismo, as migrações, as pandemias e o narcotráfico; por outro lado, na necessidade de preservar a paz por meio da força e de dissuadir seus inimigos – que a atacam a partir da informática (Rússia), destruindo a livre imprensa e deslegitimando a democracia ou a partir do comercial (China) – para que não continuem com suas agressões. Mas a descrição da estrutura e dinâmica do sistema internacional estão ausentes da ESN 2017. O documento anterior, em troca, tinha outra densidade teórica, que no gestado pela administração Trump se dilui completamente, ao ponto de aparecer como um texto declamatório, mais que uma análise; uma interminável série de boas intenções, mas sem um relevo sério e preciso da situação atual do sistema internacional e de sua provável evolução futura. Por isso nos referimos um pouco mais alongadamente à estratégia antecessora, na qual se identifica cinco transições globais, de caráter histórico, que transformaram radicalmente o tabuleiro da política mundial e, consequentemente, os imperativos da segurança estadunidense. Os Estados Unidos devem compreender essa dinâmica transicional, diz o documento, e influenciar suas trajetórias, aproveitar as oportunidades que essas mudanças precipitam e administrar-se com eficácia frente aos riscos que elas representam. As transições identificadas pela ESN 2015 são as que seguem. Primeiro, o poder internacional e sua distribuição mudaram significativamente. Produziu-se um deslocamento no centro de gravidade da economia mundial com o avanço da Ásia-Pacífico e, sobretudo, da China. O G-20 desempenha novos papéis, que deslocaram outras instâncias da organização internacional, como o Banco Mundial e o FMI. Surgiram os BRICS, projetando uma influência importante nos assuntos mundiais, sobretudo nas bordas dos capitalismos centrais. Mas nessa questão, o documento aponta especialmente três coisas: o potencial de crescimento da Índia, que junto com a China representará 39% do PIB mundial em pouco mais de uma década; a ascensão já produzida e consolidada da China como a segunda economia do planeta e, como já dito, o principal núcleo de dinamização da economia mundial; e, em terceiro lugar, a “agressão” [sic!] da Rússia (NSS, 2015).55 A estigmatização deste

país se acentua na ESN 2017, quando o caracteriza como o inimigo que “está utilizando ferramentas informacionais em uma tentativa de minar a legitimidade das democracias. Nossos adversários têm como objetivos os meios de comunicação, os processos políticos, as redes financeiras e os dados pessoais” (NSS, 2017, p. 14). Por isso os governantes da Rússia têm razão quando falam de “Russofobia” que está infestado na ESN 2017 e nas atividades e nas iniciativas do governo Trump. Se até o final da administração Obama, Moscou era um adversário perigoso, com Trump passa a ser, clara e diretamente, um malvado inimigo a ser derrotado. Ambas as versões da ESN concordam – apesar de dizê-lo de maneira oportunamente implícita – que o poderio relativo dos EUA no campo internacional diminuiu. Os dados que avalizam tal diagnóstico são irrefutáveis, mas não são expostos nos documentos, o que constitui um tácito reconhecimento do que vimos observando há um tempo na América Latina: o lento, porém irreversível, declínio da potência hegemônica, negado intransigentemente pelos seus porta-vozes e pelos seus lacaios neocoloniais na Nossa América, apesar de saltar aos olhos e ser reconhecido inclusive em um documento oficial tão importante como este que estamos analisando.56 Isso atualiza a necessidade de estudar a trajetória e a velocidade desse declínio, seu impacto sobre o resto do mundo e as modalidades aberrantes em que, em termos de violência, todo império incorre em sua fase de declínio. Explorar, em outras palavras, se a “aterrissagem imperial” será suave (“soft landing”), brusca (“rough landing”) ou simplesmente se ele cairá como resultado do assédio dos “bárbaros” que o rodeiam.57 Inclusive um autor como Joseph Nye, tradicional acadêmico de Harvard e alto funcionário de sucessivas administrações estadunidenses, reconhece essa mutação do poder internacional e o enfraquecimento do poderio do país. A linguagem que utiliza não deixa lugar para dúvidas: na primeira metade deste século, os EUA vão conservar sua primazia em matéria de recursos de poder e vão continuar desempenhando um papel fundamental no equilíbrio mundial de poder [...]. Porém, ainda que a era da primazia dos EUA não tenha acabado, vai passar por mudanças importantes. O que não se sabe é se essas mudanças vão aumentar a segurança e a prosperidade mundiais ou não. (Nye, 2004)

Toda a nova teorização sobre o “poder brando” (“soft power”), do qual Nye é um dos principais expoentes, se assenta sobre essa premissa. Uma reflexão final sobre esta primeira transição remete ao tema das mudanças realizadas na principal configuração do poder no mundo contemporâneo: o Estado. Muitos vão discordar dessa afirmação dizendo que essa cristalização, na realidade, se materializa nas grandes empresas transnacionais, e não no Estado. No entanto, segundo nosso ponto de vista, não é assim. Assim como há empresas pequenas, médias e gigantescas, também se pode dizer o mesmo dos Estados. E enquanto as megacorporações de hoje em dia não podem exigir para si – e menos ainda aplicar – na vida prática o monopólio da violência legítima, os Estados serão mais poderosos do que as empresas e vão continuar sendo a principal cristalização do poder social – com seu núcleo duro classista – no mundo contemporâneo, estabelecendo, ademais, o marco jurídico e organizando o aparato coercitivo que as grandes corporações necessitam para prosseguir depredando o planeta e submetendo sociedades inteiras. Mas isso não significa que a imagem convencional que os cientistas sociais têm do Estado seja a correta e corresponda ao que é na atualidade. O politólogo e diplomata Chester A. Crocker acertou quando disse que “a imagem clássica de um Estado Leviatã, capaz de controlar, coagir, restringir, regular, cobrar impostos e recrutar cidadãos para seus exércitos (e recrutar também corporações) é antiquada” e já não corresponde à realidade dos Estados no mundo de hoje (Crocker, 2015). Alguns ainda conservam boa parte dos atributos hobbesianos clássicos, mas mesmo nesses casos, suas capacidades se viram em certo modo reduzidas pelas modificações produzidas no capitalismo contemporâneo. São quase infinitos os interstícios e as fraturas da sociedade burguesa e, além do mais, as novas tecnologias de informação e comunicação oferecem uma grande quantidade de escapatórias ao controle estatal que nem remotamente existiam no passado, embora também ofereçam uma fenomenal capacidade de vigilância e controle por parte das autoridades. O “Grande Irmão” (“Big Brother”) de Aldous Huxley em Admirável mundo novo antecipava com clarividência esta abominável realidade, mas o

aumento da capacidade de fiscalização tropeça no fato de que essas mesmas tecnologias também oferecem inéditas capacidades de fuga e resistência para quem, na sociedade, resiste ou deseja combater o sistema. Ou então, como no caso das grandes corporações, desejam escapar dos controles que um regime político poderia impor sobre suas atividades. Em todo caso, a tese de Crocker – “o mundo está à deriva e carente de liderança” – é suficientemente forte para expor nitidamente a preocupação que se instala nos corredores das agências do governo estadunidense. Segunda transição: o documento da ESN de 2015 aponta que o poder está sendo deslocado para baixo e para além do Estadonação. Inclusive Estados com controles frágeis devido à ausência de eficazes “pesos e contrapesos” que contraponham a dinâmica devastante do Executivo encontram demandas de prestação de contas diante de atores subestatais, ou inclusive atores não estatais, ancorados em uma sociedade civil cada vez mais empoderada. Os exemplos que são oferecidos no documento vão desde os prefeitos de megacidades até os grandes gerentes das megacorporações, que dispõem de um poder de facto que não pode ser ignorado pelas autoridades estatais. A juventude e uma classe média pujante, ambas potencializadas em sua influência social e política por sua familiaridade com as novas tecnologias, erguem também importantes barreiras à ação estatal. Ainda que isso seja um desenvolvimento que a ESN encara com bons olhos, em alguns casos pode se traduzir na conformação de atores não estatais muito violentos, portadores de instabilidade e de conflitos políticos muito graves em Estados frágeis ou falidos, com o risco de rupturas revolucionárias de consequências imprevisíveis ou o retorno a despotismos tradicionais dispostos a preservar a proeminência do Estado a qualquer custo em algumas regiões do Terceiro Mundo. O já mencionado Crocker diz, por exemplo, que o antigo monopólio estatal da gestão internacional é coisa do passado. Hoje, numerosos e poderosos atores não estatais fazem sentir sua influência no cenário global, favorecidos pelas novas tecnologias de informação e as redes sociais que empoderaram sujeitos e organizações que antes tinham chances mínimas – se é que tinham alguma! – de gravitar no cenário mundial. O ininterrupto ciclo de 24

horas de notícias divulgado pelas grandes redes internacionais tem a capacidade (nem sempre realizada) de resgatar milhões de pessoas de sua passividade e isolamento, ao mesmo tempo que potencializa a gravitação das gigantescas corporações transnacionais e os mercados globais, os organismos supranacionais como o G20, mas também o crime organizado em escala internacional e as violentas milícias dos terroristas, ainda que este autor não acabe de definir quem faz por merecer este predicado. As companhias estadunidenses de subcontratação de mercenários, os marines, o Estado Islâmico, quem? Agregaríamos que para contornar os efeitos paralisantes da quarentena imposta por conta da pandemia, uma parte significativa dos sujeitos do campo popular e da esquerda se viu obrigada a aprender a utilizar os instrumentos que as novas tecnologias da informação e da comunicação oferecem, possibilitando novas formas do que poderia chamar-se “associativismo digital” que antes não dispunha e que lhe facilita a realização de estratégias de ação coletiva anteriormente dificultadas, em grande medida, pela distância, a escassez de recursos materiais e o desconhecimento mútuo entre os sujeitos sociais. A combinação de uma renovada presença nas ruas na saída da quarentena junto com a potencialidade organizativa e conscientizadora do “associativismo digital” podem inclinar à esquerda a saída da crise capitalista. Os “paraísos fiscais” que articulam e viabilizam os negócios sujos de governos e corporações em sua vinculação com o crime organizado, especialmente o narcotráfico, também deram lugar à emergência de novos atores que se movimentam na cena internacional, mas isso não é um assunto que preocupa os redatores dos documentos de 2015 e de 2017. A lista seria extensa demais para os fins do presente trabalho. Terceira transição: se assinala como outra das grandes transições de nosso tempo a crescente interdependência da economia global e os rápidos e profundos processos de mudança nas tecnologias da informação, algo que já mencionamos anteriormente. Seus autores observam o caráter dual desses processos: por um lado, a internacionalização da acumulação capitalista, eufemisticamente caracterizada com o nome neutro de “globalização”, facilita a cooperação através das fronteiras e a liberação dos mercados,

porém, simultaneamente, dizem, cria vulnerabilidades diante dos perversos desígnios de atores antissistêmicos. Os ciberataques, as pandemias, o crime transnacional (narcotráfico, tráfico de pessoas e órgãos, venda ilegal de armas etc.) que nesta última versão tem como objeto de referência os imigrantes que tentam penetrar nos Estados Unidos (por isso o muro que Trump pretende levantar) expressam uma execrável realidade nova: as renovadas capacidades daqueles que, no documento, são chamados de “atores violentos extremistas”, cuja faculdade de atuar malignamente cresce exponencialmente a partir dos maiores níveis de interconexão do sistema em seu conjunto. Naturalmente, em nenhum dos documentos da ESN, ao longo de todos os anos, se faz a menor alusão à responsabilidade dos Estados Unidos no surgimento destas variantes do “crime organizado” ou na aparição de “atores violentos e extremistas”, como o Estado Islâmico, por exemplo, comprovadamente demonstrado que sua origem, desenvolvimento e fortalecimento foi possível graças ao apoio financeiro, militar, diplomático e midiático dos Estados Unidos, Israel, Reino Unido e Arábia Saudita. O mesmo vale dizer da crucial responsabilidade dos principais países do capitalismo desenvolvido na perpetuação de uma rede de “paraísos fiscais” que permitem a evasão fiscal e o desfinanciamento dos Estados, a cobertura dos atos de corrupção, a fuga de capitais e a fraude aos poupadores ingênuos (Shaxson, 2014). Quarta transição: analisada, não por acaso, de modo muito rápido no documento de 2015 é a que se coloca publicamente nas mudanças que estão ocorrendo no Oriente Médio e no Norte da África, as quais desataram uma intensa luta pelo poder que, segundo seus autores, poderia desestabilizar irreparavelmente uma região fundamental para o mercado petroleiro mundial. Afirma-se, por exemplo, que está em marcha uma luta geracional desencadeada em toda região após a Guerra do Iraque e que se manifestou de forma contundente com os levantes no mundo árabe de 2011, que puseram fim às ditaduras no Egito e na Tunísia. Neste contexto, o documento citado afirma que está em curso uma redefinição das relações entre as diferentes comunidades étnicas e entre os jovens cidadãos do mundo árabe e seus governos. Os

perigos de uma desestabilização em cadeia crescem por causa do extremismo religioso ou do rechaço que governos autocráticos têm em aceitar reformas democráticas, o que poderia incendiar uma região crucial para a economia mundial. Mas a ESN 2017 dá um passo a mais, levando em conta a total simbiose entre a Casa Brance e Tel Aviv, relação dirigida pessoalmente e à margem de qualquer relação institucional estadunidense pelo genro do presidente Trump, o empresário Jared Kushner. A ESN 2017 diz textualmente: “Hoje as ameaças das organizações jihadistas e do Irã demonstram que Israel não é a causa dos problemas da região” (NSS, 2017, p. 49). Quinta transição: as mudanças no mercado global de energia, intimamente vinculado ao ponto anterior. O essencial não é o que diz o documento, que garante que os Estados Unidos estão chegando à autossuficiência petrolífera; nem a acusação de que a Rússia utiliza suas reservas energéticas, sobretudo o gás, para fazer política e coagir a Europa.58 Na nossa visão, o mais importante é o que se menciona quase de passagem, a saber: que nos próximos anos o mundo subdesenvolvido vai consumir mais energia do que os desenvolvidos, alterando os fluxos comerciais de energia e desestabilizando os arranjos tradicionais.59 A nova agenda internacional Do exposto, depreende-se que há uma agenda de política externa que já tem pouco a ver com a tradicional. Se a cena mundial mudou, como de fato ocorreu, é evidente que os desafios e os grandes temas das relações internacionais já não podem ser os mesmos. A agenda da época da Guerra Fria tinha como eixo principal toda uma série de questões – a corrida armamentista, o equilíbrio nuclear, as guerras em e entre proxies, as “áreas de influência” etc. – que giravam em torno do que se costumava chamar de conflito Leste/Oeste, eufemismo que ocultava o que em termos mais prosaicos deveria denominar-se como a competição entre capitalismo e socialismo. Outros temas eram a dívida externa, as políticas de ajuste estrutural e de condicionalidade financeira, as migrações, e assuntos tais como equidade de gênero e direitos das minorias sexuais.

