As Américas do Sul: O Brasil no Contexto Latino-Americano [Reprint 2012 ed.] 9783110962536, 9783484529175

This volume is devoted to an examination of the vast range of relations existing between Brazil and its Hispano-American

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Portuguese Pages 328 [332] Year 2001

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Table of contents :
Índice
Agradecimentos
Zur Einführung: Brasilien im lateinamerikanischen Kontext
À guisa de introdução: o Brasil no contexto latino-americano
Perspectivas universais
A América Latina entre a globalização e a universalização
Processos de globalização e desafíos à teologia da libertação
Teologia da libertação – urna arte de viver?
Polifonia e perspectivismo em Vargas Llosa e Ubaldo Ribeiro: propostas estéticas para urna ética da universalização
Imagens, mídia, rituais - dinâmicas culturais no Brasil e na América Latina
Toda a vida mais cem anos
Perspectivas latino-americanas
Machado de Assis no contexto das letras latino-americanas
1933
O mito do índio no modernismo brasileiro e nas vanguardas hispano-americanas
Mestiçagem ou pluralismo étnico? Modelos da integração nacional no Brasil e no Peru
A organização da força de trabalho indígena na Pan-Amazônia: os casos do Brasil e do Peru
“Imaginários” escravos no Brasil e no Caribe
escritOralidade na vanguarda latino-americana
Ameríndios entre Adão e escravo natural: gêneros discursivos e representações portuguesas e espanholas no século XVI
Premières images françaises du Brésil
Larissa e o sonho das passagens: história como deslocamento
Perspectivas brasileiras
O Brasil como “país do futuro” nas imaginações livrescas de Policarpo Quaresma
A “Nota preliminar” d’Os sertões
Um tempo antropófago para um espaço multicultural. Notas sobre antropofagia e multiculturalismo
Ainda existem “Os dois Brasis”? Sobre as estruturas sociais e as imagens da estrutura social no Brasil
Poesía brasileña
Práticas de representação luso-brasileiras do século XVII
Índice onomástico
Biobibliografia
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As Américas do Sul: O Brasil no Contexto Latino-Americano [Reprint 2012 ed.]
 9783110962536, 9783484529175

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BEIHEFTE ZUR IBEROROMANIA

Herausgegeben von Dietrich Briesemeister, Rolf Eberenz, Horst Geckeier, Hans-Jörg Neuschäfer, Klaus Pörtl, Michael Rössner, Bernhard Teuber Band 17

As Américas do Sul: O Brasil no Contexto Latino-Americano Editado por Walter Bruno Berg, Cláudia Nogueira Brieger, Joachim Michael e Markus Klaus Schäffauer

MAX NIEMEYER VERLAG TÜBINGEN 2001

Die Deutsche Bibliothek - CIP-Einheitsaufnahme As Américas do Sul : o Brasil no contexto Latino-Americano / hrsg. von Walter Bruno Berg.... - Tübingen : Niemeyer, 2001 (Beihefte zur Iberoromania; Bd. 17) ISBN 3-484-52917-2

ISSN 0177-199X

© Max Niemeyer Verlag GmbH, Tübingen 2001 Das Werk einschließlich aller seiner Teile ist urheberrechtlich geschützt. Jede Verwertung außerhalb der engen Grenzen des Urheberrechtsgesetzes ist ohne Zustimmung des Verlages unzulässig und strafbar. Das gilt insbesondere für Vervielfältigungen, Übersetzungen, Mikroverfilmungen und die Einspeicherung und Verarbeitung in elektronischen Systemen. Printed in Germany. Gedruckt auf alterungsbeständigem Papier. Druck: ΑΖ Druck und Datentechnik GmbH, Kempten Einband: Hugo Nädele, Nehren

índice

Walter Bruno Berg: Zur Einführung: Brasilien im lateinamerikanischen Kontext

1

Walter Bruno Berg: A guisa de introduçâo: o Brasil no contexto latino-americano

6

Perspectivas universais

11

Sergio Paulo Rouanet: A América Latina entre a globalizaçâo e a universalizaçâo

13

Leonardo Boff: Processos de globalizaçâo e desafíos à teologia da libertaçâo

21

Rainer Marten: Teologia da libertaçâo - urna arte de viver?

27

Walter Bruno Berg: Polifonia e perspectivismo em Vargas Llosa e Ubaldo Ribeiro: propostas estéticas para urna ética da universalizaçâo

35

Ellen Spielmann: Imagens, mídia, rituais - dinámicas culturáis no Brasil e na América Latina

45

José Carlos Avellar: Toda a vida mais cem anos

66

VI

Perspectivas latino-americanas

índice

89

Ivo Barbieri: Machado de Assis no contexto das letras latino-americanas

91

Guillermo Giucci: 1933

96

Horst Nitschak: O mito do indio no modernismo brasileiro e ñas vanguardas hispano-americanas

108

Bruno W. Speck: Mestiçagem ou pluralismo étnico? Modelos da integraçâo nacional no Brasil e no Peru

119

José Ribamar Bessa Freire: A organizaçâo da força de traballio indígena na Pan-Amazonia: os casos do Brasil e do Peru

140

Martin Lienhard: "Imaginarios" escravos no Brasil e no Caribe

150

Markus Klaus Schäffauer: escritOralidade na vanguarda latino-americana

166

Joachim Michael: Amerindios entre Adào e escravo natural: géneros discursivos e representaçôes portuguesas e espanholas no século XVI

177

Joseph Jurt: Premieres images françaises du Brésil

204

Francisco Foot Hardman: Larissa e o sonho das passagens: historia como deslocamento

216

índice

VII

Perspectivas brasileiras

235

Dietrich Briesemeister: O Brasil como "país do futuro" ñas imaginaçôes livrescas de Policarpo Quaresma

237

Luiz Costa Lima: A "Nota preliminar" d'Os sertöes

249

Joao Cezar de Castro Rocha: Um tempo antropófago para um espaço multicultural. Notas sobre antropofagia e multiculturalismo

258

Achim Schräder: Ainda existem "Os dois Brasis"? Sobre as estruturas sociais e as imagens da estrutura social no Brasil

270

José Ruiz Rosas: Poesía brasileña

278

Joâo Adolfo Hansen: Práticas de representaçâo luso-brasileiras do século XVII

286

índice onomástico

307

Biobibliografia

317

Agradecimentos

Em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer aos colegas Ivo Barbieri, Guillermo Giucci, Joâo Cezar de Castro Rocha e Johannes Kretschmer da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, cuja iniciativa e apoio possibilitou o intercambio entre a UERJ e a Albert-LudwigsUniversität. A presente publicaçâo das Atas do Coloquio organizado pelas duas universidades é um dos frutos do nosso trabalho conjunto. Gostaríamos ainda de agradecer a todos que colaboraram na produçào deste livro. Principalmente à Cíntia Pereira de Godoy, à Anika Meckesheimer, à Olivia Díaz Pérez, à Ledda Salazar, ao Klaus Kiewert e ao Borris Mayer, nossos colegas de Freiburg, por toda a ajuda prestada. Equipe editorial

Walter Bruno Berg

Zur Einführung: Brasilien im lateinamerikanischen Kontext

Es war eine außergewöhnliche Tagung, zu der die AIbert-Ludwigs- Universität Freiburg und die Universidade do Estado do Rio de Janeiro geladen hatten: Vom 6. bis 9. Juni 1995 trafen sich 22 Wissenschaftler, Intellektuelle und Schriftsteller in Freiburg mit dem Ziel, die Stellung Brasiliens im lateinamerikanischen Kontext zu diskutieren. Nicht so sehr die Internationalität der Teilnehmer (ein Peruaner, ein Uruguayer, zwei Schweizer, alle übrigen Teilnehmer nahezu paritätisch aus Brasilien sowie aus Deutschland stammend) als vielmehr die Vielfalt und die Breite der vertretenen Fächer gaben der Tagung ihr Gepräge. Brasilianisten, Lateinamerikanisten und Romanisten stellten zwar die Hälfte der Teilnehmer, vertreten waren jedoch auch die Fächer Philosophie, Politische Wissenschaften, Soziologie, Anthropologie, Filmwissenschaft und Theologie. *

*

*

Brasilien im lateinamerikanischen Kontext - jenseits der Haltung selbstverliebter Nabelschau, jenem aus Brasilien stammenden traditionellen ufanismo, forderte das Motto der Tagung dazu auf, Grenzen zu überschreiten, Entferntes zusammenzusehen, Bekanntes neu zu entdecken. Der weitest denkbare Horizont eines in diesem Sinne grenzüberschreitenden Brasilien-Kontextes wird bereits im Einführungsreferat von Sergio Paulo Rouanet abgesteckt: Rouanet unterscheidet zwischen einer lediglich zweckrational ausgerichteten "Globalisierung" und einer ethisch begründeten "Universalisierung". Dank der letzteren ist es möglich, kulturelle Autonomie und Differenz auch im Rahmen von scheinbar naturwüchsig ablaufenden Internationalisierungsprozessen effektiv zur Geltung zu bringen. Auch in den Referaten des Befreiungstheologen Leonardo Boff, des Philosophen Rainer Marten sowie des Lateinamerikanisten Walter Bruno Berg stehen Überlegungen zu der von Rouanet beschworenen Universalisierungs-Problematik im Vordergrund: Berg geht den Spuren einer "universalisierten Ethik" nach, die sowohl im Werk des brasilianischen Romanciers Joäo Ubaldo Ribeiro als auch in dem des Peruaners Mario Vargas Llosa nachweisbar ist und von beiden Autoren zum sine qua non einer republikanischen Ordnung erklärt wird. Gegenüber einem engen Begriff von Befreiungstheologie, der diese auf die Bedürfnisse und die sozialen Gegebenheiten Lateinamerikas bzw. der sogenannten Dritten Welt bezogen sieht, unterstreicht Boff die "globalen" Aspekte dieser Theologie, ihren Antwortcharakter auf die ökologischen, humanistischen, politischen, ja kosmologischen Herausforderungen der Gegenwart. In seiner ingeniösen, von Paradoxien nicht freien philosophischen Lektüre der Befreiungstheologie versucht Marten seinerseits zu zeigen, dass

Walter Bruno Berg

2

der emphatische Praxisbezug dieser Theologie eine Basis bietet, Befreiungstheologie auch unter Ausklammerung ihrer dogmatischen Grundlage kohärent als Kunst des gelungenen Lebens zu interpretieren. In einem ebenso breit angelegten wie vorsichtig argumentierenden Beitrag beschäftigt sich Ellen Spielmann mit den kulturellen Aspekten der Globalisierung und stellt die Frage nach einem adäquaten Beschreibungsmodell der brasilianischen Gegenwartskultur der 90er Jahre. Die Bedeutung des Beitrags für das Rahmenthema der Tagung liegt im Aufweis eines kulturtheoretischen Paradigmenwechsels, der sich seit einigen Jahren abzeichnet und sich an Schlüsselphänomenen wie rap und funk exemplifizieren lässt: An die Stelle kultureller Identitätsmuster, wie sie noch in der Tropicalismo-Bewegung der 60er und 70er Jahre nachweisbar sind, treten zunehmend Erfahrungen einer medial und global vermittelten "cultura popular", jener durch kulturelle Hybridisierungsprozesse vielfältigster Art gekennzeichneten "sociedade de espetáculo" - Begriffe, wie sie von Carlos Monsiváis und Néstor García Canclini schon seit längerem zur Beschreibung der mexikanischen Gesellschaft verwandt werden. Entschiedener noch rückt der Beitrag des Filmkritikers José Carlos Avellar die Problematik der aktuellen Mediengesellschaft in den Blick: Avellar entwirft ein breites Panorama lateinamerikanischer Filmkunst, deren soziokulturelle Funktion er unter Bezugnahme auf medientheoretische Motive, wie sie schon bei Jean Cocteau zu finden sind,1 als die ausgetragene Spannung zwischen Traum und Realität2 bestimmt. Aufgrund der Dominanz des in nordamerikanischer Hand befindlichen Medienmonopols steht die Gefahr ins Haus, dass die Weltgesellschaft in Kürze nur noch einen einzigen Traum wird träumen - "o mesmo sonho, um só, que se répété todas as noites" (S. 83). * *

*

Brasilien im lateinamerikanischen Kontext - ein Großteil der Beiträge versteht das Motto der Tagung als Aufforderung zum Vergleich: Ivo Barbieri beschäftigt sich mit dem ebenso herausragenden wie unklassifizierbaren Werk des brasilianischen Romanciers Machado de Assis. Die außergewöhnliche Rolle Machados im Kontext einer lateinamerikanischen Literaturgeschichte wird deutlich, wenn man sie derjenigen seines argentinischen Zeitgenossen José Hernández gegenüberstellt, wie dies bereits Angel Rama vorgeschlagen hatte. Barbieri dagegen arbeitet die Konturen Machados auf der Grundlage einer "aproximaçâo anacrónica com as ficciones de Jorge Luis Borges" (S. 93) heraus. Unter der lakonischen Überschrift "1933" suggeriert Guillermo Giucci Vergleichspunkte zwischen der soziopolitischen Lage der westlichen Hemisphäre im allgemeinen und den beiden lateinamerikanischen Essayisten Gilberto Freyre und Ezequiel Martínez Estrada im besonderen. Horst Nitschak untersucht die unterschiedlichen ideologischen Strategien der Vereinnahmung

1

Cf. Walter Bruno Berg: "Archaïsme et utopie: Cocteau et son art nouveau du cinématographe"; in: La littérature et les arts. Recherches et travaux, n° 52, 1997, S. 203-216.

2

"O sonho como crítica da realidade, a realidade como crítica do sonho" (S. 78).

Einführung

3

des Indio in den Identitätskonstruktionen des brasilianischen Modernismo einerseits und der peruanischen Avantgarde andererseits. Auch im Beitrag des Politologen Bruno W. Speck werden ideologische Konzepte "nationaler Integration" in Brasilien und Peru sowie die Formen ihrer jeweiligen Umsetzung in politische und soziale Praxis kritisch gegeneinander gehalten. Das vordringliche Problem beider Länder - so die demystifizierende Schlussfolgerung des Beitrags - besteht jedoch gegen Ende des Millenniums nicht länger im Entwurf neuer oder verbesserter Identitätskonzepte, sondern in der "Konstruktion einer gerechten Gesellschaft unter Beteiligung aller sozialer Sektoren" (S. 139). Der von José Ribamar Bessa Freire vorgelegte Vergleich der portugiesischen und spanischen Praktiken der Kolonisierung Amazoniens zielt ab auf eine allgemeine Strukturbeschreibung: So sind die weitgehend nur legalistisch verschleierten Formen der Sklaverei bei den Portugiesen eindeutiger als im spanischen Machtbereich, doch ist es kaum von der Hand zu weisen, dass sich beide Systeme den Prärogativen des kapitalistischen Merkantilismus schließlich weitgehend untergeordnet haben. Martin Lienhard seinerseits arbeitet an zwei Fallbeispielen markante Unterschiede hinsichtlich der Situation der Sklaverei in Hispanoamerika und Brasilien heraus. Untersucht werden zwei Aufstands- bzw. Fluchtbewegungen schwarzer Sklaven in Puerto Rico und in Brasilien im ersten Drittel des 19. Jahrhunderts. Während der Aufstand von Manoel Congo in Brasilien jedoch offenbar weniger als AntiSklaverei-Bewegung interpretierbar ist denn als ein Versuch der Re-Affirmation afrikanischer Kulturtraditionen, steht die in der gleichen Epoche stattfindende Flucht puertoricanischer Sklaven bereits im Zeichen der erfolgreich verlaufenen Sklaven-Revolution in Haiti. Auch wenn der Beitrag von Markus Klaus Schäffauer sich scheinbar ausschließlich mit einem literarischen Thema beschäftigt, so sind historische Konnotationen offenbar mitgemeint. Im Zentrum der Untersuchung steht die Frage, ob die Grenze von Tordesilhas, mit der seinerzeit das portugiesische vom spanischen Kolonialreich getrennt wurden, durch eine "lateinamerikanische" Avantgarde aufgehoben wurde. Schäffauers Antwort, die sich exemplarisch mit der argentinischen und brasilianischen Avantgarde beschäftigt, ist mehrdeutig: Zwar lässt sich konstatieren, dass die Behandlung literarischer Mündlichkeit diesseits und jenseits der Grenze ein verbindendes Element darstellt, doch auf allgemeiner Ebene bleiben die unterschiedlichen Gewichtungen bestehen: Mario de Andrade verfolgt interessiert die Entwicklung der argentinischen Avantgarde, während die brasilianischen Intellektuellen von Jorge Luis Borges zur gleichen Zeit kaum wirklich wahrgenommen werden. Joachim Michael blickt in seinem Beitrag ins 16. Jahrhundert zurück und fragt nach den Unterschieden hinsichtlich der spanischen bzw. portugiesischen Kolonisierung der Neuen Welt. Unterschiede substantieller Natur sind es - folgt man den euphorischen Formulierungen Gilberto Freyres (vgl. S. 177) - , die die beiden Kolonisationsprozesse charakterisieren. Michael zeigt dagegen Parallelismen: In beiden Prozessen führte der Status der Indios zu einem Konflikt zwischen Kolonisten und Missionaren bezüglich Ausbeutung und Assimilation der Ureinwohner. Dieser Konflikt bildet die diskursive Grundlage der portugiesisch- und spanischsprachigen Kolonialliteratur des 16. Jahrhunderts. Auch bei Joseph Jurt, der die gleiche Epoche behandelt, ist der Vergleich intendiert, wenn auch eher

Walter Bruno Berg

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als Hintergrundinformation. Thema des Beitrags ist das Bild der indianischen Bevölkerung, wie es im Reisebericht des Calvinisten Jean de Léry niedergelegt ist, einem Angehörigen einer kleinen französischen Kolonie in Brasilien, die 1557 gegründet wurde, bis sie 1560 in portugiesische Hände fiel. Der von Claude Lévi-Strauss als "Brevier des Ethnologen" gewürdigte Bericht Lérys unterscheidet sich von den Primärkontakten "katholischer" Conquistadoren dadurch, dass in ihm das Paradigma "Kultur" versus "Natur" ersetzt wird durch das Paradigma "Kultur" versus "andere Kultur", ein Unterschied, den Jurt zusammen mit Michel Jeanneret als eine Folge der theologisch begründeten "pessimistischen" Anthropologie des Calvinisten Léry erklärt. Während die zuletzt besprochenen Beiträge Geschichte konkret behandeln als die Geschichte von "Fakten", Ereignissen und Diskursen, nähert sich Francisco Foot Hardman dem Phänomen mit den Erkenntnismitteln der Literatur. Julio Cortázars berühmte Kurzgeschichte "El otro cielo" ist es, die den Autor zu einer ebenso ingeniösen wie unerschöpflichen Folge von Variationen zum Leitbegriff passagem inspiriert - "Geschichte", erfahren als "Verschiebung" (ideslocamento): Ausgehend von Walter Benjamins auf Paris bezogenes Passagenwerk geht Foot Hardman zunächst den vielfältigen sprachlichen Bedeutungen des Begriffs nach, erinnert die allerunterschiedlichsten Konnotationen des Begriffs im Verlauf der lateinamerikanischen Kulturgeschichte, um sich schließlich immer mehr einer Figur namens Larissa anzunähern. Ausgehend von dieser Figur entsteht ein Netz von geographischen, historischen und persönlichen Assoziationen, das ihn als Reisenden, der sich im wiedervereinigten Berlin befindet, über Treblinka und Minas Gérais nach Belém führt.

*

*

*

Eine dritte Gruppe von Beiträgen interpretiert das Motto der Tagung als Aufforderung, Brasilien gewissermaßen von seinen eigenen Voraussetzungen her zu denken. Auch in dieser Perspektive, so zeigt sich jedoch, ist auf Kontextualisierungen mitnichten zu verzichten. Das Problem der Selbstfindung mittels Aktualisierung eines "livresken" nationalhistorischen Kontextes ist das mit kritischen und tragischen Akzenten versehene Thema des Fin de Siècle-Romans O triste firn de Policarpo Quaresma von Afonso Henriques de Lima Barreto, der von Dietrich Briesemeister analysiert wird. Ein wirkungsgeschichtlich ungleich bedeutsameres Werk als der Brasilien-Roman Lima Barretos ist der zur gleichen Zeit entstandene Essay Os sertöes von Euclides da Cunha. In seiner prägnanten Analyse der "Nota preliminar" geht Luiz Costa Lima den wissenschaftstheoretischen Prämissen des Essays nach und zeigt, dass diese u.a. in einer für die Gesamtargumentation des Werkes folgenschweren Fehlinterpretation der von Da Cunha biologistisch missverstandenen Rassentheorie des polnischen Soziologen Ludwig Gumplowicz bestehen. Auch im Beitrag von Joäo Cezar de Castro Rocha steht die metatheoretische Reflexion im Vordergrund. Es geht um die Gefahr des "Essentialismus". Sie ist verbunden - wie Castro Rocha an repräsentativen Texten namhafter brasilianischer Kritiker nachweist - mit dem unkritischen Gebrauch von Raum-Metaphern bei der Definition lateinamerikanischer bzw.

Einführung

5

"peripherer" Identität. Im Gegenzug schlägt Castro Rocha in Anlehnung an Formulierungen bei Oswald de Andrade die Einführung des Begriffs "tempo antropófago" vor. Auch der Beitrag von Achim Schräder setzt mit seiner Warnung vor dem unkritischen Gebrauch der soziologischen Metapher der "zwei Brasilien" ("os dois Brasis") metakritische Akzente. Einen Beitrag besonderer Art stellt die Würdigung der brasilianischen Poesie durch den peruanischen Lyriker José Ruiz Rosas dar, den die Veranstalter zu den Ehrengästen der Tagung zählen durften, ist sie doch nicht nur ein Zeugnis der außergewöhnlichen Belesenheit des peruanischen Autors, sondern gleichzeitig auch ein Beweis für den immer schon bestehenden kulturellen Transfer zwischen Brasilien und seinen hispanoamerikanischen Nachbarn. Der Beitrag von Joäo Adolfo Hansen zur "repräsentativen Praxis" im Barockzeitalter, der diesen Band beschließt, stand auch am Ende der Tagung. Hansens breit angelegter Versuch, die brasilianische Barockkultur aus den ihr eigenen historischen Voraussetzungen heraus zu denken, fasst die vielfältigen Bemühungen der Tagung zur Kontextualisierung Brasiliens noch einmal in einem neuen Ansatz zusammen. Ähnlichkeit hat er mit dem foucaultschen Verfahren einer Archäologie diskursiver Formationen. Sie sind es, die Hansen in ihrer "Positivität" zu denken versucht. Es geht darum, das a priori einer Epoche in den Blick zu bringen3 - kein a priori mithin eines überzeitlichen oder transkulturellen Erkenntnis-Subjekts, sondern das a priori einer uneinholbaren historischen Alterität, zu der sich das Subjekt historischer Erkenntnis in Beziehung setzt.

Freiburg, September 2000

}

Cf. Michel Foucault: L'archéologie du savoir. Paris: Éditions Gallimard, 1969, p. 167.

Walter Bruno Berg

À guisa de introduçâo: o Brasil no contexto latino-americano

Foi um coloquio extraordinario, organizado pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro: de 6 a 9 de junho de 1995 encontraram-se 22 pesquisa dores, intelectuais e escritores em Freiburg com a finalidade de discutir a posiçâo do Brasil no contexto latino-americano. O que marcou o coloquio nâo foi tanto a internacionalidade dos participantes (um peruano, um uruguaio, dois suiços, os participantes restantes de origem quase paritaria brasileira e alema), mas sim a variedade das disciplinas presentes. Especialistas em literatura brasileira e hispano-americana representaran! quase a metade dos conferencistas, sendo a outra metade composta por investigadores das áreas de filosofia, ciencias políticas, sociologia, antropologia, crítica de cinema e teologia. * *

Ί-

Ο Brasil no Contexto Latino-americano - para além do ufanismo, o tema do coloquio foi um convite para transgredir fronteiras, aproximar num só enfoque o que está distante e redescobrir o que já é conhecido. O horizonte mais abrangente possível de um contexto brasileiro que transgride fronteiras foi delineado logo na palestra inicial por Sergio Paulo Rouanet: Rouanet distingue entre uma "globalizaçâo" marcada pela racionalidade funcional e uma "universalizaçâo" com fundamento ético. Graças à última é possível reivindicar com eficácia propostas como a autonomia cultural e a diferença, inclusive no ámbito de processos de "internacionalizaçâo" aparentemente incontroláveis. Também as conferencias do teólogo da libertaçâo Leonardo Boff, do filósofo Rainer Marten e do especialista em literatura latinoamericana Walter Bruno Berg têm como tema central a problemática da "universalizaçâo" esboçada por Rouanet: Berg rastreia uma "ética unlversalizada", que se encontra tanto na obra de Joâo Ubaldo Ribeiro como na de Mario Vargas Llosa e que é declarada por ambos como um sine qua non de uma ordern republicana. Frente a um conceito estreito da teologia da libertaçâo que a restringe às necessidades e circunstancias sociais da América Latina e do assim chamado Terceiro Mundo, Boff defende os aspeaos "globais" desta teologia, que seria capaz de dar respostas aos desafios ecológicos, humanísticos, políticos e até cosmológicos do presente. Marten, por sua vez, tenta mostrar em sua engenhosa leitura filosófica da teologia da libertaçâo, nâo isenta de paradoxos, que a enfática orientaçâo pràtica desta teologia constituí uma base para interpretar - também abstraindo-se a base dogmática - a teologia da libertaçâo como arte do viver bem-sucedido. Argumentando sob uma perspectiva ampia e, ao mesmo tempo, de maneira cautelosa, Ellen Spielmann trata dos aspectos culturáis da globalizaçâo, perguntando por um modelo de descriçâo adequado da cultura brasileira dos

Irttroduçâo

7

anos 90. A importancia desta palestra para o tema do coloquio está em mostrar urna mudança de paradigma na teoria da cultura que há alguns anos se exemplifica em fenómenos-chave como o rap ou o funk: no lugar de modelos de identidade culturáis que se relacionam com o Tropicalismo dos anos 60 e 70, observa-se mais e mais urna cultura popular mediatizada e globalizada que é característica da "sociedade de espetáculo". Esta "sociedade de espetáculo", por sua vez, é marcada por processos culturáis de hibridizaçâo dos mais variados, tal como os vêm descrevendo Carlos Monsiváis e Nestor García Canclini nas suas análises da sociedade mexicana. De maneira ainda mais determinada, o crítico de cinema José Carlos Avellar enfoca a problemática da sociedade mediatizada: Avellar desenvolve um ampio panorama do cinema latino-americano, cuja funçâo social ele descreve recorrendo a propostas de teoria cinematográfica como já se encontram em Jean Cocteau1 na tensào exteriorizada entre sonho e realidade.2 A dominancia norte-americana do monopolio dos meios de comunicaçâo ameaça fazer com que a sociedade mundial, dentro em pouco, sonhe "o mesmo sonho, um só, que se répété todas as noites" (p. 83). * *

*

O Brasil no Contexto Latino-americano - a maior parte das palestras compreende o tema do coloquio como um convite à comparaçâo: Ivo Barbieri analisa a excelente e inclassificável obra de Machado de Assis. O papel extraordinàrio de Machado no contexto de urna historia da literatura latino-americana evidencia-se através da contraposiçâo deste ao seu contemporàneo argentino José Hernández, como já sugerirá Angel Rama. Barbieri, no entanto, distingue o perfil de Machado através da "aproximaçâo anacrónica com as ficciones de Jorge Luis Borges" (p. 93). Com o título lacónico "1933", Guillermo Giucci sugere que a conjuntura mundial desta data estabelece o contexto sócio-político em que se inserem, cada quai a seu modo, os ensaístas latino-americanos Gilberto Freyre e Ezequiel Martínez Estrada. Horst Nitschak analisa a diferença das estratégias ideológicas de apropriaçâo da figura do indio nas construçôes de identidade, por um lado, do Modernismo brasileiro e, por outro, da vanguarda peruana. O politòlogo Bruno W. Speck também compara criticamente as concepçôes ideológicas de "integraçào nacional" no Brasil e no Peru e as formas como sâo postas na pràtica sócio-política. O problema proeminente dos dois países no fim do milenio já nao consiste - esta é sua conclusäo desmistificadora - em concepçôes de identidade novas ou mais sofisticadas, mas na "construçâo de uma sociedade justa com participaçào de todos os setores sociais" (p. 139). A comparaçâo de José Ribamar Bessa Freire entre as práticas na colonizaçâo portuguesa e as da colonizaçâo espanhola na Amazonia visa a uma descriçâo gérai das estruturas coloniais: é mais nítido como a legislaçâo portuguesa apenas velava a escravizaçâo generalizada dos indios, mas nâo há dúvida de que tanto o sistema jurídico

1

Cf. Walter Bruno Berg: "Archaïsme et utopie: Cocteau et son art nouveau du cinématographe"; in: La littérature et les arts. Recherches et travaux, n° 52, 1997, pp. 203-216.

2

Ό sonho como crítica da realidade, a realidade como crítica do sonho" (p. 78).

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Walter Bruno Berg

colonial portugués como o espanhol estavam subordinados às prerrogativas mercantilistas. Porém, em relaçào à escravidâo no primeiro terço do século XIX, Martín Lienhard mostra com dois exemplos as diferenças da situaçâo no Brasil e na América Hispánica. Ele analisa duas tentativas de fuga e resistencia de escravos no mèdio Paraíba e em Porto Rico. De acordo com o pesquisador, enquanto a revolta de Manoel Congo no Brasil pode ser interpretada antes como reafirmaçâo das tradiçôes culturáis africanas do que como movimento anti-escravagista, a fuga dos escravos porto-riquenhos na mesma época, no entanto, relaciona-se com a bem-sucedida revoluçào dos escravos no Haiti. O tema de Markus Klaus Schäffauer parece ser exclusivamente literario, mas também implica conotaçôes históricas. No centro da análise coloca-se a questäo de uma possível superaçâo da linha de demarcaçâo de Tordesilhas por uma vanguarda "latino-americana". A resposta de Schäffauer, que analisa como exemplo as vanguardas argentina e brasileira, é ambigua: ainda que se constatem pontos em comum quanto ao fenómeno da oralidade literaria nos dois lados, em nivel geral, cornudo, os focos de interesse nâo convergem: Mario de Andrade segue com atençâo o desenvolvimento da vanguarda argentina, mas Jorge Luis Borges parece nao notar os intelectuais brasileiros. Joachim Michael retoma o século XVI e pesquisa as diferenças entre as colonizaçôes portuguesa e espanhola do Novo Mundo. Segundo argumentaçôes eufóricas como a de Gilberto Freyre (p. 177), trata-se de diferenças de natureza substancial as que caracterizam os dois processos coloniais. Michael, no entanto, salienta os paralelismos nesses processos: em ambos, o status dos indígenas levou a um conflito entre colonos e missionários no que diz respeito ao grau de exploraçào e assimilaçâo dos amerindios. Esse conflito constituí a base discursiva das literaturas coloniais de lingua portuguesa e espanhola do século XVI. Mesmo só como pano de fundo, a visâo comparatista também está presente no artigo de Joseph Jurt que, alias, trata da mesma época. Seu tema é a imagem dos Tupinambás no tratado do calvinista Jean de Léry. Esse autor participou do projeto de uma pequeña colonia francesa no Brasil, que, fundada em 1557, foi conquistada pelos portugueses em 1560. O relato, que Claude Lévi-Strauss qualificou como "breviario do etnólogo", distingue-se dos primeiros contatos dos conquistadores "católicos" com os autóctones ao substituir o paradigma "cultura" versus "natureza" pelo paradigma "cultura" versus "outra cultura". De acordo com Michel Jeanneret, Jurt explica essa mudança de paradigma pela antropologia "pessimista" de Léry e seu fundamento teològico. Enquanto essas últimas palestras tratam da historia de forma concreta como historia dos "fatos", eventos e discursos, Francisco Foot Hardman aproxima-se déla através dos recursos epistemológicos da literatura. E o conto famoso "El otro cielo" de Julio Cortázar que inspira o autor a uma seqiiência ao mesmo tempo engenhosa e inesgotável de variaçôes sobre o conceito-chave passagem. Experimentamos, assim, a historia como "deslocamento": partindo do Livro das passagens de Walter Benjamin, que se refere à Paris do século XIX, Foot Hardmann explora primeiro os diversos significados lingüísticos do conceito. Ele lembra suas mais diversas conotaçôes ao longo da historia cultural latino-americana ao se aproximar cada vez mais de uma personagem chamada Larissa. Através de uma rede de associaçôes geográficas, históri-

Introduçào

9

cas e pessoais, essa personagem leva-o da Berlim reunificada, onde o narrador se encontra como viajante, a Belém, passando pelo Triángulo Mineiro e por Treblinka.

Um terceiro grupo de conferencias interpreta o tema do coloquio como motivo para pensar o Brasil de certa maneira a partir dos condicionamentos que lhe sào próprios. Revela-se, porém, que nesta perspectiva tampouco se pode prescindir de contextualizaçôes. O problema da busca nacionalista do Brasil por meio da atualizaçào do contexto de urna historia nacional "livresca" é o tema do romance trágico-satírico O tristefirnde Policarpo Quaresma de Afonso Henriques de Lima Barreto, que é analisado por Dietrich Briesemeister. Outra obra fundamental desta época, que criticamente discute o Brasil, é o ensaio Os sertôes de Euclides da Cunha. Em sua marcante análise da "Nota preliminar", Luiz Costa Lima pesquisa as premissas de teoria científica do ensaio e comprova que estas consistem em urna interpretaçâo equivocada das teorías de raça do sociòlogo polonés Ludwig Gumplowicz. Também no artigo de Joào Cezar de Castro Rocha, a reflexào meta-teórica está no centro do enfoque. Eia consiste em discutir os perigos dos "essencialismos". Estes perigos relacionam-se com o emprego acritico de metáforas de espaço na definiçâo de identidades latino-americanas ou "periféricas". Castro Rocha propôe, em contrapartida, a introduçào do conceito "tempo antropofágico" inspirado no manifesto de Oswald de Andrade. A palestra de Achim Schräder também tem urna intençâo metacrítica ao chamar a atençâo para o uso acritico da metáfora sociológica dos "dois Brasis". Uma palestra muito especial foi a apreciaçâo da poesia brasileira pelo poeta peruano José Ruiz Rosas, que foi um dos convidados de honra deste coloquio. A palestra é uma prova nâo só da extraordinària erudiçâo do autor como também do sempre existente intercambio cultural entre o Brasil e os países vizinhos. O artigo de Joäo Adolfo Hansen sobre as práticas de representaçâo no barroco luso-brasileiro encerra o presente volume. A ampia tentativa de Hansen de pensar o que se chama de "barroco" desde seus pressupostos históricos resume os diversos esforços do coloquio em contextualisar o Brasil em uma nova proposta, a qual se assemelha ao procedimento foucaultiano de uma arqueología das formaçôes discursivas. Sâo elas que Hansen tenta pensar em sua "positividade". Trata-se de abordar o a priori de uma época3 nao o a priori de um sujeito cognitivo atemporal e transcultural, e sim o a priori de uma alteridade histórica incomensurável à qual o sujeito de reconhecimento histórico se relaciona.

Freiburg, setembro de 2000

3

Cf. Michel Foucault:

L'archéologie du savoir. Paris: Éditions Gallimard, 1969, p. 167.

Perspectivas universais

Sergio Paulo Rouanet

A América Latina entre a globalizaçao e a universalizaçâo

Se este coloquio estivesse se realizando no inicio do século XX, poderiamos tratar de temas semelhantes, mas duvido que a perspectiva fosse a mesma. Ouviríamos, talvez, urna conferencia de Graça Aranha, na quai ele tentaría provar a seus colegas alemâes que no Brasil somos todos civilizadíssimos, falamos francés e lemos Anatole France. Se estivesse presente, Joaquim Nabuco talvez afirmasse, num inglés de Oxford, que somos os atenienses do Novo Mundo e Rui Barbosa diría que em materia de direito constitucional nao ficamos nada a dever aos Estados Unidos. E possível que Oliveira Viana introduzisse urna nota discordante ao lamentar a inferioridade de nossa raça, mas essa má impressâo seria corrigida por Euclides da Cunha, que salvaría nossa honra nacional lembrando que se os mestiços do litoral eram realmente um tanto degenerados, pelo menos os sertanejos eram uns fortes. O tom seria muito diferente se o coloquio tivesse se realizado, digamos, há trinta anos. Agora nossos paradigmas nâo seriam mais europeus, mas nacionais e latino-americanos. Os participantes defenderiam a especificidade da América Latina; diriam que nao podemos interpretar nossa realidade à luz de esquemas mentais dos países desenvolvidos, e exaltariam a autenticidade nacional dos nossos grandes escritores. Como hoje, haveria uma conferencia sobre Machado de Assis e outra sobre Borges, mas seus autores nâo falariam nem como Ivo Barbieri nem como Markus Schäffauer. Eies acentuariam a brasilidade de Machado e a argentinidade de Borges. Os conferencistas se sentiriam na obrigaçâo ética de defender esses autores da pérfida acusaçâo de cosmopolitismo, e mostrariam que apesar das aparéncias em contrario, Dom Casmurro descreve um ciúme brasileiro, diferente do ciúme europeu de Otello, e que o dialeto samoiedo-lituano, em que segundo Borges estariam escritos os livros da Biblioteca de Babel, é, na verdade, a transposiçào alegórica do linguajar portenho. Basta olhar nosso programa para sentirmos que hoje as preocupaçôes sâo outras. Nâo há nenhuma eurolatria, que apresentasse a cultura do mundo desenvolvido como modelo a ser imitado e como instancia diante da quai tivéssemos que nos justificar. E nâo há nenhuma tentativa de substituir um fetichismo por outro, o culto da Europa pelo culto da América Latina. Machado de Assis é examinado no contexto latino-americano, e nâo exclusivamente brasileiro, a obra Os sertöes é comparada com Facundo, Vargas Llosa e Joäo Ubaldo Ribeiro sâo estudados no ángulo de uma estética da universalizaçâo, e a teologia da libertaçâo é convocada a confrontar-se com os processos de globalizaçâo. Creio que essa nova perspectiva reflete bem o progresso que se verificou na América Latina. Chegamos a uma fase em que nâo precisamos nem provar que somos europeus, o que caracterizaría uma atitude de mimetismo colonial, nem afirmar raivosamente a nossa latinidade, recorrendo a mitos identidários de caráter étnico ou lingüístico, e sim pensar-nos enquanto partes do mundo.

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Essa tomada de consciência ocorre num momento especialmente decisivo, porque esse mundo em que desejamos pensar-nos é por sua vez um mundo internacionalizado. A sintonia é evidente entre urna América Latina que se abre para o mundo e um mundo que nao pode mais ser pensado segundo categorías exclusivamente nacionais. Em conseqüéncia, para podermos entender como a América Latina se insere na atualidade mundial, temos que refletir previamente sobre a natureza do processo de internacionalizaçâo. A mera palavra já é suficiente para evocar imagens de horror. Eia seria o genocidio das diferenças, o massacre das identidades particulares, a unidimensionalizaçâo radical do planeta, reduzido a uma "aldeia global", em que todos falam a mesma lingua - o inglés - , moram na mesma casa - o Hilton - , se divertem no mesmo lugar - a Disneylândia - e freqüentam o mesmo restaurante - o McDonald's. É, sem dúvida, uma visäo apavorante. A questâo é saber se algumas alternativas que vêm sendo propostas ou postas em pràtica nâo seriam mais assustadoras ainda. A resposta ao pesadelo da homogeneizaçâo total nao pode ser o pesadelo da retribalizaçào do mundo. É o que está acontecendo com o renascimento do nacionalismo, com a política da etnicidade, com o fundamentalismo religioso, com todos os particularismos que transformam a diferença num fetiche e convertem identidades coletivas em barricadas culturáis. Por tudo isso, creio que a soluçâo para as patologías da internacionalizaçâo nâo deve ser procurada em particularismos a contra-corrente, e sim no pròprio terreno em que se dá a internacionalizaçâo. Esse terreno é o da modernidade. A modernidade é ambigua. Se a examinarmos mais de perto, com efeito, veremos que eia tem dois vetores: um voltado para a racionalizaçâo das estruturas - a eficacia - e outro para a emancipaçâo dos individuos - a autonomia. O primeiro vetor corresponde grosso modo à concepçâo weberiana da modernidade. Eia é o produto de processos cumulativos de racionalizaçâo que se deram na esfera económica, política e cultural, e que visavam o funcionamento mais eficaz de cada um desses sub-sistemas. A modernizaçâo económica implica a livre mobilidade dos fatores de produçâo, a adoçâo de técnicas racionais de gestâo, a incorporaçâo incessante da ciencia e da técnica ao processo produtivo. A modernizaçâo política implica a substituiçâo da autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo Estado central, dotado de um sistema tributàrio eficaz, de um exército permanente, do monopolio da violencia, de uma administraçâo burocrática racional. A modernizaçâo cultural implica a dessacralizaçâo das visôes do mundo tradicionais (Entzauberung) e sua diferenciaçâo em esferas de valor (Wertsphären), até entâo embutidas na religiâo: a ciencia, a moral, o direito e a arte. Já o segundo vetor nâo tem a ver com a eficácia, e sim com a autonomia. Sua matriz é o modelo civilizatório da Aufklärung, que constituí o núcleo normativo da modernidade enquanto via para a emancipaçâo. A modernidade económica, nesse sentido, significa a capacidade de obter pelo traballio os bens e serviços necessários ao pròprio bem-estar, num sistema social que exclua a exploraçâo e a injustiça institucionalizada. A modernidade política significa a capacidade plena de exercer a cidadania, num estado de direito que

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assegure a vigencia integral da democracia e dos direitos humanos. A modernidade cultural significa o livre uso da razâo, sem tutelas de qualquer natureza - o sapere aude kantiano num contexto institucional que garanta o acesso de todos aos bens culturáis significativos. Pois bem, a modernidade tende à internacionalizaçâo, em seus dois vetores. N o vetor da racionalizaçâo, a modernidade se caracteriza pela busca incessante da eficacia, da rentabilidade, da funcionalidade. A s barreiras locáis e nacionais constituem obstáculos para o pleno desdobramento da lógica da eficacia e do rendimento. Conseqiientemente, a modernidade vai derrubando essas barreiras. Eia passa primeiro dos particularismos locáis, que impunham limites à açâo do capital, para o espaço mais ampio criado pelo Estado nacional, que punha à sua disposiçâo um mercado integrado. Em seguida, os próprios Estados nacionais se tornam demasiado estreitos. Eia ultrapassa seus limites e se desterritorializa. Eia se internacionaliza na dimensáo económica, por um lado produzindo e distribuindo bens e serviços segundo urna divisâo internacional de trabalho e de mercados e com base em estruturas gerenciais que deconhecem nacionalidades, e por outro lado movimentando fluxos de capital especulativo que se deslocam da noite para o dia e de país para país, como se viu por ocasiâo da crise mexicana. Eia se internacionaliza, também, na dimensáo política, implantando estruturas decisorias transnacionais que ignoram os estados nacionais. Eia se internacionaliza, enfim, na dimensáo cultural, através de inovaçôes como a televisäo a cabo, a comunicaçâo por satélites e a internet, tudo isso viabilizado pela crescente concentraçâo de capital, criando mega-conglomerados transnacionais que dominam mundialmentre a industria cultural, na imprensa, na T V , no cinema e na produçâo de discos e de vídeos. É esse tipo de internacionalizaçâo que é habitualmente chamado de "globalizaçào" tanto por seus críticos como por seus apologistas. Acontece que assim como reduzir a modernidade a seu vetor de racionalizaçâo seria aderir a urna visâo atrofiada da modernidade, reduzir a internacionalizaçâo à globalizaçào seria ter déla uma imagem truncada e unilateral. H á outro tipo de internacionalizaçâo, vinculada ao segundo vetor da modernidade, o da autonomia. Esse vetor também impulsiona a modernidade para a desterritorizaçâo, mas segundo outra lógica, que nâo resulta de imperativos sistêmicos e sim do alcance planetario do seu projeto de civilizaçâo. O horizonte tendencial da Aufklärung,

com efeito, é a

humanidade inteira. Seu destinatario é o homem em geral, inscrito no que Kant chamava a sociedade civil universal, a Weltbürgerschaft, uma Weltöffentlichkeit que autores contemporáneos como Habermas e A p e l denominam de "unbegrenzte Kommunikationsgemeinschaft". Conseqiientemente, a modernidade nâo promete a autonomia para apenas alguns homens, mas para todos. Eia proclama a existencia de direitos universais, inerentes ao homem enquanto tal e nâo enquanto cidadäo de um país ou membro de uma cultura, e se empenha pela difusâo mundial desses direitos, de modo a assegurar urna autonomia, nâo apenas formal mas também material, a todos os seres humanos, independentemente de raça, cor, sexo, religiâo, naçâo ou classe.

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Na busca dessa autonomia desterritorializada, o projeto da modernidade internacionaliza a batalha pela autonomia econòmica, através do diálogo Norte-Sul; pela autonomia politica, impondo internacionalmente os direitos humanos e as franquías democráticas; e pela autonomia cultural, tentando assegurar a todos os homens a possibilidade de usar sua razâo sem tutelas seculares ou religiosas. Ele internacionaliza, também, a luta pela paz e pelo equilibrio ecológico, sem a qual o conceito de autonomia perdería toda substancia. Se chamarmos de universalizaçâo essa segunda forma de internacionalizaçâo, teremos os instrumentos conceituais e terminológicos de que necessitávamos. A internacionalizaçâo pode assumir a forma ou da globalizaçâo ou da universalizaçâo. A modernidade se internacionaliza segundo esses dois processos. Eia se globalize quando responde aos impulsos do seu vetor "weberiano", ligado à racionalidade instrumental, e se unlversaliza quando responde aos impulsos do seu vetor iluminista, ligado à racionalidade emancipatória. Essas duas modalidades de internacionalizaçâo - a globalizaçâo e a universalizaçâo - sao obviamente interligadas e muitas vezes de difícil separaçâo na pràtica, mas a distinçâo conceitual me parece clara e produtiva. Enquanto os agentes do processo de globalizaçâo sâo os conselhos de administraçâo das empresas e conglomerados, seus presidentes e seus executivos, os agentes da universalizaçâo sâo artistas, intelectuais, organizaçôes nâo-governamentais e Estados nacionais, representados por seus parlamentos e por governos democraticamente eleitos. A globalizaçâo é impessoal e obedece à dinámica do mercado, a universalizaçâo é normativa e pressupôe o debate público e o entendimento político. Na medida em que a globalizaçâo só obedece à lógica da eficácia, as diferenças culturáis e nacionais sâo ignoradas, substituidas, no máximo, por diferenças mercadológicas, exprimindo preferencias e especificidades de diversos segmentos de consumidores. A universalizaçâo, pelo contràrio, é plenamente compatível com a preservaçâo das diferenças, na medida em que é um processo conduzido pelos diretamente interessados, proporcionando um quadro em que por assim dizer sâo as próprias diferenças que conversam entre si, em vez de serem anuladas pelo rolo compressor de um nivelamento autoritàrio. É o que ocorre entre Estados, quando eles próprios negociam limitaçôes à sua soberanía, e dentro dos Estados, quando culturas e etnias se entendem sobre modos de coexistencia e interaçâo que compatibilizem o pluralismo etnico com o respeito comum aos postulados universalistas da democracia e dos direitos humanos. Minha tese é que só poderemos combater as disfunçôes da globalizaçâo através de urna perspectiva universalista. A partir dessa perspectiva, podemos tentar corrigir os rumos de urna internacionalizaçâo selvagem, motivada exclusivamente por interesses de ganho e de eficiencia - a globalizaçâo - por urna internacionalizaçâo racional, seletiva, dialógica, conduzida de modo a respeitar a auto-determinaçâo dos diretamente afetados - a universalizaçâo. Essa tese é perfeitamente aplicável à América Latina, o que tentarei ilustrar tomando o Brasil como exemplo e destacando apenas o aspecto cultural, mais diretamente relevante para este Coloquio.

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Sem deixar de ter urna cultura pròpria e vigorosa, o Brasil está hoje plenamente ligado aos circuitos da cultura internacionalizada. Ele se integra na rede da cultura global, e isso tanto na ótica do consumo e da importaçâo, como na ótica da produçâo e da exportaçâo. Na primeira ótica, salta aos olhos que a cultura global atravessa inteiramente o quotidiano brasileiro. Os telespectadores de urna favela nordestina vêem o mesmo anuncio de blue jeans que os de um bairro de classe média de Chicago. A distribuiçâo dos Oscars é vista por milhôes de telespectadores brasileiros e os filmes premiados ou indicados para o Oscar sâo ¿mediatamente exibidos nos cinemas. Madonna é aplaudida com delirio nos estadios de Maracaná e do Morumbi. Conjuntos internacionais de rock atraem multidôes. Familias paulistas viajam piedosamente a Orlando, na Florida, para conhecerem o castelo de Branca de Neve, como em outras épocas os peregrinos viajavam à Palestina para visitarem o Santo Sepulcro. Mas no outro extremo, o Brasil está longe de ser apenas um protagonista passivo da cultura global. O exemplo mais obvio é o da Rede Globo, que produz para o mercado mundial telenovelas de qualidade técnica insuperável. Elas sao vendidas na Europa, na Africa, nos Estados Unidos. A atriz Lucélia Santos, atriz principal da telenovela Escrava Isaura, se transformou em heroína nacional na China, onde o povo a recebeu com entusiasmo em toda parte, quando eia visitou o país a convite do governo. Como bom produto global, a telenovela brasileira é alterada para adaptar-se às características do mercado mundial: o número de capítulos é reduzido, a trilha sonora é modificada, e em geral tudo o que é excessivamente local é eliminado. A cultura global importada faz as mocinhas de suburbio usarem expressôes americanas, mas o Brasil se vinga fazendo o público portugués de telenovelas usar expressôes de gíria brasileira, para consternaçâo dos puristas. O cinema, antes guardilo da identidade nacional, também se globaliza. Um filme brasileiro como O beijo da mulher-aranha é falado em inglés, é dirigido por um cineasta argentino naturalizado brasileiro, Hector Babenco, tem um roteiro baseado numa peça argentina de Manuel Puig, sua principal protagonista feminina é urna atriz brasileira, Sonia Braga, e um dos principáis personagens masculinos é um americano, William Hurt. A bossa nova foi um fenomeno em parte internacional, e um compositor como Caetano Veloso produziu cançôes em inglés. Um dos mais recentes exemplos de música global criada no Brasil foi a Axé Music, cujo caráter de produto de exportaçâo é evidenciado pelo simples fato de que seu nome já vem em inglés. Essa globalizaçào nâo foi só negativa. Eia ajudou a desprovincianizar a cultura brasileira, forçando-a a olhar para além de suas fronteiras, e difundiu algumas obras de obvio valor artístico. Mas na medida em que sua força-motriz é urna exigéncia de rentabilidade em funçâo do mercado, e nâo um impulso de autonomia, segundo a ética do universalismo, algumas distorçôes foram inevitáveis. Seu efeito mais pernicioso foi relegar a urna posiçâo secundária a chamada cultura superior, normalmente excluida dos circuitos da indùstria global. E urna situaçâo inaceitável para a perspectiva universalista, pois longe de contribuir para o projeto iluminista de

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autonomia cultural - o ideal kantiano da Mündigkeit - a cultura de massas tende a manter seus usuarios em estado permanente de minoridade psíquica. Cabe, portanto, à universalizaçâo retificar os desvíos produzidos pela globalizaçlo. Um papel importante vem sendo desempenhado pelo governo, através, por exemplo, de negociaçôes para criar um mercado comum do livro, do disco, ou do cinema, dando com isso urna oportunidade para a circulaçâo transnacional de bens culturáis de alta qualidade, que em gérai nào passam nos canais da cultura global. Quaisquer que sejam os caminhos utilizados, a perspectiva universalista pode e deve "civilizar" a globalizaçào cultural, colocando a alta cultura em primeiro plano no Brasil. Isto significa, do lado da recepçâo, facilitar ao máximo a importaçâo da grande cultura estrangeira, difundindo-a entre todas as carnadas da populaçâo, e do lado da produçâo, levala aos principáis circuitos culturáis do mundo. A importaçâo da cultura superior estrangeira nao é novidade no Brasil. Tradicionalmente eia se deu sob a forma de um eurocentrismo servil, como lembrei no inicio, mas há sinais de que essa recepçâo superficial, marcada por urna atitude de submissâo acritica, está sendo substituida por urna recepçâo verdadeiramente universalista. Nosso interesse pela cultura mundial é maior que nunca, como se pode verificar pela leitura de qualquer suplemento cultural de um grande jornal brasileiro. Há sempre resenhas de um novo livro de Susan Sontag, noticias sobre o mais recente congresso de filosofia em Paris, artigos sobre uma montagem teatral particularmente revolucionária, em Nova York. Pode ser que me engane, mas tenho até a impressâo de que o público brasileiro toma conhecimento de todas essas novidades muito mais rapidamente que na Alemanha, talvez como conseqiiência paradoxal da menor densidade da nossa cultura. O intelectual brasileiro, para sobreviver, precisa bem ou mal ter um minimo de familiaridade com o francés, o inglés, o espanhol e o italiano. Em conseqiiência ele lê no original um romance de Umberto Eco um mes depois de sua publicaçâo na Italia, e discute num bar, entre duas caipirinhas, revelaçôes inéditas sobre o passado político de Heidegger, lidas num artigo em francés publicado no Nouvel Observateur uma semana depois de sua divulgaçâo na Alemanha. Em contraste, o intelectual alemâo é obrigado a esperar que a Suhrkamp publique o último livro de Lyotard, já que normalmente ele só domina urna lingua estrangeira, o inglés. No entanto, se quantitativamente a atençâo dedicada à cultura mundial é tào grande como na fase eurocèntrica, sua qualidade nào é mais a mesma. Hoje creio que eia resulta de um impulso de desprovincianizaçâo, de uma necessidade de abertura, de tomar conhecimento do que se passa no resto do mundo, para a aquisiçâo de materials que serâo utilizados, seletivamente, numa criaçâo cultural pròpria. O outro lado do processo de universalizaçâo é a difusâo mundial da grande cultura brasileira. Também desse ángulo a cultura brasileira está se unlversalizando. Verifica-se crescentemente a tendéncia de sair do Brasil, de produzir o que Oswald de Andrade chamava "cultura de exportaçâo", de penetrar, por traduçôes numerosas e de boa qualidade, por

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concertos de mùsica erudita, por exposiçôes do que a arte brasileira tem de melhor, nos grandes espaços da cultura universal. A universalizaçâo nâo é apenas a circulaçâo da cultura entre as fronteiras, mas também entre as classes e as culturas. No caso do Brasil, isso significa que a cultura afro-brasileira e a amerindia devem interagir com as de origem européia e asiática, com vistas à transformaçâo de umas culturas por outras, ao estabelecimento de sincretismos, de novas sínteses, de diferenças imprevistas. E significa urna interaçâo intensa entre a chamada cultura superior e a cultura popular, que obviamente nada tem a ver com a cultura de massas propagada pela globalizaçào. Interaçâo quer dizer um trajeto ñas duas direçôes, um contacto com a cultura popular por parte das carnadas urbanas, "modernas", mas também um contacto com a alta cultura - nacional e estrangeira - por parte das carnadas populares, o que pressupôe um esforço maciço de educaçâo e formaçâo cultural. Nada mais reacionário, mais contrario ao espirito do universalismo, que um populismo supostamente antielitista cujo efeito fosse manter em sua "reserva natural" a cultura popular. Seria absurdo segregar num gueto cultural as classes populares, já condenadas a um gueto sócio-económico por urna estrutura injusta de distribuiçâo de renda. Para concluir, nâo há guerra de morte entre a universalizaçâo e a globalizaçào. A historia contemporánea é complexa demais para se reduzir a urna luta maniqueista entre dois internacionalismos rivais. Há intersecçôes e complementariedades entre os dois processos. As feiras do livro, por exemplo, estâo a serviço da universalizaçâo enquanto lugares de encontro entre literaturas, e da globalizaçào enquanto mediadoras de interesses empresariais. A mesma tecnologia pode ser veículo de globalizaçào e de universalizaçâo. A mesma revoluçâo eletrônica, informática e telematica que permite transmitir a cento e vinte países um filme de Rambo, permite consultar à distancia qualquer livro da Biblioteca do Congresso, transformando trinta milhôes de robôs em trinta milhôes de leitores. A globalizaçào é insubstituivel, por seu dinamismo, por sua capacidade assombrosa de gerar e usar tecnologia de ponta. Mas a universalizaçâo é necessària para corrigir os desvíos da globalizaçào e para abrir vias de entendimento mùtuo que em principio nâo sâo atraentes para os estrategistas globais. Tudo isso está se comprovando na pràtica em minha pròpria sub-regiâo, o Cone Sul. O Mercosul está criando um mercado comum da cultura. As barreiras aduaneiras que inibiam a circulaçâo dos bens culturáis foram abolidas, e tudo indica que as barreiras lingüísticas desaparecerâo a breve prazo com a obrigatoriedade do ensino do castelhano no Brasil e do portugués na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Projetos de co-produçâo cinematográfica estâo em marcha, mercados insuspeitados se abrem para a industria do livro. Por exemplo, editoras brasileiras, como a Melhoramentos, já estâo lançando nos países vizinhos livros traduzidos para o espanhol no pròprio Brasil. Tais resultados devem ser creditados a um processo consciente de universalizaçâo cultural. Eles jamais teriam sido produzidos pela mera globalizaçào, que, impulsionada por consideraçôes exclusivas de rentabilidade, só pelo mais improvável dos acasos, faria circular naqueles mercados aqueles bens culturáis. Ao

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mesmo tempo, é óbvio que, urna vez criada a moldura, os interesses empresariais passaram a atuar sem contradiçâo visivel com os objetivos universalistas. A America Latina nâo pode deter o processo de internacionalizaçâo, ainda que a isto seja impelida por románticos, nostálgicos ou tradicionalistas. Eia só pode escolher entre ficar a reboque desse processo, deixando-se arrastar por ele, ou pôr-se à sua frente, conduzindo-o de acordo com a vontade soberana dos seus povos, segundo principios universalistas, e opondo-se a estratégias globalizadoras, que passem por cima dos processos decisorios democráticos. A internacionalizaçâo emancipatória visada pela Aufklärung foi perfeitamente resumida por Schiller: "Alle Menschen werden Brüder." A internacionalizaçâo sistèmica foi descrita de modo igualmente exato por Marx: "Die Bourgeoisie hat durch ihre Explotation des Weltmarktes die Produktion und Konsumption aller Länder kosmopolitisch gestaltet." Beethoven nâo teria incluido a frase de Marx em sua Nona sinfonia, mas sob essa pequeña reserva os dois caminhos estâo abertos. A America Latina pode optar pelo universalismo dos homens, segundo Schiller, ou pelo cosmopolitismo das mercadorias, segundo Marx, ou por urna síntese de ambos. Felizmente nâo é esta a funçâo desse Coloquio, convocado para debates menos existenciais. Mas ele se terá justificado se contribuir, mesmo remotamente, para evitar que o sonho mais nobre da especie, o sonho da unidade humana, seja realizado, à sua maneira, por executivos e tecnocratas globais, sem a participaçâo dos povos e dos parlamentos.

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Processos de globalizaçâo e desafíos à teologia da libertaçâo

Urna das singularidades da teologia da libertaçâo reside em seu método. Eia procura partir da realidade histórico-social (1), vista na ótica das vítimas (2) e iluminada pela fé crista (3), visando urna pràtica transformadora (4), no sentido de resgatar os pobres e oprimidos mediante urna sociedade a ser construida politicamente mais participativa, economicamente mais inclusiva, culturalmente mais pluralista e religiosamente mais ecumènica. Que desafios a globalizaçâo coloca para esse tipo de reflexâo religiosa, nascida no Terceiro Mundo nos anos 70, mas hoje assumida por muitos da comunidade ecumenica a nivel mundial? Vejamos, primeiramente, o fenomeno da globalizaçâo para depois identificar alguns desafios.

1. Globalizaçâo: tendencia da antropogênese Já nos acostumamos a ver o cosmos como cosmogênese e a antropologia como antropogênese. O ser humano já há milhôes de anos está sendo construido e ainda nâo terminou o seu processo. Há nele uma tendencia de expansâo para todos os recantos da terra. Em razâo disso soube adaptar-se a todos os ecossistemas desde as geleiras do Antàrtico até as regiôes tórridas do Saara. É o triunfo biológico da espécie homo. A globalizaçâo está presente na dinàmica desta tendencia ancestral. Eia se transformou num verdadeiro projeto a partir do século XVI quando a cultura européia rompeu todas as fronteiras. Criou o projeto-mundo. Esta vontade de globalizaçâo se mostrou tecnicamente possível em 1521 quando Fernâo de Magalhâes fez o pèriplo ao redor da Terra. Do século XVI até hoje deu-se a ocidentalizaçâo do mundo. A cultura ocidental conseguiu impôr a todos os povos sua forma de acercar-se da natureza mediante a tecno-ciência, sua maneira de organizar a sociedade (a democracia representativa), sua visâo da pessoa humana (cidadào com direitos inalienáveis), e a maneira de entender e cultuar Deus (cristianismo como religiâo hegemônica no mundo). Esse processo ocorreu sob grande violencia. Houve o maior etnocídio da historia por ocasiâo da invasâo do México e do Peru; em 70 anos onde havia 25 indígenas restou apenas um. A África foi colonizada e totalmente desestruturada. O Oriente sofreu um enorme impacto da força militar e economica do Ocidente. Veneráveis tradiçôes espirituais foram debilitadas pela penetraçâo religiosa e cultural da Europa. É a assim chamada idade de ferro da globalizaçâo. Mas eia criou as bases para uma mundializaçâo hoje extremamente acelerada e também diversificada. Eia se realiza, fundamentalmente, em très vertentes: a económica, a política e a espiritual.

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2. Globalizaçâo pelo mercado mundializado A globalizaçâo se faz, em primeiro lugar, atavés da economia. Todas as economías sao interdependentes, os mercados regionais se integram no mercado mundial. Très fatores dinamizam a globalizaçâo económica. O primeiro é o surgimento de megaconglomerados e corporaçôes estratégicas que atuam num nivel global. Nâo sâo mais transnacionais, mas empresas mundiais. Assim a Mitsubishi de base japonesa atua em todo mundo em 90 setores diferentes. Semelhante a eia, a DaimlerChrysler, a Novartis e outras. As grandes empresas trabalham em parceria mundial, assim a Ford (USA) com a Mazda (Japâo), a General Motors com a Isuzu, a Fiat com a Nissan etc. Estes conglomerados agem em nivel planetario, muitas vezes sem o controle dos Estados, consoante os mercados e as vantagens lucrativas. Segundo, a continentalizaçâo das economías dentro do processo maior da globalizaçâo: assim o Mercado Comum Europeu, o Nafta (USA, Canadá, México), Tigres asiáticos, Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai). Entre estes blocos vigoram guerras económicas. A concorrência provoca grandes avanços tecnológicos ao mesmo tempo que agrava a crise ecológica e aumenta o fosso entre os países tecnicamente desenvolvidos e os atrasados. Terceiro, o surgimento de elites orgánicas transnacionais que objetivam o gerenciamentó econòmico e político da Terra, relativisando o papel do Estado e dos projetos nacionais. Tal fato obriga a repensar o papel dos Estados-naçôes e formula a exigencia de um governo central planetàrio que articule os interesses mínimos coletivos da Terra como um todo e da humanidade como espécie.

3. Globalizaçâo pela política Junto com o processo econòmico caminha o processo político. Por causa do Ocidente praticamente todos os povos se organizaram em Estados-naçôes. A idéia de democracia penetrou nos hábitos políticos de todos os países, seja a democracia como valor universal a ser vivido nos relacionamentos humanos na escola, ñas comunidades e no processo produtivo, seja como forma de organizaçâo do poder de Estado. A democracia somente funciona quando se cria urna atmosfera de respeito e de promoçâo dos direitos humanos pessoais e coletivos. Os direitos humanos supôe, por sua vez, certa compreensâo do ser humano como um fim em si mesmo e nunca como meio (a permanente contribuiçâo ética de Kant), o que nâo é de fácil assimilaçâo pelos povos orientais. Por causa desta compreensâo antropológica e da validade universal dos direitos humanos, todo poder para ser legítimo deve ser delimitado por uma constituiçâo e ser controlado pelo povo ou por seus representantes. As guerras mundiais e particularmente a guerra do Golfo em 1991 mostraram, pelo lado reverso, o processo de globalizaçâo. Todos as naçôes tiveram que posicionar-se, ficando todos envolvidos, globalizados a partir da potencia hoje hegemónica, os Estados Unidos da América.

Processes de globalizaçâo e desafios à teologia da libertaçâo

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Nos últimos anos, très dados tornaram patente a globalizaçâo, pois efetivamente englobam a todos sem exceçâo: o processo de comunicaçâo, o perigo nuclear e o alerta ecológico. As comunicaçôes (1) fazem de todos uns vizinhos dos outros e nos revelam a unidade da especie humana para além de todas as diversidades. Depois da mídia a humanidade nunca mais será a mesma. As armas nucleares e químicas (2) podem destruir varias vezes a humanidade e ameaçar perigosamente toda a biosfera. Näo haverá urna arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os demais. Todos os humanos podem degenerar e perecer. O alerta ecológico (3) foi acionado a partir de 1972 com o Clube de Roma. O relatório, em muitos aspectos discutível, em essência diz urna verdade constatável: o tipo de desenvolvimento técnico-industrial adotado implica urna sistemática agressâo à natureza, um esgotamento de recursos nao renováveis e urna grande degradaçâo da qualidade de vida para todos os seres vivos. O efeito estufa, o envenenamento do solo e do ar e o buraco de ozônio podem produzir maleficios irreparáveis para a biosfera. A morte revela formas insuspeitadas de ecocidio (morte de ecossistemas), de biocidio (morte de especies vivas) e de geocidio (morte da Terra-Gaia).

4. Globalizaçâo pela espiritualidade Os fatores econòmico e político-ecológico geraram outro fator de globalizaçâo: a nova consciência planetària. Somos corresponsáveis pelo nosso destino comum, do ser humano e da Terra. Formamos, na verdade, - ser humano e Terra - urna única entidade. Pela primeira vez na historia da antropogênese podemos ver a Terra de fora da Terra. E a visâo dos astronautas, visâo que muda as consciências. O astronauta Rüssel Scheickhart ao regressar à Terra testemunhava a mudança de paisagem mental: Vista a partir de fora, a Terra é tào pequeña e frágil, urna pequenina mancha preciosa que voce pode cobrir com seu polegar. Tudo o que significa alguma coisa para você, toda a historia, a arte, o nascimento, a morte, o amor, a alegría e as lágrimas, tudo isso está naquele pequeño ponto azul e branco que voce pode cobrir com seu polegar. E a partir daquela perspectiva se entende que tudo mudou, que começa a existir algo novo, que a relaçâo nào é mais a mesma como fora antes.

O ser humano nâo habita simplesmente na Terra. Ele é Terra (humus-homo-homem). Ele é a Terra que caminha, como diz o poeta cantante argentino Atahualpa Yupanqui, a Terra que pensa, que fala e que ama. Entre as pedras, as montanhas, os océanos, as florestas, os animais e os humanos nao há adiçâo como se fossem partes separadas. Todos estamos interligados e organicamente relacionados. Se vida e näo-vida se opusessem, teríamos por um lado o mundo mecánico e por outro o mundo biológico e em seguida o mundo humano, todos separados por barreiras intransponíveis. Ora, as ciencias da Terra nos mostram que estas barreiras nâo existem. A matèria nâo pode ser vista como algo estático, mas como algo que se caracteriza pela reatividade, pela criatividade e pelo diálogo. A vida é uma emergencia da Terra. E a vida humana é uma emergencia da historia da vida. A moderna cosmologia, que vai divulgando esta visâo por todo o mundo, nos faz compreender que o

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universo é um imenso processo evolutivo de 15 bilhòes de anos, processo único, complexo, contraditório (caòtico e harmónico) e complementar que une todos os seres, vivos e "nao vivos", por uma teia de relaçôes de sorte que ninguém vive fora da relaçâo. A seta do tempo vai mostrando uma direçâo: o aparecimento de ordens cada vez mais complexas, autoorganizadas, interiorizadas e convergentes de vida e de expressäo criativa (autopoiesis). Esta compreensâo nos fornece a base experimental e científica necessària para entendermos o atual processo de globalizaçâo como um momento de um processo anterior, infinitamente maior de convergencia de energías, intencionalidades e dinamismos que estâo atuando no universo desde o começo. Tudo isso explica o nosso processo atual de globalizaçâo. A nossa globalizaçâo, por sua vez, - perguntamos com Teilhard de Chardin - näo estaría criando as condiçôes para um salto qualitativo no processo da antropogênese: a irrupçâo da noogênese e da noosfera, quer dizer, a genese e a esfera do espirito? Surgiría, segundo esta hipótese, uma unidade superior entre os humanos, de suas mentes, de seus espíritos e de seus coraçôes, dando origem a uma nova historia do universo e da pròpria especie homo, possivelmente mais solidaria e fraterna. Esta consciência que vai lentamente se globalizando cria também uma espiritualidade. Entendemos por espiritualidade nâo tanto uma atitude religiosa, mas uma atitude humana de respeito e veneraçâo pela grandeza e majestade do universo e de admiraçâo pela complexidade da vida sobre a Terra. O ser humano se conscientiza que pode captar as mensagens que vêm de todas as coisas, pois cada uma tem uma longa historia a contar e que ele pode dialogar com o seu universo interior, com as energías, arquétipos e paixôes que ai emergem, fazendo o seu processo de individuaçâo que lhe produz paz e serenidade em sua vida. Para as pessoas religiosas o profundo é habitado por Deus e dialogar com a interioridade profunda é pôr-se na escuta da Palavra divina. Mais e mais se percebe em todo o mundo uma grande sede de espiritualidade, de encontro com o elo perdido que permite uma experiencia de re-ligaçâo de todas as coisas e de todas as experiências, conferindo sentido para a vida, a verdade de toda religiâo.

5. Desafios para a teologia latino-americana de libertaçâo A teologia (de libertaçâo ou nâo) vê o processo de globalizaçâo como um sinal a ser interpretado. Deve ser saudado como a realizaçâo de uma tendencia do processo cosmogênico e antropogênico. E como tal, para as pessoas de fé, é um sinal do designio de Deus. O ser humano é essencialmente um ηό-de-relaçôes. A globalizaçâo permite realizar sua vocaçâo essencial de uma forma muito mais radical que em qualquer outra época anterior. Entretanto, a teologia da libertaçâo se caracteriza pela ótica mediante a quai lê os fenómenos, que é a perspectiva das vítimas. Eia pergunta: nesse processo de globalizaçâo como entram os pobres e oprimidos? E aqui a reflexâo teológica assume uma dimensâo profética. Vamos analisar, na ótica dos pobres e oprimidos, cada um dos vetores de globalizaçâo.

Processes de globalizaçâo e desafíos a teologia da libertaçâo

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Com referencia à globalizaçâo via mercado total: eia se realiza dentro dos quadros da ordern do capital. Por causa da lógica pròpria do capital que privilegia a apropriaçâo privada dos lucros, a concorrência, a maximalizaçâo dos proveitos, a globalizaçâo se faz com grande exclusâo de países e massas humanas. Tomemos alguns dados do World Development Report do Banco Mundial de 1993 e do Programa das Naçôes Unidas para o Desenvolvimento de 1992 (PNUD). Ai se diz: nos últimos 25 anos, quando começou a acelerar-se a globalizaçâo (1965-1990) a riqueza global cresceu 10 vezes, enquanto a populaçâo do Planeta apenas dobrou. Neste período, a parcela da riqueza apropriada pelos países ricos aumentou de 68% para 72%, enquanto sua populaçâo passou de 30% para 23% da populaçâo mundial. A parcela de riqueza em mâo de 20% mais ricos da populaçâo mundial aumentou de 72% para 83%, enquanto a que coube aos 20% mais pobres caiu de 2,3% para 1,4%. Esse tipo de desenvolvimento globalizado custa 40.000 pessoas que morrem cada dia de fome ou de subnutriçâo. Roger Garaudy comenta: "isso custa ao Sul o equivalente a urna Hiroshima cada dois dias" (Garaudy 1955:7). Tal distorçâo mostra que o mercado de tipo capitalista é profundamente anti-social. Ele nâo produz em funçâo das necessidades humanas mas em funçâo das demandas do pròprio mercado. Nâo somos contra o mercado que é a instituiçâo central das sociedades modernas. Nâo aceitamos este tipo de mercado que é vitimatório para as grandes maiorias da humanidade. A crescer a fome no mundo, a aumentar a exclusâo da maioria dos países que nâo controlam as tecnologías de ponta e a agravar-se o déficit da Terra com crises ecológicas que se anunciam, ver-nos-emos, certamente, obrigados - caso queremos sobreviver - a trocar o sentido da economia. Nâo mais como o crescimento material linear e ilimitado mas como a produçâo social do suficiente para todos os humanos e para os demais seres vivos da criaçâo. Esta postulaçâo é assumida pela teologia da libertaçâo. Com referencia à globalizaçâo pela política: a teologia da libertaçâo vê com reserva o processo de homogeneizaçâo mediante a generalizaçâo dos valores políticos e culturáis do Ocidente, que no computo global da historia mundi é mais e mais um acídente. O desafio é apoiarmos sociedades multiculturais e multirreligiosas, respeitando as varias formas de organizaçâo social e política, embasadas ñas respectivas culturas. O desafio maior consiste em gestar, a partir de baixo, formas de convivencia que incluam o mais possível a todos, especialmente, aqueles que foram históricamente excluidos. Isso se farà se estiverem presentes estes quatro pés, como numa mesa, que sustentam a vida social: a participaçâo, a busca da igualdade, o respeito da diferença e o incentivo da comunhâo entre as subjetividades humanas. Com referencia à globalizaçâo pela espiritualidade: os teólogos da libertaçâo estâo convencidos de que nâo somente os oprimidos devem ser libertados, mas todos os homens. Todos vivemos escravizados sob um paradigma que nos inimiza e distancia da natureza. Nâo só os pobres gritam. A Terra também grita sob a agressâo sistemática do tipo de desenvolvimento feito contra a natureza e nâo com eia. A teologia da libertaçâo incentiva o resgate do caráter sagrado da Terra, o resgate das tradiçôes espirituais das culturas oprimidas e dos pobres que, geralmente, têm veneraçâo e respeito pela Terra como a Grande Mâe.