A agenda atual é muito diferente. Sobrevivem alguns dos velhos temas, como o ajuste estrutural e as políticas de austeridade, a queda dos preços das commodities e a dívida externa, por exemplo, mas existem outros, sobre os quais o consenso é ainda mais difícil de ser alcançado do que antigamente. Entre eles, sobressaem: a) o terrorismo internacional em suas diversas formas e distintos objetivos; b) a desestabilização e a crise no Oriente Médio (Síria, Estado Islâmico), Palestina, Iraque, Curdistão, Turquia e Europa Oriental (principalmente a Ucrânia); c) as crescentes tensões no Mar do Sul da China; d) a militarização do espaço exterior; e) as ciberguerras e a cibersegurança; f) os refugiados e as migrações incontroladas, por guerras e por mudança climática; g) a mudança climática; h) a governança da internet; i) a conservação da biodiversidade e recursos marinhos; j) a exploração de recursos no Ártico e k) o tráfico de pessoas e o tráfico de órgãos. Da simples enumeração dos temas em disputa, o documento da ESN 2015 deduz algumas recomendações estratégicas, algumas das quais sobrevivem na gestão Trump enquanto outras passam completamente a um segundo plano. Em primeiro lugar, e aqui ambos os documentos coincidem, a necessidade de não ceder na defesa da ordem mundial do pósguerra: suas instituições e seu marco normativo (“liberalismo global”, “democracia”, “liberdade”, “direitos humanos”, tudo isso entre aspas, porque remete à concepção ideológica que o império tem sobre estes temas) que, como reconhece o documento de 2015, “serviram muito bem” aos interesses dos Estados Unidos durante 70 anos e nada permite pensar que uma mudança nos fundamentos da “ordem mundial”, em realidade, uma perigosa e irreparável desordem, poderia ser do ponto de vista de Washington uma contribuição positiva à ordem mundial.60 Note-se que Henry Kissinger assegurou que por causa da pandemia a velha ordem mundial jaz em ruínas, mas exortou à fundação de uma nova ordem também inspirada, como sua antecessora, no liberalismo global, algo que certamente não acontecerá (Kissinger, 2020). As reiteradas tentativas dos países da periferia de democratizar as Nações Unidas e, sobretudo, o despótico, não representativo e inoperante Conselho de Segurança se lançam contra essa nítida defesa que Washington faz

de um sistema que, como diz o documento, funcionou bem (para os EUA ao lhe outorgar impunidade a seus crimes), por conta disso qualquer mudança seria para pior. Segundo, uma nova área de concordância entre as duas versões da ESN encontra-se na recomendação de fazer pagar um alto preço a quem, como a Rússia, transgride – segundo os governos ocidentais – as normas da ordem mundial do pós-guerra. Mas na versão de Trump, a ênfase das sanções é ainda mais marcada e entre os países aos quais elas devem se aplicar inclui-se, agora, a China, que na versão de 2015 estava a salvo das iras da Casa Branca. Portanto, ambos os documentos convergem na ideia de que as sanções econômicas pontuais e específicas devem continuar. No que toca à Rússia, o secretário de Estado, Mike Pompeo, declarou em sua audiência de confirmação ante o Senado estadunidense que “a época em que as políticas com relação à Rússia eram suaves” terminou. Sanções quando possíveis devem ser aplicadas multilateralmente; em caso contrário, de modo unilateral. É por isso que no documento de 2017 o multilateralismo passou ao esquecimento e aparece somente como uma referência verbal carente de toda substância. Claro que seria um erro atribuir este desprezo ao multilateralismo apenas à administração Trump. A postura atual de Washington tem sido predominante desde o final da Segunda Guerra Mundial, que, longe de se atenuar, se acentuou com a desintegração da União Soviética e com o auge do neoliberalismo global dos anos de Bill Clinton. Recordemos que foi Madeleine Albright, a secretária de Estado no segundo mandato daquele presidente, que tempos depois prognosticaria o fim da diplomacia, ao anunciar a mudança na missão da pasta que havia estado sob sua responsabilidade. “Antes o Departamento de Estado fixava a política exterior e o Pentágono a respaldava com a força dissuasiva de suas armas. Agora é este quem a determina e, aos diplomatas, nos cabe a missão de explicá-la e de conseguir que outros governos nos acompanhem em nossa tarefa”, disse com total cinismo. O mesmo Barack Obama destacou mais de uma vez que às vezes “tinha que se torcer um pouco o braço dos amigos” para que aceitassem as políticas de Washington. Albright recordava em outra

ocasião que os Estados Unidos deve guiar a formulação da política exterior a partir dos seguintes princípios: “O idealismo quando possível, o realismo quando necessário; priorizar os direitos humanos quando possível, a elevação do interesse nacional em todo momento; o multilateralismo quando possível, o unilateralismo quando necessário”. As palavras de Albright soam como música celestial aos ouvidos dos falcões estadunidenses e dos belicosos assessores de Donald Trump. Mas uma reconhecido pesquisador estadunidense, já falecido, advertia sobre os perigos que o unilateralismo entranhava para a segurança dos Estados Unidos. Samuel P. Huntington, um conservador sem fissuras, recomendava redobrar os esforços para avançar pela via da cooperação com os aliados em lugar de cair na arriscada tentação de converter seu país em um temerário “xerife solitário” (Huntington, 1999). Alinhado a isso, Washington não apenas se esmerou em aplicar sanções unilateralmente, mas tratou de que elas fossem acompanhadas por seus aliados e súditos. Os casos concretos mais recentes são as sanções contra Cuba, Irã, Venezuela e Rússia, que já no primeiro documento era caracterizada não como concorrente, mas como o inimigo a ser vencido. Terceiro: a ESN 2015 recomenda fortalecer a presença dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico, reafirmando que esse país é uma potência do Pacífico e tem intenção de continuar sendo. No documento de 2017, a ênfase é menor. Os acordos firmados entre Estados Unidos e Austrália sob a administração Obama, que autorizaram a instalação de pessoal militar em várias bases dos Estados Unidos em território australiano e a reforma constitucional que Washington exigiu do Japão, em virtude da qual se autoriza a saída de contingentes militares fora do território japonês, são manifestações evidentes dessa política de reafirmar a presença estadunidense na Ásia-Pacífico. Esta se inscreve na estratégia mais global de conter ou cercar a China, o que no caso da administração Trump se encontra exacerbado. Se o documento de 2015 diz textualmente que “damos boas-vindas a uma estável, pacífica e próspera China ao mesmo tempo que tratamos de minimizar as incompreensões e os cálculos errôneos [‘miscalculations’]”, na ESN 2017 o gigante oriental já entra na categoria de país inimigo, responsável por erodir

a gravitação dos Estados Unidos na política e na economia mundiais. A guerra comercial desatada por Trump contra a China encontrou neste país uma rotunda resposta. Pela primeira vez em muitos anos Beijing dobra a aposta da guerra comercial declarada por Washington com duras declarações de seus governantes e com enérgicas medidas protecionistas.61 Quarto, o documento de 2015 enfatiza a necessidade de fortalecer a “permanente aliança” com a Europa e ressalta o papel essencial que a Otan desempenha, transformada, de fato, em uma extensão do Pentágono não apenas na Europa e no Atlântico Norte mas também nos mais diversos teatros de operações onde se encontrem tropas dos Estados Unidos. A questão ucraniana, apresentada a partir de um ponto de vista completamente distorcido, absorve grande parte deste parágrafo, ao mesmo tempo que se justifica a severa penalização infringida à Rússia por sua suposta agressão àquele país. Não obstante, na versão de 2017, o papel da Otan se debilitou na medida em que Trump exige que seus sócios europeus dediquem maiores esforços e fundos para a defesa europeia. De fato, se algo aconteceu durante sua administração foi um marcado distanciamento com os líderes europeus, em especial com Angela Merkel, e um indissimulado ataque à União Europeia (não apenas com Brexit), que hoje se encontra seriamente debilitada. Quinto, trabalhar para alcançar a estabilidade e a paz no Oriente Médio e no Norte da África. Este parágrafo é de uma superficialidade impressionante porque se limita a dizer que, para a realização desses objetivos, é preciso fortalecer a ajuda a Israel, às monarquias amigas do Golfo Pérsico e Jordânia. Dedica apenas uma linha e meia ao conflito Palestina-Israel, e não se faz nenhuma menção ao Estado Islâmico. Em sexto lugar, os documentos aconselham a Casa Branca a favorecer um fluxo de investimentos na África, sem nenhum tipo de precisão. Sétimo, e último, o documento de 2015 “comemora os avanços nas Américas”, o que se traduz no fato de que, pela primeira vez na história, existe mais classe média do que pobres, enquanto a região adquiriu uma crescente importância no mercado energético mundial. Claro está que a estabilidade de ambas as conquistas é colocada

em questão, segundo o documento, por um diagnóstico que em boa medida desmente o otimismo anterior. De fato, o avanço da região é assombrado por “frágeis instituições, alta criminalidade, grupos criminosos altamente organizados, narcotráfico, desigualdade econômica e inadequados sistemas de saúde e educação” (NSS, 2015, p. 27). O documento torna explícito o apoio de Washington aos Diálogos de Paz em Havana e confia que, “embora alguns poucos países permaneçam presos a velhos debates ideológicos” – em oblíqua referência a Cuba e aos países bolivarianos e inclusive à Argentina kirchenista e ao Brasil do PT, “continuaremos trabalhando com todos os governos que estejam interessados em cooperar conosco para fortalecer os princípios da Carta Democrática da OEA”. E, em referência a Cuba, sustenta: “avançaremos em nossa nova abertura em relação a Cuba de forma tal que promova, mais efetivamente, a capacidade do povo cubano para determinar seu futuro livremente” (NSS, 2015, p. 28). A ESN 2017, por sua vez, limita a pouco mais de uma página todas as referências ao “Hemisfério Ocidental” com as consabidas críticas a Cuba, sem trazer qualquer elemento de novidade. Mas a belicosidade de Trump contra Caracas e Havana aumentou de modo extraordinário: dão provas disso a continuidade da guerra econômica e o acosso diplomático, midiático, financeiro e (para)militar contra o governo de Nicolás Maduro, junto ao total congelamento das relações diplomáticas e econômicas entre Estados Unidos e Cuba. Medidas tais que, apesar de sua radicalidade, foram endurecidas no marco da pandemia, incorrendo em uma política genocida que se configura como um delito de lesa humanidade. A ESN 2017 manifesta a preocupação pelas atividades do crime organizado na Guatemala, Honduras e El Salvador e pela continuidade de modelos anacrônicos de esquerda em Cuba e na Venezuela, que continuam reprimindo seus povos e os condenando à pobreza. Observa – diríamos que com razão – que a China está aumentando sua capacidade de influência na região, mediante fortes investimentos de suas empresas públicas e algumas privadas e que a Rússia continua promovendo suas fracassadas políticas da Guerra Fria. Rússia e China têm sustentado a ditadura na

Venezuela, agrega o documento, que coloca graves desafios para a segurança nacional dos Estados Unidos (NSS, 2017, p. 51). O lugar da América Latina e do Caribe no tabuleiro da geopolítica mundial Sobre este cenário, levando em conta as colocações do documento analisado, comprova-se que a guerra – ou a ameaça de sua explosão – é o pano de fundo sobre o qual se desenvolvem as relações internacionais da América Latina e do Caribe. Cabe perguntar-se qual é o papel desta parte do mundo. Para começar, somos a região do mundo melhor dotada de recursos naturais: com 7% da população mundial, dispomos de algo entre 42 e 45% da água doce da Terra. Somos, além disso, o pulmão do planeta, donos da metade da biodiversidade mundial, sede de enormes depósitos de petróleo, gás e minerais estratégicos e de terras extraordinariamente bem dotadas para a produção de todo tipo de alimentos de origem vegetal ou animal. Essa incrível provisão atiça o apetite do império estadunidense de subordinar, a qualquer custo, um país como a Venezuela, cujas reservas comprovadas de petróleo são as maiores do mundo, hoje superiores às da Arábia Saudita. Um continente que conta com 80% das reservas mundiais de lítio, fonte energética fundamental para toda a indústria microeletrônica e seus derivados (celulares, computadores em suas diversas variantes, câmeras fotográficas comuns e por satélite, filmadoras, motores automotivos híbridos e assim sucessivamente), reservas que se encontram inacreditavelmente concentradas na Bolívia.62 A nanotecnologia e suas incríveis aplicações têm como fundamento prático a biodiversidade, da qual a América Latina (e especialmente a América do Sul) tem a maior riqueza do planeta. Sem falar da água, crucial para um país como os Estados Unidos, cujo desperdício desse elemento líquido os levou a transformar o outrora impetuoso rio Colorado, capaz de cavar um profundo cânion no Arizona, em um arroio que frequentemente não chega sequer a desaguar no Oceano Pacífico. Teriam que ser muito ignorantes os administradores imperiais (e não o são) para ser indiferentes diante de uma realidade tão exuberante como a que a nossa região oferece. Por isso, desde o início de sua

vida independente, os Estados Unidos consideraram essa parte do mundo como seu “quintal”, sua zona de segurança. E por isso também tanto Fidel quanto Che não se cansaram de dizer que a América Latina e o Caribe eram “a retaguarda estratégica do império”. Em segundo lugar, as concepções estratégicas militares dos Estados Unidos desde os anos fundacionais da república sempre aderiram à tese da “grande ilha americana”, estendendo-se desde o Alasca até a Terra do Fogo. Essa concepção militar assume que a Segurança Nacional dos Estados Unidos depende da capacidade de Washington de evitar que poderes extracontinentais se consolidem em algum setor da ilha americana, ou que existam nela governos hostis aos – ou incompatíveis com – desígnios dos Estados Unidos. Esta concepção se aperfeiçoou desde meados do século XIX e adquiriu conotações práticas nitidamente belicosas no final do mesmo século, com sucessivas invasões a diversos países da América Central e do Caribe, incluindo o México. A “Doutrina Monroe” de 1823 e o “Corolário” desse postulado doutrinário formulado por Theodore Roosevelt em 1904 expõem abertamente a aspiração hegemônica dos Estados Unidos sobre esta dilatada geografia que se localiza ao sul do Rio Bravo. Como resultado disso, Washington pode tolerar, embora rangendo os dentes, um governo socialista em algum país africano (casos de Moçambique, Zimbábue ou Angola, em determinado período), mas responde com fulminante brutalidade quando uma pequena ilha de 344 km2 e 90 mil habitantes como Granada comete “o erro” de eleger, em 1979, um governo socialista radical sob a liderança de Maurice Bishop. A resposta da administração Reagan não se fez esperar: em outubro de 1983 despachou um poderoso contingente militar composto por quase 8 mil homens (pouco menos do que 10% da população invadida) que em poucos dias depôs o governo. A justificativa por este crime: a construção de um novo aeroporto para facilitar o turismo na ilha, o que foi interpretado pelos criminosos de Washington como um perverso plano para facilitar a aterrissagem de aviões de guerra soviéticos no Caribe. Nada remotamente semelhante foi feito pelos Estados Unidos em nenhuma outra região do planeta diante de um país como Granada, com suas pequenas

dimensões e quase nula influência, a não ser na América Latina e no Caribe, turbulenta fronteira de um império protegido por uma enorme hinterlândia e dois grandes oceanos.63 O único perigo vem do Sul, do mundo do subdesenvolvimento latino-americano. É por isso que, com algumas nuances, argumentos semelhantes aos expressados no caso de Granada sobre uma suposta ameaça à “segurança nacional” continuam sendo usados até hoje. Foram usados antes com a Guatemala de Arbenz, em 1954, com Cuba desde 1° de janeiro de 1959, depois com a revolução nicaraguense, em 1979 e, desde março de 2015, com a primeira ordem executiva assinada pelo presidente Barack Obama estabelecendo uma “emergência nacional” pela ameaça “incomum e extraordinária” à segurança nacional e à política exterior dos Estados Unidos que implica o governo bolivariano da Venezuela. Trump se limitou a aprofundar e radicalizar a linha demarcada pelo seu antecessor, expressando de modo inequívoco que naquele país – como frequentemente Noam Chomsky recorda – não há dois partidos, mas apenas um: o partido do capital imperialista. Do exposto, depreende-se que Washington vai se opor a qualquer processo genuinamente democratizador que se desenvolva em nossos países. Qualquer força política que chegue ao governo e trate de tornar realidade a soberania popular que se assenta na soberania econômica e política em um mundo de nações poderosas, imperialistas e colonialistas, por um lado; e países frágeis e submetidos, por outro, será ferozmente combatido pelo império. Pense-se na parafernália de vínculos existentes entre os aparatos de inteligência estadunidenses (nada menos do que 16, segundo a última conta) e os organismos militares e policiais do império com seus homólogos da América Latina e do Caribe. O governo dos Estados Unidos treina os nosso espiões, soldados e policiais; ensina-lhes táticas de interrogatório; lhes dá armas e, junto com as armas, a definição doutrinária de quem são os amigos e quem são os inimigos aos quais é preciso disparar; coordena com seus exercícios conjuntos as tarefas de nossos exércitos de ar, mar e terra; mantém escolas especiais, como a renovada Escola das Américas, agora com nome novo, mas que segue cumprindo as

mesmas funções; mantém em vigor a Junta Interamericana de Defesa, para coordenar os estados maiores de nossas Forças Armadas em função das prioridades e necessidades militares dos Estados Unidos. Tudo isso continua de pé, apesar dos esforços da praticamente morta Unasul e suas tentativas de conceber e coordenar uma estratégia sul-americana de contenção da virulência imperial, experiência que hoje está paralisada; e algumas valiosas exceções como Cuba e Venezuela. Falar de imperialismo, violência e guerra é algo tão elementar que não deveria exigir maiores argumentações. Em contrapartida, e em consonância com a crescente importância do “golpe brando” como substituto do velho golpe militar latinoamericano, Washington se esmerou em trabalhar muito meticulosamente seus vínculos não apenas com os militares ou os governos da região, mas também concentrou enormes recursos (dinheiro, pessoal, organizações) para “colaborar” com o “aggiornamento” dos poderes Judicial e Legislativo dos nossos países, assim como com a modernização dos meios de comunicação. Diversos cursos e viagens de estudo são organizados regularmente pela Usaid, pela NED (National Endowment for Democracy) e outras agências do governo federal ou organizações supostamente “independentes” de Washington, como universidades e fundações privadas, para educar juízes e legisladores latinoamericanos e caribenhos nas “boas práticas” de seu ofício. São, digamos sem rodeios, cursos de formação ideológica e política voltados para socializar os valores estadunidenses com os participantes e torná-los especialmente amigáveis em relação aos interesses nacionais dos Estados Unidos e seus conglomerados empresariais. O mesmo ocorre com os jornalistas, e os resultados desta política são evidentes. Os “golpes brandos” contra Mel Zelaya, Fernando Lugo e, agora, Dilma Rousseff, tiveram como atores principais juízes “independentes”, uma turba de legisladores fanáticos em níveis poucas vezes vistos na região e a oligarquia midiática, coordenada de Washington, difamando sem trégua os citados chefes de Estado e manipulando a população com uma lista interminável de mentiras que, no fim, conseguiram criar um “clima de opinião” favorável ao golpe. Impulsionado pelo juiz Sérgio Moro,

o mecanismo de lawfare ou guerra judicial foi utilizado no Brasil para proibir a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva nas eleições de 2018, graças a que elege-se Jair Bolsonaro, que recompensou Moro ao nomeá-lo ministro da Justiça. Bastou pouco mais de um ano de desgoverno para que ambos os canalhas, Moro e Bolsonaro, rompessem sua cumplicidade, mas o dano causado ao Brasil seria, a essa altura, imenso, como o prova o grande número de vítimas mortais do Covid-19 ocasionado pelas política criminosas do excapitão do Exército brasileiro e do inescrupuloso advogado e ex-juiz que tornou possível sua chegada ao Planalto. Palavras finais Nosso continente é a prioridade número um para a política exterior dos Estados Unidos. É a região mais importante do mundo, de longe. Defendemos isso em todos os detalhes em um trabalho anterior e não faz sentido insistir nesse tema aqui (Boron, 2014; Boron e Vlahusic, 2009). Washington pode perder Angola, Namíbia, Nigéria, Camboja, Vietnã, mas não vai ficar de braços cruzados diante da perspectiva de perder Granada, Nicarágua, Cuba, Chile, nem, digamos, Brasil ou Venezuela. Pode se esforçar para “conter o comunismo”, como o fez nos anos da Guerra Fria e, para isso, elaborar uma série de alianças regionais. Sendo que o eixo articulador da revolução comunista mundial (como se dizia naqueles anos em Washington) estava na Europa, em Moscou; para sermos mais precisos, foi a Europa a primeira beneficiária da estratégia de contenção que George Kennan elaborou para o presidente Harry S. Truman? Não! Foi a América Latina. Em um mundo ameaçado pelo risco mortal da dominação comunista, a primeira região que os Estados Unidos trataram de colocar a salvo dessa indesejável eventualidade foi a América Latina. Em 1947 foi assinado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) com esse propósito. E a Europa? Teria que esperar mais dois anos, pois apenas em abril de 1949 seria criada a Otan. E no apogeu do auge progressista na região, e em coincidência com os anúncios do presidente Lula da Silva, informando ao mundo a descoberta das grandes jazidas de petróleo no litoral paulista, a resposta da Casa Branca foi ordenar a reativação da Quarta Frota, que havia sido desativada em 1950.

Como diz um conhecido aforismo estadunidense, “first things first”, ou seja, “primeiro as primeiras coisas”. E a primeira coisa é a América Latina. Se a África cai nas mãos do comunismo é um problema; se a Ásia cai é um problema muito maior; se a Europa cai é uma tragédia; mas se a América Latina cai é uma catástrofe de projeções incalculáveis. Porque a Ásia, a África e a Europa estão longe, separadas por grandes oceanos. Mas, desde a América Latina, os inimigos do império podem chegar caminhando nos EUA, como no meio da psicose despertada pela revolução sandinista se escutava dizer nos corredores do governo estadunidense em Washington. As mudanças na paisagem sociopolítica latinoamericana desde o fim do século XX marcaram um importante retrocesso da influência estadunidense na região. O rechaço da Alca foi uma duríssima derrota para o império, e a consolidação de uma série de governos progressistas, alguns de esquerda, e a heroica sobrevivência da Revolução Cubana marcaram a fogo todo o período aberto desde a eleição presidencial de Chávez, em dezembro de 1998, até hoje em dia. A vitória do líder bolivariano foi a faísca que incendiou o campo: seu carisma e sua capacidade fenomenal de se comunicar com as massas do continente mobilizou e excitou os desejos emancipatórios dos povos e nações da área, abatidos e humilhados por séculos de opressão colonial e neocolonial. Chávez derrubou na Venezuela a primeira peça de um dominó que logo percorreria todo o continente: a segunda cairia no Brasil com Lula em 2002, para continuar com Kirchner na Argentina, em 2003; com Evo e Tabaré Vázquez na Bolívia e no Uruguai, em 2005; com Correa no Equador, em 2006 e nesse mesmo ano com Ortega na Nicarágua e com Zelaya em Honduras; com Cristina em 2007; com Lugo no Paraguai em 2008 e Funes em El Salvador, em 2009, abrindo o caminho para que o ex-comandante do FMLN, Salvador Sánchez Cerén, assumisse a presidência desse país em 2014. Em 2010, José “Pepe” Mujica ratificaria a hegemonia da Frente Ampla e conquistaria a presidência do Uruguai, a mesma que em 2015 voltaria a recair nas mãos de Tabaré Vázquez. Em suma: basta recordar esta radical modificação do mapa sociopolítico latino-americano para medir a imperecível espessura política da herança chavista e a ansiedade da burguesia imperial

para retomar a “normalidade” nas relações hemisféricas. Diante desse desafio inédito, a contraofensiva estadunidense não se fez esperar: começou com o frustrado golpe de Estado contra Chávez em abril de 2002 e continuou, diante de seu fracasso, com a paralisação petroleira de dezembro de 2002 a fevereiro de 2003 e com os violentos protestos (“guarimbas”) de 2014 a 2017, inflamados pelo império e continuados até hoje com diversos ciclos de protestos, sabotagens, ataques paramilitares recorrentes na fronteira colombo-venezuelana, tentativas de assassinato do presidente Nicolás Maduro até chegar, em maio de 2020, à tentativa de invasão por mar de um pequeno exército mercenário, operação que cumpria um contrato firmado entre Juan Guaidó e seus colaboradores e a Silvercorp, empresa destinada a realizar “operações especiais” para o governo dos EUA. Derrotadas aquelas iniciativas do começo do século, que tiveram um efeito bumerangue e liquidaram a Alca em 2005, pouco depois o império voltou a atacar: frustrada tentativa de golpe e secessão da Bolívia em 2008, mas retomada, com êxito para o imperialismo, em novembro de 2019, ilustrando o controle decisivo que Washington exerce sobre as Forças Armadas e policiais treinadas por décadas sob sua tutela; golpe “jurídico-parlamentar” em Honduras contra Zelaya em 2009; golpe frustrado, no Equador, contra Correa em 2010, por conta de que tiveram que esperar a traição de Lenin Moreno em 2017; golpe exitoso no Paraguai, também “jurídico-parlamentar”, contra Lugo em 2012; “golpe jurídico-parlamentar-midiático” contra Dilma Rousseff, consumado em agosto de 2016 e consolidado com o triunfo de Bolsonaro (2018), mediante a proibição de Lula. Some-se a isto o importantíssimo triunfo diplomático e geopolítico regional ao conseguir o triunfo de Mauricio Macri na eleição presidencial de novembro de 2015. Sua presidência, desastrosa para o povo argentino, foi eficaz em recriar mecanismos de dominação, entre os quais se destacam a multiplicação da dívida externa e o poder do capital financeiro internacional, além do alinhamento incondicional à política exterior estadunidense. Todos estes acontecimentos ilustram os alcances da ofensiva restauradora do império, configurando um mapa sociopolítico em permanente movimento porque as respostas populares, ainda frágeis e carentes de coordenação continental, não

puderam ser neutralizadas. A eleição de Andrés Manuel López Obrador no México e Alberto Fernandéz na Argentina são indícios de que o pêndulo começa a se mover em sentido contrário. E não se pode deixar de reconhecer a enorme importância dos grandes protestos populares contra o governo Sebastián Piñera, sem dúvida, o “carro chefe” do neoliberalismo latino-americano. A formidável mobilização sustentada desde meados de outubro de 2019 no Chile só foi atingida pela pandemia e pela quarentena, quando Piñera parecia já ter seus dias contados. Mais ao norte, o Equador desfalece diante do monumental fracasso do governo corrupto e traidor de Lenín Moreno, sustentado infelizmente, assim como Piñera, pela involuntária desmobilização imposta pela pandemia. Grandes protestos contra o neoliberalismo também sacudiram a Colômbia, o Peru e o Haiti; e, talvez de modo menos vigoroso, Honduras. Este 2020 poderia ter sido o ano em que cairiam vários governos neoliberais. O coronavírus os preservou dessa fatalidade, mas, como uma vez dissera Hugo Chávez, isso é “por agora”. Neste contexto há um país que desempenha um papel de excepcional importância em Nossa América: Colômbia. Nesse sentido, há que se destacar que a assinatura, em junho de 2013, de um acordo de cooperação entre a Colômbia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) causou uma previsível preocupação na Nossa América. A Otan é uma organização sobre a qual pesam inúmeros crimes de guerra e massiva violação dos direitos humanos perpetrados na própria Europa (lembremos o bombardeio à ex-Iugoslávia e os massacres nos Bálcãs), a destruição do Líbano, do Iraque, da Líbia; sua cumplicidade com o governo fascista de Israel em seu contínuo genocídio do povo palestino e agora sua colaboração com os terroristas que tomaram de assalto a Síria, semeando morte e destruição em todo o Oriente Médio.64 Até agora, o único país da América Latina “aliado extra Otan” havia sido a Argentina, que obteve esse desonroso status durante os nefastos anos de Carlos S. Menem, e mais especificamente em 1998, após participar da Primeira Guerra do Golfo (1991-1992) e aceitar todas as imposições de Washington em muitas áreas da política pública, como por exemplo desmantelar o projeto do míssil Condor e congelar o programa nuclear que durante

décadas vinha sendo desenvolvido na Argentina. Dois gravíssimos atentados que contabilizaram mais de uma centena de mortos – na Embaixada de Israel e na Associação Mutual Israelita Argentina (Amia) – foi o saldo que deixou na Argentina a represália por ter se somado às atividades da organização terrorista do Atlântico Norte. O status de “aliado extra Otan” foi criado em 1989 pelo Congresso dos Estados Unidos – não pela organização, mas pelo Congresso estadunidense – como um mecanismo para reforçar os laços militares com países situados fora da área do Atlântico Norte e que poderiam ser de ajuda nas inúmeras guerras e processos de desestabilização política que os Estados Unidos realizam nos mais diversos cantos do planeta. Austrália, Egito, Israel, Japão e Coreia do Sul foram os primeiros a ingressar, e pouco depois o fez a Argentina e agora a Colômbia. O sentido desta iniciativa do Congresso estadunidense salta aos olhos: robustecer e legitimar suas incessantes aventuras militares – inevitáveis durante os próximos 30 anos, se lemos os documentos do Pentágono sobre futuros cenários internacionais – com uma aura de “multilateralismo” que na verdade não têm. Esta incorporação dos aliados extra Otan, que também está sendo promovida nos demais continentes, reflete a exigência imposta pela transformação das Forças Armadas dos Estados Unidos em seu trânsito a partir de um exército preparado para travar guerras em territórios limitados a uma legião imperial que, com suas bases militares de diversos tipos (mais de mil em todo o planeta), suas forças regulares, suas unidades de “rápido deslocamento” e o crescente exército de “terceirizados” (vulgo: mercenários) quer estar preparada para intervir em poucas horas para defender os interesses estadunidenses em qualquer ponto quente do planeta. Com sua incorporação como “aliado extra Otan”, a Colômbia se põe a serviço desse funesto projeto e, internamente, reforça a militarização de um país que está há mais de meio século em guerra civil. Ainda que a Argentina seja um lamentável precedente (que em 2012 felizmente perdeu o status de “aliada extra Otan”), o caso colombiano é muito especial, porque há décadas esse país recebe, sobretudo no marco do Plano Colômbia, um importantíssimo apoio econômico e militar dos Estados Unidos – de longe, o maior dos

países da área – e só superado pelos desembolsos realizados a favor de Israel, Egito, Iraque e Coreia do Sul e um ou outro aliado estratégico de Washington. A pretensão da direita colombiana, no poder desde sempre, é se transformar, especialmente a partir da presidência de Álvaro Uribe Vélez, na “Israel da América Latina”: com o respaldo da Otan, erigir-se como a polícia regional da área para vigiar, ameaçar e eventualmente agredir vizinhos que tenham a ousadia de se opor aos desígnios imperiais. Por sua vez, cabe se perguntar que implicações tem, sobre os diversos projetos de integração e coordenação de políticas na América Latina, o fato de que a Colômbia, ao se associar à Otan, adere à postura britânica na disputa com a Argentina pelas Ilhas Malvinas? Um projeto há muito tempo acalentado pelos nossos povos é fazer com que a América Latina seja um continente desnuclearizado. Se durante décadas pudemos estar seguros disso, hoje não podemos mais. Há evidências que sugerem que é muito possível que exista armamento nuclear nas Ilhas Malvinas e ignoramos que tipo de armamento está nas sete bases de que Washington dispõe no território colombiano, ou nas 11 existentes no Peru.65 Os acordos que tornaram possível a instalação dessas bases contêm cláusulas que conferem aos Estados Unidos o direito de colocar dentro das bases carregamento militar sem ter que ser submetido a nenhum controle dos Estados anfitriões. Não é por nada que, em uma das reuniões da Unasul, quando Chávez solicitou à organização que se procedesse a uma verificação do que havia em cada uma das bases estadunidenses na região, o pedido tropeçou na firme negativa de Álvaro Uribe e Alan García, não por acaso os dois países que abriram de par em par suas portas para a penetração de tropas e equipamentos militares estadunidenses em seus territórios. É impossível que este continente conquiste a paz com mais de 80 bases militares dos EUA existentes em nossos países. Essas bases são dispositivos para a guerra, não para a paz. E entrarão em pleno funcionamento à medida que a deterioração da situação internacional impulsione Washington a consolidar sua segurança no quintal traseiro e a sufocar qualquer tentativa de autodeterminação nacional ou de avanço democrático. Deveríamos lançar uma campanha continental para expulsar todas as bases