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Essa atitude poderá limitar a ganancia moderna e permitirá urna nova experiencia de Deus no universo que supere os famosos dualismos do cristianismo ocidental, entre Deus e o mundo, a alma e o corpo, o feminino e o masculino. O s teólogos da libertaçâo estâo convencidos de que somente um cristianismo que rompe suas alianças c o m os poderes deste mundo e relativiza sua encarnaçâo na cultura ocidental e que assume a causa dos condenados da Terra que sao hoje 2 / 3 da humanidade poderá revindicar a herança de Jesus. N â o um cristianismo de dominaçâo mas de libertaçâo é útil à globalizaçâo e ajuda num tipo de globalizaçao que busca convergencias na diversidade nao só em termos económicos, políticos e culturáis, mas também religiosos.

Bibliografia Boff, L.(1994): Eine neue Erde in einer neuen Zeit. Plädoyer für eine planetarische Kultur. Düsseldorf: Patmos — (1995a): Ecology & Liberation. A New Paradigm. Maryknoll, New York: Orbis Books — (1995b): Dignitas Terrae: ecologia, grito da Terra, grito dos pobres. Sào Paulo: Ática Dreifuss, R. A. (1991): Transformaçôes globais: urna visäo do hemisferio Sul. Rio de Janeiro: PACS/PIES/SC Garaudy, R. (1955): Vers une guerre de religion? Paris: Desclée Granrut, Ch. (1990): La mondialisation de l'économie. Eléments de synthèse. Bruxelles: FAST Hinkelhammert, F. (1992): "La lògica de la expulsion del mercado capitalista mundial y el proyecto de liberación", in: Pasos, San José de Costa Rica: Departamiento Ecuménico de Investigaciones Houtart, F. (1994): "A mundializaçâo da economia", in: Cademos de Fé e Politica, nQ 11, pp. 59-82 Kurz, R. (1991): Der Kollaps der Modernisierung. Vom Zusammenbruch des Kasernen-Sozialismus zur Krise der Weltökonomie. Frankfurt: Eichborn Verlag Ingelhardt, R. (1990): Sociopolitical Change in Global Perspective: Preliminary Findings from the 1990 World Values Survey. Ann Arbor: Institute for Social Research, University Michigan Morin, E. (1993): Terre-patrie. Paris: Seuil Petrella, R. (1992): The Globalization of Technological Innovation. Bruxelles: FAST Robin, J. (1989): Changer d'ère. Paris: Seuil

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Teologia da libertaçâo - urna arte de viver?1

O que nos importam - a nos, os filósofos - os empobrecidos e os que sao privados de direitos, os impotentes e os humilhados das sociedades humanas? Nada, absolutamente nada! Esta seria urna resposta de acordo, por exemplo, com a ontologia da existencia de Martin Heidegger. Ele, antes de completar 50 anos, propôe entregar as massas que se "extravasam" no "abandono do ser" ao "aniquilamento" por forças superiores. Como octogenario escreve a um confidente seu que nao há razâo "para que isto que está povoando a terra [...], deva continuar existindo interminavelmente". Aquele que do ponto de vista de sua lingua, de seu povo ou de sua capacidade intelectual nâo dispôe completamente do direito da pàtria e da origem, nao encontrará um lugar de essência no pensamento do filòsofo: eles nâo têm essência; sao sem essência. Nesta filosofia, a teologia da libertaçao, por principio, nâo pode ter crédito intelectual. Pois, que importam os empobrecidos e os que sâo privados de direitos aos teólogos? Tudo, esta é a resposta, pelo menos quando os teólogos da libertaçâo têm a palavra. É necessàrio, pois, urna filosofia especial quando se quer dialogar com a teologia que se propôe à libertaçâo dos empobrecidos. A minha intençâo hoje consiste em apresentar esta filosofia, evitando, no entanto, que eia mesma seja o tema da reflexâo. Ao contràrio, esta filosofia deixa-se levar completamente pela interpretaçâo da teologia da libertaçâo como urna forma da arte de viver. A teologia da libertaçâo pretende-se altruista. Ouçam a maneira como Clodovis Boff, em 1978, cita Leonardo Boff: O mais importante, pois, nâo é a teologia da libertaçao, senào a pròpria libertaçao.

Tâo grandiosa a intençâo desta palavra, tao engañadora é. Estará pensando a teologia da libertaçâo na sua pròpria instrumentalizaçâo? Nâo, eia quer-se a si mesma como teologia da libertaçâo porque está convencida de que, na sua pròpria realizaçâo, se realiza também esta libertaçâo que lhe dà o nome. Do ponto de vista tanto kairológico como escatològico, teologia da libertaçâo e libertaçâo têm o mesmo sentido; para se entender os dois conceitos, o seu "e" é significativo. Segundo seus principios formais, a teologia da libertaçâo sempre é urna teologia do "e": de urna maneira que lhe é totalmente pròpria, eia sabe-se comprometida pelo "e" que abarca e fundamenta qualquer teologia. A fòrmula do "e" mais simples e inequívoca é a seguirne: Deus e homem.

Traduçâo do alemäo pela equipe editorial.

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Esta é a sua insuperável concepçâo de si mesma: da mesma maneira como Deus e homem sâo unidos, teologia e libertaçâo também devem ser unidas. Cornudo, suposto que explícitamente se valorize que o que é mais importante nâo é a teologia da libertaçao, senäo a libertaçao mesma, entào esta verdade tem que aceitar também outra: O mais importante nâo é Devis, mas sim o homem. Jesus, assim o entende o teólogo em questào, é Deus e homem. A o considerar a libertaçao mais importante que a teologia, ele há de concluir que o fato de que Deus seja homem é mais importante que o fato de que o homem seja Deus. O seu pròprio "e", como tematicamente o fascina, demonstra claramente que nossa interpretaçâo é correta. De uma lista de mais de trinta "e" encontrados sem grandes esforços, escolho para hoje estes quatro: teoria e praxis, espiritualidade e engajamento, Igreja e sociedade, Deus e o outro. Quando - conforme a postura "essencialista" - se prioriza no ambito da teoria o que é pròprio e essencial, e quando - conforme a postura autoritària - se prioriza no àmbito da praxis a hierarquia, é certo que estes "e" perderâo sua força pròpria como expressôes de uniâo e de diferença: cada elemento "refugia-se" um no outro, e de uma maneira que cada um encontra no outro a Verdade Una como a sua pròpria verdade. Ouçam quâo fácil isto funciona: Teoria é a verdadeira praxis. Espiritualidade é o verdadeiro engajamento. Igreja é a verdadeira sociedade. Deus é o verdadeiro outro. Se esta for a maneira pela qual os superiores querem apresentar a teoria e a praxis, entâo o fiel nâo quer ficar atrás, e de fato nâo costuma fazê-lo: considera que a espiritualidade de sua fé já é sinónima de seu engajamento. Se o "verdadeiro" fiel se vê em perigo, vê sua fé em perigo, todavia nâo vê perigos para sua vida, para seu lar, para a sociedade ou para o Estado. A Igreja, por sua parte, nâo tem que transgredir a si mesma para "doutrinar a todos os povos". D o ponto de vista escatològico, quer dizer "em verdade", eia já é todo o povo no quai se cumpre a presença do Deus trinitàrio. Toda a humanidade é considerada a priori como pertencente a seu espaço interior. Eis aqui a razâo que possibilità que a Igreja na sua forma temporal cumpra uma ordem de missâo: empreender na atualidade o que no futuro ./ / ja e. Deus mesmo, por firn, é o outro, tanto de modo concreto como geral: em cada outro, ele já é o outro. Entâo, por que um teòlogo e um fiel deveriam sair de sua pura relaçâo com Deus, se é certo que nesta relaçâo - para além de todos os acasos e possibilidades de encontre da vida - já se está com todos os outros?

Teologia da libertaçâo - urna arte de viveri

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Conclusaci: quando - conforme o pensamento essencialista e hierocrático - a verdade é vista na pureza e na singularidade de urna relaçâo verdadeira, nao há dúvida que a teoría é a verdadeira praxis, a espiritualidade é o verdadeiro engajamento, a Igreja é o verdadeiro mundo e sociedade, e Deus é o verdadeiro outro. Para que a teologia da libertaçâo alcance a sua autodeterminaçâo teórica e pràtica, é fundamental que eia abandone esse essencialismo e esse hierocratismo. Eia leva a sèrio o "e" singular do homem intelectual (geistig) e espiritual (geistlich) sob todas as suas perspectivas. Se eia interpreta esse "e" como mediaçâo, síntese ou mesmo como identidade (tampouco falta o inevitável termo "diatètica"), entäo é porque eia nao quer dar a nenhum dos lados uma preferencia infinita. Mesmo assim eia pode ser tudo, menos imparcial. Valorando e dando prioridadade que a sua "mediaçâo" entre o que através do "e" é ao mesmo tempo unido e separado, é que eia tenta ser justa tanto com o "um" como com o "outro". E é porque eia evidentemente pensa e procede de maneira teocêntrica, que eia desloca o peso do seu interesse, para além de si mesma, ou seja, para um outro que nâo eia pròpria. Eia sabe inclusive que deste modo eia nâo se distancia de si mesma, senâo que arrisca, ou quem sabe, provoca - em principio - a sua pròpria consumaçâo escatològica. Por isso nâo é de se admirar que a teologia da libertaçâo justamente enquanto teologia queira e precise querer que a teoria seja compreendida a partir da praxis, a espiritualidade na fé a partir do engajamento na fé, a Igreja a partir de sua socialibilidade e de seu relacionamento com o mundo, Deus a partir do outro ser humano. A síntese da teoria e da praxis funda-se na praxis, da mesma forma que a síntese da espiritualidade e do engajamento no engajamento, da Igreja e da sociedade na sociedade, de Deus e do outro no outro. Pois bem, retornemos à arte de viver: ao meu pròprio ramo. Eu nâo sou teòlogo e nem mesmo um representante da filosofia cristâ. Arte de viver, como eu a entendo, ou seja, a arte de partilhar bem-sucedidamente a vida, representa o esboço de uma ética filosofica, que por si nâo responde a nenhuma questâo metafisica. Mesmo assim eu tenho um interesse especial na teologia da libertaçâo, na medida em que eia promete impulsos positivos para uma ética da vida bem-sucedida. O teólogo da libertaçâo, como eu o vejo, reflete de maneira nova sobre a sua origem como teólogo, assumindo as responsabilidades de alguém que está consciente do mundo em que vive. Esta reflexâo está sob o signo da fé e da partilha da vida. Pois a sua origem é sem dúvida essa: a fé e a vida em comum. A realizaçâo de sua pròpria origem se coloca dessa forma sob a insignia da evangelizaçâo - libertadora - dos pobres e da partilha da vida com eles. O elemento central da auto-reflexâo e da auto-responsabilidade da teologia da libertaçâo é a fé. Se o saber teològico revela-se nâo apenas de índole racional, mas também de forma "palatável" (sapiential·), entâo o teólogo vive, enquanto alguém que sabe, daíkenaít-.o

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saber deve-se à fé, mas nâo sua fé ao saber. Da maneira como a teologia atinge o seu saber pròprio, eia é reflexâo, entusiasmo e certificaçâo de si a partir da fé. Neste processo de tornar-se saber, a fé pensa-se em si mesma, compieta-se com espirito, convence-se a si pròpria, que sempre tem avistado o fundo de si

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mesma no fundo de si mesma: a origem atemporal a partir da visâo de Deus, como ele é prometido escatologicamente. A auto-reflexâo - na fé - do teòlogo da libertaçâo começa sapiente e asseverantemente com a esperança escatològica, na forma, contudo, de sua anunciaçâo. N o caminho para sua origem ele recuperou o sentido propriamente apostòlico do teòlogo. Ao invés de encontrar sua vocaçâo total numa erudiçâo consagrada a Deus, ele se sabe, por causa de sua fé, convocado para a evangelizaçâo. Evangelizar significa: praticar sapiente e asseverantemente a esperança crista na fé. Do mesmo modo como a fé nâo vive sem a esperança que lhe é pròpria, esta também nâo vive sem o amor que se encontra nesta fé. Evangelizaçâo sem o partilhar da vida com os evangelizados, ñas condiçôes em que o teólogo se apresenta, teria que se equiparar à lamentável tentativa iluminista da modificaçâo da consciência: urna cabeça procura ganhar urna influencia modificadora sobre urna outra cabeça, para levá-la a virar um pouquinho o pescoço (para que se converta, para que comece a repensar). Nâo, aqui se espera urna presença partilhadora da vida numa intençâo pràtica. O euangelho da esperança seria urna palavra vazia na sua boca, se nâo fosse acompanhada da eucaristia do amor. Quem no entanto se comunica dentro do amor cristào já compartilha com aqueles que sao receptivos ao seu agir e ao seu pensar. Assim a reflexâo, o entusiamo e o certificar-se, aos quais o teologo da libertaçâo se dedica em virtude de sua fé, encontram-se na sua pràtica de evangelizar; o evangelizar, no entanto, que se fundamenta através da mensagem da esperança, encontra-se na vida compartilhada com aqueles que se mostram receptivos àquela esperança. Quem sâo aqueles com os quais ele se encontra no caminho para a origem de si mesmo? Com quem ele pode, enquanto teólogo que é, compartilhar a sua vida, de modo que o seu pròprio uti et fruì se realize entre as pessoas? Para esta questâo colocada de maneira ampia, eu gostaria de dar urna resposta delimitada: a teologia da libertaçâo, na maneira como eia se dà a conhecer na América Latina, eu a compreendo como urna arte de viver, cuja especialidade consiste em saber alcançar urna tripartiçâo da vida, a saber, a partilha da vida do teòlogo com: 1. os que procuram razòes, 2. os que procuram possibilidades, 3. os que procuram ajuda. Primeiro, eie tem que assumir urna funçâo de cientista entre cientistas e intelectuais, sem contudo restringir seu olhar somente à ciencia; segundo, assume sua funçâo de pessoa responsável na sociedade entre outros responsáveis, sem restringir seu olhar apenas ao funcionamento da sociedade; terceiro e finalmente, assume seu papel de próximo entre próximos, sem entretanto restringir seu olhar apenas à ajuda ao pobre e ao marginalizado da sociedade. A força da fé junta todas as très partes e as transfigura em urna unidade: na historia do homem como a sua libertaçâo futura através do Deus do evangelho.

Teologia da libertaçào - urna arte de viveri

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1. Compartilhar a vida com os que procuram razôes Racionalidade crista-teológica - isto lembra lógica e causalidade cristas. A consciência do cientista e de todo intelectual crítico e cético se recusa, como se pensaría, por natureza à teologia. O filósofo, que esboça com a "arte de viver" urna ética da vida bem-sucedida, vê isto de outra forma. Ele é capaz de imaginar a partilha da vida com teólogos da libertaçào, pelo menos no àmbito em que ele, como artista, entende esta partilha. Urna teologia que sabe que sua maneira de certificar-se de Deus e da divina trindade é autónoma, é, como ciencia, urna arte. Quem - da mesma maneira - emprega a sua racionalidade, espiritualidade e existencialidade como teólogo e como artista nao pertence, por isto, a mundos distintos. Estas très faculdades, de ser ele pròprio teologicamente, estâo por completo realizadas na maneira em que ele é artista. Justo quando faz parte de seu ser artista praticar a arte de partilhar bem-sucedidamente a vida, ele em nenhum momento tem que sair de si, de nenhuma maneira tem que mudar de um mundo para outro. Se a partilha de sua vida com outros, que também procuram certificar-se como "pessoas humanas" e que assim procuram responsabilizar-se a partir de sua condiçào cognitiva, é exemplarmente apresentada como a partilha com os filósofos, entâo esta teologia nâo supôe nenhuma desloçào, nenhum conflito de divisào, nenhuma "bilocalizaçào diacrònica". Aquilo em que o teólogo da libertaçào é autònomo nào é um relacionamento entre dois mundos, nào é uma relaçào entre espiritual e nao-espiritual, sagrado e profano, divino e ateu, nem entre o pròprio e o alheio, mas sim um relacionamento entre fundamento e fundamentado. Na medida em que ele, como lhe é pròprio, se realiza racional, espiritual e existencialmente, ele vive uma tensäo entre fundamento e fundamentado. Se nomeamos o fundamento a vontade de Deus, entäo tudo o que por isto é fundamentado é o divinamente intencionado. Os dois nomes säo suficientes para demarcar o mundo Uno em que o teólogo vive responsabilizando-se racional, espiritual e individualmente e em que ele se abre à partilha humana de sua vida. Uma entre muitas possibilidades de apresentar o teólogo em seu Mundo Uno, tal como este abrange tanto o fundamento como o fundamentado, é o seu ouvido aberto para a realidade pràtica da vida, na medida em que este ouvido se revela ao mesmo tempo como um que sabe e um que é poetico. Como o teòlogo da libertaçào, no seu lugar, no seu tempo, é voltado para o homem histórico, ele ouve um grito. Nenhuma outra pessoa poderia ouvir este grito. É um grito ao céu que lamenta e que acusa a injustiça e as condiçôes insuportáveis, como elas sào criadas por homens para homens. E um grito de lamento e de acusaçào que no fundo nem se destina mais às pessoas, mas aos ouvidos de Deus. Hào de ser, por isto, teólogos muito especiáis, responsáveis científica e artisticamente de uma maneira muito especial, e que se fundamentam em Deus, para, já entre pessoas, terem ouvidos justamente para este grito. O seu "segredo": eles próprios tomam responsabilidade por este grito, porque determinam a direçào deste grito, embora ele nào entoe de sua boca. Este ouvir, assim o temos que o compreender, é pura poesia: a realidade humana é, de maneira autònoma e nào arbitraria, artisticamente interpretada e modelada, sendo o

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certificar-se de Deus, porém, o fundamento de sua atividade artística. Toda poesia de que o teólogo da libertaçâo é capaz tem, no entanto, o seu fundamento na poesia de Deus: na vontade de Deus, justamente, de Deus como fundamento. A poesia da injustiça e miseria gritantes encontra a sua palavra suficiente, como o teólogo sabe, somente num poema mais abrangente que incluí a vontade e a promessa de Deus, a poesía da culpa (pecado) e da expiaçâo, do mal e da libertaçâo (salvaçâo). Se esta for a proposta teològica, entâo a partilha da vida entre o teólogo da libertaçâo e o filósofo, que se realiza sob estímulos espirituais e artísticos mutuos, nâo há de se perder nem em reservas ideológicas, nem em convocaçôes a urna parcial auto-renúncia. Ambos, de fato, reclamam para si, com o mesmo resultado, a consciência da vida humana. Se a razâo de despojar outros de justiça, poder e dignidade for tal que nâo se pode avaliar de outra forma, ou seja, se ele levar o teólogo da libertaçâo à conclusâo de que os pobres e injustiçados só receberâo justiça se for possivel precisar deles já enquanto empobrecidos in re e nâo enquanto des-pobrecidos in spe, o que significa compartilhar a vida com eles, entâo isto corresponde exatamente à visäo da ética filosófica da vida bem-sucedida.

2. Compartilhar a vida com os que procuram possibilidades O teólogo da libertaçâo, para urna possível partilha com os que tomam a iniciativa para mudanças na sociedade, tem que se dirigir aqueles que têm olhos e ouvidos para a privaçâo de justiça e dignidade e para o empobrecimento causados pela sociedade e, ao mesmo tempo, também para as possibilidades de mudar isto. Nao importa em que agrupamento os encontre, ele terá que lidar com eles - partilhando a vida - de tal forma, que se tornem uma parte de sua pròpria açâo: no sentido de uma subteologia. Com isto se emende uma teologia que vem de baixo: através déla, o certificar-se e a espiritualidade cristâos começam a agir de baixo, por iniciativa pròpria e por meio de uma politica que lhe corresponde - sendo ao mesmo tempo evangélica e politica. Esta teologia nâo se posiciona mais no alto do morro dos capitâes da batalha, de onde, como supervisâo estratégica e, numa hierárquica perspectiva angélica e celeste, se ordenam os exércitos terrestres - teórica, ou seja, ideologicamente - em os que estâo destinados para o céu e os que estâo destinados para o inferno, em virgens prudentes e tolas, em pobres e ricos, justos e injustos. Agora, conhecimento e espiritualidade hâo de se comunicar em termos de vida pràtica para provar que sâo de algum proveito para a condiçâo humana. Pessoas atentas para as injustiças, que desprezam e destroem a dignidade humana, sâo, assim, capazes de necessitar-se e de compartilhar a vida, para se asseverar da certeza de cada um, pois por mais que seja opressivo o presente histórico, nunca ele poderá nem deverà ser motivo para o desespero total ou o cinismo puro.

Teologia da libertaçào - urna arte de viveri

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3. Compartilhar a vida c o m os que procuram ajuda Da sua uniao de racionalismo, espiritualidade e existencialismo que lhe sao próprios resulta para a partilha da vida, assim como eia se abre ao teòlogo da libertaçào, ou seja, como possibilidade de ser ele mesmo, e além da possível partilha espiritual e política, urna que é, em última conseqiiência, necessariamente crista: ser ao próximo um próximo, ao necessitado de ajuda um que socorre. Sem uma relaçào bem-sucedida com os pobres e privados de direitos, o teólogo da libertaçào näo seria aquele que pretende ser: o evangelista dos pobres, que é um apóstolo de Cristo. Se ele consegue a realizaçâo pràtica da sua concepçào pròpria, impossivelmente tornar-se-á ele pròprio um pobre ou um privado de seus direitos, contanto que isso signifique a auto-renúncia do teólogo. Se ele partilha com intençào pràtica a situaçào presente com os pobres, só o faz como artista que é. Desta forma, os pobres se apresentam a ele também como um potencial de evangelizaçâo. Mas isto já é poesia. Na sua relaçào com os pobres também modificam-se o ser pobre e o ser privado de direito destes: estào à luz da boa nova divina. Nesta também está ele pròprio. Ele comunica a palavra evangélica da esperança e distribuí o päo ewcarístico da esperança. Nesta comunicaçào e distribuçào, ele partilha a vida crista como alguém que ajuda total e interamente os que procuram ajuda: a esperança deles é a sua e a sua é a deles. Se o teólogo da libertaçào partilha uma vez o päo com os necessitados, se ele pròprio auxilia e ajuda através da sua pròpria atividade, entäo isto resulta para ele automaticamente de situaçôes práticas da vida. Mas nada o leva nesta situaçâo a renunciar a si mesmo. A promessa ouvida e saboreada conjuntamente manifesta-se entào nova no pròprio presente. Se acontece de ele viver uma vez realmente pobremente com os pobres, entâo ele considera este ser pobre nao como sacrificio e secretamente como mérito. Absolutamente pelo contrario. A pobreza partilhada já se modificou em pobreza. Eia é, para repetir com uma nova palavra, auratizada através da promessa de Deus. A teologia da libertaçào mostra-se com isto näo menos definida pela práxis do que a pobreza, que a faz surgir no seu brilho transcendental através da pràtica evangélica e da poesia. O pobre, do qual o teólogo da libertaçào necessita e que ao mesmo tempo sabe necessitar deste teòlogo, é em um só a acusaçào viva e a esperança viva. Aquele que é evangelizado através da teologia da libertaçào já está liberto, porque está mudado auraticamente, mesmo que o pao ainda seja pouco e a injustiça pareça insuportável. Como eu penso, a teologia da libertaçào näo terá de desenvolver uma estratégia de luta política e mudança social se isto significar que eia goze de meios que em sua particularidade sejam alheios aos seus objetivos. Partindo da partilha da vida bem-sucedida, como eia é para tal teologia espiritual e politicamente possível, porém cristianamente necessària, eia pode apostar somente na pròpria partilha da vida. Justiça tem praticamente somente um objetivo: justiça. Ao mesmo tempo é certo que justiça como objetivo só tem um meio: justiça. E, por isto, a teologia necessariamente vem de baixo: a esperança escatològica por justiça exige justiça praticada no momento. O teòlogo da libertaçào como verdadeiro artista da

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vida estará aberto a isto graças à sua poesia e sua fé, para nao continuar falando da sua força intelectual, do seu instinto politico e de sua viva força de atuaçâo. Até este ponto meu presente de boas-vindas à teologia da libertaçâo, até este ponto minha abertura em relaçlo a seu espirito significantemente outro.

Walter Bruno Berg

Polifonia e perspectivismo em Vargas Llosa e Ubaldo Ribeiro: propostas estéticas para urna ética da universalizaçâo

I. Um dos problemas mais graves no contato das culturas é o problema ético. A antropologia e a etnologia têm demonstrado que o etnocentrismo nào é privativo da cultura européia. Pelo contràrio, parece que a tendencia para considerar as regras de conduta que possibilitam a vida dentro de um grupo determinado como uma moral provida de valor universal é uma tendencia geral das culturas. A longa e dolorosa historia da cultura européia na América Latina, no entanto, mostra que o eurocentrismo tem um traço específico que o distingue da maioria dos outros etnocentrismos, isto é, a tendencia para transformar o suposto universalismo da pròpria cultura em arma de conquista e de dominaçào. Por outro lado, é sabido que, dentro da mesma historia da cultura européia, a tendencia contraria também tem existido, nao só na historia do pensamento cristäo - se concordarmos com a interpretaçâo do padre Las Casas de Todorov1 - , mas também na historia do pensamento secular que foi a filosofia das luzes. Nesta outra historia do pensamento europeu, o projeto da universalizaçâo nao é mais sinonimo da vontade de dominaçào, mas, pelo contrario, equivale a uma proposta ética de aceitaçâo da cultura alheia. Sob este aspecto, o fato de o tema da universalizaçâo aparecer também na recente novelística latino-americana merece nossa atençâo especial. Com efeito, o tema está presente tanto na literatura brasileira como na literatura hispano-americana. Um dos exemplos mais significativos no ámbito brasileiro é Viva o povo brasileiro, romance de Joâo Ubaldo Ribeiro de 1984. Compará-lo-emos aqui com duas obras do escritor peruano Mario Vargas Llosa, publicadas quase na mesma época; sâo elas, La guerra del fin del mundo de 1981 e Historia deMayta, também de 1984. O paralelismo que nos interessa é ético na medida em que se refere à "visâo de mundo" compartilhada pelos dois escritores; uma visâo de mundo traduzida principalmente pela estrutura narrativa de seus textos.2

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Todorov 1982:191s.; cf. Berg 1995:29s.

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Antes de entrar na análise propriamente dita, permitimo-nos formular uma advertencia: quando se fala de "ética", o conceito é utilizado estritamente no sentido kantiano, quer dizer, no sentido formal·, uma "ética", isto é, uma regra formal que individuos considerados como independentes e livres vào seguir para coordenar seus atos sociais de modo racional, ou seja, evitando, sobretudo, o choque da violencia. Esta ética, por principio, carece de "conteúdo", isto quer dizer que nào antecipa uma valoraçâo dos atos em si. Por isto, é uma ética - a única, talvez - capaz de permitir a convivencia de individuos culturalmente heterogéneos.

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Voltemo-nos, primeiramente, para Vargas Llosa. Com respeito à sua temática e, por conseguirne, ao seu gènero, tanto La guerra del fin del mundo quanto Historia de Mayta devem ser considerados como romances históricos. Os eventos narrados e a maioria das personagens que aparecem nao sao "inventados", e sim construidos - ou melhor: re-construídos - conforme modelos que se supôem "reais". Vargas Llosa, no entanto, nâo é historiador, mas sim escritor, um escritor - acima de tudo - muito consciente de sua tarefa. Desde Aristóteles, a diferença das tarefas respectivas do historiador e do escritor costuma definir-se pelo conceito de "verossimilhança" (cf. Reisz de Rivarola 1986:146ss.). A realidade factual - o objeto de que trata o historiador - sempre é particular. Neste sentido, nao corresponde, segundo Aristóteles, ao conceito da "verdade" propriamente dita. A realidade reconstruida conforme o principio da "verossimilhança", pelo contrario, está mais perto da "verdade" porque é universal. O género que corresponde de maneira mais adequada a este conceito é a poesia trágica. O caráter verossímil da açâo dramática consiste em apresentar-se geralmente como uma reconstruçâo dos eventos conforme o modelo do mito. Os teóricos modernos da narratologia estâo, de certo modo, de acordo com a análise de Aristóteles: segundo eles, qualquer texto narrativo é "mítico" no sentido estrito em que o ato de narrar uma historia sempre implica necessariamente um ato de valoraçào (cf. Labov/Waletzky 1973:78ss.). Contudo, há uma diferença essencial entre esses teóricos e a concepçâo do filósofo peripatético. Enquanto para este a verdade do mito é universal, para aqueles o mito só apresenta-se como uma das inumeráveis historias que constituem a Historia (com maiúscula). Sob esta perspectiva, uma das diferenças fundamentals entre Euclides da Cunha fornecedor principal da historia que o escritor peruano irá contar - e Vargas Llosa mostra-se com claridade: enquanto o primeiro, representante da ideologia dominante do republicanismo modernizador, apresenta os eventos de Canudos em forma de urna tragèdia grega, quer dizer, como uma conseqüéncia inevitável do progresso civilizador - que funciona como pressuposto incontestável da historia que tenciona reconstruir - ; a atitude do segundo frente aos eventos é parecida com aquela de um - digamos - narratólogo moderno. Com efeito, renunciando a todo falso universalismo, Vargas Llosa reconstrói a historia de Canudos baseando-se num modelo que no título desta palestra chamei de "perpectivismo"3. Os eventos acerca de Canudos sao apresentados por meio de cinco seqiiéncias independentes, cada uma com seus próprios protagonistas, seu pròprio estilo e linguagem, sua pròpria visâo do mundo e, sobretudo, com sua pròpria escala de valores. Vargas Llosa nâo se contenta com a oposiçâo clàssica, quer dizer, com a perspectiva da gente de Canudos e com aquela do exército republicano. Pelo contràrio, o panorama ideológico dos combates vê-se

Emprega-se aqui este conceito no mesmo sentido como Todorov em seu ensaio sobre a significaçâo da conquista da América. Com efeito, "a questào do outro" também está no centro do romance do escritor peruano.

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estendido pela perspectiva da grande propriedade, representada pelo barào de Cañabrava, pela perspectiva do anarquismo revolucionario, representado pela personagem estrambótica do escocés Galileo Gall, e por último, pela perspectiva de um - pretendidamente - mero observador, o chamado "jornalista miope", representante de um jornal do Rio de Janeiro cuja tarefa consiste em servir de cronista para o público da capital. O principio estético pròprio do texto consiste, entáo, em misturar tanto as seqüéncias quanto os protagonistas. Se, no inicio, uma seqüéncia se define pela "identidade" de uma mesma açâo, de uma mesma personagem e de uma mesma perspectiva expressa por um mesmo estilo, ao continuar a leitura, o que constatamos é a apariçâo das mesmas personagens em seqüéncias diferentes. O efeito é tao simples como evidente: somos levados a contemplar a mesma personagem através de perspectivas diferentes. A mäo do autor "real" esconde-se, assim, por tras da estrutura global do texto, quer dizer, tanto por tras da disposiçâo sintática das seqüéncias assim como da introduçâo subseqüente ao principio da "mistura" das personagens e das perspectivas. Este poliperspectivismo na Guerra del fin del mundo é arbitrario na medida em que depende de uma decisáo do autor de apresentar a historia de Canudos desta forma e nâo de uma outra. A finalidade deste poliperspectivismo, nao obstante, é ética. Serve para contrapor uma à outra as posiçôes dogmáticas tanto religiosas quanto políticas dos diferentes protagonistas do combate. Passemos à Historia de Mayta. Enquanto "discurso" e "historia" na Guerra del fin del mundo permanecem separados, no romance Historia de Mayta o que observamos é a sua aproximaçâo progressiva. A historia em questào é a "historia de Mayta", quer dizer, a historia de um guerrilheiro peruano dos anos 50, e ao mesmo tempo, a historia das tentativas do narrador de reconstruir esta historia do guerrilheiro por meio de pesquisas pessoais. Por isto, o texto que lemos apresenta-se sempre como uma montagem destes dois planos muito diferentes: processo da pesquisa, por um lado; resultado da pesquisa, quer dizer, historia de Mayta como reconstruçâo narrativa, por outro. Para que serve esta montagem? É certo que, primeiro, a convergéncia entre "discurso" e "historia" nao leva à eliminaçâo do caráter ficcional da historia, mas sim à sua acentuaçâo. Também o narrador-protagonista na Historia de Mayta verifica que é impossível encontrar uma verdade definitiva da historia. O que é possível encontrar, por meio da pesquisa, sao somente versôes - muitas vezes contraditórias - da historia. —Entonces, para qué tantos trabajos [pergunta uma das interlocutoras do narrador], para qué tratar de averiguar lo que pasó, para qué venir a confesarme de esta manera. ¿Por qué no mentir más bien desde el principio? —Porque soy realista [explica o narrador simplesmente] en mis novelas trato siempre de mentir con conocimiento de causa. [...] Es mi método de trabajo. Y, creo, la única manera de escribir historias a partir de la historia con mayúsculas. (Vargas Llosa 2 1984:77)

A fórmula - "mentir con conocimiento de causa" - apresenta um programa, nao só para o ato de escrever em si, mas também para o resto dos atos sociais em geral. E importante reparar no contexto em que aparece: o narrador está conversando com duas freiras numa favela em Lima. As mulheres fornecem-lhe informaçôes sobre a vida religiosa do jovem

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Mayta antes de converter-se à revoluçâo marxista. Parece que a admiraçâo do narrador pelo testemunho de seus interlocutores é autèntica e sem restriçôes. Mas ao regressar esquece-se de um encontro desagradável com o poeta Ernesto Cardenal no Instituto Nacional de Cultura: Apareció disfrazado de Che Guevara y respondió, en el coloquio, a la demagogia de unos provocadores del auditorio con más demagogia todavía de la que ellos querían oír. [...] Aún conservo viva la impresión de insinceridad e histrionismo que me dio. (Vargas Llosa 2 1984:91s.)

A figura do poeta "engajado" Cardenal é exemplar porque serve para a análise da demagogia e do fanatismo que está no centro nao só da Historia de Mayta, mas também do romance de Vargas Llosa sobre a campanha de Canudos. Demagogia e fanatismo, nosso contexto, equivalem a urna pràtica social fundada na tentativa de monopolizar um discurso, quer dizer, de substituir o perspectivismo - ou seja, o principio da livre circulaçâo e competiçào dos discursos - pela tentativa de atribuir vigencia exclusiva a um discurso determinado. Se a monopolizaçâo fanática de um discurso só é imaginável como ato de violencia, também é certo que constituí urna fonte de procriaçâo continua da mesma. Neste sentido, a análise do fanatismo pertence aos temas recorrentes dos filósofos do Século das Luzes. Recordemo-nos, porém, que o fanático nao só é o detentor de um discurso, mas também o manipulador de urna pessoa, mais precisamente, manipulador de urna pessoa por meio de um discurso: eis a definiçâo de Voltaire no seu famoso Dicionáño filosófico.'' Entendemos agora porque, para o narrador na Historia de Mayta, nao só o poeta nicaragüense e - evidentemente - o famoso Conselheiro de Canudos, mas também os próprios militares pertencem ao grupo dos "fanáticos". Sobretudo a descriçào do Conselheiro que se encontra no final de La guerra del fin del mundo corresponde estritamente à definiçâo de Voltaire ao acentuar-se ser ele o homem "que matou e fez matar tanta gente e a quem, ainda, conforme todos os testemunhos, nunca ninguém viu apanhar urna arma ou um punhal" (Vargas Llosa 1981:524, trad, nossa). Outra vez: "mentir con conocimiento de causa"; o que a fórmula indica - como assinalamos - é um comportamento gérai. Este consiste no reconhecimento de que uma verdade absoluta, centrada na vigencia de um discurso monolítico, nào existe. Duas conclusses delineam-se. A primeira: "mentir" simplesmente; isto é, insistir na pretendida verdade do discurso monolítico, comportamento característico do demagogo cínico que leva, inevitavelmente, a atos de violencia. A segunda: "mentir con conocimiento de causa"; isto é, o reconhecimento de uma verdade pluridimensional, múltipla e "descentrada", comportamento que merece ser chamado "ético" porque, partindo do reconhecimento da pròpria

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"Ce sont d'ordinaire les fripons qui conduisent les fanatiques, et qui mettent le poignard entre leurs mains; ils ressemblent à ce Vieux de la Montagne qui faisait, dit-on, goûter les joies du paradis à des imbéciles, et qui leur promettait une éternité de ces plaisirs dont il leur avait donné un avant-goût, à condition qu'ils iraient assassiner tous ceux qu'il leur nommerait" (Voltaire 1964:190).

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"mentira" - quer dizer, da pròpria limitaçâo constituinte , implica também o reconhecimento do direito constituinte à "mentira" dos outros, ou seja, da humanidade em gérai. O que se esboça aqui é - como estrategia para evitar a confrontaçâo violenta dos individuos urna ética da universalizaçào.

ΠΙ. Viva o povo brasileiro, o romance de Joâo Ubaldo Ribeiro, foi publicado - como já mencionamos - no mesmo ano de Historia de Mayta. É verdade que na Alemanha há uma controvèrsia com respeito ao título, melhor dizendo, à traduçâo do título para o alemâo. A traduçâo "oficial" é "Brasilien, Brasilien". Também é certo que tampouco o título original é eximido de equívocos. Seria um erro grave interpretar o título do romance como expressào do nacionalismo triunfante. Viva o povo brasileiro é uma acusaçâo veemente ao nacionalismo tradicional em nome de um nacionalismo novo, quer dizer, de um nacionalismo que deixa de funcionar como pretexto para manter o status quo das injustiças e iniqüidades sociais e que se apresenta, pelo contrario, como imperativo ético. Lancemos, primeiro, um breve olhar na estrutura geral do romance. Viva o povo brasileiro é uma genealogia, quer dizer, uma reconstruçao histórica - no sentido mais geral da palavra - do que chegou a ser, para os brasileiros mesmos, "o Brasil": segundo o eixo do tempo, por um lado; segundo o eixo da complexidade - por assim dizer - , por outro. Deste modo, a historia do Brasil é apresentada desde os tempos remotos do descobrimento até, aproximadamente, a nossa época presente, enquanto a complexidade do país mostra-se sob o aspecto de fenómenos tais como a mestiçagem étnica, o litigio ideológico, o combate político, a exploraçào de uma parte do povo pela outra, e também o fenómeno de uma conscientizaçâo progressiva - e universal! - para os valores da liberdade. A proposta estética do autor frente a esta complexidade, à primeira vista, parece simples: reconstrói a historia do Brasil segundo a dicotomia tradicional da oposiçào entre /«5o-brasileiros e autóctones. O primeiro paradigma desta complexidade é apresentado pela figura de Perilo Ambrosio, o futuro "Barâo de Pirapuama" (Ribeiro 131994:92), e seus sucessores; o segundo, pela descendencia numerosa do caboclo Capiroba, figura fundadora da estirpe mestiça. "Meio preto, meio indio", antropófago alegre e - aparentemente - sem agressividade, o caboclo alimentase preferentemente de holandeses. Para completar o espectro da mestiçagem e para demonstrar o lado criativo da antropofagia, o autor faz com que uma das filhas do caboclo enamore-se do holandés Sinique. A neta deles chama-se Dadinha e morre, centenaria, na primeira metade do século 19. Dadinha, por sua vez, tem uma neta que se chama Vevé. Violada selvagemente pelo Bario de Pirapuama (Ribeiro "1994:133), Vevé dá à luz a Maria da Fé. Depois da morte violenta de sua màe devida ao ataque de quatro jovens brancos, Dafé retira-se de todo contato com a sociedade, na qual havia vivido até entào, e começa a organizar uma irmandade subversiva. Declarada inimiga pública pelo governo, Dafé é perseguida em vâo durante anos. Finalmente, o leitor reencontra-a na última fase do

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combate de Canudos. Humorísticamente tramando os fios de um melodrama, o autor inventa outro amor milagroso, a relaçâo entre a guerrilheira Dafé e o oficial Patricio Macario, um dos filhos do herdeiro da fortuna do Baräo de Pirapuama, encarregado de prendé-la. O milagre aqui nao só consiste em que o oficial se apaixona por quem deveria considerar sua inimiga mortal, mas além disto na transformaçâo paulatina de Patricio Macario, ao lado da guerrilheira, no porta-voz principal do discurso que aqui nos ocupa. Urna primeira observaçâo impôe-se aqui: Ubaldo Ribeiro é um desmitificador implacável. O mais importante dos mitos que se destroem - desde o primeiro capítulo do romance - é o mito nacional personificado, oficialmente, na figura do Alferes José Francisco Brandâo Galváo. O que se destrói, no entanto, nao é, precisamente, a idéia de Naçâo em si, e sim urna certa estratégia oficial que se serve da idéia de Naçâo para sugerir que as promessas inerentes a esta já estivessem cumpridas. Esta "desconstruçâo" da retòrica oficial permite ao autor transformar a idéia de Naçâo - digamo-lo no vocabulario kantiano - em urna idéia regulativa, simplificando: em urna reivindicaçâo ética. Outro dos grandes mitos que se destroem no romance é o mito da mestiçagem. De novo, o que se destrói, nâo é a idéia - o fenómeno - em si, senâo as conclusóes ideológicas que nos permitem tirar. A mestiçagem na sua versâo trópico-luso-brasileira - explica-nos, por exemplo, Gilberto Freyre5 - permitiu a criaçâo de urna cultura, pelo menos em parte, diferente; diferente da cultura européia por um lado, da cultura hispano-americana por outro. Urna cultura diferente, no ensaio de Freyre, significa entre outras coisas: urna cultura menos violenta, mais apropriada para a convivencia de individuos de raças distintas. Mas a representaçâo da historia brasileira em Viva opovo brasileiro nâo corresponde a este modelo idílico: assim, por exemplo, o conceito de "antropofagia", no segundo capítulo, é tomado ao pé da letra. Nâo há dúvida que a pràtica do caboclo Capiroba de alimentarse de homens constituí um exercício culturalmente básico da violencia que Ubaldo Ribeiro nâo hesita em encenar com certo gosto cínico: o caboclo, para se poupar o trabalho de caça, começa a enjaular os holondeses que nâo sâo comidos mediatamente e a ensinar-lhes também a pràtica da antropofagia. A liçâo de aculturaçào-ao-revés - por assim dizer - nao se limita, contudo, a isto, porque é certo que: o caboclo Capiroba [dado o caso de que o holandés Sinique continuava a sacudir os mouròes de sua jaula] foi obrigado, bem a contragosto porque tinha fumado erva de cabeça e quería ficar

"Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contacto e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos na extensâo de dominio colonial e na eficacia de acçâo colonizadora. A miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses se compensaram da deficiencia em massa ou volume humano para a colonizaçio em larga escala e sobre áreas extensissimas. Para tal processo preparara-os a íntima convivencia, o intercurso social e sexual com raças de cor, invasoras ou vizinhas da península, urna délas, a de fé maometana, em condiçôes superiores, técnicas e de cultura intelectual e artistica, à dos cristàos louros" (Freyre 1957:22).

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quieto espiando as árvores, a quebrar um dedo de cada mào dele. Evitava também assim que Sinique, cujos modos agitados e algaravia incessante já começavam a irritá-lo, cavasse um buraco para desalojar os mourôes, como chegara a tentar. (Ribeiro "1994:50) Contudo, a liçâo de antropofagia nao só se dirige ao maltratado holandés Sinique, como também ao leitor. E certo que o cinismo cruel da cena nâo é superior ao cinismo de toda urna série interminável de atos de barbaridade, segundo a informaçâo dos capítulos seguintes, próprios da historia do Brasil em geral. De fato, é urna historia caracterizada pela violencia, ou melhor, caracterizada, antes, pela racionalizaçâo da violencia, o que é pior. O que é representativo desta historia, na perspectiva do romance, nâo é só - por exemplo - a pràtica bárbara de mutilaçâo e de violaçào dos escravos, descrita varias vezes com todos seus detalhes repugnantes (Ribeiro131994:113), como também a crueldade e a irracionalidade das freqiientes guerras testemunhadas por antigos combatentes tâo dissímiles como o negro Budiâo (Ribeiro "1994:312), o voluntario Zé Popó (Ribeiro 131994:479ss.) e, finalmente, o já citado oficial Patricio Macário. Por isto, a antropofagia descrita no segundo capítulo quase aparece como um ato fundador.

IV. Quai é a estrategia estética do autor para denunciar o paradigma da violencia? Consiste principalmente - em um paradoxo: à primeira vista, o texto parece justificar o exercício da violencia em qualquer urna de suas formas, pois todas as cenas de violencia sao sempre apresentadas através da perspectiva do protagonista respectivo. O que é apresentado assim nâo é só o ato da violencia em si, como também a sua racionalizaçâo, quer dizer, a sua justificaçâo ideològica. Por outro lado, nâo só a polifonia e a incongruencia das perspectivas como ainda a irritaçâo devida à representaçâo nua da violencia exercem um efeito imediato sobre o leitor. Em principio, trata-se da mesma situaçâo em que se encontra o leitor dos dois romances de Vargas Llosa que acabamos de apresentar: Ubaldo Ribeiro está de acordo com o escritor peruano sobre a inexistencia de urna verdade absoluta. O que existe, pelo contràrio, é o fato irrecusável da violencia. Frente a este fenómeno, no entanto, Ubaldo Ribeiro nâo se contenta em escapar-se na ambivalencia estética da posiçâo de um "mentir con conocimiento de causa"; antes, propôe uma soluçâo ética em termos explícitos. Entâo, onde esta ética se expressa com clareza é no assassinato de Vevé, mâe de Maria da Fé, pelos quatro jovens brancos, ou seja, na subseqüente execuçâo destes pelo pai adotivo de Dafé, o negro Leléu. Surpreendentemente, Dafé nâo aprova a açâo de vingança de seu protetor: [...] nào sorriu e comentou com seriedade que, se os homens morreram sem saber por que estavam morrendo, de pouco adiantara a vingança. Era preciso que aquilo tivesse sido um exemplo, nào só para eles como para os outros. (Ribeiro 131994:372) E um pouco mais adiante acrescenta:

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Walter Bruno Berg [...] que se houvesse justiça ele nâo teria precisado fazer aquela coisa inútil, se arriscar por nada, por urna coisa que nem Ihe devolverà a mie, nem lhe apagara a humilhaçâo e o terror, nem ia prevenir a repetiçâo do que acontecerá. (Ribeiro 13 1994:372)

O que nos parece decisivo é que o conceito de justiça proposto pela guerrilheira näo corresponde exatamente ao esquema de dialéctica "revolucionaria" no sentido - digamos marxista-leninista, senäo à realizaçâo de um conceito que nos escritos do jovem Hegel se denomina "Das sittliche Verhältnis" ("A relaçâo ética") (Habermas 1969:16), quer dizer segundo Hegel - , corresponde ao resultado de um processo dialético do reconhecimento mùtuo ("Kampf um Anerkennung"). O modelo social em que Dafé está pensando nâo consiste na transformaçâo simples e mecánica de "servos" em "amos", antes, sim, numa mutaçâo muito mais difícil, ou seja, na transformaçâo de ambos, servos e amos, em irmâos. Justiça, pois, em forma de Irmandade, significa um tipo de relaçâo entre individuos em que a realizaçâo e a conservaçâo do pròprio eu têm como pressuposto o reconhecimento e a aceitaçâo do outro como outro e diferente, ou seja, respondendo a pergunta com as próprias palavras de Ubaldo Ribeiro: Existe a Irmandade, que é a Irmandade? [...] nào sabia nada muito explicado dessas coisas, mas sabia que a liberdade de um nào era nada sem a liberdade de todos e a liberdade nâo era nada sem a igualdade e a igualdade há que estar dentro do coraçâo e da cabeça, nâo pode nem ser comprada nem imposta. (Ribeiro 13 1994:312s.)

V. Como equilibrar os interesses divergentes dos individuos e assegurar assim a sua convivencia pacífica no interior de uma coletividade? Eis o problema básico de qualquer sociedade e também das que se encontram no centro dos très romances que acabamos de contemplar. No caso concreto do Brasil e do Peru, o problema encontra-se todavía redobrado por outro, que é aquele da identidade das culturas vernáculas. Com efeito, o que caracteriza as historias de ambos os países como um entrelaçamento quase ininterrupto de atos de violencia é o fato de nâo haver respeito frente ao problema da identidade das culturas vernáculas, atos de violencia que por sua vez provocam atos de legítima defesa, que nâo sâo outra coisa senâo novos atos de violencia. Tanto a guerra fratricida de Canudos no Brasil, assim como as diferentes tentativas de insurreiçâo no Peru sâo exemplos suficientes para evidenciar a pertinencia desta tese. Se é verdade que cada um dos tres romances apresenta uma soluçâo diferente para este problema básico, nâo há dúvida que também exista uma convergencia decisiva entre eles: nâo há nenhuma tentativa por parte dos dois escritores de justificar a violencia cometida na historia, nem contra, nem a favor das culturas vernáculas. A proposta ética destes textos nâo se refere, entâo, nem ao problema da identidade nem aquele da evitaçâo da violencia, provocada, esta última, - conforme os autores - tanto pelo fundamentalismo das culturas vernáculas, como pela falta de respeito frente à alteridade apresentada por elas. A soluçâo

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pràtica oferecida pelos dois escritores consiste no modelo de urna ética da universalizaçâo, manifestada, fundamentalmente, pela tecnica do perspectivismo. No que se refere às propostas estéticas respectivas das très obras, reparamos, no entanto, em uma diferença: enquanto Vargas Llosa contenta-se em contrapor os diferentes pontos de vista ao deixar ao leitor todo o traballio de decifraçao, a obra de Ubaldo Ribeiro apresenta, além disso, uma posiçâo ética em termos explícitos. O que se delineia, assim, é uma oposiçâo entre duas escrituras, duas maneiras de conceber o mundo por meio do texto literario, dois modos diferentes, sobretudo, de colocar a tarefa do escritor. Com efeito, a escritura de Vargas Llosa - pelo menos em La guerra del fin del mundo - volta-se para o passado: para um modelo de escritura realista, quer dizer, para um tipo de literatura chamado "ficcional", dependente inteiramente do ato criador do autor, o qual, no entanto, procura paradoxalmente afastar-se das linhas de sua criaçâo. É certo que em Historia de Mayta este modelo do narrador flaubertiano, apesar de tornar-se problemático, nâo deixa de manter-se. Em Ubaldo Ribeiro, pelo contrario, deparamos com uma estrutura em parte diferente: encontramos também o gesto do criador de um mundo com caráter de totalidade. O tema do romance já nâo é um episodio, por exemplo, a insurreiçào de Canudos, senâo a totalidade da história brasileira. A perspectiva que permite abarcar esta totalidade é constituida, todavía, por um conjunto de vozes em que a "verossimilhança" histórica casa-se com a invençâo poética, em que o humor é posto a serviço de uma ética decididamente republicana. Enfim, estamos na presença de um texto que transmite para além do gesto da criaçâo de totalidade, aquele do engajamento ético do sujeito de seu autor frente a uma realidade que é considerada como objeto de uma criaçâo perpétua.

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Bibliografia Berg, Walter Bruno (1994): "Revolución y religion en dos novelas de Vargas Llosa (Historia de Mayta y La guerra del fin del mundo)", in: Escritura y revolución en España y América Latina en el siglo XX. Madrid: Editorial Fundamentos, 1994, pp. 187-201 — (1995): Lateinamerika. Literatur •Geschichte •Kultur. Eine Einfuhrung. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft — (2000): "Funktion und Technik des polyphonen Realismus bei Vargas Llosas", in: José Morales Saravia (ed.): Das literarische Werk von Mario Vargas Llosa. Frankfurt/M.: Vervuert, pp. 37-54 Habermas, Jürgen C1969): "Arbeit und Interaktion. Bemerkungen zu Hegels Jenenser 'Philosophie des Geistes'", in: Technik und Wissenschaftals 'Ideologie'. Frankfurt/M.: Suhrkamp, pp. 9-47 Figueroa, Dimas (1993): "Kulturelle Identität. Die Moderne und der Anspruch der Dritten Welt", in: Wem gehört Europa? Zur Dialektik ¿1er Modernisierung. Tüte, Sonderheft. Mössingen-Tahlheim: Talheimer, pp. 78-82 Freyre, Gilberto (1957) [1933]: Casa-grande & senzala. Formaçâo da familia brasileira sob o regime de economia patriarcal. Lisboa: Ediçâo «Livros do Brasil» Labov, William; Waletzky, Joshua: (1973): "Erzählanalyse: mündliche Versionen persönlicher Erfahrung", in: Jens Ihwe (ed.): Literaturwissenschaft und Linguistik. Vol. Π. Frankfurt/M.: FAT 2060, pp.78-126 Reisz de Rivarola, Susana (1986): Teoría literaria. Una propuesta. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, Fondo Editorial Ribeiro, Joäo Ubaldo ("1994) [1984]: Viva opovo brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira Todorov, Tzevetan (1982): La conquête de l'Amérique. La question de l'autre. Paris: Editions du Seuil Vargas Llosa, Mario (1981): La guerra delfín del mundo. Barcelona/Caracas/México: Ed. Seix Barrai Vargas Llosa, Mario (21984): Historia de Mayta. Barcelona: Seix Barrai. Biblioteca Breve Voltaire (1964): Dictionnaire philosophique. Paris: Garnier-Flammarion, n e 28

Ellen Spielmann

Imagens, mídia, rituais dinámicas culturáis no Brasil e na América Latina

O comentario de Umberto Eco, de que o lugar certo do filósofo hoje deve ser a discoteca, provocou o mundo académico. A prova de que tal apreciaçâo seja válida apresenta, por exemplo, o Simposio Internacional no Rio de Janeiro em 1994 sobre "Sinais de turbulencia: cultura e globalizaçâo na virada do século", que contou com a participaçâo de grandes nomes: James Clifford, Jean Franco, Néstor García Canclini entre outros, pois o campeäo dos conferencistas foi DJ Malboro, um jovem disc-jockey carioca. Ele teve sucesso nem tanto pela sua performance, mas sim pela descriçâo-anâlise concreta sobre o fenomeno dos bailes funk no Rio de Janeiro, a quai pode ser considerada de certa forma como a contribuiçâo mais atual para enfrentar o debate e o diagnóstico sobre a situaçâo dos anos 90 ñas megalópoles latino-americanas. Quai é exatamente esta situaçâo nova? O que acontece no campo da cultura? Quais sâo as experiencias culturáis e as práticas sociais? De que modo podemos descrever, analisar e situar fenómenos novos da cultura urbana? Quais sâo as hipóteses, categorías, noçôes, conceitos para compreender as turbulencias e opacidades do presente, para formular urna teoría que responda ao desafio da mutaçâo cultural? Dentro do projeto da crítica e teoría cultural brasileira e latino-americana, as pesquisas sobre os processos de urbanizaçâo em geral, e mais especificamente, sobre a cultura de massas, sobre a mídia com sua produçâo de imagens e vozes e a mudança do habitus na sociedade urbana, tornaram-se cruciais a partir dos anos 80. Os resultados podem ser descritos como antropología da megalópole de cunho histórico, sociológico e cultural. É notável que o espaço cultural e os fenómenos culturáis ganhem mais peso. Isto se explica em parte devido à implantaçâo da nova tecnologia da mídia eletrónica e às transformaçôes dos processos da (tele)comunicaçâo e, por conseqiiência, devido ao corte epistemologico junto à adaptaçâo de novos métodos e formas de análise. Pode-se constatar a mudança do paradigma dentro das disciplinas da área de comunicaçâo, da sociologia, da critica e teoria cultural. Nosso objetivo é analisar tanto as dinámicas culturáis dentro das transformaçôes e mudanças do pensamento sobre cultura, estética e politica, quanto o caráter das práticas sociais ligadas à constituiçâo das identidades urbanas e marcadas pela nova etapa de globalizaçâo. Na primeira parte do ensaio, procuraremos questionar e redefinir a noçâo da cultura definida históricamente pelo modelo da escritura. Analisaremos na segunda parte o surgimento do discurso tropicalista, nos anos 60, considerado como paradigma do novo mapa cultural. A Tropicália constituí um desafio maciço à crítica cultural. A crítica tradicional de cunho sociológico e literário nao teve condiçôes para lidar nem com a "reciclagem selvagem" nem com a preferencia tropicalista pela performance, pois esta crítica identificava cultura primordialmente com literatura (cf. Franco 1992:172). O debate cultural, por vezes

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polémico, sobre a Tropicália, desencadeado nos anos 70 e 80 será motivo de reflexôes que faremos na terceira parte do ensaio, onde analisaremos com base em modelos teóricos formulados pela crítica e teoria cultural brasileira e latino-americana os fenómenos funk e rap como pràtica cultural surgida na cultura urbana. O modelo teórico de apropriaçâo, estruturaçào e comunicaçâo de espaços sociais, culturáis e políticos será da maior importancia. Analisaremos os fenómenos referentes nem tanto sob os signos da nova tecnologia da mídia eletrónica/digital, e sim em relaçâo à questâo da construçâo de identidades. Discutiremos os modelos colocados pelos críticos brasileiros e latino-americanos e concluiremos com um balanço teórico atual. Quais sâo, enfim, as respostas oferecidas a esta questâo que ressurge na crítica e teoria cultural brasileira e latino-americana?

O fim de um ciclo "Temos de compreender que o espaço da cultura no Brasil hoje em dia é apropriado pela TV", comentou o jornalista, escritor e deputado federal Fernando Gabeira em 1994. Esta colocaçâo importante já é um consenso: cultura e TV se tornaram sinónimos, mesmo que exista um público diferenciado. O ensaísta mexicano Carlos Monsiváis ñas suas reflexóes sobre as duas potencias do firn do século - a fé e a mídia eletrónica - escreveu: La televisión divulga las convicciones y, de paso, las transforma en algo semejante y distinto. [...] La televisión en nuestros días, centro de las creencias y las idolatrías inexplicables, ni es creyente ni deja de serlo, es el precipitarse de imágenes que se disuelven en la indiferenciación, es la rutina que de pronto adquiere visos de zarca ardiente [...]. En la tele, la multitud pertenence al espectáculo de un modo que jamás prohijarán los templos [...]. (Monsiváis 1995:46s.)

A mesma direçâo toma o depoimento do filósofo de comunicaçâo Vilém Flusser no seu traballio sobre códigos visuais e acústicos na cultura metropolitana no Brasil: "Nos vivemos atualmente urna revoluçâo industrial que é incomparável com outras etapas" (Flusser 1992:196). Ele refere-se à volta do "poder da imagem", que é considerado a inquietaçâo do momento, como bem se manifesta nos títulos de estudos dos anos 90: Des pouvoirs de l'image (Marin 1993), Bildlichkeit (Bohn 1990), Bild und Kult (Belting 1990), La guerre des images - de Christophe Colomb a "Blade Runner" (1492-2019) (Gruzinski 1990). O acesso e a apropriaçâo do mundo moderno, o controle do social e a compreensâo da realidade funcionam em primeiro lugar pela circulaçâo e pelo intercambio de imagens. Nas descriçôes e diagnósticos sobre a problemática do mundo globalizado multimedial se destaca o momento da velocidade: "a cultura está sendo produzida e transformada em imagens de TV numa velocidade enorme" (Gumbrecht 1993:242). Os profetas da mass media se dividem segundo Umberto Eco - em dois grupos: "apocalípticos" e "integrados" (Eco 1992). Vilém Flusser prognosticou um apocalipse a prestaçôes para o futuro do Brasil, enquanto o antropòlogo Néstor García Canclini vê urna chance de acesso para os países "periféricos" sob a condiçâo de intercambio imediato através do vínculo à rede:

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[...] los artistas mexicanos, argentinos o brasileños pueden comunicarse no sólo con mil o diez mil compatriotas sino insertarse en los circuitos de un espacio cultural latino-americano, donde dialoguen con las voces e imágenes que nos llegan de todo el planeta. (García Canclini 1994:10) De modo nenhum desejaríamos tratar do debate sobre o fascínio e o perigo das imagens de modo exaustivo, ou especular sobre as manobras da política cultural referente aos efeitos dos processos da globalizaçâo cultural. Mas, sim, queríamos abordar questôes que tratam da revisäo de conceitos teóricos relativos à apropriaçâo e às dinámicas culturáis, por um lado, e das descriçôes concretas sobre as práticas culturáis na vida urbana, por outro. Segundo Jean Franco, o dilema epistemológico das teorías da televisäo e da mídia é o fato de separarem as questôes estéticas das questôes de cunho ideológico-político e económico-tecnológico, em vez de ligá-las na análise e no debate da mídia (Franco 1994). Com o processo do surgimento vigoroso das imagens eletrônicas e digitals vinculado à situaçâo do "control remoto" (Monsiváis 1995:58), o conceito da cultura históricamente definido pela noçâo da escrita sofre transformaçôes profundas. Segundo a opiniáo de teóricos dos estudos culturáis, estas mudanças, ou seja, os efeitos da relaçâo entre comunicaçao e cultura, chegam até mesmo a definir estruturas e conteúdos do espaço político e do espaço económico (cf. Martín-Barbero 1989). E sintomático o fenómeno dos chamados "presidentes de TV": os políticos representam heróis da TV como bem mostraram os casos de Fernando Collor no Brasil e Carlos Salinas de Gortari no México. Comparando-se isto com os atos teatrais de encenaçao de massas na rua durante a época do populismo de Perón na Argentina e de Vargas no Brasil, verifica-se que hoje a lógica segundo a qual funciona o espetáculo político-sócio-cultural é outra: nos tempos pós-modernos, o conceito de espetáculo nao se restringe ao momento característico da visibilidade social cumprido pela presença de corpo e voz, mas se desdobra na relaçâo entre pessoas mediatizadas por imagens que se acumulam. Dentro do contexto das pesquisas sobre a questâo das relaçôes modernidade-modernizaçâomodernismo, Alain Touraine, no seu livro Critica da modernidade (traduzido para o portugués em 1994), procura urna nova definiçâo da modernidade e urna nova interpretaçâo da nossa historia "moderna". Criticando o discurso anti-modernista, ele recorda antes de tudo o triunfo das concepçôes racionalistas da modernidade, apesar da resistencia do dualismo cristào, que animou o pensamento de Descartes, as teorías do Direito Natural e a Declaraçâo dos Direitos do Homem. O autor segue referindo o abalo, no pensamento e ñas práticas sociais, desta idéia de modernidade, que desemboca na separaçâo completa de urna imagem da sociedade como fluxo de mudanças incontroláveis no meio das quais os agentes sociais elaboram estratégias de sobrevivencia ou de conquista, e de um imaginário cultural pósmoderno. Finalmente, ele propöe redefinir a modernidade como a relaçâo carregada de tensöes entre Razâo e Sujeito, racionalizaçâo e objetivaçâo, espirito da Renascença e espirito da Reforma, ciencia e liberdade (Touraine 1994:12s.). Alain Touraine questiona: Como recriar mediaçôes entre economia e cultura? Como reinventar a vida social e em particular a vida política, cuja decomposiçào atual, quase em todas as partes do mundo, é o produto dessa dissociaçâo dos instrumentos e dos sentidos, dos meios e dos fins? Tal será mais tarde o prolonga-

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Ellen Spielmann mento político desta reflexào que procura salvar a idéia de modernidade simultaneamente da forma conquistadora e brutal que lhe deu o Ocidente e da crise que eia sofreu há um século. (Touraine 1994:13s.)

Quanto à situaçâo atual no Brasil, nossa hipótese é a de que os processos de integraçâo no "projeto da modernidade" se realizam diretamente pelos canais da mxdia telecomunicativa.1 Esse processo imediato, sem ter percorrido o caminho da industrializaçâo e alfabetizaçâo fonetica em massa, produz automaticamente formas e experiencias culturáis heterogéneas e diferentes. Esta hipótese implica, em primeiro lugar, que a noçâo de cultura definida e fixada pelo modelo histórico ocidental de escrita precisa ser questionada. Em segundo lugar, abrem-se um espaço novo e a oportunidade de pensar e repensar "o projeto aparentemente ilimitado do moderno" a partir de urna perspectiva latino-americana e, assim, intervir em nivel internacional. Trata-se de um empreendimento que, por enquanto, nâo se tentou realizar no campo das teorías da modernizaçlo de cunho sociològico, se pensarmos nas teorías de dependencia com seu conceito esquemático sobre a modernidade.2 Luiz Costa Lima chama a atençâo para o ponto fraco do debate no Brasil: a rejeiçâo de reflexòes filosóficas no entendimento e na definiçâo de cultura. Escreve eie em 1996: Seit der Unabhängigkeit haben lateinamerikanische Intellektuelle ihre jeweiligen Gesellschaften in erster Linie mit Hilfe eines soziologischen Instrumentariums interpretiert, das sie von jeglicher philosophischer Fragestellung freihielten [...]. So radikal auch die vom hispanoamerikanischen und brasilianischen Modernismus initiierte Umkehrung der Tradition ist, so wenig haben beide Bewegungen die Schwachstellen angegriffen [...]. Auf Dauer intakt geblieben zeigt sich diese Abwehr philosophischer Reflexionen in der gegenwärtigen Konjunktur deutlich. (Costa Lima 1996: 237)

A pergunta seria: quais sâo as transformaçôes se tomarmos em consideraçâo tanto a mudança de paradigma do meio da escrita para o meio visual, quanto a existencia e presença paralela dos dois modelos e, conseqüentemente, a mescla de temporalidades distintas, ou dizendo melhor "a nâo simultaneidade do simultàneo'': fòrmula feliz encontrada por Carlos Rincón para descrever o incremento das simultaneidades globais e título do seu livro de 1995 sobre "Postmodernidad, globalización y culturas en América Latina"? Ele inverte estrategicamente a equaçâo "da simultaneidade do nâo simultàneo" e assim questiona o dictum de Ernst Bloch que foi adaptado pelos críticos latino-americanos para analisar processos e fenómenos da sociedade latino-americana moderna segundo o conceito tradicional de espaço, tempo, sujeito e historia de serialidade cronológica e períodos homogéneos sucessivos da modernidade. A nova etapa do processo de globalizaçâo supôe um desafio que Carlos Rincón assume com suas reflexòes e hipóteses sobre a fase de aceleraçâo e de mutaçôes atuais, que trazem como conseqiiência o aumento das "independências locáis" e das "interdependencias globais" e que levam a situar o projeto moderno dentro de outros

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Vide entrevista com Jesús Martín-Barbero (Spielmann 1997:47).

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Cf. Fernando Henrique Cardoso: "Régimen político y cambio social", in: Norbert Lechner (ed.): Estado y política en América Latina, México: Siglo XXI, 1984.

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marcos referenciais. O decisivo é ver que nao se trata simplesmente de urna questäo de representaçôes distintas, como o sugeriram certas teorías pós-modernas. Segundo Román de la Campa, o estudo de Rincón "apunta ya hacia un nuevo rigor mucho más abarcador, tanto em términos de los estudios culturales como en un nuevo horizonte multidisciplinario del marketing globalizante en el cual la estética, la política y la economia se vuelven espacios inseparables" (Campa 1996: 698s.). Tal apreciaçao vale também para teorizaçÔes recentes que trabalham conceitos de "heterogeneidade" e "hibridismo", como também concepçôes da nova cultura urbana, tanto no livro Cidade partida (1994) de Zuenir Ventura quanto no livro Losritualesdel caos (1995) de Carlos Monsiváis. Voltaremos a esses conceitos na terceira parte do ensaio, e passamos agora ao discurso da Tropicália, considerado como paradigma do novo mapa cultural dos anos 60/70. Com uma leitura comparativa e contrastante entre a Tropicália e o movimento funk e rap gostaríamos de indicar em seguida que estamos vivendo uma nova etapa com mudanças e diferenças marcantes.

Tropicália: cultura de exportaçâo Caetano Veloso, Glauber Rocha e Hélio Oiticica sao considerados figuras fundadoras da Tropicália, cujo auge situa-se entre 1967 e 1972. Como tropicalistas classificam-se produtos artísticos tais como: o Cinema Novo Brasileiro,3 os objetos e instalaçôes de Hélio Oiticica, sambas e arte de performance de Caetano Veloso e Gilberto Gil, os rituais do palco do Teatro de Oficina e Teatro de Arena,4 e também os de literatura,5 que apareceram no ámbito internacional. O quâo difícil é tentar abranger o fenómeno Tropicália - na sua heterogeneidade e no seu caráter híbrido - se manifesta bem ñas matérias discursivas e narrativas, apoiadas em definiçôes contraditórias como: "realismo agressivo" (Antonio Candido) e "anti-arte" (Mário Pedroso), de um lado; e "arte alienada" e "pequeno-burguesa" (Roberto Schwarz) de outro. Dentro do campo do discurso tropicalista, encontram-se descriçôes concretas perceptivosensuais sobre o "aqui" e "agora", um diagnóstico adequado sobre o presente, que funciona como resposta atualizada face à explosäo urbana da modernizaçâo instalada de maneira maciça em 1964 com o "Estado militar".' Usando a noçào "modernizaçâo" pretendemos

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Ao lado de Terra em transe de Glauber Rocha, trata-se de Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade, o filme cult do Tropicalismo. Na sua onipresença de herói do romance e do cinema, e também celebrado no palco, eie superou-se para se tornar o fetiche da Naçào. Pensamos nas produçôes O rei da vela e Roda viva de José Celso Martinez Correia, que iniciaram a Tropicália. Tiradente de Francesco Guarniere e Augusto Boal pôs em pràtica o programa do "eclecticismo dos géneros e estilos" do "Teatro de Arena". Me seguro qu'eu vou dar um troco de Waly Salomào e Urubu-Rei de Ramiro de Matos foram publicados em 1972. É sintomático deste processo o desenvolvimento saltante da mídia eletrônica que forma o setor de peso da indùstria cultural em via de se estabelecer. Em 1962, por pressào dos militares, foi fundada

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aquí destacar os efeitos da instalaçâo do modelo de consumo frente à introduçâo de um novo hábito. Trata-se de urna reflexâo sobre processos complexos nas condiçôes tecnológicas e de mass media referentes às experiencias de tempo, espaço e dinheiro na vida metropolitana,7 nos quais o momento da velocidade rem um papel crucial. A profunda mudança social e cultural nas metrópoles de "Primeiro" e "Terceiro" Mundos é significante m performance da mùsica. Jean-François Lyotard chamou a atençâo, no seu estudo de 1973, para o papel central da música na instalaçâo da sociedade de consumo, destacando sua presença no dia-a-dia: o banho permanente do homem através do ràdio e da TV. Em sua inserçâo no sistema, caracterizado pela circulaçâo de produtos, a música comercializada iria transformar os afetos e a representaçâo das energías em valor comercial {Tauschwert). Assim, esta produçào - segundo Lyotard - pretendería e efetuaria a exploraçào inesgotável dos desejos.8 Mesmo que a Tropicália tenha surgido paralelamente à primeira vanguarda americana (teorizada esta por Susan Sontag como "nova sensibilidade" e batizada por Leslie Fiedler com o nome de "pós-moderna"), eia nâo pode ser reduzida a arte de açâo e arte de protesto. Nossas reflexôes sobre a Tropicália, com o fito de situá-la e descrevê-la, orientam-se pela diferença. Queríamos marcar a diferença entre a Tropicália e a cultura pop norte-americana e européia. Quai é a diferença entre a situaçâo no Brasil e na Inglaterra dos anos 60? Referimo-nos à Inglaterra dos Beatles, aos Estados Unidos de Bob Dylan de Woodstock, evento que ganhou continuaçâo no rock, a música das cidades-de-cimento dos subúrbios? Ou ainda: o que é o excepcional na "música popular" dos tropicalistas em comparaçâo à música pop norte-americana folcloristica, ligada ao movimento hippie, com sua nostalgia pela Natureza e sua atitude anti-desenvolvimentista? Nossa hipótese é de que se trata de manifestaçôes culturáis, nas quais apesar da orientaçâo transnacional - a Tropicália é hipermoderna, os tropicalistas estâo fascinados pela alta tecnologia, eles querem participar da modernidade - estào presentes e mostram virulencia práticas de cunho regional e local, como também a experiencia e os hábitos populares. De modo nenhum desejaríamos idealizar a "cultura popular"' no campo social; mas sim queríamos sublinhar que esta, na sua existencia e na sua extensâo naquilo que nao está - ou pelo menos em parte nao está - absorvido pelo mercado, mostra um potencial de contra-cultura.

a primeira rede nacional abrangente de telecomunicaçào. Cf. Renato Ortiz 1988 e Françoise e Michèle Mattelart 1987. 7

Vide o estudo de Carlos Rincón 1993, sobre a circulaçâo do capital cultural de hoje em dia.

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Cf. Avron/Lyotard 1973:35. Rincón, contrariamente, frisa que o resultado dos processos de comunicaçâo de massa "cannot be accounted for by simple-minded technological determinism, the mobilization of desire and fantasy in the context of a politics of distraction, or the promotion of a cultures of consumerism" (Rincón 1993:183). Refiromo-nos às consideraçôes de Jean Franco sobre a noçào "cultura popular". Eia remete para a diferença entre a existencia e o modo de lidar com as zonas de competencia do espaço popular e do espaço hegemônico. Cf. Franco 1982; e também Rowe/Schelling 1991.