estadunidenses, e as poucas que existem do Reino Unido, da Holanda e da França, da região. Elas só vão trazer violência e morte e nós, latino-americanos e caribenhos, queremos paz. É uma proposta razoável, que atravessa a grande maioria das forças políticas e movimentos sociais da região. E nossos filhos e os filhos de nossos filhos jamais nos perdoarão o fato de que não tenhamos feito tudo que está a nosso alcance para acabar definitivamente com essas ameaças. Referências BORON, A. América Latina en la geopolítica del imperialismo. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2012. BORON, A. & MASSHOLDER, A. Pensamiento estratégico estadounidense. Revista de Estudios Estratégicos (CIPI), Havana, Cuba, segundo semestre, p. 39-52, 2014. BOSCH, J. El pentagonismo, sustituto del imperialismo. Santo Domingo: Fundación Juan Bosch, 2015. BROOKS, D. Democracia a la venta. Página 12. Recuperado de http://www.pagina12.com.ar/diario/contratapa/13-306731-2016-0813.html. BRZEZINSKI, Z. Strategic vision: America and the crisis of global power. Nova York: Basic Books, 2012. Cuadernos de Pasado y Presente, Número 1, 56-57, Córdoba. ENGELHARDT, T. (26 de marzo de 2015). El nuevo orden estadounidense. Rebelión. Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=196927. FONTANA, J. Por el bien del imperio: una historia del mundo desde 1945. Barcelona: Pasado & Presente, 2011.

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Em uma carta a Joseph Weidemeyer, na qual lhe pedia livros e artigos sobre a questão militar e as guerras, Engels diz que havia se proposto a estudar a fundo o assunto “pela imensa importância que devemos dedicar a ele, visando a próxima insurreição da classe operária”. Cf. F. E., “Carta a Weydemeyer”, 19 de junho de 1851. 49 Agradeço a Paula Klachko por haver voltado minha atenção para esse assunto, bem como por sua tão cuidadosa leitura da primeira versão deste trabalho. Desta mesma autora, recomendo especialmente o livro escrito conjuntamente com Katu Arkonada, Klachko e Arkonada (2016). 50 Veja as declarações do ex-presidente James Carter sobre isso. Ele comentou a sentença da Suprema Corte dos EUA, que estabelecia que as doações de campanha tanto de indivíduos quanto de empresas seriam, em essência, livre expressão e, portanto, não podem ser limitadas como algo equivalente à simples e pura legalização do suborno. Ele agregou, em uma entrevista recente para a Rádio 4 da BBC, que graças à sentença errônea da Suprema Corte, milionários e multimilionários poderão contribuir com montantes ilimitados de dinheiro, de modo que o suborno aos políticos foi legalizado. Autores como Jeffrey Sachs, Noam Chomsky, Tom Engelhardt e Gianni Vattimo têm elaborado este mesmo argumento nos últimos anos. 51 Tema sobre o qual já falamos e que agora ratificamos, aludindo diretamente às obras de Tom Engelhardt, “El nuevo orden estadounidense”, em .Veja também dois textos clássicos sobre este tema: Scott (2014), Wolin (2009). Também Bosch (2015). 52 Este cálculo é nosso (Boron, 2012). 53 O consumo de papel é importante, entre outras coisas, como um indicador da higiene dos produtos alimentícios e farmacêuticos que se enviam ao mercado. Não é casual a correlação inversa que existe entre taxas de mortalidade e morbidade infantil e consumo de papel nos países mais pobres do planeta. Analisamos esse assunto em Boron (2014). 54 Não é um dado menor recordar que a expressão “Make America great again” (“Tornar a América grande novamente”) foi registrada como uma marca por Donald Trump, que também fez o mesmo com

o próprio lema da sua campanha para a eleição de 2020: “Keep America Great” (“Conservermos a América grande”). Ver Wilson (2018). 55 O documento diz textualmente: “In particular, India’s potential, China’s rise, and Russia’s aggression all significantly impact the future of major power relations” (NSS, 2015, p. 4). Em nenhum lugar do documento se indica qual é o país ou o objetivo da agressão russa. Trata-se de uma caracterização preconceituosa, negativa e abstrata e não de uma acusação verídica. 56 Sobre o tema da decadência do poderio imperial, ver Boron (2014, p. 50-58). 57 Em Washington circula entre murmúrios esta visão tripartida dos possíveis desenlaces: “soft”, “rough” e “crash landing”, embora seja politicamente incorreto falar em voz alta dessas coisas. 58 Os Estados Unidos estão tratando de alcançar a “independência petrolífera” desde a primeira crise do petróleo, em 1973, sem obter sucesso nessa política. Para piorar, as decisões da Casa Branca de acompanhar vergonhosamente a política do Estado Islâmico de vender o petróleo cru a 30 dólares por barril com o objetivo de agredir economicamente a Rússia, o Irã e a Venezuela desatou uma gravíssima crise nas empresas que extraíam o “shale oil” (petróleo de xisto) e que haviam diminuído a dependência estadunidense do petróleo cru importado. Agora tudo isso é história, e as empresas que exploravam esse petróleo não convencional no Texas, na Califórnia e nas Dakotas encerraram suas atividades. Sobre o uso de um recurso como o gás ou o petróleo como arma política: os Estados Unidos foram os campeões nesse ramo, de modo que sua crítica à Rússia por fazer o mesmo que Washington tem feito desde tempos imemoriais não tem substância nenhuma. 59 Não obstante, a derrubada dos preços do petróleo nos últimos meses não apenas transformou a fisionomia do mercado petroleiro mundial, mas também liquidou a alavanca fundamental com a qual os EUA desestabilizaram esse mercado nos últimos anos. O fracking, decisivo para a presença estadunidense nesse mercado, foi derrubado porque sua rentabilidade requer que o barril de petróleo oscile em torno de US$ 70,00, coisa que não ocorre nem

com o petróleo russo, nem com o saudita. As renovadas tensões do sistema internacional encontram ali uma de suas múltiplas causas. 60 Aqui se marca claramente o dissenso no conselho bipartite, pois Trump atribui ao liberalismo global a responsabilidade pela decadência industrial dos EUA. 61 Esta enigmática frase, “cálculos errôneos”, certamente faz menção à possibilidade de que a China, que está reforçando seu músculo militar, possa empreender alguma ação bélica no marco do litígio do Mar do Sul da China, especialmente voltada para atacar ou neutralizar a presença do Japão naquela área. Em uma manifestação completamente incomum da diplomacia chinesa, o jornal oficial do Partido Comunista da China, Diário do Povo, publicou pouco depois da visita de Obama à Austrália para assinar o acordo de instalar bases estadunidenses nesse país que “a Austrália poderia ficar presa em um fogo cruzado” entre Estados Unidos e China. 62 Por isso que alguns observadores dizem que, dado que o lítio será neste século o que o petróleo foi no passado, a Bolívia deve ser considerada como a Arábia Saudita do lítio, ao contar com as maiores reservas comprovadas desse estratégico elemento. 63 Sobre este tema do intervencionismo estadunidense na Nossa América, é inevitável a referência à monumental obra de Gregorio Selser (1994) Cronología de las intervenciones extranjeras en América Latina. Veja-se também a obra, mais recente, do politólogo e historiador cubano Luis Suárez Salazar (2006). 64 Sobre o sinistro papel da Otan, veja o estudo completo publicado como livro de Nazemroaya (2015). 65 Sobre o tema das bases militares, consultar o imprescindível livro de Telma Luzzani (2012) e, também, os diversos documentos de trabalho do Movimento pela Paz, a Soberania e a Solidariedade entre os Povos, que sob a direção de Rina Bertaccini, realizou um notável trabalho de levantamento das bases militares estrangeiras estabelecidas na região.

A RECONFIGURAÇÃO IMPERIAL DOS ESTADOS UNIDOS E AS FISSURAS INTERNAS DIANTE DA ASCENSÃO DA CHINA66 GABRIEL E. MERINO Introdução A atual transição histórico-espacial do sistema mundial se manifesta, entre outros modos, como uma crise capitalista estrutural e uma crise da hegemonia estadunidense e da ordem mundial construída pelo polo de poder anglo-americano. São dois lados da mesma moeda. A acumulação capitalista está sempre relacionada com o poder político e militar que a garante (que sanciona as regras do jogo, constrói monopólios para o aumento do valor, conquista territórios, disciplina os rivais, concede legitimidade etc.). E o poder político e militar se alimenta do poder econômico e da acumulação infinita de valor para obter para si os recursos de sua própria reprodução ampliada. Esta é a natureza do imperialismo moderno. A transição histórica, em sua dimensão geopolítica, começa a ser percebida nitidamente a partir de 1999-2001, quando brota a situação de multipolaridade relativa que vivemos hoje, como reação à globalização financeira neoliberal estadunidense-anglo-americana e sua expansão política e militar. A decadência relativa dos Estados Unidos e do “Ocidente”, por um lado, e a reemergência da China e da Ásia-Pacífico, por outro, é uma das características centrais da mudança de época que vivemos, o que não pode ser interpretado somente como mais uma transição hegemônica dentro do moderno sistema mundial. Quer dizer, como parte da sucessão de ciclos de hegemonia iniciado no século XV: ibérico-genovês, holandês, britânico, estadunidense e, agora, [...] a reemergência da China, a ascensão da Ásia-Pacífico, as alianças com a Rússia, o crescente

desenvolvimento de um espaço Euro-Asiático e a insubordinação anti-hegemônica impulsionada por forças do Sul Global constituem expressões da crise dos elementos constitutivos do moderno sistema mundial: seu caráter eurocêntrico ou “ocidentalocêntrico”, para incluir os Estados Unidos, seu caráter capitalista, seu particular ordenamento centro-semiperiferia-periferia e a especificidade do imperialismo moderno associado à acumulação infinita do capital e a resolução dos obstáculos da acumulação. Atualmente, estamos no processo inverso do que aconteceu no fim do século XVIII e início do século XIX, quando o imperialismo capitalista ocidental liderado pelo Reino Unido conseguiu subordinar e provocar o declínio das economias mais importantes do mundo, China e Índia, transformando-as em periferia. Isso foi alcançado fundamentalmente por seu poderio militar britânico. Esse processo, conhecido como a Grande Divergência, nos leva a perguntar se hoje em dia estamos diante de uma nova grande divergência, porém no sentido inverso. Uma questão fundamental da transição é que os grupos de poder e as forças dirigentes dos Estados Unidos não chegam a um acordo sobre o que fazer ou como enfrentar a ascensão da China, dando lugar a diferentes estratégias imperiais. Neste sentido, Arrighi (2007, p. 283) aponta diferentes opções. Em primeiro lugar, destaca a posição neoconservadora dominante durante o governo de Bush, segundo a qual as forças estadunidenses devem ser o suficientemente fortes para dissuadir possíveis adversários de continuar uma acumulação militar com a esperança de ultrapassar ou igualar o poder dos Estados Unidos. O foco se centra na supremacia militar dos Estados Unidos, o intervencionismo unilateral e o controle da região do Oriente Médio e de seus recursos de hidrocarbonetos como uma das chaves para a primazia mundial. Diante disso, e especialmente devido ao fracasso no Iraque, emergem três estratégias na perspectiva neorrealista: 1) a da contenção da China mediante uma coalizão de equilíbrio e o estabelecimento de uma aliança militar na Ásia-Pacífico, similar à Otan e conhecida como Pacom, formulada por Kaplan, que outros estendem também ao Índico; 2) a estratégia de cooptação e o estabelecimento conjunto de um sistema internacional estável, uma

estratégia de contenção centrada nas dimensões políticas e econômicas, que comprometa a China a sustentar a ordem mundial vigente em troca de concessões, formulada essencialmente por Kissinger e também por Brzezinski; e 3) a estratégia de “terceiro feliz” dos Estados Unidos, apostando na rivalidade da China com outras potências asiáticas (especialmente Índia e Japão) e uma política neohamiltoniana de industrialização (fortemente protecionista) com foco nas indústrias vitais para a defesa, formulada por Pinkerton.67 Podemos diferenciar esta última e compreendê-la como duas formulações articuladas. Também podemos mencionar o internacionalismo liberal, que se centra na crítica à China pelo não respeito aos direitos humanos e, em geral, pela recusa do conjunto dos dirigentes políticos da China em aceitar a comunidade de valores proposta pelo Ocidente. O liberalismo argumenta que a guerra não é inevitável e que a China pode ser controlada a partir do estabelecimento de instituições e normativas regulatórias para os Estados, não apenas externas mas também internas. Considerando esses debates, propomos aqui outra perspectiva para observar as diferenças estratégicas nos Estados Unidos para enfrentar a ameaça que a ascensão da China significa para sua posição dominante em nível mundial. Esta outra perspectiva é formulada com base na identificação das forças em disputa nos Estados Unidos, focando-nos nas disputas entre os que denominamos globalistas e americanistas. A partir disso, articulamos discursos, grupos de poder e interesses para identificar duas grandes estratégias imperiais, com suas geoestratégias particulares, e compreender as diferentes maneiras de enfrentar a China. Partindo dessa análise, neste trabalho busca-se compreender as reconfigurações imperiais em curso a partir da presidência de Donald Trump. Além disso, observam-se certos elementos-chave da ascensão da China, seus aspectos geopolíticos e as respostas do gigante oriental diante das estratégias de Washington contra ele. Por último, realiza-se uma análise da guerra comercial no contexto das fraturas internas dos Estados Unidos e as disputas geopolíticas.