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"Eu μ vim penteado da Bahia" Em 1964, no ano em que os Beatles viveram seu éxito, os "Baianos" Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Maria da Graça (Gal Costa) estrearam com o show no Teatro Vila Velha, em Salvador. A apresentaçâo de Maria Bethânia foi urna "descoberta" que resultou, no firn das contas, no sucesso dos "Baianos" nos centros culturáis do Sul.10 O ato provocador de inauguraçâo realizou-se em 1967 no "Festival de Música Popular Brasileira" em Sao Paulo, no quai os outsiders Caetano Veloso e Gilberto Gil foram premiados pelas suas músicas Alegría, alegría e Domingo no parque. O fenómeno da migraçâo de músicos-artistas baianos do norte para o sul merece certa atençâo. Eies aparecem em público com seus elementos de tempero erótico local, e produzem assim uma "arte de exportaçâo". Ε o caso de Dorival Caymmi: mudou-se em 1937 para o Rio de Janeiro e teve muito sucesso junto com Carmen Miranda nos anos seguintes na Europa e nos Estados Unidos. Isto também vale para o mestre da Bossa Nova, Joäo Gilberto, cuja música "Chega de saudade" (1958), com sua duraçâo de um minuto e 59 segundos, mudou toda a "música popular" e também influenciou o jazz. E vale, finalmente, para os "Baianos" da Tropicália. A "migraçâo" dos músicos baianos da "periferia" para o "centro" (do sul) ganha o status de paradigma na música. Há uma conhecida anedota sobre Dorival Caymmi no Rio de Janeiro. Eia mostra que aquela "competencia cultural" do local/regional funciona como resistencia contra o processo de comercializaçào crescente e contra o esvaziamento provocado pelos mecanismos dos meios de comunicaçâo. A anedota é a seguirne: Caymmi atrasou-se para sair de casa e ir à TV. No carro do seu amigo, o letrista e crítico Boscoli, este perguntou-lhe preocupado: "Nao vai passar nem um pente no cábelo?" Caymmi respondeu: "Eu já vim penteado da Bahia".11 Gilberto Gil escreveu depois uma música intitulada: Eu vim da Bahia}1

Tropicália: cultura metropolitana É na Zona Sul do Rio de Janeiro e nos bairros burgueses de Sào Paulo que se encontram os bares e clubes onde primeiro se instalou a Bossa Nova e, depois, a música da Tropicália.

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Maria Bethânia foi contratada ¡mediatamente para um show no Rio de Janeiro, seguido por gravaçôes de discos. Segundo os conceitos moráis da época, o seu irmâo tinha de acompanhá-la. Os "Baianos" foram juntos. Do Rio muda-se para Sào Paulo, onde faz sua carreira nos clubes e shows. Parece-nos notável o fato de ter sido através da descoberta e do sucesso de sua irmâ que Caetano conseguiu entrar no negocio musical do Rio de Janeiro e de Sao Paulo. Artistas transformaram-se em super-estrelas no papel de intérpretes - outro bom exemplo seria Elis Regina - , mas nao foram fundadoras do discurso, como foi Caetano no caso da Tropicália.

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Castro 1990:245.

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Em 1972, Caetano Veloso comentou, reconhecendo os propios limites do movimento, que "o Tropicalismo nao soube se aproveitar da existencia da Bahia e da cultura do carnaval de maneira esgotável e suficiente" (Veloso 1972:20).

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Trata-se de urna cultura surgida sob o signo das mudanças tecnológicas, de urna cultura produzida para o espaço urbano-industrial e para a classe média. O momento notável no processo de formaçâo da sociedade de consumo é quando a pergunta "à quai carnada cada um pertence?" perde a importancia face à questäo do comportamento, do gosto, das modas e dos desejos. No Brasil dos anos 60, num país marcado pelos saltos da modernizaçâo, constitui-se um novo tipo de comportamento - um novo hábito - na nova geraçào, com ênfase no momento da "curtiçào". Curtiçào é a palavra-chave.13 Eia serve para captar as novas reaçôes e para retrabalhar o conceito frente às experiencias que surgiram enquanto ocorria a mudança dos sistemas de recepçâo e dos sentidos como conseqüencia do processo de implantaçâo da nova tecnologia e da mídia. O historiador Nicolau Sevcenko indicou, no seu estudo sobre a cultura metropolitana no contexto da modernizaçâo dos anos 20, os efeitos anacrónicos que se observaram concomitantemente à implementaçâo das máquinas e à aceleraçào tecnològica emergente: regulamento, controle dos corpos e das energías e, ao mesmo tempo, a mobilizaçâo e intensificaçâo da imaginaçào popular que se manifestaram ñas atividades simbólicas.14 Esta observaçâo - a nosso ver - é válida também para os anos 60, mesmo que a intensidade e a amplitude do processo seja menor. A mobilidade no processo da construçâo, invençào e defesa da identidade cultural dentro deste espaço de modernidades em choque é a "música popular". Em analogia à bossa nova, o samba-rock como estilo musical híbrido enraizado na cultura da música popular pode ser entendido como intervençâo de ritmos, vozes, representaçôes corporais, iconografías contra o novo, contra o ritmo acelerado da vida na sociedade moderna de consumo. Riso, provocaçâo, carnavalizaçao, parodia, pastiche - a "grande arte da imitaçâo"15 - sâo as estrategias concebidas pelo Tropicalismo.16 O papel crucial está na corporalidade, na sexualidade e no erotismo. A ideología da "liberdade sexual", que circula internacionalmente, manifesta-se de modo pragmático no título da música de Caetano Veloso: É proibido proibir.17 O filme de François Truffaut Jules e Jim (I960), que representa e produz um novo estilo de vida, transforma-se em filme cult no

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Silviano Santiago descreve e amplia a noçâo, sublinhando o momento de oralidade: "Sen-si-bi-lidade de urna geraçào, sensaçào, divisor de aguas" (Santiago 1978:123). Curtiçào se dirige contra as posiçôes ideológicas de obrigaçào e responsabilidade tomadas pela geraçào dos predecessores dos angry young men e contra as forças da inteligencia académica institucionalizada. Ele fala do estado eufórico que acompanha a dança. Cf. Sevcenko 1992:72. Caetano Veloso sublinha a questäo discutida pelo Tropicalismo quanto à necessidade dos "subdesenvolvidos" imitarem as normas internacionais. Cf. Veloso 1972:20. Helio Oiticica representa da melhor maneira com sua arte popular de Parangolés, performanceobjeto-espaço-corpo-ambiente-enw'ron»i«ji-dança-ritual, as práticas da Tropicália. Cf. Helio Oiticica (1992). N o caso da música sobre a grafite do maio parisiense de 1968, trata-se de um traballio de encomenda pelo empresario Guilhermo Araújo, a qual, apesar de ter sido premiada, nào teve sucesso de venda. Caetano comenta sua composiçào assim: "Achei pouco criativa mas bonita. Até hoje só gosto do ritmo e partes do texto" (Veloso 1972:20).

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Brasil. 18 Sâo paradigmáticas para a nova ideologia do erótico as cenas de danças extáticas do filme de Glauber Rocha, que quase nunca sao mencionadas pela critica. As cenas, além de descreverem de maneira muita concreta e imediata o novo comportamento e o novo gosto surgido no panorama dos anos 60, sao urna resposta crítica frente às intervençôes de regulamento e de controle e sâo as novas formas de organizar os sistemas simbólicos e perceptivos da comunidade social na sua procura de novos parámetros, novas sensaçôes e de um novo ritmo para a moderna vida noturna metropolitana. O papel crucial do samba e o mundo do carnaval compreendido como representaçâo da vida sócio-cultural já foi repetitivamente observado.19 Richard G. Parker sublinhou no seu estudo de 1991 sobre a cultura da sexualidade no Brasil contemporáneo o caráter polimorfo de predileçôes sexuais estabelecido pelo contexto histórico, cultural e social. Nos campos onde se constrói o mapa erótico, consegue-se interromper e transformar pela potencia da imaginaçâo erótica tanto a ideologia de gender quanto o discurso sobre sexualidade na cultura brasileira.20 Parker mostra que os sambas populares da Tropicália, com seus atos de celebrar o corpo na sua visâo tropical do mundo de prazer, de jogo e extase, na sua subversâo e sua capacidade de ultrapassar os limites fixados entre o privado e o público, têm um papel crucial.21 Daremos, a seguir, um passo além na análise de urna nova e positiva avaliaçào da Tropicália.

Tropicália - discurso pós-colonial Urna leitura a partir de urna perspectiva atual necessita compreender a Tropicália como parte do discurso pós-colonial, o qual - ultrapassando as dicotomías já esgotadas do nacional e do universal - considera indiscutível o pressuposto de interpretar a cultura ocidental de outro modo. Certamente nâo se trata, nesta fase nova, do chamado diálogo transcontinental de criar algo original, auténtico, como foi o caso no Modernismo dos anos 20, com o qual a Tropicália se sente profundamente ligada. Diferente das operaçôes seletivas e da produçào prototípica dos modernistas, a Tropicália se contrapôe a isto com seus procedimentos e práticas de reciclagem. Num movimento de descentraçâo em nivel geográfico, lingüístico e musical,22 Londres e os Beatles sao declarados o centro do Brasil: "Minha terra tem palmeira

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A recepçâo dos filmes de Fellini, Godard e Antonioni é central para o projeto da Tropicália, como mostram cartas de Caetano Veloso. Cf. Folha de Sào Paulo, 9.8.1992. Vide, por exemplo, Da Matta 1979. Parker 1991:121-122. Cf. Parker 1991:152. Ele menciona como contribuiçào para a construçâo do novo mapa erótico do Brasil a música de Chico Buarque de Holanda "Nào existe pecado ao sul do Equador" (Parker 1991:138). Na sua interpretaçâo da versâo desta música como resposta critica e subversiva à crònica do século XVII de Barlaeus sobre a cultura tropical, Parker usa o modelo esquemático de inversâo, reduzindo assim as duas ordens moráis dos hemisférios norte e sul. Cf. Santiago 1978:124. É obvio que com este gesto - mesmo sendo altamente ironico - também se articula o desejo utopico de se "colocar no centro" e ter um grande futuro.

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onde badala o big-ben". Caetano mostra também com sua letra de música - Canto do exilio - o que aconteceu depois com o cenário da natureza no Brasil, natureza tao elogiada e celebrada desde o romantismo, quando a nova ordem de desenvolvimento e modernizaçâo começou a orientar o país. No caso da Tropicália, da famosa instalaçâo de espaçoambiente de Hélio Oiticica de 1967, pode-se mostrar muito bem o aspecto inovador e o excepcional do Tropicalismo: o visitante passeia pelo ambiente natural-tropical que é o parque do Museu de Arte Moderna do Rio. O caminho o conduz cruzando raizes cheirosas em forma de cesto e pedaços de plástico, ele atravessa um labirinto de espaços, cabanas de madeira construidas segundo a arquitetura da favela com sua arte de impovisaçâo até que ele finalmente chega em frente de um aparelho de TV ligado com som alto e tela cintilante. Oiticica dá-nos primeiro um diagnòstico do contemporàneo em forma de urna descriçào sensual da situaçâo paradoxal no Brasil de 1964: o choque da modernizaçâo na confrontaçâo de momentos pré-modernos e ultra-modernos é recebido ¡mediatamente pelo corpo, isto é, ele o faz visível, audível e sensível. Em segundo lugar, ele tematiza, fazendo perguntas ecológicas dentro da análise inovadora das relaçôes entre espaço e ambiente, os problemas que resultam da confrontaçâo entre Natureza e Civilizaçào. Oiticica trabalha na sua análise com as técnicas de arte mais modernas da mass media. A resposta de Oiticica ganha através da ênfase da perspectiva periférica - explícito na homenagem à arte de arquitetura de favela - urna dimensäo política e emancipatória. E urna crítica sem centro é urna crítica que descentra a cultura ocidental na sua lógica, funcionando segundo a noçào desenvolvimentista-progressista. A discussâo ocorrida nos anos 60 em torno da vanguarda e do moderno e do papel da Tropicália é paradigmática da situaçâo do Brasil. Isto fica obvio nos anos 70 e 80. Para situar o pensamento e as manifestaçôes em torno da Tropicália dentro do debate no campo dos estudos culturáis é necessàrio - através da indicaçào de seus elementos e características substanciáis - descrever o projeto megalopolitano da Tropicália. O discurso da Tropicália visto segundo sua meta é anti-autoritário, anti-hierárquico, anti-patriarcal, o que se manifesta ñas suas práticas de imitaçào e de reciclagem. A idéia da origem, do original e da autenticidade mostrou-se obsoleta. Nao se trata mais de defender ou inventar a árvore genealògica, a naçâo também nâo se coloca mais o problema da ligaçâo entre a tradiçâo e o moderno. 23 A discussâo vale para a nova situaçâo caracterizada pelas identidades múltiplas emergentes, o que é diferente da lógica política da mescla pensada como "historia natural". O interesse volta-se para o marginal e marginalizado, para o cotidiano, para o nâo-oficial, para o popular24 por um lado, e, por outro, para a cultura importada "sofisticada" das metrópoles. Diferentemente das práticas da cultura pop da vanguarda norte-americana - apropriaçâo reprodutivo-mimética da realidade - a pràtica da

Glauber Rocha comenta: "Para se decidir entre urna usina hidroelétrica e o banho de lúa no sertào nâo há dúvida, fica-se com os dois" (Santiago 1978:8). Neste ponto há um paralelo característico entre a Tropicália e a cultura pop dos Estados Unidos.

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Tropicália pode ser caracterizada como hiper-realismo25 ou como performance do reprimido. O decisivo do Tropicalismo é exatamente que ele nao se transforma em cultura dominante, mas sim desfaz e elimina os modelos que servem para construir os paradigmas culturáis no Brasil.26 Este gesto que, por exemplo, rejeita a separaçâo entre cultura erudita e cultura de massa, como também a de cultura européia e latino-americana, provocou reaçôes fortes contra a Tropicália por parte da crítica académica e das velhas instituiçôes.27 O debate em maior parte ideológico tem - a nosso ver - uma funçâo de pre-texto, pois trata-se em primeiro lugar de estrategias para ocupar e manter espaços culturáis e institucionais no Brasil. Com esta leitura, queríamos questionar os limites das estratégias da análise tradicional; pois abranger o fenómeno e permanecer fixado no instrumental da crítica ideológica, e assim trabalhando com a noçâo de cultura que está centrada na literatura, nao oferece condiçôes para se ver o que há de inovador e exepcional.28 Também as leituras feitas a partir da materialidade de signos, linguagem e imagem como as práticas na semiótica estruturalista nao servem para aprofundar a análise.29

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Segundo Serge Gruzinski as culturas latino-americanas podem ser descritas como culturas barrocas-neobarrocas. Ele parte da idéia de que elas funcionam de modo virtual segundo esta "lógica do hiper-real" no campo da "cultura popular" (Gruzinski 1991:8). Quanto ao status da imagem neobarroca no processo da TV e da mídia, Gruzinski afirma que "é completamente diferente a colonizaçâo publicitária e televisiva que se ventila hoje em dia sobre as comunidades e populaçôes alvejadas por uma modernizaçâo que nao permite nenhuma resposta nem tolera nenhuma escapatoria" (cf. Gruzinski 1992:206-207). A mesma direçâo toma o pensamento do filósofo de comunicaçâo Vilém Flusser no seu traballio sobre códigos visuais e acústicos na cultura metropolitana no Brasil. Cf. Flusser 1992. Ainda vale para a Tropicália 2 (show e CD), com a quai Caetano Veloso e Gilberto Gil celebram (e sâo celebrados), em 1993, 25 anos da Tropicália. O grande éxito do revival nâo enfraquece nossa hipótese. Caetano rejeita um conceito de cultura na base de nostalgia para superar subdesenvolvimento e dependencia: "Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas [...]. O que me interessou desde o inicio foi o problema da música comercial no Brasil". Reagindo aos fas do Festival da Cançâo Popular de Protesto, os quais insistiram na ideologia que diz que a cançâo serve como arma de luta para a liberdade, e que criticaram Caetano por causa da sua música rock considerada uma difamaçâo da tradiçâo da música popular brasileira, ele contradiz: "A verdade é que o festival é um meio lucrativo que as televisôes descobriram" (Veloso 1971). Vide as explicaçôes de Edgar Morin sobre os limites da análise lingüística da música (Morin 1973:145ss.). E mérito dos concretistas brasileiros terem descoberto os trabalhos da geraçâo jovem dos artistas da Tropicália e terem atuado em seguida como mecenas. Augusto de Campos foi o primeiro que chamou a atençào para a relaçào obvia entre a pràtica da Tropicália e a Antropofagia. Porém as análises "intra e intertextuais" deixam a desejar, porque sao orientadas segundo critérios válidos para os movimentos da vanguarda (cf. Campos 1974); a mesma crítica vale para as tentativas de Mário Pedrosa no seu ensaio de éxito sobre "arte pós-moderna" para situá-la (Pedrosa 1966).

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56 Tropicália entre "esnobismo de massa" e "celebraçào"

Na reconstruçâo do debate sobre a Tropicália, limitamo-nos sobretudo as opiniôes contrarias de Roberto Schwarz e Silviano Santiago, as quais sâo paradigmáticas para a pràtica da crítica cultural e das teorías desenvolvidas sobre cultura surgidas nos anos 70. O mérito de Roberto Schwarz é ter aberto o debate já em 1970, no auge da Tropicália.30 No seu exilio em Paris, ele publicou um ensaio polémico, no qual faz uma análise da produçâo artística cinema, teatro, música - de 1964-1969 sob critérios estéticos e ideológicos. O que faz exatamente? Na sua crítica da Tropicália, ele define o que é arte brasileira e o que nao é. O debate das teorías da dependencia funciona como pano de fundo para que Schwarz coloque a questäo das relaçôes entre estética e subdesenvolvimento.31 Para sua análise, para situar a Tropicália, ele constrói um modelo de leitura que parte da confrontaçâo benjaminiana entre símbolo e alegoría. Desta definiçâo serve-se Schwarz para a avaliaçâo e crítica do Tropicalismo, o qual, segundo ele, é alegórico: na medida em que parte do inventàrio pouco preciso e disparatado, a Tropicália contribuiría para "a idéia intemporal de Brasil" e produziria com seus "ready mades" do "mundo patriarcal e do consumo" o "anacronismo" de um "mundo absurdo".32 Schwarz faz um corte no campo da arte dos anos 60 que separa a apropriaçâo mimètica da realidade, a qual se revela na potencia simbòlica e estética revolucionaria de Deus e o diabo ria terra do sol (1964) de Glauber Rocha, por um lado, e do hiper-realismo de Terra em transe (1967), por outro lado, e de Macunaíma considerado apresentaçâo alegórica na qual a relaçâo entre imagem e idéia ficaria superficial e sem profundidade.33 Na sua leitura, ele privilegia uma arte entendida como instrumento para procurar a verdade e também como passaporte da identidade nacional. Schwarz insiste na autodefiniçâo de autenticidade, como também no conceito da estética revolucionária. Formas de narraçâo híbrida, popular, moderna, narraçâo da mídia de grande alcance - as apresentaçôes de

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Já em 1968, no auge do discurso anti-imperialista, ele situa o Tropicalismo como resultado das "manifestaçôes mais avançadas da integraçào imperialista internacional e da ideologia burguesa antiga mais ultrapassada" (Schwarz 1968).

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Schwarz formula très questôes que servem como estrutura do seu pensamento. Primeiro ele pergunta qual é o lugar social da Tropicália; a resposta polémica em seguida está encaixada na segunda pergunta: quais sâo os conteúdos desse "esnobismo de massas"? A terceira pergunta refere-se à base histórica da "alegoría" tropicalista. Schwarz encaminha o procedimento a seu mestre Antonio Candido. Resta considerar que o pensamento de Candido (sào comentarios curtos) - ao contràrio do de Schwarz - é marcado pelo caráter aberto, dando espaço ao fenomeno da Tropicália sem a reprimir (Candido 1981).

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Schwarz 1978:155.

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As apresentaçôes espetaculares do Teatro de Oficina com sua compreensâo de teatro como ritual sâo descritos por Schwarz de maneira certa como "hiper-real", mas para ele este "naturalismo de choque" fica ideologicamente sem valor nenhum, além do mais que tematicamente se trata de "dinheiro, sexo e nada mais* (Schwarz 1978:87).

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Caetano Veloso e Gilberto Gil - sao (malentendidas por Schwarz e, assim, julgadas como poder destrutivo da mídia.34 A cultura emergente de mass media de horizonte internacional questiona a auto-descriçâo de identidade nacional ou latino-americana considerada periférica de maneira forte e, além disso, confronta a crítica académica, a qual permanece pensando em termos tradicionais de literatura, com formas narrativas da mídia. Frente as "fantasmáticas do corpo", do escandaloso, do obsceno da iconografia tropicalista, frente às imagens com seu ritmo heterogéneo e híbrido que chegam a mostrar virulencia em Macunaíma, segue-se urna reaçâo forte de rejeiçâo, como analisa Luiz Carlos Maciel.35 Silviano Santiago é um dos primeiros a questionar e superar esta constelaçâo entre ser fâ e nâo-fâ que tinha alcançado status de paradigma.36 Sua leitura celebra a Tropicália na sua heterogeneidade e no seu caráter híbrido, percebendo as estrategias inovadoras de reciclagem, do pastiche, como também o surgimento de géneros nao canonizados dentro do ramo de intercambio de conhecimento cultural, compreendendo-os como resposta atual e contemporánea frente às mudanças.37 A confrontaçâo das manifestaçôes muito diversas de Schwarz e Santiago serve para situar a Tropicália e descrever as diferentes aproximaçôes. Os resultados de análise dos trabalhos da crítica cultural servem para poder falar dos problemas ao redor e da mudança de perspectiva como também do gesto da descentralizaçâo no panorama cultural e ñas teorías culturáis emergentes. Santiago fala, a propósito do prefacio do estudo cultural e político de Gilberto Vasconcellos, sobre "música popular" e dá assim urna resposta direta ao ensaio crítico muito lido de Roberto Schwarz. O debate gira em torno de très temas complexos e serve paralelamente para marcar as possibilidades e os limites da crítica de cultura de cunho sociológico. Santiago mostra, primeiramente, como é reduzido e insuficiente o resultado final quando se pratica abrangentemente urna crítica ideológica ñas descriçôes dos objetos e das situaçôes. Quando as referencias sâo feitas em nivel ideológico, os momentos decisivos - aqui o potencial subversivo da música popular urbana - sao reprimidos.38 Santiago mostra, em

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Pejorativamente qualifica o Tropicalismo de: "exibicionista", "esnobismo de massas", "populista" e "fascista" (Schwarz 1978:74-76). Cf. Maciel 1976:59. E interessante observar que esta polémica continua até hoje. Prova disso é o debate a propósito da inauguraçâo da primeira retrospectiva de Hélio Oitica em Rotterdâ em 1992, da qual participaram Waly Salomäo como representante da Tropicália, a artista Ligia Pape e o crítico de arte Rodrigo Naves. Santiago parte da seguirne questâo: por que a Tropicália ficou marginalizada e reprimida pela crítica até os anos 70? Cf. Santiago 1978. Há que se sublinhar que Santiago introduz o debate sobre heterogéneo e híbrido no momento em que essas categorías de descriçào ainda eram consideradas negativas. Schwarz parte no seu ensaio da situaçào concreta do golpe militar. Ñas suas descriçôes sobre as reaçôes ¡mediatas ao acontecimento, ele admite que a música popular tenha um papel importante. Ao mesmo tempo, ele classifica esta música - por causa do seu sucesso pela mídia - como populista e em conseqüéncia politicamente sem valor ou contra-revolucionária. Assim Schwarz traz urna atitude dogmática e pessimista, que ele mantém em 1978 quando publica o mesmo

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segundo lugar, que a pràtica de assumir conceitos do discurso científico europeu ocidental sem tomar urna posiçâo crítica - nao serve para resolver o problema da avaliaçâo da Tropicália. Segundo ele, Schwarz se colocaría com esta estrategia de nomeaçâo numa posiçâo eurocentrista. Em terceiro, Santiago, com sua problematizaçâo sobre a relaçâo entre artistas e teóricos, chama a atençao para a instituiçâo da pròpria crítica, a qual, na sua forma académica, nao tem flexibilidade nenhuma na aproximaçâo aos fenómenos novos. A crítica cultural, enriquecida por um cunho sociológico, equipou-se para tentar esclarecer o problema do autoritarismo nao somente através da instalaçâo do modelo capitalista e dos projetos repressivos da ditatura. E dirigiu-se à esfera da "cultura popular", mas topou com seus próprios limites ao nao conseguir definir a forte ligaçâo desta cultura popular com a cultura de mass media.39 Ficou mais do que obvia a urgencia da mudança de paradigmas ñas estratégias de análise para pesquisar o campo dos novos discursos metropolitano-culturais que estavam surgindo, os quais tornaram os trabalhos transdisciplinários necessários.

Mudança de paradigmas: teorías culturáis Este passo foi dado na segunda metade dos anos 80 em trabalhos que se preocuparam com a complexa problemática da questâo das relaçôes modernidade-modernizaçâo-modernismo, procurando descrever e definir os caminhos tomados pela modernidade no Brasil e na América Latina. 40 Ε o momento em que o debate sobre o pós-modernismo, iniciado como tal no Brasil em 1984-1985 (Rincón 1995:107-134), se voltou de maneira "decidida" para as teorías da cultura (Spielmann 1996). O livro de Néstor García Canclini, Culturas Caminos para entrar y salir de la modernidad

híbridas.

(1990) resume o debate entre os cientistas

sociais e foi escrito na busca de um método e de um caminho para sair da crise (cf. Franco 1992a; Kraniauskas 1992). Os trabalhos de Jesús Martín-Barbero, De los medios a las mediaciones. Comunicación,

cultura y hegemonía (1987) e Procesos de comunicación y matrices de

cultura. Itinerario para salir de la razón dualista (1989) sao, entre outras, contribuiçôes que podem ser vistas como resultados plenos da mudança de paradigmas. Este autor sublinha, em primeiro lugar, o "social" como criterio de estruturaçâo e determinaçâo desta descentra-

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ensaio no Brasil sem revisar essa posiçâo. Ele meramente anota que a situaçâo histórica tinha mudado. Paralelamente ao ensaio de Schwarz, essa critica também vale para o caso de Mario Pedrosa em seu ensaio Arte eulta e arte popular (1975). Cf. também, Brito 1972a/1972b. Mencionamos aqui ainda dois estudos sobre fenómenos novos culturáis dos anos 60, que fazem parte do projeto iniciado nos anos 80: o remapeamento da cultura. Citamos, entâo, o trabalho cinematográfico de Ismael Xavier Alegorías do subdesenvolvimento, sobre o panorama cultural dos anos 60, e Sentimentos da dialética de Paulo Arantes, que é urna revisäo da pràtica no campo dos estudos culturáis nos anos 60. Vide os trabalhos de Ortiz 1988. Vide também a fórmula encontrada - diferentes maneiras de repensar a modernidade - na entrevista com Jesús Martín-Barbero em 1997.

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lizaçâo. O ponto de destaque sâo as formas e os modos pelos quais os sujeitos produzem e reproduzem suas vidas cotidianas e compreendem sua realidade. Em segundo lugar, conforme Martín-Barbero, o rito e a ritualizaçâo representam o modo pelo quai as açôes se interligam para formar eixos espaciais e ritmos temporais. Em terceiro, dentro dos processos da comunicaçâo, o corpo e as tecnologías da mídia massificada sâo partes constitutivas de igual peso. As inovaçôes tecnológicas estäo interligadas aos processos de percepçâo da realidade em nivel estético (aistético) e às experiencias sociais. Com este esboço teórico se abre um novo caminho para avaliar o fenómeno funk/rap.

O s rituais dos funkeiros e rapers cariocas Sem dúvida, o movimento funk e rap sâo as formas mais representativas da atual cultura global.41 Nesta nova fase de globalizaçâo cultural, a dinàmica de apropriaçâo cultural é outra: surge o fenòmeno das "correntes de capital cultural" e do "capital multicultural". As mudanças dos processos culturáis ocorrem de urna maneira tao acelerada que nos vemos na impossibilidade de formular teorías sistemáticas. No caso do funk e rap se trata de um fenòmeno de hibridismo por excelencia ñas culturas urbanas emergentes. É um caso paradigmatico da erosâo do modelo tripartite entre a cultura de elite, a cultura de massa e a cultura popular. Escreve Néstor García Canclini: Esta coexistencia complexa [...] deixa-se explicar [pelo] fluxo da comunicaçâo e em seguida [pelos] processos do hibridismo nos quais se constituem hábito e comportamentos [...] esta estruturaçâo transnacional da cultura nao pos fim nem ao questionamento do nacional nem às contradiçôes entre os grupos hegemônicos e subalternos ou classes. Mas sim veio colocá-las num registro diferente, o quai é híbrido e multifocal. (García Canclini 1991:102; traduçâo nossa)

Como conceito estratégico para contradizer conceitos de essencialismo, identidade como noçâo ontològica, a descriçâo pelo processo de hibridismo nâo podia ser mais valida. Mas surge a pergunta sobre se "hibridismo" como modelo teórico pode dar conta analiticamente do fenòmeno de constituiçâo de identidade na base da sua mudança continua. O movimento funk se iniciou por volta de 1985 com a música e a dança nos morros e na periferia do Rio de Janeiro42 (e Sào Paulo) e se tornou, desde os anos 90, um dos mais importantes movimentos culturáis, sociais e políticos de massa. Sâo um milhâo e meio de jovens, na maioria negros, que se encontram nos bailes funk todo fim de semana. Sâo moças

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Cf. Michael Quinn: "Never should been let out the penitentiary's gangsta rap and the struggle over racial identity", in: Critical Inquiery, Fall 1996, pp. 65-87.

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Vide o estudo fundamental de Hermano Vianna: O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988; e o trabalho sintético de Jorge Yúdice: "The Funkifikation of Rio", in: Andrew Ross; Tricia Rose (ed.): Microphone Friends. Youth Music & Youth Culture. New York/London: Routledge, 1994.

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e moços na idade de 12 a 20 anos43 que participam deste movimento formado pelas galeras, grupos que se reúnem em diferentes vizinhanças e entram em rivalidades e choques violentos entre si. Estas turmas criam urna estética pròpria, um estilo pròprio da vida, códigos e rituais de comunicaçâo próprios. Temos por um lado o livro celebrado Les temps des tribus. Le déclin de l'individualisme dans les sociétés de masse (1988) do sociólogo francés Michel Maffesoli. Ele chamou a atençào ao fenómeno da formaçâo das gangues e do hábito ritualizado - atos de "celebraçâo" e de "experimentaçâo" de práticas sociais e culturáis dos jovens ñas megalópoles. Temos, por outro lado, o estudo brilhante do sociólogo brasileiro Zuenir Ventura - Cidade partida (1994). Ele analisa o conflito e a questâo da cidadania, a vida cotidiana no Rio de Janeiro através das categorías do espaço simbólico-cultural norte/sul - como também através da historia da "mentalidade carioca". Ao contrario da segregaçâo étnica de Los Angeles, Nova York e Paris, a do Rio - segundo ele - é urna segregaçâo social. Para soluçâo do conflito desastroso entre o "Rio noir" da Zona Norte em oposiçâo ao "Rio solar" das praias da Zona Sul ele propòe com certo pragmatismo: o Rio tem que unir suas metades. Seria um caminho adotar os modelos de análise baseados no esquema de dicotomías clássicas de hegemonía e opressâo, elite e povo, negro e branco, adulto e jovem, e assim proporcionar urna compreensào dos signos e da sua estruturaçâo social. Poderia situar-se dentro da linha histórico-tradicional do movimento popular, social de protesto: das torcidas, blocos de carnaval, escolas de samba, times de futebol, pois há urna ligaçào evidente. É óbvio que existe o problema de a sociedade carioca assumir que a cara do Rio nos anos 90 seja o funk - alias, Gilberto Gil tematiza isto na música do disco Parabolo camara. Parece repetir-se o que aconteceu um século atrás com o samba - quando os bailes de escolas de samba eram o espaço exclusivo do negro. Nos anos 90 os filhos dos sambistas famosos sao roqueiros, funkeiros, e rap, funk, hip-hop já ocupam seu espaço no carnaval carioca. Porém, há diferenças marcantes entre o surgimento do samba e o do funk tanto em nivel de apropriaçao e comunicaçâo do bem cultural entre os grupos sociais, quanto em nivel de construçâo de identidades. Há décadas o Rio nâo se reduz mais a grupos sociais de categorías tradicionais, e nos anos 80 houve urna explosäo dos mapas sociais bem delimitados. A cultura política criada e representada por diversos grupos, a qual se comunicava e divergía em grande parte através da música, entrou em choque. Isto se manifesta na batalha pelos espaços públicos da cidade: as praias da Zona Sul, os pontos tradicionais de encontro de geraçôes de favelados e moradores dos bairros do Leme, Copacabana, Leblon, tornaram-se campo de batalha. A presença forte de grupos negros da Zona Norte que vêm em "tribos" e praticam seus rituais turbulentos sao considerados responsáveis pelos "arrastoes" e tumultos violentos em lugares públicos, como ñas praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. E há a desagregaçâo dos mapas sociais, ligada ao bloqueio do mecanismo regulador da música como motor da comunicaçâo e do entendimento junto com novas formas de produçâo, circulaçâo e recepçâo de cultura - as "correntes de capital cultural" - e a fragmentaçâo até

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Cf. Jornal do Brasil, 19.12.1992.

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a pulverizaçâo das identidades tradicionais que responde à globalizaçâo de gestos e estilos de vida. A esse respeito destaca-se o traballio brilhante de Carlos Monsiváis. Nas suas crónicas sobre o México ele mostra como funcionava a construçâo de identidade cultural nos tempos modernos: [...] la cumbia, el merengue, el vallenato, la rumba, lo que al movilizar las caderas a la antigüita evoca la sentencia de la publicidad: eres latino y tu sangre es liviana y ardiente; eres latino y te gusta entender lo que oyes [...]; eres latino y sabes que en la lista de los prestigios contemporáneos, lo tropical está por debajo del rock, pero al lado de la sensualidad directa y ventajosa. (Monsiváis 1995:114)

O cenário de uma discoteca nos anos 90 é outro: "No es posible hablar/Aquí no se viene a hablar. [...] No es posible oír/Aquí no se viene a oír [...]. El sonido borra la distinción entre voz humana y orchestra, entre disc-jockey y grabación, entre vocalización y terremoto" (Monsiváis 1995:118). Segundo Monsiváis, a América Latina e vastos setores hispanos nos Estados Unidos se deixam unificar pela operaçâo de gosto que atua sobre a música popular, o humor infantil dos adultos, o estilo de conversar ou de revelar os segredos mais íntimos, as aproximaçôes à moda, como também por outros gostos de música como o funk e rap (Monsiváis 1995:206). O passo decisivo é que Monsiváis já nao fala da manipulaçâo da mídia, da indùstria cultural, a qual nao considera o elemento determinante, mas sim da sociedade de espetáculo.

A sociedade de espetáculo Críticos da escola inglesa de estudos culturáis desenvolveram modelos convenientes de análise para a nova cultura urbana. Pensamos em Dick Habdige e seu estudo Resistance Through Rituals, que parte do modelo de hegemonía e da fòrmula caos - normalidade do espetáculo. Carlos Monsiváis, no seu livro Losritualesdel caos, inverte a equaçâo caos - normalidade do espetáculo - que ele considera errada - mostrando a força liberadora da "diversâo genuina, da ironia, do humor, do gozo" (Monsiváis 1995:16). O livro mostra que o esquema da hegemonía nao serve para proporcionar a compreensäo profunda das diferenças e da liberaçâo dos signos da sua estruturaçâo social. O decisivo é que ele vê o concetto do espetáculo nâo como fluxo e coleçâo de imagens, mas sim como relaçâo entre pessoas mediatizadas por imagens, de maneira que a vida se torna uma acumulaçâo de espetáculos. Assim, ele assume o desafio da análise cultural atual. Segundo ele, é preciso achar caminhos para subverter esta lógica do espetáculo. O momento decisivo desta operaçâo é que Monsiváis resolve narrativizar as formas de diversâo-subversâo encontradas nas práticas sociais e culturáis. A força liberadora encontrada nas narraçôes urbanas, nos ritos instantáneos, nos espetáculos-concertos de um cantor de bolero Luis Miguel, de Sting, da cantora juvenil de TV Gloria Trevi, lembra em certos momentos o gesto-movimento de détournement e a dérive das formas descritas por Guy Debort no seu celebrado livro La société du

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spectacle e adotado por Jean-François Lyotard e Jean Baudrillard na época.44 Com suas crónicas sobre a vida cotidiana no México, Carlos Monsiváis se coloca numa situaçâo de proximidade e imersäo completa nos fenómenos, encontrando-se fora e além da praxis académica e subtraindo-se em boa medida das formulaçôes teóricas. O que, entäo, teria conseguido o debate teórico sobre os novos fenómenos da cultura urbana até meados dos anos 90? Sobretudo encaminha-se para superar de maneira radical as velhas posiçôes. Resumindo e marcando os passos mais importantes (cf. Spielmann 1996): entre 1976 e 1979 terminou na América Latina um ciclo literário-cultural que se desenvolveu desde os anos 20. Prova disso é que a produçâo literaria, a literatura do boom, assimilada à cultura erudita, havia chegado ao seu fim. Mas as energías sociais reprimidas entraram através de novas estratégias num ampio processo de "articulaçâo a partir das margens" (de etnia, raça, sexo, classe) e da modernidade periferica. Anunciou-se urna mudança de paradigmas críticos e teóricos capaz de dar conta das novas relaçôes entre cultura de elite, cultura popular e cultura produzida massiva e industrialmente. Os conceitos do "entre lugar" (Santiago 1978) da literatura e cultura latino-americanas e da "heterogeneidade" (circulando como noçâo e utilizado como conceito analítico por Antonio Cornejo Polar em 1980) ganharam relevancia. A idéia de "unidade" ainda nao foi superada, mas os conceitos, sim, ampliaram vias produtivas para deixar para tras as idéias que bloqueavam a mudança de paradigma: "síntesis", "mestizaje", "unidad". Num balanço sobre a situaçâo da crítica em 1981 sob as condiçôes políticas - a repressâo e o novo horizonte da redemocratizaçâo - Jean Franco destacou que a teoria recebe um novo papel referindo-se as relaçôes entre o social e o literario/cultural.45 Nâo é preciso mencionar a importancia da escola de Antonio Candido, que havia representado um núcleo de resistencia democrático baseado ñas premissas marxistas dos anos 60. No inicio dos anos 80, a cidade com os seus novos problemas e os seus novos fenómenos culturáis (desterritorializaçâo da cultura, hibridismo entre repertorios incomunicados) passou ao centro dos interesses científicos através da temática da "cultura popular urbana". A cidade converte-se em objeto conjunto de investigaçôes de diversas disciplinas. Carlos Monsiváis foi um dos primeiros a chamar a atençâo às novas formas da cultura urbana em relaçâo à cultura popular e ao desenvolvimento dos meios de comunicaçâo de massa como processo de grande parte do século XX. 46 No fim dos anos 80 e começo dos anos 90 apareceu uma série de importantes contribuiçôes, em parte já discutidas, de críticos brasileiros como Luiz Costa Lima, Silviano Santiago, Roberto Schwarz, Renato Ortiz, Francisco Foot Hardman47 e Joäo Adolfo

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Cf. Carlos Rincón: "Surrealismo y el nuevo mundo" (manuscrito 1996).

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Cf. Dietrich Briesemeister; Helmut Feldmann; Silviano Santiago (eds.): Brasilianische Literatur der Zeit der Militärherrschaft (1964-1984). Frankfurt: Vervuert, 1992.

44

Carlos Monsiváis: "Notas sobre a cultura popular en México", in: Latin American Perspectives, nQ 1, 1978, pp. 98-118.

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Cf. o livro de 1988: Trem fantasma: a modernidade na selva. Sao Paulo: Cia. das Letras.

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Hansen/ 8 e hispano-americanos como Carlos Monsiváis, Jesús Martín-Barbero, Néstor García Canclini e Carlos Rincón, que sao resultados da mudança do paradigma. Em seguida temos os trabalhos batizados "novas cartografías", por exemplo, de Beatriz Sarlo, Néstor García Canclini e Carlos Rincón.49 Queria ainda acrescentar os estudos de Renato Ortiz "O advento da modernidade"50 - e Carlos Monsiváis, que analisam e teorizam os processos da globalizaçâo cultural. Já sublinhamos a importancia das teorizaçôes latino-americanas mais recentes que desenvolvem os conceitos de "heterogeneidade" e "hibridismo". Ao mesmo tempo pòe-se em relevo a dificuldade ou a impossibilidade de teorías sistemáticas frente à velocidade das mudanças. Vemos o caso do conceito de "hibridismo" na sua operacionalidade. A noçao do híbrido apareceu na cena artística norte-americana para descrever no inicio dos anos 70 práticas artísticas emergentes pós-modernas que surgiram depois de novas formas de arquitetura pós-moderna. Seu corte histórico é a partir das teorías pós-estruturalistas e de Bakhtin (Rincón 1995:207s.). Depois, Homi Κ. Bhabha introduziu o conceito "hibridismo" no debate pós-colonial sobre a problemática da representaçâo colonial. Tzvetan Todorov batizou o termo "culturas híbridas" em 1986 no seu livro sobre Bakhtin. O livro de ensaios de Néstor García Canclini, Las culturas híbridas, finalmente, corresponde na América Latina à mudança de paradigma de "mestizaje" por "hibridismo", paralelo ao debate multicultural norte-americano. Como estratégia para o rebaseamento de um essencialismo, esta operaçâo nâo pode ser mais elogiada. Mas como conceito analítico unido à visäo antropológica da cultura carece de ductilidade - a que possuiu na análise literário-artística, interessada em estratégias e mecanismos - quando se assimila "hibridismo" e "reconversäo" (conceito central de García Canclini), de modo que nao pode dar conta analiticamente de fenómenos de constituiçào de identidade sobre a base de dinámicas de continuas negociaçôes e mudanças permanentes. Tal como nos encontramos no caso do fenomeno do movimento/««^/rap de "correntes de capital" e de "capital multicultural".

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Cf. o livro de 1989: A sátira e o engenho. Sào Paulo: Cia. das Letras/Secretaria do Estado da Cultura. Cf. Campa 1996:699. Ele refere-se a Beatriz Sarlo, Escenas de la vida posmodema, 1994; Carlos Rincón, La simultaneidad de lo no simultáneo, 1995; Néstor García Canclini, Consumidores y ciudadanos, 1995. Ele fala do "momento da substituiçâo de símbolos" nacionais. Em vez de "carnaval-mulata-sambafutebol", outros símbolos ("telenovela, publicidade, Fórmula 1") sào "gestados" e por conseqüéncia "sugerem a formaçào de uma identidade 'turbo', internacional-popular", in: Lúa Nova, n e 20, 1990, pp. 19-30. Ortiz descreve o momento decisivo da velocidade, mas nem a abordagem baseada num conceito, que dá todo peso ao lado da produçâo de cultura e diferencia entre cultura popular e cultura erudita, nem a operaçâo esquemática de substituir o registro do nacional pelo internacional servem para compreender os novos fenómenos.

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Ellen Spielmann

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José Carlos Avellar

Toda a vida mais cem anos

Com cem anos de escoria urna lata aprende a rezar. Com cem anos de escombros um sapo vira árvore e cresce por cima das pedras até dar leite. (Manuel de Barros, "Seis ou treze coisas que aprendi sozinho")

Final de 1894, começo de 1895. Os trabalhadores começavam a brigar para realizar o sonho de dormir oito horas por dia no instante em que Louis Lumière, numa noite de insônia, inventou o cinematògrafo, e Freud, depois de urna noite bem dormida, descobriu que os sonhos sâo a realizaçâo de desejos. [Primeira imagem, 1972: Os inconfidentes de Joaquim Pedro de Andrade. No meio de uma conversa sobre a Revoluçâo Francesa, Tiradentes se volta para a càmera e, fora da cena, fora do tempo e do espaço do filme, o rosto ocupando toda a tela, cara a cara com o espectador, diz: "Foi entäo que me ocorreu a independencia que esse pais poderia ter, e eu comecei a desejá-la primeiro para depois cuidar de como se poderia chegar até eia". O plano resume bem o sentimento e o modo de falar que orientaram nossos cinemas a partir dos anos 60 e até bem recentemente. Na tela - espaço entre o sonhar de olhos abertos e o permanecer acordado com os olhos fechados para o resto mundo, entre a realidade tal como aparece quando estamos despertos e tal como a percebemos quando a sonhamos, na tela do cinema - nossos filmes conversaram com o espectador assim: em primeiro plano, sonho que mantém o sonhador meio despertó, meio consciente, meio de olho na realidade. No cinema sonhávamos que nao conseguíamos dormir. Sonhávamos a insônia.]

Final de 1894. Em Lyon, Louis Lumière inventa o mecanismo do cinematògrafo numa noite em que nâo pôde dormir devido a uma forte dor de cabeça - "Foi uma revelaçâo, meu irmào, numa noite, inventou o cinematògrafo", contou Auguste em 1935. "Numa noite em que me sentia mal e nao consegui dormir, a soluçâo se apresentou claramente a meu espirito", contou Louis a Georges Sadoul em 1948. Louis filma, entäo, uma primeira versào de A saída dos operarios da fábrica com um prototipo do aparelho e ainda com papel transparente em lugar de película de celuloide. Em Viena, obrigado a trocar sua cama habitual por outra mais dura, Freud passa a ter mais sonhos ou sonhos mais nítidos que anota em detalhes assim que desperta. E analisando seus sonhos descobre que eles se relacionavam com dois fatores: com a necessidade de elaborar idéias tratadas de modo superficial durante o dia - idéias apenas mencionadas mas nâo efetivamente tratadas - e com a compulsâo de relacionar idéias presentes no estado de consciência. Dar-se conta de que a construçâo da máquina de filmar e a análise do mecanismo dos sonhos se desenvolveram ao mesmo tempo, com Freud estudando os próprios sonhos e Lumière filmando sua familia e sua fábrica, dar-se conta de que estas descobertas ocorreram no instante em que na Europa os operários começavam a reivindicar a reduçâo da jornada de trabalho (é preciso lembrar? 1884 e a lei que legaliza os sindicatos operários na França;

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1890 e o primeiro de maio internacional; 1894, a condenaçâo da luta de classes na Rerum novarum de Leào ΧΙΠ e a bomba anarquista na assembléia francesa), dar-se conta destas coincidencias sugere urna historia feita de perguntas que, a rigor, nao precisam de respostas: Lumière, que sofría de insônia, inventou o cinematógrafo para realizar o desejo de sonhar? Os operarios, que lutavam pela reduçào da jornada de traballio para oito horas diarias para garantir oito horas de descanso e oito horas de sono - estavam sonhando acordados com um direito que só viriam a conquistar muito mais tarde? A fábrica, ao industrializar a produçào de filmes, descobriu um mecanismo para controlar os sonhos do trabalhador? Freud, ao concluir que os sonhos dramatizam urna idéia através de operaçôes de condensaçào, deslocamento e figuraçào coordenadas/relacionadas/montadas/organizadas por urna elaboraçào secundaria, Freud estava discutindo roteiro, filmagem, montagem e inventando a crítica de cinema? Começo de 1895. N o registro da invençào Auguste e Louis apresentam o cinematògrafo como um novo aparelho para a obtençào e a visào de instantáneos cronofotográficos. Lembram, primeiro, que a cronofotografia dà a ilusào de movimento pela sucessào rápida de urna série de instantáneos tirados a intervalos reduzidos de objetos ou pessoas em movimento, e que esta ilusào se baseia num principio simples de compreender, o da persistencia das impressöes luminosas na retina; e que quando observamos um objeto qualquer, sua imagem se desenha sobre a membrana nervosa que chamamos de retina, se forma no fundo do olho; que se o objeto deixar de ser iluminado de repente, a imagem na retina nao se apaga de imediato, nao desaparece de todo: o nervo ótico permanece impressionado, nosso olho continua vendo o objeto como se ele ainda estivesse iluminado e que, deste modo, se um objeto iluminado se encontra diante de nosso olho e urna tela opaca interrompe o olhar numa fraçào de tempo inferior ao pedaço de segundo em que a imagem permanece acesa na retina, nós nâo damos conta deste eclipse passageiro. Este aparelho para obtençâo e visào de instantáneos cronofotográficos, esclarecem, possui um mecanismo capaz de: 1. projetar séries de fotografías de um objeto tiradas sucessivamente no intervalo de um minuto; 2. interromper por espaços regulares o raio luminoso; e 3. acender a imagem seguirne antes que se apague na retina a imagem que de fato já se apagou. Nosso olho, desta maneira, vê a fotografia deste objeto caminbar na tela. O mecanismo essencial do aparelho, dizem ainda os Lumière no registro da invençào, age por intermitencia sobre urna fita regularmente perfurada de maneira a imprimir deslocamentos sucessivos separados por tempos de repouso, durante os quais se opera seja a impressào seja a visào dos registros. [Segunda imagem, 1984: Nunca fomos täo felizes, de Murilo Salles. O pai reaparece para o filho que, no internato há oito anos, nem sabia que o pai estava vivo. Reaparece e quase nào fala. Parece que se envolveu na luta armada contra a ditadura militar. Diz que corre perigo. O filho quer saber de tudo. O pai diz apenas que seu silencio garante a segurança de ambos. O pai se esconde, quer que o filho se esconda também. Discutem num cinema sem dar atençâo ao filme que passa. Falam baixinho, inclinados um na direçâo do outro, no centro do quadro. A camera,

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José Carlos Avellar que olha como se estivesse sentada na fila de trás, nào consegue ver o filme que está sendo projetado. Pai e fìlho, inclinados um na direçâo do outro, cobrem a tela. Numa pausa da conversa, os dois se ajeitam na cadeira, a tela aparece e revela um plano de Os inconfidentes de Joaquim Pedro, exatamente aquele em que Tiradentes conta como desejou primeiro a independencia para só depois cuidar de como se poderia chegar até eia. O pai num canto da imagem, o filho no outro lado, Tiradentes entre os dois como diálogo. O pai como representaçâo do desejo de independencia, o filho como urna das muitas coisas que devemos cuidar para chegar até eia, O5 inconfidentes como representaçâo do principio de persistencia retiniana em nosso cinema: no fundo do olho continuamos a ver os filmes dos anos 60 e 70 neste eclipse passageiro que precede o fotograma que dará continuidade aos cinemas da América Latina.]

Urna caixa de madeira com urna porta dianteira e urna porta traseira, o corpo do cinematògrafo. Urna segunda caixa pequeña e removível na parte superior, o chassis com 17 metros de filme virgem. Urna terceira caixa, também pequeña e removível, no interior do aparelho para receber o filme depois de impressionado. A objetiva, na frente, no alto. A manivela, atrás. Duas voltas de manivela, um segundo. Cada volta, oito imagens (em papel transparente nos primeiros ensaios e logo adiante em película perfurada ñas extremidades, perfuraçôes redondas, uma de cada lado do fotograma). O aparelho permite fotografar o movimento, fazer copias (o negativo entào correndo colado ao positivo e a objetiva voltada para uma tela ou parede branca iluminada pelo sol) e projetar o filme (a tampa trazeira aberta e o cinematógrafo colocado diante de uma lanterna). Esse aparelho extremamente ágil só nao conta com um acessório na aparência essencial a quem se dispôe a fotografar ou filmar: um visor. O quadro era selecionado antes do instante de filmagem, o cinematògrafo aberto, o cinegrafista olhando diretamente através da janela, pela objetiva. No instante da filmagem nenhum visor ou mira para um controle mais preciso do enquadramento. Na verdade os filmes do cinematògrafo sao o produto de très diferentes e superpostas imagens: a cena que a objetiva registra no momento da filmagem, e que o cinegrafista a rigor nao ve, o campo mais ampio e definido que o cinegrafista tem diante dos olhos enquanto filma, e o quadro que gravou na memòria ao preparar o aparelho para filmar. O homem com o cinematògrafo vê uma coisa e filma outra. Vê a totalidade da cena que filma e imagina/adivinha/pensa o fragmento desta cena que está sendo visto e registrado pela objetiva. Nada demais. A maior parte dos diretores de cinema, hoje, faz o mesmo. Quem fica com o olho no visor da càmera é o fotógrafo, e às vezes nem mesmo o fotògrafo: a càmera trabalha sozinha no meio da cena acionada por controle remoto e o que eia vê é transmitido e monitorado através de um sistema de televisáo. Nada demais. As máquinas fotográficas do século passado eram mais ou menos como o cinematógrafo - caixas de madeira sem visor, o enquadramento e o foco ajustados antes da colocaçâo da chapa sensibilizada. E ainda no século passado, e bem precisamente em 1895, tomemos esta outra coincidencia significativa, a descoberta dos raios X por Wilhelm Roentgen tornou possível fotografar um espaço para o quai, pelo menos naquele instante, nao existia nem se imaginava qualquer visor possível: o interior do corpo humano. O cinematógrafo, voltado para o lado de fora, e a camera de raios X , sua irmâ gêmea, voltada para o lado de dentro, registravam imagens aparentemente impossíveis de serem vistas a olho nu. A objetiva da

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camera via melhor que o olho humano. Urna lente, urna lupa, urna extensâo nao poderia emprestar ao olhar a precisâo e definiçâo do olho mecánico. U m visor nâo servia para muito. E verdade, já existiam cameras com visores ou miras quando os Lumière construiram o cinematógrafo. Mas eles entâo só tinham olhos para o mecanismo do aparelho, que desenhavam e experimentavam com cuidado, e para a definiçâo do suporte ideal para o material sensível entre papel e celuloide. A correspondencia, entre outubro de 1895 e janeiro de 1896, com Jules Carpentier, responsável pela construçâo dos primeiros aparelhos, e Victor Planchón, encarregado de fabricar as primeiras películas, revela uma extensa discussäo de detalhes das engrenagens do cinematógrafo e da transparencia e resistencia da película. Carpentier menciona a certa altura o empréstimo de uma objetiva Zeiss, mas na resposta Louis Lumière observa que "a pequeña lente comum que usara até entào era plenamente satisfatória". Fotógrafo, conhecia o rendimento das objetivas e podia prever sem dificuldade o campo de visäo de determinada lente. Além disto, a experiencia fotográfica já ensinara a buscar o instante qualquer, o mais ou menos desenquadrado, o acaso, o nao posado, o olhar na aparência desatento que se movimenta e passa, que nâo se detém, que descentraliza, desarruma e corta. Importante era surpreender a vida em movimento. O quadro, exageremos um pouco, podia ser qualquer um. O quadro livre, que se descobria naquele momento, é hoje mais do que comum. Estamos todos habituados a composiçôes fotográficas e cinematográficas sem a arrumaçâo e o equilibrio clássicos. Mas, ainda assim, hoje a idéia de uma camera de filmar sem visor parece estranha: porque nos acostumamos a desarrumar a composiçào com nossos próprios olhos, porque os visores das cameras modernas dâo uma clara imagem da cena que está sendo filmada; porque as cameras para amadores se preocupam hoje mais com o visor (cheio de informaçôes que antecipam o filme mais tarde visto na tela) que com as objetivas; porque os cinemas inventados na América Latina da metade dos anos 50 para cá, buscaram uma informalidade semelhante à tradiçâo aberta pelos filmes de Lumière, e trabalharam suas imagens (melhor: suas dramaturgias) a partir do visor, no instante da filmagem, a camera na mâo riscando no espaço a idéia na cabeça do realizador; e também porque os cinemas inventados nos grandes centros industriáis neste mesmo período se apoiaram no visor, fizeram também um cinema de visor, para construir efeitos e estímulos dirigidos quase exclusivamente para o olho, para o sentido, para a visâo. Por tudo isso, a idéia de uma camera de filmar sem visor parece estranha. [Terceira imagem, 1896. Panorama do Grande Canal de Eugène Promio. A camera num barco passeia lentamente pelas margens do Grande Canal de Veneza: a ponte dos Suspiros, o palacio dos Doges, a Piazzetta, os jardins do Palacio Real. Caçador de imagens enviado pelos Lumière para apresentar o cinematógrafo aos italianos, Promio teve a idéia ao chegar à cidade, na góndola a caminho do hotel, e em carta aos Lumière propôe inverter a proposiçâo: se a càmera imóvel permite reproduzir objetos que se movimentam talvez seja possivel inverter a proposiçâo e tentar reproduzir com a ajuda do cinema em movimento objetos imóveis. A imagem de Promio como representaçâo da inversào mais tarde proposta pelos cinemas da America Latina: a càmera na mào caminhando solta no meio da cena para mostrar uma paisagem social que nào se movia. O olho

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José Carlos Avellar bem atento no visor para revelar o subdesenvolvimento assim como ele primeiro aparece, como força que impede o movimento. Inverter a proposiçâo: em lugar de filmar a saída dos operarios, entrar com eles na fábrica, càmera na mâo. Filmar o interior. Fazer um raio X da fábrica.]

Março de 95: Segunda-feira dia 4. Em Viena, Freud anota um sonho de Rudi Kaufman, sobrinho muito inteligente de Josef Breuer, e também médico. Rudi costumava acordar tarde e pedir à camareira para despertá-lo. Certa manhä, depois de tentar inutilmente acordá-lo, eia o chamou pelo nome, "Senhor Rudi". O dorminhoco incorporou as palavras ao sonho e alucinou urna placa hospitalar em que estava escrito o nome "Rudolf Kaufmann" e disse a si mesmo: "Quer dizer que R.K. já está no hospital; entäo näo preciso ir até là". E continou dormindo. Como Rudi, sonhamos para continuar dormindo? Ou dormimos para continuar sonhando? Vemos um filme no cinema ou vemos o cinema num filme?

Terça-feira dia 19: Em Lyon, Louis monta o cinematógrafo na casa de um operario, no número 20 do Caminho de Saint Victor, hoje rua do Primeiro Filme, por tras da janela da sala, bem em frente ao portäo da fábrica Lumière, e por volta do meio dia filma a salda dos operários. Foi certamente neste dia, garante Bernard Chardère, porque o tempo no começo da primavera de 1895 andava encoberto e chuvoso. E possível que na semana anterior Lumière tenha feito novos testes para estudar o enquadramento e a duraçâo do filme supôe Chardère - porque acabara de receber um segundo prototipo do cinematògrafo. Chuva no sábado 16. Céu nublado no domingo 17. Nüvens menos escuras na segunda 18. Na terça, céu aberto, Lumière filmou a versâo mais conhecida de A saída dos operários da fábrica. No dia seguinte voltou a chover. Quinta, choveu também. E sexta 22, com o pai, Antoine, e o irmäo, Auguste, Louis estava em Paris para uma conferencia na Société d'Encouragement pour l'Industrie Nationale, ocasiâo em que projetou fotos fixas em preto e branco sobre o dia-a-dia na fábrica, suas primeiras experiencias com fotos coloridas e o filme da saída dos operários. Freud talvez pudesse mostrar a Lumière que diante do portäo da fábrica, com o aparelho sem visor, ele filmava a saída dos operários mais ou menos assim como Rudi Kaufman pegara as palavras da camareira. Mostrar a Lumière que ao filmar sem visor ele tratava de modo superficial uma idéia que iria sonhar mais tarde, com o filme na tela. Lumière talvez pudesse mostrar a Freud que o cinematógrafo podia anotar os sonhos de forma viva, direta, em imagens, em movimento, e projetá-los num quarto escuro para serem sonhados de novo e de novo, e muitas vezes mais, até mesmo por outros sonhadores, quase da mesma e exata forma com que foram, numa noite bem dormida, sonhados por seu primeiro sonhador. Os operários talvez pudessem mostrar a Lumière e Freud que a grande indùstria abría as portas para o cinema, montava uma usina de sonhos no portäo de saída da fábrica, uma nova açâo para reduzir o operário a um espectador da historia.

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Julho de 95: Em La Ciotat para as ferias de verào, Louis filma A chegada de um trem à estaçào. Os Lumière tinham urna casa naquela cidade, e Louis levou o cinematògrafo até a estaçào para ver a chegada do trem com seus familiares. Em Bellevue para as férias de verào, Freud sonha o sonho da injeçâo em Irma e de manhâ, ao interpretá-lo, concluí que o sonho realizara desejos provocados pela noticia que recebera no dia anterior durante a visita do amigo e também médico Otto: uma de suas pacientes, Irma, estava melhor mas nao interamente boa. Freud anota que a impressäo desagrável que sentiu entâo, na hora da visita, nao lhe ficou clara, e por isso nâo externou nenhum sinal déla. Naquele mesmo dia escreveu uma detalhada análise do caso de Irma para entregar ao Dr. M., e de noite, ou na manhâ seguirne, como julga ser mais provável, teve o sonho que anotou ao acordar. Um salâo de festas. Irma entre os muitos convidados que Freud estava recebendo. Ele se aproxima de Irma e diz-lhe que as dores continuavam porque eia nâo aceitara a soluçâo dele. A culpa era toda déla. O Dr. M., também no salâo, concorda com o diagnóstico. Em seguida aparece Otto para aplicar uma injeçâo em Irma. Freud observa e condena a medicaçâo: injeçôes nâo podem ser aplicadas de forma tâo impensada, e provavelmente a seringa nao estava limpa. O sonho representa a historia da doença e do tratamento de Irma tal como Freud desejaria que tudo tivesse acontecido: ele nâo tinha nenhuma responsabilidade pelo fato de Irma nâo estar interamente boa, a culpa era delà, que nâo seguirà suas recomendaçôes; seu diagnòstico estava correto, garantía o Dr. M. E, finalmente, no sonho ele se vinga de Otto, que lhe trouxera a má noticia: Otto aplicava injeçôes de forma impensada. Terminada a análise, diz Freud, percebemos que os sonhos sâo a realizaçâo de desejos. Cinco anos mais tarde, de volta a Bellevue, ele se pergunta se algum dia uma placa de mármore seria colocada naquela casa para assinalar: "Aquí, no dia 24 de julho de 1895, o segredo dos sonhos se revelou ao Dr. Sigm. Freud". O sonho deixou de ser um segredo com a invençâo do cinema? O cinema (raio X do sonho?) mudou o nosso modo de sonhar? Talvez tenhamos inventado o sonho antes mesmo de inventarmos a palavra. O sonho teria sido a primeira invençâo poética do homem? O cinema foi inventado há cem anos ou existe desde sempre, desde o primeiro sonho? Talvez seja possível dizer que passamos a vida fazendo cinema, toda a vida. Toda a vida mais os cem anos da invençâo do mecanismo que nos permite sonhar o sonho de outro.

N o Brasil Central, observa a antropologa Ellen Basso, os Kalapalo nâo possuem uma palavra para se referir ao sonho. Usam formas verbais intransitivas para falar de uma qualquer coisa sonhada. Vêem os sonhos como experiencias realmente vividas, como mensagens visuais que indicam as metas que desejam atingir no futuro - nâo como previsâo do que de fato vai acontecer, mas como expressâo da vontade do sonhador, do desejo que irá a partir dali orientar seu modo de pensar, sentir, agir. Os sonhos sâo mensagens que devem ser compartidas e analisadas cuidadosamente porque sâo feitos como metáforas,

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precisam de formas verbais especiáis para serem narradas e compreendidas. É preciso procurar com cuidado a palavra certa para traduzir um sonho. Para os Kalapalo a fala engana, enquanto as imagens que vemos nos sonhos sâo sempre verdadeiras, sâo urna forma de auto-conhecimento. A palavra está ligada à habilidade de embelezar, de fantasiar, de mentir, pois a pessoa que fala procura fazer urna boa figura de si mesmo. A palavra é ambigua, a imagem nào deixa dúvidas. O conhecimento verdadeiro vem pelos olhos, e as fantasias criadas pelos sonhos sâo verdade bem verdadeira porque nao controladas pela vontade despena. E ao procurar palavras para contar os sonhos, que dizem a verdade em imagens, os homens aprendem a desenvolver a linguagem. No Amazonas, ao longo do rio Madeira, observa o antropólogo Waud Kracke, os Parintintin dizem que os sonhos revelam a verdade sobre o presente e o futuro dos homens, sobre a natureza do mundo e dos espíritos. Os sonhos sao como os mitos, um mundo paralelo, urna realidade-outra que nao pode ser percebida pela pessoa desperta, mas que está em permanente relaçâo com a realidade que percebemos quando despertos. Quem sonha, na verdade, nâo é propriamente o sonhador mas o seu eu interior, que pode, inclusive, desprender-se do corpo para viver experiencias que só podem se dar ai, neste estado especial em que entramos em contato com o que poderia ser chamado de imagem/representaçào/ essência/alma das pessoas e coisas. Por isso a experiencia dos sonhos precisa ser compartida, decifrada, compreendida, muitas vezes contada, em busca da palavra que descreva com fidelidade a experiencia vivida em imagens. Contar sonhos, instante em que a imagem estimula a invençào da palavra, é tao importante quanto contar mitos, instante em que a palavra estimula a invençào de imagens, observa Kracke. E, deste modo, os Parintintin se visitam durante o dia para contar sonhos, ou se reúnem à noite, a tribo inteira em volta da fogueira, para contar sonhos. Os Parintintin se reúnem em volta da fogueira para fazer cinema? A fogueira como a luz do projetor? Os Parintintin narram mitos como quem faz crítica de cinema?

Os sonhos pensam de um modo particular as experiencias que provocaram nossa reflexào enquanto despertos, disse Freud, mas seria um erro supor que urna ligaçào direta entre o conteúdo de um sonho e a realidade possa vir à luz facilmente como resultado imediato da comparaçâo de ambos. A representaçào consciente abrange a representaçào da coisa mais a representaçào da palavra que pertence a essa coisa, ao passo que a representaçào inconsciente é a representaçào da coisa apenas. Nossa mente, quando estamos despertos, produz representaçôes e pensamentos em imagens verbais e na fala; nos sonhos, porém, eia o faz em imagens sensorials, experiencias mentais verdadeiras e reais, do mesmo tipo das que surgem quando estamos despertos através dos sentidos. E do mesmo tipo também, sabemos todos nós que já vivemos a experiencia do cinema, das que surgem quando estamos meio despertos meio dormindo vendo um filme. A experiencia do cinema nos mostra mais ainda: que urna imagem na tela é a representaçào da coisa e também, e ao mesmo tempo, outra coisa (palavra transparente e nào visivel a olho nu?). No cinema toda imagem é duas. Os Bororo, lembrou Eisenstein certa vez, "asseguram que, enquanto seres humanos, säo ao mesmo

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tempo também um tipo especial de periquito vermelho". Nao dizem que se tornarlo esses pássaros após a morte, "ou que seus ancestrais foram esses pássaros no passado remoto. De modo algum. Eles asseguram diretamente que sao na realidade esses pássaros reais. Nao se trata de urna questäo de identidade de nomes e relaçâo; eles querem dizer urna identidade total, simultánea, de ambos". Nao importa quáo estranilo e incomum isto possa parecer, concluí Eisenstein, "é porém possível citar, a partir da pràtica artística, varias instancias que soariam iguais, quase palavra por palavra, à idéia dos Bororo sobre a existencia dupla simultánea de duas imagens completamente isoladas e diferentes e, porém, reais": o ator quando representa um personagem, no instante em que é ele mesmo e outro; a imagem de um sonho ou de um filme quando passa na tela ou no imaginário, no instante em que é imagem mental e imagem verdadeira. O sonho como um modo particular de pensar. O cinema como um modo de pensar o sonho. O sonho como um modo de pensar o cinema.

Num caderno, entre esboços de desenhos, poesías e idéias diversas, Paul Klee anotou alguns sonhos. As vezes o sonho está ali descrito quase como urna poesia, quase como um desenho: é assim quando conta que sonhou com sua casa vazia, branco sobre branco, ou que sonhou que era um mágico visitando um jardim, ou ainda que sonhou que voltava voando para a casa em que nasceu, onde tudo começou. Outras vezes anota o sonho como se estivesse interessado em analisá-lo: "Sonhei coisas fantásticas e muito definidas na noite de 30 de junho para primeiro de julho de 1925". Um grande ninho de pássaros, mas habitado por urna familia de gatos. Klee olhava os filhotes - já meio crescidos, deveriam ter quatro semanas - e de repente notou que um grande tigre escuro se preparava para saltar sobre o ninho, aproveitando que a mamàe gato se afastava caminhando sobre o muro em direçâo à j anela da casa. O sonho é a afliçâo diante da mamàe gato que se afasta e da ameaça do tigre que se aproxima. Mas de repente a cena é outra: Klee se encontra num jardim diante de um cachorro que dança urna música estranha balançando o focinho. Em alguma noite de 1922, Igor Stravinsky sonhou que estava sentado numa sala descontente com oito músicos que insistiam em tocar em urna flauta, urna clarineta, dois trompetes, dois trombones e dois fagotes urna peça cuja sonoridade nào o agradava. Ao acordar anotou a melodia que ouviu no sonho e fez o Octeto para instrumentos de sopro. Ainda Stravinski contou que para compor a Sinfonia em très movimentos, entre 1942 e 1945, partiu de urna fonte bem precisa: cada episòdio da Sinfonia está ligado a urna impressào cinematogràfica da guerra. Sâo reaçôes musicais a cine-jornais e documentários que ele viu, comentários de imagens que ficaram em sua imaginaçâo como sonhos. Sâo reaçôes inconscientes, explica, porque um compositor simplesmente combina notas e nâo sabe dizer de que modo as coisas do mundo em que vive influenciam sua música. Fellini contou certa vez um sonho que julgava ter algo a ver com o sentimento impreciso de um filme que jamais chegou a se formar claramente em sua cabeça, mas que o perseguiu longo tempo como se fosse urna etapa necessària para a invençâo de urna outra historia, de um outro filme. Sonhou que era diretor do aeroporto. Sua mesa ficava num

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imenso salào vazio de onde se podia ver a pista iluminada através das paredes de vidro. Como chefe do aeroporto, eie se encarregava também da imigraçâo: os vistos de entrada no país eram liberados por ele. Estava atendendo os passageiros quando notou no fundo do salào um chinés, sozinho, sem bagagem, com um quimono largo que lhe conferia um ar solene. Estava na fila e logo chegou à mesa, as màos ocultas ñas largas mangas do quimono, os olhos fechados. Sua figura pareceu a Fellini urna mistura de aristócrata e miserável. Os cábelos eram gordurosos e sujos, tinha um cheiro estranho, mas ao mesmo tempo um ar de nobreza. Poderia ser um rei, um santo, um cigano, um vagabundo. Parado, diante da mesa, nao diz nada. Fellini se sente entào pressionado por um sentimento de ànsia e inquietude. Sabe que o estrangeiro espera sua decisâo, sabe que é ele que deve decidir se o chinés pode entrar ou nâo, que é ele que deve conceder ou negar o visto, mas nao consegue decidir. Começa a balbuciar desculpas infantis e absurdas: diz que a decisâo nâo depende dele, que está subordinado à gente mais importante, mais competente, e esta gente, sim, sabe o que fazer; diz que nâo é o verdadeiro diretor do aeroporto. E, como nâo sabe mais o que dizer para o chinés, que continua calado, um sentimento de vergonha o leva a baixar a cabeça. Percebe entào que a placa sobre a mesa indica com clareza: Diretor. E a partir dai nào ousa mais levantar a cabeça. Aflito, os olhos enterrados no chao, procura descobrir o que será pior: levantar a cabeça e descobrir que o chinés continua ali? Ou levantar a cabeça e nâo encontrar mais o misterioso estrangeiro vindo do oriente? Acorda em seguida com urna sensaçâo desconfortável. O sonho, narrado num texto, foi anotado também num desenho: o salào ampio do aeroporto; o châo, a mesa do diretor e o banco onde alguns passageiros esperam sentados sào de cor alaranjada. Por trás dos vidros azulados vemos os aviòes na pista. Os aviòes e os passageiros sào esboçados em traços ligeiros. O desenho, mesmo, é o chinés diante da mesa, figura dominante, no centro, grande, bem maior que o minúsculo diretor que vemos de costas numa cadeira pequenina engolida pela mesa grande. O chinés veste um quimono azul com enfeites cor de vinho. Sua cara amarela é marcada por poucos traços mas bem definida: rosto meio arredondado, olhos fechados, cavanhaque em torno da boca fina, cábelos caídos até os ombros. Num canto do desenho a assinatura de Fellini e urna anotaçào: Sonho de outubro 1961. O cinema é fundamentalmente onírico, o mundo dos sonhos e da memoria se expressa predominantemente através de imagens, anotou certa vez Pier Paolo Pasolini: o sonho e a memoria, tanto a voluntária quanto a involuntária, sào processos cinematográficos. Pensamos com cinema. E mesmo quando pensamos com palavras rudimentäres, como que estenografadas, extremamente rápidas e ao mesmo tempo extremamente expressivas, embora inarticuladas, pensamos com cinema. De noite somos todos diretores de cinema, observou certa vez Ana Carolina: fazer filmes é materializar o dom de sonhar; um sonho é como um filme que cada um de nós faz com inteira liberdade. Faz e vé. Enquanto sonhamos somos ao mesmo tempo realizador e espectador, pois tanto dominamos o sonho que estamos inventando naquele exato instante quanto somos dominados por ele. Enquanto vemos um filme também somos ao mesmo tempo espectador e realizador. Que a experiéncia do sonho sirva como esclarecedora dos

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limites em que se pode formular a idéia - tantas vezes repetida - do espectador de cinema como individuo dominado pelo filme, arrancado de sua identidade e sem açâo, consumidor passivo de tudo o que o filme diz. Espectadores, de noite ou de dia, somos todos diretores de cinema. Pensamos em imagens. A arte, voltemos a Eisenstein, pensa como pensamos no sonho. "O fluxo e a seqüencia do pensamento nâo formulado ñas construçôes lógicas ñas quais os pensamentos articuladamente formulados se expressam têm urna estrutura especial pròpria" apoiada em "leis que sao precisamente as leis que existem na base de toda a variedade de leis que governam a construçâo da forma e composiçâo das obras de arte". Enquanto sonha, todo homem é um gènio, diz Kurosawa, lembrando o que Dostoïevski conta em O sonho de um homem ridículo, historia de um homem que se diz inteiramente consciente de seu ridículo. "Toda a gente se ria de mim. Mas ninguém sabia, nem suspeitava sequer, que, se existia no mundo um homem que soubesse melhor do que todos eles como eu era ridículo, esse homem era eu pròprio", diz o personagem no começo do relato. Essa certeza se abala por causa de um sonho, um sonho bonito demais para ser sonhado por uma pessoa ridicula. Sonhos, ele anota, sao coisa muito estranha; "percebemos neles, com uma clareza assustadora, com uma elaboraçâo artística, certos pormenores, ao passo que passamos por outros completamente por alto, como se nao existissem, sucedendo assim, por exemplo, com o tempo e com o espaço"; os sonhos, afirma, "nao os sonha a razáo, mas o desejo; nao a cabeça, mas o coraçâo". Se sua "humilde razào" e seu "insignificante coraçâozinho" engendraram um sonho tao belo, "talvez ele nao fosse um zero absoluto na vida". Pelo menos poderia viver melhor a partir de entâo porque viu o sonho com seus próprios olhos - ou nâo sonhara? Ou todas aquelas coisas fantásticas do sonho tinham acontecido de verdade? Pensamentos, idéias e desejos que dissimulamos enquanto acordados, e que se materializam e se expressam sob a forma de acontecimentos reais, concluí Kurosawa, os sonhos sao os mais livres e audaciosos acontecimentos criados pelo homem. Uma impressionante e inigualável força de expressâo é desenvolvida por nosso cérebro para dar forma aos sonhos, e por isso, esclareceu ao apresentar Sonhos (1990), no cinema podemos somente fazer uma adaptaçâo cinematográfica das experiencias que vivemos em sonhos. Uma adaptaçâo. Um resumo. Cinema é apenas uma tentativa de projetar o que inventamos mais livremente nos sonhos. Freud talvez nao gostasse de cinema, lembrou certa vez Bernardo Bertolucci, porque nao precisava de filmes: tinha os sonhos de seus pacientes. O filme parece uma imitaçâo involuntária do sonho, costumava dizer Buñuel. Um filme é como um sonho compartido, disse Gutiérrez Alea em sua Dialéctica del espectador. Fellini resumiu numa imagem de A cidade das mulheres (1988) o pedaço de sonho que existe no cinema e o pedaço de cinema que existe em todo sonho: um grupo de jovens entra num salâo, ao mesmo tempo um quarto de dormir, cama, travesseiro e coberta, e uma sala de cinema, a tela na parede do fundo; todos se deitam, se cobrem, fecham os olhos e se ajeitam para que o filme comece. E Tarkovski em Solaris (1972) criou no espaço um planeta capaz de se comunicar com o

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inconsciente dos tripulantes de urna nave interplanetària e de projetar dentro da nave, como figuras vivas de verdade (como cinema vivo de verdade), os sonhos dos astronautas. Solanas, em Sur (1987), propos urna mesa dos sonhos para expressar o desejo "en términos puros, tal como se da en el inconsciente, energía que no se puede matar, que permite que te sientas vivo". E ainda Solanas criou uma personagem para representar o sonho que um jovem sonha acordado para renovar a vontade de seguir El viaje (1992). Glauber, que fez cinema com a camera na mäo e um sonho na cabeça, que com Deus e o diabo na terra do sol (1964) defende um cinema que nâo se limite a ver as coisas em termos racionais, que nâo reduza a realidade a termos naturalistas, Glauber propos certa vez uma estética do sonho: uma estética que nâo trate o faminto como "um objeto que deve ser alimentado, que se apóie na desrazào que comunica as tensôes do mais irracional de todos os fenómenos, a pobreza, a fome". "Carga autodestrutiva máxima de cada homem, a fome repercute psíquicamente de tal forma que o pobre se converte num animal de duas cabeças: uma é fatalista e submissa à razäo que o explora como escravo; a outra, na medida em que o pobre nao pode explicar o absurdo de sua pròpria pobreza, é naturalmente mística, se expressa numa linguagem que transcende ao esquema racional de opressäo": o sonho, "o imprevisto dentro da razäo dominadora", o impossível de ser compreendido pela razäo dominadora que termina por se negar e se devorar diante da impossibilidade de compreender. "O que o inconsciente comunica ao consciente através da experiencia individual do sonho pode ser comentado pelo cinema na experiencia coletiva da projeçâo de um filme". O cinema é sobretudo um provocador onírico. "Quando o sonho irrompe na realidade ele se transforma numa máquina estranha àquela realidade, uma máquina tremendamente liberadora". E vice-versa, mostraram os novos cinemas da América Latina nos anos 60: quando a realidade irrompe num filme eia se transforma numa máquina estranha e tremendamente liberadora para o cinema. O sonho como o único direito que nao se pode proibir, de acordo com Glauber. O cinema como crítica, comentario, adaptaçâo, resumo do sonho. O subdesenvolvimento como una prisión de sueños, de acordo com Solanas. [Quarta imagem, 1989: Dias melhores virio de Carlos Diegues. A dubladora Marialva está no bar A buchada da Odete mais interessada na televisâo por tras do balcâo que na cerveja ao lado déla. Na televisâo passa o filme de Mary Shadow que eia dublou. De repente a policía invade o bar, pede a identidade de todo mundo. Marialva sorri para o policial, aponta para o televisor e diz que eia é a Mary Shadow da televisâo. Confunde o som com a imagem, a realidade com o sonho, diz que é nâo a brasileira morena que está ali, no bar, mas a americana loura da televisâo. Insiste: "ali, na televisâo, sou eu". Marialva, que vê a televisâo como um espelho, é uma representaçâo do sonhador sem sonhos, do espectador que nâo sabe mais sonhar seus próprios sonhos e se torna dependente do sonho de outro. Marialva como o espectador que nâo sabe mais onde está sua identidade, como a montagem da frase de Glauber com a de Solanas, como representante do sonhador no cárcere que a grande indùstria da imagem e som em movimento criou para inibir o único direito que nào se pode proibir.]