A fugaz belle époque neoliberal unipolar As transformações no campo econômico, produto do desenvolvimento do capital financeiro transnacional, e a mudança nas relações capitalistas de produção, junto à ofensiva nos campos político, ideológico e militar do projeto neoliberal encabeçado pelos Estados Unidos e o Reino Unido, possibilitaram uma reconstrução da hegemonia estadunidense e, em termos mais exatos, angloamericana. Sem sombra de dúvidas, a queda da URSS foi fundamental nesse sentido. O novo ciclo de crescimento iniciado em 1993-1994, que deixou para trás o ciclo negativo que vinha desde os anos 1970, consolidou a breve belle époque neoliberal. O mundo se tornou unipolar, e o globalismo emergiu como descrição ideológica da nova fase do capitalismo mundial, mas também como projeto político. À transnacionalização financeira, produtiva e, em boa medida, cultural devia corresponder uma estrutura de poder transnacional que administrasse a nova ordem do sistema mundial e suturasse as contradições do capitalismo global. O projeto dos Estados Unidos como Estado verdadeiramente global era impossível, porém, por sua vez, sobre sua base e desenvolvimento configurou-se o andaime de uma institucionalidade globalista. Em função disso, se fortaleceram algumas organizações multilaterais chave do pós-guerra sob o controle dos Estados Unidos e do Norte Global: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Além disso, criou-se a Organização Mundial do Comércio (OMC) e começou a se impulsionar um conjunto de normas globais voltadas para o comércio, o investimento, a propriedade intelectual etc., materializadas em acordos e instituições. Inclusive, estabeleceramse tribunais internacionais, como o Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (Ciadi),68 para arbitrar sobre disputas relativas a investimentos, despojando os Estados nacionais de ferramentas soberanas. Toda essa institucionalidade globalista significou um processo de fragilização das soberanias nacionais, uma desnacionalização progressiva dos Estados. No entanto, no final do século, no auge da belle époque neoliberal, começaram a se manifestar os primeiros sintomas da crise. Enquanto o levante dos camponeses zapatistas no sul do México em 1994 colocava em evidência o feroz impacto do projeto

financeiro neoliberal sobre os pobres do Sul Global, por volta de 1999 se manifestava uma série de contradições entre os grupos dominantes do sistema – tanto centrais quanto semiperiféricos e periféricos – e começavam a ser observados em termos políticos e estratégicos os primeiros indícios da particular multipolaridade, da forma geopolítica da transição. A reconstrução da hegemonia estadunidense dos anos 1980, e em seu esplendor nos 1990, começou a mostrar seus próprios limites e contradições: se a chamada globalização, a transnacionalização econômica e os vínculos com a China foram pilares de dita reconstrução, esses elementos continham por sua vez o gérmen de uma crise terminal da hegemonia estadunidense. Neste sentido, se até o último ano do milênio os BRICS69 apareciam como os espaços fundamentais da expansão do capital transnacional do Norte Global, nova solução espacial para a acumulação do capital, e integrados progressivamente como semiperiferias nas instituições internacionais de governabilidade global criadas pelo Ocidente, também se observará o que poucos anos depois será uma realidade pouco feliz para o establishment defensor da ordem mundial vigente: o desenvolvimento, em certos países chamados “emergentes” ou do Sul Global, de capacidades estruturais e de forças político-sociais desafiantes das hierarquias estatais estabelecidas, das instituições da ordem mundial e do lugar designado a elas na divisão internacional do trabalho. Assim o interpreta o establishment anglo-americano, que podemos ler no Financial Times: Não faz muito tempo que os políticos do Ocidente assumiram que China e Rússia eventualmente decidiriam que iriam querer ser como ‘nós’. A China se desenvolveria como um ator responsável na ordem internacional existente e a Rússia, embora com erros, veria seu futuro na integração com a Europa. Xi e Putin tomaram outra decisão. O mundo está despertando dos sonhos pósmodernos da governança mundial para outra época de grande competição pelo poder.70

O ataque militar unilateral da Otan conduzido pelos Estados Unidos contra a Iugoslávia em 1999 e o bombardeio a Belgrado, em que as forças estadunidenses destruíram a embaixada chinesa, começou a mostrar os limites da crença sobre o “fim da história”. Por sua vez, no mesmo ano, China recupera Macau, posição portuguesa desde o

século XVI transformada em colônia em 1887, sendo que dois anos antes já havia recuperado a soberania de Hong Kong, colônia do império britânico desde 1842 e provavelmente o primeiro marco histórico da Grande Divergência, iniciada com as Guerras do Ópio, em um caminho de subordinação e periferização da China. Isso, junto com a consolidação da Organização para Cooperação de Xangai com a Rússia e com os países da Ásia central, sobre os quais os Estados Unidos tinham colocado o foco em seus avanços, são algumas das manifestações geopolíticas de uma mudança de época que tem a China como protagonista. Outro indício disso seria a captura, por parte da China, de um avião espião estadunidense que colidiu com um avião caça chinês em abril de 2001 no Mar da China, obtendo acesso a material eletrônico de vigilância de alta tecnologia, extremamente secreto, em um equipamento considerado uma fortaleza tecnológica aérea. Isso exacerbou os ânimos do governo de George W. Bush e mostrou a crescente hostilidade de Beijing aos desafios à sua soberania territorial. Este fato ocorreu em meio a uma profunda mudança na definição da relação bilateral por parte dos Estados Unidos diante do gigante asiático com a ascensão do governo de Bush, que passou da “associação estratégica no século XXI” para a “concorrência estratégica”. As implicações dessa nova definição incluíam a possibilidade de que os Estados Unidos vendessem armas modernas para Taiwan, ilha sobre a qual a China reclama soberania, e construísse um “escudo antimísseis” ao redor da China. Em contrapartida, com base na definição de “concorrência estratégica”, passou-se a considerar a China como uma ameaça no “quintal” estadunidense, por sua crescente influência comercial na América Latina. No ano de 2005, durante um debate sobre “A influência da China na América Latina” organizado pelo Subcomitê do Hemisfério Ocidental do Congresso dos Estados Unidos, legisladores e funcionários do Departamento de Estado e do Pentágono coincidiam em que a influência da China crescia todo dia na Argentina, no Brasil, na Venezuela e no resto da América Latina, e que isso representava “uma ‘preocupação’ para o desenvolvimento da democracia e dos direitos humanos no

continente”.71 Nessa ocasião, a referência máxima do Departamento de Defesa para a América Latina, o subsecretário adjunto Roger Pardo Maurer, afirmou estar “preocupado com o aumento da presença da China nos países da região” e destacou que os Estados Unidos devem “estar alertas” diante de “certas atividades chinesas”.72 A crescente tensão com a China desde 1999 e a mudança nos Estados Unidos que, como veremos, é produto de uma modificação de relação de poder a favor do que chamamos de “americanismo” naquele país, também coincide com um conjunto de fatos que marcam o começo do fim da belle époque neoliberal unipolar: 1) o estabelecimento do euro por parte das forças “continentalistas” da Europa, conduzidas por Berlim e Paris, em sua busca por se fortalecer e ganhar maiores margens de manobra diante de seu aliado e “protetor” fundamental, os Estados Unidos; 2) a ascensão de Putin na Rússia, que expressará a reemergência das forças nacionais do gigante Euro-Asiático; 3) a ascensão de Chávez na Venezuela, que indicará uma quebra-chave da hegemonia estadunidense e do Consenso de Washington na América Latina, junto à crise no Brasil que debilitou as forças neoliberais no “gigante” sul-americano e as fraturas dos grupos de poder e classes dominantes na Argentina com a aparição do Grupo Produtivo; também devemos somar aqui a crise do Equador, cuja saída é a dolarização e, por volta do ano 2000, a Guerra da Água na Bolívia, ponto-chave do processo nacional popular que leva ao governo, anos depois, o Movimento ao Socialismo (García Linera, 2008, p. 4) o lançamento do Jubileu da Dívida 2000 por parte da Igreja Católica, que propôs perdoar a dívida dos países pobres, acompanhado de uma crítica ao neoliberalismo e ao capitalismo “selvagem”. Isto é, aí começam a se observar as primeiras manifestações geopolíticas da crise da hegemonia estadunidense e da ordem mundial vigente, a qual se mostrará mais nitidamente a partir do fracasso da guerra no Iraque e da crise global de 2008. Fratura nos Estados Unidos e imperialismo A mudança na definição por parte do governo G. W. Bush da relação com a China para a categoria de “concorrência estratégica”

deve ser interpretada como parte dos antagonismos que existem no “establishment” estadunidense (e anglo-americano). As características do atual racha nos grupos de poder e nas classes dominantes começa a ser observada no fim do mandato de Clinton, quando este impulsiona, entre outras questões: a) a revogação da Lei Glass-Steagall, que permite acabar com a divisão entre banco comercial e banco de investimento, criando imensas redes financeiras globais; b) a criação do G20, impulsionado pelas forças globalistas como novo âmbito de governabilidade mundial de um capitalismo transnacionalizado; c) o fortalecimento e/ou criação, por parte das forças globalistas, das instituições internacionais multilaterais (FMI, BM, OMC) em detrimento das soberanias nacionais, inclusive a soberania dos próprios Estados Unidos, segundo os “americanistas”. Com o governo de Bush, a partir da queda das Torres Gêmeas e a ascensão do neoconservadorismo no domínio da política exterior, se evidencia uma reação “americanista” que se expressa na prática do unilateralismo: deixa-se de lado a ideia do G20 para retomar o velho G7 do Norte Global (Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental e Japão) e, alternativamente, o G8, que inclui a Rússia. Além disso, se instala um unilateralismo estadunidense-anglo-americano, em detrimento do multilateralismo globalista de Clinton, apelando para a supremacia militar e para o domínio da região do Oriente Médio para assegurar a posição hegemônica dos Estados Unidos na Ordem Mundial, o que tensiona as relações com seus próprios aliados, como a França e a Alemanha na guerra no Iraque (Harvey, 2004). Também se desdenha o fortalecimento excessivo de instituições internacionais multilaterais, para recuperar poder de decisão direta dos Estados Unidos em detrimento da “burocracia global”.73 Por sua vez, aplicando um keynesianismo militar (deficit público e aumento superlativo do orçamento militar, legitimado pela guerra), buscou-se dinamizar a economia interna a partir do complexo industrial militar.74 Em contrapartida, como vimos, definiuse que a China é um competidor estratégico e se colocou em prática uma política que Donald Trump levaria muito mais longe: impedir as empresas chinesas de adquirir ativos considerados estratégicos por

Washington. O caso mais estrondoso foi o impedimento de que a chinesa CNOOC comprasse a petroleira Unocal. A crise de 2007-2008, com epicentro nos Estados Unidos e no Reino Unido, foi outro momento fundamental dessa disputa no interior das classes dominantes, entre grupos financeiros, entre globalistas e americanistas (Merino, 2014), em uma crise que deixava evidente os limites da financeirização e o problema da superacumulação. Com o triunfo de Obama, o “globalismo” voltou ao governo, recolocando na agenda o multilateralismo-unipolar, o incentivo de tratados multilaterais de comércio e investimento, as alianças militares expansivas na periferia Euro-Asiática para conterimpedir a emergência de rivais geopolíticos, a tentativa de fortalecer as instituições multilaterais criadas pelo Norte Global e o incentivo do multiculturalismo como ideologia dominante. Também as tentativas de abandonar as guerras convencionais e concentrar-se no que se denominam guerras híbridas, revoluções coloridas e guerras não convencionais. Um exemplo disso foi a multiplicação por dez dos ataques com drones em territórios onde os Estados Unidos não estavam formalmente em guerra, como no Iêmen, na Somália ou no Paquistão, bem como o apoio a forças insurgentes e às revoluções coloridas nos países com governos contrários aos seus interesses. Seu governo articulou o programa dominante do capital financeiro transnacional (especialmente de origem angloamericano) e os interesses geopolíticos do establishment político e ideológico globalista (que procura incluir os seus aliados da Europa ocidental e o Japão), com certas concessões mínimas às classes populares estadunidenses através de programas focados e da recuperação parcial da agenda liberal em relação aos direitos civis e às liberdades individuais. Mas essa articulação era contraditória demais. Para as forças globalistas, o que está em jogo no cenário estratégico atual é quem escreve as regras do jogo do século XXI, ou seja, a institucionalidade que vai emergir desta transição histórico-espacial que estamos atravessando e que vai configurar uma nova ordem no sistema mundial, com capacidade para conter os polos de poder desafiantes. Essa disputa é crucial, uma vez que a geoestratégia das forças globalistas anglo-americanas é

inseparável da lógica do capital internacional, das redes financeiras globais. Seguindo o raciocínio de Arrighi e Silver (2001) e de Harvey (2004), entre outros, a atual crise capitalista só pode ser “resolvida” (ou só se encontrará uma saída), em suas implicações geopolíticas, na medida em que se construir um poder político e militar que garanta a acumulação do capital transnacional do Norte Global. E isso estabelece uma tendência para avançar na direção de uma nova institucionalidade globalista, na direção de um novo impulso de um impossível Estado global partindo dos Estados Unidos e do polo de poder anglo-americano, e subordinar-conter os polos emergentes que desafiam o polo dominante. Para isso, são cruciais os acordos de livre comércio e as alianças militares nas periferias EuroAsiáticas, regiões-chave do rimland. Como observa Brzezinski, um neorrealista com grande influência sobre o grupo que denominamos globalistas, a “primazia global dos EUA depende diretamente de por quanto tempo e quão efetivamente poderão manter sua preponderância no continente Euro-Asiático” (Brzezinski, 1998, p. 39). Nesse sentido, a tarefa é garantir que nenhum Estado ou nenhum grupo de Estados (polos de poder) obtenham a capacidade de expulsar os Estados Unidos da Eurásia ou de limitar seu papel de árbitro. E para isso se tornam fundamentais os acordos de livre comércio na periferia ocidental e oriental da Eurásia. Até 2014, tais acordos se tornaram ainda mais cruciais diante da fragilidade dos Estados Unidos, da crise da hegemonia global, da crise capitalista com epicentro no Ocidente, do desafio das potências emergentes, do despertar do Oriente, do grande desenvolvimento da China e da luta pelo controle do Pacífico como área principal de acumulação em âmbito mundial. Como expressão dessa geoestratégia que pretendia conduzir e incluir o conjunto das forças do que se denomina geopoliticamente como “Ocidente” e geoeconomicamente como “Norte Global”, Hillary Clinton (2011) afirmava que o futuro da política mundial seria decidido na Ásia e no Pacífico, não no Afeganistão ou no Iraque (como definem os neoconservadores), e os Estados Unidos deveriam estar no centro da ação. Clinton, que tinha sido secretária de Estado de Barack Obama, acrescentou a essa ideia que o eixo estratégico da política exterior estadunidense devia passar do

Oriente Próximo para a Ásia Oriental. Também projetava a necessidade de gerar uma aliança similar à da Otan para o Pacífico, que possa incluir o oceano Índico, isto é, fundamentalmente a Índia, operacionada pelo Usindopacom (United States Indo-Pacific Command). A partir desse ponto de vista, as forças globalistas apostavam em dois instrumentos-chave. O Tratado Trans-Pacífico (TPP, na sigla em inglês) e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês). O TPP teria então um importante impacto geopolítico quanto à distribuição do poder na Ásia-Pacífico, já que o interesse dos Estados Unidos era sustentar um equilíbrio favorável nessa região e conter/cercar a China. Por isso a insistência em “proteger” Estados como Filipinas, Vietnã e Taiwan da grande dependência da economia chinesa, para que não percam sua diplomacia independente e sua influência política. No caso do TTIP, acordo para avançar na periferia ocidental da Eurásia junto à Otan, a questão de fundo é se predomina o atlantismo, reforçando a posição do globalismo. As ameaças euroasiáticas, a situação de crise da ordem mundial e os novos desafios das potências emergentes aparecem insistentemente nos discursos a favor do TTIP por parte dos atlantistas globalistas. Neste sentido, em um discurso em Estocolmo, Michael Froman (Secretário de Comércio dos Estados Unidos) avisou que não havia “plano B” se as tratativas do TTIP não fossem concluídas durante o ano de 2016. E acrescentava: “Ou trabalhamos juntos para nos ajudar a estabelecer as regras do mundo ou deixamos esse papel para outros”.75 Como observa em um artigo no Foreign Policy o analista, ex-almirante dos Estados Unidos e comandante supremo da Otan, James Stavridis, avançar com o TTIP implicaria: “[...] unir a Europa aos Estados Unidos, o que diminui a influência da Rússia. O TTIP é um acordo razoável por motivos econômicos, em termos gerais. Mas também tem um enorme valor real no âmbito geopolítico” (2014). Caso se concretizem o TTP e o TTIP, as forças globalistas, cujo núcleo fundamental é a territorialidade anglo-saxã, poderiam cimentar uma base territorial de 51 países, com 1,6 bilhões de pessoas e dois terços do PIB mundial, contando com uma importante massa crítica de poder para atravessar favoravelmente a

luta pela reconfiguração da ordem mundial. Isso consolidaria algo crucial: a necessidade de manter o controle das periferias ocidental e oriental da Eurásia para enfraquecer o desenvolvimento de um bloco Euro-Asiático e reforçar uma Europa alinhada no Atlântico, deixando a China “contida” em sua expansão e em sua influência regional e global, e a Rússia mais isolada. Enquanto isso, na América Latina avançaria a Aliança do Pacífico – forma regional do TPP – e os acordos de livre comércio entre a UE e o Mercosul, sob o paradigma do regionalismo aberto em detrimento das tentativas de constituição de um polo de poder regional. No entanto, primeiro a partir do Brexit e depois com a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton, as forças globalistas sofreram uma grande derrota política em seus próprios territórios. Isso acompanhou o impasse desglobalizante que já se expressava na economia mundial desde 2010, quando se esgotou a fórmula da chamada globalização econômica, pela qual, para cada ponto de crescimento do PIB, cresciam dois pontos no comércio exterior e três pontos no investimento estrangeiro direto. Já na campanha presidencial de 2016, podíamos observar que a luta política nos Estados Unidos, inerentemente entrelaçada com a crise capitalista pela qual passamos76 e a perda de poder relativo no cenário internacional (dois lados de uma mesma moeda), manifesta uma situação de empate hegemônico entre grupos/forças dominantes. Isso se expressa em profundas polarizações em torno de todos os temas importantes na construção de um projeto político estratégico: 1) a guerra no Iraque e a estratégia no Oriente Médio; 2) o papel e o poder dos organismos e instituições multilaterais (FMI, BM, OMC etc.) em relação ao papel e o poder do Estado dos Estados Unidos (unipolarismo unilateral versus unipolarismo multilateral); 3) a estratégia para o enfrentamento com as potências/polos de poder emergentes regionais e globais; 4) os acordos multilaterais de comércio, investimento e regulação econômica transacional (TPP, TTIP, Nafta); 5) as reformas na regulação do sistema financeiro; 6) o valor da taxa de juros de referência do Federal Reserve e sua política monetária geral; 7) a questão da mudança climática; 8) a aposta nas guerras híbridas ou nas guerras convencionais etc. E essas polarizações atravessam o

debate intelectual, articulando de forma diversa as diferentes perspectivas teóricas e gerando, inclusive, um racha entre essas perspectivas. O que não deixa de ter um acordo geral na quase totalidade do chamado establishment é quanto a manter o domínio unipolar e, neste sentido, enfrentar em conjunto os polos de poder emergentes que desafiam essa situação, especialmente a China, como também a Rússia, e manter subordinados os aliados. Quer dizer, eles compartilham os três grandes imperativos da geoestratégia imperial: impedir choques entre vassalos e manter sua dependência em segurança, manter os tributários obedientes e protegidos e impedir a união dos bárbaros (Brzezinski, 1998). No entanto, diferem no como, o que tem raízes estruturais. Entretanto, como tais disputas continuam se condensando e ao mesmo tempo se unificando no Estado, que expressa a situação das relações de força, produz-se um resultante político particular com continuidades estratégicas. Porém, ao mesmo tempo, isso faz com que dentro do próprio Estado existam múltiplas políticas contraditórias e se encontre polarizada também a burocracia, dando lugar a uma intensa disputa palaciana. Trump e o retorno ao imperialismo unilateral A vitória de Donald Trump indica um momento qualitativamente superior da disputa pelo poder nos Estados Unidos e expressa a reação de um conjunto de atores que se veem ameaçados ou prejudicados no processo de globalização (fase específica do processo histórico de internacionalização do sistema-mundo), acentuada pela decadência mais pronunciada dos Estados Unidos e a crise capitalista que exacerba a luta entre capitais e afeta importantes camadas de trabalhadores e grupos empresariais. Por isso, Trump foi além da agenda clássica conservadora e neoliberal da elite do Partido Republicano, incorporando maiores elementos do nacionalismo econômico industrial e um discurso anti-establishment. Trump se posicionou claramente como partidário do Brexit e se manifestou contra o Nafta e o TLCAN, contra o TPP e o TTIP, procurando levar as relações comerciais a uma relação bilateral, para impor o peso da economia estadunidense, seu poder político

arbitrário e evitar as relações de concorrência “prejudiciais” aos grupos e setores atrasados (especialmente a respeito dos capitais de países aliados), acentuando as práticas protecionistas.77 Em contrapartida, o governo de Trump retoma a política exterior do “eixo do mal” definida por Bush e os neoconservadores, em que se incluía Irã, Iraque, Coreia do Norte, Líbia, Síria e Cuba, ao que em seguida se somaram a Bielorrússia, a Birmânia e o Zimbábue. A realização de possíveis guerras nesses territórios secundários tem como objetivo conquistar posições-chave e/ou impedir o avanço de potências rivais, ao mesmo tempo que alimentar a economia doméstica dos Estados Unidos mediante o complexo industrial militar, fazendo uso do monopólio do dólar para seu financiamento. Além disso, apresenta um apoio categórico à geoestratégia neoconservadora do governo israelense de Netanyahu (expresso na transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém), que implica avançar sem hesitação na conquista da Palestina e na construção da Grande Israel para desequilibrar o jogo das potências regionais. Também se observa o retorno ao recrudescimento da posição contra o Irã como o grande inimigo a vencer na chave geopolítica do Grande Oriente Médio e, por isso, a busca por todos os meios de destruir o acordo nuclear entre esse país e as principais potências mundiais. Porém, por sua vez, também nesse plano se produz uma mudança a respeito do governo de Bush, alinhada com a nova situação mundial: a mudança na doutrina militar, na qual volta a ser central o enfrentamento com Estados rivais que ameaçam o domínio dos Estados Unidos no mundo, especialmente China e Rússia. Além disso, com o governo de Trump, se exacerba o unilateralismo, como se observa no caso da ruptura dos acordos com Irã e dos acordos com Cuba, a retirada do Acordo de Paris, as tensões na Otan, a guerra comercial que envolve aliados, o questionamento e a crise da OMC, a transferência da embaixada para Jerusalém e a retirada da Unesco. O paradoxal é que a ordem mundial construída dominantemente pelos Estados Unidos é questionada pelas próprias forças que disputam nos Estados Unidos: os globalistas, porque entendem que já se tornou obsoleta e que é insuficiente para conter as potências emergentes e a nova realidade do poder mundial,

enquanto que os “americanistas” e nacionalistas entendem que essa ordem se voltou contra eles e é um obstáculo na estratégia de recuperar a primazia. Para a América Latina, o trumpismo retoma a aposta no controle hegemônico direto da região, como área prioritária de influência direta para o enfrentamento com outros blocos de poder. Nesse sentido, o vice-presidente Mike Pence reivindicou posturas ingerencistas próprias da Doutrina Monroe (“a América para Washington”) e o ex-conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, chegou a afirmar que tal doutrina está “vivinha da Silva”.78 Essas figuras, junto à de Pompeo, ligadas aos neoconservadores, exacerbaram as pressões diretas contra Cuba, Venezuela e Nicarágua. Entretanto, o próprio chefe do Comando Sul, o almirante Kurt Tidd, apontou insistentemente e com especial preocupação para a influência de Beijing na América Latina (como também da Rússia e do Irã) e seu avanço no plano geoeconômico (principal sócio comercial da América do Sul), identificando seus investimentos como uma ameaça para a segurança nacional dos Estados Unidos.79 Nesse sentido, Washington coloca em prática de forma explícita a política de áreas de influência. Mesmo que, como observa Boron (2014), a região é sempre prioritária para o imperialismo estadunidense, é possível identificar uma mudança importante de estratégia a partir de Trump. Por exemplo, basta pegar o caso de Cuba e observar os acordos e a política de “descongelamento” da era Obama em comparação com a política do eixo do mal, bloqueio absoluto e sanções do governo Trump. Tratase de duas estratégias imperiais bem distintas, como também se nota no caso do Irã. No plano político, o “americanismo” reivindica um retorno à soberania do Estado nacional e o fortalecimento unilateral do polo de poder anglo-americano – junto ao Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Israel – pelo que se torna muito importante o Brexit e o estreitamento dos laços econômicos entre esses países. O reforço do que podemos chamar um “angloamericanismo” unilateral no âmbito geopolítico corresponde a um “anglo-saxonismo” identitário como horizonte estratégico, que em sua forma dominante se expressa como um supremacismo, uma

exacerbação da identidade branca anglo-saxã e protestante (em inglês, os WASP) e serve de argamassa para o imperialismo atrasado, traduzindo-se na política como uma espécie de nacionalismo étnico. Essas mudanças expressas por Trump têm sua base econômica e social. Assim como o globalismo no plano político tende a institucionalizar o poder ocidental transnacionalizado e, no cultural, o multiculturalismo (organizado sob a perspectiva do liberalismo ocidental) desgasta as identidades nacionais nos países centrais; no âmbito econômico o globalismo reconfigura o velho centro, desenvolve novos nós centrais globais e cria novas periferias nos velhos territórios centrais. Nesse sentido, emerge como nova periferia o agora chamado cinturão da ferrugem nos Estados Unidos, no que antes era o coração industrial do meio oeste, como também o Midland britânico, cujos votantes se voltaram majoritariamente para Trump e o Brexit. Os capitais industriais centrados no mercado interno que dominam esses territórios, menos competitivos em termos internacionais, se veem prostrados diante da intensificação da competição e a concorrência de capitais. Além disso, o avanço industrial da China, que já disputa nos primeiros níveis mundiais de alguns setores produtivos e no controle dos fluxos globais (dinheiro, mercadorias, dados), assim como os saltos tecnológico-produtivos dos capitais do próprio Norte Global (alemães, japoneses etc.) acentuam pressões competitivas e diminuem o espaço para a acumulação global do capital, exacerbando as lutas de competição e concorrência entre capitais. Isso se reforça na medida em que custa ao Estado estadunidense manter as condições de monopólio. Por isso, essas forças contrárias ao globalismo também rejeitam o TPP e o TTIP e apontam contra seus próprios aliados, aos quais demandam subordinação unilateral, acentuando necessariamente as disputas no interior do Norte Global. A luta entre capitais e os processos de crise alimentam as disputas político-estratégicas (modelos de capitalismo em disputa, geoestratégias em disputa, identidades e cosmovisões em disputa etc.) e constituem um elemento central para analisar as fissuras nos Estados Unidos e no polo anglo-americano. Nesse sentido, não é

casual que um dos principais apoios de Trump provenha dos industriais do carvão e do complexo sidero-metalúrgico estadunidense. Dan Dimiccio, ex-CEO da siderúrgica Nucor, foi um dos principais assessores de Trump em economia e política comercial. Enquanto que Robert Lighthizer, nomeado por Trump como Representante Comercial dos Estados Unidos, tem uma longa trajetória representando a indústria siderúrgica estadunidense e foi um promotor central da guinada protecionista em importantes setores do Partido Republicano, ao mesmo tempo que protagonizou as batalhas siderúrgicas contra o Japão décadas atrás. Reforçam essa presença industrial no governo de Trump a figura de Mike Pompeo como chefe de gabinete, estreitamente ligado com as indústrias Koch, bem como o secretário de Defesa Mark Thomas Esper, que foi vice-presidente da área de relações governamentais de Raytheon (o maior contratante de defesa dos Estados Unidos). Por sua vez, Esper substituiu Patrick Shanahan, que foi diretor entre 1986 e 2017 da empresa aeroespacial Boeing, estreitamente ligada ao Pentágono. Não é estranho, por isso, que uma das primeiras medidas de Trump tenha sido ordenar ao Departamento de Comércio que realize uma investigação para determinar se as importações de aço, particularmente as procedentes da China, são uma ameaça para a segurança nacional, em sintonia com suas promessas protecionistas. Apoiado por representantes da indústria siderúrgica, Trump afirmou: “o aço é fundamental tanto para nossa economia quanto para nossas Forças Armadas. Essa não é uma área em que podemos nos permitir depender de países estrangeiros”,80 afirmando que proteger tal indústria é uma questão de segurança nacional. Quer dizer, o que se impôs como dominante no poder executivo com Trump é um grupo-chave de poder do complexo industrial-militar. Outro ponto referente à agenda econômica e às disputas na cúpula empresarial é sobre o imposto fronteiriço ou um imposto sobre as importações, que o chefe de gabinete de Trump anunciou que seriam impulsionadas como parte do projeto de reforma fiscal. Um mês antes de tal declaração, 16 grandes companhias industriais exportadoras emitiram um comunicado no qual instam ao governo

que adote o imposto sobre as importações. A carta em respaldo a um imposto fronteiriço foi assinada pelos presidentes executivos da Boeing, CoorsTek, Caterpillar, Dow Chemical Co., Celanese Corp., GE, Celgene Corp., Eli Lilly and Co., Raytheon Co., Merck & Co. Inc., S&P Global Inc., Oracle Corp., United Technologies Corp., Pfizer Inc. e Varian Medical Systems Inc. Essas companhias possuem uma forte base produtiva nos Estados Unidos, algumas delas são grandes contratistas do Pentágono e se veem fortemente afetadas em seus setores pela competição global, enquanto o Estado estadunidense já não pode garantir monopólios. A guerra comercial Trump declarou a guerra comercial ao mundo. Com isso, se pôs em curso um aprofundamento da política protecionista dos Estados Unidos e um bilateralismo comercial que busca proteger os grupos de capital e setores atrasados na economia global e fortalecer a produção industrial dos Estados Unidos perante a China, mas também perante a aliados como Alemanha, Japão e México. Os objetivos são reequilibrar o deficit comercial (agravado pelas políticas de hiper-estímulos da administração Trump e o keynesianismo militar) e, sobretudo, reforçar a “segurança nacional”, já que a indústria é a base da defesa, além de garantir os monopólios tecnológicos estadunidenses contra seus rivais, aspecto central no poder mundial (Amin, 1998). No último Discurso sobre o Estado da União, Trump foi particularmente enfático na promessa sobre importantes investimentos nas próximas indústrias tecnológicas de importância estratégica. Depois do primeiro ano do governo de Trump, o deficit comercial subiu entre 2016 e 2017. Com a China, foi a 375.100 bilhões de dólares. Diante disso, o governo de Trump pediu para a China uma redução de 100 bilhões de dólares em suas exportações, tratando de imitar o governo de Reagan nos anos 1980, quando se “obrigou” a autolimitar o Japão em suas exportações, a ajustar-se à política monetária do Federal Reserve e a financiar o Tesouro estadunidense. O problema é que a China não é um protetorado político-militar estadunidense como o Japão, sua escala é muito maior (já superou os Estados Unidos no PIB em termos de paridade