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Os primeiros espectadores de cinema sonharam livremente que estavam acordados, diante da realidade. Criaram outros filmes ali mesmo, na sala de projeçào. Urna prisào de sonhos parecía entào impossível. O sonho na tela estimulava o sonhador a inventar outros sonhos. Depois da primeira sessào de cinema (é preciso lembrar? 28 de dezembro de 1895, Salon Indien do Grand Café, número 14 do Boulevard des Capucines, A saída dos operarios, A praia e os banhos de mar, O almoço do bebé, ao todo dez filmes de quase um minuto cada, preto e branco, numa tela de pouco mais de um metro), logo depois da primeira sessào de cinema, os jomáis de Paris descrevem os filmes de Lumière como "a pròpria vida". Contam que no fundo de urna sala tao grande quanto se possa imaginar existe uma tela para ser vista por uma multidào; contam que a porta de uma fábrica se abre e deixa escapar um rio de operarios e de operarías, com bicicletas alguns, com cachorros que passam correndo outros; contam que podemos ver o golpe do vento que agita a roupa da criança e as folhas das árvores ao fundo; o vermelho do ferro em brasa que o ferreiro trabalha, o branco da espuma do mar sobre os rochedos e acrescentam: um mar verdadeiro, colorido, movimentado, com banhistas e mergulhadores; contam que "qualquer que seja a cena, e por maior que seja o número de personagens supreendidos em açôes de suas vidas diarias, podemos revê-los em tamanho natural, com as cores, a perspectiva, o céu distante, as casas, as ruas, com toda a ilusào de vida real". Os filmes sâo a pròpria natureza, tudo vive, caminha, corre: é "impossível saber se estamos diante de uma alucinaçâo, se somos espectadores ou se fazemos parte destas cenas de impressionante realismo". Os primeiros espectadores reagiram mais ou menos da mesma maneira em todo o mundo. Os jomáis de México destacam "el sentimiento de la realidad que se apodera del espectador y lo domina por entero", dizem que "se encuentra uno por frente de un fragmento de vida, clara y sincera, sin pose, sin fingimientos, sin artificios". Os do Rio de Janeiro apresentam o cinematógrafo como "uma maravilhosa lanterna mágica da ciencia" e comentam: "Entre os quadros que se destacaram pela sua beleza colocamos em primeiro lugar a entrada de vapores no porto de Nápoles, que é belíssimo. As ondas sao reproduzidas com uma verdade que pasma, e todos os incidentes sao apanhados de uma maneira admirável". O cinematógrafo, dizem ainda, apresenta "os mais sublimes espetáculos da natureza reproduzidos em forma fiel, com toda a perfeiçào e nitidez", com as figuras "em tamanho natural, podendo ser vistas por um número qualquer de espectadores" - como, por exemplo, o "trecho dos boulevards de Paris, no seu continuo movimento de vaivém: homens, mulheres, crianças, carros, ônibus, animais, tudo" passa "perante nossos olhos em suas exatas dimensôes". Os de Londres comentam a sensaçâo de que a vida está fielmente reproduzida: a estaçào com as pessoas descendo e subindo no trem parece estar ali na sala. Os de Nova Iorque falam dos "passageiros descendo, reencontrado seus amigos, os detalhes mostrados de uma maneira perfeita" na "assustadora chegada de um trem à estaçào". Em Lyon, primeira sessào, janeiro de 1896, conta Felix Mesguich, um dos caçadores de imagens treinados pelos Lumière, o público passou do riso diante da saída dos operários aos gritos de terror diante do desfile de militares a cavalo e da chegada do trem à estaçào - "os espectadores acreditavam que o trem era de verdade e esboçavam saltar de lado". Amsterdä,

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primeira sessào, maio de 1896, conta outro caçador de imagens, Francis Doublier: depois de um pànico inicial e da suspensào das projeçôes (Doublier chegou a ser detido por ameaçar a segurança dos espectadores) tornou-se obrigatório garantir antes de cada projeçâo que nem os cavalos galopariam loucamente sobre as cabeças dos espectadores nem a locomotiva iria saltar da tela para esmagar toda a sala. O espectador, há cem anos, sonhava acordado no cinema? Buscava as palavras certas para contar a experiencia do sonho, assim como os Kalapalo? Nao sabia falar ou nâo sabia ver? Misturava realidade e sonho, assim como Rudi Kaufman?

O sonhador, afirma Freud, só sabe que está dormindo quando acorda. Nos sonhos nâo parecemos pensar mas ter uma experiencia - noutras palavras, atribuímos completa crença às alucinaçôes. Somente ao despertarmos surge o comentario crítico e podemos tomar consciência de que nao tivemos nenhuma experiencia, de que estivemos apenas pensando de forma peculiar - ou, dito de outra maneira, sonhando. O sonho como crítica da realidade, a realidade como crítica do sonho. A tarefa de interpretar um sonho, diz Freud, e de interpretar um filme, sabemos todos, nao chega ao firn quando temos ñas mâos uma interpretado completa, uma interpretaçâo que faz sentido, que é coerente e lança luz sobre todos os elementos do conteúdo do sonho ou filme. O mesmo sonho/filme pode ter uma outra interpretaçâo, uma superinterpretaçào que nos escapou. É certo que as reaçôes dos primeiros espectadores se devem à surpresa diante de imagens mais definidas e de dimensôes maiores que as tentativas anteriores de fotografar o movimento. Nâo se encontravam palavras para definir aquela sensaçâo toda nova de estar ao mesmo tempo dormindo e acordado, de estar ali, no cinema, diante da tela, e ao mesmo tempo em lugar algum, perdido no espaço e no tempo, num estado parecido com o que prepara o sonho, como observou Máximo Gorki comentando uma das primeiras apresentaçôes do cinematógrafo na Rùssia, em 1896. Depois de citar o trem que ameaça saltar da tela para dentro da sala e finalmente se desvia e desaparece num canto da imagem, Gorki observa: "no cinematògrafo esquecemos onde estamos, nos tornamos menos e menos conscientes, perdemos a noçâo de espaço e de tempo". O cinema é uma invençâo sem futuro, disse Antoine Lumière ao apresentar o cinematògrafo. O Brasil é o país do futuro, disse Stefan Zweig ao ser apresentado ao país. Montar as duas frases - Antoine Zweig - a invençâo sem futuro no país do futuro, para perguntar: na América Latina, hoje, o cinema é uma invençâo sem presente?

Antoine talvez estivesse querendo dizer que no cinema, enquanto o filme passa na tela, tudo é presente, como afirma Freud: sonhamos no presente do indicativo, o presente é o tempo em que os desejos se representam como realizados. Zweig, como tantos outros que cantaram o futuro promissor da América Latina, talvez estivesse querendo dizer que o brasileiro, o latino-americano de um modo geral, se habituou a viver como quem nâo tem passado, nao tem historia, nem presente, nao realiza seus sonhos, e, deitado eternamente em berço espléndido, sonha com uma terra sem males no futuro.

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O que caracteriza o cinema, disse certa vez Ingmar Bergman, näo é o fato de mostrar imagens em movimento na tela, mas o fato de apagar o visível. O que está presente é a ausencia. Quando vé um filme de urna hora de projeçâo, o espectador fica sentado durante vinte e sete minutos, quase a metade do tempo de projeçâo, numa escuridäo total da qual nao se dá conta - os espaços vazios entre urna imagem e outra. Vinte e sete minutos em que, enquanto continua acesa na retina a imagem que já se apagou, na tela tudo é escuridäo até que apareça a imagem seguirne. O cinema, sugere Bergman, na verdade impede que a visäo se faça assim como naturalmente se faz, continua, sem interrupçào. O filme, para mostrar, esconde. Enquanto nos dá a ilusâo de ver - até melhor que a olho nu - corta, apaga, escurece, esconde. Embora se movimente como cena viva de verdade, o cinema age de fato sobre o espectador como o eclipse passageiro que interrompe o olhar durante a projeçâo. A imagem, mesmo no instante em que está acesa, é de fato o eclipse a que se refere Lumière no registro da invençâo do cinematógrafo. O mundo se apaga e podemos ver a realidade tal como a sonhamos. Nao percebemos o cinema como eclipse porque o olho permanece impressionado com a imagem da realidade que viu antes da projeçâo. N a sala escura nosso olho continua vendo o mundo como se ele estivesse ali. Pensar o cinema como um eclipse passageiro. Pensar o eclipse como o presente passageiro dos cinemas da América Latina. Pensar o cinema como o que passa todo o tempo e para todos os lados - e que por isso mesmo talvez antes mesmo de terminarmos a leitura, o que se passa já tenha passado. Pensando a questâo em torno de dois filmes de Nelson Pereira dos Santos, Vidas secas (1963) e A terceira margem do ño (1994): O sentimento trágico se desloca da condiçâo dos personagens para a condiçâo do narrador, para a estrutura da narrativa. Alguma coisa no modo de filmar Fabiano, Sinhá Vitoria, o menino mais velho e o menino mais novo, revela para o espectador que a misèria ali causada pelo sol demasiado e pela água nenhuma nâo era determinada nem por Deus nem pelo diabo. Vemos uma familia todo o tempo pressionada a fugir - da seca, dos donos da terra, das autoridades, da incapacidade de articular sofrimento e revolta em discurso e açâo. Vemos estes personagens através de uma câmera que situa o olhar ao mesmo tempo perto e distante deles. Estamos perto porque solidários com o sofrimento dele; distante porque conscientes de que a pobreza ali resulta de uma questâo social (e nâo de um determinismo geográfico); perto e distantes porque dotados de uma fala melhor articulada para expressar nossa consciência. Sofremos um sofrimento outro. Em Vidas secas Fabiano e Sinhá Vitoria vivem uma tragedia, a camera nâo. A camera vive um outro sofrimento. Eia se move nervosa, indignada e insegura na mäo do fotógrafo porque seu conhecimento e sua capacidade de expressâo nâo conseguem se traduzir, como seria natural, em açâo direta contra a pobreza. Na margem do rio, com Liojorge, Alva e Nhinhinha, a historia é quase a mesma. A presença da atriz que trinta anos antes viveu Sinhá Vitoria no papel da mâe de Liojorge cria uma ligaçâo pequeña mas significativa entre os dois filmes: o rosto conhecido de Maria Ribeiro nâo deixa dúvidas, trata-se daquela mesma familia que encontramos um dia descendo o leito de um rio seco à espera de chuva e à procura de terra para trabalhar. A mesma

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familia ou urna outra igualmente condicionada a urna existencia trágica num pedaço de terra à margem de um rio que ainda nâo secou: Fabiano, Sinha Vitoria, o menino mais velho, a menina mais nova. Um dia, sem dizer palavra, como era de seu feitio, Fabiano, um pouco mais velho e alquebrado, decide abandonar a mulher, os filhos e a terra seca para viver isolado no meio do rio e nunca mais voltar a pisar em châo ou em capim, nunca mais dizer palavra alguma a ninguém. A familia é quase a mesma mas o olhar é diferente. Os personagens se movimentam mais, inventam milagres para sobreviver à violencia que os empurra do campo para a margem da cidade grande. A càmera se movimenta menos. Quando o pai se despede a càmera entra na canoa com ele e se afasta da margem, da mâe, do menino mais velho e da menina mais nova. E ai, em suas primeiras imagens, A terceira margem do rio define o ponto de vista de onde a historia vai ser narrada. Mesmo quando retorna à terra firme, mesmo quando se desloca para a favela na margem da cidade grande, a càmera continua a ver de dentro da canoa no meio do rio, com os olhos do pai, longe/perto, com os olhos de quem se retirou (penitencia? desesperança?), de quem mergulhou na calma e silencio do rio porque "viver em harmonía entre os homens é impossíver, como diz o Amigo. Liojorge, como Fabiano, é pressionado a urna existencia trágica - a camera também: nao está mais segura de ter inteira consciência da questäo que vé, nem certa de poder articular, expressar, comunicar, traduzir em imagens a brutalidade que oprime os que vivem à margem do bem-estar material da sociedade. Quase como o cegó Tirésias, que um dia disse a Edipo que näo adianta saber quando o saber nào vale nada para quem sabe, a camera fica no rio, à procura de urna terceira margem. A terceira margem como urna pergunta que o realizador nao procura explicar nem responder: "talvez a terceira margem do rio seja o que todo mundo procura e ninguém sabe o que é. Eu mesmo nao sei o que é", diz Nelson, "cabe ao espectador, no plano existencial, tentar responder". Do ponto de vista social trata-se de "mostrar que talvez exista uma terceira margem para o Brasil, entre o velho e o novo". Pensando o cinema como a procura de uma terceira margem: de Lumière até o Neorealismo sonhamos a tensâo entre a reapresentaçâo e a representaçâo da realidade. Do Neorealismo ao Cinema Novo e aos novos cinemas latino-americanos inventamos um modo de projetar os sonhos como se na tela nao existisse sonho algum, mas apenas a realidade. Dos novos cinemas latino-americanos até o eclipse passageiro de agora procuramos materializar os sonhos como se nao existisse realidade alguma mas apenas o sonho. Pensando o cinema como crítica do que sentimos e pensamos quando acordados, como eclipse, e falando dele como um corpo vivo: Freud diría que o cinema está acordado há cem anos, tratando de modo superficial idéias que serào sonhadas quando começar a dormir, talvez nos próximos cem anos. Manuel de Barros, que diz fazer poesia inspirado em Eisenstein, Chaplin e Buñuel, fazer poesia "como quem lava roupa no tanque dando porrada ñas palavras", que diz fazer poesia jogando palavras no lixo para que elas percam seu estado de dicionáño, Barros diría que o cinema vem jogando a realidade nos escombros, como se eia fosse um sapo ou uma lata velha. Agora, cem anos depois, o que foi jogado no

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lixo pode perder seu estado de realidade para virar árvore, crescer por cima das pedras e aprender a dar leite. Cem anos depois da invençâo do mecanismo do cinematógrafo e da análise do mecanismo dos sonhos, parece finalmente possível fazer brotar um cinema de nosso chao: passar pela pedra no meio do caminho, como lembrou outro poeta, Drummond, tirar leite de pedra, como diz a poética popular para definir o que se faz com muito traballio lá onde, parece, nada pode brotar. A educaçâo pela pedra, como disse ainda um poeta, Joào Cabrai: aprender com eia a liçâo de poética, sua carnadura concreta, e a de economia, seu adensar-se compacta. A imagem parece melodramática, mas é de fato imagem de cine-jornal, de filme documentàrio: na América Latina o cinema se educou pela pedra. É com um olhar distante, sombrio, duro como pedra, que Arturo Ripstein descreve o pesadelo da cantora Lucha Reyes em La reina de la noche (1994). Cortes duros, secos, marcam o estilo neo-realista com que Lolo (1993) de Francisco Athié registra o beco sem salda do jovem mexicano empurrado para a marginalidade. E marcam também a atmosfera expressionista usada por Fernando Sariñana em Hasta morir (1994) para mostrar essa mesma violencia suicida do jovem mexicano marginalizado que agride o mundo em volta e agride a si mesmo com pedradas. É com um olhar cheio de piedade que Francisco Lombardi vê em Sin compasión (1994) se repetir o Crime e castigo de Dostoïevski na Lima de hoje, na historia de dois jovens pressionados entre a injustiça da sociedade e a compaixào religiosa. É com um olhar atormentado por fantasmas e sonhos desfeitos que Miguel Littin conta seu retorno a Santiago depois da ditadura de Pinochet em Los náufragos (1994), e que Gonzalo Justiniano narra o reencontró com o militar responsável pela execuçâo sumaria de um grupo de presos políticos chilenos em Amnesia (1994). Um sentimento trágico se encontra colado nestes olhares tal como uma lente de contato aplicada sobre o olho da camera. Este modo de ver é também o impulso que caracteriza o personagem e a narrativa de Lamarca (1994) de Sérgio Rezende, um réquiem para o militar brasileiro que no final dos anos 60 abandonou o exército para comandar a guerrilha contra a ditadura de 64. Um sentimento trágico assinala a historia de Tita, proibida de casar-se pela tradiçâo familiar que obriga a filha mais jovem a cuidar da máe para sempre, e de Pedro, que se casa com a irmâ mais velha de Tita só para poder viver perto da mulher amada, em Como agua para chocolate (1991) de Alfonso Arau. Um idéntico sentimento marca a atmosfera expressionista usada por Dana Rotberg para discutir a condiçâo feminina através do triángulo filha/pai/mâe em Angel de fuego (1992). Uma visäo trágica se encontra também em dois recentes curtos mexicanos: Haciendo la lucha (1994) de Juan Antonio de la Riva, sobre os previamente programados dias de ganhar e perder dos lutadores de luta livre, e El héroe (1994) de Carlos Carrera, desenho animado em que uma jovem suicida se finge de vitima do homem que evitou que eia saltasse diante do trem que chegava à estaçâo para, em seguida,

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seu salvador já nas mâos da policía, matar-se em paz. Um impulso trágico é igualmente o ponto de partida de El dirigible (1994) de Pablo Dotta, narraçâo quase sem açào alguma para discutir a falta de urna imagem, o vazio, alguma coisa que ficou em branco, que nào se fez e nao permite que o Uruguai se complete como país. A tragedia está presente no começo do suave Veja esta cançâo (1994) de Carlos Diegues, atravessa as historias tensas do chileno Johnny cien pesos (1993) de Gustav Graef Marino, e do argentino Gatica, el mono (1993) de Leonardo Favio, concluí a historia de pai e filho depois que a mâe sai de casa para se tornar atriz de filmes pornôs em Perfume de gardénia (1992) de Guilherme de Almeida Prado, concluí ainda a comedia em torno da gente pobre e sem casa para morar no colombiano La estrategia del caracol (1993) de Sergio Cabrera, e cobre o abraço final de David e Diego no cubano Fresa y chocolate (1994) de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabio. A tragedia, urna realidade ou apenas um sonho? A tragedia, o cinema sem presente ou o pais sem futuro?

Este impulso em direçâo a urna dramaturgia trágica (melodramática, corrige um dos personagens de El callejón de los milagros, 1994, de Jorge Fons: "tragedias viveram os gregos. Nós vivemos melodramas") parece resultar da vontade de discutir a falencia dos esforços feitos até aqui para reduzir as desigualdades do quadro social latino-americano. Este impulso resulta, também, de uma vontade puramente cinematográfica: discutir idéntica falencia das açôes feitas para corrigir as distorçôes do quadro cinematográfico, discutir o cinema, e nesta discussáo falar também do país como um todo controlado pela grande industria internacional do audiovisual. Como um todo voltado quase exclusivamente para filmes com aparéncia de video game ou video games com aparéncia de filmes. Este impulso, enfim, parece resultar de uma vontade de dialogar com as estruturas de composiçâo deixadas de lado no período em que nos cinemas na América Latina a camera se movia em funçâo da cena e os filmes nasciam da espontaneidade surpreendida no instante da filmagem; nasciam do que se podía inventar quase de improviso diante da camera; deviam mais à invençâo coletiva durante a filmagem do que a uma encenaçâo rigorosa de uma historia previamente planejada, escrita e ensaiada para ser (quase só) registrada na filmagem. Noutras palavras, o melodrama parece estar sendo retomado nao propriamente como uma visäo do mundo mas como um meio de comunicaçâo, como uma convençâo narrativa, como lingua comum através da qual realizador e espectador possam conversar, assim como aconteceu num passado nao muito distante, quando a expressâo melodramática - no cinema, na música, nas novelas de ràdio - se entendía à vontade com os espectadores latino-americanos. O componente trágico dos filmes de agora se mostra como expressào ambigua: mostra uma vontade de recuperar e atualizar um passado de sonho (uma realidade virtual), em que a relaçâo entre o filme e o espectador era mais aberta. E ao mesmo tempo mostra uma ainda näo muito bem articulada sensaçào de que o cinema hoje se confunde com o poder, de que o audiovisual hoje nào é só um veículo a serviço do poder, mas o centro que comanda e coloniza, o centro, o espaço em que o poder se pensa e pensa novas formas de nos impor

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urna existencia trágica. U m problema da América Latina, mas nao exclusivamente da América Latina. Hoje todo o mundo do cinema (ou todo mundo através do cinema?) sofre pressâo idéntica para sonhar o mesmo sonho, um só, que se repete todas as noites. Os filmes à margem da grande indùstria, por isso, estâo debruçados ao mesmo tempo para fora e para dentro de si mesmos, para o que estimula sonhar um mundo diferente e para o que inibe e aprisiona o sonho, para o que impôe urna existencia trágica ao sonhador. Transformados em sonho que o sonhador esquece assim que desperta de manhâ, ou em pesadelos que ninguém quer sonhar, os filmes da América Latina, e os de qualquer outro ponto fora do centro do poder audiovisual, estâo confinados num canto da tela, para um público quase sempre desinformado e desmotivado para vê-los. Talvez se possa dizer que hoje, em todos os países, existe o que poderia ser chamado de urna classe mídia, formada por pessoas de diferentes grupos económicos e sociais unificadas em torno da linguagem dominante do audiovisual norte-americano. Unificadas pela linguagem, pelo contar e nào pelas coisas contadas. Talvez se possa dizer que na América Latina (mas convém insistir: nao apenas na América Latina) muitas pessoas migraram de seus países, mesmo sem sair de suas fronteiras, mesmo sem deixar suas casas, para esta terra virtual - que, esta sim, podem identificar como sua. E talvez se possa dizer ainda que a perspectiva latino-americana, a invençâo de novas identidades coletivas, se encontra no extremo oposto da destruiçâo de identidades nacionais proposta nesta terra-linguagem do audiovisual da grande industria, e por isso os cinemas latino-americanos pareçam para os latino-americanos conversa em lingua estrangeira. Estrangeiro em sua pròpria tela, o cinema sonha a prisäo dos sonhos. Depois de sonhar que nao conseguía dormir, o cinema latino-americano despertou para um pesadelo. Quando mais forte surgiu entre nós o desejo de enfrentar o problema comum, a misèria, e perseguir o objetivo comum, a libertaçâo cultural (e económica, e política) da América Latina, o modelo, o ponto de partida para a invençâo cinematográfica era a realidade imediatamente visível que entào se tentava encobrir. Mais exatamente, era uma atitude poética e política diante do imediatamente visível. Por isso mesmo Glauber podia dizer que a idéia de um cinema latino-americano capaz de superar nacionalismos e fronteiras ultrapassava o sentido puramente cinematográfico. Hoje, ao contràrio, nossos cinemas procuram nào ultrapassar o puramente cinematográfico. Partíamos de uma vontade de documentar (mesmo nos filmes de ficçâo). Hoje partimos de uma vontade de ficçâo (mesmo nos documentários). Por isso mesmo Glauber propos, no começo dos anos 70, saltar da estética da fome para a do sonho. Sonhávamos de olhos abertos para a realidade. Agora só temos olhos para a realidade do sonho. Nâo por acaso os filmes mexicanos têm se destacado na produçâo recente da América Latina. Acostumados a trabalhar em estudios, a ambientar suas historias em cenarlos e luzes artificials, eles propôem uma releitura daquela espécie de traduçâo popular da tragèdia, os dramas chorosos e melodiosos em que os heróis na tela sofriam todo o sofrimento do

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mundo em lugar do espectador. Na verdade propôem mais que urna simples releitura - os filmes sâo uma crítica de cinema filmada: Ripstein faz documéntanos sobre o melodrama, La mujer del puerto (1991), Principio y fin (1993). Jaime Humberto Hermosillo, comédias sobre o melodrama, Intimidades en un cuarto de baño (1990), La tarea (1991); Guillermo del Toro, ficçâo científica sobre o melodrama, Cronos (1993); Jorge Fons, uma encenaçlo distanciada, à maneira de Brecht, do melodrama: El callejón de los milagros (1994). Enquanto Nelson Pereira dos Santos, observando o México do Brasil, propôe um melodrama sobre o melodrama, Cinema de lágrimas (1995). "No es consciente, nunca nos propusimos vamos hacer un melodrama como tarea explicou recentemente Arturo Ripstein - pero finalmente uno es hijo de su tiempo y de su entorno y eso es ineludible. Nosotros no somos una generación a la que le hayan ocurrido más cosas que estar sentados en una sala cinematográfica. Hemos vivido la vida vicariamente a partir de las imágenes del cine. Viendo películas hemos aprendido desde cómo se elimina un vampiro, cómo es un linchamiento o cómo se organiza un safari, hasta cómo se enamora a una mujer. Somos productos del cine..." Os novos filmes mexicanos estao realizando a idéia que, ainda imprecisa talvez, inconsciente talvez, se encontra na cabeça da geraçâo que neste instante está com a camera na máo: projetar a realidade nâo como eia é mas assim como costumamos pensá-la num sonho. Filmávamos com o visor sem camera. Filmamos agora com a camera sem visor. [Quinta imagem: a tela dividida, très pedaços de filme correndo simultaneamente, o operario que saiu da fábrica livre para interferir com um controle remoto e destacar um fragmento, montar os très na ordem que preferir ou um dentro do outro. A cbegada de um trem a estaçâo (1895) de Louis Lumière. A terceira margem do rio (1994) de Nelson Pereira dos Santos. Coronel Delmiro Gouveia (1978) de Geraldo Sarno. O trem surge pequenino là no fundo e avança na direçâo da estaçâo como se fosse saltar da tela para dentro da sala. Avo e neta na margem da cidade grande descobrem a televisâo. A avó se encanta com o anuncio de chocolate e pede à neta que faça um milagre e consiga um bombom igual ao do anuncio. A neta atende o pedido, os bombons saltam da televisâo para dentro da sala. Debruçado na cerca do curral da fazenda, roupa de vaqueiro, calça e gibâo de couro, o Coronel Ulisses Luna, depois de ouvir Delmiro Gouveia explicar como pretende montar uma usina elétrica e uma fábrica no sertào, comenta: Έ do pròprio couro do boi que se tira a correla". O trem como imagem do sonho em que pensamos uma experiència da vida despena como se nâo estivéssemos pensando, mas vivendo uma cena de verdade, a tela agindo sobre o espectador. O milagre dos bombons como representaçâo da sensaçâo de realidade tal como eia se dá hoje, cem anos depois da chegada do trem, o espectador agindo sobre a tela que nâo mais reapresenta ou representa, mas substituí a realidade. Vivemos como espectadores. Despertos somos um pesadelo. Acordamos ao interagir, ao apanhar pedaços da realidade do vídeo para alimentar nossos sonhos. O Coronel Ulisses, a roupa de vaqueiro e a correla feita do pròprio couro do boi como sugestâo para amarrar o audiovisual com audiovisual. Fazer como Promio, que um dia experimentou inverter a proposiçâo. Fazer como Glauber que um dia experimentou "perder o respeito religioso pelo cinema e, mesmo canhestro, pegar na càmera para informar nâo pela lògica mas pela irreverencia poètica". Subverter a proposiçâo das novas tecnologías de produçâo de imagens, usá-las como se elas tivessem cem anos de escombros, transformá-las em

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poesia, inventar urna nova máquina estranha e tremendamente liberadora para levar a razâo dominadora a se auto-devorar diante da incapacidade de compreender.] O cinematógrafo inventou o cinema ou o cinema inventou o cinematógrafo? O Tiradentes de Joaquim Pedro de Andrade, o desejo de independencia antes de cuidar de como chegar até eia: toda descoberta se faz assim, e com o cinema nâo foi diferente. O desejo de sonhar inventou o cinema que reinventou o sonho que reinventa a realidade. O que nao sonha nao despena. A pintura, o romance, a poesía, o teatro, a música sonharam o cinema, fizeram cinema antes que o cinematógrafo viesse à luz. Ε o cinema há cem anos sonha com La invención de Morel de Bioy Casares, a máquina estranha que usa a natureza como tela e projeta ao ar livre, em très dimensôes, urna nova classe de fotografías que levam o narrador a se perguntar se as imagens têm vida pròpria, se sentem e pensam (ou, pelo menos, se têm os pensamentos e as sensaçôes que passaram pelos origináis durante a exposiçâo), se os pensamentos e as coisas sentidas sâo gravadas como um alfabeto, com o quai a imagem seguirá compreendendo tudo (como nós, com as letras de um alfabeto podemos entender e compor todas as palavras) ou se, ao contrario, estes simulacros de pessoas careceriam de consciência de si (como as personagens de um filme cinematográfico). O jovem venezuelano que se apaixona pela imagem de Faustine na invençâo de Morel e fotografa a si pròprio para viver na máquina ao lado delà: um precursor do espectador que hoje entra no espaço da imagem virtual? Quando, no começo dos anos 60, os cinemas da América Latina decidiram pôr-se frente à realidade com urna càmera e documentá-la, documentar o subdesenvolvimento, estavam sonhando com urna invençâo parecida com a de Bioy Casares para levar o espectador a participar de sua realidade. A defesa de um cinema feito com urna idéia na cabeça e urna càmera na mào - de um terceiro cinema, de um cinema imperfetto, de um cinema junto ao povo - expressa o desejo de urna ficçâo herdeira do cinematògrafo, da càmera de filmar sem visor diante dos operários saindo da fábrica, do almoço do bebé, do trem chegando à estaçâo: urna ficçâo para mostrar na realidade como eia é o que nela nâo deveria ser assim como é. Ao testemunhar a realidade da América Latina, o trem chegando à estaçâo (Tire dié, 1962, de Fernando Birri), os operários saindo da fábrica ( Viramundo, 1965, de Geraldo Sarno), ou o almoço do bebé (Ollas populares, 1967, Gerardo Vallejo), o cineasta latinoamericano nega que a realidade tenha que ser assim como eia é: la niega, reniega de ella, como anota a brevissima teoria do cinema documentàrio de Fernando Birri. O cineasta, ao filmar a realidade, a denuncia, julga, critica, desmonta, sonha. O cinema, clizia Humberto Mauro, precisa estimular a imaginaçâo do espectador para nâo se reduzir a urna reproduçâo servil da realidade ¿mediatamente visível. No começo dos anos 60 estávamos, ao mesmo tempo, buscando um cinema olho, um espaço entre o retratar e o remontar o mundo que se deu especialmente no tempo que vai de Lumière ao Neo-realismo; buscando um cinema intelectual, que Eisenstein sonhou, e um cinema delirio, para ser visto como se o espectador estivesse numa cama, numa festa, numa

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greve ou numa revoluçâo, tal como alucinou Glauber. De olho na realidade imediatamente visível sonhávamos a invençâo da imagem digitai para jogar o computador na fogueira dos Parintintins, e assim continuar a luta pela descolonizaçâo do sonho, porque o sonho padronizado, que inibe, prende, coloniza, deixa no ar a sensaçâo equivocada de que é melhor nem sonhar. Recuperar o sonho tem sido o esforço comum de nossos cinemas. Razoavelmente diferentes entre si, os filmes da America Latina, mesmo os que parecem mais interessados em apenas documentar a realidade, mesmo os que se mostram sonhos mal dormidos, partem todos da preocupaçâo de evitar que o espectador possa ser reduzido ao que Buñuel certa vez definiu como o pior do homens: um ser asqueroso, diziam que nunca havia sonhado. E, convém repetir, o que nao sonha nao desperta.

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Bibliografia As citaçôes incluidas no texto sâo extraídas de depoimentos, ensaios e estudos diversos publicados nos seguintes livros: Andrade, Carlos Drummond de (1930): Alguma poesia. Belo Horizonte: Ed. Pindorama Barros, Manuel de (1990): Gramática expositiva do chao (poesía quase toda). Rio de Janeiro: Ed. Civilizaçâo Brasileira Bergman, Ingmar (1960): Four Screenplays oflngmar Bergman. Londres: Seeker and Warburg Bioy Casares, Adolfo (1968): La invención de Morel. Buenos Aires: Emecé Ed. Birri, Fernando (1964): La escuela documental de Santa Fe. Santa Fe: Ed. Documento, Universidad Nacional del Litoral Chardère, Bernard (1987): Lumières sur Lumière. Lyon: Ed. do Institut Lumière e Presses Universitaires de Lyon — (1995): Le roman des Lumière Paris: Ed. Gallimard Chardère, Bernard; Borgé, Guy e Marjorie (1985): Les Lumière. Lausanne: Ed. Payot Eisenstein, Sergei (1990): A forma do filme [Film Form.]. Traduçâo de Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. Freud, Sigmund ^1988): A interpretaçâo dos sonhos [Die Traumdeutung]. Traduçâo de Walderedo Ismael de Oliveira, revista por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago Ed. Guiérrez Alea, Tomás (1982): Dialéctica del espectador. Havana: Unión de Escritores y Artistas de Cuba Hutinet, Jacques Rittaud (1994): Auguste et Louis Lumière. Correspondencias, seleçâo e notas de Jacques Rittaud Hutinet, com a colaboraçâo de Yvelise Dentzer. Cahiers du Cinéma Klee, Felix (1980): Paul Klee Gedichte. Organizaçâo de Felix Klee, Zurich: Verlag der Arche Melo Neto, Joâo Cabrai de (1966): A educaçâo pela pedra. Rio de Janeiro: Ed. do Autor Moussaieff Masson, Jeffrey (ed.) (1986): A correspondencia completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess, 1887-1904 [The Freud/Fliess Correspondence]. Traduçâo de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago Ed. Pasolini, Pier Paolo (1976): L'expérience hérétique, langue et cinéma [Empirismo herético]. Traduçâo para o francés de Anna Rocci Pullberg. Paris: Payot Rittaud-Hutinet, Jacques (1985): Le cinéma des origines. Seyssel: Ed. du Champ Vallon Rocha, Glauber (1965): Deus e o diabo na terra do sol. Organizado por Alex Viany. Rio de Janeiro: Ed. Civilizaçâo Brasileira — (1981): Revoluçào do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Ed. Alhambra/Embrafilme Santos, Nelson Pereira dos (1994): A terceira margem do rio. Folheto de divulgaçâo. Rio de Janeiro: Riofilme Tedlock, Barbara (ed.) (1987): Dreaming, Anthropological and Psychological Interpretations. Com ensaios de Ellen Basso e Waud Kracke, entre outros. Cambridge: School of American Research, Cambridge University Press Viany, Alex (ed.) (1978): Humberto Mauro, sua vida, sua arte, sua trajetória no cinema. Rio de Janeiro: Artenova/Embrafilme, pp. 173-176

Perspectivas

latino-ameñcanas

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Machado de Assis no contexto das letras latino-americanas

A produçâo ficcional de Machado de Assis que se estende de 1880 a 1900 nao encontra no contexto latino-americano do periodo nenhum termo de comparaçâo. Beneficiario de um lastro de textos que, a partir da década dos 40, fizera do Rio de Janeiro centro vivo de atividade literaria, a ficçâo machadiana avulta como fenómeno singular no continente americano. Frente a correntes de pensamento em voga e modas literarias da época, narrativas como Memorias postumas de Brás Cubas, Quincas Borba e O alienista singularizam-se pela discrepancia. Brás Cubas parodia a narrativa histórica e profana o culto historicista; Quincas Borba satiriza o evolucionismo darwiniano e apresenta um simulacro parodístico do otimismo comtiano e da filosofia de Schoppenhauer. Caricatura do cientista convitto de suas verdades e heresiarca do culto à razào, Bacamarte solapa ficcionalmente as bases do cientificismo e do racionalismo. Como se sabe, ñas últimas décadas do XIX, processa-se nas Americas generalizada conversâo aos ideáis positivistas. Conforme atesta Leopoldo Zea: "Se deja sentir una era de progreso y, con ella, una era de gran optimismo. En política las palabras libertad, progreso y democracia sobre bases científicas e positivas aparecían como nuevas banderas."1 Machado de Assis, que deixara extinguir-se com os ardores da juventude todo entusiasmo pela modernizaçâo liberal, afia a linguagem na análise e demoliçâo de ideologías tanto ingenuas quanto bem-intencionadas. Enquanto um Sarmiento na Argentina alimentava a crença de que ciencia e cultura fatalmente venceriam ignorancia e barbarie, e, algumas décadas antes, um Lizardi no México ensaiara no romance-folhetim a aclimataçâo do racionalismo iluminista, Machado espicaçava a retórica do ideario em voga e corroía o modelo de civilizaçâo concebido como via de redençâo humana. Cubas, Rubiâo, Bacamarte instalam o debate no interior dos sistemas culturáis e estabelecem um primeiro distanciamentó crítico frente a adesâo acritica às idéias recebidas. Violando fronteiras entre razào e loucura, verdade e ilusâo, historia e ficçâo, praxis liberal e praxis conservadora, Machado se adiantava aos contemporáneos na percepçâo da crise que iria agravar-se. Entende-se, assim, por que no contexto brasileiro Capistrano de Abreu e Silvio Romero, ainda que intelectual e metodologicamente atualizados, falhassem na percepçâo do novo que despontava através da fabulaçâo machadiana, pois tentaram compreendê-la a partir de fundamentos fixos que Machado abalava. Longe de se deixar entusiasmar com a agitaçâo de bandeiras do tipo civilizaçâo, patria, progresso, que constituíam compromisso de autores como Sarmiento, Martí ou Rodó, o ficcionista brasileiro optara por dedicar-se à dissecaçâo dos conteúdos que se ocultavam por detrás de tais rótulos. Problematizando a relaçâo da linguagem com o mundo da cultura e

Leopoldo Zea: El pensamiento latinoamericano. Barcelona: Ariel, 3 1976, p. 86.

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da historia, o pai de Brás Cubas abria um sulco de descontinuidade cultural, instaurando, desse modo, ñas literaturas americanas, a tradiçào da ruptura que, de acordo com Octavio Paz, marca a modernidade.2 Compreensível, portanto, que a sua obra fosse recebida por muitos, durante muito tempo, como um corpo estranho, urna voz dissonante. A crítica brasileira percebeu logo a discrepancia. Ainda em 1950, dentro de urna postura de revisào crítica que marca os ensaios de Prosa deficçào, Lucia Miguel Pereira observava ser fácil situar Machado de Assis na sociedade brasileira e difícil situá-lo na literatura brasileira. Seis anos antes de Lucia, ainda sob os efeitos do reboliço provocado pelo movimento modernista, Càndido Mota Filho radicalizava, asseverando que na literatura brasileira Machado de Assis nâo é uma culminância ou uma conclusâo. "E", afirma o ensaísta, "um estranho e um paradoxal. Para chegar a ele nâo há caminhos intermediarios. Nào tem precursores nem discípulos. É impressionantemente só. Com ele a literatura nào progride nem regride".3 Na verdade, Machado ficcionista nào se apresenta tao solitàrio no oitocentos brasileiro como parece ser o caso dos romancistas hispano-americanos. O chileno Alberto Blest Gana, por exemplo, depois de incursionar pelo romance de costumes, na última década do século experimenta o romance histórico, tentando aclimatar ao sub-continente formas narrativas hauridas na tradiçào espanhola, coisas que a novelística brasileira tinha começado a desenvolver quarenta anos antes, legando ao narrador brasileiro um repertorio de recursos que possibilitariam grandes avanços. Reconhecer antecedentes, porém, nâo significa aplainar o relevo que ressalta a posiçâo de Machado romancista no panorama das letras americanas. E, sem ufanismo, podemos adotar a assertiva do británico John Gledson, para quem "Machado ocupa lugar de singularidade na historia do romance".4 Singularidade alicerçada na renuncia ao senso de comunidade e nacionalidade que, de acordo com o ensaísta, balizariam a escrita da maioria dos grandes romancistas do século XIX. A excepcionalidade de Machado deve-se à solidez do seu universo ficcional, fundado na irredutível alteridade do discurso literario. No suicidio da razao, praticado com convicçào científica por Bacamarte, por exemplo, mais do que uma sátira às práticas psiquiátricas da época e mais do que uma alusâo ao poder incontrastável das oligarquías, verifica-se a implosào da lògica racionalista, que é corroída por dentro. No empenho de autodepuraçào, a razäo encontra, no mais intimo de si mesma, a semente da loucura. Repetindo a metáfora de Dom Casmurro, pode-se dizer que a loucura descoberta pelo alienista está dentro da razào corno a fruta dentro da casca. De modo análogo, a ruina física, social e moral do ingènuo Rubiào nào exaure seu alcance no nivel da representaçâo histórico-social. Mais do que uma caricatura das veleidades aristocratizantes da elite que esvoaçava em torno dos lustres do Segundo Reinado, o Kitsch instalado nos gestos e palavras do herdeiro de Quincas Borba denuncia o ridículo do ator que decodifica segundo as projeçôes do desejo as charadas que Palha, Sofía, Camacho lhe propòem no código ambiguo da comédia social. Rubilo encarna por certo a

2

Octavio Paz: Poesía en movimiento. México: Siglo XXI, 1966.

3

Cándido Mota Filho: O caminho de très agonías. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 90.

4

John Gledson: Machado de Assis:ficçàoe historia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 255.

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figura do nouveauricheque, tendo por acaso escapado às malhas de sua primitiva condiçâo social, nâo consegue romper o casulo da ingenuidade provinciana, e acaba por se render à misèria de sua pròpria ruina. Na alienaçâo megalómana de Rubiâo, é lícito 1er, concentrados, os síntomas de loucura disseminados à sua volta: arremedos de urna aristocracia à européia praticados por arrivistas e ilusâo de progresso assentado no escravismo e na oligarquía rural. À época em que o autor de Quincas Borba submetia a materia social e politica do oitocentos brasileiro a essa critica corrosiva, o peruano Ricardo Palma vasculhava a cronica do passado hispánico do seu país recolhendo, no pitoresco do anedotário herói-cómico, traços de urna identidade regional. Nao obstante a alegre irreverencia do autor das Tradiciones peruanas, percebem-se nesses saborosos relatos tributos à fé romántica na tradiçâo, força modeladora da alma nacional. Machado aboie o pitoresco e corrói com impiedoso humor toda retórica de exaltaçào nativa. Comentando a proposiçào do crítico uruguaio Angel Rama, que reconhece apenas dois autores supremos na literatura latino-americana do XIX - Machado de Assis no Brasil e José Hernández na Argentina - Antonio Candido chama a atençào para o fato de ter o nosso romancista "construido à margem das tendencias características, enquanto o cantor de Martín Fierro nelas mergulhou de corpo inteiro". Admitindo que essas "duas faces da literatura do sub-continente formam através da obra de ambos uma unidade expressiva superior", salienta o crítico que, "enquanto Hernández elaborou de certa maneira o esperado, Machado de Assis fez de todos os inesperados da fabulaçâo e da linguagem o timbre de sua incomparável grandeza".5 Mas se, no contexto sincrónico das letras hispano-americanas, nao há obra ficcional que se compare à de Machado de Assis, impôe-se uma aproximaçâo anacrónica com as ficciones de Jorge Luis Borges. Tal encontre, embora possa parecer arbitràrio, justifica-se tanto pelas fontes em que ambos beberam quanto pelas afinidades temáticas e formais que, a cada passo, o cotejo de textos é capaz de surpreender. Quanto às fontes, basta lembrar que Borges, como Machado, freqüenta assiduamente os clássicos, aproveita as liçôes da novelística inglesa do XVIII, apropria-se da narrativa filosófica e parodia a reflexäo sentenciosa dos moralistas franceses do XVH. Leitores ruminantes, ambos desenvolvem uma pràtica da escrita que é negacelo e negociaçâo do texto produzido com carnadas de textos subjacentes. A idéia de palimpsesto tematizada por Borges através de argumentos narrativos que se apresentam como resgate de versóes perdidas, recuperadas graças ao empenho de um leitor imaginário, encontram correspondencia no narrador machadiano convertido em editor de manuscritos alheios, diários secretos, cartas ou testamentos, como se le na "Advertencia" de Esaù e Jacó e em muitos contos: "A serenissima república", "Uma visita de Alcibíades", "Ultimo capítulo" etc. Tanto o discurso de Machado quanto o de Borges, insistentemente auto-reflexivo, reitera imagens de representaçâo, como espelhos, reflexos, copias e duplicatas, encruzilhadas semánticas e encontros paradoxals. A temática do duplo, que Machado

5

Antonio Candido: "O P.E.N. Clube, o patrono tácito", in: Revista Convivencia. Rio de Janeiro: P.E.N. Clube, 1992, pp. 63-64.

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trabalhou especialmente em Esaù e Jacó e η " Ό espelho", alcança expressâo màxima em "El otro", o conto que abre El libro de arena. Síntoma da representaçâo em crise e crítica às certezas decorrentes da confiança depositada na noçâo de realidade, "essa apariçâo espectral que teria procedido dos espelhos, ou simplesmente da memoria, faz de cada qual um espectador e um ator", como observa o pròprio Borges.6 Duplicidade que Machado encenou em sete contos tematizando aspectos críticos da criaçâo artística, dentre os quais "O cônego ou metafísica do estilo" e "Cantiga de esponsais" constituem modelos emblemáticos. O núcleo da cena, tanto no caso do Cônego Matias quanto do maestro Româo, é o branco que paralisa a escrita. A ficçâo investiga o hiato entre expressâo e sentimento, palavra e acontecimento, arte e conhecimento. Nesse ponto, dominio da lingua e densidade da experiencia nâo ajudam a sair do impasse. Na alegoría de Silvia e Silvio, o adjetivo e o substantivo que amorosamente se procuram, o narrador machadiano figurou a fábula da invençâo como originalidade predestinada na combinaçào de palavras que engendram urna coisa nova. Λ maneira de Borges, Machado cancela a barra entre sonho e realidade. Pois, "o que chamamos de realidade é de essência onírica". Assim: "Toda literatura é fantástica... a pròpria realidade é fantástica... a audàcia de se supor que podemos fixar o mundo em palavras é fantástica"/ A literatura como des-realizaçâo da realidade ou efetivaçâo do sonho consumase naqueles discursos que pensam por imagens e parábolas. Para dizê-lo com Fabbri: "urna parábola [...] é urna estrutura de argumento figurativo e as metáforas sào formas sagazes de raciocinio."8 Tanto as ficciones borgianas quanto as machadianas exercitam a sagacidade de raciocinio através de fabulaçôes fantásticas. Ao invés de duplicar o mundo dado, a fábula se dá com força de evento, alteridade irredutível a categorías ou conceitos previos. Por isso fracassam todas as tentativas, mesmo as mais engenhosas, de 1er a narrativa ficcional como imagem reflexa do mundo social, histórico ou político. Eu creio que aínda nao se enfatizou bastante o caráter de fábula da ficçâo machadiana. Prosa emancipada das cadeias de época e das categorías classificatórias, a singularidade de Machado pode agora ser mais urna vez atestada através da leitura do conto "Terpsícore", que acaba de ser publicado pela primeira vez em livro,' cem anos depois de ter sido estampado em letra de forma. Entretecendo acaso e fatalidade, banalidade e surpresa, lucidez e fantasía, "Terpsícore" parece confirmar a proposiçâo borgiana de que toda a literatura é fantástica. Ancorado no dia-a-dia de um casal da baixa classe média, o texto mescla o ordinàrio com o extraordinario, fazendo o maravilhoso irromper do cotidiano. O acaso de um lance imprevisto tem o poder de mudar o destino dos personagens e

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Jorge Luis Borges: El libro de arena. Madrid/Buenos Aires: Ultramar-Emecé, 1975, p. 179. Traduçâo minha. Borges apud Carlos R. Sortini, in: Dicionário de Borges. Trad, de Vera Mourào, Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 129. Paolo Fabbri: "Babel feliz —Babelix, Babelux [...] ex Babele Lux", Trad, de Joào Cezar de Castro Rocha, in: Crises da representaçâo. Rio de Janeiro: UERJ, Cadernos de Mestrado/Literatura, 1994, p. 32. Machado de Assis: Terpsícore. Sao Paulo: Boitempo, 1996.

Macbado de Assis no contexto das letras latino-amerìcanas

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inverter o sentido da roda da fortuna. Porfirio, empregado pobre de urna loja, tocado pela visâo maravilhosa de Glòria, a musa da dança, transforma-se aparentemente em sujeito forte, capaz de impor a sua vontade ao mundo que o cerca. N o ápice do deslumbramento, olha para Glòria com olhos de autor, como diz maliciosamente o texto. Fascinado pela deusa, surpreendida casualmente no instante da transfiguraçâo, Porfirio nâo mais se conforma com a ratina opaca do senso comum. Por isso, aposta no extraordinario, encenando e re-encenando o instante de maravilhamento. Ñas bodas de nupcias, na festa de estrondo quando queima toda a fortuna que a sorte grande lhe pôs ñas mâos, Porfirio se empenha em romper o previsível e o esperado. Mas a subversào da ordem cotidiana, ainda que programada e executada por Porfirio, é na verdade decorrenda da magia irradiada pela figura deslumbrante de Gloria dançando. O principio de transgresslo reside, assim, em Gloria, cabendo a Porfirio, o inebriado de encantamento, montar o espetáculo para contracenar com a deusa. A impressâo de que é ele o dono da festa decorre do ponto de vista da narrativa, formalizado gramaticalmente em terceira pessoa, mas efetivamente comprometido com um olhar estranho colado ao olhar deslumhrado de Porfirio. Tao mais discreto aquele quanto mais esse se escancara, participam ambos da cumplicidade acumpliciadora que visa subjugar o leitor ao fascínio do jogo ficcional. Lances da sorte e decisôes da vontade, violaçâo do comum e entusiasmo dionisiaco irrompem à superficie da cotidianidade, fazendo emergir o diferente que escapa às malhas de toda constriçâo. Esta ficçào é fantástica. Herdeiro da tradiçâo da sagacidade lùcida, Machado de Assis, ao lado de Jorge Luis Borges, é um desses interlocutores indispensáveis ao debate contemporáneo da cultura. E do humor de Machado é licito repetir o que Foucault afirmou do riso de Borges "que sacode todas as familiaridades do pensamento [...] inquietando por longo tempo a pràtica do Mesmo e do Outro". 10 Bastaría evocar Brás Cubas, que, sob a aparência de repetiçâo de Sterne, pratica outra escrita, irredutível ao mesmo do ficcionista europeu. Autores latinoamericanos, Machado e Borges destoam dos seus pares na medida em que säo capazes de provocar indagaçôes cruciais no contexto da modernidade porque, dialogando criticamente com a tradiçâo, foram capazes de abrir caminhos inesperados por entre os tesouros da tradiçâo. Por isso suas obras, hoje tâo atuais, repercutem sobre as matrizes que fecundaram as nossas culturas. É Antonio Candido que junta os nomes dos dois ficcionistas na citaçâo com que concluo: [...] resulta posible decir que Jorge Luis Borges representa el primer caso de una influencia original indiscutible, ejercida de manera amplia y reconocida sobre los países-fuente mediante un nuevo modo de concebir la escritura. Machado de Assis, cuya originalidad no es menor en este sentido y sí es superior en lo que tiene de ver con la visión del hombre, podría haber abierto rumbos nuevos para los países-fuente a fines del siglo XIX. Pero se perdió en la arena de una lengua desconocida, en un país que en aquel entonces no tenía ninguna importancia."

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Michel Foucault: Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 7. Traduçào minha. Antonio Candido: Ensayos y comentarios. Campiñas/México: Unicamp/FCE, 1995, pp. 181-182.

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1933. Año del incendio del Reichstag, Hitler es nombrado Canciller y el nazismo clausura la Bauhaus. Regresa a París, luego de dos años de investigación etnográfica, la Misión Dakar-Djibouti. En Estados Unidos, el presidente Roosevelt impone la política del "New Deal". Se levanta la censura contra el Ulisses de James Joyce; Bette Davis se consagra como estrella del cinematógrafo en Ex-Lady. Alan Krebs Manchester publica British Preeminence in Brazil. América Latina. 1933 forma parte de un momento decisivo de modernización, especialmente de las capitales urbanas. Es la época de la imaginación técnica: aparición de nuevos lectores por medio del folletín y del libro por capítulos, cultura de la radio, de los tranvías y del café, incorporación masiva al mundo de la cinematografía. En otras palabras, cambios acelerados en la geografía urbana y en los códigos socioculturales. Por lo menos desde los años 20, las ciudades latinoamericanas se modernizan a una velocidad sin precedentes. La producción cultural acompaña las transformaciones urbanas. En el ámbito cinematográfico, 1933 define el rumbo del cine nacional en los centros productores de América Latina. La mujer del puerto de Arcady Boytler y El compadre Mendoza de Fernando de Fuentes, en el caso de México; Ganga bruta de Humberto Mauro, en el Brasil. Por su parte, la literatura retrata las oscilaciones entre los códigos políticos y estéticos. Oswald de Andrade acelera la revisión crítica del modernismo brasileño cuestionando su propia figura de intelectual en Serafim Ponte Grande (1933). Escrito entre 1924 y 1928, el libro expresa nítidamente los conflictos entre las posturas ideológicas y las posiciones estetizantes. Análogamente Parque industrial (1933) de la joven Mara Lobo (Patricia Galvâo) constituye un documento social y literario de las desigualdades económicas del mundo modernista de Sao Paulo de los años 30. Intelectuales como Roquette-Pinto y Fernando Ortiz elaboran sus obras socio-antropológicas y discuten los problemas de la población, de la raza y de la asimilación. Pero sobre todo, la década del treinta brilla por el ensayismo. Se publican obras clásicas de América Latina: Evoluçào política do Brasil (1933) de Caio Prado Júnior; El perfil del hombrey de la cultura en México (1934) de Samuel Ramos; Insularismo (1934) de Antonio Pedreira; De cómo se ha formado la nación colombiana (1934) de Luis López de Mesa; Ratzes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda; Proceso y formación de la cultura paraguaya (1938) de J. Natalicio González. Y precisamente en este contexto modernizador, en el año 1933, surgen dos obras clave del pensamiento latinoamericano: Radiografía de la pampa [/?í] de Ezequiel Martínez Estrada y Casa-glande & senzala [CGS] de Gilberto Freyre. Martínez Estrada se traslada de la provincia a la capital. De Santa Fé a Goyena, y de Goyena a Buenos Aires, donde trabaja como empleado del Correo Central y como profesor de literatura en la escuela secundaria de la Universidad de la Plata. Es en los famosos años 20 cuando Buenos Aires se convierte en la capital de un imperio imaginario. El viajero Jules

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Huret, al referirse al Hotel Plaza, dice que "es una reducción de ese mundo cosmopolita que constituye la capital argentina, donde se codean todas las razas y se hablan todas las lenguas" (Vázquez-Rial 1996:75). Ciudad de cruces culturales intensos, se produce una marcada expansión en el ámbito de la sensibilidad. Beatriz Sarlo destaca la modernidad de Buenos Aires en las décadas del 20 y 30: triunfo de la ciudad sobre el mundo rural; procesos de refuncionalización del pasado; reacondicionamiento de las subjetividades; surgimiento de nuevas políticas y nuevas morales; utopías de ascenso; tecnologización de lo cotidiano; calle céntrica vs. calle de barrio; emergente sistema de oportunidades abierto a los textos de la cultura (cf. Belluzzo 1990:32-43). El caso de Freyre es peculiar. A finales de la Primera Guerra Mundial deja Recife para estudiar en los Estados Unidos. Primero en la Universidad de Baylor, Texas, luego en la Universidad de Columbia, Nueva York, donde completa su maestría en Ciencias Sociales. Viaja a continuación por Europa, en particular a París, Oxford y Berlín. Es hasta 1923, después de cinco años de ausencia absoluta, cuando retorna a Recife. Conoce Río de Janeiro y Sao Paulo en 1926, es decir, después de haberse familiarizado en el exterior con los más importantes movimientos intelectuales de la época. Freyre mantiene con Recife una conflictiva relación de amor. Su rigurosa formación académica y cosmopolita, aliada al impacto producto del proceso modernizador, le posibilitó 'leer* la ciudad de Recife y sus alrededores desde la perspectiva del regionalismo y de la tradición. Prueba de la ciudad como espacio semiotico y como arquitectura de la afectividad es su Guia pràtico, histórico e sentimental da cidade do Recife (1934). Con ilustraciones de Luis Jardim y el uso abundante de fotografías como documento etnográfico, dicho Guia narra sintéticamente la historia de Recife desde una perspectiva de la hibridación. Se trata de una historia de los cruces culturales y de un estudio de los espacios de la heterogeneidad, centrado en la vida cotidiana y en la mezcla racial: cidade que por algum tempo reuniu a populaçào mais heterogenea do continente - louros, morenos, pardos, negros - catholicos, protestantes, judeus - portuguezes, caboclos, flamengos, africanos, inglezes, allemâes - fidalgos, soldados de fortuna, christäos novos, aventureiros, plebeus, degredados - gente das mais diversas procedencias, credos, culturas que aquí se misturou, fundindo-se num dos typos mais sugestivos de brasileiro. (Freyre 1934:2) Pese a constituirse en los ensayos 'clásicos' de sus respectivos países en el siglo XX, prácticamente no existen estudios comparativos entre Casa-grande & senzala y Radiografía de la pampa, reflejo de la barrera idiomàtica, de la distinción académica entre estudios hispanoamericanos y brasileños, de la ignorancia cultural mutua. Por cierto, abundan los comentarios críticos en cada obra en particular, a tal punto que resultaría posible escribir extensos libros sobre la historia de la interpretación, tanto de CGS como de RP. Jorge Luis Borges fue uno de los primeros en Argentina, ya en 1933, en reseñar el ensayo de Martínez Estrada, y desde entonces hasta el presente cada generación se ha encargado de ajustar cuentas con el maestro. El caso de Freyre no es distinto. Desde su publicación original en 1933 hasta hoy, CGS obliga a los intelectuales al constante ajuste de cuentas con esta versión híbrida, conciliadora, materialista y culturalista de la formación social brasileña.

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Ambos textos son elaborados entre 1930 y 1933. Un golpe militar encabezado por el general Uriburu derriba en 1930 el gobierno de Hipólito Yrigoyen en Argentina. La censura que ésta implica simboliza para Martínez Estrada "la crisis universal de todas las naciones civilizadas" (Martínez Estrada 1993:341); significa asimismo, como suelen apuntar los críticos, la transición de autor lírico a ensayista {ibidem., 445). Hasta entonces Martínez Estrada había publicado libros de poesía. Si bien su evolución hacia el género ensayístico no responde únicamente a la circunstancia histórico-política, es incuestionable la importancia del cambio en RP. Con todo, en el ensayo radiográfico el sustrato poético continúa vigente, confiriéndole brillo a las intuiciones. Intelectual e institucionalmente más diverso, Freyre había escrito en inglés una tesis de maestría sobre la vida social del Brasil en la mitad del siglo XIX, poesías sueltas de escaso valor, ensayos de crítica cultural y brillantes artículos periodísticos. Las circunstancias políticas de 1930 en el Brasil - la revolución de octubre comandada por el Movimiento Tenientista que depone a Washington Luis y coloca en su lugar a Getúlio Vargas (inicio de la Segunda República) - conduce a Freyre a su exilio en Portugal, ya que éste era secretario particular del gobernador Estacio Coimbra en Pernambuco y decide acompañarlo en el exilio. Aunque el escritor recifense pretendió inscribir su obra como ruptura radical con la tradición brasileña y con su propia trayectoria individual, resulta indudable que su evolución intelectual observa continuidades con esa tradición y con sus intereses de los años veinte.1 Social Life in Brazil in the Middle ofthe Nineteenth Century (1922) investiga el pasado colonial brasileño, la vida privada, las relaciones de intimidad, el problema de los géneros sexuales. Posteriormente, O limo do Nordeste (1925) implica la revalorización del pasado y del presente regional, de la cultura de la caña de azúcar en el nordeste, de la culinaria, la pintura, la arquitectura, la música. Antes que la pretendida discontinuidad, lo que se produce es la redefinición del campo cultural y la dignificación del estudio del pasado regional. Mencioné que la década del treinta fue especialmente rica en el género ensayo. La libertad del género y su falta de tradición formal permitían un estilo fluido, sin necesidad de indicar las fuentes consultadas. Freyre se aparta parcialmente de este modelo. Una de las razones del impacto de su texto reside precisamente en el uso de una bibliografía hasta

Aunque sería durante el exilio en Lisboa en 1930 que surgiría la idea del libro, Freyre aprovecharía gran parte de sus investigaciones anteriores para escribir Casa-grande & senzala. "Estando em Lisboa veio-me entào a idéia de escrever um traballio que abrisse novas perspectivas à compreensâo e à interpretaçâo do Homem através de urna análise do passado e do ethos da gente brasileira: trabalho que quatro anos antes, estando nos Estados Unidos e tendo à minha disposiçào manuscrito e obras raras da Brasiliana de Oliveira Lima, em Washington, eu já pensara tentar realizar" (Freyre 1968:126). Esta afirmación encuentra respaldo en la correspondencia de los años veinte con Manuel Bandeira. Por otra parte, Freyre vincula Casa-grande & senzala a su tesis de maestría de 1922, Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century (Freyre 1986:99-114, en particular 105).

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entonces inexplorada: inventarios, cartas, testamentos, órdenes reales, libros de viajes, relatorios de obispos, estudios de genealogía, relatorios de juntas de higiene, folclore rural, recetas de dulces, anuncios de periódicos, novelas brasileñas.2 Las fuentes documentales de CGS ciertamente son novedosas. Y la utilización de fichas bibliográficas, índices analíticos, fotografías, mapas y dibujos singularizan el trabajo. Pero la forma del ensayo todavía se impone. Especialmente por la presencia de la subjetividad del autor, rasgo central del ensayo desde Montaigne. Por ello CGS siempre conserva un elemento del ensayo. Progresivamente - especialmente desde de la cuarta edición - , el texto de CGS se completa en un trabajo de historia social, a partir de la adición de una extraordinaria lista bibliográfica. Por detrás de tal indefinición del género narrativo sociología, antropología, historia, literatura - se detecta la mezcla de la formación brasileña y norteamericana: respectivamente la libertad de la visión periférica y la atención hacia el detalle propia del entrenamiento profesional antropológico recibido en Estados Unidos. Fundamental resulta la experiencia americana. Ella marca de manera definitiva la orientación de Freyre: Nueva York en los años 20 constituye la expresión máxima de la modernidad. O como lo colocaría un escritor norteamericano admirado por Freyre Randolph Bourne - , América era una fábrica sociológica que iniciaba el gran experimento democrático moderno: In a world which has dreamed of internationalism, we find that we have all unawares been building up the first international nation. [...] What we have achieved has been rather a cosmopolitan federation of national colonies, of foreign cultures, from which the sting of devastating competition has been removed. America is already the world-federation in miniature, the continent where for the first time in history has been achieved that miracle of hope, the peaceful living side by side, with character substantially preserved, of the most heterogeneous peoples under the sun. (Bourne 1956:276) Desde Nueva York a inicios de los años 20, Freyre envía semanalmente artículos al Diario de Pernambuco. Artículos periodísticos que describen y analizan la gran ciudad. Cuadros rápidos del cotidiano que enfocan la moda, la alegría, el colorido, el movimiento. Encontramos en tales ejercicios literarios juveniles, analogías y contrastes insólitos, observaciones agudas e intuiciones desconcertantes. Nueva York es objeto constante de su atención. 'La más ciudad de las ciudades* lo enfrenta a la plena modernidad: el asfalto parece natural y la vegetación artificial. En Nueva York observa la descortesía en el subway, visita los Museos de Arte, reflexiona sobre la relación entre el caballo y el ómnibus, escucha jazz, vincula la Navidad con el dinero. Experiencia americana que distingue a Freyre no sólo de Martínez Estrada, sino de la mayoría de los intelectuales latinoamericanos y su mirada afrancesada.

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Se trata de una documentación bibliográfica que Freyre más tarde se preocuparía de actualizar y de acrecentar. La primera edición de CGS llevaba las notas y la bibliografía al pie de página, las cuales eran sumamente escasas si se les compara con las notas y la bibliografía posteriores a la 18a edición. Por otra parte, aquellos textos hasta entonces inexplorados se convirtieron posteriormente en fuente obligada de lectura para los historiadores.

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La relación 'ensayo-historia social' se impone como un motivo de reflexión para Freyre. Los años de juventud ya lo muestran vinculado a un proyecto de 'historia viva', de transformación del tiempo muerto en tiempo vivo. Historia Social. Interior. Intima. No de las formas exteriores y oficiales. De ahí su afinidad con la filosofía de la vida y la critica a los métodos científicos de la sociología y de la historia política y económica. Comparado a esta escritura que sitúa al individuo y la vida cotidiana en el centro y que apoya el estudio de la cultura en el sentido del matiz, del detalle, del relativismo y del humor, el ensayo de Martínez Estrada resulta solemne y generalizador. No cita a nadie. No esconde su perspectiva de autodidacta. El ensayo se mueve con entera libertad, repleto de imágenes impecables, de intuiciones inesperadas. Pero por detrás de esta soltura del literato, de su recurso a la metáfora, de sus comparaciones e imágenes poéticas, se recorta el proyecto de una antropología filosófica. Se trata de un ensayo de pretensión filosofante sobre el ser nacional argentino. Una metafísica de la identidad, apoyada en el arquetipo como vía de acceso privilegiado a la realidad. Martínez Estrada se orienta hacia la investigación de la caracterología del hombre argentino. El análisis del estilo revela dos escritores sumamente distintos: Martínez Estrada escribe como un tratadista, Freyre como un cronista; el primero dicta, el segundo conversa. Nietzsche, Freud, Spengler, Simmel, Ortega y Gasset son lecturas comunes a ambos. Pero de tales lecturas comunes cada autor deriva elementos diferentes, ya que el contenido textual es incorporado de manera altamente personal. Por otro lado, los dos leen para crear, no para repetir o condensar: leen para comprenderse a sí mismos y a la cultura a la cual pertenecen. De Nietzsche, Martínez Estrada extrae el tópico del resentimiento, fundamental en su obra; en cambio Freyre lo incorpora básicamente desde la óptica del estilo libre de la escritura y de la fusión entre arte y ciencia.3 Freud legitima la interpretación genética y el retorno a los orígenes. Los críticos coinciden en la afirmación de que el esquema psicoanalítico constituye la base de la RP. En CGS, la presencia del discurso psicoanalítico se manifiesta - en adición al tema del origen y de la infancia - en la sexualización del lenguaje. Sexualización intensa. Al punto que el libro sería considerado una historia sexual del Brasil. No extraña que La decadencia de Occidente de Oswald Spengler influya en ambos pensadores. Varias ideas spenglerianas son visibles en los ensayos latinoamericanos de la década del 30: la noción de sistema en equilibrio, la importancia asignada a la propiedad, la relación entre medio físico, casa y cultura, la idea de que el alma de la casa equivale al alma de los hombres. Y no sólo por el contenido semántico impacta La decadencia de Occidente. Su sintaxis se adapta perfectamente a los intereses del ensayo en América Latina. De su libro señala Spengler que es "intuitivo en todas sus partes. Está escrito en un lenguaje que trata de

"Influencia, nesse particular, que, incluía a de Walt Whitman, poeta-sociólogo, além da de Nietzsche, poeta-filósofo, nao quanto à substancia da sua filosofia, mas quanto à forma estética do seu modo de ser filòsofo, inspirada, alias, em grande parte, em um pensador espanhol: Gracián" (Freyre 1968:141).