de poder aquisitivo) e a aliança com a Rússia fortalece sua posição político-estratégica na Eurásia. A razão central do enfrentamento comercial com a China é deter sua drástica ascensão global. Para isso, o trumpismo considera que deve frear o “alarmante” plano de desenvolvimento tecnológico Made in China 2025, que tem entre seus principais objetivos solucionar o atraso relativo em alguns setores tecnológicos fundamentais como robótica, semicondutores e indústria aeroespacial, e ampliar a liderança em outras, como a inteligência artificial e carros elétricos. Caso o plano se concretize, ainda que de forma parcial, acabaria quebrando definitivamente a relação centrosemiperiferia do gigante asiático com o Norte Global, colocando em crise a divisão internacional do trabalho e as hierarquias na economia mundial, ao mesmo tempo que colocaria um desafio sistêmico: que um país com um quinto da população planetária se transforme no centro desenvolvido. O que está em jogo para o trumpismo é a primazia geopolítica dos Estados Unidos a longo prazo. Assim o expressa o intelectual e funcionário da administração Trump, Peter Navarro, em seu livro de 2011: Death by China: confronting the dragon – a global call to action. A primazia estadunidense só pode ser alcançada através de um equivalente do século XXI do Relatório sobre manufaturas, de Alexander Hamilton de 1791, em que se decidam que indústrias são essenciais para a segurança nacional, junto com uma política tecnológica-industrial planificada para garantir que essas indústrias vitais permaneçam no país, complementadas por um forte protecionismo e uma guerra econômica com os rivais. Aqui aparece o nacionalismo econômico de Pinkerton que mencionamos no início, combinado com o neoconservadorismo. A guerra comercial tem como pano de fundo a crescente “guerra” econômica, na qual se acentuam as lutas entre capitais mediadas pelos Estados. O contexto de baixo crescimento no Norte Global desde a crise financeira global de 2007-2008 aprofunda essa situação e sua perspectiva. Com o baixo crescimento, a acumulação dos capitais privados se dá em detrimento dos mais atrasados e dos trabalhadores, colocando em jogo mecanismos de acumulação por despossessão. Os capitais globais se acumulam nos territórios

emergentes que crescem (particularmente a China), possibilidade que não existe para os capitais dependentes da economia nacional estadunidense. Porém, por sua vez, o processo conhecido como globalização econômica, pelo qual o comércio mundial se expandiu ao dobro do PIB mundial e o investimento estrangeiro direto ao triplo durante quase 30 anos, se deteve com a crise que eclodiu em 2008, deixando evidente seu limite estrutural. O pouco crescimento que o Norte Global obteve nos últimos anos ocorreu graças às políticas hiper-expansivas dos Bancos Centrais. Essa política está encontrando seus limites, criando uma enorme bolha nos títulos públicos, que possivelmente vai estourar em um ou dois anos. Observa-se uma crise próxima, que pode se desdobrar em um ciclo de crise muito mais profundo devido ao esgotamento do ciclo expansivo (A) de Kondratiev iniciado em 1994 e às tendências estruturais da economia mundial. Isso prognostica uma agudização das lutas econômicas que, dependendo de como se desenvolva e se “resolva”, vai alimentar a fissura nos Estados Unidos, a guerra econômica em âmbito mundial e a luta entre polos de poder em todos os âmbitos. Ascensão da China A ascensão da China e seu dinamismo econômico não são reduzíveis, segundo entendemos, à adesão, por parte da China, ao capitalismo neoliberal e/ou como epifenômeno da globalização e do deslocamento produtivo do Norte Global, tal como se pensa em boa parte da academia ocidental. Sua ascensão está estreitamente relacionada, em primeiro lugar, à obtenção de importantes níveis de autonomia e força político-militar (soberania) e certo bem-estar básico em matéria de saúde e educação, produto da Revolução de 1949; em seguida, ocorreu a decolagem com as reformas iniciadas em 1978 que atraíram os capitais da diáspora chinesa, absorveu níveis inferiores do processo de terceirização na Ásia-Pacífico encabeçado pelo Japão, desenvolveu importantes esquemas econômicos públicos e estatais e, mais tarde, absorveu grandes volumes de capitais do Ocidente sob suas próprias condições (necessidades produtivas planificadas, transferências tecnológicas, restrições à extroversão de lucros), para se tornar, por fim, a grande

plataforma industrial mundial. Isso foi feito com um projeto próprio, a partir da sua história e características próprias – centrado no crescimento da produtividade mais do que pelo investimento de capital (Zhu, 2012) – e com uma singular combinação de modos de produção, aproveitando a própria necessidade expansiva do capital do Norte Global. O modelo de desenvolvimento híbrido da China não se qualifica dentro do marco capitalista ocidental clássico, já que se mantém a propriedade coletiva da terra, os núcleos centrais da economia estão nas mãos de grandes empresas estratégicas estatais e existe um forte desenvolvimento das empresas de povoados e aldeias de propriedade coletivas (TVE) que são as principais empregadoras da economia. Portanto, a presente transição histórico-espacial não se trataria de uma passagem do poder de um Estado ocidental e capitalista para outro mais forte e dinâmico, para iniciar um novo ciclo hegemônico do sistema-mundo moderno. Mais que isso, a própria ascensão chinesa convida a consolidar a pergunta de se existe uma tendência definitiva e estrutural sobre o fim da primazia das forças fundamentais do Ocidente no sistema mundial e, especialmente, sua supremacia protagonizada pelo mundo anglosaxão a partir do que se denomina a Grande Divergência, entre início e meados do século XIX, com a combinação da Revolução Industrial, a expansão capitalista, o colonialismo e a supremacia militar. Isso está articulado com a formulação de Wallerstein (2006) sobre estarmos diante de uma situação de limite estrutural para a sobrevivência do sistema mundial moderno como tal, o que abre a pergunta de se estamos diante de uma crise definitiva da modernidade capitalista como sistema histórico e em que medida a ascensão da China e da Ásia-Pacífico é parte desse processo. Como apontamos no começo deste trabalho, no fim da belle époque neoliberal unipolar, a China começou a mostrar sinais de seu futuro como novo polo de poder desafiante da ordem mundial. Um momento-chave da ascensão chinesa foi a crise de 2008, que atingiu o Norte Global e expôs todas as suas contradições. A partir daí, a China deixou de financiar o Tesouro estadunidense e seu deficit estrutural, por meio da compra da dívida: se a China, entre 2005 e 2008, comprou 49,3% dos títulos públicos do Tesouro, em

2009, diante da queda no crescimento, adquiriu 19,6%, enquanto que o resto foi destinado a impulsionar a demanda interna e impedir uma recessão, injetando em sua economia fundos de 500 bilhões de dólares (Martins, 2011). Isso diferencia profundamente a China do Japão dos anos 1980 que, como um “protetorado” militar estadunidense, aceitou as políticas deflacionistas do “dólar forte”, financiar o deficit estadunidense e inclusive “autolimitar-se” em suas exportações aos Estados Unidos. Algo parecido ao que hoje demanda Donald Trump, mas que a China resiste em aceitar. Entretanto, outra das respostas a partir de 2009 foi a convocatória à primeira reunião dos Brics, na qual começou a se delinear um espaço dos principais poderes emergentes – não mais apenas mercados emergentes. Nessa ocasião se colocou sobre a mesa, entre outras questões, a necessidade de avançar em uma alternativa coletiva ao dólar, um desafio ao coração da hegemonia estadunidense. Quanto ao avanço econômico da China – cujo PIB medido pela paridade do poder aquisitivo já superou o dos Estados Unidos em mais de 20% e, por outro lado, superou a Eurozona como maior sistema bancário do mundo –, três questões passam a ser fundamentais a partir da crise de 2008: 1) A aquisição de empresas no estrangeiro e investimentos em áreas críticas para suas necessidades de desenvolvimento, vinculadas fundamentalmente à energia, alimentos e infraestrutura: compra, por parte da comercializadora de grãos estatal chinesa Cofco, do Noble Group e da cerealista Nidera (de capitais holandeses e argentinos), com o que a China se consolidou como um dos principais jogadores no monopólio da comercialização de grãos. Por outro lado, a Bright Food, do governo municipal de Xangai, adquiriu a marca britânica Weetabix e, em 2015, comprou a empresa catalã Miquel Alimentación. É preciso destacar também, entre outras aquisições, a compra do gigante biotecnológico de origem suíça Syngenta por 43 bilhões de dólares, o que lhe permitiu o acesso à tecnologia de ponta em matéria agroalimentar. Ou a compra da Volvo por parte da chinesa Geely, que lhe deu acesso à tecnologia automotora de ponta. A tentativa recente de comprar

empresas de semicondutores dos Estados Unidos, com o fim de se desenvolver nesse ramo tecnológico do qual a China é fortemente dependente, foi proibido pelas autoridades estadunidenses. 2) A internacionalização do yuan (renmimbi): crescente uso do yuan como moeda de reserva de diversos bancos centrais, assim como acordos com bancos centrais de empréstimos em yuan para fortalecer as reservas (swaps cambiais bilaterais). O Conselho Mundial do Ouro certificou que em 2016 China e Rússia voltaram a se tornar, pelo sexto ano consecutivo, os principais compradores de ouro de todo o mundo, aumentando de forma substancial suas reservas desse metal. Isso está estreitamente relacionado com a hipótese de sustentar suas moedas retornando a alguma forma de padrão ouro, em detrimento do dólar. Também o lançamento de um mercado de petróleo em yuan reforça essa política de internacionalização monetária e atinge o tão precioso monopólio do petro-dólar. Isso se articula com a criação de novos instrumentos financeiros internacionais, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e o lançamento do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics junto a um Fundo (Arranjo Contingente de Reservas) na Cúpula de Fortaleza, Brasil, em 2014. Essa arquitetura financeira fica em paralelo à do Norte Global, centrada no FMI e no BM. 3) O avanço na direção da complexidade econômica e do desenvolvimento de tecnologia, no que a China já diminuiu boa parte da desvantagem com os centros do Norte Global e inclusive começa a ser vanguarda em alguns setores. De acordo com dados do Banco Mundial, a China é o maior exportador de bens do mundo, dos quais 94,4% são bens manufaturados, 48% são máquinas, e dos bens manufaturados, 25,6% são de alta tecnologia (em 2015). Entretanto, cerca de 731 milhões de cidadãos chineses estavam on-line em 2016 e 95% deles acessavam a internet com seus telefones celulares. Isso fornece uma massa de informação digital – big data – que é muitas vezes maior do que a estadunidense. É com base no cruzamento com essa gigantesca base que a China desdobra

sua liderança na inteligência artificial (AI), a tecnologia decisiva na nova revolução industrial em curso. Além disso, Shenzhen ou Beijing disputam com o Vale do Silício e outros centros do Norte Global o caráter de nó estratégico de alta tecnologia da economia mundial. De fato, Shenzhen, Cantão, Hong Kong e Macau fazem parte da Área da Grande Baía (AGB), no delta do Rio das Pérolas, uma megalópole com 70 milhões de habitantes que fabrica 90% dos artefatos eletrônicos que se consomem em todo o mundo. Neste sentido, também devemos mencionar o plano de desenvolvimento tecnológico e industrial Made in China 2025, que busca terminar com a divisão ainda existente com o Norte Global em alguns setores tecnológicos mais avançados (semicondutores, robótica, tecnologia aeroespacial), bem como consolidar a liderança em outras. Paralelamente ao seu crescimento econômico, a China desenvolve seu complexo militar e moderniza muito rapidamente suas Forças Armadas. Isso, junto ao poder da Rússia nesse aspecto, colocam em xeque o monopólio estadunidense. Nesse sentido, o orçamento militar da China veio aumentando progressivamente nos últimos anos, chegando em 2014 a 130 bilhões de dólares e ultrapassando os 220 bilhões em 2017. A China possui o segundo orçamento militar em âmbito mundial, embora muito abaixo dos EUA.81 Um dos aspectos centrais do desenvolvimento militar chinês tem a ver com a disputa pelo controle do Pacífico. Nesse cenário, a China aprofunda a construção de porta-aviões, submarinos e mísseis, fortalecendo a capacidade estratégica de seu complexo industrial-militar. Segundo o general chinês Sun Sijing, o aumento em dois dígitos no gasto de defesa pode parecer muito para algumas pessoas, mas no desenvolvimento do complexo militar ainda estamos muito atrás [...]. Nossas empresas dominaram o mercado mundial e temos o que e quem defender.82

A situação na zona do mar da China se agrava pela agudização das tensões globais e os conflitos geoestratégicos em torno das ilhas Senkaku/Diaoyu, o arquipélago Spratly e as ilhas Paracel, além do histórico conflito das Coreias. O Mar do Sul da China é essencial para a economia da Ásia. Um terço dos navios do mundo navegam por suas águas e enormes reservas de petróleo e gás jazem em seu leito.83

Outro aspecto fundamental para analisar a ascensão da China é o geopolítico, junto de seus imperativos geoestratégicos. Daí sobressai uma aposta fundamental, a chamada “Nova Rota da Seda”. O avanço do Tratado Trans-Pacífico (TPP), durante a presidência de Obama, e a adesão do Japão ao TPP em março de 2013, implicou cercar a China e avançar na estratégia de conter sua expansão e a influência do gigante asiático na Ásia-Pacífico. Diante disso, o gigante asiático respondeu, em setembro de 2013, com a promoção da Iniciativa do Cinturão e Rota – Belt and Road Initiative (BRI), buscando consolidar, antes de tudo, seu poder no coração do continente Euro-asiático, diante dos desafios do “Império do Mar”. Nisso, converge com uma Rússia cada vez mais inclinada para a construção de um eixo de poder baseado no espaço Eurasiático contra o avanço dos Estados Unidos e aliados (Otan) em territórios considerados sensíveis para seus interesses (Leste Europeu, o Cáucaso, a Ásia Central, a Síria). A BRI, impulsionada por Xi Jinping em 2013, após suas viagens à Rússia, à Bielorrússia e ao Cazaquistão (os protagonistas da União Econômica Eurasiática com sede em Moscou), envolve cerca de 60 países, em sua maioria, países em desenvolvimento. Aí vivem 4,4 bilhões de habitantes (63% da população mundial), se encontram 75% das reservas energéticas conhecidas no mundo e se produz 55% do PIB mundial. O governo da China prevê investir na BRI a cifra descomunal de 1,4 triilhões de dólares. Já está garantido um orçamento de 890 bilhões de dólares, procedentes do Fundo da Rota da Seda, do Novo Banco de Desenvolvimento e do Banco Asiático de Investimento e Infraestrutura. Por sua vez, os bancos estatais-comerciais chineses – Bank of China, ICBC e China Construction Bank – ofereceram mais de 500 bilhões em empréstimos e investimentos de ativos (Parra Pérez, 2017). Os seis corredores da BRI parecem ter nítidas intenções geoestratégicas: evitar os estrangulamentos ao desenvolvimento da China e a geoestratégia anglo-americana de cercar/conter China, Rússia e aliados continentais. Esta estratégia deixa a China encurralada e vulnerável, com suas principais linhas de abastecimento ameaçadas. Nesse sentido, no mapa onde se traçam os corredores e a rota marítima, vemos que eles rompem os

estrangulamentos da China: um trem através de Myanmar proporciona uma rota para o mar que elimina o ponto de congestionamento do estreito de Malaca em Singapura (centro financeiro global aliado do Ocidente). Entretanto, um corredor junto a um novo porto no Paquistão proporciona acesso direto ao Oceano Índico e ao Golfo Pérsico, de onde saem 40% do petróleo comercializado no mundo, grande parte do qual vai para a China.84 Da mesma maneira, tanto o corredor China-Mongólia-Rússia quanto o corredor Nova Ponte Terrestre da Ásia permitem uma conexão direta com a Europa, uma saída para o Mediterrâneo e uma integração Eurasiática continental. Isso rompe o eixo-tampão que separa territorialmente a Ásia-Pacífico e a Europa, que dá superioridade estratégica ao polo de poder que controla o mar. Além do mais, o importante protagonismo da Rússia permite diminuir seus possíveis receios geopolíticos com a ascensão da China. Em contrapartida, o corredor Indochinês garantiria eliminar qualquer ameaça no sudeste asiático continental. O desenvolvimento da rede ferroviária Eurasiática, para comunicar e integrar toda a massa continental, é um dos elementos centrais que sobressaem na proposta da BRI: a projeção de uma grande ponte terrestre eurasiática que desarticula o poder marítimo que os impérios ocidentais da modernidade ostentaram historicamente. De fato, um dos pensadores mais brilhantes do “império do mar” anglosaxão, Halford Mackinder, já tinha observado as implicações no balanço de poder das ferrovias transcontinentais na Eurásia, no início do século XX: Há uma geração, o vapor e o canal de Suez pareciam ter aumentado a mobilidade do poder marítimo com relação ao poder terrestre. As ferrovias funcionaram principalmente como tributários do comércio oceânico. Mas as ferrovias transcontinentais estão agora modificando as condições do poder terrestre, e em nenhum lugar podem exercer tanto efeito quanto no fechado ‘coração continental’ da Eurásia [...] Essa extensa zona da Eurásia que é inacessível aos navios, mas que antigamente estava aberta para os cavaleiros nômades, e está hoje a ponto de ser coberta por uma rede de ferrovias, não é a ‘região pivô’ da política mundial? (Mackinder, 2010, p. 315-316)