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reproducir con imágenes sensibles las cosas y las relaciones, en lugar de sustituirlas por series de conceptos. Se dirige solamente a aquellos lectores que saben también dar vida a los sonidos verbales y a las imágenes" (Spengler 1976:19)/ Simmel entra en escena como sociólogo del cotidiano y como retratista de personalidades. Su reflexión sobre la dimensión social de los objetos amplió el campo de análisis relativo a los productos culturales. Estudió la significación de la moda, el conflicto, la aventura, el amor; escribió sobre el puente y la puerta, el asa de la taza, el rostro, el adorno, la sociedad secreta, el dinero, la coquetería, el feminismo. Análogamente, Martínez Estrada examinó, en el contexto de la Argentina, la dimensión social del cuchillo, las figuras del guapo y del guarango, la calle Florida, el cabaret, el tango, el carnaval, la cancha de fútbol. Análisis que continuará en un libro posterior, La cabeza de Goliat (1940), estudiando figuras urbanas tales como el cartero, el chofer, el vigilante, el poeta, el tilingo, el cuidador de coches, los canillitas. Por su parte Freyre dedicó especial atención a la vida cotidiana, en el contexto de la 'casa grande'. La moda, la vida ociosa de la red, los juguetes, la educación, la sexualidad, la culinaria, todos fueron temas incorporados a su libro. Aunque Martínez Estrada seguramente conocía algunos trabajos de Ortega y Gasset, en especial aquellos relacionados con el fatalismo del carácter, su actitud hacia España es crítica. España como culpable. De la madre patria había que separarse. Sintomáticamente, los autores españoles escasean en la RP. Nada más distante de la trayectoria intelectual de Freyre, quien revela una precoz afinidad con el mundo hispano. Con Ortega y Gasset y su perspectivismo, pero también con los místicos españoles, con Cervantes y con la llamada 'generación del 98'. El comentario de Freyre sobre Angel Ganivet en su diario íntimo Tempo morto e outros tempos confirma esta influencia: "A propósito de Ganivet: ele me ajuda a ver o Brasil mais do que ninguém" (Freyre 1975:135). ¿Qué elementos de la generación del 98 influyen en Freyre y por qué? Principalmente tres. Primero, el interés por el tema nacional. La generación del 98 se ocupó del destino de España. Y lo hizo con la conciencia del carácter marginal de una nación que en 1898 acababa de perder en la guerra contra Estados Unidos sus últimas colonias de ultramar (Cuba, Puerto Rico, Filipinas). España estaba al mismo tiempo dentro y fuera de Europa. Como el Brasil, era un país periférico con una cultura intensamente propia. La aproximación al problema nacional se operó desde la perspectiva literaria, en la cual la postura estética servía de base al proyecto ideológico de la renovación espiritual. Segundo, el tratamiento del paisaje. Todos fueron viajeros comprometidos con la observación y descripción de la realidad circundante, tanto natural como humana. Tercero, la renovación

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Freyre leyó La decadencia de Occidente en la edición publicada por Espasa-Calpe en Madrid en 1927. Muchos años después corrigió su entusiasmo juvenil por Spengler: "Claro que é perigoso para a ciencia do Homem da especialidade do cientista recorrer ele a métodos poéticos de conhecimento, juntando-os aos científicos. Perigosíssimo até. Pode resultar em obras monstruosas como estudos científicos; ou válidas apenas como criaçôes poéticas ou realizaçôes literarias como algumas das páginas de Andrew Lang, varias das de Spengler e como, entre nós, nao poucas das que nos deixou o admirável Euclides da Cunha" (Freyre 1968:81).

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del estilo. A diferencia de los poetas españoles modernistas, el estilo literario era directo y antiretórico. La base de observación residía en el pueblo, con sus costumbres sencillas y anónimas. En contraposición al ejemplo de la importancia de la cultura peninsular en la formación intelectual de Freyre, destaco la ínfima importancia de los pensadores y escritores hispanoamericanos. De los cerca de 300 autores mencionados en su diario íntimo sólo dos son hispanoamericanos: Vargas Vila y José Ingenieros. Ingenieros, argentino, proviene del positivismo y respaldaría la obra de Oliveira Vianna; Vargas Vila, colombiano, gozó de suceso en la primera parte del siglo XX. Freyre los enjuicia negativamente. Son "un horror", "simplemente mediocres; verdaderamente dos porcallones" (Freyre 1975:137). Pero toda lista de biografía intelectual aparece como parcial o falsa. ¿Dónde colocar, en relación a la obra de Gilberto Freyre, a Spencer, Oliveira Lima, Tolstoi, Bunyan, Newman, Yeats, Loti, Meredith, Joyce, Proust? ¿Cómo realmente inciden en su obra el pensamiento de Boas, Giddins, Plekhanov, Oliveira Vianna, Manoel Bonfim? Pretendo simplemente señalar dos fuentes de importancia. En el caso de Martínez Estrada, la figura y obra de Sarmiento, en especial el libro Facundo. Civilización y barbarie. En el caso de Freyre, la figura y obra de Walter Pater. Facundo está por detrás de la RP. Lo que dice mucho sobre la tradición. Martínez Estrada como lector del pasado intelectual y como continuador de una tradición nacional. Fundamentalmente se produce en la RP la inversión de las tesis del Facundo, su negación simbólica. La promesa decimonónica de 'civilizar', 'poblar' y 'educar' es convertida en 'ilusión', 'desastre' y 'resentimiento'. La barbarie reside en la falsa dualidad, en los antagonismos artificiales. Así como la racionalidad es irracionalidad disfrazada, el modelo abstracto sarmientino es fuerza telúrica contenida. Por ello la imitación e importación de ideales nunca logra cumplir las promesas ni liquidar con la realidad profunda. Engaño. Venganza y odio. Hijos de la desilusión. Este es el diagnóstico de la Argentina según Martínez Estrada: Lo que Sarmiento no vio es que civilización y barbarie eran una misma cosa, como fuerzas centrífugas y centrípetas de un sistema en equilibrio. No vio que la ciudad era como el campo y que dentro de los cuerpos nuevos reencarnaban las almas de los muertos. [...] Conforme esa obra y esa vida inmensas van cayendo en el olvido, vuelve a nosotros la realidad profunda. Tenemos que aceptarla con valor, para que deje de perturbarnos; traerla a la conciencia, para que se esfume y podamos vivir unidos en la salud. (Martínez Estrada 1993:256)

Freyre menciona una diversidad de fuentes brasileñas formativas (Sylvio Romero, Joaquim Nabuco, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna). Pero los resultados alcanzados son presentados como una ruptura con la tradición.5 El diálogo con la tradición

Freyre se encargaría de reafirmar esta ruptura intelectual con la tradición. "Aqui é preciso fixar-se o seguirne: o nao vir sendo o meu traballio, considerado no seu aspecto específico de obra antropológica, continuaçâo do de Nina Rodrigues ou do de Sylvio Romero ou do de Joâo Ribeiro ou do de Capistrano de Abreu ou do de Euclydes da Cunha mas, ao contrario, em pontos essencias, retificaçâo aos estudos empreendidos por êsses consagrados mestres. [...] Dizer-se, sem nenhuma especificaçâo, do autor de Casa-grande & senzala, que continuou naquele seu ensaio e vem continu-

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brasileña pierde valor ante la investigación de fuentes documentales inexploradas. Irónicamente, el retrato del mundo colonial-regional aparece como un corte con el pasado. Y a tal sentimiento de ruptura, típico de la modernidad, se debe agregar un tipo novedoso de escritura: profundamente vital y visual. Construcción sensual del objeto que aproxima la escritura freyreana a la estética decadentista finisecular.6 Los decadentistas compartían una serie de características: el refinamiento, el hedonismo, el esteticismo, el voyeurismo, el antiburguesismo, la crítica a la modernidad. Walter Pater, autor de The Child in the House y de Marius the Epicurean, fue uno de los críticos más importantes del período Victoriano tardío. Su prosa es delicada, sensible y morosa. La relevancia conferida al ritmo, a la sonoridad y a la visualidad, la valorización de la forma, la conjunción de arte y erudición, impresionaron fuertemente a Freyre. En The Child in the House, elabora Pater una breve historia de los sentidos, íntima, hecha de recuerdos personales. Los temas son la memoria, el tiempo, la belleza, la muerte, todos condensados en la imagen de la casa vieja donde pasara su infancia el personaje de Florian Deleal. Personaje que atraviesa los diferentes cuartos de la antigua casa como si atravesara las diferentes etapas de su vida. Al escritor le corresponde trasmitir la vigencia estética de lo muerto. Esta sensovisualidad es notable en la escritura de Freyre, desde sus primeros artículos y textos. Al narrar sobre la iniciación sexual a los quince años anota que gran parte de su sexualidad está en los ojos (Freyre 1975:14). Y varios pasajes de CGS están dominados por la profusión de imágenes, colores y gustos.7 Por detrás de tal modalidad de escritura no sólo hay una fina

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ando noutros dos seus livros, de caráter principalmente antropológico, no que nêles é substancia científica, a obra de Nina Rodrigues, é tâo inexato como afirmar-se, ousada e vagamente, do mesmo autor que, no plano sociológico, vem continuando a obra do alias insigne Oliveira Vianna" (Freyre 1968:89-90). En varios textos Freyre reconoce la deuda con Walter Pater. En su semi-novela O outro amor do Dr. Paulo, escribe: "Pater fora para Paulo a revelaçâo de um novo sentido da relaçâo da arte assim como da ciencia ou do saber - com a vida. [...] A influencia de Pater levaría a Paulo a procurar no ensaio seu meio específico de expressào literaria a que nào faltasse a presença nem de expressào pictórica nem da musical." Por ejemplo, la descripción del entierro de los hidalgos que recoge de un viajero inglés del siglo XIX. "Ewbank descreve-nos o luxo dos enterros de gente fidalga no Rio de Janeiro; o vaidoso aparato da toalete dos defuntos - fardas, uniformes, sedas, hábitos de santos, condecoraçôes, medalhas, jóias; as criancinhas muito pintadas de ruge, cachos de cábelo louro, asas de anjinhos; as virgens, de branco, capela deflorde laranja, fitas azuis" (Freyre 1992:438). Freyre incluso señala la importancia de la visión en su trabajo sociológico: "Se sou sociólogo - como até certo ponto admiti ser - sou antes um visual que um abstrato na minha sociologia" (Freyre 1968:59). "Tenho sido sociológico, muito mais vendo sociológicamente o social, do que lendo a respeito os escritos de outros sociólogos. Tenho lido muito. Duvido que haja sociólogo de importancia que eu tenha deixado de 1er. Mas tenho visto ainda mais do que lido. Visto do Brasil tôdas as suas regiôes mais características. Visto do mundo varios tipos de homem, de mulher, de criança, varias formas de casa. Visto algumas dessas formas de homens e de casas, desenhando-as. Fixando-as mais em desenhos do que em palavras" (69).

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sensibilidad, sino una autobiografía disfrazada, un psicoanálisis literario que remata en la noción de lo 'biográfico absoluto'.8 Conciencia aguda del tiempo, crisis de transición, voluntad de preservar lo efímero, que implican el refugio en el arte y la estetización del pasado. Ambos autores comparten en el plano sintáctico una serie de rasgos comunes: la intercalación de oraciones breves entre frases largas, la enumeración, la repetición de elementos, el uso verbal del infinitivo, la puntuación inesperada. Ser escritor constituye para Freyre una misión. Desde joven se propone la tarea de crear un estilo propio, de forjar una nueva forma en la lengua portuguesa.' Pero tal proyecto de escritura nada tiene de ficcional. De hecho, la resistencia a la invención - como sucede en las novelas y los dramas - denota una particular relación con la verdad. El ámbito de estudio preferido es el pasado, en particular el pasado íntimo. Y la revelación de lo social debe ser completa. Debe combinar el método antropológico con el psicológico, el histórico-social con el sociológico, el científico con el artístico. "Si consigo esto" - escribe en su diario íntimo - "habré realizado una hazaña semejante a la de Santos Dumont" (Freyre 1975:222). Ambos se consideran escritores, en el sentido del agitador de ideas y del perturbador de las convenciones, y como es común entre los intelectuales periféricos de los años 20 y 30, los obsesiona el tema nacional. Pero por motivos diferentes. Por la excesiva visibilidad del proceso inmigratorio en el ejemplo de la Argentina. El propio Martínez Estrada es hijo de inmigrantes españoles que se conocieron en el Nuevo Mundo. Tal movimiento masivo y de internacionalización contiene una amenaza a la ficción de la identidad tradicional. ¿Cómo representar la creciente complejidad de la sociedad argentina? ¿Cómo entender la mudanza de los códigos socioculturales? En el contexto de ese pasaje de lo rural a lo urbano se inscriben los escritores argentinos de los años 20 y 30. Güiraldes construirá la ficción del ruralismo utópico; Borges inventará 'las orillas' - zonas intermedias entre la ciudad y el campo; Roberto Arlt se encargará de fundar una literatura urbana paródica (cf. Sarlo 1988:31-62). La 'conciencia brasileña' de Freyre se consolida en el exterior. En la reflexión como producto de los viajes, en el intento de identificarse con la juventud de la guerra, en el enfrentamiento constante contra el desconocimiento de los asuntos luso-brasileños, en la

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Afirma León Sigal: "Ezequiel Martínez Estrada construyó en su obra una imagen de sí, su mito personal. En ella se organizan y se representan los diferentes aspectos de su vida y de su obra. [...] Lo que quiere traer a la luz en los otros y en sí mismo es lo "biográfico absoluto" que convierte la vida del individuo excepcional en el representante, en el tiempo y fuera de él, de su comunidad o de la humanidad (Martínez Estrada 1991:349-350). Sigal cita al inicio de su artículo el comentario de Fernand Braudel: "L'Argentine de Ezequiel Martínez Estrada, c'est Ezequiel Martínez Estrada lui-même" (ibidem).

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En los años 60 Freyre expresaría otra opinión al referirse al lenguaje de Casa-grande & senzala, "[...] um portugués salpicado de africanismos, de indianismos, de barbarismos, alguns ornados, embora sem a preocupaçào de criar o autor lingua literaria brasileramente nova, como foi a de Mario de Andrade, em Macunaíma e vem sendo a de Guimarâes Rosa, em interessantíssimos experimentos estilísticos, além de lingüísticos" (Freyre 1968:122).

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voluntad de establecer raíces y fundar genealogías, en el recuerdo del trópico, su culinaria, su sol y madrugadas, haciendas y casas antiguas. Tal intento de forjar una identidad nacional-rural genera análogas modalidades de crítica a la modernidad. Martínez Estrada es por supuesto mucho más extremo. Rechaza la función civilizadora del cristianismo, la acción unificadora de España, la utilidad de la tecnología en la Argentina colonial. En su lugar coloca el desengaño, la incomunicación, la soledad, la desconfianza, la tristeza, el miedo. Kulturpessimismus, mezclado con un diagnóstico de la enfermedad argentina. La ciudad y el cosmopolitismo impusieron formas de cultura espuria. Ciudad demonio. Ciudad bastarda. Por la calle Florida los argentinos caminan como si pasearan por Hollywood. Pero la pampa, metonimia de la Argentina, no puede ser derrotada por la ciudad extranjera (cf. Martínez Estrada 1993:451). Freyre resulta inapresable en el plano semántico. La relación cordialidad-violencia es un buen ejemplo en ese sentido. CGSes un texto que presenta relaciones cordiales entre clases sociales diferentes, pero asimismo el cuadro de una violencia espantosa. Si hay un elemento que de hecho rija la lógica intelectual de sus trabajos y que los torne vulnerables, se encuentra - como apuntó acertadamente José Guilherme Merquior - en la base geográfica del modelo histórico. Concomitantemente, Merquior señala una diferencia esencial entre la RPyCGS: Com esse livro [CGS], o Brasil se aceitou na sua natureza - o que nao significa se sacralizar numa suposta essência imutável. Quem duvidar que o compare com o efeito frustrante de outras auto-análises "coletivas": a Radiografía de la pampa (1933) do argentino Ezequiel Martínez Estrada, e o Laberinto de la soledad (1950) do mexicano Octavio Paz. [...] Nem Martínez Estrada nem Paz alcançam a reconciliaçâo interior com o ser histórico da argentinidade ou da mexicanidade. Neles, a herança nâo é assumida; termina sobretudo denunciada. (Merquior 1981:274)

Ningún tema es tan transparente al respecto como el tema del mestizaje. Nunca la divergencia es tan amplia, ni tan profunda. Que el mestizaje fue un fenómeno sumamente violento no cabe duda. Mujeres objeto, relaciones físicas forzadas y sin amor, culturas degradadas. El mestizo no constituye para Martínez Estrada únicamente una mezcla de sangre indígena y europea, sino además un tipo étnico inferior a la madre y al padre. Un estigma. En la mezcla de razas visualiza posesión y desgracia, humillación y deseo de venganza, resentimiento y odio. Mestizaje como degradación; mestizaje como enfermedad. Freyre lo suaviza con patriarcalismo, religiosidad social y sensual, fiestas comunitarias, placer de la unión. Y donde el argentino nota una civilización inexistente, de pura fachada, el brasileño forja la idea de la primera triunfante civilización luso-tropical de la historia. A la crítica a la acción violenta del español y a su modalidad insaciable de posesión cuantitativa, se le opone el elogio al portugués, a la mujer indígena, al esclavo negro, a la solución racial brasileña. Visión trascendente, la de Martínez Estrada, con su desprecio del valor de la vida; visión inmanente, la de Freyre, con su afirmación del valor de la vida. Curiosamente, para alcanzar una conclusión tan divergente ambos autores parten del mismo principio de la explicación genética y de momentos históricos semejantes: el 'encuentro' de las culturas americana y europea. RP principia con la noción de la aventura

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de los conquistadores españoles y con el estímulo producto de la narración de las riquezas imaginarias de América; CGS, por otro lado, inicia con las características generales de la colonización portuguesa en el Brasil. El factor 'geografía' aún constituye un rasgo de importancia en el estudio de la evolución de los encuentros quinientistas; por momentos la naturaleza adquiere una fuerza descomunal. También la noción de 'raza' persiste en los textos, como un cuerpo enfermo que se resiste a morir. Pese a tales limitaciones, triunfa en sus rasgos más sustantivos - el análisis culturalista. Mientras CGS registra realidades múltiples, expresadas con una empatia admirable - si bien desde el punto de vista externo y aristocratizante - , RP se organiza desde la paradoja. Los conquistadores son conquistados, lo civilizado se barbariza, lo domesticado se vuelve cimarrón, los ferrocarriles traen la miseria, las carabelas desandan la historia (cf. Martínez Estrada 1993:471). Tenemos aquí dos modelos para interpretar el lugar de las culturas latinoamericanas en el mundo contemporáneo. El registro de Freyre - conciencia de realidades múltiples, perspectivismo, empatia, estudio de la vida cotidiana y del mestizaje, incorporación de la visualidad y de la sonoridad - nos conduce de CGS a la transculturación y a las culturas híbridas, a la moda, al ocio, a la evolución de las costumbres y de la sensibilidad. La aproximación de Martínez Estrada - paradoja como clave de la creación, desencanto con la modernización, necesidad de la convivencia de los contrarios, prevalencia de la imagen y del mito - nos conduce de la RP a la microsociología, al campo de la comunicación, a la industria cultural y al papel social del intelectual.

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Bibliografía Belluzzo, Ana Maria de Moraes (1990): Modemidade: vanguardas artísticas na América Latina. Sao Paulo: Unesp Bourne, Randolph (1956): The History of a Literary Radical & Other Papers. New York: S. A. Russel Freyre, Gilberto (1933): Casa-grande & senzala. Formaçâo dafamilia hrasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Ed. Schmidt — (1975): Tempo morto e outros tempos. Trechos de um diario de adolescencia e primera mocidade 1915-1930. Rio de Janeiro: José Olympio — (1968): Como e porque sou e näo sou sociòlogo. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia — (1934): Guia pràtico, histórico e sentimental da cidade do Recife. Recife Martínez Estrada, Ezequiel (1993): Radiografìa de la pampa. México: Colección Archivos Merquior, José Guilherme (1981): As idéias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira — (1990): Critica 1964-1989. Ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Ribeiro, Darcy (1986). Sobre o obvio. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Sarlo, Beatriz (1988): Una modernidad perifèrica: Buenos Aires 1920 y 1930. Buenos Aires: Nueva Vision Spengler, Oswald (1976): La decadencia de Occidente. Bosquejo de una morfología de la historia universal. 2 vols. Madrid: Espasa-Calpe Vázquez-Rial, Horacio (1996): Buenos Aires 1880-1930. La capital de un imperio imaginario. Madrid: Alianza Editorial

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O mito do indio no modernismo brasileiro e ñas vanguardas hispano-americanas

A historia da modernidade parece à primeira vista a historia da superaçâo do mitico pela razào no processo da libertaçào do homem da sua selbstverschuldete Unmündigkeit (Kant), que culmina na convicçào de que somos nós, os homens, que fazemos nós mesmos a nossa pròpria historia (Marx). A segunda vista, porém, se descobre que o processo do iluminismo provocou, ao mesmo tempo, quase como urna necessidade inerente, o surgimento de novos ou a vitalizaçào de antigos mitos. Pensamos aquí, para mencionar somente dois casos exemplares, na Revoluçâo Francesa com sua admiraçào pela razào e na resposta de Hölderlin, em que revaloriza o mitico na sua poesia; ou - outro exemplo - na superaçâo do positivismo pelo pensamento de Nietzsche. Podemos constatar, entâo, que o processo da modernidade, que era também o processo da modernizaçào - bem sabendo que ambos nâo sâo idénticos - , era acompanhado por "reaçôes" míticas diretas, deixando à parte a outra dimensäo discutível da modernidade, que é a possibilidade de interpretá-la e as suas mesmas idéias prediletas - razào, igualdade, humanidade, progresso - como mitos. Por isso näo devemos surpreender-nos de encontrar também nos movimentos literarios das vanguardas latino-americanas uma relaçào complexa entre um espirito modernizador das sociedades sul-americanas e uma fascinaçào pelo mito, tomando como mito principal o pròprio indio. Falar aqui do "mito do indio" näo significa, entäo, sugerir em primeiro lugar uma leitura na forma de crítica da "ideologia do indio" ñas vanguardas sul-americanas. O especialista, ao fazer uma análise de crítica ideológica, está sempre correndo o risco de pretender ser o dono da verdade, cargo este impossível e inacessível para todos. Nao se trata de demonstrar que no modernismo brasileiro e na vanguarda peruana - concentrar-nosemos principalmente nestes dois movimentos - encontramos um conceito de indio "ideologizado", mas parece-nos importante ver e compreender que os vanguardistas tinham consciência de referirem-se, no seu discurso, ao indio como mito em pelo menos dois sentidos diferentes: 1. O conceito e a aplicaçào políticos do mito na tradiçào de George Sorel, retomados por Carlos Mariátegui, isto é, o mito como energia de mudança social. 2. A referencia a uma tradiçào mítica ainda vigente na populaçào indígena e na tradiçào popular. Somente em terceiro lugar referimo-nos ao tipo de mito que a crítica de ideologia tem como objeto: mito como uma consciência falsa e inadequada da realidade e de processos sociais. Falar de discurso mítico neste sentido implica que o crítico se coloca numa posiçào objetiva, que lhe permite denunciar o discurso do outro como "mítico". Esta é, como mencionamos no inicio, uma posiçào problemática.

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Para esclarecer o primeiro conceito de mito, o mito como energia política, retomemos urna passagem de um dos últimos artigos de Mariátegui, publicado na revista vanguardista

AMA UTA: El hombre se resiste a seguir una verdad mientras no la cree absoluta y suprema. Es vano recomendarle la excelencia de la fé, del mito y de la acción. Hay que proponer una fé, un mito, una acción. ¿Dónde encontrar el mito capaz de reanimar espiritualmente el orden que tramonta? [...] La burguesía no tiene ya mito ninguno. Se ha vuelto incrédula, escéptica, nihilista. [...] El proletariado tiene un mito: la revolución social. Hacia ese mito se mueve con una fé vehemente y activa. (Mariátegui 1930:3)

A constataçâo de Mariátegui com respeito ao mito encontra sua equivalencia nos modernistas brasileiros: de modos distintos, as très principáis tendencias representadas pelo radicalismo modernista de Mario de Andrade, pelo pensamento utópico de Oswald de Andrade e pelo nacionalismo irracional de Plinio Salgado fizeram de um pensamento mítico ou de elementos míticos a base de seu discurso modernista. Suas críticas - diversas entre si - da cultura ocidental e de uma modernidade que se submete à razâo instrumental referem-se como legitimaçâo, como energia histórica ou como estratégia polémica à redescoberta e à renovaçâo do pensamento e da mentalidade míticos. De forma semelhante à tradiçâo irracionalista européia, já encontrada nos social-utopistas franceses, mas principalmente mais tarde, em Nietzsche e Spengler, (ambos altamente estimados pelos vanguardistas brasileiros e peruanos), a volta para o mito significa a crítica à modernidade e à idéia do progresso, ou seja, à crítica da razâo e ao logocentrismo. Isso vale tanto para a vanguarda brasileira modernista, como para os autores peruanos de AMAUTA. Em ambos, o mito deve liberar energías coletivas e pré-históricas reprimidas pela historia do progresso e da modernidade. Enquanto Mariátegui se refere a Sorel, o modernismo brasileiro inspira-se na etnologia, na psicanálise e, principalmente no caso de Oswald de Andrade, na filosofia nietzscheana. Trata-se - segundo o Manifesto antropófago - da "transformado permanente do Tabu em totem" (Andrade 1990b:48), isto é, trata-se de criar uma representaçâo simbólica e imaginária para o tabuizado, ou seja, aquilo que é considerado tabu, para tudo que tenha sido reprimido pelos poderes históricos e políticos. Uma reflexâo parecida se encontra em Mariátegui, formulada de um modo menos metafórico: "La República es responsable de haber aletargado y debilitado las energías de la raza" (Mariátegui 481986:47). Ñas reflexôes seguintes analisaremos de que modo estas très diferentes dimensôes do mito caraterizam os textos e manifestos vanguardistas, considerando acima de tudo o papel do indio nesta atualizaçâo do pensamento mítico. O material imaginário para este mito que deve contribuir para a açào histórica e política provém em grande parte - tanto na vanguarda brasileira, como na vanguarda peruana - do mundo pré-colombiano do indio (o mundo incaico, a antropofagia, o totem da Anta - o tapir), ou seja, a antiga cultura indígena contribuí para formar um mito que deve permitir a criaçâo da identidade nacional na época atual. Vê-se logo que com isso os vanguardistas,

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de modo algum, propagaram a ilusâo do regresso ao primitivismo, ou a idéia do bon sauvage. Esta fase do indianismo ou de um indigenismo ingènuo foi superada com o romantismo e o pós-romantismo. A meta era a integraçâo independente do nacional no mundo moderno, tanto no caso de Mariátegui como no de Oswald de Andrade e de Plinio Salgado. Contudo os caminhos eram diferentes: a fòrmula para Mariátegui é encontrada ñas últimas frases de sua obra, os Siete ensayos·. Por los caminos universales, ecuménicos, que tanto se nos reprochan, nos vamos acercando cada vez más a nosotros mismos. (Mariátegui '"1986:350)

Este pensamento vale de um modo similar para Oswald de Andrade e sua Antropofagia: degustar as melhores partes do outro - como ato de vingança e como um ato que representa urna justiça mágica - para fortalecer o eu pròprio. O nacionalismo de Plinio Salgado, em comparaçâo com isso, renuncia ao desvio cosmopolita e alimenta a identidade nacional exclusivamente com as próprias raízes étnicas: Proclamando nós a nossa procedencia do indio [...], romperemos com todos os compromissos que nos têm prendido indefinidamente aos preconceitos europeus. [...] o que nos interessa, a nós, escritores brasileiros do século X X , nao é mais a figura de Peri ou de Iracema, e sim a sua sombra, o que ficou atrás deles e é o imenso substrato da Nacionalidade. Sào os "fatores comuns" de que resultou a unidade nacional e que podem constituir uma força de açâo invencível, na destruiçâo, a que nos propomos, dos ídolos estrangeiros. (Salgado 1995a:494)

Todos os très modelos do aumento e da intensificaçâo da identidade nacional ganham a sua plasticidade sensual e sua convicçâo do mundo indigena pré-colombiano. No caso de Plinio Salgado e da Antropofagia de Oswald de Andrade esta afirmaçâo é evidente. Enquanto que, no caso de Mariátegui, eia precisa de um esclarecimento mais detalhado.

A vanguarda peruana: o caso de J.C. Mariátegui A fonte do conceito do mito no escritor e filòsofo peruano Mariátegui é tao obvia como problemática: trata-se de George Sorel. Ele menciona-o freqüentemente, sempre num tom afirmativo. E o George Sorel das Reflexions sur la violence, o mesmo que também os fascistas franceses dos anos 20 tomaram como referencia e como precursor. Em George Sorel já é encontrada a crítica ao progresso e à razäo e, com isso, a crítica à modernidade, da mesma maneira como eia foi formulada pelos intelectuais da vanguarda latino-americana nos anos 20. Sorel afirma com convicçâo: "On peut indéfiniment parler de révoltes sans provoquer jamais aucun mouvement révolutionnaire, tant qu'il n'y a pas de mythes acceptés par les masses" (Sorel 71930:45). O mito é, para Sorel, um poder do imaginário, poder através do quai a imaginaçâo consegue influenciar o processo histórico: "il faut juger les mythes comme des moyens d'agir sur le présent" (Sorel 71930:180). Para Sorel, o mito central da revoluçâo social é a greve gérai. Eia é:

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le mythe dans lequel le socialisme s'enferme tout entier, c'est-à-dire une organisation d'images capables d'évoquer instinctivement tous les sentiments que correspondent aux diverses manifestations de la guerre engagée par le socialisme contre la société moderne. (Sorel 7 1930:182)

Tal mito é para Sorel a base da sua "moral dos produtores", "moral des producteurs", à quai o artigo "Etica y socialismo" de Mariátegui se refere da seguirne maneira: "Una moral de productores, no surge mecánicamente del interés econòmico: se forma en la lucha de clases, librada con ánimo heroico, con voluntad apasionada" (Mariátegui 1982:152). Conseqiientemente, Mariátegui escreve num de seus últimos artigos na revista AMA UTA : "Los pueblos capaces de la victoria fueron los pueblos capaces de un mito multitudionario" (Mariátegui 1930:2). Porém surge a pergunta, se nao fora entäo Mariátegui entre os très autores acima mencionados, Oswald de Andrade, Plinio Slagado e ele mesmo, aquele que fez o maior esforço para desmitificar o indio e para definir o seu papel no Peru dos anos 20 na base económica através da questäo da terra. Isto é, sem dúvida, correto. Conseqüentemente, o segundo capítulo dos Siete ensayos é intitulado "El problema del indio" e Mariátegui escreve ali inequivocadamente: Todas las tesis sobre el problema indígena, que ignoran o eluden a éste como problema económico social, son otros tantos estériles ejercicios teoréticos, - y a veces sólo verbales - , condenados a un absoluto descrédito. [...] La cuestión indígena arranca de nuestra economía. (Mariátegui 4 , 1986:35)

Relendo este capítulo com atençâo, percebemos que aquí nao se trata de urna definiçào do indio; Mariátegui, no entanto, fala o tempo todo do "Problema del indio" ou da "cuestión del indio" (Mariátegui 4g1986:39). O "problema" e a "questäo" definem-se de modo socioeconómico, mas nao o "indio" mesmo. A este respeito, encontram-se no prefácio de Mariátegui alusôes ao livro provocador de Luís Valcárcel Tempestad en los Andes, prefácio em parte novamente reproduzido nos Siete ensayos. Ali lemos: La fé en el resurgimiento indígena no proviene de un proceso de "occidentalización" material de la tierra quechua. N o es la civilización, no es el alfabeto del blanco, lo que levanta el alma del indio. Es el mito, es la idea de la revolución socialista. La esperanza indígena es absolutamente revolucionaria. El mismo mito, la misma idea, son agentes decisivos del despertar de otros viejos pueblos, de otras viejas razas en colapso: hindúes, chinos, etc. (Valcárcel 1972:35)

Aqui o conceito soreliano do mito como força revolucionária se aplica diretamente na populaçâo indígena: eia, da mesma maneira como o proletariado de Sorel, precisa de um mito. Como se justifica, entäo, a convicçào de Mariátegui de que o mito da revoluçào social será aceito pela populaçâo indígena? É a convicçào de que este mito iria fundir-se com o mito andino do regresso do imperio incaico, uma esperança mítica ainda vigente na populaçâo andina, que corresponde, em nossa classificaçâo proposta, ao segundo tipo de mito. Neste sentido escreve Flores Galindo:

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"El pensamiento de Mariátgui - al igual que gran parte de la cultura peruana de los años 20 - fue tributario de la utopía andina" (Galindo 1987:271). O mito da revoluçâo socialista deve fornecer urna consciência política comum as rebeldías e agitaçôes políticas da populaçâo andina desde a época da Guerra do Pacífico com Chile (1879-83) e que foram inspiradas pela fé mítica no regresso do passado incaico. Além disso Mariátegui criará um mito. Mito este que em nossa perspectiva funciona como ideologia no sentido de apresentar 'fatos' como 'objetivos' enquanto se trata de 'mitificaçôes': Tomando como base a tese de uma historia universal única, que se move em direçâo ao mesmo alvo, ele segue perguntando: "¿Por qué ha de ser el pueblo incaico, que construyó el más desarrollado y armónico sistema comunista, el único insensible a la emoción mundial?" (Valcárcel 1972:35) A correspondencia entre o comunismo incaico e os movimentos socialistas da época de Mariátegui permite a esperança de que este 'movimento indígena' faça parte do movimento socialista e revolucionário mundial. Com isso se oferece também a visâo de que o Peru se integrará neste movimento. Ainda que Mariátegui se distancie claramente do nacionalismo de Valcárcel, ele aceita as mitificaçôes incaicas deste, citando-as sem colocá-las em dúvida, como neste exemplo: Los ayllus respiran alegría. Los ayllus alientan belleza pura. Son trozos de naturaleza viva. La aldehuela india se forma espontáneamente, crece y se desarrolla como los árboles del campo, sin sujeción a plan; las casitas se agrupan como ovejas del rebano; [...]. (Valcárcel 1972:33)

Nao obstante, Mariátegui fala num outro contexto da "miseria moral y material de la raza indígena" que "aparece demasiado netamente como una simple consecuencia del régimen económico y social que sobre ella pesa desde hace siglos" (Introduçâo de Tempestad en los Aruies, p. 13). Apesar de mencionar esta misèria, ele nao toma uma distancia crítica das mitificaçôes de Valcárcel. Sao estas as idéias básicas desta mitificaçâo histórica: 1. Um impèrio incaico, o Tahuantinsuyo, que apesar do seu autoritarismo era pacífico e tinha como base uma agricultura com estruturas comunistas. 2. A hipótese de que estas estruturas comunistas e comunitárias sobreviveram relativa mente intactas até hoje na populaçâo andina. A problemática destas convicçôes foi demonstrada pelas pesquisas etnológicas das últimas décadas. Alberto Flores Galindo resumiu no seu livro Buscando un Inca as principáis objeçôes. Por um lado, com respeito à idealizaçâo do impèrio incaico: as diferentes tribos indígenas foram forçadas através de guerras e repressôes a submeterem-se à aristocracia incaica e a trabalharem para eia (Galindo 1987:46). Por outro lado, desfez-se a idéia de que a populaçâo indígena tenha conservado no seu conjunto relativamente intactas as estruturas comunistas e comunitárias. As razôes para esta dupla construçâo de mitos (o mito 'necessàrio' soreliano e o mito histórico nâo admitido) säo evidentes: 1. A ficçâo histórica permite a esperança de que o Peru encontrará o caminho do comunismo sem revoluçâo industrial e sem uma classe proletària significativa.

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2. O mito contribuì para urna idealizaçâo do mundo indígena. Ele apresenta-o como um mundo onde o individuo vive integrado à comunidade e à natureza, ou seja, como um mundo sem alienaçâo: El indio, a pesar de las leyes de cien años de régimen republicano, no se ha hecho individualista [...]. El comunismo ha seguido siendo para el indio su única defensa. El individualismo no puede prosperar, y ni siquiera existe efectivamente, sino dentro de un régimen de libre concurrencia. (Mariátegui 481986:83) Este mito é igualmente urna crítica à sociedade ocidental, urbana e tecnicista. O Ayllu é a oposiçâo diametral a Lima e às metrópoles modernas (somente no ambiente cultural e político metropolitano ele pode ser concebido assim). Apesar do pensamento mítico tridimensional de Mariátegui - o mito como potencia revolucionaria para o indio; o mito como tradiçâo andina do regresso do impèrio incaico; o olhar mitificador na pròpria realidade - , deve-se constatar o esforço dele em satisfazer a complexidade histórica, social e económica do Peru. No seu discurso, o indio nunca é transformado numa figura puramente retórica dentro de um programa político ou cultural. Mariátegui concebe-o sempre como figura real e como representante do grupo étnico mais importante do país. Com isso, ele se destaca claramente dos modernistas brasileiros. N o discurso destes pelo menos nos textos aqui analisados - o indio tem a tendencia de transformar-se completamente numa figura retórica.

O modernismo brasileiro Comparando-se o mito do indio ñas vanguardas peruana e brasileira, nao devemos esquecer que a situaçâo étnica em ambos os países era profundamente diferente: no Brasil os indios foram extintos, misturaram-se com outras etnias ou retiraram-se para a floresta. Nao existia urna 'questäo do indio' na consciência dos modernistas brasileiros. Nao obstante, a referencia ao passado indígena tem um papel importante nos textos da vanguarda brasileira. Comparando os textos de Mariátegui com aqueles dos modernistas brasileiros principalmente com os manifestos de Oswald de Andrade e com os artigos de Plinio Salgado percebemos um tom polémico e provocador, ausente nos escritos de Mariátegui. Os manifestos de Oswald de Andrade {Pau Brasil e o Manifesto antropófago) têm, além disso, um caráter ironico e humoresco que lembra os criterios bakhtinianos do carnavalesco. Os escritos de Mariátegui diferenciam-se pela intençâo de criar a identidade nacional antes de tudo através de um discurso realista, enquanto Oswald de Andrade e Plinio Salgado - de modos diferentes - contribuem para a formaçâo de urna nova consciência da realidade nacional por meio de uma reinterpretaçâo ou de urna nova interpretaçâo da realidade nacional. O mito dos modernistas brasileiros nao é a revoluçâo socialista senào a açâo e a vida. No editoral de A Revista (Belo Horizonte, 1925) encontramos a seguirne declaraçâo: " O

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programa desta revista nào pode necessariamente afastar-se da linha estrutural de todos os programas. Resume-se numa palavra: Açâo. Açâo quer dizer vibraçâo, luta, esforço construtor, vida" (apud Mendonça Teles 1987:336). Urna questào de primeira ordern era, neste contexto, a questào da representaçâo simbòlica. Isso evidencia a discussâo provocada pelo movimento nacional-vanguardista do verde-amarelismo que escolheu a anta (o tapir) - um totem dos Tupis - como seu símbolo. Pois: "[...] o movimento da Anta é mais de açâo do que de pensamento. É urna guerra contra tudo o que, inculcando-se brasileiro, seja essencialmente estrangeiro" (Salgado 1995a:494). Na revista vanguardista Festa - também de tendencia nacionalista - Tasso de Silveira critica a escolha do tapir como símbolo do movimento, enfatizando, porém, a importancia e a necessidade dum símbolo que permita exprimir o sentimento nacional. O símbolo adotado deveria "exprimir, a um só tempo, a tradiçâo e o mistério" (Silveira 1995:495). N o Correlo Paulistano de 26.11.1927 Plinio Salgado retoma a importancia da questào simbólica. Ali ele escreve: Quando inventamos o movimento da Anta, ele começou por lançar confusäo entre os seus próprios iniciadores. Discutiu-se muito o assunto, mas, finalmente, chegamos a um acordo. A Anta significaría: - guerra aos preconceitos raciais; - guerra aos preconceitos culturáis; - guerra ao cetisismo, ao negativismo, à ironiazinha, ao desanimo. (Salgado 1995b:496) Dando o seguirne resumo final: Anta nao sistematiza: - age. A anta é o espirito seivagem da America. A anta é um grito de independencia. É o incendio das bibliotecas. É a candura virginal e a estúpida violencia dos seres e dos novos nascentes, em funçâo de querer. (Salgado 1995b:499)

O tapir como signo e sinal dum movimento nacional nào pretende compreender a realidade do país de modo racional-argumentativo e, por conseqüéncia, ganhar os seus partidarios por convicçâo racional. Ao contrario disto, a Anta pretende ser uma mobilizaçào espontánea e pré-racional. Eia quer evocar energías irracionais e étnicas inconscientes. Encontramos assim uma concepçâo do mito como energia, parecida àquela de Sorel e Mariátegui. Este mito da açâo encontra-se apoiado e legitimizado por uma mitificaçâo histórica e étnica, isto é, o que é construçâo ideológica se apresenta como fatos. Como se explica no Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo, que era o manifesto do VerdeAmarelismo, ou da escola da Anta, assinado por P. Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, publicado no Correio Paulistano de 17 de maio de 1929, a anta era o totem dos Tupis e ele representava a superioridade racial deles sobre as tribos indígenas dos Tapuias que foram expulsas por eles. O tapir significa a "proclamaçâo do direito das raças e a negaçâo de todos os preconceitos" {apud Mendonça Teles 1987:361). Mas - como afirma o Manifesto - os Tupis nâo avançaram ao ocidente para absorver os futuros invasores brancos, mas para se deixar absorver por eles, para se misturar com o sangue deles "e transformar numa prodigiosa força a bondade do brasileiro" {ibid). O

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elemento Tupi é a força subjacente que transformou o invasor branco em brasileiro. O elemento Tapuia, porém, que se tinha isolado, retirando-se no sertào, sucumbiu (362). Tupi e Tapuia representam no Manifesto dois principios contrarios que sâo quase idénticos ao que em outras teorías culturáis é denominado os elementos feminino (Tupi) e masculino (Tapuia); Tupi significa: nao intelectual, dirigido pelos sentimentos, a açâo pràtica; resiste à influencia estrangeira; a filosofia dele é nâo-filosofia (362). Foram os Tupis que transformaram todas as outras raças e criaram pela força catalítica deles a unidade brasileira. Devido a eles nao há preconceitos raciais no Brasil (364). O elemento tapuia, pelo contrario, é o espirito jesuíta e a sistematizaçâo filosófica que produz sempre preconceitos e discordia: "Foi o indio que nos ensinou a rir de todos os sistemas e de todas as teorías" (365). Mas hoje: "O estudo do Brasil já nao será o estudo do indio. [...] o indio é um termo constante na progressäo étnica e social brasileira; mas um termo nâo é tudo" (365). O grupo em torno de Plinio Salgado utiliza em seus textos e manifestos de caráter nacionalista urna argumentaçâo polémica e irracional que se apóia em supostos fatos étnicos e históricos do mundo indígena. Analogamente ao discurso sobre política de Mariátegui, cria-se um mito do passado pré-colombiano, porém com a diferença significativa de que este mito näo contribuí para reforçar a consciéncia política com respeito ao problema do indio, mas deixa desaparecé-lo num discurso nacionalista completamente ideologizado. A argumentaçâo de Oswald de Andrade no Manifesto Pau Brasil e no Manifesto antropófago tem um caráter completamente diferente. Para ele, como para Mariátegui, a experiéncia européia era um estímulo importante para a descoberta da América Latina. Como Mariátegui, Oswald estava aberto à recepçâo da vanguarda européia e da sua critica ao racionalismo e urna realidade que se define exclusivamente por conceitos racionais. Ao mundo urbano moderno e tecnicista eie opôe a utopia de urna reconciliaçâo nova da técnica com a natureza, da humanizaçào da técnica pelo bárbaro. (Na Crise da filosofìa messiànica de 1950 ele falará do "homem natural tecnizado" como síntese do "homem naturai" (tese) e do "homem civilizado" (antítese) [cf. Andrade 1990c: 103].) A polémica do Manifesto Pau Brasil (1924) contra a invasâo de elementos europeus e a condenaçâo da repressào e eliminaçâo das próprias origens culturáis, que eram urna "formaçâo étnica rica", prepara já o elogio da antropofagia no seu Manifesto antropófago (1928), que culmina no aforismo irónico e humorístico: "Tupy or not Tupy, that's the question". Diferente do discurso de Plinio Salgado, este aforismo prova que a referencia ao Brasil autèntico e pré-cabraliano é ironizado e verfremdet pelo pròprio autor. Benedito Nunes realça este caráter subversivo do manifesto: "Nenhuma exposiçâo do conteúdo do Manifesto antropòfago, que é o avesso do discurso lógico, pode compensar a falta das imagens e dos trocadilhos que nos dá o seu texto, cheio de intuiçôes penetrantes" (Nunes 1990:16). O mundo do Pau Brasil é a dimensâo nao europeizada e nâo ocidentalizada do Brasil. É a idéia de um outro tipo de produçâo, nâo exploradora, nao alienada senâo subjetiva, que tem como modelo a produçâo poética e que reflete "a pràtica culta da vida" (Andrade 1990a:42). Eia seria uma produçâo da ordem "sentimental, intelectual, irónica, ingènua",

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urna produçâo contra "O Brasil profiteur. O Brasil doutor", urna produçlo de 'invençâo' e de 'surpresa' (43). Tudo isso nâo significa o regresso ao estado primitivo (Urzustand), mas a integraçâo e absorçào das técnicas modernas mais avançadas: "O necessàrio de química, de mecánica, de economia e de balística. Tudo digerido... Práticos. Experimentais. Poetas" (45). Aqui se anuncia no Manifesto Pau Brasil a idéia da antropofagia, idéia central do Manifesto antropófago. N o Manifesto Pau Brasil, o elemento indígena é somente presente no segundo plano e serve como horizonte para a crítica do mundo moderno. N o Manifesto antropófago a referencia ao indio é um elemento argumentativo decisivo. Contudo, nem o conceito da antropofagia nem a referencia ao indio têm o caráter de um mito, seja como mito no sentido soreliano, isto é, como energia revolucionaria, seja como um comportamento mítico 'real', ao qual um movimento político podia referir-se. Antropofagia e "revoluçào Caraiba" sâo fórmulas ou metáforas para a "transformaçâo permanente do tabu em totem", isto é, para um processo cultural e um ato coletivo, para o qual (ainda) nào tem modelo. Por isso nao conseguimos descrevê-lo concretamente, mas só de modo metafórico. Precisamos das imagens metafóricas e do imaginario para subverter a repressào. Mas estas metáforas e imagens - nisso consiste a diferença essencial ao discurso nacionalista de Plinio Salgado e a sua utilizaçâo ideològica do mundo indígena - devem desmitificar-se através do humor e da auto-ironia, no mesmo instante. Quando lemos a afirmaçâo "Já tínhamos o comunismo" (49), esta se relativiza através das seguintes frases: "Já tínhamos a lingua surrealista. A idade de ouro". Seguidas pelos versos em Tupi, que evocam a poesía Dadá: Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipejú. Resumindo se pode constatar: apesar de a presença do mundo indígena nos textos de vanguarda do Peru e do Brasil ser evidente, o seu papel e a sua funçao na estratégia destes discursos políticos e/ou poéticos é bastante diferente: Mariátegui e os autores de AMA UTA referem-se a um mundo indígena que ainda existe. (1) Mariátegui oferece um mito a este mundo, mito, no sentido soreliano, como energia política. (2) Para sua atuaçâo política, ele se refere a um outro mito que ainda está vigente na tradiçào indígena. (3) A sua interpretaçâo da historia e do passado incaicos tem o caráter de urna mitificaçâo, no sentido de apresentar urna ficçâo/construçâo histórica como fatos históricos. Plinio Salgado e o Verde-Amarelismo referem-se a um mundo indígena, Tupi, extinto, mas que era, segundo eles, o elemento transformador da "raça brasileira" e a base da brasilidade. Ele busca urna energia mítica, a "Anta", para o movimento nacionalista. Ele quer fundar a particularidade do Brasil numa realidade etnológica e com isso baseá-la em fatos 'objetivos' e raciais: o passado tupi.

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Oswald de Ándrade utiliza urna pràtica ritual e cultural do mundo indigena, a antropofagia, como modelo cultural para a transformaçâo cultural e a adaptaçâo do elemento estrangeiro (europeu). A antropofagia é a metáfora para urna estrategia cultural que se funda na tradiçâo propria do país. Eia quer estimular a invençâo e a produçâo cultural pela imaginaçâo. Mas por seu tom humorístico e ironico eia provoca ao mesmo tempo a subversao do passado indigena e da realidade atual como autoridades repressivas.

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Bibliografia Andrade, Oswald de (1990a): "Manifesto da Poesia Pau-Brasil" [Correio da Martha, 18 de março de 1924], in: O. de Andrade: A utopia antropofâgica. Obras completas. Sâo Paulo: Globo, pp. 41-45 — (1990b): "Manifesto antropófago" [Revista de Antropofagia, Ano 1., nö I, maio de 1928], in: O. de Andrade: A utopia antropofâgica. Obras completas. Sâo Paulo: Globo, pp. 47-52 — (1990c): "A crise da filosofía messiànica", in: O. de Andrade: A utopia antropofâgica. Obras completas. Sao Paulo: Globo, pp. 101-147 Galindo, Alberto Flores (1987): Buscando un inca: identidad y utopía en los Andes. Lima: Inst. de Apoyo Agrario — (1989): La agonía de Mariátegui. Lima: DESCO García Salvattecci, Hugo (1979): George Sorel y J.C. Mariátegui. Lima "Manifesto Nhengaçu Verde Amarelo" (1987) [Correio Paulistano de 17 de maio de 1929], in: Gilberto Mendonça Teles: Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, pp. 361-367 Mariátegui, José Carlos (1930): "La emoción de nuestro tiempo", in: Amauta. Revista Mensual de Doctrina, Literatura, Arte, Polémica. Ed.: José Carlos Mariátegui, n a 31, pp. 1-9 — (1982): "Etica y socialismo", in: J.C. Mariátegui: Obras completas. Vol. I. Habana: Casa de las Américas, pp. 149-155 — ("1986): Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Lima: Ed. Amauta Nitschack, Horst (1996): "Macunaíma und Serafim Ponte Grande: Literarische Dekomposition der Wirklichkeit als Subversion ihrer Macht", in: Christoph Strosetzki (ed.): Zwischen Ideologisierung und Ausgrenzung. Diskurse der Herrschaft in der Literatur Lateinamerikas. Rheinfelden/Berlin: Schäuble, pp. 97-112 Nunes, Benedito (1990): "A Antropofagia ao alcance de todos", in: Oswald de Andrade: A utopia antropofâgica. Obras completas. Sào Paulo: Globo, pp. 5-39 Ossio, Juan (1995): "El indigenismo de Mariátegui", in: Gonzalo Portocarrero et al. (eds.): La aventura de Mariátegui. Lima: Nuevas Perspectivas "A Revista" (1987) [Belo Horizonte, 1925], in: Gilberto Mendonça Teles: Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Record, pp. 336-340 Romero, Catalina (1995): "El problema del indio y de los indios en el tiempo de Mariátegui", in: Gonzalo Portocarrero et al. (eds.): La aventura de Mariátegui. Lima: Nuevas Perspectivas Salgado, Plinio (1995a): "A Revoluçâo da Anta", in: Jorge Schwartz (ed.): Vanguardas latino-americanas: polémicas, manifestos e textos críticos. Sâo Paulo: Edusp/Iluminuras, pp. 492-494 — (1995b): "O significado da Anta", in: Jorge Schwartz (ed.): Vanguardas latino-americanas: polémicas, manifestos e textos críticos. Sâo Paulo: Edusp/Iluminuras, pp. 496-499 Schwartz, Jorge (ed.) (1995): Vanguardas latino-americanas: polémicas, manifestos e textos críticos. Sâo Paulo: Edusp/Iluminuras Silveira, Tasso de (1995): "A Anta e o Carrapato", in: Jorge Schwartz (ed.): Vanguardas latino-americanas: polémicas, manifestos e textos críticos. Sâo Paulo: Edusp/Duminuras, pp. 494-495 Sorel, George f1930): Reflexions sur la violence. Paris: Rivière Teles, Gilberto Mendonça (1987): Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Record Valcárcel, Luis E. (1972): Tempestad en los Andes. Lima: Ed. Universo

Bruno W. Speck Mestiçagem ou pluralismo étnico? Modelos da integraçao nacional no Brasil e no Peru

1. Introduçâo Depois da guerra fria assistimos a urna série de conflitos étnicos e culturáis em varias regiôes do mundo atual. Nos territorios da Ex-Iugoslávia ou da Ex-Uniâo Soviética, estes conflitos tiveram a dimensâo de guerras civis com um impacto destruidor sobre a pròpria ordem política. De forma diferente, também nos países do hemisfério norte a pressâo imigratória do sul cria conflitos. O potencial de violencia é mais limitado, mas tem sob a forma de um xenofobismo emergente fortes repercussôes na agenda política nacional. Parece que estes acontecimentos confirmam a tese do cientista político norte-americano Samuel Huntington sobre as causas de futuros conflitos mundiais. Diz ele que estes conflitos nem serâo políticos nem económicos, mas motivados por temas culturáis e étnicos.1 O escritor austríaco Stefan Zweig já abordou este assunto quando, exilado da ditadura nazista nos anos 40 em Petrópolis, escreveu na introduçâo do seu pequeño ensaio histórico sobre o Brasil: O problema central que a cada geraçâo, e igualmente a nos, é imposto é a resposta à indagaçâo mais simples e ao mesmo tempo mais necessària: como é possível urna convivencia pacífica dos homens neste mundo, quando eles pertencem a varias raças, classes, cores, religiôes e convicçôes? Este é o problema que se coloca para cada sociedade, cada Estado sempre de novo. Em nenhum país a constelaçâo deste problema foi mais complicada do que no Brasil. E ao mesmo tempo nenhum país resolveu esta questào de urna maneira tao feliz e tao exemplar como o Brasil. Ε o que estou tentando documentar no meu ensaio, porque acho que esse país merece nào só a atençâo, mas igualmente admiraçâo do mundo neste assunto.2

Esta admiraçâo pelo Brasil do ponto de vista da Europa se referia de urna certa maneira a todos os povos latino-americanos. Eies eram vistos como exemplos da convivencia e interpenetraçâo de varias culturas. De fato, esta imagem pacata nâo se devia somente à observaçâo imediata e imparcial dos europeus. Eia também era resultado do esforço de urna política oficial em varios países da América Latina. A política oficial incluía a consolidaçâo do Estado Nacional através de imagens como a democracia racial e a mestiçagem étnica. Se durante longo tempo os antropólogos e sociólogos contribuíram para a elaboraçâo e difusâo desta afirmaçâo da homogeneidade étnica e cultural dentro dos contornos do Estado

Samuel Huntington: "Choque das civilizaçôes?", in: Política Extema, vol. 2, n B 4, março 1994, pp. 120-141 (originalmente publicado em Foreign Affairs em 1993). Stefan Zweig: Brasilien, ein Land der Zukunft. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1984, p. 12 (a primeira ediçâo do livro é de 1941). Traduçâo minha.

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Nacional, hoje grande pane dos dentistas sociais questionam esta imagem. Eia é denunciada como ideologia com pouca relevancia para um retrato fiel das sociedades em questäo. Um resumo desta posiçâo crítica encontramos em um texto de Eleonore von Oertzen, que escreveu na introduçâo de uma coletânea sobre a America Latina: Em toda a América Latina podemos considerar o modelo de uma sociedade mestiça um fracasso. Em nenhum caso, as promessas da igualdade politica, do progresso economico e da assistência social foram cumpridas. Uma das conseqüencias do fracasso deste modelo é que estes marginalizados entram num processo de re-etnizaçào, quer dizer, eles redescobrem ou reinventam as tradiçôes ou peculiaridades étnicas.3

Intelectuais e cientistas sociais na América Latina criticaram há algum tempo o mito da democracia racial. Eles apontam que varios grupos étnico-culturais como negros, mestiços, indios, nordestinos nao sao integrados plenamente ñas sociedades nacionais e sofrem um processo de discriminaçâo, violencia e até extinçâo. Como lidar com estas avaliaçôes tâo discrepantes a respeito do mesmo assunto? Parece que um dos dois lados está mal informado ou deliberadamente distorcendo a realidade à quai se refere. Eu nâo quero entrar nesta questäo sobre o realismo das representaçôes a respeito da identidade nacional. Vou me limitar a traçar um pequeño histórico descritivo das representaçôes sobre a identidade nacional e sobre a relativa importancia deste tema no debate político social ñas sociedades latino-americanas. Tomarei como ponto de partida a independencia política no inicio do século X I X e argumentarei com base no caso do Brasil e do Peru. A primeira hipótese neste traballio é que nos encontramos ante urna sucessâo de diferentes concepçôes da identidade nacional que segue um padrào similar em varias sociedades da América Latina. Defendo a idéia de que as sociedades latino-americanas, desde a independencia no inicio do século XIX, passaram basicamente por quatro modelos diferentes de definiçâo da identidade nacional. Sao estes: (I) a concepçâo da "missao civilizatória" logo depois da independencia - nesta fase, as novas elites políticas e intelectuais perpetuaram, de certa maneira, a concepçâo herdada dos colonizadores portugueses e espanhóis. A esta segue (Π) uma fase de concepçôes raciais na virada do século - estas idéias importadas da Europa vào ter um impacto profundo sobre as políticas de imigraçâo e de populaçâo. Nos anos 30 surge (ΠΙ) o modelo da mestiçagem étnica e cultural, superando o pessimismo embutido no modelo anterior e valorizando as especificidades da realidade étnica e cultural (esta imagem conhecemos pela exposiçâo de Stefan Zweig). Desde os anos 70 parece surgir (IV) um novo modelo de um pluralismo cultural, que hoje em dia prevalece na auto-imagem de muitas sociedades latino-americanas. A segunda hipótese refere-se à importancia do tema dentro do debate político-intelectual. Numa primeira fase durante o século XIX, a idéia da identidade nacional era cultivada por pequeños grupos de intelectuais e pelas novas ciencias sociais como a antropologia e a sociologia. Na primeira metade do século X X , a questäo da identidade étnico-cultural

Eleonore von Oertzen na introduçâo do anuario Lateinamerìka-Jakrbuch. Analysen und Berichte. Frankfurt/M.: Vervuert, 1992, p. 3.

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assumiu caráter semi-ofìcial como parte da politica cultural de afirmaçâo do Estado Nacional. Ao perder este caráter oficial desde os anos 80, a questâo da identidade cultural vai ser definida por grupos sociais diversos como criterio de diferenciaçâo. Com efeito, surge a imagem de uma pluralidade de identidades sócio-culturais dentro da mesma sociedade. No lugar do Estado, o mercado cultural vai regular a definiçâo e difusâo dos modelos apresentados. A comparaçâo dos casos do Peru e do Brasil poderá mostrar similaridades e diferenças entre os modelos da mestiçagem, do embranquecimento, da democracia racial, do indigenismo ou da negritude dentro destes modelos de identidade nacional. Eia mostrará o peso diferente dado a atributos étnicos ou culturáis nos dois casos. E poderá traçar um perfil do potencial de confitto que a questâo da identidade social tem para o ámbito político.

2. A "missao civilizatória" nos trópicos Os colonizadores portugueses ou espanhóis se viam numa cruzada civilizatória no Novo Mundo. Esta missao complementava os motivos de exploraçâo económica das terras recémdescobertas. O significado do conceito "civilizaçâo" nesta época traduzia-se na conquista do territorio e na cristianizaçâo da populaçào - fosse eia indígena ou escrava. A Bula Papal Inter cetera de 1493, que define a legitimidade do dominio da Espanha sobre as novas terras descobertas por Colombo, especifica a missao em relaçào aos povos nativos destas terras: Que seja exaltada principalmente na nossa época, e em toda a parte se espalhe e se dilate a Fé Católica e a Religiào Crista, se cuide da salvaçâo das almas, se abatam as naçôes bárbaras e sejam reduzidas à mesma fé.4

Esta concepçâo se manifesta no sistema de encomienda nos vice-reinados da Espanha, que delega estas tarefas de civilizaçâo e cristianizaçâo dos indios a agentes particulares. Na pràtica, isto significava uma escravizaçâo camuflada dos indígenas, que oficialmente tinha sido proibida pela Igreja. Uma pràtica parecida com a encomienda encontramos no Brasil após a proibiçâo do tráfico negreiro. Os negros dos navios apreendidos, antes de serem repatriados, eram entregues pelo Juiz de Órfàos a agentes privados para a cristianizaçâo e a aprendizagem.5 As elites políticas locáis, ao assumirem o comando político das novas sociedades independentes no inicio do século XIX, perpetuaram esta imagem da missao civilizatória. No entanto, eles se orientaram numa interpretaçâo mais laica do conceito "civilizaçâo". Para eles, cumprir a missao civilizatória significava, principalmente, introduzir uma ordem política livre e promover o progresso económico. Por esta razâo, a discussâo sobre questòes

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Bula Inter cetera do Papa Alexandre VI de 4 de maio de 1493, reproduzida em: Darcy Ribeiro; Carlos de Araújo Moreira Neto (eds.): A fundaçâo do Brasil. Testemunhos 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 66-68.

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Pedro Rodrigues de Albuquerque: A corrupçào no Brasil. Sao Paulo: Siciliano, 1991, p. 41.

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jurídicas, leis e as constituiçôes modernas representa grande parte do pensamento políticosocial latino-americano no século XIX. 6 Da importaçâo das instituiçôes políticas da Inglaterra, França ou Estados Unidos, estes primeiros estadistas latino-americanos esperavam a transposiçâo do modelo do Estado Constitucional e, com isto, a introduçâo da civilizaçâo nos trópicos. Isto vale tanto para as repúblicas liberáis no lado hispánico como para a monarquía constitucional do Brasil independente. Em relaçâo ao progresso económico, a meta era a efetiva ocupaçâo e exploraçâo da terra. Através desta politica populacional deveria se chegar a um aumento da produçâo e à exportaçâo de matérias-primas, que formaram o centro das economías pós-coloniais. Ao mesmo tempo, a Europa vivia urna fase maciça de emigraçâo de camponeses empobrecidos. Varios países da América Latina, a exemplo do Estados Unidos, tentaram atrair estes migrantes para o povoamento das vastas regiòes pouco ocupadas ou para o suprimento da permanente falta de mâo-de-obra nas plantaçôes. Esta política de povoamento virou sinonimo de urna politica para o progresso economico. Mostra isto o lema do argentino Sarmiento: Gobernar es poblar.

2.1. Indianismo cultural e "missâo civilizatória" no Brasil Durante o século XIX, o tema da composiçâo étnica ainda nâo apareceu como tema importante na agenda política. Mas no debate cultural surgiu um primeiro conflito a respeito do tema da interpretaçào da identidade nacional. No novo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838 com apoio do Imperador, um grupo de intelectuais elaborou uma espécie de historia oficial do país. Na revista editada pelo Instituto, o tema dos indios no territorio era tratado freqiientemente. O aspecto central continuou sendo a questâo da civilizaçâo e cristianizaçâo dos indios. Igualmente, na primeira Historia geral do Brasil que o historiador Francisco Varnhagen elaborou entre 1854 e 1857, dos 64 capítulos somente très sâo dedicados aos indios e um aos negros no Brasil/ Em relaçâo aos indios, Varnhagen ressalta os traços violentos e bárbaros e a falta de qualquer ordem social. Ele critica indiretamente a imagem que os contratualistas europeus tinham das sociedades naturais nos seus retratos do estado natural. Somente através da civilizaçâo e da cristianizaçâo, estes povos podem sair da situaçâo de barbàrie na quai se encontram. Para Varnhagen, esta "missâo civilizatória" dos colonizadores portugueses em relaçâo aos indios répété o processo que caracterizou a expansâo mediterrànea sobre os bárbaros da Europa do Norte. Em toda a

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Para o pensamento político social na America Latina: Nikolaus Werz: Das neuere politische und sozialwissenschaftliche Denken in Lateinamerika. Freiburg: Arnold-Bergstraesser-Institut; 1991, para o caso do Brasil: Bruno Speck: Strömungen politisch-sozialen Denkens im Brasilien des 20. Jahrhunderts. Freiburg: Arnold-Bergstraesser-Institut, 1995.

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Francisco Adolfo Varnhagen: Historia geral do Brasil antes de sua separaçâo e independencia de Portugal. Säo Paulo: Itatiaia/EDUSP, 101981.

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obra de Varnhagen, o tema dos indios e dos negros é associado à barbarie, enquanto a influencia portuguesa está ligada aos efeitos benéficos da civilizaçâo e do cristianismo. A esta historiografía oficial dentro dos moldes da tradiçâo lusitana se opôs outra corrente cultural na área da literatura e das artes: o indianismo romántico. Segundo Antonio Candido, o indianismo domina a produçâo cultural na literatura entre 1840 e 1870.® O retrato idílico do indio está presente na poesia de Domingos José Gonçalves de Magalhäes e Antonio Gonçalves Dias. Na segunda metade do século XIX, o encontro entre o indio nativo e o colonizador branco como fundamento da civilizaçâo brasileira será tema da prosa de José de Alencar (O Guarani, 1857, e Iracema, 1865). O indianismo romántico teve urna grande repercussâo na vida cultural do Impèrio. O romance O Guarani foi publicado inicialmente no jornal Diàrio do Rio de Janeiro e atraiu a atençâo do público. Posteriormente, o romance foi transformado em uma ópera por Carlos Gomes. Eia foi inicialmente apresentada em Milâo e teve a sua estréia em 1870 no Brasil por ocasiâo das comemoraçôes do aniversario do Imperador brasileiro. O indianismo literario e o lusitanismo na historiografía representaran! movimentos alternativos no ámbito cultural para a construçâo da identidade nacional durante o século XIX. O conflito latente entre estas representaçôes alternativas a respeito da historia nacional veio à superficie por ocasiâo da epopéia A Confederaçào dos Tamoios (1856) de Gonçalves de Magalhäes. Nesta ocasiâo, historiadores e artistas abriram publicamente um debate sobre estas duas concepçôes a respeito da identidade nacional.' No entanto, esta polémica estava restrita ao campo simbólico. Na política real, a concepçâo da missâo civilizatória era claramente dominante. Isto se manifesta em relaçâo ao comportamento do Impèrio ñas disputas territoriais com povos indígenas por ocasiâo da expansâo da fronteira civilizatória durante o século XIX. As tribos eram expulsas do seu hábitat ou dizimadas quando resistiam. Uma mudança em relaçâo à política indigenista somente ocorreu no inicio do século X X com a formulaçâo da concepçâo de pacificaçào pelo general Rondon e a criaçâo do Serviço de Proteçâo ao Indio. Neste novo modelo, posteriormente reformulado pelos antropólogos brasileiros sob a denominaçâo da aculturaçâo, o encontro entre as culturas ocorreria de forma lenta e gradual, sem no entanto mudar a atitude da "missâo civilizatória" como tarefa da política indigenista. A hegemonía desta concepçâo da "missâo civilizatória" na política está presente também ñas políticas de imigraçâo para suprir a demanda de mâo-de-obra. No Peru como no Brasil, esta política de povoamento estava ligada à aboliçâo da escravatura e à política de imigraçâo. No caso brasileiro, onde a aboliçâo se deu lentamente entre 1850 e 1888, a substituiçâo do escravo pela mâo-de-obra livre também ocorreu de forma graduai. Inicialmente, a imigraçâo

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Antonio Candido: "A literatura durante o Impèrio", in: Historia geral da civilizaçâo brasileira. Tomo Π, Vol. 3, editado por Sérgio Buarque de Holanda, Sao Paulo: Difel, 1967, p. 346. Veja a análise deste debate em: José Aderaldo Castello: A polémica sobre "A Confederaçào dos TamoiosSao Paulo: F F L C H / U S P , 1953 e Manoel Luiz Lima Salgado Guimarâes: Geschichtsschreibung und Nation in Brasilien 1838-1857. Tese de doutorado na Universidade Livre de Berlim/Alemanha, p. 164.

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se limitava às contrataçôes experimentáis de pequeños grupos de camponeses vindos da Europa por alguns barôes do café. Somente a partir da última década do século, o país viveu uma imigraçâo em massa de europeus, que em pouco tempo muda completamente a composiçâo das regiôes no sudeste do pais. Sâo très as razôes para esta onda imigratória. Primeiro, o firn da escravidâo agravou a escassez de mâo-de-obra nas plantaçôes rurais; segundo, a partir da adoçâo do regime republicano em 1889, as leis regulamentando a imigraçâo foram extremamente liberáis; e terceiro e talvez o mais importante: com a expansäo da cafeicultura e dos primeiros núcleos da produçâo industrial no estado de Sâo Paulo, os novos imigrantes tinham grandes chances de integrar-se economicamente, ou como eles diziam: fazer a América. A fase da imigraçâo maciça como parte da política oficial durou até os anos 30 no Brasil, quando eia será substituida por uma posiçâo mais restritiva em relaçâo aos imigrantes. A queda do Impèrio e a introduçâo do regime republicano no Brasil em 1889 ilustra bem o conceito da introduçâo da civilizaçâo pela importaçâo de instituiçôes políticas liberáis. Um dos defensores da Nova República, Rui Barbosa, empolgava-se quando falava, em 1893, sobre as perspectivas para o desenvolvimento sob o regime republicano: Sob a República, a despeito de todos os elementos opostos, a vida pública vai adquirindo uma energia desconhecida entre nós durante o outro regimen. [...] Na República a prosperidade geral se vai desenvolvendo em proporçôes agigantadas ante as quais as do Imperio sao as de um pigmeu.10

Para esta geraçâo de republicanos, o debate sobre as questôes nacionais ainda se dava exclusivamente em categorías políticas como o arcabouço institucional e legal do novo regime. As políticas públicas e algumas reformas institucionais garantiriam um progresso saudável da República dentro e fora das instituiçôes. Quando Barbosa trata da questâo da imigraçâo na sua campanha para a presidencia da República em 1910, ele nao menciona nenhuma palavra quanto à questâo da composiçâo étnica do Brasil. Barbosa defende a idéia de que o incentivo central para a imigraçâo nâo será dado por subsidios ou por acordos intergovernamentais, mas pelo grau de liberdade política e pelas condiçôes socioeconómicas no país.11 A próxima geraçâo de intelectuais e políticos brasileiros nâo compartilhará mais esta visâo político-institucional dos problemas nacionais. Outra manifestaçâo desta identidade como pòlo civilizador nos trópicos está presente nas participaçôes do Brasil nas exposiçôes mundiais na segunda metade do século XIX. Desde a primeira exposiçâo em Londres (1861/62) o Brasil apresentou-se através dos aspectos civilizatórios como as riquezas naturais, as máquinas como símbolos do progresso,

10

Rui Barbosa: "Visita à terra natal", discurso pronunciado na Bahia em 7 de fevereiro de 1893, reproduzido em: Rui Barbosa: Escritos e discursos seletos, editado por Virginia Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar Editora, 1966, pp. 82s.

11

Rui Barbosa: " O civilismo", discurso inaugural da campanha presidencial no Rio de Janeiro em 3 de outubro de 1909, reproduzido em: id., Escritos (cf. nota 10), pp. 372-376.

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a educaçâo e a saúde pública. A escravidâo nao aparecía e os indios eram tratados como elementos exóticos, parte da natureza e nâo da sociedade em construçâo.12 Um outro ato simbólico neste sentido era a modernizaçâo da cidade de Manaus, entre 1890 e 1920, durante o boom da exportaçâo da borracha natural. Fizeram parte da transposiçâo da civilizaçâo para a Amazonia a realizaçâo de grandes obras públicas como aterros, canalizaçôes, pontes e a instalaçâo de urna rede de iluminaçâo elétrica em 1896. Figurava como coroamento deste processo a construçâo do teatro em Manaus e a vinda de artistas europeus para espetáculos. Junto com estas realizaçôes materials, a introduçâo do sistema republicano de governo e a política imigratória para esta geraçâo de políticos e intelectuais representavam a realizaçâo da missào civilizatória do Brasil no caminho do progresso e da liberdade.

2.2. Projeto e realidade da politica imigratória no Peru No Peru, as aspiraçôes em relaçâo à atraçâo de imigrantes foram parecidas, mas os resultados foram menos duradouros que no caso brasileiro.13 A aboliçâo da escravatura em 1854 seguiu uma imigraçâo semiclandestina de 100.000 camponeses da China. Os maus-tratos que esta mâo-de-obra sofreu no Peru fez a China interromper esta emigraçâo nos anos 70 do século X I X . Ñas décadas seguintes, o governo do Peru tentou atrair imigrantes europeus para o país através de incentivos e subsidios financeiros, mas quase todas as tentativas fracassaram. Em comparaçâo ao Brasil e a outros países, que conseguiram atrair com mais sucesso o fluxo emigratòrio vindo da Europa, no caso do Peru très fatores complicaram o quadro: o acesso ao país, partindo-se da Europa, era mais difícil, as terras boas para a plantaçâo já estavam distribuidas e a economia agrària nâo ofereceu oportunidades para os emigrantes da Europa. Como conseqüencia, grupos de imigrantes europeus logo vâo aparecer ñas cidades peruanas como elementos marginalizados, vivendo de esmolas. Somente no inicio do século X X , o Peru viveu uma segunda onda de imigraçâo, desta vez nâo espontànea, mas produto de um acordo com o governo japonés. Ñas primeiras très décadas, cerca de 30.000 imigrantes de origem japonesa se estabeleceram no país. Os imigrantes japoneses tiveram mais sucesso economicamente do que os seus antecessores e se instalaram na agricultura e no comércio de algodâo. Com os seus laços familiares e o sistema de crédito barato praticado entre o grupo étnico, este colocou em xeque a elite agraria e comercial da sociedade tradicional peruana. Enquanto os descendentes dos imigrantes chineses já estavam integrados na sociedade nacional através da miscigenaçâo, os imigrantes japoneses, por diversos motivos, preservaram as suas características étnicas e culturáis por muito tempo.

12

Margarida Souza Neves: As vitrina do progresso (Relatório de Pesquisa PUC/RJ, mimeo), 1986.

13

Esta parte foi redigida com base à coletânea Primer seminario sobre poblaciones inmigrantes. 2 volumes. Lima: Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología, 1987 e 1988.

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Em relaçâo às populaçôes indígenas no Estado peruano, a atitude paternalista dos colonizadores espanhóis diminuiu após a independencia. O Estado retirou a proteçâo legal das comunidades indígenas e a primeira constituiçâo depois da independencia aboliu os estatutos especiáis para as comunidades indígenas. A missâo civilizatória das novas elites peruanas seguiu o modelo descrito no caso brasileiro: a meta principal era a introduçâo de leis e constituiçôes modernas. Assim, os indios se tornaram formalmente cidadâos comuns do novo Estado peruano. Na pràtica, eles servirlo ñas eleiçôes como massa de manobra para garantir o poder dos latifundiários, chamados de gammonales, dos quais eles dependiam economicamente. Somente no inicio do século XX, as Constituiçôes peruanas concedem novamente um status especial a estas comunidades e às terras indígenas. Estas atitudes políticas em relaçâo à questào da imigraçâo e da política indígena revelam urna concepçâo da identidade nacional parecida com a do Imperio brasileiro. A nova elite politica no Peru se via numa cruzada civilizatória. Eia se baseava exclusivamente em elementos da cultura hispánica, atribuindo aos grupos indígenas o papel do elemento bárbaro e da anomia social. As obras mais importantes desta afirmaçâo da tradiçâo hispánica no século XIX sâo Facundo. Civilización y barbarie (1845) do argentino Domingo Sarmiento e Ariel (1900) do uruguaio José Enrique Rodó. Os representantes do hispanismo no Peru sao José de la Riva Agüero e Víctor Belaunde. Ao lado desta posiçâo oficial, existiu no Peru, no entanto, uma disputa no campo cultural muito mais intensa entre o hispanismo e o indigenismo. A preocupaçào social com a situaçâo dos indios andinos tem uma longa tradiçâo que remonta até as críticas de Bartolomé de las Casas à conquista espanhola. Durante o século XIX, as descobertas arqueológicas forneceram novo material para a criaçâo de um mito da civilizaçâo indígena como parte integrante da nacionalidade peruana. O indigenismo como movimento entre uma parte da intelectualidade peruana usou como referencia estas manifestaçôes da cultura inca antes da chegada dos europeus. Apesar deste embasamento material, o indigenismo peruano tinha um lado romántico muito semelhante ao movimento literario e artístico no Brasil na mesma época. Ao lado de intelectuais como o antropólogo peruano Julio Tello, que sustentaram um indigenismo académico voltado para o passado, o Peru conheceu um indigenismo romántico na literatura durante a segunda metade do século XIX, que se voltava contra o hispanismo oficial, sem, no entanto, tomar posiçâo em relaçâo à situaçâo dos indios do seu tempo.

3. Idéias raciais e a fundaçâo dos Estados Nacionais De fato, o modelo de identidade nacional na época da imigraçâo na virada do século näo estava exclusivamente ligado ao conceito da missâo civilizatória nos trópicos. Nesta fase os políticos e intelectuais latino-americanos começaram a preocupar-se com a consolidaçâo de Estados Nacionais no Novo Mundo. A legitimaçâo dos Estados Nacionais na Europa durante o século XIX se deu principalmente pela nova disciplina científica, a historiografía.

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Na America Latina, esta legitimaçao, na virada para o século X X , correu principalmente por conta da antropologia e sociologia, como novas ciencia do mundo social. Os intelectuais e políticos latino-americanos nesta época eram leitores assíduos de autores europeus como Gumplowitz, Haeckel, Le Bon, Desmolins. Estes, nas suas teorías social-darwinistas, fizeram da composiçâo étnica o argumento principal para avaliar as futuras chances de um povo na luta pela sobrevivencia. E os seus seguidores do outro lado do Atlántico começaram a pensar e falar negativamente a respeito de certos grupos dentro das sociedades no Novo Mundo, entre estes a massa dos indios no Peru e os ex-escravos negros no Brasil. Encontramos este clima intelectual com preconceitos racistas dos mais pesados mesmo nos escritos de muitos intelectuais. Havia poucos que estavam remando contra a maré, como Manuel Gonçales Prada no Peru (Nuestros indios, 1888) ou Alberto Torres no caso do Brasil (O problema nacional, 1914). O primeiro defendía os indios contra os preconceitos raciais, denunciando ao mesmo tempo a exploraçâo económica que estes sofriam.14 O segundo era a favor do aproveitamento das populaçôes mestiças das regiôes pobres do Nordeste no mercado de trabalho no Sudeste do país.15 Mas a voz destes poucos nâo tinha relevancia. Para a maioria da intelectualidade e dos políticos, os indios, os negros e os mestiços representavam a barbarie no pròprio país - e a salvaçâo vinha de fora. Sob este ángulo da política racial, os imigrantes nao eram vistos somente como mâo-de-obra, mas como massa biológica benéfica. Eles iam ajudar a mudar o balanço da composiçâo étnica das naçôes no Novo Mundo para melhor.

3.1. Racismo e embranquecimento no Brasil No caso do Brasil, a questâo da identidade nacional se colocou de forma mais maciça a partir da aboliçâo. De um dia para o outro os escravos, que até entâo eram vistos meramente como fatores de produçâo, viraram, ao menos no texto constitucional, cidadâos livres, que futuramente iriam decidir também sobre os destinos do pais. Diante desta situaçâo, os intelectuais brasileiros discutiram as conseqiiências da miscigenaçâo. Ganhou força a idéia do embranquecimento do Brasil mestiço e negro pela imigraçâo de europeus. Esta idéia representava uma adaptaçâo considerável das teorías raciais que surgiram na Europa, porque nestas os mestiços geralmente tinham na hierarquia racial um lugar abaixo ainda dos povos brancos, negros e asiáticos. Para os primeiros antropólogos e sociólogos brasileiros como Nina Rodrigues, Sylvio Romero e Oliveira Vianna, para só mencionar alguns nomes, o embranquecimento servia para erradicar em longo prazo a influencia africana no país. No seu estudo sobre as teorías raciais na virada do século, a antropologa Lilia Schwarcz destaca o dilema e a originalidade da adaptaçâo das teorías raciais no Brasil.

" 15

Manuel Gonçalves Prada: "Nuestros indios", em: Horas de lucha, Lima 21924, pp. 332-343. Alberto Torres: O problema nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, cap. Π, intitulado "Em prol das nossas raças".

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De um lado esses modelos pareciam justificar científicamente organizaçôes e hierarquias tradicionais que pela primeira vez - com o firn da escravidào - começavam a ser publicamente colocadas em questâo. Do outro lado, porém, devido à sua interpretaçào pessimista da mestiçagem, tais teorías acabavam por inviabilizar um projeto nacional que mal começara a se montar.16 Em diversas instituiçôes académicas de pesquisa, ensino e documentaçâo como as tradicionais Faculdades de Direito e de Medicina, os Institutos Históricos e Geográficos e os Museus, a discussao das teorías raciais e a elaboraçâo de teorías origináis a respeito da configuraçâo racial na naçâo brasileira assumiram um lugar central. Esta discussâo das idéias raciais e social-darwinistas está igualmente presente na virada do século. Em Os sertôes (1902), Euclides da Cunha documenta a revolta do movimento messiànico em torno de Antonio Conselheiro no interior do nordeste do Brasil e a reaçâo violenta da recém-criada República. Na tentativa de dar um embasamento científico ao seu relato da guerra de Canudos, o autor recorreu ampiamente às teorías raciais da época. Como foi apontado, estas nào ofereciam uma perspectiva positiva para o Brasil. "A mistura de raças muí diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. [...] A mestiçagem estrema é um retrocesso. [...] De sorte que o mestiço [...] é, quase sempre, um desequilibrado".17 Cunha tentou achar uma soluçâo para sair do labirinto das teorías raciais apostando no sertanejo do nordeste do Brasil. A soluçâo que ele encontrou: apesar de ser produto de uma mistura entre brancos e indios esta miscigenaçâo realizou-se em um tempo tâo remoto que surgiu uma nova raça pura, o sertanejo. Este, segundo Euclides, seria o pòlo forte de uma nova raça brasileira. Ora toda esta populaçâo perdida num recanto dos sertòes lá permaneceu até agora, reproduzindose livre de elementos estranhos, como que insulada e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo. [...] O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Nao tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurasténicos do litoral." Euclides nao apostou na imigraçâo européia, mas na atual composiçào étnica do Brasil. Sua obra está embebida de um pensamento racial para explicar os destinos da naçâo. A argumentaçâo que encontramos é um exemplo da assimilaçâo criativa do pensamento racial de autores estrangeiros. Eram necessárias soluçôes origináis para superar o pessimismo em relaçâo à miscigenaçâo nestas referencias e abrir uma perspectiva promissora para naçôes multiétnicas como o caso brasileiro. O racismo agora também está presente na política imigratória no país. Enquanto os europeus eram vistos como representantes natos do progresso cultural e técnico, os imigrantes da Asia eram estigmatizados como submissos e ignorantes. A legislaçâo mais

16

17

18

Lilia Moriz Schwarcz: O espectáculo das raças. dentistas, instituiçôes e questâo racial no Brasil, 1870-1930. Sào Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 18. Euclides da Cunha: Os sertôes. Ediçào didática preparada por Alfredo Bosi. Sào Paulo: Ed. Cultrix, 1985, p. 96 (primeira publicaçào em 1902). Ibid. (nota 17), pp. 94 e 99.

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restritiva sobre a imigraçâo a partir de 1930 mostra, de urna maneira clara, a preferencia pelo imigrante europeu e a tentativa de impedir a entrada de ¿migrantes asiáticos. Foram fixados em 1934 contingentes de imigraçâo para as varias nacionalidades, que se orientaram na imigraçâo ñas décadas anteriores, quando predominava a vinda de europeus. De fato, isto significava urna limitaçâo da imigraçâo asiática que estava crescendo fortemente.

3.2. Racismo e hispanismo no Peru Esta preferencia pelo imigrante europeu nâo está presente só no Brasil, mas também no Peru, cujo governo tentou sem sucesso atrair ¿migrantes europeus. O racismo se manifesta igualmente na política imigratória que deu preferencia aos ¡migrantes europeus. A partir da limitaçâo da imigraçâo em 1930, os contingentes tinham tetos formalmente iguais (20.000) para as várias nacionalidades. Mas como a procura era muito mais forte por parte dos imigrantes japoneses, que de fato já tinham ultrapassado este limite, enquanto outras nacionalidades nem tinham chegado peno, isto significava na pràtica urna cláusula proibitiva para a imigraçâo japonesa. Talvez este fracasso da idéia de um embranquecimento no Peru seja responsável pela interpretaçâo diferente que a mestiçagem teve neste país. No Peru, a idéia da mestiçagem nâo estava ligada principalmente à mistura étnica entre brancos e negros, mas à assimilaçâo cultural dos indios. Os hispanistas partiram do ponto de vista de que os indios poderiam ser educados nos valores ocidentais ou hispano-católicos e, através deste processo civilizatório, embranqueceriam culturalmente. As manifestaçôes de urna assimilaçâo bem-sucedida nâo seriam a pele branca e o cábelo liso, como no Brasil, mas o dominio da lingua espanhola, padrôes de comportamento considerados modernos e o catolicismo. Estas diferenças entre urna interpretaçâo étnica no Brasil e urna interpretaçâo cultural no Peru estâo presentes em ambas as culturas até hoje como todo legado cultural racista do inicio do século XX. No Brasil, as idéias do embranquecimento estâo presentes na cultura popular, como, por exemplo, em expressôes como limparapele, referindo-se ao casamento com um parceiro mais branco ou cábelo ruim como estigmatizaçâo de cábelo afro-brasileiro. No Peru, a idéia do hispanismo cultural está presente na denominaçâo dos cholos, como sâo denominados os mestiços entre indios e brancos. De fato, estes sâo etnicamente indios, mas adquiriram em parte hábitos, comportamentos e traços culturáis do mundo branco como a lingua, a religiâo e os valores. Eles sâo mais mestiços culturáis do que étnicos. Os herdeiros dos crioulos, a elite branca, em boa parte é etnicamente mestiça, mas culturalmente se identifica por completo com os valores do mundo hispánico.

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130 4. Modelos de mestiçagem etnica e cultural

Diante do quadro desenhado pelas teorías raciais européias ou das suas adaptaçôes pelos intelectuais latino-americanos, as perspectivas para o desenvolvimento das novas naçôes continuaram pouco promissoras. Quando, a partir do inicio do século X X , urna nova geraçâo de intelectuais destes países abandonou as teorías raciais, este quadro começou a mudar. Surgiu um terceiro modelo de identidade étnica e cultural, no qual será valorizada a miscigenaçâo entre os conquistadores europeus e os escravos africanos ou povos indígenas. A importancia do pensamento racial fica presente também nesta etapa, mas agora valorizam-se o elemento autòctone na composiçâo étnica das sociedades e o estado atual da miscigenaçâo, em vez de se propagar um embranquecimento futuro. Há diferenças marcantes neste período da afirmaçâo nacional. No Brasil, a idéia da mestiçagem afro-européia ganha caráter de urna ideologia oficial do Estado e é adotada como elemento de uma política de integraçâo nacional. N o Peru, o indigenismo ganha conotaçôes igualmente políticas; no entanto, nao se desenvolve como uma ideologia integradora, mas contestadora

da ordem sócio-política. Nisto o indigenismo peruano dos anos 20 e 30 do

século X X se distingue tanto da ideología da mestiçagem no Brasil como igualmente do indigenismo mexicano da mesma época.

4.1. Mestiçagem e integraçâo nacional no Brasil Como foi abordado no capítulo sobre o indianismo romántico no Brasil, existe já no século X I X um projeto na intelectualidade brasileira para criar um mito da fundaçâo da civilizaçâo brasileira através da fusâo de uma cultura indígena e dos conquistadores europeus. Ao contrario dos vizinhos na regiäo andina e na América Central, os intelectuais brasileiros nâo puderam se apoiar em manifestaçôes materials da cultura indígena, como no caso das descobertas arqueológicas resgatando elementos das civilizaçôes dos Maia ou dos Inca. O indianismo romántico no Brasil nao ultrapassou os limites das artes. A mudança no Brasil para uma valorizaçâo efetiva da mestiçagem se dá a partir do livro de Gilberto Freyre Casa-grande esenzala (1933). Visto a partir dos mitos do indianismo e da ideologia pseudocientífica do embranquecimento, as idéias de Freyre eram revolucionarias. Na introduçâo à primeira ediçâo da sua obra, que durante décadas vira a ser uma espécie de epopéia nacional, destaca o seu distanciamento das teorías raciais: Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura entre os efeitos de relaçôes puramente genéticas e os de influencias sociais, de herança cultural e de meio. Neste critèrio de diferenciaçâo fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio."

19

Gilberto Freyre: Casa-grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 251987, p. LVII. É ilustrativa a posiçâo de Freyre a respeito de um aspecto das teorías raciais: "O que se sabe das diferenças da estrutura entre os crânios de brancos e negros nào permite generalizaçôes. Já houve quem observasse o fato de que alguns homens notáveis têm sido individuos de cranio pequeño, e

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131

Contra o indigenismo, Freyre postulava que os escravos africanos tinham um papel mais importante do que os indios na formaçào da cultura brasileira. Ele afirmava que esta cultura nao estava em vias de embranquecimento, mas que eia formava urna nova cultura mestiça justamente aquela que os racistas mais odiavam. Esta mestiçagem cultural e étnica formava o fundamento da historia sociocultural e para Freyre era a marca principal da sociedade brasileira. Nenhum antecedente social mais importante a considerar no colonizador portugués que a sua extraordinaria riqueza e variedade de antagonismos étnicos e de cultura, que o seu cosmopolitismo.20 [...] Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cábelo louro, traz na alma, quando nào na alma e no corpo [...] a sombra ou pelo menos a pinta do indígena ou do negro.21

Este modelo de Freyre ganhou logo popularidade na arte, na ciencia e na política. Os pintores modernistas como Cándido Portinari, pela primeira vez, fazem do mulato um dos temas prediletos da sua pintura. Escritores assimilaram a idéia da identidade mestiça na sua obra, como no caso de Jorge Amado, cujos romances têm como pano de fundo a cultura afro-brasileira do litoral nordeste do Brasil. A geraçao de antropólogos e sociólogos na época pós-guerra retrabalhou este tema das relaçôes raciais no Brasil, e quase todos eles concordavam com a visâo de Freyre sobre o caráter homogéneo e tolerante da civilizaçâo brasileira. Mesmo os fundadores da sociologia brasileira Roger Bastide e Florestan Fernandes chegaram à conclusào, na sua análise da situaçào do negro no Brasil, de que os traços distintivos da identidade cultural ou étnica nao sobreviveriam ao ingresso na sociedade moderna. Outro defensor enfático da brasilidade mestiça foi o antropólogo Darcy Ribeiro. Emylí Américas e a civilizaçâo, Ribeiro elaborou um modelo de configuraçôes histórico-culturais, no qual distinguiu varias composiçôes étnicas e culturáis das naçôes da América Latina. O Brasil é enquadrado por Ribeiro na categoría das novas naçôes, apresentando um alto grau de homogeneidade étnica e cultural. 22 O livro de Manuel Diégues Junior sobre Etnias e culturas no Brasil (1952), que durante duas décadas foi reeditado varias vezes, enfatizava igualmente esta idéia da mestiçagem com a perspectiva de urna sucessiva homogeneizaçâo das varias influencias. N u m a linha que era dominante nos anos 50 e 60, o autor coloca as manifestaçôes de uma pluralidade cultural e étnica da sociedade brasileira na perspectiva de uma sucessiva incorporaçlo a uma cultura nacional homogénea:

20 21 22

auténticos idiotas, donos de crânios enormes.", idem, p. 295. No entanto, o autor, mesmo em outros momentos, usa categorías étnicas como fatores explicativos. Ibid., Casa-grande (cf. nota 19), p. 199. Ibid., Casa-grande (cf. nota 19), p. 283. Darcy Ribeiro: As Americas e a civilizaçâo. Petrópolis: Vozes, 1977 (primeira publicaçao em espanhol: Las Américas y la civilización. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1969).

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Graças ao processo de sincretismo, ou seja, a capacidade de absorver e reformular o que se recebe, surgiu o abrasileiramento das diferentes manifestaçôes culturáis que assinalam ou caracterizam o que é nosso.23

Este novo modelo de identidade nacional em torno dos conceitos da miscigenaçâo e homogeneizaçâo, produzido e reproduzido por dentistas, intelectuais e artistas, nâo ficou sem conotaçôes políticas. A concepçâo da democracia nos anos 50 no Brasil estava vinculada à idéia de urna sociedade harmonica, sem conflitos internos. Nela nào cabia a idéia de conflitos sociais ou interesses divergentes. A imagem de urna sociedade etnicamente e culturalmente mestiça e homogénea, como eia era desenhada por Freyre, se encaixava neste conceito de urna sociedade sem rupturas ou conflitos internos. O modelo da identidade mestiça homogénea ganhou urna aceitaçâo semi-oficial no Brasil. Além do mais, para a imagem do país no contexto internacional, a idéia da mestiçagem cultural era interessante porque eia permitiu contrastar positivamente a situaçâo pacífica no Brasil com os conflitos nos Estados Unidos, que viveram nos anos 50 e 60 a luta pelos direitos civis dos negros.

4.2. Indianismo e contestaçâo no Peru Se a ideologia do embranquecimento no Brasil correspondeu ao hispanismo no Peru, a valorizaçâo da naçâo pelo elogio à mestiçagem brasileira tem o seu paralelo no indianismo peruano. Mas esta valorizaçâo dos elementos nacionais ganha um sentido bem diferente na construçâo das duas naçôes. Como foi descrito mais acima, durante as últimas décadas do século XIX, a valorizaçâo da herança indígena no Peru significava a tentativa de construir urna identidade cultural alternativa à versâo oficial. Esta última valorizava as raízes hispánicas e se manifestava na política de imigraçâo européia - ainda que esta näo tivesse alcançado o éxito desejado. Numa segunda fase nos anos 20 e 30 do século X X , o indianismo e o movimento indigenista no Peru se apresentam de forma mais politizada. Enquanto no Brasil a idéia da miscigenaçâo afro-brasileira é usada como elemento da integraçâo e estabilizaçâo do novo Estado Nacional, no Peru o indigenismo toma a forma de um movimento contestador da ordem social. Já no século XIX, Manuel Gonzales Prada postulava no ensaio Nuestros indios (1888) que a questâo indígena estaría ligada à garantía de direitos civis e à distribuiçâo da terra. "Nossa forma de governo é urna grande mentira. Um Estado no quai dois ou très milhôes de pessoas vivem fora do amparo da lei nâo merece a denominaçâo república

23

Manuel Diégues Júnior: Etnias e culturas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizaçâo Brasileira, s 1976 (primeira ediçâo 1952), citaçâo do prefacio à 5" ediçâo, p. 2.

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democrática".24 Prada nâo apostava na atitude benevolente por parte dos colonizadores. O problema social dos indios somente seria resolvido quando os próprios indios se organizassem e reivindicassem urna distribuiçâo mais igualitaria do solo. Diante do peso social e político da classe de latifundiários no Peru no século XIX, o indigenismo politizado de Prada questionava com estas reivindicaçôes a base de toda ordem social peruana. Très décadas depois, nos escritos de José Carlos Mariátegui, o protagonista mais importante do indigenismo politizado do século XX, esta ligaçâo entre contestaçâo da ordem social e a questâo indigena fica ainda mais clara. Mariátegui escreve: Nâo sâo a civilizaçào e o alfabeto dos brancos que dào nova força aos indios, mas o mito, a idéia da revoluçào socialista. [...] Por que justamente estes indios, que desenvolveram o sistema comunista mais bem organizado e mais harmónico, estariam parados frente ao movimento e à inquietaçâo em nivel mundial? E tào obvia a proximidade do movimento indigenista com as correntes revolucionarias no mundo, que dispensa qualquer tipo de prova.25

Na contestaçâo da ordem socioeconòmica e na elaboraçâo de um modelo de sociedade mais justa, a pràtica social ñas comunidades indígenas parecía ir ao encontro da teoria revolucionária do ocidente. Novamente, para os intelectuais indigenistas peruanos a mescla se dava no nivel da cultura - fundindo marxismo e comunitarismo indígeno. Em contrapartida, os protagonistas da teoria da mestiçagem no Brasil enfatizavam no mesmo periodo muito mais os aspectos étnicos. Enquanto na primeira metade do século XX este indigenismo politizado admitía a mescla entre tradiçôes indígenas e ocidentais somente no nivel teórico - no mito da sociedade indígena e da sociedade comunista sem classes -, numa fase posterior do indigenismo, a partir dos anos 60, a antropologia peruana começou a valorizar os cholos, aqueles grupos mestiços localizados geograficamente entre os brancos ñas cidades e as comunidades indígenas na serra. Os cholos eram vistos antes com desprezo pelos indigenistas. Eram indios que tinham abdicado da sua identidade indígena e tentavam a integraçâo na sociedade branca através da assimilaçâo das manifestaçôes culturáis. Agora, intelectuais como José Maria Arguedas ou antropólogos como Anibal Quijano fizeram do cholo o protagonista de uma possível integraçâo nacional e do desenvolvimento de uma cultura peruana mais homogénea. O cholo, que falava quechua e espanhol, que conhecia o universo indígena e os valores da sociedade branca, que criou novas manifestaçôes culturáis na base deste seu enraizamento ñas duas culturas, seria o agente da aproximaçâo entre branco e indio, o protagonista de uma futura identidade peruana, que abrangia os dois lados: o hispánico e o indígena. Angel Rama comenta sobre esta fase: "Este conceito de indigenismo visivelmente busca

24

25

Manuel Gonçalves Prada: "Nuestros indios", in: Horas de lucha, Lima, 2 1924 (primeira publicaçio do ensaio em 1888). José Carlos Mariátegui na introduçào ao livro de outro indigenista, Luis E. Valcárcel, com o título Tempestad en los Andes. Lima: Editorial Universo, 1972. Traduçâo minha.

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urna coincidencia com o conceito de peruanidade".26 Durante o governo militar a partir de 1968, a idéia do indigenismo é usada simbolicamente no Peru. As reformas socioeconómicas no Plano Inca, como a reforma agraria e a criaçâo de cooperativas agrícolas sao apresentadas como um modelo pròprio entre o capitalismo e o comunismo com raizes na identidade mestiça. O conceito da peruanidad, que aparece neste contexto, representa esta idéia de urna nova cultura peruana, baseada na mestiçagem entre elementos das culturas européia e indígena.

5. A caminho de um pluralismo cultural? Desde o processo de transiçâo de regimes autoritarios para a democracia em quase toda a América Latina, a partir dos anos 80, assistimos a mudanças em relaçâo à auto-imagem de muitas sociedades latino-americanas. O processo da abertura política teve um triplo efeito sobre esta questâo: primeiro, vários grupos sociais, que agora tiveram mais liberdade de atuaçâo, descobriram a etnicidade e as tradiçôes culturáis como formas de aumentar a coesâo e identificaçâo interna do grupo. Para movimentos negros ou para as novas organizaçôes indígenas, a defesa dos seus interesses no contexto da democratizaçâo e a elaboraçâo de novas constituiçôes estavam intimamente ligadas à questâo da afirmaçâo e valorizaçâo de sua peculiaridade etnica ou cultural dentro da sociedade nacional. Vâo nesta direçâo também os rumores sobre um movimento separatista no sul do Brasil, que nâo teve muito sucesso, mas que mostrou que nestas regiôes de imigraçâo maciça de europeus está se construindo urna identidade regional que nâo quer ser confundida com a cultura nacional. O segundo efeito complementar foi que, ñas situaçôes de transiçâo e de democratizaçâo, a política oficial sucessivamente deixou de tratar a questâo da identidade cultural como assunto de Estado. Até entâo a ideologia da identidade nacional tinha preservado a idéia da homogeneidade, que exercia uma funçâo apaziguadora sobre os conflitos étnicos e sociais. A nova concepçâo pós-autoritária da política admitía tacitamente a existencia de uma variedade de grupos étnicos e de possiveis conflitos ou desigualdades em funçâo da diversidade étnica cultural. Finalmente, com o surgimento de uma industria cultural em alguns países da América Latina, surgiu um novo fator poderoso, que atua na difusâo seletiva de elementos culturáis. O mercado de bens culturáis no Brasil (ràdio, televisâo etc.) lança subitamente elementos de músicas regionais em nivel nacional com efeitos maciços sobre a definiçâo da identidade nacional e grupal. Esta busca pela criaçâo de identidades regionais ou grupais próprias e diferentes está presente em toda a América Latina hoje em dia; e, neste sentido, podemos dizer que o modelo da mestiçagem realmente está, se nâo fracassado, pelo menos superado. Os inte-

26

Angel Rama, na introduçâo para a coletânea de ensaios de José Maria Arguedas por ele editada: Formación de una cultura nacional indoamericana. México: Siglo XXI, 1975, p. XVI.

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lectuais e o Estado deixaram de ser os agentes mais interessados na construçâo e difusäo daquilo que se entende como identidade nacional. N o lugar deles surgiram urna variedade grande de agrupamentos regionais, étnicos e sociais que agora definem o que é cultura negra, cultura sertaneja, cultura indígena, cultura nordestina. Este novo pluralismo, de certa maneira um purismo cultural, que coloca a ênfase ñas diferenças e nâo mais nos processos transculturais, nem sempre tem as mesmas implicaçôes políticas. Enquanto o Brasil tem boas chances de passar por esta fase da redefiniçâo da identidade cultural sem crises políticas profundas, o caso do Peru é mais preocupante, urna vez que a exclusâo social facilita a mobilizaçâo de etnias contra o sistema político.

5.1. Integraçâo relativamente bem-sucedida no Brasil Em todas as sociedades latino-americanas, um fator importante que possibilità ou dificulta os processos de aculturaçâo, interpenetraçâo ou transculturaçâo é a modernizaçào socioeconómica pela quai passam estas sociedades no decorrer do século XX. A urbanizaçâo, a industrializaçâo e a ocupaçâo de todo o territorio com urna infra-estrutura viària possibilitam urna mobilidade geográfica e social que em última instancia também pode afetar a autoimagem que um país tem de si mesmo. Estes processos ocorreram de forma bem diferente nos dois países aqui analisados. No caso brasileiro, observamos urna transformaçâo rápida da estrutura socioeconómica interna no decorrer de meio século, entre 1930 e 1980. Nos anos 30, a sociedade brasileira é caracterizada pelo dualismo entre um grande setor tradicional-arcaico, que se opunha à modernizaçào do país, e um setor urbano-industrial, que por sua vez apresentava urna mobilidade social maior e que, de urna ou de outra forma, tentava impor ao país urna politica de industrializaçâo e modernizaçào. Nos anos 40, dois de très brasileiros viviam no campo e nào estavam integrados na sociedade nacional, nem através da participaçâo na economia formal, nem em nivel simbólico através da informaçào, e só precariamente em nivel político. Mudanças deste quadro se iniciavam com grande vigor a partir dos anos 50 e levavam o país a urna vigorosa urbanizaçâo, industrializaçâo e integraçâo regional. Como resultado, com poucas exceçôes, nâo existe hoje em dia nenhum grupo da populaçâo brasileira que nâo esteja acoplado à sociedade nacional através da economia, da política ou dos meios de comunicaçâo. Esta modernizaçào também afeta as relaçôes étnicas e culturáis no Brasil em dois sentidos. Primeiro, porque a industrializaçâo e urbanizaçâo foram acompanhadas por urna grande mobilidade social e principalmente regional. O fluxo migratorio do norte para o sul e do interior para as cidades dissolveu possiveis clivagens regionais ou étnicas. Se no inicio do século já era difícil marcar fronteiras claras entre vários grupos étnicos no Brasil, hoje em dia seria simplesmente impossível qualquer tentativa neste sentido. A identificaçâo com as influencias negras ou brancas ou indígenas, para o brasileiro de hoje em dia, que tem entre os seus avós e bisavós, na maioria dos casos, representantes de todas estas culturas, se

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torna urna decisäo cada vez mais arbitrària e de livre escolha. Para os grupos que querem estabelecer urna identidade cultural a partir da lògica da diferença esta situaçâo nâo é favorável. Como exemplo, podemos citar a dificuldade do movimento negro de demarcar com relativa clareza a abrangência do grupo negro no Brasil, ora incluindo todos os mestiços afro-brasileiros, ora limitando-se ao grupo que se identifica como negro. Se no ámbito da atividade cultural este fato nâo constituí um obstáculo, no ámbito da atividade política a definiçâo da clientela é essencial para fazer valer os seus interesses. O segundo efeito da modernizaçâo para a questâo da identidade nacional se refere à integraçâo dos varios grupos na sociedade nacional. Certamente, as diferenças sociais no Brasil de hoje ainda têm fortes conotaçôes étnico-culturais. Os indios, os negros e os nordestinos sao mais pobres do que brancos e descendentes de imigrantes europeus ou asiáticos. Porém, mesmo que esta integraçao atualmente seja desigual, os representantes dos negros, nordestinos ou sulistas parecem acreditar mais na promessa da futura igualdade dentro do Estado Nacional do que ñas esperanças que o movimento negro ou os separatistas possam oferecer. Se todas as tentativas de politizar movimentos étnicos até hoje em dia fracassaram, isto se deve ao fato de que a modernizaçâo política e económica no Brasil, com todas as suas falhas e lacunas - na educaçâo, na distribuiçâo de renda, na justiça desigual -, teve um relativo sucesso na inclusâo das pessoas das diferentes etnias e culturas. Os traços de urna revalorizaçâo da cultura pròpria, da origem, da diferença se limitam ao campo cultural. N o nivel político este novo pluralismo cultural no Brasil de hoje nao tem praticamente nenhum significado. Ñas ciencias sociais brasileiras, esta mudança se manifesta nos novos estudos sobre a imigraçâo, que têm como pano de fundo um novo paradigma em relaçâo à conceituaçâo da identidade nacional. Giralda Seyferth ressalta como novo teor destas análises a noçâo do pluralismo cultural: N a realidade a sociedade brasileira, em funçào da sua diversidade étnica, desenvolveu o que Eisenstadt chamou de "estrutura pluralista". [...] Este pluralismo étnico, ao quai podem ser acrescentados outros grupos, näoimigrantes, comumente referidos como "minorías raciais" (negros e indios), remete à coexistencia no Brasil de tradiçôes culturáis diversas [...]. E portanto difícil de pensar numa "cultura brasileira", a nao ser num plano muito gérai, ou como um conjunto heterogéneo marcado por influencias étnicas e regionais bastante fortes. 27

Resta saber como vai ser preenchido futuramente o vàcuo da questâo da identidade nacional. Para José Guilherme Merquior, a busca pela identidade como tema da filosofia política encobriu as deficiencias de legitimidade dos regimes políticos nestes países. N ó s vivemos o déficit de legitimidade na forma de urna dúvida sobre a nossa pròpria identidade. Dai a importancia central que o tema da raça teve por tanto tempo nos nossos discursos de autointerpretaçâo nacional e continental. [...] Nossas sociedades crioulas desde a Independencia

27

Giralda Seyferth: Imigraçâo e cultura no Brasil. Brasilia: Editora UnB, 1990, p. 79. Sobre a noçâo do pluralismo cultural como perspectiva para a pesquisa da imigraçâo, veja também Boris Fausto: Historiografía da imigraçâo para Sao Paulo. Sao Paulo: Sumaré, 1991, pp. 36ss.

Mestiçagem ou pluralismo ètnico?

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nào sabiam realizar a dinámica da integraçào para o plano social. [...] Insisto: porque só tínhamos urna legitimidade precaria [...] dramatizamos os dilemas da nossa identidade.28

Urna vez que as identidades étnicas deixaram de ter status oficioso, poder-se-ia pensar na possibilidade de urna identificaçâo em torno de valores cívicos, como justiça, igualdade, liberdade. Os analistas ainda sâo muito críticos acerca desta possibilidade.29 O Estado brasileiro ainda terá que mostrar muitos resultados antes de poder reconquistar a confiança da populaçâo como a instancia adequada para o encaminhamento de assuntos comunitarios. Numa perspectiva otimista, a questäo da identidade nacional se encontra na passagem entre o modelo étnico-cultural da cultura brasileira do passado e urna futura versáo cívica da

cultura republicana.

5.2. Afirmaçâo de identidades grupais e desintegraçào política no Peru No Peru o processo de modernizaçâo no decorrer do século X X se iniciou tardío, evoluiu com menos vigor e afetou somente urna parte da sociedade nacional. Até os anos 60 a economia peruana cresceu dentro do modelo agro-exportador. O país passou por urna fase de crescimento e de urbanizaçào sem industrializaçâo. Os indios, que migraram da sierra para as cidades na costa, nao encontram oportunidades de ascender socialmente. O processo da miscigenaçâo étnica e cultural entre a elite branca e os indios nos bairros periféricos era mínimo. A maioria dos grupos indígenas, que permaneceram ñas regiôes da sierra, passou por um processo de empobrecimento, dominante em todas estas regiôes durante o século X X . Eles eram politicamente excluidos, por nào terem o direito de votar até 1979. Foi apenas mais um capítulo desta nâo-integraçâo dos indios peruanos na sociedade quando o movimento revolucionario do Sendero Luminoso, de um lado, e o Exército, do outro, fizeram da sierra peruana nos anos 80 do século X X o campo de batalha de urna guerra suja. Os dois lados massacraram comunidades indígenas em represalia contra urna suposta colaboraçâo com o inimigo. No decorrer do processo da redemocratizaçâo no Peru, o Estado deixou de insistir na fórmula integrativa da peruanidad. Na nova Constituiçâo de 1993 ele admite oficialmente a pluralidade de culturas e etnias dentro do territorio nacional (artigo 2) e estabelece como norma o respeito à identidade cultural das comunidades indígenas no campo (artigo 88). Esta nova orientaçâo oficial tem repercussôes no campo da política lingüística e no direito. Ao lado do espanhol como lingua oficial, ñas regiôes com maiorias indígenas quechua ou aimara, a lingua indígena é admitida como segunda lingua especial. A Constituiçâo estabe-

28

w

José Guilherme Merquior: "El otro occidente (un poco de la filosofía de la historia desde Latinoamérica)", in: Cuadernos Americanos, vol. 3, Nueva Época, n°13,1989, pp. 9-23, aqui p. 21. Para esta discussâo veja Michel Debrun: "Identidade nacional brasileira", in: Estudos Avançados, vol.4, n ö 8, 1990, pp. 39-49; Carlos Guilherme Motta: "Cultura brasileira ou cultura republicana?", in: Estudos Avançados, vol.4, n a 8, 1990, pp. 19-38.

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lece igualmente que as comunidades indígenas terâo urna jurisdiçâo especial, baseada no direito tradicional das comunidades (artigo 149). Neste sentido, o Estado abre espaço para a manifestaçâo, afirmaçâo e participaçâo das varias etnias dentro do Estado Nacional. Trata-se da metade da populaçào peruana, que fala urna lingua pròpria, que tem urna forma de socializaçâo pròpria, que vive regionalmente isolada e que foi politicamente excluida. Eia está começando a organizar-se, manifestando o desejo de valorizar o passado cultural pròprio e reivindicando formas de autogestâo. Frente à situaçào de desigualdade, que continua inalterada até hoje em dia, todo tipo de conscientizaçâo cultural, de valorizaçào da pròpria historia e de afirmaçâo de urna identidade diferente por parte das comunidades indígenas tende a ter um caráter político. Em 1980 foi organizado o Primeiro Congresso Indígena Sul-Americano pelo Movimento Ìndio Peruano (MIP). Os movimentos indígenas ainda säo fracos e pouco coerentes, mas as reivindicaçôes deles nao se limitam ao campo. A bandeira principal dos varios grupos indígenas é a autogestâo. Visto o baixo grau de integraçâo socioeconómica e política do Estado peruano e a concentraçào regional dos grupos em questâo, isto pode produzir dinámicas que afetam a coesâo do Estado Nacional peruano.30

6. Recapitulando Por tratarmos de processos recentes, seria ousado demais fazer um prognóstico sobre o desenvolvimento dos conflitos étnicos e culturáis hoje para o caso do Brasil e do Peru. A finalidade deste ensaio nâo é propriamente urna análise conjuntural dos conflitos étnicoculturais no Brasil e no Peru na atualidade. Trata-se de uma tentativa de elaborar um modelo das sucessivas etapas, pelas quais passaram varias sociedades latino-americanas na construçâo de uma identidade nacional. Estas etapas seriam a idéia da "missâo civilizatória", herdada da época colonial e perpetuada pelas elites locáis no século XIX, a "antropologia racista" e o "hispanismo", que tiveram um papel fundamental na virada do século, a valorizaçâo de elementos autóctones na idéia da "mestiçagem" e no "indigenismo" e as suas relaçôes com o Estado Nacional durante o século X X e o novo pluralismo desde os anos 80, seja como subcultura sem conotaçôes políticas, seja como movimento político de contestaçâo. A esta hipótese descritiva acrescentei algumas consideraçôes sobre a produçào e difusâo daquilo que é considerado a identidade nacional. Podemos separar grosseiramente duas etapas: numa primeira, a definiçâo desta questâo passa a ser assunto de Estado e é resolvido com colaboraçào de representantes da elite intelectual e científica do país. Numa segunda etapa, o Estado perde o monopolio sobre a definiçâo desta questâo que tende a ser respondida por uma série de grupos étnicos e sociais. Igualmente, os meios de comunicaçâo modernos têm um peso grande na difusâo de manifestaçôes culturáis.

30

Aníbal Quijano: "Notas sobre a questâo da identidade e naçâo no Peru", in: Estudos Avançados, ano 6, η® 16,1992, pp. 73-80.

Mestiçagem ou pluralismo ètnico?

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A capacidade do Estado de digerir esta imagem pluralista da composiçâo etnica e cultural depende largamente do seu éxito em apresentar novas formas de identidade para a coletividade politica que nâo passem pela questâo da identidade étnico-cultural mas pela construçâo de urna sociedade justa com participaçâo de todos os setores sociais.

José Rtbamar Bessa Freire A organizaçâo da força de trabalho indigena na Pan-Amazonia: os casos do Brasil e do Peru

Introduçâo A Pan-Amazônia, definida como área banhada pelos ríos da bacía amazónica, representa 44,5% da América do Sul, com um territorio de 7.275.300 km 2 , densamente povoado, no passado, por povos que falavam mais de 1.000 línguas diferentes, pertencentes a grandes familias lingüísticas como o Tupi, o Aruak, o Karib, o Macro-Jê, o Tukano, o Pano e algumas centenas de línguas isoladas ou nâo classificadas. "O rio Amazonas é o rio Babel" escreveria o padre Vieira, no século XVII. 1 Apesar de consideráveis diferenças históricas, culturáis e especialmente lingüísticas, os povos da Amazonia, agricultores e ceramistas, desenvolveram um estilo de vida comum baseado numa agricultura intensiva de raízes, sobretudo de diferentes variedades de mandioca, complementada pela plantaçào de milho, algodäo, tabaco, cabaça e certas árvores frutíferas - que se convencionou denominar de "cultura da floresta tropical".2 Este estilo de vida, fruto de experiencia milenar dos povos da floresta, sofreu um grande impacto com a chegada do europeu. O sistema colonial implantado desestruturou o mundo amazónico, destruiu grande parte das culturas da floresta tropical e reordenou a ocupaçâo do espaço em outras bases, desprezando o saber até entäo produzido e acumulado pelos indios. A nossa hipótese é a de que, numa perspectiva mercantilista, os indios constituíam a principal riqueza da regiâo, na medida em que eram a única força capaz de extrair da floresta os produtos de interesse para o mercado europeu. Se esta hipótese é correta, entäo a chave para a compreensào das relaçôes do europeu com o mundo amazónico reside na análise do sistema de trabalho implantado a partir da Conquista. Dai o nosso interesse em estudar a organizaçâo da força de trabalho indígena na Pan-Amazônia no período colonial.3

1

Para o quadro de línguas da Amazonia, ver: Cestmir Loukotka: Classification of South American Indian Languages. Los Angeles: University of California, 1968; Ernest C. Migliazza: Linguistic Prehistory and the Refuge Model in Amazonia. New York: T. Prance 1982; Aryon Dall'Igna Rodrigues: Grupos lingüísticos da Amazonia. Atado simposio sobre a biota amazónica. Vol. Π, Rio de Janeiro, 1967.

2

Sobre cultura da floresta tropical, ver: Donald Lathrap: The Upper Amazon. Southampton: The Camelot Press, 1970; Betty Meggers: Amazonia: a ilusäo de um paraíso. Rio de Janeiro: Ed. Civilizaçâo Brasileira, 1967; Anna Curtenius Roosevelt: Parmarta: Prehistoric Maize and Manioc Subsistence along the Amazon and Orinoco. New York: Academic Press Inc., 1990.

3

A organizaçâo da força de trabalho indígena na Amazonia brasileira foi contemplada em José R. Bessa Freire (ed.): A Amazonia colonial: 1616-1798. Manaus: Editora Metro Cubico, 1994.

A organizaçâo da força de trabalho indígena na Pan-Amazonia

141

Do ponto de vista da análise histórica, a Pan-Amazônia é um excelente laboratorio para comparar os modelos de colonizaçâo européia na América, seus mecanismos de açâo e seus resultados, porque é a única regiao de floresta tropical que foi colonizada pelos portugueses, dando origem ao que é hoje o Brasil; pelos espanhóis, ñas áreas atualmente ocupadas pelos Estados nacionais do Peru, Bolivia, Equador, Colombia e Venezuela; pelos holandeses (Suriname), ingleses (República da Guiana) e franceses (Guiana Francesa). Com essa perspectiva, serlo enfocados aqui os casos dos dois maiores países amazónicos atuais: o Brasil, com 4.871.500 km2 dentro da regiao, constituindo sozinho 66,9% da PanAmazônia, e o Peru, com 764.200 km2 de territòrio amazónico. Será apresentada uma descriçâo sumária dos sistemas de organizaçâo da força de trabalho indígena, montados por portugueses e espanhóis nessas duas áreas, com destaque para os atores do processo: os indios, os colonos, os missionários e as respectivas Coroas ibéricas. Finalmente, algumas comparaçôes seräo estabelecidas entre o sistema luso com as aldeias de repartiçâo e a escravidâo indígena e o sistema espanhol com a "encomienda" e as "reducciones". Este trabalho é uma síntese baseada em documentos manuscritos que fazem parte dos acervos do Arquivo Histórico Ultramarino e da Biblioteca e Arquivo Público de Evora, em Portugal, e do Archivo General de Indias, em Sevilha, consultados no período de 1980-83. Essas fontes iniciáis foram complementadas com documentos encontrados no Arquivo Nacional (do Brasil) e na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) em 1992-1994, durante levantamento realizado para o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da TJERJ, responsável pelo mapeamento dos arquivos sediados no Rio de Janeiro no projeto "Guia de Fontes para a Historia Indígena e do Indigenismo em Arquivos Brasileiros".4 Finalmente, as fontes secundárias foram de grande utilidade, constando ñas notas bibliográficas.

Pan-Amazônia: uma mina de indios Os primeiros documentos escritos referentes à Amazonia datam do inicio de 1500, quando os irmâos Pinzón localizaram a foz do rio Amazonas. Depois disso, a documentaçâo registra dezenas de expediçôes realizadas nos séculos XVI e XVII, em busca da localizaçâo de minas de ouro e de metáis preciosos. No entanto, na regiao amazónica, justamente onde o imaginário quinhentista e seiscentista situava o lendário El-Dorado, os conquistadores europeus - portugueses, espanhóis, franceses, holandeses e ingleses, que disputaram o controle do espaço amazónico - nao encontraram nem ouro nem prata. As expediçôes, cujo objetivo nominal era a busca do ouro nunca encontrado, traziam sempre muitos indios aprisionados, que podiam ser escravizados dentro de determinadas condiçôes. Comentando este artificio dos portugueses para burlar a legislaçâo da época, o

*

John Manuel Monteiro (ed.): Guia defontes para a historia indígena e do indigenismo em arquivos brasileiros. Acervos das Capitais. Sao Paulo: SNHII/USP; FAPESP, 1994. José R. Bessa Freire: Os indios em arquivos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, 1995.

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padre Antonio Vieira escreveu em 1656 que a busca de ouro era apenas um pretexto para ocultar o real propósito de tais expediçôes. Seu objetivo era, na realidade, capturar indios para drenar de suas veías o ouro vermelho, este sim a verdadeira mina de toda a Amazonia. 5 Esta percepçâo européia de ver no indio a principal riqueza da Amazonia, como força de trabalho em potencial que era, foi compartilhada pelos primeiros cronistas que viajaram ao longo do grande rio e ficaram impactados com a alta densidade populacional de suas margens. Este fato - confirmado por pesquisas recentes na área de arqueología e de demografia histórica - chamou a atençâo, entre outros, do padre Acuña, jesuíta espanhol que acompanhou a expediçâo de Pedro Teixeira em 1639, descendo o rio ao longo de quase todo o seu curso - de Quito, no Equador, até Belém do Para. Num relatório minucioso, ele informa ao rei da Espanha que a Amazonia era um grande celeiro de mâo-de-obra, capaz de substituir os indios que começavam a escassear ñas minas exploradas da regiäo andina. Indica ainda a relativa facilidade de transporte através do rio Amazonas. 6 Nao conhecemos qualquer registro de migraçôes forçadas de indios da Amazonia para os Andes. Existe, no entanto, uma documentaçâo, ainda que dispersa, dando conta de como os indios foram o principal produto de exportaçâo da Amazonia ao longo do século XVI, antes mesmo de sua ocupaçâo efetiva, quando eram capturados por espanhóis e conduzidos para trabalhar nos engenhos de açùcar das Antilhas e por portugueses, que os levavam para o nordeste do Brasil.7 Por esta razäo, o rio Amazonas aparece com a sinalizaçâo de "Río de los esclavos", em um mapa da época.8 A partir do século XVII, portugueses e espanhóis decidem explorar a força de trabalho indígena in loco, criando inicialmente fortalezas e estabelecimentos agrícolas e depois empresas para explorar as chamadas "drogas do sertäo" que existiam na floresta: o cravo, o cacau selvagem, a canela do mato, a salsaparrilha, o urucum, o anil, o óleo de copaiba e outros produtos de interesse para o mercado europeu. Em 1616, o portugués Castelo Branco ocupa a foz do rio Amazonas, construindo o Forte do Presèpio, que deu origem à atual cidade de Belém do Para. Très anos mais tarde, a mais de 4.000 km de distancia da foz, o espanhol D. Diego funda a povoaçâo de San Francisco de Borja, situada no rio Marañón, abaixo do Pongo de Manseriche. Sâo esses dois núcleos de colonizaçâo que permitiräo aos portugueses e espanhóis usarem o sistema hidrográfico para penetrarem a regiäo, na busca

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7

8

Antonio Vieira: Obras escolhidas. Ed. de A. Sergio e H. Cidade. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1951. Maxime Hubert: L'Eglise et la défense des sauvages: le Père Antoine Vieira au Brésil. Bruxelas, 1964. John Hemming: Red Gold: the Conquest of the Brazilian Indians. Cambridge: HUP, 1978. Cristovao Acuña: Novo descobrimento do grande Rio das Amazonas. Sào Paulo/Rio de Janeiro: Cía. Editora Nacional, 1941. Além de informaçôes dispersas em autores de "crónicas generales de indias" como Oviedo, Las Casas, ver também: AHU - Arquivo Histórico Ultramarino - Correspondencia da Metropole com os governadores. Isa Adonias: A cartografía da regido amazónica. 2 vols., Rio de Janeiro: INPA, 1963.

A organizaçào da força de trabalho indígena na Pan-Amazonia

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de indios que serào forçados a participar de sistemas de trabalho com características comuns e algumas diferenças.9

Os portugueses: repartiçâo e escravidâo O modelo legal de organizaçào do trabalho indígena vigente na Amazonia portuguesa, desde a fundaçâo do Forte do Presèpio, combinava a existencia de duas categorías de trabalhadores, de acordo com a forma de recrutamento: de um lado, os indios de repartiçâo, recrutados através dos descimentos; e de outro, os indios escravos, capturados em operaçôes de resgates e guerras justas. Os descimentos - expediçôes, em principio pacíficas, ainda que com escolta militar eram realizados tradicionalmente com a participaçâo de missionários, que tinham o objetivo de convencer as comunidades indígenas a desceráe suas aldeias de origem para as aldeias de repartiçâo situadas ñas proximidades dos núcleos coloniais. As aldeias de repartiçâo, criadas pelo colonizador, eram núcleos artificiáis, onde indios de diferentes línguas e de culturas diversificadas eram estocados para serem alugados e distribuidos - "repartidos" entre os colonos, os missionários e o serviço real da Coroa Portuguesa, em troca de um "salàrio". Os indios que aceitavam ser descidos sem oferecer resistencia armada recebiam também, na documentaçâo oficial, a denominaçâo de "livres" - para distingui-los dos escravos - embora fossem obrigados a fornecer um trabalho compulsorio durante seis meses do ano, recebendo como pagamento duas varas de algodâo tecido pelas próprias indias, cujo valor nominal era de 200 réis, o que nâo era suficiente para comprar urna faca ou um anzol. Nos outros seis meses, por lei, eles deveriam trabalhar na aldeia para a pròpria subsistencia, o que raramente ocorria, porque os colonos nâo permitiam. Os resgates eram urna operaçâo de troca comercial entre os portugueses, que forneciam mercadorias européias como ferramentas, miçangas e quinquilharias, e as tribos consideradas aliadas que davam como produto de troca indios capturados durante as guerras intertribais. Mas só podiam ser legalmente "resgatados" os chamados "indios de corda", isto é, aqueles indios presos por grupos antropófagos e que estavam destinados a serem comidos ritualisticamente. A documentaçâo portuguesa da época classifica quase todos os grupos indígenas como praticantes do canibalismo, entre outras razòes, para justificar o resgate. Pela lei de 1611, os indios resgatados podiam ser escravizados durante dez anos, em retribuiçâo ao seu salvador que o livrou da morte. No entanto, em 1626, quando completam os dez primeiros anos de presença portuguesa na Amazonia e os primeiros escravos deveriam ser libertados, o Senado da Cámara modificou a legislaçâo, estabelecendo que os escravos

9

A H U de Lisboa. Pará. Caixa 1. Doc. 1618 (novembro - 27). Papéis Avulsos. Carta de Frei Antonio de Mercena. Manuscritos microfilmados, com còpia no Museu Amazónico da Universidade do Amazonas, Manaus.

144

José Ribamar Bessa Freire

ficariam nesta condiçâo durante toda a vida, com praticamente todos os atributos clássicos da escravidâo.10 A terceira forma de recrutamento era a guerra justa, uma operaçâo militar promovida por tropas de guerra organizadas pelos colonos ou pela pròpria Coroa, que invadiam os territorios indígenas, com o objetivo de capturar o maior número de indios, incluindo mulheres e crianças. Os indios assim aprisionados eram conduzidos ao mercado de escravos, onde eram vendidos. Pela lei, a guerra justa, que necessitava da aprovaçâo do governador, podia ser realizada contra indios que atacassem os portugueses ou que impedissem a difusao do Evangelho. A Coroa Portuguesa tinha um interesse particular neste rendoso negocio, porque de cada cem indios aprisionados, vinte eram de propriedade da administraçâo colonial - o mesmo imposto de "um quinto" pago pelo ouro em outras regiôes do Brasil, o que reforça a metáfora da "mina de indios". Durante todo o período colonial, aconteceram conflitos, algumas vezes armados, entre colonos e missionários na disputa pelo controle tanto das operaçôes de recrutamento - que permitiam reabastecer as aldeias e o mercado de escravos - como da repartiçâo dos indios. A Coroa Portuguesa arbitrava como podia essas contradiçôes. Quando a conquista nao estava ainda consolidada, nos primeiros setenta anos de colonizaçâo (1616-1686) - com dois breves intervalos - coube aos colonos o comando dos descimentos, resgates e guerras justas e o controle da repartiçâo, feito pelo "capitâo-dealdeia", um morador portugués nomeado por tres anos, que servia também de juiz criminal e de juiz civil. Os capitäes-de-aldeia passaram a explorar o traballio indígena em proveito pròprio, inicialmente em plantaçôes de açùcar, algodâo e tabaco e depois na extraçâo das drogas do sertâo, no corte de madeira, na construçâo de engenhos, casas e fortes, no transporte de produtos e como remeiros de canoas." Esse sistema foi extremamente predador, sem uma preocupaçâo com a reproduçâo da força de traballio indígena, a única existente na regiâo. Como os colonos portugueses näo introduziram nenhuma tecnologia nova, trataram de fazer economia na alimentaçâo dos indios e ñas condiçôes de traballio, aumentando a jornada para 14 e até 16 horas diarias. O historiador, hoje, pode encontrar alguns documentos sobre tais condiçôes, porque na disputa entre colonos e missionários, cada parte deixou relatos sobre o tratamento dispensado aos indios pela outra parte.12

10

Arquivo Nacional (Rio de Janeiro): Fundo Secretaria do Governo da Capitanía do Para. Très códices contendo correspondencia original dos governadores do Para com a Corte Portuguesa, contendo informaçoes sobre o recrutamento de indios.

11

Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro): Seçào de Manuscritos. Manuscritos Relativos ao Brasil/ Maranhào e Gráo-Pará. 1610-1855. Varios códices com documentaçâo sobre o processo de conquista e ocupaçâo da Amazonia, a política indigenista e a economia baseada na coleta de drogas do sertäo.

12

Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro): Seçao de Manuscritos. Manuscritos Relativos ao Brasil Missòes. 1533 a 1759. Contém origináis e copias de documentos sobre a açào missionària, sobretudo dos jesuítas, com informaçoes sobre a catequese e o conflito com os colonos.

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Devido ao fato de se haver concentrado toda a mäo-de-obra disponível na produçâo de géneros para exportaçâo, a abundancia de alimentos constatada pelos primeiros cronistas ñas aldeias de origem foi substituida por extrema penuria e fome, urna vez que os indios foram obrigados a abandonar a agricultura e a produçâo de mandioca, milho e outros produtos de subsistencia sem interesse comercial para o mercado europeu. As principáis vítimas deste período de fome foram os próprios indios. Diante do rápido despovoamento de toda a área da Costa do Salgado e do Baixo Amazonas, a Coroa Portuguesa retirou dos colonos o controle dos descimentos e das aldeias de repartiçâo, entregando-o aos missionários. O Regimentó das Missôes de 1686, vigente até 1755, regulamentou durante setenta anos o funcionamento das aldeias, estabelecendo que o aluguel dos indios - a repartiçâo - deveria ser feita pelo Superior das Missôes, o Governador e dois oficiáis da Cámara. Todos os indios dessas aldeias, homens e mulheres, entre treze e cinquenta anos - mais tarde ampliado para doze e setenta anos - eram obrigados a trabalhar fora da aldeia, num sistema rotativo em que a metade dos indios - depois aumentado para dois terços - estivesse sempre trabalhando fora durante o ano inteiro. Algumas leis complementares lotearam a Amazonia entre as diversas ordens religiosas, cabendo aos jesuítas a área de maior concentraçâo indígena, que correspondía à margem direita do rio Amazonas e, na margem esquerda, o territòrio compreendido entre os rios Negro e Iça. Numa regiâo onde - como escreveu um observador da época - "nâo é rico quem tem muitas terras, mas aquele que tem a maior quantidade de indios", os jesuítas se tornaram "os senhores dos indios e por conseqüencia os senhores de tudo".13 Durante a vigencia do Regimentó das Missôes (1686-1755), os dois sistemas - de repartiçâo e de escravidâo - continuaram funcionando de forma tâo predatoria quanto antes, ainda que os missionários tivessem uma preocupaçâo maior com a reproduçâo da força de trabalho. Incontáveis expediçôes subiam o rio, invadiam as aldeias e aprisionavam indios que eram conduzidos algemados para Belém e Sâo Luís, modificando as fronteiras determinadas pelo Tratado de Tordesilhas. Foi em busca de indios pelas tropas de resgate que os portugueses empurraram o marco de Tordesilhas, até o alto rio Amazonas. A pròpria política de construçâo de fortalezas de Portugal e de outras naçôes européias obedeceu à necessidade de manter o controle sobre a força de trabalho indígena dentro de um determinado territorio. Os missionários, que no período anterior - quando os colonos controlavam a repartiçâo haviam denunciado as expediçôes de resgastes e as guerras justas, agora passaram a fazer parte délas, para determinar a sua legitimidade." A situaçâo inverteu-se em relaçâo ao período anterior. Agora, eram os colonos que enviavam a Lisboa documentaçâo acusando os jesuítas de negarem-se a distribuir e alugar os indios de repartiçâo aos moradores, empregando-os todos ñas rendosas empresas missio-

13

Ver José Oscar Beozzo: Lets e regimentos das missôes. Politica indigenista no Brasil. Sao Paulo: Loyola, 1983.

14

Ver George Thomas: Política indigenista dos portugueses no Brasil: 1500-1640. Sao Paulo: Loyola, 1982.

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nárias, e solicitavam a volta ao antigo sistema de "Capitào-de-Aldeia". Efetivamente, o controle absoluto da mâo-de-obra indígena, a posiçâo estratégica das missôes e as isençôes fiscais e alfandegárias que gozavam, possibilitaram aos missionários controlar toda a regiâo, o que lhes permitiu até mesmo recusar a fornecer remeiros para as próprias canoas reais, encarregadas da demarcaçâo de fronteiras, em funçâo do Tratado de Madri (1750). As pressôes internas dos colonos, de um lado e, de outro, a ascensâo de D. José I ao trono portugués, quando ocorreram transformaçôes políticas e económicas em Portugal, alteraram o quadro das relaçôes coloniais. A Amazonia, que até entâo vinha se constituindo em área nitidamente marginal nos quadros do sistema colonial, a partir dessas reformas passa a ingressar mais efetivamente no espaço político-económico portugués e a receber intervençâo direta da metrópole.15 O Tratado de Madri reconheceu a expansào lusa e permitiu a incorporaçâo legal, por parte de Portugal, de vastos territórios indígenas, antes reivindicados pelos espanhóis, o que pressupunha o cumprimento de urna "paz colonial", com urna ampia reformulaçâo dos métodos até entâo utilizados, fazendo com que a populaçâo indígena se constituísse num elemento importante na manutençâo e expansào dos espaços coloniais. Em outras palavras, Portugal precisava da cumplicidade dos indios para garantir a expansào reconhecida no Tratado de Madri. Por isso, foram tomadas medidas significativas para a Amazonia, entre as quais, a expulsào dos jesuítas e o confisco de suas propriedades, a criaçâo de urna Companhia de Comércio monopolizadora e com proteçâo real, o estímulo à introduçâo de escravos trazidos da África e a modificaçâo, no plano legal, da política de mäo-de-obra indígena, com a aboliçâo formal da escravidào dos indios (1755) e a transformaçào, também formal, das aldeias de repartiçâo, em povoaçôes, agora rebatizadas com nomes lusos. O novo estatuto atribuido aos indios acelerava seu processo de integraçào a uma sociedade portugalizada, que ainda era minoritaria na regiâo. As novas medidas, no entanto, nao aboliram o traballio compulsorio, apenas redefiniram a forma como ele seria realizado. Em 1757, o Diretório de Indios regulamenta e disciplina o uso da força de traballio indígena, que só poderia ser fornecida aos moradores mediante portaría assinada pelo governador, e proíbe o uso da lingua materna de cada naçâo indígena e a construçâo de habitaçôes coletivas de tradiçâo milenar, obrigando o uso da lingua portuguesa ñas escolas, a utilizaçâo, por parte dos indios, de sobrenomes em portugués e a construçâo de moradias uni-familiares.16 O Diretório vigora até 1798, tendo como característica principal o seu profundo caráter etnocèntrico, destruidor das diferenças representadas pelas culturas indígenas. Ele representa a tentativa da Coroa Portuguesa de assumir o controle efetivo da regiâo, depois da

15

ABAPP - Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, Belém 1901. Tomos referentes à correspondencia dos governadores, alvarás, cartas régias e decisôes.

16

Alexandre Rodrigues Ferreira: Viagemfilosóficaao Rio Negro. Sào Paulo: Círculo do Livro, 1984 e Arthur César Ferreira Reis: A Amazonia que os portugueses revelaram. Rio de Janeiro: MEC, 1956.

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açâo privada e altamente predatoria dos colonos nos primeiros setenta anos, quando se tratava de conquistar militarmente a regiào e, num segundo momento, da hegemonía missionària nos setenta anos subseqiientes, quando se tratava de disciplinar a mäo-de-obra. Estratégia semelhante foi também desenvolvida pelos espanhóis em área da Amazonia que hoje pertence ao Peru.

Os espanhóis: "encomienda" e "reducción" O sistema vigente na Amazonia, que é hoje peruana, contemplava também dois tipos de trabalhadores: os "indios encomendados" e os "indios reducidos", os primeiros sob o controle predominante dos colonos e os segundos, dos missionários. O "indio encomendado", conquistado militarmente através de operaçôes designadas como "entrada armada", pagava tributo em especie e trabalho ao "encomendero", num sistema já empregado, no século XVI, ñas zonas povoadas dos Andes e do México pelos espanhóis, que desta forma se aproveitaram da instituiçào tributaria tradicional da "mita peruana" e do "coatequil mexicano". Esta forma clàssica era conhecida como "encomienda de repartimiento y doctrina", em que os indios encomendados deveriam ser pagos cada vez que trabalhassem fora dos dias estipulados, ao contrario da "encomienda de servicio personal", em que eram considerados criados domésticos, obrigados a trabalhar em tempo integral. As leis e ordenaçôes reais, quase nunca cumpridas, determinavam as obrigaçôes do "encomendero", que eram proteger, defender e doutrinar os indios. Na Amazonia, no entanto, onde as sociedades indígenas desconheciam o trabalho alienado e o tributo, a "encomienda" nao prosperou, havendo recebido, além da resistencia dos indios, forte oposiçâo dos missionários.17 O sistema de trabalho que acabou predominando na regiäo foi mesmo o das "reducciones" ou "pueblos de misión", controlado pela igreja, no contexto do "Pase Règio" (1538), segundo o qual todo decreto pontifico destinado às igrejas americanas devia passar primeiro pelos organismos de controle do Estado espanhol para revisá-lo e, posteriormente, aprová-lo ou devolvê-lo ao Papa. Administrada pela igreja, que se achava subordinada ao Estado, a "reducción" era um modelo evangelizatório específico, destinado a disciplinar e a reproduzir a força de trabalho indígena, difundindo a fé, e fazendo missäo proselitista a serviço da Coroa. Nào é por acaso que eia desenvolveu-se sobretudo em zonas de fronteira: Alto Peru, Paraguai, norte do México, Orinoco.18 Os jesuítas, tendo como centro de operaçôes a cidade de Quito, fundaram dezenas de "pueblos de misión" ñas bacias dos rios Ñapo e alto Amazonas, enquanto os franciscanos, partindo de Lima, atuaram ñas bacias dos rios Huallaga e Ucayali. Esses "pueblos" nao

17

18

Ramón Iribertegui: Amazonas: el hombre y el caucho. Puerto Ayacucho: Vicariato Apostólico, 1987. Jesus San Roman: Perfiles históricos de la Amazonia Peruana. Lima: Ed. Paulinas, 1975.

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constituíam mundos separados, fechados em si mesmos, mas, ao contràrio, eram células de um sistema mais ampio, com urna planificaçâo centralizada no Provincial da ordern reli19

giosa. A "reducción" mais importante que os jesuítas construíram no Peru foi a de Maynas, que serviu de exemplo para as demais. Ao contrario do modelo missionàrio portugués, a "reducción" espanhola procurou adaptar-se à situaçâo da vida amazónica, manifestando um relativo respeito as línguas, a alguns costumes e crenças indígenas, recomendando a conservaçâo, sempre que possível, de elementos da estrutura sócio-política originaria de cada tribo. Desta forma, eles reconheciam, por exemplo, a autoridade de seus "curacas" e chefes tribais, e cada ano elegiam um "alcalde mayor" indio, cujas funçôes eram zelar pela ordem e boa administraçâo do povoado e designar as pessoas para realizar os trabalhos comunitarios. Permitiam a construçâo de malocas coletivas, ainda que a meta final apontasse sempre para urna mudança gradual em direçâo de casas uni-familiares.20 No entanto, nem sempre essas recomendaçôes eram seguidas, como no "Pueblo de San Joaquin de Omaguas", que ao reunir indios de diferentes línguas como os Omagua, Yurimaguas, Migueanos, Amaonos, Mayorunas, Cocaca e Cocamilla - seguindo o exemplo portugués - acabavam inviabilizando o principio do respeito às línguas nativas. Neste caso, houve urna preocupaçâo em ensinar aos indios da Amazonia o quéchua, e depois o castelhano, com o objetivo de permitir a comunicaçâo entre eles e com o mundo andino. Também o reconhecimento da autoridade tribal era relativo. Em toda essa estrutura, dominava sempre a figura do missionàrio, cuja autoridade era última e definitiva. Era eie quem planejava e dirigía a vida economica e social do "pueblo de misión", desde a escolha do locai onde ele ia ser construido, passando pela estrutura das casas, a organizaçâo do traballio e da produçào. O governo civil e religioso das "reducciones" era sempre exercido pelo missionàrio, com urna organizaçâo mais ou menos rígida, que impunha um regime totalmente diferente ao dos povos indígenas: o traballio compulsorio em jornadas prolongadas, a especializaçâo excessiva, a anulaçâo da força religiosa do chamán e a ridicularizaçâo de sua religiosidade. Embora o "indio reducido" fosse sinónimo de indio livre em relaçâo ao "indio encomendado", sempre houve manifestaçôes claras e conscientes dos indígenas de que a "reducción" era um cativeiro dissimulado.21 Este fato nâo impediu, contudo, que indios da área controlada pelos portugueses fugissem das tropas lusas de resgate e guerras justas que vinham escravizá-los e procurassem refugio do lado espanhol, nos "pueblos de misión", o que ocorreu em diferentes momentos

" 20 21

Francisco de Figueroa et alii: Informes dejesuítas en el A mazonas. Iquitos: Monumenta Amazónica, 1986. P. Manuel J. Uñarte: Diario de un misionero de Maynas. Iquitos: Monumenta Amazónica, 1986. Pablo Maroni: Noticias autenticas delfamoso rioMarañon (1738). Iquitos: Monumenta Amazónica, 1988.

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históricos, sobretudo a partir de 1641, logo após a separaçâo de Portugal da Coroa da Espanha. A documentaçâo é bastante rica a esse respeito.22 O modelo das "reducciones" começa a desmoronar-se quando o governo de Madri expulsa os jesuítas da Amazonia (1769), enviando clérigos de Quito para substituí-los. Entào, a organizaçào político-militar espanhola tratou de fazer efetiva a sua presença em forma gradual: primeiro foram os tenentes e vice-tenentes e, posteriormente, os governadores nomeados pela audiencia de Quito. Esta estrutura político-militar embrionaria se sobrepôs ao que sobrou das formas de autoridade nativa e criou freqüentemente tensôes e, às vezes, graves conflitos, com fugas sistemáticas dos indios, a ponto de despovoarem completamente muitas reduçôes. Do aqui exposto, pode-se concluir que apesar das diferenças, particularidades e contradiçôes do mundo ibérico, a lógica da economia mercantilista acabou impondo em relaçào à força de trabalho indígena da Amazonia urna política com características similares e equivalentes. Ñas duas áreas, com ritmos diferentes, a evangelizaçào e catequese, a política económica, a organizaçào da produçào, as formas de ocupaçào do espaço e a pròpria geo-politica estiveram subordinadas às políticas relativas à força de trabalho indígena. Tanto do lado portugués, como do espanhol, as respectivas Coroas só vào exercer efetivamente o controle da regiào depois de um periodo em que os colonos atuam no plano militar e os missionários, no religioso. Apesar da relativa autonomia gozada num curto espaço de tempo pelos indios do lado espanhol, os sistemas de trabalho implantados em um e outro lugar nào tiveram urna preocupaçào com a reproduçào da força de trabalho e representaram a destruiçào da agricultura indígena, das culturas de floresta tropical e um despovoamento rápido e brutal da regiào. A resistencia indígena, se estudada dentro desta perspectiva, talvez possa reforçar o quadro aqui apresentado.

22

Parte dessa documentaçâo está em Juan de Velasco: Historia del reino de Quito y delà America Meridional. Quito, 1841-1844. Também pode ser encontrada na correspondencia dos governadores publicada pelos Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará 1901.

Martin Lienhard

"Imaginarios" escravos no Brasil e no Caribe

Introduçâo: a escravidäo na perspectiva dos escravos A questâo colocada neste coloquio, muito abrangente, é a do "Brasil no contexto latinoamericano". Apesar das resistencias ou reticencias que se manifestam no Brasil quanto à sua inclusâo na entidade chamada oficialmente de "América Latina e Caribe", sâo numerosas e evidentes as convergencias - históricas, económicas, sociais, políticas, culturáis - que existem entre o grande país luso-americano e os demais países da área. Um dos aspectos centrais da historia do Brasil, a vigencia multissecular do sistema económico-social da escravatura, é também um aspecto central da historia de varios outros países ou áreas latinoamericanas. O papel decisivo da escravatura é o elemento que permite, em particular, relacionar a historia do Brasil com a do Caribe insular e continental. Na verdade, a historia de todas as áreas escravistas na América Latina aparece, apesar das importantes particularidades locáis, como um processo único. Isso é particularmente evidente quando adotamos - como tentaremos fazê-lo a seguir - a perspectiva de suas vítimas, escravos originários da África ou descendentes de africanos. Privilegiaremos neste trabalho a perspectiva dos escravos provenientes da área "banto" ou vinculados, por diversos motivos, as culturas dessa área. Esta opçâo permite nao só ver um importante aspecto da historia do "Brasil no contexto latino-americano" como também o surgimento de um contexto mais ampio, intercontinental, que abrange, além das áreas escravistas da América, várias zonas da Africa. Tanto no Brasil quanto no Caribe, as sociedades banto forneceram, durante séculos, a maioria dos contingentes africanos que foram embarcados para a América. "Angola", em particular, foi nos séculos XVII e XVIII uma "provincia" do Brasil, destinada a fornecer a mâo-de-obra escrava necessària as plantaçôes americanas. E evidente, portanto, que a "consciência coletiva" banto, que no momento nao desejo definir, repercutiu nao só nos grupos que se referiam - em termos culturáis e religiosos - às sociedades da Africa central e meridional, como também nos escravos procedentes das outras áreas africanas - e em ampios setores populares brasileiros e caribenhos. A memoria coletiva banto - múltipla e suscetível de adaptaçôes de todo tipo - se manifesta, a meu modo de ver, em alguns aspectos da resistencia escrava no Brasil e no Caribe, especialmente na constituiçâo de quilombos (Brasil), palenques (Cuba, Colombia), cumbes (Venezuela) e outros lugares de refúgio. Para dizê-lo de outra maneira, a hipótese da existencia de uma "consciência escrava" relativamente comum contribuì a explicar as numerosas convergencias que existem, apesar da variedade das condiçôes locáis e das historias respectivas, entre um movimento de fuga e outro.