Em termos geoeconômicos, a BRI é parte de uma mudança global e significa um avanço na formação de um novo padrão de desenvolvimento, diferente do da tríade e de seu modelo centroperiferia, que, por suas características, tende à diversificação dos

fluxos de capital e dos fluxos espaciais dos fatores de produção, que se expandem progressiva e profundamente dentro das hinterlândias eurasiáticas (Ning e Chuankai, 2018). A BRI implica dar forma a uma transformação radical do mundo tal como está configurado desde o século XIX, com centro no Atlântico e no Ocidente, e a versão do século XX deste mundo, especialmente a partir do pósguerra: com centro nos Estados Unidos, de onde são coordenados os outros dois centros econômicos do sistema mundial capitalista: a Europa Ocidental e o Japão/Ásia-Pacífico. Da perspectiva da BRI, o centro geoeconômico é a China que, integrando a Eurásia e suas periferias dinâmicas oriental e ocidental, deixa em um papel subordinado os Estados Unidos e consolida sua máxima estratégica de construção de poder global: “o reino médio está (deve estar) no centro de tudo que brilha sob o céu”. Concepção que difere do imperialismo militarista de tipo ocidental. Reflexões finais A mudança de governo nos Estados Unidos, a partir da qual as forças globalistas se enfraqueceram, permitiu que a China avançasse em termos geoeconômicos e inclusive incorporar o Japão na BRI. Esse novo momento político mundial refletiu-se na cúpula do Fórum do Cinturão e da Rota realizado em maio de 2017, no qual estiveram presentes mais de 1.200 delegados de 130 países e 29 chefes de Estado, junto com 70 organizações internacionais. Outra amostra do avanço da China é a posição de Xi Jinping em Davos, onde defendeu a liberalização do comércio e do investimento contra o protecionismo estadunidense que veio com Trump. Como ocorreu historicamente com as grandes potências industriais assim que alcançam certo nível de desenvolvimento relativo e de competitividade, tornando-se novos centros da economia global, trocam suas posições protecionistas por posições mais próximas ao livre mercado. No entanto, os efeitos negativos na economia chinesa da guerra comercial, a agressividade de Washington para impedir o avanço tecnológico da China (o caso da Huawei é paradigmático nesse sentido) e o desenvolvimento de uma série de tensões geoestratégicas em torno dela apresentam grandes desafios para

essa ascensão. Beijing precisa garantir o fornecimento de matériasprimas e de energia que o atual governo dos Estados Unidos está disposto a limitar. Por isso, entre outras questões, os Estados Unidos querem controlar o Oriente Médio ou bloquear o investimento da China na América Latina. Além disso, a China deve solucionar problemas de superacumulação de capital e de supercapacidade de produção (ela tem uma importante supercapacidade de produção de vários bens, entre eles aço e cimento), que pode levá-la a realizar uma acumulação por despossessão que dinamite sua concepção estratégica e a faça desenvolver um imperialismo capitalista ao estilo ocidental. Também teve que defender suas linhas comerciais, mas enfrenta o desafio dos Estados Unidos, que ainda é a “potência militar dominante na Ásia e cuja marinha tem a capacidade de bloquear os portos e o tráfego marítimo chinês contando com a vantagem estratégica que lhe oferecem suas bases em torno da periferia chinesa, no Japão, na Coreia e em Guam” (Mackinla e Ferreirós, 2011, p. 3). Diferentemente dos Estados Unidos, a China está cercada por potências que encaram com receio a sua ascensão e Washington busca fazer com que se confrontem. Soma-se a isso uma série de conflitos territoriais cruciais no Mar da China. Em contrapartida, existem desafios mais profundos para a ascensão chinesa e da Ásia-Pacífico. Podemos apontar dois dos mais importantes, estreitamente relacionados: a impossibilidade de incorporar um sexto da população mundial no centro do sistema, pelo padrão estrutural de desenvolvimento desigual e combinado inerente ao moderno sistema mundial (que, além do mais, está em processo de desmoronamento). E, ao mesmo tempo, a impossibilidade de realizar essa incorporação nos atuais parâmetros de consumo e exploração da natureza, sem avançar para o abismo ambiental. A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e os rachas “internos” diante da ascensão da China são características da mudança de época que estamos vivendo. Cada uma das forças tenta enfrentar o declínio dos Estados Unidos dentro de suas perspectivas estratégicas, moldadas em relação a seus interesses. No governo Trump observamos a aposta estratégica em um nacionalismo

econômico neohamiltoniano no estilo de Pinkerton combinado, como vimos anteriormente, com linhas próprias do neoconservadorismo, que apostam no controle do Oriente Médio, no unilateralismo e na supremacia militar absoluta – encarnado nas figuras do demitido John Bolton, no chefe de gabinete Mike Pompeo e no vicepresidente Mike Pence. Também aparecem tentativas de reforçar as alianças militares na zona Indo-Pacífica (Índia, Taiwan) e intervir nos principais conflitos geoestratégicos da região. Entretanto, foi deslocada a visão neorrealista de contenção, multilateralismo e equilíbrio de poder, mais próxima dos globalistas, assim como as concepções liberais. Paradoxalmente, a atual orientação dos Estados Unidos pode ser a mais favorável para a ascensão da China – de fato, praticamente está lhe servindo de bandeja aliados-chave eurasiáticos como a Rússia, o Irã, a Turquia e a Alemanha – mas ao mesmo tempo a mais perigosa: não se sabe até onde pode chegar a escalada da guerra, não apenas no âmbito comercial, mas também no militar. Referências AMIN, S. El capitalismo en la era de la globalización. Buenos Aires: Paidos, 1998. ARRIGHI, G. Adam Smith en Pekín. In: Orígenes y fundamentos del siglo XXI, Madri: Akal, 2007. _____ & Silver, B. Caos y orden en el sistema-mundo moderno. Madri: Akal, 2011. BORÓN, A. América Latina en la geopolítica del imperialismo. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2014. BRZEZINSKI, Z. El gran tablero mundial. La supremacía estadounidense y sus imperativos geoestratégicos. Buenos Aires: Paidós, 1998. CLINTON, H. “America’s pacific century”. Foreign Policy, outubro de 2011.

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O presente trabalho é baseado em um conjunto de pesquisas publicadas em Merino (2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019) e Merino e Trivi (2019). 67 Com diferentes matizes e avaliações, nas três estratégias aparece a ideia do equilíbrio de poder próprio do neorrealismo e que também é formulada por Brzezinski com o objetivo de que os Estados Unidos mantenham a primazia na Eurásia e, a partir disso, no mundo: “empregar sua influência na Eurásia para criar um equilíbrio continental estável no qual os Estados Unidos exerçam as funções de árbitro político” (Brzezinski, 1998, p. 11). 68 Pertencente ao Banco Mundial. 69 Acrônimo cunhado por Jim O’Neal, da Goldman Sachs, e para quem a capital desses mercados emergentes era Londres. 70 Philip Stephens: “O Ocidente se mostra frágil diante do front recarregado de China e Rússia”, Financial Times, 9 de junho de 2014. 71 Hugo Alconada Mon, “Os EUA estão preocupados com a influência da China na América Latina. Especialmente na Argentina e no Brasil”, La Nación, Buenos Aires, 7 de abril de 2005. 72 Ibid. 73 É mais do que interessante, neste sentido, o editorial do jornal Wall Street Journal, um meio que expressa a voz das forças que denominamos “americanistas”, a respeito da ação do governo argentino diante da investida dos fundos abutres pela reestruturação da dívida e em defesa da ação do juiz estadunidense Thomas Griesa a favor da postura dos fundos abutres: “Um default seria tão absurdo que faz pensar na possibilidade de que Kicillof esteja usando-o como uma forma de forçar o Fundo Monetário Internacional e os liberais da América a intensificarem sua campanha de deixar as negociações de dívida nas mãos de uma nova burocracia mundial. Isso daria mais poder de negociação aos devedores e aos políticos e menos aos mercados financeiros e aos tribunais dos Estados Unidos”. 28 de julho de 2014. 74 De acordo com dados do Banco Mundial, após uma década de queda do gasto militar em relação ao gasto total do governo central nos Estados Unidos, de 2001 a 2004 ele subiu de 15,15% para 18,61%, para se manter até 2008 em torno dessa porcentagem,

quando começa a cair novamente. E do deficit fiscal de 0,58% em relação ao PIB em 2001, chegou-se a 6,68% em 2008 (agravado pela crise). 75 Financial Times, “Europe and US in race to keep TTIP on track”, 21 de setembro de 2016. 76 Os neokeynesianos como Summers (2014), ex-secretário do Tesouro durante o governo de Obama, mencionam e conceitualizam a crise como uma etapa de estagnação secular. 77 As duas caras deste processo de “globalização” são evidentes: por um lado, desde meados dos anos 1980 – a partir das reformas neoliberais, a globalização financeira, a transnacionalização e os saltos tecnológicos – aumentam extraordinariamente os lucros das empresas estadunidenses e crescem, em particular e de forma extraordinária, os lucros obtidos em outros países em relação com os lucros obtidos nos Estados Unidos, os quais passam de 50 bilhões de dólares em meados dos anos 1980 para chegar a 500 bilhões de dólares em 2008, superando a massa de lucros internos. Em contraste, esse processo se traduz, nos Estados Unidos, na quebra de 60 mil empresas, no baixíssimo crescimento da produtividade das pequenas e médias empresas entre 2010 e 2017 em relação ao núcleo mais dinâmico, na destruição de 5 milhões de postos de trabalho industriais nos últimos 15 anos, na queda da participação dos salários sobre o PIB de 48,7% (1980) para 42,7% (2015) e na aparição de fenômenos de “superexploração” da força de trabalho próprios da periferia, configurando uma paisagem chocante de destruição criativa dos “moinhos satânicos do capital”. 78 Sputnik, “Conselheiro de Segurança da Casa Branca reafirma a vigência da Doutrina Monroe”, 18 de abril de 2019. 79 Audição de Kurt Tidd diante da Comissão de Serviços das Forças Armadas do Senado dos Estados Unidos, 15 de fevereiro de 2018. 80 EFE, Washington, 20 de abril de 2017. 81 O gasto militar mundial atingiu em 2017 seu nível mais alto desde o fim da Guerra Fria, em um ano em que o Estados Unidos, a China e a Arábia Saudita foram os que mais destinaram dinheiro para a defesa, segundo um estudo do Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz (SIPRI, em sua sigla em inglês). Os Estados Unidos concentram 35% do gasto militar, a China, 13%, a

Arábia Saudita, 4%, a Rússia, 3,8% e a Índia, 3,7% (La Nación, 3 de maio de 2018). 82 Fragmentos da entrevista com o comissário político da Academia de Ciências Militares, o general Sun Sijing, que foram divulgados no início dos noticiários na China e em seguida pelo canal CCTV (Russia Today, “A China se prepara para uma guerra com o Japão e o Ocidente”, 29 de setembro de 2014). 83 Por sua vez, o Japão (aliado estratégico dos EUA), no que significou uma guinada histórica de sua política exterior, aumentou significativamente o gasto em defesa e modificou a interpretação de sua “Constituição da Paz”, para poder combater no estrangeiro e defender os seus aliados, inclusive quando o Japão é atacado. 84 Parra Pérez (2017, p. 8) afirma que a “questão importante é a profundidade do porto de Gwadar, que permite receber submarinos e porta-aviões, tornando-se um ponto de referência na estratégia militar da China no Além-mar. Esta base militar, junto com a de Djibuti, mostram o crescente interesse da China por aumentar seu desenvolvimento para além das águas da Ásia-Pacífico, entrando em competição com as bases militares dos Estados Unidos na região”.

SOBRE OS AUTORES Ahmet Tonak Economista marxista turco. Trabalha com uma diversidade de temas vinculados à mensuração e aplicação empírica das categorias marxistas para a análise das tendências e dos ciclos das economias capitalistas contemporâneas. É professor da Universidade de Massachussetts e pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Atilio Borón Sociólogo e politólogo, catedrático e escritor argentino. Doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard (Cambridge, Massachusetts). É professor da Universidade de Buenos Aires e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet). Publicou vários livros sobre imperialismo, geopolítica e sobre o futuro dos projetos emancipatórios na América Latina. Emiliano López (organizador) Economista, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) e professor da Universidade Nacional de La Plata. Tem diversos artigos e livros publicados na área de Economia Política e Sociologia Política latino-americana. É membro do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social – escritório de Buenos Aires Gabriel Merino Sociólogo, pesquisador Científicas y Técnicas Nacional de La Plata. relações internacionais. temas John Smith

do Consejo Nacional de Investigaciones (Conicet) e professor da Universidade Especialista em temas de geopolítica e Tem publicado vários artigos sobre estes

Pesquisador independente, radicado em Sheffield, Reino Unido. É autor de várias obras sobre Economia Política. Seu último livro sobre o imperialismo – Imperialism in the Twenty-First Century: Globalization, Super-Exploitation, and Capitalism’s Final Crisis – tem reconhecimento internacional no debate atual sobre este tema. Prabhat Patnaik Economista e analista político marxista da Índia. Professor no centro de estudos e planejamento econômicos na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Jawaharlal Nehry em Nova Delhi, de 1974 a 2010. Publicou uma série de artigos e livros sobre o tema do imperialismo. Seu livro A Theory of Imperialism, escrito junto com Utsa Patnaik, teve um grande impacto no pensamento crítico internacional sobre a atualidade da teoria do imperialismo no século XXI. Utsa Patnaik Economista e analista político marxista da Índia. Professora no centro de estudos e planejamento econômicos na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Jawaharlal Nehry em Nova Delhi, desde 1974. Seu livro A Theory of Imperialism, escrito junto com Prabhat Patnaik, teve um grande impacto no pensamento crítico internacional sobre a atualidade da teoria do imperialismo no século XXI.

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Revisão: Aline Piva e Lia Urbini Tradução: Paulo Henrique Pappen e João Pompeu Projeto gráfico e diagramação: Zap Design Capa: Fernando Badharó – Cpmídias 1ª edição: agosto de 2020 EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA

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Table of Contents Sumário Uma caixa de ferramentas para fechar as nossas veias Imperialismo na era da globalização Exploração e superexploração na teoria do imperialismo Capitalismo moribundo e competitivo Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas diante da ascensão da China Sobre os autores