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Interessa-me discutir e comparar neste sentido dois projetos escravos1 - um deles frustrado desde o inicio - de resistencia coletiva: a insurreiçào de Manoel Congo (Brasil, medio Paraíba, 1838) e uma tentativa de fuga para o Haiti de um grupo de escravos porto-riquenhos (Bayamón, 1826). As fugas coletivas sao as únicas suscetíveis de manifestar uma "consciência coletiva", enquanto as individuáis obedecem a motivaçôes igualmente individuáis, embora corriqueiras, como o excesso de tortura física ou moral; é verdade que os fujôes individuáis acabavam muitas vezes se integrando em um projeto coletivo. As fugas maciças tendiam a desembocar na formaçâo de redutos mais ou menos estáveis e militarizados de escravos fúgidos, que ofereciam amiúde proteçâo a outras categorías de fugitivos: indios, marginais rurais ou urbanos, pessoas ameaçadas pela justiça (Acosta Saignes 1984:263-308). N o que diz respeito aos dominios lusitanos, as primeiras fugas coletivas de escravos devem ter-se produzido já na África, antes da (possível) transferencia dos cativos da primeira hora para a América. Em Angola, regra gérai, eles procuravam alcançar os senhorios dos sobas (senhores locáis) ainda independentes ou, nos anos do governo de Fernäo de Sousa (1624-1630), os dominios da famosa rainha Ginga (Nzinga-a-Mbandi). Alguns movimentos sugerem, porém, a emergencia de uma consciência nova, propriamente "escrava". Assim, os escravos de Luiz Mendes de Vasconcellos, antigo governador de Angola, se organizaram enquanto exército com uma estrategia aparentemente autónoma. C o m o escrevia Sousa (1985:286), sucessor de Mendes, eles "meteram-se no mato com ánimo de se defenderem, receosos das maldades que tinham cometido e de comerem carne humana". U m aspecto particularmente interessante deste movimento é a composiçâo do exército dos escravos fúgidos. O governador aponta que se tinha a "certeza que com os negros forros que andavam agregados a eles fariam número de dous mil arcos" (ibid.). O exército escravo, logo, nâo se compunha só de cativos fúgidos como também de africanos "livres". Tratava-se, ao que parece, de algo mais que de uma simples fuga: de um movimento de dissidência armada, nâo vinculado à "resistencia" - sempre relativa e bastante oportunista - dos sobas locáis. Este movimento nos interessa aquí pela sua semelhança com os redutos escravos em movimento que apareceram na América. O nome que se deu no Brasil aos refúgios de escravos fúgidos - quilombo - é bem significativo. Parece que por volta de 1500, em Angola, "kilombo" se referia a uma "associaçâo de iniciaçâo militar" que tinha surgido no ámbito do estado Kulembe (Vansina 1985:621). Na sua extensa carta do 13 de dezembro de 1655 ao governador Luis Martins de Sousa Chichorro (Cadornega 1972:11, apéndice, 500-503), a rainha Nzinga aporta uma série de precisôes interessantes quanto à semàntica dessa palavra em Angola. A rainha exprime seu cansaço de "andar pelos matos" ou de "andar feito jaga": formulas que aparecem como praticamente sinónimas. Sem entrar aqui no debate acerca da identidade étnica dos guerreiros jaga, convém assinalar que eles se manifestavam, nos séculos XVI-XVII, sob a forma de varios exércitos de conquista que ameaçavam, entre outros, os reinos do Kongo e do Ndongo. Na fala de Nzinga, a expressào

Uma versäo algo mais ampia do assunto que segue aparece no meu livro O mareo mato - historias da escravidâo (Congo-Angola, Caribe, Brasil). Salvador da Bahia: UFBA-CEAO, 1998.

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"andar feito jaga" remete, por um lado, para sua aliança com certos jaga como também para o fato de eia praticar o "estilo de quilombo" (ibid), tipicamente jaga. Sempre ñas palavras da rainha, esse estilo consistía em "andar em campo". Além de "outras cerimônias", ele implicava "nâo deixar parir e criar as mulheres seus filhos" (ibid). A guerra nao permite a reproduçâo normal da sociedade. Como os quilombos dos próprios jagas, o de Nzinga "feito jaga" se reproduz graças à incorporaçâo de jovens guerreiros capturados ñas guerras com seus adversarios. Na linguagem de Nzinga, quilombo equivale, pois, à forma que adota seu estado em tempo de guerra: é o senhorio mesmo que se desloca pelos matos. Esta imagem do kilombo banto sobreviveu, sem dúvida, na consciência coletiva ou no "imaginario" dos escravos americanos procedentes da área Congo-Angola. É legítimo supor que eles, para lutar contra seu cativeiro na América, se inspirassem nessa forma africana de organizaçâo político-militar, particularmente adequada a uma existencia incerta e sem base geográfica permanente. Ora, na América escravista, os quilombos, palenques ou cumbes se inscreviam em projetos muito variáveis segundo o lugar e a época, todos bem diferentes dos que animavam os jagas ou a pròpria Nzinga. Alguns quilombos (etc.) foram redutos mais ou menos autónomos de escravos de procedencia africana, que procuravam talvez reinventar um sobado africano. Outros se integravam num movimento subversivo mais ampio; por exemplo, a luta crioula pela emancipaçâo da metrópole européia. Isso aconteceu na Venezuela, nos primeiros anos do século XIX (Acosta Saignes 1985), ou em Cuba, na segunda metade do mesmo século. Nâo convém falar, pois, no quilombo em singular; o que podemos analisar sâo os diferentes quilombos em seus respectivos contextos históricos. Para estudar os dois movimentos mencionados, servirlo os depoimentos que os escravos fugitivos fizeram nos juízos que seguiram ao fracasso de seus respectivos empreendimentos. Pouco estudados até agora na sua globalidade discursiva, os depoimentos legáis de escravos deveriam permitir uma aproximaçâo às motivaçôes profundas que animavam os protagonistas de uma fuga. Agora, os textos disponíveis sao o resultado de um processo de comunicaçâo bem complexo. Seu pano de fundo é a situaçâo político-ideológica, económica e social que vigora no lugar e no momento dos interrogatorios. Na época em questâo, o nivel alcançado pelo debate sobre a aboliçâo do cativeiro é sem dúvida um dos fatores que determina as condiçôes concretas da devassa. Na encenaçâo concreta dos interrogatorios, o escravo, indefeso e marcado pela sua inferioridade política absoluta, acha-se diante de um impressionante aparato legal desdobrado pelos representantes mais ou menos arrogantes do poder local ou nacional. Em urna "cena" desta índole, o réu nâo pode nem tem interesse em dizer tudo o que sabe ou pensa. Além de nao interessar aos membros do aparelho judiciário, a enunciaçâo da verdade só agravaría sua situaçâo. Responsável em grande medida pelos silencios que se percebem nos depoimentos dos escravos presos, a encenaçâo autoritària do juízo nâo explica ainda a pobreza expressiva que afeta a sua transcriçâo. Em sua versâo originai, o testemunho é uma fala oral; o escrivâo encarregado de sua transcriçâo transformará essa fala segundo as exigencias da escrita judiciária, eliminando nâo só as marcas da oralidade e outros elementos "inúteis", mas também a sintaxe, o léxico e a poética que foram empregados pela testemunha. Na melhor

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das hipóteses, pois, o que lemos ñas devassas vem a ser o esqueleto - mais ou menos intato de um discurso já censurado pelo aparelho ou autocensurado pelo réu. Sem perder de vista que se trata de um empreendimento destinado a ficar sempre inacabado, a tarefa do leitor consistirá, logo, em recompor e "vestir" esse esqueleto a partir dos indicios que lhe fornece a pròpria devassa e o seu contexto. Quase contemporáneos, os dois movimentos de fuga que desejo comparar distinguem-se quanto à sua localizaçâo (Brasil / Porto Rico), aos objetivos de seus participantes e à atitude adotada pelo aparelho judiciário. Confiamos que a pròpria dessemelhança das duas devassas farà surgir, por contraste, suas características mais profundas.

A insurreiçâo de Manoel Congo 2 Em 1838, no mèdio Paraíba (provincia de Rio de Janeiro), cem escravos de uma fazenda cafeeira, homens e mulheres, fugiram para se incorporar a um quilombo já existente ñas redondezas (Santa Catarina). O sucesso de seu projeto teria significado o surgimento de um importante foco "subversivo" perto da zona de produçâo cafeeira. Deve-se levar em conta que nos anos 1830 a produçâo cafeeira no mèdio Paraíba se encontrava em um momento de grande expansâo. Em virtude da ausencia de mâo-de-obra local e da ideologia conservadora (escravista) dos fazendeiros, essa produçâo parecía impensável sem a contribuiçâo da mâode-obra cativa (Andrade/Neme, in Pinaud 1987:1-38). As autoridades locáis, pois, representativas do gremio dos proprietários de fazendas cafeeiras, organizaram uma expediçâo punitiva que culminou na morte de dois agentes escravistas, a fuga ou desapariçâo de um número indeterminado de escravos e a prisâo de dezesseis dos escravos sobreviventes. Todos estes presos foram submetidos a um juízo por insurreiçâo. Manoel Congo, suposto líder do quilombo, foi julgado paralelamente pela morte de um dos agentes das forças repressivas.3

A devassa deste movimento foi publicada, com uma série de estudos pioneiros, por Joâo Luiz Pinaud et al. (1987). Quero reconhecer aqui a minha divida para com os autores deste livro, especialistas em questôes de direito. Embora a minha reflexâo parta de um interesse particular: a emergencia de um "discurso escravo", nao posso deixar de compartilhar pienamente a "tècnica de leitura" proposta por Pinaud: "A pesquisa, entào, deve dirigir-se para as dimensôes silentes, o nào falado, o que, dentro do limite inquisitorio do processo arbitrario, o escravo nao pode articular ou nào foi registrado" (ibid., 95). Ainda sem conhecer o trabalho do grupo de Pinaud, apliquei, em Testimonios, cartas y manifiestos indígenas (Lienhard 1992), uma leitura análoga a uma série de depoimentos indígenas hispano-americanos. Levando até às últimas conseqüéncias o impulso de resgatar toda a realidade silenciada pelas autoridades "cafeeiras" do mèdio Paraíba, Joâo Luiz Pinaud (1987) chegou a transformá-la em ficçâo romanesca: Malvados mortos. Paty do Alferes, 1838. Tenho a impressâo de que esta ficçâo, embora mais que respeitável, tende a "fúcar" demasiado a verdade complexa e multidimensional da "historia" de Manoel Congo. Reservarei porém minhas conclusôes para uma outra ocasiäo. Todas as citaçôes e referencias remetem para a transcriçâo editada, nos apéndices de seu livro, por Pinaud et al. (1987): Transcriçâo dos autos crimes (homicidio), 22 páginas, e transcriçâo/ insurreiçâo, 64 páginas. Elas apareceräo com o nome da testemunha, o título abreviado da devassa

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Tanto o processo coletivo por "insurreiçâo" quanto aquele que se instruiu contra Manoel Congo por "homicidio" se desenvolveram em duas etapas, a primeira em Pati do Alferes e a segunda na capital regional, Vassouras. Ambos se realizaram - embora só basicamente4 - segundo as regras judiciárias em uso. Ora, em que medida os escravos exteriorizaram, perante o tribunal, os motivos que os levaram a tomar a decisâo de romper com seu cativeiro? Quai sua argumentaçâo? Manifestase, ñas suas declaraçôes, um discurso autónomo, "africano" ou simplesmente "escravo"? Estas sao as perguntas cujas respostas procuraremos encontrar na devassa existente. Em Pati do Alferes se procedeu ao exame legal dos cadáveres e a urna primeira série de interrogatorios. "Recitados" por dois lavradores, o portugués Gabriel Jozé Pereira Lima e o carioca Manoel Joaquim das Chagas, os depoimentos que servem de acusaçâo parecem pouco espontáneos. De modo coincidente, ambas as testemunhas afirmaram que a insurreiçâo foi dirigida por Manoel Congo e Mariana Crioula, "rei" e "rainha" dos quilombolas ("Insurreiçâo", 14/11/1838). Até quanto à ordern dos nomes mencionados, as respectivas listas dos escravos presos que eles apresentam ao juiz sâo absolutamente idénticas: mais um indicio da índole pré-fabricada de seus testemunhos. Particularmente categórico ñas suas declaraçôes, Pereira Lima nâo oferece provas de nenhuma espécie para apoiar sua acusaçâo, enquanto Chagas admite que só refere o que "ouviu dizer" ("Insurreiçâo", 14/11/1838). Extremamente rígida, a "dinámica" dos interrogatorios evidencia também a total premeditaçâo destes processos. Em um só dia, 14 de novembro de 1838, o juiz de paz, tenente-coronel Jozé Pinheiro de Souza Vernek, realiza um total de 28 interrogatorios! E evidente que, nestas circunstancias, qualquer busca séria da verdade era impossível. Pouco interessados no que iam depor os escravos, os fazendeiros e seu juiz, na verdade, já tinham definido o desfecho do processo. Meses depois, na capital, repetiram-se os interrogatorios perante um extenso tribunal de jurados. As sentenças pronunciadas permitem avallar a extrema tensâo existente entre o gremio dos fazendeiros e seus escravos. O suposto líder e assassino Manoel Congo foi condenado nâo só uma, mas duas vezes - por "homicidio" e por "insurreiçâo" a morrer na forca; ele foi, sem dúvida nenhuma, urna clàssica vítima expiatoria. Com uma exceçâo, os outros homens presos foram condenados à pena de açoite máxima. Nâo se tratava, pois, de um jogo. Em que lingua ou linguagem se exprimiram os escravos? A maioria dos insurretos presos - onze ou doze de um total de dezesseis ou dezessete5 - eram africanos: Congo (2), Cabinda (1), Angola (2), Benguela (2), Moçambique (1 ou 2), Rebolo (1), Mufumbe (1). Todos eles deviam ser, portanto, falantes nativos de alguma lingua banto (kikongo,

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respectiva ("Homicidio" ou "Insurreiçâo") e a data correspondente. Nos trechos citados se modernizou a ortografía. O livro de Pinaud et al. (1987) enfatiza que o respeito dessas regras foi extremamente parcial. Epifanio Muçambique, um dos supostos líderes do movimento, só depôe a 23 de novembro de 1838 ("Insurreiçâo"). Suas declaraçôes aparecem depois das dos seus parceiros, realizadas a 14 de novembro. Seu nome nào figura na lista dos réus interrogados e sentenciados em Vassouras. Morreu, conseguiu fugir? Nâo conhecemos a resposta.

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kimbundu etc.). Enquanto nos juízos coloniais contra individuos ou grupos indígenas falantes de urna lingua amerindia os tribunals costumavam recorrer aos serviços de um intérprete, aqui nâo se encontra nenhuma alusâo à presença de um tradutor. Para fazer-se entender, os presos se exprimiriam, pois, em um portugués crioulo. Já no século XVII, Alonso de Sandoval (1987:140), jesuíta radicado em Cartagena de Indias, alude a um "género de linguagem muito corrupto e arrevesado da [lingua] portuguesa, que chamam lingua de Sâo Tomé". Assinalando a semelhança deste crioulo à "lingua espanhola corrupta, como comummente a falam todos os negros", o jesuíta acrescenta que eles próprios (os jesuítas ou os espanhóis em geral) entendem e falam essa lingua em seus contatos com os escravos. Ora, se esta foi a linguagem dos réus do mèdio Paraíba, nenhum rasto déla permanece ñas atas do juízo instruido em Pati do Alferes e em Vassouras. Produto evidente do aparelho judiciário, a linguagem que o escrivâo lhes atribuí é, ao contrario, um portugués extremamente pobre em recursos expressivos. Qual o conteúdo de seus depoimentos? Esquelético, o texto da devassa nao parece fornecer mais do que os nomes dos supostos líderes, alguns pormenores da fuga e poucas alusôes à "vida no quilombo". Para descobrir nele as motivaçôes profundas dos quilombolas, precisa-se levar em conta - além do contexto geral - a cronologia dos interrogatorios e a identidade das testemunhas. Houve, como já se disse, dois processos paralelos: um contra Manoel Congo por homicidio, e um outro contra todos os presos por insurreiçào. Ambos se instruíram em Pati do Alferes e se repetiram depois perante o tribunal de jurados de Vassouras. Os homens, Manoel Congo e seus companheiros, optaram claramente por uma estratégia defensiva que consistía, como é normal, em confessar só as evidéncias e em ocultar, na medida do possível, o que poderia sugerir ou demonstrar sua culpabilidade. Confessaram, pois, que "fugiram para o mato", levando ferramentas e armas. Abriram uma picada? Eles reconhecem o fato sem oferecer pormenores significativos. Quais seus dirigentes? Nos interrogatorios que precederam a condenaçâo à morte de Manoel Congo (28/1/1839), os presos se limitam a mencionar uma série de nomes que correspondem a pessoas ausentes - mortas ou desaparecidas. Como é que eles chegaram a seguir seus líderes? Alguns deles indicam que foram "levados", enquanto outros - com maior precisäo manifestam que um dos dirigentes os "convidou" ou "seduziu". Estas últimas expressôes merecem um breve comentario. O "convite" e a "seduçâo", pràtica de um discurso da persuasâo, nâo deixa de lembrar as milongas que menciona Sousa (1985) na sua "cronica" de Angola. Foi com milongas, segundo ele, que a rainha Nzinga convenceu muitos africanos a se refugiarem em seu territòrio. Espécie de canto de sereia, a milonga consistía sem dúvida em "prometer o paraíso". Embora desconheçamos o conteúdo preciso das promessas que os dirigentes escravos do mèdio Paraíba, africanos, fizeram a seus companheiros, em sua maioria também africanos, podemos pensar que nao se diferenciava demasiado daquele que caracterizava as milongas da rainha de Matamba. É legítimo pensar, portanto, que os fugitivos procuravam o "paraíso". Se as mulheres presas adotaram, como os homens, uma estratégia defensiva, elas nao hesitaram em denunciar alguns dos escravos presentes. Mais ou menos categoricamente, elas

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afirmaram que os homens as levaram ao quilombo contra sua vontade. O "roubo" das mulheres - algumas délas esposas de homens do grupo de fujôes - significa que os escravos sabiam que iam fundar um reduto permanente, capaz de se auto-reproduzir graças à presença de um número suficiente de mulheres. Segundo algumas devassas colombianas da última década do século XVII, os palenques locáis costumavam lançar, na procura de mulheres, verdadeiras razias contra as aldeias indígenas vizinhas (Kindlimann 1995). Aparentemente pouco solidaria, a atitude das mulheres escravas do medio Paraíba sugere uma divergencia de interesses entre mulheres e homens cativos. O grupo dos homens e o das mulheres se diferenciavam, além do sexo de seus membros, em varios aspectos: origem étnica, "profissào", relaçào com a casa-grande. Entre os dezesseis presos confirmados encontramos cinco crioulos e onze africanos, todos de procedencia banto. Ora, quatro dos cinco crioulos eram mulheres. O grupo dos homens era, logo, quase totalmente africano, enquanto no das mulheres, quatro crioulas se "opunham" a só très africanas. Quanto à sua situaçào profissionai na fazenda, sete dos dez homens presos tinham um oficio que implicava uma certa especializaçâo (ferreiro, carpinteiro, caldeireiro etc.). Os outros très trabalhavam na roça. Entre as sete mulheres, quatro - très délas crioulas - estavam no serviço doméstico. As outras très - só uma délas crioula - trabalhavam na roça. A oposiçào aparentemente simples entre o grupo dos homens e o das mulheres vem a ser, portanto, uma oposiçào mais complexa entre, de um lado, um grupo de homens de origem africana e profissionalmente especializado, e do outro, um grupo de mulheres algo heterogéneo, mas dominado pelas crioulas do serviço doméstico. Em virtude de sua composiçào étnica e profissionai, o grupo dos homens se encontrava bem preparado para a aventura do quilombo. Quanto às mulheres, mais dependentes dos donos da fazenda pela falta de especializaçâo profissionai ou pelo fato de trabalharem no serviço doméstico, elas custavam mais, sem dúvida, a se familiarizaren! com a idéia de uma fuga definitiva. Perante o juiz, sua atitude parece mais cooperativa do que a dos homens. Já se mencionou que no começo dos interrogatorios as duas testemunhas principáis da acusaçào, o lusitano Pereira Lima e o carioca Chagas, introduziram a lenda da existència de um "rei" e de uma "rainha"6 entre os quilombolas ("Insurreiçào", 14/11/1838). Segundo a transcriçào de seu depoimento, uma das mulheres presas, Josefa Angola (14/11/1838, "Insurreiçào"), näo hesitou em repeti-lo, ao menos no que diz respeito a Manoel Congo; foi talvez a solidariedade feminina que lhe fez esquecer a "rainha" Mariana Crioula. Ora, a questào do "rei" dos quilombolas admite, também, uma outra interpretaçào. Na verdade, nao sabemos se Josefa Angola pronunciou realmente a palavra "rei". Sempre aludindo à funçào hierárquica de Manoel Congo, Emilia Congo (14/11/1838, "Insurreiçào") lhe atribuí o título de "pai". Na mesma série de interrogatorios, um dos homens presos, Belarmino Cabinda (14/11/1838, "Insurreiçào"), qualifica Paolo - companheiro ausente - de "pai". Nove dias depois, ainda, Epifanio Muçambique (23/11/1838, "Insurreiçào"), o réu fantas-

Muito comum, o motivo de uma liderança "real" aparece nas devassas de numerosas insurreiçôes étnicas da America Latina.

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ma, mencionará o "pai Ignacio Rebolo", também ausente. Na fala dos escravos, de fato, o título de "pai" aplicado a alguns dos escravos insurretos nao parece decorrer da "lenda branca" mencionada. E mais provável que "pai" 7 remeta para um título político-religioso bem conhecido na zona do medio Paraíba: tate (Ribas 1995-1996), que sugere a permanencia ou a recriaçâo, na sociedade escrava, do título de tata, sacerdote dos nkisi ("fetiches") na área Congo-Angola. Em Cuba, até agora, o título dos sacerdotes "congos" é tata nganga ("pai feiticeiro"). Note-se também que num juízo que se realizou em 1693 contra um grupo de quilombolas colombianos, os escravos - vários deles bantos - qualificavam o chefe de seu reduto de zahori, termo espanhol de origem árabe que significa "bruxo" ou "adivinho". Também os palenques cubanos localizados nos matos e ñas pedras da Vuelta Abajo que o capitâo-do-mato Francisco Estévez "visitou" nos anos fináis da década de 1830 sugerem um tipo de liderança e de projeto semelhantes. Ñas casas abandonadas por seus moradores, o caçador de escravos fúgidos encontrava, sistematicamente, as "bolsas de bruxaria" - os macutos dos tatas - , testemunhas mudas da persistencia ou da recriaçâo das práticas religiosas de origem africana (Villaverde 1982). Podemos entâo formular a hipótese de que as lideranças dos quilombos costumavam cumprir, além do seu papel político, urna funçâo religiosa. Interrogados pelo juiz acerca da motivaçâo de sua fuga, os escravos declararam que fugiram temendo a violenta reaçâo de seu dono ao assassinio nunca esclarecido de seu parceiro Camilo Sapateiro (Manoel Congo, "Homicidio", 25/1/1839; Antonio Magro, Benguela, "Insurreiçâo", 31/1/1839 etc.). Foi definitiva sua fuga, ou pensavam regressar? Ao longo da primeira etapa do juízo (Pati do Alferes), os réus esquivaram a resposta a esta pergunta essencial. Em Vassouras, no dia 28 de janeiro de 1839("Homicídio") - quase ao fim do processo - , o juiz dos fazendeiros pronuncia a primeira condenaçâo à morte de Manoel Congo. Très dias depois, o condenado (31/1/1839, "Insurreiçâo") se refere, pela primeira vez, ao objetivo último da fuga: "era verdade que o Epifanio [outro dirigente] chegara e contara a gente toda, e depois mando[u]-a buscar comes [alimentos] em casa e ele os levava para um lugar aonde nunca mais haviam de ver seu senhor". Perante a perspectiva de sua morte próxima, Manoel Congo parece ter se decidido a expressar sua verdade: a recusa absoluta do sistema escravista. No mesmo dia ainda, outro acusado, Miguel Crioulo (31/1/1839, "Insurreiçâo"), confirma a existencia desse tipo de discurso: "Perguntado se tinha ouvido dizer ao Epifanio e a Manoel Congo se pretendiam voltar à casa ou irem onde seu senhor nunca soubesse, respondeu que eles nunca pretendiam irem a casa de seus senhores e que eles bem sabiam para onde os conduziam". Numa tentativa de salvar os demais, o depoimento de Miguel Crioulo procura, sem agravar a situaçâo do líder já condenado à forca, atribuir toda a responsabilidade penal a Manoel Congo e ao réu fantasma Epifanio. Implicitamente, suas palavras significam, porém, que todos os fugitivos conheciam - e certamente compartilhavam - o discurso de seus dirigentes. Nesta fase do

No Brasil, "pai" pode se confundir com seu quase homónimo tupi-guarani pai, que remete nao só para o paje indígena como também - por extensio - para o sacerdote católico.

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juízo, Manoel Congo precisa também a importancia das picadas: "que ali näo ficaram porque pretendiam passar adiante, pois que levaram sempre urna porçâo de gente fazendo picadas". É nessas frases breves, que interrompem a monotonia dos interrogatorios, que parece se concentrar o pensamento verdadeiro, profundo, dos escravos fúgidos. Eles tinham a intençao de penetrar bem fundo no interior do mato. O caminho para o interior da floresta, para um lugar inacessível aos senhores de escravos e, por conseguirne, autónomo, é como que o regresso à mfinda sagrada dos bantos. Como sabemos das cantigas atuais dos "congos" cubanos,8 no espaço da mfinda ("mato") se encontram os mortos, os espíritos dos antepassados, como também as ervas silvestres de que precisa o bruxo para seus trabalhos. As "forças" que dominam a mfinda sao divindades guerreiras como o Sarabanda dos "congos" cubanos. Para os escravos africanos na América, a mfinda é um dos lugares que permite o reencontró com a "África". Em uma devassa colombiana de 1634, um escravo banto, Francisco Angola, explica sem rodeios que o caminho da floresta é o caminho da África: Juan Angola, companheiro desta testemunha, lhe disse que os brancos os tinham enganado, e mostrando-lhe o sol lhe disse que aquele sol vinha da Guiñé, "ai está o caminho, vamo-nos", e o supracitado e esta testemunha foram pelo monte [mato] e estiveram nele algum tempo, que nao sabe quanto seria, mas que passou urna lúa, e logo caminhando chegaram ao palenque de El Limón, (cit. por Kindlimann 1995:43)

Ao se afastarem de seus donos e penetrarem na floresta, os escravos fúgidos nao só deixavam de ser escravos, mas pensavam também poder voltar, transformados em guerreiros, à terra de seus antepassados africanos. Este é sem dúvida o nó - oculto, nao explicitado - do discurso dos escravos fúgidos. É verdade que, no que diz respeito aos depoimentos dos escravos do mèdio Paraíba, nao aparece nem uma palavra acerca da significaçâo religiosa, "africana", que o mato tinha sem dúvida para eles. E legítimo supor, porém, que o discurso dos homens de Manoel Congo nao se diferenciava muito do de seus companheiros colombianos ou cubanos. Ao atribuírem a liderança de seu movimento a um "pai" e ao empreenderem o caminho para o interior da floresta, eles demonstraram claramente sua inscriçâo em uma cultura político-religiosa semelhante.9

O sonho haitiano de um grupo de escravos porto-riquenhos A "historia" da fuga de Manoel Congo e seus parceiros é um caso entre muitos. A fuga de cativos foi um fenómeno endémico em toda a América escravocrata. Isso nâo quer dizer,

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Vejam-se El monte de Lydia Cabrera (1992 [1954]) e o cap. I de meu livro O mar e o mato (veja nota-de-rodapé 1). O dramaturgo cubano Gerardo Fulleda (1989) tentou imaginar em uma de suas obras - Chago de Guisa - a vida ritual de um palenque cubano da década de 1860, época de grande efervescencia do movimento escravo em Cuba.

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porém, que as motivaçôes dos escravos fugitivos ou desejosos de fugir fossem sempre as mesmas. Se o contexto geral da economia e da política escravista provoca o fenómeno da fuga, os discursos mais ou menos subterráneos que sustentam os diferentes projetos escravos dependem nao só - como é evidente - do lugar e da época em questáo, como também da situaçâo social e cultural vigorante em urna fazenda ou um engenho concretos. Neste sentido, apresentamos agora o projeto de fuga que formaram, em 1826, alguns escravos porto-riquenhos. Embora quase contemporánea do quilombo de Manoel Congo, a fuga fracassada - destes cativos caribenhos marca quanto à sua motivaçâo um forte contraste com a de seus companheiros brasileiros. Quai o desenvolvimento da "historia"? Em 1826, na provincia de Bayamón (Porto Rico), alguns barôes açucareiros chegaram a suspeitar que um grupo de escravos, composto por duas dezenas de homens de suas respectivas fazendas, estavam se preparando para fugir para Sao Domingos. Todo mundo sabe que os revolucionarios negros da parte "francesa" dessa ilha do Caribe (Haiti) tinham demonstrado, quase très décadas antes, que, unindo suas forças, os escravos e seus aliados forros podiam chegar a vencer militarmente seus adversarios "brancos". Na historia da América escravocrata, a revoluçâo haitiana foi a primeira insurreiçâo escrava bem-sucedida; nao se sabia ainda que seria a única. Os escravos desta ilha caribenha nao só conquistaram sua liberdade como também ditaram as condiçôes da primeira independencia "latino-americana". Naturalmente, o exemplo haitiano impressionou os escravos do Caribe insular e continental como também, talvez mais ainda, seus donos, que temiam a repetiçâo dessa experiencia "traumática" ñas outras ilhas e ñas costas continentals da área. Em Bayamón, a suspeita de um movimento filo-haitiano entre os escravos de seus dominios obrigou a autoridade local a esclarecer todo o assunto. O prefeito ("Alcalde Real Ordinario") nao demorou muito em proceder a um inquérito judiciário. Contrariamente à do juiz de Vassouras, sua devassa10 se realizou em condiçôes de improvisaçào quase total. A transcriçâo dos interrogatorios realizados evidencia que ele nao partiu de uma lista prèvia de réus, mas que ia convocando as testemunhas - donos de engenhos, escravos, um negro forro - à medida que seus nomes iam aparecendo nos depoimentos sucessivos. Trata-se, logo, de um "inquérito em cascata": cada informaçâo recolhida serve para abrir novas pistas à pesquisa. Neste sentido, a devassa de Bayamón se encontra nos antípodas da anterior. Tudo começa assim: por acaso, o fazendeiro Tomás Dávila y Quiñones ouve falar do projeto de fuga de alguns escravos e comenta o assunto - aparentemente sem interesse nem pánico particulares - com seu colega Harry Buist. Logo, em carta ao prefeito Pedro Vasallo (ou Vasayo), Buist formula os rumores existentes quanto a esse projeto de fuga. E aqui que começa a "cascata". O primeiro a ser chamado pelo prefeito para depor é o pròprio Buist.11

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Os documentos correspondentes se encontram em Nistal Moret 1984:213-230. A traduçlo dos trechos citados é do autor do presente trabalho. Ao que parece, Harry Buyst era anglo-saxâo. Seu depoimento foi traduzido pelo "vecino" (membro do setor hegemônico) D. Timoeto Oneill.

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A partir dos nomes mencionados em sua declaraçâo, o "juiz" convoca urna primeira série de testemunhas: fazendeiros e escravos. Seus depoimentos lhe servirlo logo para chamar outras pessoas possivelmente implicadas ou suscetíveis de fazer avançar o inquérito etc. As declaraçôes transcritas sugerem a composiçâo etnicamente heterogénea do grupo de escravos que ideou o projeto de fuga. A dois dos interrogados se atribui urna origem africana genérica: "Guiñé" (Juan Joaquín Quiñones) e "África" (Julián). Outros dois declaram proceder das Antilhas francófonas, Sao Domingos (Juan Bautista) e Martinica (Fransúa). Nao se indica a procedencia de mais duas testemunhas escravas, Aniceto e Mateo Díaz, mas tudo contribuí para sugerir que se tratava de crioulos locáis. Diferentemente do juiz do mèdio Paraíba, o prefeito de Bayamón, que nao segue nenhum roteiro preestabelecido, ouve com muita atençào os sucessivos depoimentos, intervindo com suas perguntas cada vez que parece haver algo novo ou alguma contradiçâo ñas declaraçôes das testemunhas. Ao longo da série de interrogatorios, o projeto dos escravos muda constantemente de forma e de protagonistas. As certezas ao menos relativas do começo väo se esvaecendo. No final, visivelmente cansado pelas "mentiras" de uns e outros, o prefeito opta por pedir instruçôes a seu superior, o governador da ilha. Sem se pronunciar claramente sobre o assunto, a autoridade máxima exige que os escravos sejam encadeados e vigiados antes de sua venda "para fora da ilha". Este desfecho "brando" pode surpreender quando sabemos que no mesmo ano (1826), vinte e très dos supostos líderes de uma insurreiçâo de escravos porto-riquenhos foram condenados à morte - um verdadeiro massacre - e mais sete à cadeia perpetua (Baralt 1989:66-67). Talvez preocupado, como devia estar, perante a gravidade deste movimento insurrecional, o governo da ilha preferiu "ignorar" os sonhos de liberdade de um grupo relativamente reduzido de escravos. A devassa sugere que o prefeito só quis ver nesta fuga frustrada um episòdio menor e puramente interno do conflito "normal" entre fazendeiros e escravos. Na verdade, o contexto geral oferece mais um argumento que poderia contribuir para explicar a "estranha" moderaçâo que mostrou a autoridade da ilha nestas circunstancias particulares. Deve-se levar em conta que nesta altura, mais no Caribe do que no Brasil,12 a escravatura começava a ser percebida como um sistema de exploraçâo inviável. Sob a pressâo do governo haitiano, que apoiava sua luta, o líder máximo da revoluçâo independentista hispano-americana, Bolivar, decretou em 1816 a aboliçâo da escravatura.13 Além disso, a racionalidade econòmica do sistema parecía cada vez mais duvidosa. O economista cubano Saco, autor de uma historia geral da escravidâo no mundo (Saco 1853) e partidario moderado da aboliçâo, costumava destacar a ilha de Porto Rico como um dos

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No Brasil, as Memorias sobre a escravidâo de Maciel da Costa (1988) e outros abolicionistas da primeira hora nâo ocultam a permanencia vitoriosa do ideario escravista no sudeste. Esse decreto, que se explica também pela necessidade de recrutar novos contingentes de soldados para os exércitos independentistas, nâo surtiu efeitos definitivos. Uma vez conquistada sua independencia, a maioria das novas repúblicas hispano-americanas demoraram ainda uma ou varias décadas para liquidar o regime escravista. Em Porto Rico, colonia espanhola, as autoridades metropolitanas só aboliram a escravatura em 1873.

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lugares onde urna parte apreciável da produçâo açucareira saia de engenhos nâo submetidos ao sistema escravista (Saco 1853:79-80). As próprias justificaçôes da escravatura que alguns de seus adeptos ofereceram nesses mesmos anos em Porto Rico (Baralt 1989:79-80) demonstran! a existencia de gravíssimas dúvidas quanto à sua funcionalidade. Em um panorama desta indole nâo estranila muito a evidente indecisào da autoridade quanto às medidas a tomar perante os movimentos de insubmissào dos cativos. É a essa indecisào política que atribuímos - ao menos em parte - a "improvisaçâo" que caracterizou, como se disse, o desenvolvimento da devassa de Bayamón. Na verdade, a atitude de "cansaço" do prefeito autorizou os escravos a se expressarem com uma liberdade que nâo tem paralelo em outros juízos semelhantes. E interessante observar que os escrivàes Francisco Franco e Mateo Arilla - caso verdadeiramente excepcional - transcrevem com uma certa graça a linguagem coloquial dos cativos presos. Ao serem interrogados por uma autoridade bem atenta a suas declaraçôes, os "réus" nem procuram negar a existencia de seu projeto de fuga. Além de outras transgressées, eles até admitem sua participaçâo em um banquete coroado pela devoraçâo de uma vaca roubada. Um dos implicados, o africano Julián, alega que foi "pela força que lhe fazia a fome, porque seu dono só o alimentava com quatro bananas pequeñas e um pedaço de carne por dia". Um outro, o haitiano Juan Bautista, deixa perceber que está desenvolvendo, com a ajuda de um seu irmäo forro, um comercio de cavalos roubados nas fazendas do local. O que é que revelam os depoimentos destes cativos quanto a seu discurso sobre a escravidâo? Quais as diretrizes de sua consciência coletiva? As declaraçôes mais interessantes no que diz respeito a estas perguntas sâo as do velho haitiano Juan Bautista e as do "africano" José Joaquín. Ambos evocam com bastantes detalhes uma tarde memorável na fazenda "Plantage" de Harry Buist, onde morava e trabalhava o haitiano. Como no célebre filme japonés Rashomon de Kurosawa, cada um oferece uma versâo bem pessoal dos encontros e acontecimentos que sucederam nesse locai. E ao leitor que incumbe, finalmente, a responsabilidade de tirar suas próprias conclusòes. José Joaquín declara que foi ao "Plantage" para vender uma bomba (um tipo de atabaque bem conhecido na ilha). Ele afirma que là um negro velho, o "tio" Juan Bautista, o chamou para lhe propor a fuga a Sâo Domingos, ilha onde os negros, segundo o anciâo, levavam charreteras - uma insignia militar reservada, antes da revoluçâo, aos franceses.14 A idéia era de fugir pelo mar em umas canoas seqiiestradas aos fazendeiros. O africano repete textualmente - testemunho dentro do testemunho - o convite que lhe fez o haitiano: "Companheiro, venha cá: estou decidido a fugir porque já nâo suporto mais o trato de meu dono; barriga vazia, corpo nu e muitos açoites; eu vou-me embora para outro lugar." Sem dizê-lo explícitamente, a testemunha deixa entender que ficou seduzida pela milonga do haitiano.

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José Martí, o herói da independencia cubana que visitou Haiti em 1895 - poucas semanas antes de morrer em combate, em Cuba -, escreveu em seu "Diario de Montecristi a Cabo Haitiano" (Martí s/d:360): "los edecanes corretean por frente a las filas, en sus caballos blancos o amarillos, con la levita de charreteras y el tricornio, que en el jefe lleva pluma".

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Ouvindo atentamente suas declaraçôes, o prefeito quer saber com que palavras, literalmente, ele logo pediu a um seu companheiro de urna outra fazenda que preparasse a canoa de seu dono. O africano responde o que ele disse entâo: "Aniceto, o tio Bautista do 'Plantage' e o Julián de Dom Cayetano já têm reunidos uma porçâo de companheiros de varias fazendas para se irem embora desta terra para Sâo Domingos: têm carne e alforje prontos, e que a única coisa que precisavam para a viagem era a canoa de seu amo Tomás." Ele confessa ainda que teve mais alguns encontros com outros escravos que lhe propunham fugir para outra ilha do Caribe, acrescentando que uma dessas conversas teve lugar numa viagem noturna em canoa, e que todos eles estavam um tanto bêbedos. Como se percebe nâo só no depoimento de José Joaquín, o projeto de fuga dos escravos de Bayamón se desenvolveu numa atmosfera eminentemente festiva ou ritual. José Joaquín y Juan Bautista concordam em afirmar que a fuga devia se materializar no dia de Santiago (29 de julho). Qual o motivo para escolher esse dia? Sabemos que para alguns setores da populaçào afro-caribenha, Santiago, o famoso santo guerreiro dos espanhóis, correspondía ao orixá - guerreiro também - Ogum.n Para iniciar um ato de rebeliào, a energia que dispensa este orixá vinha a ser altamente propicia. Ao elegerem o dia de Santiago-Ogum, de intensa atividade ritual em várias comunidades afro-americanas, os conspiradores desejavam se colocar, sem dúvida, sob a sua proteçâo. E qual ainda o papel da bomba nessa "festa" ? O africano - dono do instrumento - nao o revela, mas disso se encarregará seu parceiro Juan Bautista. Chamado de "tio" por várias testemunhas, o haitiano era, sem dúvida, uma pessoa de respeito para muitos escravos da zona. Na verdade, seu título nao deixa de lembrar o de "pai" no mèdio Paraíba. Talvez, mas isso constituí um dos "silencios" desta devassa, também ele fosse um tata de uma religiào afro-caribenha. No seu depoimento, Juan Bautista narra, embora sem citar seu nome, a visita ao "Plantage" do dono da bomba. Ele declara que viu e ouviu o africano batendo seu atabaque em companhia de vários escravos e de alguns negros forros, acrescentando que depois o músico chegou à porta de sua casa onde, novamente, bateu o tambor: "Ao som da bomba acudiram os trabalhadores da fazenda e começaram a dançar, muito alegres. O baile durou quase duas horas." Sempre segundo o haitiano, o "desconhecido" entrou logo na sua casa, onde ele se achava deitado, com febre, numa rede. Là, o dono da bomba lhe falou no projeto de fugirem - ambos - para o Haiti. A testemunha sublinha que recusou essa proposta, obrigando o africano a levar sua música para outro lugar. Embora fingisse desconhecê-lo, Juan Bautista conhecia, na realidade, o dono do tambor; à pergunta pertinente do prefeito, o anciào tem de confessar que nesse dia ele tinha convidado o africano para o almoço. Em suma, essa tarde memorável do día de Santiago-Ogum foi, sem dúvida, um momento perfeitamente encenado por Juan Bautista e José Joaquín. Nos sucessos narrados, cada um deles cumpria, ao que parece, uma funçâo precisa. O haitiano, que dispunha de uma

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A "correspondencia" entre Santiago e Ogum fica confirmada ao menos para Cuba (Ortiz 1985) e Haiti (Métraux 1958:143). Lembre-se que Juan Bautista, com certeza o "ideólogo" do projeto, era oriundo de Haiti.

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certa experiencia revolucionaria, deve ter sido o ideólogo do movimento, enquanto o africano, com suas capacidades musicais, criava um clima propicio para a realizaçâo da fuga coletiva. Mais loquaz do que as testemunhas humanas, a bomba é que revela o que elas ocultam. N o levante porto-riquenho já mencionado, chamado de "insurreiçào da bomba", esse instrumento de percussâo tinha servido para convocar os insurretos (Barak 1989:65-66). Parece evidente que no "Plantage" a bomba, ao passear de um lugar para outro, ia também convocando todos os trabalhadores da fazenda. Ora, o atabaque nao é só um instrumento de comunicaçào entre os homens; ele tem a faculdade de fazer surgir um espaço onde os africanos ou seus descendentes, "muito alegres", estejam novamente entre si e em comunicaçào direta com suas "divindades" ou "forças", como na pròpria Africa. Espaço semelhante ao do teatro, caracterizado pela aboliçâo das regras que vigoram na realidade quotidiana. Espaço do sonho e da utopia, onde a escravidào deixa de existir. Segundo o testemunho de um membro da moderna comunidade mineira dos Arturos, citado no traballio de Núbia Pereira de Magalhàes Gomes e Edimilson de Almeida Pereira (Gomes 1988), os antigos batedores do candombe16

local

usavam os tambores como veículo mágico no qual eram conduzidos, sob a açâo da entidade do mar. Assentados nos tambores, os candombeiros faziam o percurso do lugar onde estavam ao espaço desejado, invocando a ajuda de Calunga: O Calunga! Me leva pra casa. Com a ajuda do tambor de Kalunga ("mar"), país da morte transitoria, os negros escravos ou seus descendentes morrem para renascer, numa África imaginaria, como homens livres. O tambor nâo é só um instrumento musical como também um meio de transporte que permite chegar ao "espaço desejado". Esse espaço, onde nâo há donos nem escravos, é o da comunidade negra. O depoimento de Juan Bautista sugere que a bomba propicia, muito melhor do que um orador político, a conquista da coesào política entre todos os presentes, tanto escravos como negros forros. Como bem viu o cubano Alejo Carpentier no seu romance El reino de este mundo (1981 [1949]), os atabaques de Bois Caïman cumpriram essa mesma funçào na revoluçào haitiana. A tarde memorável do dia de Santiago-Ogum no "Plantage" é um só dos momentos festivos que aparecem nos depoimentos dos escravos de Bayamón. Outros momentos semelhantes, já mencionados, sao o "banquete" da vaca roubada e a viagem noturna em canoa de uns escravos ébrios de àlcool e de desejos de liberdade. Observe-se que a historia dos sonhadores de Bayamón abunda em referencias ao mar. Em varios sentidos, o mar aparece enquanto espaço propiciador da liberdade, seja a definitiva prometida pela fuga para o Haiti, seja a mais efémera que se vive em um momento festivo como a alegre viagem noturna de canoa. No "imaginario" destes escravos, o oceano profundo - Kalunga - parece ocupar um lugar semelhante ao do mato no de seus companheiros colombianos (século

Embora tenha talvez urna origem comum, candombe nao deve ser confundido com a religiào do candomblé.

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XVII) e brasileiros (1838). Ñas culturas de marca banto, Kalunga, como a mfínda, é o lugar dos mortos, dos espíritos dos ancestrais. Na Kalunga se morre para renascer em urna vida diferente. No caso presente, essa vida diferente nâo é só a que o escravos vivem, por momentos, em urna Africa imaginaria. E também aquela, bem real, que existe na ilha revolucionaria de Haiti. Tal como a viagem ao interior do mato, a viagem marítima permite aos escravos nâo só o reencontró com a Africa como também a chegada a um lugar onde "nunca mais haviam de ver seu senhor".

Conclusäo Semelhantes, portanto, quanto à sua inscriçâo num "imaginario" de origem africana, os discursos que sustentam a fuga do medio Paraíba e os sonhos de liberdade dos escravos porto-riquenhos se diferenciam, porém, quanto a sua inserçâo na "modernidade" latinoamericana. O empreendimento de Manoel Congo nâo parece decorrer de urna análise política concreta da situaçâo geral e local. Ao que parece, seu quilombo tendia, basicamente, a reafirmar - atualizar - urna remota tradiçâo africana ou banto. A nâo ser pela sua hipotética coordenaçâo com todos os outros movimentos escravos da época, que aparentemente nâo se deu, o projeto de Manoel Congo nâo oferecia nenhuma alternativa global ao sistema escravista. Deve-se assinalar que os quilombos, em geral, nâo propunham a aboliçâo da escravatura. Eram lugares de refugio nos quais, segundo muitos documentos, a escravidâo talvez na sua forma africana - ia se reproduzindo ou recriando. "Haiti", neste contexto, representava urna idéia mais moderna. Na sua historia, combinava-se a força de certas tradiçôes africanas com a ideologia igualitaria da revoluçâo francesa. Apesar de todos os seus desvíos, a revoluçâo haitiana tinha demonstrado que a liquidaçâo definitiva da escravatura era possível. Ao se inscreverem, de alguma maneira, no projeto da revoluçâo haitiana, os escravos de Bayamón nao optaram, pois, pelo retorno a urna África imaginaria e tradicional, mas pelo seu ingresso a urna "África moderna" localizada no hemisfério ocidental.

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Markus Klaus Schäffauer

escritOralidade na vanguarda latino-americana

1. A vanguarda latino-americana e a barreira de Tordesilhas Com a publicaçâo da antologia Las vanguardias latinoamericanas (1991) e sua versào portuguesa Vanguardas latino-americanas (1995), editada e comentada pelo argentino-brasileiro Jorge Schwartz, oferece-se pela primeira vez um corpus de textos vanguardistas que realmente merece ser chamado "latino-americano" - com a leve restriçâo de que as duas versôes da antologia obviamente sao destinadas a um público que está acostumado a 1er somente numa das duas línguas. A opçâo elegida por Jorge Schwartz foi superar a barreira lingüística de Tordesilhas, oferecendo a traduçâo dos textos brasileiros para os falantes de espanhol e dos textos hispano-americanos para os falantes de portugués. A amplitude da antologia opôe-se assim com muita razâo aos "trabajos que, sistematicamente, excluyen a las vanguardias brasileñas de su panorama", como por exemplo as antologías de Nelson Osorio e Hugo Verani, para os quais "la lengua portuguesa obra como una barrera infranqueable" (Schwartz 1991:26). Efetivamente, encontramos muitos trabalhos que analisam a influencia das vanguardas européias em urna das Americas do Sul e que destacam o suposto cosmopolitismo das vanguardas latino-americanas, mas poucas vezes repara-se na rede latino-americana de intercambio de visitas, revistas e textos vanguardistas. Para tanto, o propósito bem intencionado da antologia consiste, segundo Schwartz, em "la demolición del 'muro de Tordesillas' que siempre aisló al Brasil de la América Hispánica" (Schwartz 1991:28). Seguindo com este propósito, propôe-se neste traballio investigar o lugar histórico em que se empreende a transgressâo da barreira de Tordesilhas pela primeira vez. Se o estudo das vanguardas em nivel latino-americano considera-se a partir de Forster (1975) como condiçào previa para a sua compreensâo, nâo se poderia deduzir disto que as vanguardas mesmas foram as que já começaram com a transgressâo da barreira de Tordesilhas? Pode-se falar, entâo, de um diàlogo cultural interamericano já a partir das vanguardas históricas? Em nivel das Américas do Sul, nâo há dúvida que a resposta é afirmativa. Considerando os casos mais destacados dos vanguardistas de primeira hora, que sao Mário de Andrade e Jorge Luis Borges, é obvio que eles muito cedo se converteram em protagonistas da rede interamericana da vanguarda: poemas de Mário de Andrade foram reproduzidos no Boletín Titikaka de Puno no Peru, que por sua vez mantinha intercambio com Martín Fierro de Buenos Aires, com La Pluma de Montevideo e, naturalmente, com a revista peruana mais importante Amauta de José Carlos Mariátegui (fora o contato com o grupo de Berlim Der Sturm, provavelmente intermediado por este último). Da mesma forma, foram discutidos em nivel latino-americano os méritos vanguardistas de Jorge Luis Borges, por exemplo pelo já mencionado Mariátegui, que o destaca em seus famosos Siete ensayos sobre la realidad peruana (1928) e reproduz textos do argentino em Amauta. Também César Vallejo mencio-

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na Borges nesta revista, embora com um certo desdém, enquanto o venezuelano Gabriel Espinoza confere-lhe já em 1928 o título de "maestro vanguardista", e da mesma forma Mario de Andrade vé em Borges o autor argentino mais promissor.

2. O caso exemplar: Borges/Andrade e o uso da tradiçào oral Para verificar-se a hipótese do papel decisivo da vanguarda no corte umbilical com a cultura européia, que implicava urna transgressào das barreiras pós-coloniais entre as culturas das Americas do Sul, o caso argentino é de especial interesse. Tanto Mario de Andrade como José Carlos Mariátegui destacam o modelo argentino na busca de identidade. Enquanto Mariátegui procura uma base de comparaçâo entre o que ele chama de criollismo argentino e de indigenismo peruano, Mario de Andrade nao estabelece tal comparaçâo, ainda que compartilhe com Mariátegui a convicçào de que o caso argentino seja particular por ter alcançado uma argentinidade baseada na tradiçào gauchesca. Sobre seus próprios países julgam, muito pelo contràrio, que a falta de uma tradiçào pròpria correspondería respectivamente a uma carencia de peruanidade e brasilidade. E ai que a questào de uma tradiçào oral adquire importancia elementar para a consciência histórica do chamado "Mundo Novo", como observou Vittoria Borsò: Desde a revalorizaçào do elemento autòctone no começo do nosso século, a busca de uma identidade histórica tem sido vinculada à origem pré-colombiana. O redescobrimento de uma memoria cultural autòctone está em relaçào com as fontes oráis. A consciência histórica da America Espanhola precisa, para tanto, do componente da oralidade. [...] Com isso, a oralidade converte-se na differentia specifica da identidade da América Espanhola [...]. (Borsò 1994:47; trad, minha)

Nao há dúvida de que o que Borsò descreve aqui com respeito à América Espanhola também é válido para a América Latina em gérai, se considerarmos, por exemplo, o papel da tradiçào na definiçào da literatura oral do especialista brasileiro Luís da Cámara Cascudo: "A literatura oral é mantida e movimentada pela tradiçào. E uma força obscura e poderosa, fazendo a transmissào, pela oralidade, de geraçâo a geraçâo" (Cascudo 21978:168). Entretanto, o caso argentino é diferente por ter criado uma tradiçào nacional que nào remonta diretamente à origem pré-colombiana, mas sim medeia entre as origens pré-colombiana e espanhola através da invençào de uma tradiçào oral, cujo símbolo nostálgico é o gaúchomestiço. No mais tardar a partir do Centenario da Independencia, o gaucho incorpora o elo perdido no modelo de transiçào, que legitima a suposta evoluçào do indio ao crioulo de origem européia. Contudo, é questionável em que medida a tradiçào gauchesca merece ser chamada só de tradiçào oral: há indicios de uma tradiçào tanto oral quanto escrita, encontrando-se até uma tradiçào do Martín Fierro re-oralizada no campo argentino. A invocaçào do espirito crioulo desta tradiçào tanto escritural como oral - ou seja

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escritOral1 - leva os vanguardistas martinfierristas de Buenos Aires a declarar justamente no manifesto Martín Fierro sua "fe en nuestra fonética", obsessâo que os inspira à fundaçâo irónica de uma Revista oral. Por isto, concordamos com a premissa de Beatriz Sarlo de que a proximidade à oralidade autòctone foi considerada como condiçâo e prova de uma escritura argentina. Nisto a escritura argentina é análoga ao indigenismo em outros países, distinguindo-se dele por já ter sido elevada a modelo nacional, que foi aceito por uma grande parte da populaçâo. Somente com o uso da tradiçâo escritOral pelos chamados martinfierristas observa-se um distanciamento deste modelo teleologico, por exemplo quando Borges afirma, bastante irónico, mas também cum grano salis, que "o argentino, diferente dos norte-americanos e dos europeus, nao se identifica com o Estado", posto que "aforismos como os de Hegel Ό Estado é a realidade da idéia moral' lhe parecem brincadeiras sinistras", embora o argentino rebelde "encontraría o seu símbolo no gaucho e nao no militar, porque o valor cifrado naquele pelas tradiçôes oráis nao está a serviço de uma causa e é puro" (Borges 1989 L162).2 Pode-se perguntar, por isso, se o programa de criaçâo da identidade nacional a partir de uma tradiçâo escritOral diferente funcionou como uma perspectiva unificadora das vanguardas da América Latina frente à Europa e à América Anglo-saxônica. Para Mário de Andrade é uma questâo decisiva, abordada em seus ensaios sobre a "Literatura modernista argentina" de 1928: "Entre as literaturas modernas da Argentina e do Brasil, vai uma diferença grande" (Andrade 1978:73) - uma diferença que Andrade distingue sob o ponto de vista da psicologia nacional, mostrando sua aversäo a qualquer tipo de unidade latino-americana: certos ideáis de americanismo e latino-americanismo nâo conseguem interessar-me. [...] Enquanto a noçào de "fraternidade" nào desaparecer da argumentaçào humana, nao seremos senâo egoísmos enormes se odiando. Mas, todo e qualquer alastramento do conceito de patria que nâo abranja a humanidade inteira me parece odioso. Tenho horror a essa historia de "América Latina* muito agitada hoje em dia. "Hispano-americanismo, cuantas estupideces se hacen y dicen en tu nombre!" (Martín Fierro). Tenho horror ao Pan-americanismo. (Andrade 1978:74)

Com este horror a conceitos de unidade latino-americana, Andrade vê-se confirmado pela polémica do meridiano cultural, que Guillermo de Torre havia desencadeado com a proposta de que o meridiano cultural-lingüístico da América Espanhola deveria passar por Madri. A Andrade parece que "a proposta ridicula dos espanhóis nâo merecía o interesse que lhe deram os moços argentinos" - entre eles Borges - , nâo obstante elogia o tom burlón dos martinfierristas como prova de um espirito americano independente em nivel lingüístico:

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O conceito escritOralidade - desenvolvido na minha tese de doutorado (cf. Schäffauer 1998a:12-13 e 55-69) - refere-se nào somente à necessària relaçâo intermedial entre o oral e o escritural, senào também a uma formaçâo histórica do logocentrismo, ou seja, a uma fixaçâo teleologica dupla, que é tanto fonocèntrica como grafocêntrica e que corresponde a uma metafísica da presença da voz e do corpo. A respeito do discurso oral na literaturarioplatenseem gérai, cf. Berg/Schäffauer 1999. As passagens das Obras completas de Jorge Luis Borges foram traduzidas para o portugués pelo autor deste artigo.

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E ainda prova de que a América toda se preocupa com a nacionalizaçào déla está no trabalho das línguas. Pode-se dizer que o repudio das línguas màes, inglés, espanhol, portugués, manifesta-se em todas as naçôes americanas. £ na maneira como que isso está se manifestando, já se principia distinguindo diferenças entre as literaturas modernistas brasileira e argentina. (Andrade 1978:77)

Entäo repudia os conceitos de unidade latino-americana através do reconhecimento de diferenças psicológicas, étnicas ou políticas, mas admite urna preocupaçâo lingüística comum, incluindo ainda a América Anglo-saxônica. Antes de seguir com a análise das diferenças e de retomar a hipótese sobre a demoliçào do muro de Tordesilhas, vejamos brevemente o uso da tradiçâo oral nos dois vanguardistas latino-americanos de primeira hora que sao Jorge Luis Borges e Mario de Andrade.3

3. A trajetória da tradiçâo oral em Borges: desde Martín Fierro até Pierre Menard Quando Jorge Luis Borges volta em 1921 às margens do Plata, traz consigo o espirito de modemizaçâo estética das vanguardas européias e aplica-o com todo fervor ao que ali se lhe oferece como material. Ao contrario da proposta centenaria de Leopoldo Lugones e Ricardo Rojas e apesar dos últimos esforços de Benito Lynch e Ricardo Güiraldes,4 para ele o encanto poético de seu país já nao emana romanticamente da poesia gauchesca do século XIX. Ele mesmo desloca este encanto para urna arte profundamente descentrada devido à tensäo entre o tradicional-rural e o moderno-urbano. Borges cria os símbolos desta tensäo a partir dos limites imaginarios entre o rural e o urbano, que sao as margens da cidade chamadas arrabales, que nao sao nem pampa, nem centro, e o poeta do arrabal, que nâo é nem gaucho, nem vanguardista. Por isto, escreve sua primeira monografia nâo sobre o centro da poesia argentina incorporado por Lugones (cf. Sarlo 1989:7), e, sim, sobre um poeta do arrabal quase desconhecido, Evaristo Carriego, por ironia um grande admirador e quase epígono popular de Darío e Lugones, criando assim sua pròpria tradiçâo, ou melhor, ironizando a invençâo de urna tradiçâo, segundo declara em El tamaño de mi esperanza: Fray Mocho e o seu continuador Félix Lima sâo a cotidianidade conversada do arrabal·, Evaristo Carriego, a tristeza da sua falta de vontade e de seu fracasso. Depois vim eu (enquanto eu viver, nâo me faltará quem me elogie) e disse antes que outro, nâo os destinos, mas sim a paisagem das periferias: o armazém rosado como uma nuvem, as ruelas. (Borges 1926:22)

Mas Borges nâo é somente o poeta vanguardista dos arrabales com seu "armazém rosado", como também participa da revista argentina de vanguarda mais importante, Martin Fierro, cujo nome se deve ao herói gaucho como se fosse antes uma "retaguarda campesina" e nâo uma vanguarda urbana. Este paradoxo também foi realçado por Mario de Andrade ao

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A questäo da oralidade na obra destes dois autores está sendo desenvolvida também no capítulo "Mario e Borges: cidade e oralidade" em Assunçâo 2000. Sobre a relaçào de Borges com Güiraldes, cf. Sarlo 1989:8.

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elogiar a vanguarda argentina justamente por sua falta de preocupaçâo com a argentinidade, ressalvando que "só o nome de Martín Fierro é tendencioso" (Andrade 1978:78). O paradoxo encontra o seu corolario em urna proposta muito borgeana, e portanto ao mesmo tempo irónica e fascinante, que consiste em propor ao país literario a tarefa de escrever seu Martín Fierro da cidade, criando para isto urna oralidade urbana do sucessor do gaucho, o compadrito, assim como Hernández criou a oralidade rural do gaucho. A proposta irónica de reescrever o Martín Fierro encontra-se explícitamente em El tamaño de mi esperanza, onde se afirma (e nota-se a ironia do sentido literal que reaparecerá em "Pierre Menard, autor del Quijote"): "A receita é demasiado simples. Basta que outro don José Hernández nos escreva a epopéia do compadraje e plasme a diversidade de seus individuos em um só" (Borges 1926:142). Beatriz Sarlo afirma com muita razâo que "sem dúvida, Borges colocou-se o problema de como escrever na Argentina e nâo só de como escrever" (Sarlo 1989:9; trad, minha). Isto leva-a a considerar, o que é muito importante para nosso objetivo, que "esta encruzilhada em que se produzem os textos da literatura argentina poderia ser problematizada, em termos teóricos, com o paradoxo de Pierre Menard" (Sarlo 1989:10; trad, minha). Pretendo mostrar brevemente que o que Sarlo problematiza só em termos teóricos abstratos pode-se provar através de urna análise detalhada, que ainda permite mostrar que é Borges mesmo quem reflete em sua famosa peça "Pierre Menard, autor del Quijote" nâo tanto sobre a condiçâo universal do escritor-leitor (como sempre se interpretou este texto), e, sim, sobre a relaçâo concreta entre o escritor argentino e a tradiçâo - uma relaçào que anos depois resumirá na conferencia "El escritor argentino y la tradición". Recordamos que em "Pierre Menard, autor del Quijote" o narrador reconstrói urna biobibliografia absurda da obra dupla - visível e invisível - do apócrifo escritor francés Pierre Menard, que apresenta, entre outras coisas, uma sátira bibliográfica da pròpria escritura borgeana. Por exemplo, Borges conta que quando criança tentou reescrever uma parte do Quijote como Menard - experiência que lhe livrou para toda sua vida de semelhante intento. Mesmo assim, o modelo narrativo de "Pierre Menard" é também uma reescritura da quase esquecida biografia literária sobre Evaristo Carriego e "a tradiçâo oral de minha casa", como observa Borges, por ter sido Carriego amigo de seu pai (Borges 1989 1:152). Limito-me ao exemplo mais evidente: a dicotomia da obra visível e invisível de Pierre Menard já tinha sido aplicada nove anos antes à obra de Carriego, que "pertencerá à ecclesia visibilis de nossas letras", mas também "à mais verdadeira e reservada ecclesia invisibilis" (Borges 1989 1:103). Uma das razôes é que Carriego "Escrevia pouco, o que significa que seus rascunhos eram oráis" (Borges 1989 1:116). A isto correspondem os poucos capítulos do Quijote na biblioteca de Menard: "Em efeito, nâo permanece um só rascunho que ateste esse trabalho de anos" (Borges 1989 1:447). O programa de reescrever o Martín Fierro dos tempos martinfierristas também nâo passa mais de alguns contos. Além disso, Borges demonstra já na Historia universal de la infamia (1935) que o principio da reescritura "infame" é um principio universal, que consiste nâo só na conquista "infame" das tradiçôes literárias estranhas, mas também da pròpria tradiçâo. Portanto, poderia concluir-se que "Pierre Menard" é efetiva-

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mente um texto irónico que joga com a infàmia de um autor francés inconcebível. Este pretende reescrever o clàssico espanhol do Quijote, ou seja, partindo do centro europeu escreve sobre a sua periferia. Porém, é exatamente na relaçâo inversa que Borges vê a vantagem do autor marginal sobre o do centro europeu: "podemos manejar todos os temas europeus, manejá-los sem superstiçôes, com uma irreverência que pode ter, e que já tem conseqüéncias afortunadas" (Borges 1989 1:273) - conseqüéncias que também afetam a reescritura da tradiçâo gauchesca, que ele trata agora com a mesma irreverencia e até descrendo do constructo teleologico escritOral que impôe à literatura as tradiçôes autóctones de uma vez para sempre.5

4. O uso da tradiçâo oral em Mario de Andrade: Macunaíma e Muiraquitä À primeira vista, o caso do modernista Mario de Andrade em Sâo Paulo parece ser muito diferente: mesmo que no sul do Brasil também haja gauchos e no nordeste os sertanejos, nao havia nesta época uma tradiçâo escritOral comparável ao fenómeno da gauchesca em nivel nacional brasileiro.6 Pode-se afirmar que a heterogeneidade cultural e física no Brasil provavelmente era ainda mais acentuada que no Río de la Plata e que ainda nào se havia encontrado um herói de caráter nacional aceitável para boa parte da populaçâo, por mais absurdo que isto tenha sido também no caso de Martín Fierro. Será por isto que Mario de Andrade elege o célebre título Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. O título polissêmico permite também outra leitura segundo a qual Macunaíma, de acordo com as acepçôes lexicográficas de "caráter", seria 'o herói sem nenhuma letra'.7 Se é certo que a palavra "caráter", assim como está escrita no título da versâo atual, parece referir-se mais à falta de traços psicológicos do herói do que à falta da escrita na sua formaçâo, entâo é revelador que na primeira ediçâo, assim como no exemplar revisto por Mário, estava ainda a palavra "carácter" - ou seja, com o nexo '-et-' que correspondía à grafia da época, contendo ainda toda a polissemia da palavra - que viria ainda mais ao encontro da nossa leitura 'literal', segundo a qual o herói seria caracterizado também por nào conhecer nenhuma escrita. Nao é necessàrio demonstrar detalhadamente que este sentido literal do título é desmentido pelo romance quase desde o começo. Apesar de Macunaíma se caracterizar nos seus

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Para uma análise detalhada de "Pierre Menard, autor del Quijote" no contexto da oralidade, cf. Schäffauer 1998a:292-304.

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Um bom exemplo da falta de uma tradiçâo equivalente em nivel nacional no Brasil é a recepçào tardía do 'poemeto campestre' Antonio Cbimango (1915) de Amaro Juvenal no século X X (cf. Martins 1980:11 e, em geral, Schäffauer 1998b).

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Cf. Dicionário Aurelio Eletrônico (21996): "caráter. [Do gr. charaktér.] S. m. 1. Forma que se dá à letra manuscrita ou ao tipo de imprensa; 2. P. ext. V. tipol (10). [Nessas acepç., tb. us. no pl.]; [...] 6. O conjunto dos traços particulares, o modo de ser de um individuo, ou de um grupo; índole, natureza, temperamento; 7. O conjunto das qualidades (boas ou más) de um individuo, e que lhe determinam a conduta e a concepçâo moral; [...]."

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primeiros seis anos pelo seu silencio e pela sua preguiça, o romance mostra no seu transcurso como ele sabe expressar-se tanto nos meios oráis como nos escrituráis. O aparente 'mundo oral' da sua tribo indígena nâo é completamente alheio ao 'mundo da escrita'. Ao cometer o pecado à maneira de Edipo, matando a sua mäe ao confundi-la com um veado, ele e seus irmâos sao expulsos do 'paraíso dos analfabetos', pois o irmäo Maanape é capaz de gravar um epitafio para o túmulo da mäe.8 É também a primeira vez no romance que o mito e o totem se convertem em pedra. A reproduçào do epitafio apresenta très 'caracteres', sendo um deles muito parecido com os desenhos indígenas, que o etnógrafo alemao Theodor Koch-Grünberg tinha colecionado na zona amazónica fronteiriça com a Colombia, a Venezuela e o Brasil, de onde provêm também os mitos e lendas dos indios que Andrade aproveitou para o romance.

Um veado segundo o indio tukâno Yeepásonea do ' rio Tiquié (cf. Koch-Grünberg 1905:31).

O epitafio que Maanape inscreveu no túmulo da mäe, mostrando-a transformada em veado (cf. Andrade 1988:20 e Souza 1988:305).

O epitafio mostra um animal que representa a metamorfose da mäe numa "viada parida" (Andrade 1988:20). Mesmo sem reconhecer a bricolage dos caracteres que integram o epitafio segundo Souza,9 o engano de matar a pròpria mäe parece referir-se a uma mistura de tradiçôes culturáis tais como o animismo segundo os mitos indígenas, o mito de Edipo segundo os gregos amigos ou a proibiçào das relaçôes incestuais segundo Freud em Totem und Tabu.1" Portanto, essa escrita sobre pedra é literalmente uma petrificaçâo de diferentes

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Cf. Andrade 1988:20; observe-se que mais adiante aparece também o "passarinho uirapuru" que "executou uma letra no ar e desapareceu" (Andrade 1988:35). Segundo a leitura de Eneida María de Souza, as très inscriçôes podem ser decifradas da seguirne maneira: "a primeira, à esquerda, representa a mie, tal como foi morta por Macunaíma, metamorfoseada em 'viada parida'. As outras, gravadas em caracteres ideogramáticos, reproduzem, ora a cruz da vida ('croix ansée') egipcia, um dos símbolos que remete para a concepçào de alma eterna, ora um desenho que lembra, mais ou menos, o pentágono. No seu interior há quatro linhas, associadas à linhagem familiar, assinalando a presença dos très irmâos (Maanape, Macunaíma e Jiguè), e a última, à direita, marcada por uma linha cortada, indica a exclusâo da mâe da cena familiar" (Souza 1988:305). Para uma leitura totèmica conforme Sigmund Freud é relevante que o menino Macunaíma se diverte matando formigas. Macunaíma pertence ao "Cía do Jabotí" que é ao mesmo tempo o totem dele, sendo isto um dado que revela o segundo epitafio e também a explicaçào final do romance. Neste ensaio, que formava parte das leituras de Mario, descreve-se também a reaçâo fòbica de um jovem que mata formigas, o que, segundo Freud, seria um bom exemplo para explicar a funçâo totèmica dos animais: o jovem mata as formigas ao invés do pai, vencendo assim o seu medo dele. Freud concluí a partir desta observaçâo particular da psicologia individual quai é a funçâo social do totem nos indios. Desta forma explica a proibiçào de matar o animal totèmico - ao qual

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mitos oráis e leis nâo escritas. Se aceitamos compreendê-la como a respresentaçâo de urna escrita logográfica da fala indígena, resulta ser tâo híbrida - misturada, poética e irónica como parece ser também a escrita alfabética da fala brasileira segundo Mario. Da regiâo dos tepuis de Roraima - com suas formaçôes de pedras gigantescas - provêm também os cornos oráis aproveitados por Andrade dos documentos etnográficos recolhidos por Koch-Grünberg. Entre eles encontra-se o mito de Macunaíma, o herói mítico que sabe petrificar os homens e as coisas e que depois de morto, por sua vez, se transforma nos tepuis de Roraima. Apesar do mito da verslo de Koch-Grünberg, no final do romance encontra-se um segundo epitafio que diz: "Nao vim no mundo para ser pedra" e Macunaíma convertese na estrela da Ursa Maior. Cornudo, é a famosa "Carta pras Icamiabas", ou seja, para as Amazonas, que finalmente contradiz a leitura acima proposta de um herói que nao saiba escrever, mesmo que seja de modo satírico, como assinala Eneida Maria de Souza: Na disputa, os signos-palavròes substituem as pedras, assumindo um caráter precario, temporal e circulando no espaço da oralidade. No epitafio, os signos sao gravados para sempre na pedra [...]. Na "Carta pras Icamiabas", a conquista da pedra preciosa do discurso retórico visa a desmistificar o "portugués escrito", ao considerá-lo forma "morta" de expressào, contrapondo-o ao "brasileirofalado". (Souza 1988:308)

O uso paradigmático dos símbolos pedra e palavra no decorrer de todo o romance, que Eneida de Souza analisa detalhadamente em seu ensaio "A pedra mágica do discurso", estabelece o marco de um discurso etnográfico-lingüístico, que culmina com a coleçâo de pedras e palavrôes pelo antropófago Pietro Pietra e, sobretudo, com o roubo da pedra preciosa muiráquitâ por este colecionador etnòlogo. Andrade ridiculariza os atos de colecionar palavras orais e petrificá-las em escrita através do símbolo do papagaio que répété sem arte: "E só o papagaio no silencio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silencio as frases e feitos do herói" (Andrade 1988:263)." Além de criticar o discurso antropològico e antropòfago como dupla construçâo escritOral, Andrade opôe-se ao "papagaio real para Portugal" e zomba da diglossia brasileira na carta que Macunaíma manda para as Amazonas, onde escreve: Por urna bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitâ; que outrém grafara muraquità, e, alguns doutos, ciosos de etimologías esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraqué-itâ, nào sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tào familiar às vossas trompas de Eustaquio, é quasi desconhecido por aqui. [...] Ora sabereis que a sua riqueza de expressào intelectual é tao prodigiosa, que falam numa lingua e escrevem noutra. (Andrade 1988:73 e 84)

pertence o clà do pai - como garantía da sobrevivencia do pai frente à competiçào sexual dos filhos. Lembramos que o jovem Macunaíma também mata formigas e que esta aversào pode perceber-se ainda de forma paródica na sua palavra de ordem: "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil sao!" Compare esta relaçào entre o papagaio e a linguagem com as anotaçôes de Andrade: "O papagaio que falava a lingua extinta" (Andrade 1988:344).

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Sâo estes pontos estreitamente vinculados ao projeto andradino de modernizar através de urna Gramatiquinha da fala brasüeira o portugués escrito petrificado (cf. Pinto 1990), projeto que segundo Jorge Schwartz provém da mesma preocupaçâo pela fusäo entre a linguagem falada e a escrita, que conhecemos dos experimentos com a grafia e sintática no Borges da época martinfierrista,12 Porém, é a partir da preocupaçâo comum pelas falas nacionais que Andrade realça a diferença fundamental entre o Brasil e a Argentina nos seus ensaios sobre a "Literatura modernista argentina" de 1928: "Ora, a confiança do argentino e a insegurança do brasileiro caracterizam o jeito diferente com que estâo sendo tratadas as falas nacionais" (Andrade 1978:79). Por isto critica que "o problema de abrasileirar o Brasil culto nao se resumía a colecionar, amalgamar e estilizar regionalismos gauchos caipiras praieiros nordestinos ou tapuios" (81). E necessàrio o reconhecimento da diferença psicológica profunda dos "dois países americanos e vizinhos", apesar das "condiçôes históricas moráis, étnicas tradicionais, materials, mais ou menos idénticas" (82). Finalmente sugere que "o Brasil nâo foi feito por ninguém, Brasil é uma fatalidade que a gente pode melhorar ou piorar" (82), valendo-se do mesmo argumento com que Borges terminará seu ensaio sobre "El escritor argentino y la tradición": "porque ou ser argentino é uma fatalidade e neste caso o seremos de qualquer modo, ou ser argentino é uma mera afetaçâo, uma máscara" (Borges 1989 1:274).

Conclusäo Foi a vanguarda que conseguiu ao mesmo tempo o corte umbilical cultural e a demoliçâo do muro de Tordesilhas? As análises de Raúl Antelo, Emir Rodríguez Monegal, Jorge Schwartz e May Lorenzo Alcalá mostram, antes, que Mário de Andrade foi um observador muito atento da literatura argentina, mas, que saibamos, nâo se pode dizer o mesmo nem dos martinfierristas em geral, nem de Jorge Luis Borges com respeito as vanguardas brasileiras. O único ensaio sobre este tema destinado & Martín Fierro só foi publicado finalmente na revista brasileira Verde. Porém, a ênfase sobre as diferenças, apesar da atitude lingüística comum frente ao constructo escritOral europeu, pode ser considerada como o indicio mais confiável do diálogo inter-americano de vanguarda.

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Cf. Schwartz 1993:99-100; para uma análise da 'ortografia crioulista* correspondente, ver Schäffauer 1997:108-112 e 1998a:265-281.

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Joachim Michael Amerindios entre Adäo e escravo natural: géneros discursivos e representaçôes portuguesas e espanholas no século XVI

Os europeus "descobriram" os amerindios, urna vez, na "India", em 1492. Eles "descobriram"-nos, outra vez, na "Üha de Vera Cruz", em 1500. A idéia deste estudo é analisar como se relacionam estes dois confrontos europeus com o "novo". A proposta consiste numa aproximaçào aos processos coloniais portugués e espanhol através de urna análise dos seus vestigios discursivos. Consideram-se os enunciados históricos como emergencias pontuais que se geraram dentro de urna rede sócio-cultural temporalmente situada, que possibilità seu sentido. A interpretaçâo destes textos requer, portanto, urna visáo de conjunto que entende os respectivos processos coloniais nao como fenómenos isolados, ou seja, nacionais, e sim como resultados das dinámicas multi-regionais e pluri-sociais de uma "Europa mediterrânico-atlântica à conquista do mundo" (Barreto 21989:13). O objetivo deste estudo é, em outras palavras, re-inscrever os textos portugueses e espanhóis de Quinhentos sobre o "Mundus Novus" num contexto ibérico, o qual condiciona sua razâo de ser e de significar. Este procedimento coloca ¿mediatamente em questâo a distinçâo destes dois processos coloniais assim como muitas vezes se afirma. Será que um provocou uma "leyenda negra" com massacres sistemáticos enquanto o outro iniciou uma pacífica miscigenaçâo multiétnica? Gilberto Freyre, por exemplo, contribuiu de forma decisiva para a opiniäo de que as relaçôes entre portugueses e amerindios (e posteriormente entre escravos africanos) foram marcadas por um intercambio harmonioso: Pelo intercurso com mulher india ou negra multiplicou-se o colonizador em vigorosa e dúctil populaçâo mestiça, ainda mais adaptável do que ele, puro, ao clima tropical. A falta de gente, que o afligía, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à ¡mediata miscigenaçâo - contra o que nao o indispunham, alias, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos - foi para o portugués vantagem na sua obra de conquista e colonizaçào dos trópicos. (Freyre 1957:25)

Cultura dos descobrimentos e da colonizaçào O conjunto dos textos sobre os territorios coloniais e seus habitantes insere-se numa categoria de enunciados que, no caso portugués, Luís Filipe Barreto classifica como um dos quatro "campos" da "cultura dos Descobrimentos portugueses", nomeadamente, o campo da antropologia-geografia.1 Trata-se de um grupo textual que representa uma "revoluçâo

1

Sobre a "estrutura da cultura dos Descobrimentos portugueses", cf. Barreto 1989:24s. e Barreto 1989:28s. O autor divide-a em um "núcleo" constituido pelos campos técnico-prático da marinharia

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informativa sobre o Homem e a Natureza", produzindo urna acumulaçâo de dados descritivos sobre a Africa, America, Asia e Oceània, que constituí pela primeira vez urna visâo (e um poder) planetarios do mundo. E este o campo em que o saber pràtico e empírico dos descobrimentos e as visôes doutrinárias e ideológicas da expansào se interpenetram. Por conseguirne, as descriçôes dos novos territorios e seus habitantes sao marcadas por valoraçôes eurocêntricas que se baseiam em normas religiosas e civilizacionais (Barreto 1989:39-43). Os textos geográfico-antropológicos espelham as diversas situaçôes coloniais que os originaram. Estas podem ser resumidas, para o século XVI e em ambos os casos portugués e espanhol, em très fases. Em relaçâo à América portuguesa, a primeira fase abarca desde o descobrimento até as décadas de 1530/1540, quando, com o estabelecimento do sistema das capitanías, se passou à colonizaçâo deste dominio portugués. Esta é a fase pré-colonial, caracterizada pelo contato passageiro, por um olhar distanciado e por informaçôes fragmentarias sobre a "nova terra" e seus habitantes. O "Brasil achado em 1500 e em 1500 esquecido" constituía um problema ao "intermediario multicontinental do Renascimento" ao nao oferecer lucros mercantis buscados pela Coroa portuguesa (Barreto 1983:170). A segunda fase, de 1530/1540 até mais ou menos 1570, inicia-se como resposta ao interesse de outras potencias européias por este litoral e marca o inicio do processo de colonizaçâo. Este foi, com a chegada dos colonos e missionários, urna ocupaçào transformadora tanto do espaço como dos seus habitantes. Da proximidade e da convivencia permantes resulta urna acumulaçâo de informaçôes com um aumento de textos sobre o Brasil e os indios, dos quais se destacam sobretudo as cartas dos jesuítas. Nos textos desta fase salta à vista urna polémica entre missionários e colonos em torno das concepçôes referentes aos nativos. A terceira fase, enfim, é constituida pelos últimos trinta anos do século, com urna produçâo de textos mais elaborados, nomeadamente tratados e historias, na maioria escritos por jesuítas, marcando uma progressâo informativa sobre o Brasil e os amerindios. Enquanto toda atençâo dos portugueses estava voltada para a verdadeira "India" - o que se reflete na relativa escassez de escritos desta época sobre o territòrio - na América espanhola, a situaçâo era bem diferente. A expansào ultramarina estava toda voltada para estas "Indias", o que foi acompanhado por uma abundante produçâo de textos. O crítico Walter Mignolo oferece uma importante visâo de conjunto dos documentos espanhóis sobre a América do século XVI dividindo-os em très "tipos discursivos": "cartas relatorias", "relaciones" e "historias"/"crónicas" (Mignolo 31998). Mignolo distingue entre os "textos del descubrimiento" e os "textos de la conquista" atribuindo sobretudo ao primeiro grupo a articulaçâo de transformaçôes de noçôes cosmográficas (Mignolo 31998:60). Com base nesta distinçâo pode-se questionar a aptidào do termo "cultura dos Descobrimentos" para toda produçâo textual de Quinhentos sobre a América e substituí-lo por uma diferenciaçâo entre a cultura discursiva dos descobrimentos e a cultura discursiva da colonizaçâo. O propósito do presente estudo será justamente chamar a atençâo para as mudanças na passagem de uma à outra. Ainda baseando-se na análise de Mignolo, podemos descrever a

e teórico-científico da cientificidade, junto com o campo da geografìa-antropologia e em uma "periferia" constituida pelo campo da doutrina-ideologia.

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dinàmica desta produçâo textual com os géneros discursivos que a fazem surgir. Os escritos geográfico-antropológicos, por conseguirne, revelam ser constituidos por géneros que os relacionam à rede socio-cultural do seu passado e do seu presente. Os géneros vinculam-se, por exemplo, em sua ocorrência às fases da ocupaçâo do novo continente. Em 1498 já se iniciou a colonizaçâo espanhola e em 1500 a missâo sistemática, ou seja, trinta a cinquenta anos mais cedo que no Brasil. A colonizaçâo das ilhas até as décadas de 1520 e 1530, quando se conquistaram os grandes imperios asteca e inca no continente, marcaría a primeira fase da ocupaçâo espanhola do novo continente no século XVI. A informaçâo nesta fase também é fragmentaria e constitui-se predominantemente através do género epistolar. Na segunda fase, das décadas de 1520/1530 até mais ou menos 1550, abundam historias e tratados jurídico-teológicos e filosóficos sobre as conquistas que intensificaram a polémica sobre o dominio espanhol na América, a respeito do qual se desenvolveu urna importante teorizaçâo. E, por firn, a segunda metade do século seria a fase pós-conquista, que se forma por historias e epopéias que articulam a luta pelos méritos da conquista, por um lado, e a busca sistemática do saber sobre o interior da cultura indigena por outro.

Descobrimento: Idade do O u r o e riqueza asiática O texto mais importante da primeira fase da presença portuguesa na América é a famosa Carta a El-Rei Dom Manuel, sobre o achamento do Brasil do erudito Péro Vaz de Caminha, que relata, em forma de diàrio, a estadia da frota de Cabrai na nova terra que ele chama de "ilha de Vera Cruz" (Caminha 1974:84).2 A descriçâo do encontro dos portugueses com os indios em 1500 revela que os portugueses tinham consciéncia que estes nao eram os tais "indios", mas "homens novos"(Cortesâo 1967:126). h Carta é a expressäo da cesura epocal que os descobrimentos representam para a cosmografia européia. O discurso geográficoantropológico dos descobrimentos era confinado por uma "ordern prisâo" controlada por um sistema de valores centrado na religiosidade cristâ e na hierarquia civilizacional (oposiçâo "policía" versus "bárbaro") que tendía a negar ou assimilar a diferença do outro civilizacional (Barreto 1989:41s.). Recordamos que a concepçâo de mundo européia era fundamentalmente teológica: o universo era regido pelo antagonismo entre o bem e o mal, cujo campo de batalha era o homem porque nele os dois poderes edificavam seus reinos. Nesta antropologia religiosa, o homem era um ser normativo cuja destinaçâo era a salvaçâo e, por isso, estava sujeito a seguir o caminho que a Biblia delineou. A visâo cristâ do mundo e do homem, em conseqiiéncia, era valorativa e qualitativa, e nâo apreendia, mas interpretava, porque nâo buscava nem o mundo nem o homem, e sim Deus no mundo e no homem. Ver "homens novos", porém, significava para os cristâos da época classificá-los de acordo com uma antropologia normativa. E assim podemos entender a primeira

2

Para uma visào desta primeira fase com um ampio estudo sobre a Carta, cf. Giucci 1993. Cf. também a excelente análise da Carta por Barreto (Barreto 1983:169-184).

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caracterizaçâo dos nativos: sâo "pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que cobrisse suas vergonhas" (Caminha 1974:82). Isto, na época, era urna classificaçâo fundamental: nao sao cristâos e, ao mesmo tempo, sâo primitivos (porque estào "nus"). Em outras palavras: "selvagens", mas até agora desconhecidos, o que indica a cor da pele: sâo "pardos" - nâo negros como os "selvagens" até entâo conhecidos. Pero Vaz, na Carta, preocupa-se pouco com o espaço físico da "terra", porém oferece um verdadeiro estudo destes "novos" "selvagens". A característica principal é a falta·, a falta de cultura material como roupa e ferro e de cultura imaterial como, principalmente, a ausencia de religiâo e de um comportamento ordenado. Na perspectiva do autor, nos primeiros dias, mesmo já tendo criado amizade com os portugueses, qualquer coisinha assustava-os, fazendo-os fugir para longe. Isto para o autor é o que os caracteriza como "bárbaros", quase como animais: "de que tiro ser gente bestial e de pouco saber e por isso sâo tâo esquivos" (59s.). Os indios sao classificados como um zero civilizacional, como vivendo ainda no estado de natureza. Mas, por outro lado, a falta também pode ser boa - quando esta significa ausencia do mal. Exemplos disto sâo a aparente falta, já que nâo sâo cristâos, de todo tipo de crença que, nâo sendo cristâ, só poderia ser "falsa", e a aparente "inocencia" apesar da nudez. Esta, referindo-se as mulheres, ele descreve com o famoso jogo de palavras: "E suas vergonhas tâo nuas e com tanta inocencia descobertas que nâo havia ai nenhuma vergonha" (56). Tudo isto levou o autor a afirmar que os indios viviam numa simplicidade inocente sem conhecer o pecado como Adâo: "a inocencia desta gente é tal, que a d'Adâo nâo seria mais quant'a em vergonha" (81). Os indios sâo vistos como um vazio cultural que precisa ser preenchido porque precisam ser "salvos". Na antropologia religiosa acima exposta, os habitantes da "nova terra" representam para o autor urna tàbula rasa completamente isenta de cultura e de religiâo. Nâo só nâo possuem a cultura e a religiâo "verdadeiras" como também nâo possuem as "falsas", o que leva Pero Vaz de Caminha a classificá-los como "inocentes". Sobretudo, porém, considera que nâo ofereceriam resistencia à "salvaçâo" trazida pelos portugueses: "esta gente é boa e de boa simplicidade e imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar" (72). O "homem novo", pois, para os portugueses era, na realidade, um velho conhecido: era o bom selvagem concebido por teorías sobre urna aurea aetas, urna Idade do Ouro paradisiaca, formuladas por autores clássicos como Ovidio. Partindo do principio de que a cultura dos descobrimentos resulta do cruzamento entre os vetores culturáis da escolástica, do humanismo e de um racionalismo pragmático-experimental, cujo conjunto pode ser considerado como a cultura discursiva do renascimento portugués (Barreto 1989:20-22), parece plausível que esta cultura submeteu o mito da Idade do Ouro a urna inesperada atualizaçâo: pela primeira vez, este mito foi identificado com localidades geográficas concretas, a "terra nova" (Caminha 1974:31), introduzindo, assim, a mencionada terra na visâo de mundo européia.3 O fato de a "terra nova" descrita por Caminha nâo constar em nenhum mapa-múndi da época e de nâo estar prevista na cosmovisâo cristâ constituía nâo

Sobre o relacionamento do paraíso terrestre com dados geográficos exatos através dos descobrimentos, cf. Cro 1994.

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só um problema geográfico como tambémfilosofico-teològico.4A Carta, por conseguirne, apresenta-se, na realidade, nâo somente como relato dos eventos ocorridos nesta "ilha", senâo principalmente como interpretaçâo cosmológica da "terra nova" que surge como a fortunatorum insula finalmente encontrada.5 Sob esta perspectiva, a frota de Cabrai localizou a "ilha" da Idade do Ouro cujos habitantes vivem em estado de natureza e em ausencia de todo pecado. Com base nesta atualizaçâo do mito da Idade do Ouro, Caminha nega aos autóctones todo alcance civilizacional. O autor os reduz a selvagens considerados como bons já que - à primeira vista - parecem aptos para que se lhe projetem virtudes cristas fundamentáis como a bondade, a generosidade e urna inclinaçào intuitiva a adorar o Criador. O topos da bondade natural, no entanto, enquadra-se perfeitamente no discurso imperialista da expansáo ultramarina da Coroa portuguesa que Caminha extende ao novo territorio: o topos implica a conversâo instantánea dos habitantes à fé e, em conseqûência, a chegada dos portugueses (e a sua tomada de posse da terra) aparecem como missâo divina (cf. 81). A Carta, portanto, revela-se nao só como mero relato de eventos, mas sobretudo como interpretaçâo cosmográfica que insere o Novo na concepçâo de mundo tradicional, conservando-a assim. O texto apresenta-se, por conseguirne, como legitimaçâo teológica da expansáo portuguesa. A Carta instaura, deste modo, o discurso oficial do dominio portugués na América tal como será rearticulado, por exemplo, por Joâo de Barros, no capítulo Π de sua historia da expansáo portuguesa Décadas I (Barros 1945:106-116). Ao contrario de Cabrai, Cristóváo Colombo, como comandante da frota de exploraçâo da via marítima à India, fazia questäo de redigir ele mesmo os relatos de suas viagens.6 Sâo dois os textos, que conhecemos, em que ele descreve sua primeira viagem, o Diario de a bordo e a carta dirigida ao alto oficial da Corte dos Reis Católicos, Luis de Santangel, que foi enviada ainda antes de voltar à Espanha em março de 1493. O relato dos eventos da viagem nao representava somente urna obrigaçào do Almirante para com os Reis, mas sim urna atividade prioritària em que ele modelava o sucesso de sua empresa. Nâo é novidade constatar que Colombo nâo descreve o descobrimento da "América", senâo a chegada a

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A versäo historiográfica do descobrimento do Brasil por Joâo de Barros reflete em que medida a novidade desta terra constituía um problema à tripulaçào. No primeiro volume das Décadas (1552), descreve-se como a maioria dos pilotos se inclinaram a considerar a terra como ilha já que "estavam os homens tao crentes em nâo haver alguma firme ocidental a tôda a costa de Africa". Aos habitantes pareceram-lhes "corna mui nova" e "sem a comum semelhança da outra gente que tinham visto" (Barros 1945:107). A hipótese de que a qualificaçâo como "ilha" nâo seja urna descriçâo empírica senâo urna interpretaçâo cosmográfica apóia-se na informaçâo do "piloto anónimo" da frota de Cabrai: ele afirma que os oficiáis da frota se inclinaram a considerar a terra como terra firme e nao como ilha, dada a sua extensâo ("Navegaçâo" 1989:39). E provável, portanto, que Caminha tenha optado pela opiniâo minoritaria porque a teoria da ilha combina com sua interpretaçâo da terra como localidade paradisiaca. Sobre a estrategia de Colombo de impedir que se escrevessem outros diarios de bordo, cf. Varela 1989:22s.

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ilhas que ele supunha próximas ao Japâo/ Nesta evidencia, encontramos, no entanto, um importante contraste em relaçâo à Carta de Caminha, já que a concepçâo das terras encontradas se subordina à legitimaçâo da viagem que está no encontro do conhecido e nâo do novo. E possível que Caminha tenha conhecido a Carta a Luis de Santangel, tendo procurado destacá-la da sua pròpria carta no que diz respeito à classificaçâo cosmográfica da "terra nova". A carta sobre a primeira viagem de Colombo chegou a ser editada quinze vezes antes da partida da frota comandada por Cabrai, de maneira que até certo grau seja possível que o erudito Pero Vaz de Caminha tenha tido a oportunidade de lê-la.8 De todos os modos, é interessante notar que as duas cartas também se assemelham em diversos aspectos, o que pelo menos remete à teia conceptual comum que as fez surgir. Além disso, os dois textos relacionam-se por serem do mesmo género: trata-se da carta-relatório em que os exploradores apresentam à Corte nao somente urna descriçào como também urna primeira concepçâo geográfico-antropológica das "terras novas", com que também tentam legitimar "la gran vitoria" de sua viagem (Colón 1982:139). A Carta a Luis de Santangel defende, assim, a importancia da descoberta destas "Indias" com urna visâo da colonizaçâo das ilhas. No texto predominam as referencias a bens exploráveis ("ay muchas specierías y grandes minas de oro y de otros metales", Colón 1982:141) que o autor complementa com uma qualificaçâo dos autóctones como massa de mâo-de-obra entregue aos interesses imperials dos Reis Católicos: "En las tierras ay muchas minas de metales e ay gente instimable numero" (141). A classificaçâo dos "indos" como subalternos inofensivos e dóceis fundamenta-se no estado de natureza que Colombo lhes atribuí. O almirante descreve-os, de forma muito semelhante a Caminha, como "gente" sem governo, religiâo, roupa e metáis, ou seja, sem civilizaçâo. Ao mesmo tempo, salienta sua bondade e extrema generosidade. Igualmente como o escrivâo portugués, identifica os amerindios como bons selvagens. Mas, ao contrario deste, nâo insere esta qualificaçâo numa explicaçâo cosmográfica da novidade da terra baseada no mito da Idade do Ouro, senâo submete a figura do bom selvagem à promessa de riquezas asiáticas à espera dos Reis Católicos: Y allende d'esto se farán cristianos, que se inclinan al amor e cervicio de Sus Altezas y de toda la nación castellana, e procuran de aiuntar de nos dar de las cosas que tenen en abundançia que nos son necessarias. (Colón 1982:142)

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Um estudo exemplar sobre a divergencia entre a convicçào colombina de ter chegado à Asia e as versôes historiográficas que pouco depois da morte do Almirante atribuíram o descobrimento do novo continente à intençào consciente de Colombo é O'Gorman 41995. Até 1497, a Carta a Luis de Santangel foi publicada nove vezes em latim, très vezes em italiano, duas vezes em espanhol e uma vez em alemào (Colón 1982:139s.). Sobre a formaçao humanista de Caminha, cf. Cortesäo 1967:49-83. Barros dà conta de que os oficiáis da frota de Cabrai tinham as viagens de Colombo muito presentes, relatando como compararam a "terra nova" às ilhas "que se acháram por CristovSo Colon, que eram de Castela a que os castelhanos, comumente chamam Antilhas" (Barros 1945:107).

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Conquista e colonizaçao: barbarie, escravatura e virtudes cristas Só com a implantaçâo do sistema das capitanías nos anos 30 do século XVI inicia-se, no Brasil, o processo da colonizaçâo, ou seja, a ocupaçâo portuguesa do novo continente. Esta é legitimada através da cristianizaçâo dos indígenas, como consta do regimentó do primeiro governador geral, Tomé de Sousa, assinado por D. Joâo ΙΠ: "Porque a principal cousa que me moveo a mandar a povoar as ditas terras do Brasil foi pera que a jente déla se convertese a nosa santa fee católica [...]" (apud Thomas 1968:198). Os amerindios devem, por meio da convivencia com os colonos, ser introduzidos à vida crista. Os agentes formalmente encarregados da catequese sao os jesuítas, tendo os primeiros chegado ao Brasil com Tomé de Sousa em 1549. O projeto catequético parecía muito prometedor, no que diz respeito à visâo oficial da "provincia de Santa Cruz" baseada na Carta de Caminha. Ainda em 1552, por exemplo, o já mencionado Joâo de Barros retoma a versâo de Caminha ñas Décadas e conta "quam oferecido estava aquele povo pagâo a receber doutrina de sua salvaçâo, se ali houvera pessoa que os pudera entender" (Barros 1945:109). A "provincia de Santa Cruz", no entanto, entrou rapidamente na rede européia de comunicaçâo letrada. A carta Novus Mundus de Amerigo Vespucci apresenta a sensacional conclusâo de que esta terra é um "novo continente" e que, por isto, equivale a um "novo mundo". Na descriçâo deste outro "mundo", é fundamental a imagem de seus habitantes como gente vivendo na Idade do Ouro. A carta propaga esta "descoberta" em toda Europa.' Assim, a terra que a frota de Cabrai descobriu é representada como um mundo complementario ao mundo conhecido. Equivalendo a uma revoluçâo cosmográfica, a terra revela-se como continente cuja existencia nâo era tida como possível e cujas condiçôes de vida se interpretam como paradisíacas (cf. Vespucci 1992:12). As ilhas de que os espanhóis tomaram posse como "Indias", no entanto, começaram logo a ser colonizadas. Já a partir da segunda década do século XVI, disputa-se a legitimidade da escravizaçâo dos autóctones e do dominio espanhol destas ilhas. Em 1511, o dominicano Montesino ameaça os colonos de nao os absolver mais na confissáo por causa de sua atitude em relaçâo aos amerindios e, em 1512, o alto funcionário da Coroa, Palácio Rubios, fundamenta num parecer ao rei a escravidâo natural dos indios na filosofia aristotélica (cf. Pagden 1982:30ss.). A partir dos anos 20, porém, o que se entende por "Indias" muda radicalmente em conseqiiência das conquistas dos grandes impérios asteca e inca. As "Indias" passam a ser objeto de uma literatura de conquista que relata guerras contra impérios continentais. A literatura de conquista re-semantiza as "Indias" como culturas altamente desenvolvidas que oferecem riquezas fantásticas. Hernán Cortés descreve

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À primeira ediçâo (latina) de Novus Mundus de 1502/1503 seguiram até 1529 cerca de sessenta ediçôes em diversas línguas incluindo as publicaçôes'do resumo das quatro viagens de Vespucci, Lettera di Amerigo Vespucci delle isole nuouamente trouate in quattro suoi viaggi [1505/1506] (Hirsch 1976:540ss.). Sobre o impacto de Novus Mundus na Europa letrada e, especificamente, sobre a publicaçâo da traduçào latina da Lettera na Cosmograpbiae Introducilo de Martin Waldseemüller, que vincula o "novo mundo" com o nome de Vespucci, cf. Ronsin 1991.

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a "grandeza" de Moctezuma, por exemplo, com a perfeiçâo e o luxo das estatuas de metáis, pedras e penas preciosas que se encontram em seus palacios: ¿qué más grandeza puede ser que un señor bárbaro como éste tuviese contrahechas de oro y plata y piedras y plumas todas las cosas que debajo del cielo hay en su señorío, tan al natural lo de oro y plata, que no hay platero en el mundo que mejor lo hiciese, y lo de las piedras que no baste juicio comprender con qué instrumentos se hiciese tan perfecto, y lo de pluma, que ni de cera ni en ningún bordado se podría hacer tan maravillosamente? (Cortés "1994:66)

Com base no alto grau de organizaçâo social e de sofisticaçâo cultural, Cortés eleva estas "Indias" ao nivel europeu. Nelas, a Europa parece finalmente espelhar-se, o que se resume no nome que Cortés propôe a estas terras - "Nueva España del mar Océano": Por lo que yo he visto y comprendido cerca de la similitud que toda esta tierra tiene a España, así en la fertilidad como en la grandeza y fríos que en ella hace, y en otras muchas cosas que la equiparan a ella, me pareció que el más conveniente nombre para esta dicha tierra era llamarse la Nueva España del mar Océano. (Cortés "1994:96)

Sem dúvida, a atitude e o procedimento imperialistas de Cortés fundamentam-se ao mesmo tempo na profunda condenaçâo da cultura asteca como "bárbara". Sâo as descriçôes dos sacrificios humanos em funçâo da "idolatría" que formam os argumentos para a negaçâo decisiva de sua diferença. O autor explica que os astecas oferecem coraçôes humanos arrancados de corpos vivos a seus "ídolos" (64). A naturalidade, porém, com que Cortés destrói o interior de um templo na presença da elite política e religiosa asteca antecipa a violenta destruiçâo da "gran ciudad" de Tenochtitlán (65), que seguirá a esta cena. Assim, as "Indias" passam a ser configuradas como o conjunto paradoxal de policía e barbarte conjugando "la manera casi de vivir que en España" (66) com práticas religiosas que, na perspectiva espanhola, justificam a negaçâo do estatuto civilizacional.10 Este paradoxo marcará a literatura da conquista e intensificará a polémica sobre a legitimaçâo e as formas do dominio espanhol das "Indias". Quando se inicia a colonizaçâo e missâo sistemáticas na "Provincia de Santa Cruz" em 1549, colonos e missionários passam rapidamente a refutar a visào paradisiaca deste "novo mundo". Os nativos, longe de viver no estado de inocencia que as primeiras interpretaçôes cosmográficas desta terra lhes atribuiam, revelam "costumes" que nao abandonam só simplesmente através da pregaçâo da "verdade" cristâ. Pelo contrario, na perspectiva européia, alguns destes "costumes" equivalem à perdiçâo. Entre estes se distinguem a poligamia, o estado de guerra constante entre as comunidades e, principalmente, a antropofagia. Em vez de estar à espera da salvaçâo, os autóctones entregam-se a assim chamados "feiticeiros" através dos quais o "diabo" os instiga às "maldades" que representam seus "costumes". O amerindio, em suma, nâo é mais o bom, mas o mau selvagem.

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Sobre a relaçio entre barbarie e paganismo na antropologia crista medieval e pós-medieval, cf. Höffner 31972:55.

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A dinámica colonial, no entanto, complica ainda mais a situaçâo dos missionários. Os colonos, sempre carentes de mâo-de-obra escrava para suas plantaçôes de cana-de-açùcar, nâo se contentam com os escravos legáis feitos em "guerras justas". Desenvolvem teorías antropológicas que já nâo restringem a escravizaçào legal aqueles indígenas que se levantam contra os portugueses. Disto resulta um conflito, nem sempre só em nivel teórico, entre estes dois partidos coloniais: os colonos e os padres da Companhia. Os jesuítas, apesar de tudo, sustentam que os indígenas sâo homens livres. Tal conflito marca a cultura da colonizaçâo em que a partir de 1549 tanto os colonos como os missionários defendem sua argumentaçào e seus interesses. Esta cultura constitui-se sobretudo de urna voluminosa epistolografia jesuítica e de algumas obras extensas sobre a provincia que surgem no contexto da experiencia colonial. Mesmo que nao se forme a partir de uma literatura de conquista, veremos como eia se desenvolve através de intercambios significativos com a literatura espanhola sobre as "Indias" que se estrutura, apesar de todas as diferenças, na base de um conflito semelhante em torno do estatuto dos amerindios. Tal conflito é o tema da próxima obra a ser brevemente analisada: o Diálogo sobre a conversäo do gentío do primeiro provincial do Brasil, padre Manuel da Nóbrega, escrita em 1556. O Diálogo, através dos seus dois interlocutores, Gonçalo Alvarez e Matheus Nugueira, que representam, repectivamente, os colonos e os jesuítas, expôe primeiro a argumentaçào dos colonos contra a conversäo dos nativos americanos, para, depois, refútala e justificar que estes sao capazes de ser cristàos e, por isto, homens livres. Os argumentos dos colonos baseiam-se no seguirne: os indios sao bestiais porque estào dominados pelos instintos, como o desejo de matar, o òdio que os leva ao canibalismo e os "vicios" como poligamia e bebedeiras: "Sào càis em se comerem e matarem e porcos nos vicios e na maneira de se tratarem" (Nóbrega 1955a:221). Esta entrega aos instintos, na opinilo de Gonçalo Alvarez, ou seja, na argumentaçào dos colonos, constituí toda a felicidade indígena: "Estào tâo incarniçados em matar e comer, que nenhuma outra bem-aventurança sabem desejar" (220). Isto, porém, revelaría a falta natural da razào dos indios. A argumentaçào, neste ponto, recorre à filosofia de Aristóteles que estabelece que a felicidade do homem consiste na atividade da razào dominando os instintos (Aristoteles 1992:290). Homens que alcançam sua felicidade através dos instintos nào possuem, conseqiientemente, a faculdade racional. O pròprio Nóbrega retoma esta argumentaçào numa carta que escreve pouco depois da chegada ao Brasil: "Regem-se por inclinaçâo, a quai semper prona est ad malum, e apetite sensual, gente absque Consilio et sine prudentia" (Nóbrega 1955b:48). Homens sem razào nào podem ser convertidos, e, principalmente, segundo a teoria de Aristóteles do escravo naturai, sào homens, sim, mas cuja destinaçâo é servir aos homens racionais (Aristoteles 1989:79).11 Os amerindios seriam, entào, por natureza, os escravos dos portugueses. Como se vé, o ser diferente dos nativos americanos, nesta ótica, é considerado como uma desigualdade absoluta que já nào se deixa transformar no pròprio. Tendo certeza de que o pròprio ser é o ser humano pleno, os que nào podem ser convertidos no pròprio

Sobre a funçâo da teoria do escravo natural no contexto da cultura da colonizaçâo, cf. Pagden 1982:27-56.

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nâo sâo homens no sentido pleno da palavra. Gonçalo Alvarez reproduz este discurso: "Pois a pessoas mui avisadas ouvi eu dizer que estes nâo erâo proximos, porfiâo-no muito, nem tem pera si que estes sao homens como nos" (Nóbrega 1955a:220). Da parte dos missionários, depois de sete anos de catequese entre os indios, manifestouse urna certa desilusâo dado os poucos resultados deste traballio. Esta desilusâo expressa-se através da avaliaçâo negativa da pregaçâo do evangelho entre os amerindios articulada pelo personagem representante dos jesuítas no inicio do Diálogo·, "e como este gentío nam adora nada, nem cree nada, todo o que lhe dizeis se fiqua nada" (221). Mesmo assim, os padres insistem que os nativos possam adotar a fé crista. E alegam terem encontrado um método: a sujeiçâo. Do seu ponto de vista, a dominaçâo pelos instintos nâo excluí a existencia de faculdades racionais. Mas por causa dos assim chamados maus costumes, da má educaçâo e dos "feiticeiros", aquelas nâo tiveram chance - ainda - de se desenvolver. Por isto, os jesuítas acham que "primeiramente o gentío se deve sujeitar e fazê-lo viver como criaturas que sâo racionais, fazendo-lhe guardar a lei natural" como Nóbrega escreveu numa carta no ano de 1558 (Nóbrega 1955c:278). Dando-lhes, assim, primeiro a paz "corporalmente", poder-se-ia dá-la, em seguida "espiritualmente", segundo o padre Francisco Pires numa carta de 1559 (Pires 1958:160). Por este motivo, os jesuítas exigem da Coroa que use violencia contra aqueles indios que nâo desistem de fazer guerra contra os portugueses. Um trecho da carta de Nóbrega de 1558 nâo deixa dúvidas ao referir-se a indígenas revoltosos: Os que mataram a gente da ñau do Bispo se podem logo castigar e sujeitar e todos os que estâo apregoados por inimigos dos cristäos e os que querem quebrantar as pazes e [...] todos os mais que nâo quiserem sofrer o jugo justo que lhes derem e por issso se alevantarem contra os cristäos. (Nóbrega 1955c:281)

Também os indios submissos ao "jugo justo" têm que ser obrigados a se salvar. Criam-se as "aldeias" de catequese em que os pecados como andar nu, a poligamia e a antropofagia sâo colocados sob duras penas. Voltando à argumentaçâo dos jesuítas no Diálogo, os indios, uma vez dominados seus corpos, tornam-se catequizáveis. O argumento que reafirma a ausencia da razâo nos amerindios, além da sua suposta entrega aos instintos, é que estes nâo têm "policía" como, entre outros, a escrita, a filosofia e ciencias, assim como a tiveram os romanos ou os gregos. Manuel da Nóbrega, alias Matheus Nugueira (o pròprio nome do interlocutor que representa a posiçâo jesuítica já indica sua proximidade ao autor do Diálogo), contesta esta posiçâo recorrendo ao argumento da educaçâo e alega que esta, e nâo a capacidade intelectual natural, é responsável pelo estado cultural dos homens. Mas, principalmente, refuta a oposiçâo entre civilizados e primitivos baseada no racionalismo aristotélico defendendo a igualdade fundamental dos homens na sua condiçâo de criatura caída à busca da salvaçâo. Nesta antropologia cristâ, opondo a Biblia a Aristóteles, valorizam-se as virtudes cristâs, ñas quais os indios superam todos os outros povos, sobretudo pela bondade e fraternidade intracomunitárias: "antre si vivem muito amigavelmente" (Nóbrega 1955a:250). Conclui-se que os indios sâo aptíssimos para serem cristäos, eles sâo por natureza igual a todos os outros homens e, por isso, livres.

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Resumindo, deve-se notar que os missionários consideram os amerindios como homens que apresentam obstáculos à sua conversâo. Nâo obstante defendem que nâo é somente possível como também obrigatório eliminar sua diferença convertendo-a na identidade crista. A eliminaçâo da alteridade no ser dos amerindios requer o uso da força, o que evidencia o paternalismo autoritario dos missionários que consideram os nativos ñas suas aldeias como homens livres, mas em "menoridade". O Diálogo sobre a conversâo do gentío dramatiza, assim, com finalidade didática a controversia entre os colonos, de um lado, e os jesuítas, do outro, provocada pela questáo do status dos autóctones. O conflito, que a controvèrsia reflete, predomina na produçào textual da época, já que através delà os dois grupos buscam o apoio da Coroa. A epistolografia possui um lugar de destaque nesta constelaçâo sendo a carta o meio de comunicaçâo mais eficiente da época. Sobretudo os jesuítas desenvolvem urna ampia pràtica epistolográfica através da quai informam a Companhia sobre suas atividades, além de também denunciar o perigo que os colonos representam à missäo.12 Sâo freqiientes as acusaçôes de que os colonos escravizam os autóctones em massa e de que roubam as suas terras. Escreve o provincial em 1559: Pois que direi das tyranias, agravos e semrezôs que se fazem aos Yndios [...] de maneira que a sobjeiçâo do gentío nâo hé [na opiniâo dos colonos] pera se salvarem e conhecerem a Christo e viverem em justiça e rezâo, senio pera serem robados de suas roças, de seus filhos e filhas e mulheres. (Nóbrega 1955d:328)

Poucos anos depois, em 1563, imprime-se a primeira obra portuguesa sobre a colonia americana que comprova que a cultura da colonizaçâo se constituí também de formas literárias. Nisto aspira a uma estetizaçào suprema, dado que incorpora o gènero mais prestigioso: trata-se da epopéia De gestis Mendt de Saa, escrita em latim por José de Anchieta. O jesuíta recorre ao poema épico para exaltar os avanços da catequese na colonia. A obra glorifica o terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, como "herói" em cuja pessoa Deus subjugou as "naçôes selvagens" para expandir seu reino no "indómito Brasil": Foi ele [o Pai celeste] quem quis fosses tu ñas regiôes brasileiras primeiro propagador do seu bendito nome, o primeiro a vingar os ultragens do gentío inhumano e dobrar-lhe a cerviz às tuas ordens justas. Ao peso do teu braço, os altivos Brasís esqueceram seus ferozes costumes e seus sangremos ritos. Eia! novo ardor, anciäo! extermina as maldades, submete ao Deus eterno essas naçôes selvagens. (Anchieta 1970:87)

Mem de Sá é estilizado como "propagador" da fé porque cumpriu as exigencias jesuíticas de reprimir pelo uso da violencia as resistencias indígenas contra a catequese: louvam-se na obra as "expediçôes" do governador contra amerindios revoltosos e a sujeiçâo dos autócto-

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Para uma análise da epistolografia jesuítica no Brasil, cf. Hansen 1993.

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nes nas aldeias de catequese. Um lugar de destaque recebe sua defesa vitoriosa da integridade do dominio portugués e da igreja católica contra a tentativa francesa de introduzir a "heresia" no Brasil com uma colonia na Baia de Guanabara.13 O poema demonstra, assim, a subordinaçâo dos jesuítas à doutrina de Estado da Coroa portuguesa que vincula o imperio à expansäo da fé. A obra revela, ao mesmo tempo, sua dependencia da Coroa no que diz respeito ao uso da força considerado pelos missionários como soluçâo ao "horror da escuridâo idolátrica" (93). A epopéia dirige-se contra as "críticas duras" dos colonos que duvidam que "se mudem agora / costumes [dos indígenas] que se embeberam na torrente de séculos" (131-133). A segunda fase na historia colonial da América espanhola, no século XVI, apresenta grandes divergencias em relaçào à segunda fase da historia colonial brasileira. Como a colonizaçâo e a missâo se iniciaram décadas antes, a imagem do mau selvagem e o conflito entre colonos e missionários também surgiram antes. As conquistas suscitaram a produçâo de diversas obras que nâo se enquadram no género relatório como as "canas de relación". Trata-se de uma série de historias relacionadas às conquistas que em grande parte foram publicadas ¡mediatamente.14 Como Mignolo salienta, o género distingue-se do dever de informaçâo do relatório pelo propòsito de servir a verdades particulares com utilidade pública (Mignolo 31998:77). Observamos que as historias sobre a conquista correspondem a finalidades de modelar concepçoes dos eventos que se relacionam à legitimidade do dominio espanhol e de méritos particulares dos conquistadores. Nao obstante, nota-se ao mesmo tempo uma expansäo da cultura discursiva da conquista e da colonizaçâo para além destes limites genéricos. Eia alcança tratados teológicos sobre o ius naturae que redefinirlo as teorías jurídicas e políticas na Europa. Esta corrente teológica-jurídica toma seu inicio em relectio· nes universitárias com que o professor de teologia do colégio dominicano em Salamanca, Francisco de Vitoria, reage à conquista do impèrio inca no começo da década de 30. De Indis, apresentada em 1539 e publicada em 1557, é a obra que lança os fundamentos para a re-ordenaçâo do sistema das relaçôes internacionais entre os Estados na base de um ius gentium que parte do principio da liberdade natural dos povos. Tal proposta, da qual se deduziria mais tarde o direito internacional, nega a idéia de uma monarchia universalis tanto temporal como espiritual. Eia introduz, assim, "las cosas de las Indias" no cerne da filosofia política do século XVI, ou seja, no cerne da definiçâo do poder do imperador e do papa.15

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Trata-se da France Antarctique que deu origem às descriçôes francesas do Brasil de André de Thevet e Jean de Léry (cf. o artigo de Joseph Jurt no presente volume). José Fernández de Oviedo: Sumario de la natural historia de las Indias, 1526; Pedro Mártir de Angleria: Décadas de orbe novo, 1530; Francisco Jerez: Verdadera relación de la conquista del Perú, 1534; Fray Toribio de Motolinía: Historia de los indios de la Nueva España, escrita por volta de 1541; Bartolomé de las Casas: Brevísima relación de la destrucción de las Indias, 1552; Francisco López de Gomara: Historia general de las Indias, 1552; Bernal Díaz del Castillo: Historia verdadera de la conquista de la Nueva España, escrita depois de 1568. Cf. Mignolo '1998, pp. 103-105. Sobre a elaboraçào do direito internacional nos séculos XVI e XVII, cf. Kimminich 1985.

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Vitoria propôe-se neste tratado discutir "qué potestad pueden tener los reyes de España sobre los indios en el orden temporal y civil" (Vitoria 1992:103). O teólogo prova que, em primeiro lugar, os amerindios nao sao "criaturas irracionales" já que baseiam sua vida no uso da razäo: guardam "un orden en las cosas", têm cidades, levam a vida matrimonial, possuem urna organizaçâo estatal com senhorio e legislaçâo e têm atividades artesanais e comerciáis. "Todas estas cosas requieren el uso de la razón" (Vitoria 1992:115). Os "indios", por conseguirne, nâo sao escravos naturais, já que eram - antes da chegada dos espanhóis "verdaderos dueños, tanto pública como privadamente" (Vitoria 1992:116). Os títulos da ocupaçâo espanhola das "Indias" nao se legitimam, por isto, com a suposta demencia indígena nem com leis ou costumes positivos. Vitoria propôe urna legitimaçâo que se funda no direito natural: em primeiro lugar defende a "sociabilidad y comunicación natural" que permite aos espanhóis o livre trànsito e a presença nestas terras, "no causando daño a los indios". O teólogo fundamenta, assim, a comunicaçâo entre os povos no "derecho de gentes" derivado do direito natural: "se llama derecho de gentes lo que la razón natural estableció entre todas las gentes" (Vitoria 1992:137). O relacionamento entre amerindios e espanhóis é considerado deste modo como um caso particular no contexto global das relaçôes entre os povos em geral, o que provocará uma profunda reordenaçâo política do antigo mundo com base no direito internacional. Vitoria atribuí o problema da barbarie indígena, no entanto, à "mala y atrasada formación" dos amerindios que os retinha "durante muchos miles de años fuera del estado de salvación" (Vitoria 1992:115s.), motivo pelo qual os amerindios necessitam da educaçâo espanhola, o que legitma o dominio das "Indias".16 A repercussâo destas relectiones nos circuitos intelectuais foi enorme e suscitou um movimento na teologia, na lógica e no direito que passou a ser chamado de "Escola de Salamanca". Eia tornou-se o mais importante centro de formaçâo de missionários e exerceu, assim, uma influencia decisiva na conquista e colonizaçâo. Mas também submeteu o antigo mundo a um processo de adaptaçâo ao novo mundo provocando uma reformulaçâo da teologia jurídica católica.17 Esta teorizaçâo é resultado da mescla das culturas quinhentistas da conquista/colonizaçâo e da escolástica formando o que é conhecido como a escolástica ibérica tardía. Eia formou-se como resposta às noticias das conquistas e dos crimes relacionados a elas: "oímos que hay tantas muertes de hombres, tantos expolios de personas inofensivas, tantos señores desposeídos de sus bienes, que puede dudarse razonablemente si esas cosas se han hecho con injuria" (Vitoria 1992:107). Segundo a "Escola de Salamanca", a ocupaçâo espanhola das "Indias" é dependente de "títulos legítimos" definidos de maneira restritiva. A discrepancia entre estas posiçôes e a pràtica colonial forma o motivo da confrontaçâo entre os dominicanos e os defensores da conquista e da colonizaçâo. As obras relacionadas à conquista inserem-se nesta constelaçâo bipolar. A Historia de la conquista de México de Francisco López de Gomara (1552), por exemplo, é uma apologia da conquista e da pessoa de Hernán Cortés. A historia justifica a conquista salientando os barbarismos da cultura asteca e

" 17

Sobre a argumentaçào de Vitoria, cf. também Pagden 1982:60-108. Pagden 1982:60. Cf. também Höffner 31972:243-408 sobre a "Escola de Salamanca".

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recorrendo à teoria da cruzada que declara a guerra como justa quando os nâo cristâos se negam à conversäo: "Permanezca pues el nombre y memoria de quien conquistó tanta tierra, convertió tantas personas, derribó tantos dioses, excusó tanto sacrificio y comida de hombres" (Gomara 1988:6).18 A controvèrsia sobre a conquista passa a estruturar desta maneira a produçâo textual em que se articula o processo colonial. Eia representa um problema político do mais alto nivel envolvendo a pessoa do imperador como responsável pela presença espanhola ñas "Indias", o que Vitoria nao deixa de assinalar: En conclusión, si no hay más títulos que éstos [títulos ilegítimos], mal se ha contribuido a la salvación del príncipe. "Qué aprovecha al hombre - dice el Señor - conquistar todo el mundo si se pierde a sí mismo?" (Mt 16, Me S γ Le 9). (Vitoria 1992:136)

Em 1550/1551, Carlos V, em conseqüéncia, convoca em Valladolid dois representantes da posiçâo dominicana e dos conquistadores/colonos, o dominicano Bartolomé de Las Casas e o ex-historiógrafo real, Juan Ginés de Sepúlveda. As disputas entre Las Casas e Sepúlveda marcam sem dúvida o auge desta polémica em cujo centro está a questào do status antropológico-jurídico dos amerindios (cf. Hanke 31975:44-73 e Todorov 1982:186-212). A argumentaçâo de Sepúlveda foi desenvolvida em seu livro Démocrates secundus sive de justis causis belli apud Indos, provavelmente escrito em 1544, mas publicado somente em 1892." Em 1550 alcança, em Roma, a publicaçào de Apologia, urna verno resumida de Democrates secundus. Defendendo a natureza escrava dos amerindios, o autor apóia-se inteiramente em Aristóteles alegando que nâo possuem intelecto porque nao têm "polícia", como ciencias, escrita e propriedade particular e por viverem num estado de guerra constante. Reconhecemos facilmente as posiçôes dos colonos portugueses, tal como sao articuladas no Diálogo da conversäo do gentío na mesma época. E interessante notar neste contexto que - embora se contradigam em nivel discursivo - as obras, Democrates secundus e o Diálogo, coincidem no genero: ambas sao escritas em forma de diálogo em que os autores expôem seu ponto de vista por meio de um dos interlocutores. As obras revelam, deste modo, um contexto ibero-americano de circulaçâo de teorías e argumentos e de práticas discursivas em comum. Las Casas responde à argumentaçâo do ex-historiógrafo com urna voluminosa defesa do principio da liberdade dos amerindios intitulada Apologètica historia, imprimida somente no século XX. Apresentando urna grande quantidade de dados empíricos sobre as culturas indígenas e recorrendo a Vitoria, o dominicano tenta provar que os indígenas certamente vivem em sociedades e que satisfazem os critérios aristotélicos de urna sociedade civilizada. Ele demonstra que possuem grandes cidades, reis, juízes, leis, comércio e que sâo muito hábeis em assimilar a cultura européia, o que confirmaría sua capacidade intelectual. O que leva os amerindios a diferir das normas européias, no entanto, sao, segundo Las Casas, o clima e os hábitos que impediriam o desenvolvimento das capacidades mentais em que

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Em relaçâo ao conceito da guerra justa no contexto da doutrina da cruzada, cf. Höffner31972:55-82. A seguirne síntese das posiçôes de Sepúlveda e Las Casas orienta-se, em grande parte, pela análise de Pagden 1982:109-145.

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todos os homens seriam iguais. Como Pagden salienta, o dominicano tenta provar que, apesar de acentuadas diferenças culturáis, todas as sociedades se reduzem a alguns principios sociais e moráis. Para ilustrar a igualdade fundamental de culturas muito distintas, Las Casas, portanto, elaborou com a Apologética historia, pela primeira vez na Europa, um estudo "etnográfico comparativo" (Pagden 1982:122). Mignolo, por sua vez, aponta a integraçâo da "estructura argumentativa" no discurso historiografía) ài Apologética historia, que consiste da descriçâo e da narraçâo como provas da demonstraçâo (Mignolo 31998:86). Dado que esta estrutura argumentativa corresponde à demonstraçâo da capaciade racional dos indígenas, pode-se concluir que a obra é resultado de uma mistura de géneros que deriva da controvèrsia sobre o status teológico-jurídico dos amerindios. Nota-se neste caso como a pragmática da cultura da conquista/colonizaçâo nâo somente se situa no centro do contexto intelectual quinhentista baseando-se em seus discursos e géneros, como também o alarga e renova com inovaçôes argumentativas e genéricas.20 Mignolo observa que o caráter argumentativo ài Apologética historia acentúa aspectos de outra obra historiográfica do mesmo autor, Historia de las Indias, que o pròprio Las Casas define como "mixtura" (apud Mignolo 31998:84). Nesta obra, inédita até o século XIX, descreve os amerindios com um "ideal do eu", retratando-os como "verdaderos cristâos". O dominicano substituí a oposiçâo civilizado - primitivo pela oposiçâo cristäo - näo cristäo e postula a igualdade fundamental de todos os nâo cristâos. Segundo Las Casas, os indígenas distinguem-se, porém, de todos os outros pagâos por suas virtudes "cristâs" (humildade, indiferença a bens materials, obediencia etc.), motivo pelo qual os considera predestinados para serem cristâos (Todorov 1982:208-210). Semelhante "preconceito da igualdade" (Todorov 1982:210), que submete a diferença humana ao universalismo cristäo, encontramos no Diálogo de Nóbrega. Salta à vista a proximidade entre as posiçôes dos missionários dominicanos na América espanhola e dos missionários jesuítas na "Provincia de Santa Cruz" com respeito ao status indígena. Eia explica-se pela influencia que a teoria do direito natural da "Escola de Salamanca" teve na formaçâo dos missionários jesuítas. Eles eram formados em Coimbra e em Evora, onde professores espanhóis de Salamanca lecionavam: Martín de Azpilcueta Navarro, Martinho Ledesma e Luís de Molina.21 Nóbrega era estudante de Azpilcueta, com quem, entre outros, mantinha um intercambio epistolar sobre os indígenas e a catequese. Las Casas também acusou os colonos de violencia e injustiça à populaçâo indígena. Ao contràrio de Nóbrega, contudo, serviu-se do genero historiográfico para manifestar seu protesto. A monumental Historia de las Indias é também documentaçâo e denùncia do

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Nota-se, também, que o caráter "etnográfico" da obra resulta da estrutura argumentativa e nào do conteúdo informativo. Segundo Todorov, a descriçâo das culturas amerindias submete-se à argumentaçâo teológica do autor que visa refutar a tese da inferioridade dos amerindios. Assim, cada informaçâo sobre as culturas indígenas é regida por categorías valorativas - "si le livre de Las Casas a une valeur de document ethnographique aujourd'hui, c'est bien malgré l'auteur" (Todorov 1982:210). Sobre a influencia da "Escola de Salamanca" em Portugal e, particularmente, na formaçâo dos missionários jesuítas portugueses, cf. Dias 31988:191—212.

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procedimento dos conquistadores e colonos. Na Brevísima relación de la destrucción de las Indias, redigida em 1542 e impressa dez anos mais tarde, esta crítica acentua-se de forma provocadora e polémica na medida em que exige do rei a libertaçâo de todos os escravos indígenas e retrata a colonizaçâo espanhola como um sistemático genocidio: En estas ovejas mansas, y de las calidades susodichas por su Hacedor y Criador así dotadas, entraron los españoles, desde luego que las conocieran, como lobos e tigres y leones cruelísimos de muchos días hambrientos. Y otra cosa no han hecho de cuarenta años a esta parte, hasta hoy, e hoy en este día hacen, sino despedazallas, matallas, angustiallas, afligillas, atormentallas y detruillas por las estrañas y nuevas e varias e nunca otras tales vistas ni leídas ni oídas maneras de crueldad. (Las Casas 1996:77)

A Brevísima relación tem um grande sucesso editorial em nivel europeu sendo reeditada em francés (1579,1582,1594), inglés (1583), holandés (1596), alemâo (1579,1597) e latim (1598). Na primeira metade do século XVII é reeditada 26 vezes em diversas línguas. O fato, porém, de a obra só ser reeditada em espanhol em 1646, sendo logo proibida pela Inquisiçâo em 1660, indica que sua importancia editorial se restringe a outros países europeus (García Cárcel 1992:227s.). Esta observaçâo remete à funçâo que a obra exerceu nas relaçôes estrangeiras da Espanha com outras potências européias no final do século X V I . As descriçôes lascasianas da violência espanhola na America foram utilizadas pela propaganda contra a hegemonía espanhola na Europa e no mundo, como por exemplo na guerra entre a Espanha e os Países Baixos. Assim, a versào da Brevísima

relación que o protestante

Theodor de Bry publicou com 17 gravuras na sua compilaçâo America em Frankfurt em 1597, contribuiu para formar urna imagem da colonizaçâo espanhola como opressâo cruel dos amerindios que o leitor da época podia transferir com facilidade à repressâo espanhola da sublevaçâo dos Países Baixos (cf. Sievernich 1990:10). O livro de Las Casas tem, portanto, um papel de destaque na formaçâo da "leyenda negra". Trata-se de um conjunto de críticas contra a Espanha, que, como salienta García Cárcel, nao se refere somente à colonizaçâo na América como também à política, à cultura e ao caráter espanhóis. Tais críticas foram formuladas dentro e fora da Espanha e tiveram um papel significativo no contexto do debate sobre a inserçâo do país na Europa e sobretudo no ámbito das rivalidades das potencias européias (García Cárcel 1992:15). Dado que se considera a Brevísima relaáón como urna das principáis fontes da "leyenda negra", fica patente a dimensâo política da cultura da colonizaçâo que adquire urna funçâo-chave na luta pela definiçâo da ordem política européia e mundial. Eia extende-se, assim, para além da Península Ibérica a outros centros envolvidos neste conflito, formando compilaçôes como a de Theodor de Bry ou obras historiográficas como a Historia del Mondo Nuovo de Girolamo Benzoni, publicada em Veneza em 1565, uma denuncia da crueldade e da cobiça dos conquistadores espanhóis que se tornou outro bestseller internacional da época (cf. García Cárcel 1992:235s.).

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Engenhos de açùcar e pós-conquista: apologias, reivindicaçôes e buscas de saber A partir de 1570, a cultura da colonizaçâo portuguesa configura-se em géneros mais extensos, nomeadamente historias e tratados. A maioria dos autores destas obras sao jesuítas, como por exemplo Fernao Cardim, que escreveu dois tratados sobre o Brasil e os autóctones, Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notaveis que se achào assi na terra como no mar e Do principio e origem dos indios do Brasil e de seus costumes, adoraçâo e ceremonias. Escritos durante os anos 80 do século XVI, foram publicados em Londres em 1625. O roubo do manuscrito e a subseqüente publicaçào dos tratados por Samuel Purchas na sua coleçâo Purchas his Pilgrims (cf. Garcia 1980:19) demonstra que também os textos portugueses sobre a America, embora em grau reduzido, despertaram o interesse político internacional. Também de Cardim é o relatório da visitaçâo da comitiva jesuítica ao Brasil entre 1583 e 1590, redigido em duas cartas: Narrativa epistolar de urna viagem e missäo jesuítica. Outros tratados jesuíticos sâo a Informaçâo do Brasil e de suas capitanías (1584) de José de Anchieta e De algumas coisas mais notáveis do Brasil e de alguns costumes dos indios (1590) de Francisco Soares, ambos permanecem inéditos na época. Nesta fase, em 1576, aparece a Historia da provincia de Santa Cruz do humanista Pero Magalhäes de Gândavo. Junto com a epopéia De gestis Mendi de Saa é a única obra portuguesa relacionada ao Brasil que se imprime neste século. Na figura de Gândavo cruzam-se as culturas do humanismo com a da colonizaçâo, o que se evidencia também nos tercetos da autoría de Luís de Camôes que acompanham a Historia. A obra mais abrangente de todo o século, no entanto, é a Noticia do Brasil, escrita na década de 1580 por Gabriel Soares de Sousa. O que é particularmente interessante nesta obra, que também foi chamada de Tratado descritivo do Brasil, é o seu autor ter sido um colono. E, alias, o único texto sobre o Brasil e o indio do século XVI escrito por um colono. Sabendo que o autor era um rico senhor de engenho que, segundo os jesuítas, foi também mercador de indios (Serrâo IV 1971:73), espera-se que o texto defenda os interesses dos colonos. A leitura da Noticia comprova esta hipótese. O texto é urna detalhada fundamentaçâo da posiçâo anti-missionária. Dedicada ao vice-rei de Portugal, Cristóvào de Moura, e dirigida à Coroa em Madri, a Noticia tenta persuadi-la a agir de acordo com os interesses dos colonos. Eia é um exemplo de que a luta pelos indios continuava estruturando a cultura da colonizaçâo. Esta cultura passou a ser formada por tratados e historias junto com a epistolografia; tais géneros articulam a posiçâo do respectivo partido frente aos amerindios escravo por natureza ou selvagem a ser catequisado - por meio de urna argumentaçâo cada vez mais complexa que assenta num número crescente de informaçôes seletivas sobre os indios. Um dos prinicipais topoi na Noticia é o do esquecimento do Brasil pelo Reino. Este topos já se encontra na Historia de Gândavo. Vale lembrar que ele constituí um dos principáis motivos que levaram Péro Magalhäes de Gândavo a escrever o Tratado da provincia do Brasil em 1568/1569 e o Tratado da terra do Brasil em 1569/1570, duas versôes manuscritas quase idénticas que antecederam a redaçâo da Historia. Todas estas obras sâo urna apologia das riquezas naturais do Brasil tendo como finalidade atrair colonos e mais engajamento

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financeiro da Coroa para esta terra. É, porém, só com a mâo-de-obra indígena que os colonos podem tirar proveito desta riqueza. Näo ousando contestar abertamente a doutrina oficial da escravizaçâo legal, que a restringe a guerras justas, a Noticia é urna fundamentaçâo indireta, mas radical, da suposta irracionalidade do amerindio e, portanto, da sua natureza escrava. Para provar a perversidade do amerindio e a violaçâo constante da lei da natureza por este, Soares de Souza, abstendo-se de quase todo juízo de valor e condenaçâo explícitos dos indígenas, enumera urna grande quantidade de informaçôes sobre os indios. Todas estas informaçôes, que abrangem os mais diversos aspectos da vida indígena, convergem na insinuaçào da falta de capacidades racionais. Como o autor nunca a pronuncia abertamente, estas informaçôes dâo à argumentaçâo o aspecto de um traballio meramente empírico. Entre muitas outras, as principáis características sâo o estado de guerra civil constante (o que indicaría a incapacidade do amerindio de viver em paz) e a falta de fé, lei e rei que Soares de Sousa deriva da inexistencia dos fonemas "F L R grande ou dobrado" nas linguas indígenas (Soares 1989:218). O tratadista alude implicitamente ao principio aristotelico que sustenta que a lingua capacita o homem a criar urna sociedade, dado que forma conceitos que possiblitam a distinçâo entre o bem e o mal (Aristoteles 1992:78). A suposta falha lingüística aponta, nesta visâo, a barbarie natural destes homens que aparecem como incapazes de viver ordenadamente. Tal indicio da barbarie é um topos na literatura da colonizaçâo colonista. Já aparece na Historia de Gândavo, que descreve a "lingoa" dos amerindios com a mesma falta: Carece [a "lingoa"] de tres letras, conuem a saber, nam se acha nella, f, nem, 1, ne, R, cousa digna despanto, porq assi nam tem Fé, men Ley, nem Rey: & desta maneira viuem desordenadamente sem tere alem disto conta, ne peso,nem medido. (Gândavo 1969:34)

Outros topoi da barbarie que aparecem na Noticia sao, além da luxuria, dos vicios e da crueldade (o que mostraría a entrega aos instintos), o canibalismo e a dominaçâo pelo diabo. Desta enumeraçâo resulta um retrato de bestialidade perversa e falta absoluta de policía que implica que os amerindios nâo têm condiçôes de reger sobre si, o que justificaría a sua escravizaçâo pelos portugueses. Um exemplo da perversidade dos indios ressaltada no tratado é a crueldade intrafamiliar que se manifesta quando um membro da familia adoece por um longo período, o que leva os familiares a abandoná-lo por "aborrecimento": Sào tâo desamoráveis os tupinambás que quando algum está doente e a doença é comprida, logo aborrece a todos os seus e curam dele muito pouco e como o doente chega a estar mal, é logo julgado por morto e nào trabalham os seus para lhe dar vida, antes o desamparam [...]. (Sousa 1989:241)

Com isto, é claro, Sousa tenta negar o argumento da boa convivencia dos indios entre si que os jesuítas utilizam para provar o reconhecimento da lei da natureza por estes. A aparência empírica e objetiva da Noticia dissolve-se quando se comparam suas descriçôes de características indígenas com a apresentaçâo dos mesmos aspectos da cultura amerindia que se encontra nos tratados jesuíticos. Vendo a discrepancia entre a versáo dos missionários e a dos colonos ao tratarem do mesmo assunto, fica patente até que ponto estas

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informaçôes sâo manipuladas e instrumentalizadas. O topos da luxuria é um exemplo: como representante dos colonos, Soares de Sousa escreve que os indios "sao tâo luxuriantes que nâo há pecado de luxuria que nao cometam" (Sousa 1989:223). Em contrapartida, o padre José de Anchieta, por exemplo, na Informaçào do Brasil e de suas capitanías de 1584, nega haver promiscuidade e incesto e, admitindo que existem casos ¿solados de poligamia, defende que a "verdade é que em muitos há verdadeiros matrimonios 'in lege naturae'" (Anchieta 1964:46). O padre Francisco Soares igualmente afirma que "nao sao luxuriosos", salienta que "sao leáis com suas mulheres" e explica a poligamia como distinçâo política (Soares 1989:150). Nota-se, portanto, como as obras se inter-relacionam entre si através de diversos topoi referentes à cultura indígena: as mesmas características culturáis servem de argumento para apoiar a posiçâo do autor referente ao status indígena e para refutar a atitude contraria. As obras comunicam-se nestes topoi ora apoiando-se, ora contradizendose. Mais do que urna relaçâo intertextual, o fato de que cada texto remete necessariamente a outro constituí a genericidade22 destas obras, cuja razao de ser e de sentido resultam da inter-relaçào com outras obras. A tensâo argumentativa entre as obras chega também a ser exteriorizada em ataques abertos ao partido contrario. Francisco Soares responsabiliza os colonos pelas rebeliôes dos indígenas porque em "guerras injustas" os escravizam, "tendo impedido infinidade de cristandade" (Soares 1989:141). Anchieta também acusa os colonos de serem o verdadeiro problema da catequese (urna vez que haja "temor e sujeiçâo" que obrigue os indios a obedecer as leis cristas): "Por aqui se vé que os maiores impedimentos nascem dos portugueses, e o primeiro é nao haver neles zelo da salvaçào dos indios [...] antes os tém como selvagens" (Anchieta 1964:52). Gabriel Soares de Sousa, no entanto, denuncia o esforço evangélico dos jesuítas em varias passagens explícitamente como inútil "porque é este gentio tâo bárbaro que até hoje nao há nenhum que viva como cristäo, tanto que se aparta da conversaçâo dos padres oito dias" (Sousa 1989:29). Nâo é de se estranhar, pois, que o conflito entre os dois partidos coloniais gerou também uma invectiva contra a Companhia de Jesus, de autoría do mesmo colono. Num texto aparte conhecido como Capítulos e que igualmente foi entregue a Cristóvào de Moura, Gabriel Soares de Sousa acusa os padres dos mais diversos "agravos". O autor explicita sua condenaçâo da catequese que declara tempo "mal empregado", já que o indígena "nâo é capaz pera conhecer que coisa é Deus nem crer nêle" (Sousa 1942:371). A mais grave acusaçâo contra os jesuítas é que o verdadeiro motivo da sua luta contra a escravidáo ñas propriedades dos colonos e em favor da concentraçâo dos indios ñas suas aldeias é a busca de beneficio material pròprio "porque éles [os padres] sâo os que tiram os proveitos déste gentio, perque os trazem a pescar ordinariamente e por marinheiros nos seus barcos e a caçar, e nos seus curráis lhes guardam e cercam as vacas, éguas e porcos [...]" (Sousa 1942:379). Como resposta aos Capítulos, a Companhia formou uma comissäo que em 1592 refutou minuciosamente cada uma das 44 "informaçôes" de Gabriel Soares. O resultado é uma disputa de 44 acusaçôes seguidas do mesmo número de defesas e contra-acusaçôes que constituem a forma textual como os Capítulos sao conservados até hoje.

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Para o conceito de genericidade/"généricité", cf. Schaeffer 1989.

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Na base do conflito que géra a cultura da colonizaçâo está a luta pela determinaçâo dos rumos da colonia. Eia concentra-se no estatuto dos amerindios que ora representam o sustento da colonia como escravos "pera se grangearem os engenhos, e fazendas déla [da terra], porque sem éste favor despovoar-se-á" (Sousa 1942:379), ora formam os habitantes das aldeias jesuíticas "porque com os obrigar a se juntar a terem igreja, bastou para receberem a doutrina dos padres e perseverar nela até agora, e assim será sempre" (Anchieta 1964:51). Esta cultura compôe-se por diversos géneros - cartas, tratados, historias, epopéias, invectivas - cujos textos se inter-relacionam atravessando as fronteiras dos géneros e estabelecendo, assim, relaçôes intergenéricas.23 Nesta rede textual, o meio de comunicaçâo da tipografia tem um papel de destaque. A publicaçâo impressa em Portugal impôe urna argumentaçâo que se poderia determinar como discurso oficial. Já se mencionou que tanto a Historia impressa de Gândavo quanto os Tratados manuscritos sao apologias da colonizaçâo do Brasil. O que distingue a Historia dos Tratados é o contexto em que se insere a representaçâo dos amerindios. Os Tratados sao guias práticos para a colonizaçâo e estabelecem a escravizaçâo dos indios como fundamento da geraçâo de riquezas: E assy pouco a pouco enriqueçe ôs homes & viuem honrradamete na terra com mais descanso q neste Reino, porq os mesmos escrauos indios da terra buscào de comer para sy e para ôs snôrs, & desta maneira naô fazem os homes despeza com seus escrauos em mantimetos ne com suas pessoas. (Gândavo 1965:135)

Depois de descrever detalhadamente as "muitas bestiallidades" dos indios, o autor explica no capítulo "Dos Resgates" que o controle do mercado de escravos pelos jesuítas garante que "quantos jndios se comprâ saô bem Resgatados e os moradores da terra nâo deixâo por isso dir muito auante com suas fazendas" (Gândavo 1965:219,225). Na Historia, porém, tal capítulo é substituido por outro que é intitulado "Do fruito que fazem nestas partes os Padres da Companhia com sua doctrina" (Gândavo 1969:45). A obra impresssa articula a ideologia da expansâo de fé e impèrio ausente nos manuscritos. Eia anuncia a cristianizaçâo dos amerindios e que "se va edificando a religiam Christaâ por toda esta prouincia, & que ainda nella floreça vniuersalmente a nossa sancta Fé catholica" (Gândavo 1969:46). A Historia formula um discurso de legitimaçâo colonial em que a exploraçâo das riquezas materials da colonia é revelada como elemento da providéncia divina. Eia figura como 'recompensa' pela colonizaçâo que está a serviço da "gloria" de Deus e da "saluaçam de tantas almas": Finalmete q como Déos tenha de muito löge esta terra dedicada á Christandade, & o interesse seja o q mais leua os homes tras si q outra nenhua cousa q aja na vida, parece manifesto querer intertelos na terra co esta riqueza do mar, ate chegare a descobrir aqllas grades minas q a mesma terra promete, pera q assi desta maneira traga toda aqlla cega & barbara gete q habita nestas partes ao lume & conhecimento da nossa sancta Fé catholica, q sera descobrirlhe outras minas mayores no ceo [...]. (Gândavo 1969:30)

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Sobre as relaçôes intergenéricas como dinàmica inerente aos géneros, cf. Fowler 1982:251-255.

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A impressäo reveste a apologia da colonizaçâo como soluçâo à pobreza do reino (Gândavo 1969:5), que se encontra também nos Tratados (Gândavo 1965:241), da versao oficial da colonizaçâo como missäo evangélica. Eia retoma a legitimaçâo religiosa do dominio portugués na América já concebida por Caminha e articulada no Regimentó de TomédeSousa e na primeira Década de Joâo de Barros. Assim entende-se que a impressâo faça que o autor volte ao nome original da colonia que remete à "nossa redempçam" citando explícitamente Joào de Barros (Gândavo 1969:9). A obra impressa intitula-se, portanto, Historia daprouincia saeta Cruz, enquanto os manuscritos tratam do Brasil. A fase pós-conquista na América espanhola na segunda metade do século fez surgir um número de historias, tratados e epopéias impressos muito superior à produçâo textual portuguesa. Sem poder abordá-los de maneira tâo detalhada como no caso dos textos sobre o Brasil, convém apontar alguns traços significativos que permitem relacionar as duas culturas de colonizaçâo nesta fase. E indiscutível que o impèrio espanhol na América adquiriu urna dimensâo que ultrapassa a do dominio portugués em todos os sentidos: extensäo, diversidade, importancia económica e política etc. De modo análogo, a cultura da colonizaçâo relacionada ao estabelecimento deste impèrio configura-se de forma mais diversificada e de mais penetraçâo na cultura renascentista espanhola. Em 1569, Alonso de Ercilla y Zúñiga publica a primeira parte de La Araucana, sua epopéia sobre a guerra numa terra "tan remota y apartada y la postrera que los españoles han pisado por la parte del Pirú, que no se puede tener della casi noticia" (Ercilla y Zúñiga 1993:69). Os adversarios dos espanhóis sao urna pequeña naçâo indígena, que em sua aldeia nao possuem "ni muro, ni casa fuerte para su reparo, ni armas, a lo menos defensivas" (70). Mesmo que trate de uma guerra no territorio mais longínquo do impèrio contra "bárbaros" sem uma complexa organizaçâo sócio-cultural comparável as dos astecas ou incas, La Araucana ocupa um lugar de destaque na cultura de colonizaçâo espanhola. Eia inaugura uma abundante produçâo épica colonial sendo seguida ainda no século XVI pela Elegía de varones ilustres de Indias de Juan de Castellanos, cuja primera parte se publica em 1589 e que glorifica a conquista de outro territorio americano, o Novo Reino da Granada. La Araucana inicia uma renovaçâo do género dentro da literatura espanhola que, segundo a crítica atual, tem na épica colonial "sus más logradas muestras" (Piñero Ramírez 31998:162). O reconhecimento da obra de Ercilla y Zúñiga como "el más logrado de nuestros poemas narrativos" (162) explica-se também pela ambigüidade literária que surge do fato de o poema nâo somente glorificar os conquistadores. O narrador, ao contràrio, mostra-se "algo inclinado a la parte de los araucanos, tratando sus cosas y valentías más estendidamente de lo que para bárbaros se requiere", como o autor admite no prólogo (Ercilla y Zúñiga 1993:69). Portanto, é a representaçâo dos amerindios que aparece na epopéia como questâo central, e que, consagrando o género supremo na literatura renascentista espanhola, invade também o interior de sua poética. Evidentemente, o género encontrou diversas realizaçôes no ámbito da conquista dos grandes impérios. Margarita Peña chama a atençâo ao "ciclo cortesiano" de poemas épicos em que se reflete a polémica em torno de Hernán Cortés. No poema inconcluso Nuevo mundo y conquista Francisco de Terrazas levanta a questâo dos méritos

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da conquista e a insatisfaçâo dos participantes da guerra frente à figura de um Cortés que nao divide as recompensas. Lasso de la Vega, em contrapartida, glorifica Cortés como herói magnánimo nos dois poemas Corté valeroso e Mexicana, tendo sido o último publicado em 1594 (cf. Peña 1994:289-291). Nao surpreende que, ainda nesta fase, o fenómeno da conquista constituí um dos paradigmas centrais na cultura da colonizaçâo espanhola. Eia configura-o de forma dialética com base ñas inter-relaçôes textuais conflitivas que transgridem os géneros. O "ciclo cortesiano" realiza-se também na historiografía durante toda esta fase. Redigida no último terço do século XVI (mas publicada no século seguirne), a Historia verdadera de la conquista de la Nueva España de Bernal Díaz del Castillo retoma a questâo dos méritos dos soldados da conquista do México. Eia responde a histórias anteriores que exaltam a pessoa de Cortés como o único herói da conquista. A Historia de Bernal Díaz em contrapartida protagoniza o coletivo de oficiáis e soldados participantes da expediçâo e marginalizados posteriormente: [...] y más dice la verdadera Fama, que no hay memoria de ninguno de nosotros en los libros e historias que están escritas del coronista Francisco López de Gomara, ni en la del doctor Illescas, que escribió El Pontifical, ni en otros modernos coronistas, y sólo el marqués Cortés dicen en sus libros que es el que lo descubrió y conquistó, y que los capitanes y soldados que lo ganamos quedamos en blanco, sin haber memoria de nuestras personas ni conquistas, [...]. (Díaz del Castillo "1994:585)

A constante refutaçâo explícita da Historia de Gomara demonstra que a Historia verdadera de Díaz del Castillo se dirige neste contexto sobretudo contra esta obra e sua glorificaçâo de Cortés.24 A questâo dos méritos, no entanto, nâo é a única inter-relaçâo que a obra estabelece com outros textos. A Historia verdadera nâo somente reclama justas recompensas para capitâes e soldados, senâo também justifica a conquista contra questionamentos da legitimidade desta. Reconhecemos a crítica da índole dos escritos de Las Casas sobre a "destruiçâo" do México que a obra tenta invalidar desqualificando a cultura asteca com atributos como "torpedad", "suciedades" e "vicios y maldades". Enumerando topoi como sacrificios humanos em massa, canibalismo, satanismo e incesto, Díaz del Castillo realça os conquistadores como salvadores: "y les pusimos en buena policía de vivir y les enseñamos la santa doctrina" (579). A conquista aparece como "santa obra"(l).25 Nota-se, pois, como a cultura da colonizaçâo continua estruturando-se pelo conflito jurídico-teológico sobre a legitimidade da conquista cujo enfoque é o status dos amerindios. As grandes histórias escritas pelos missionários Bernardino de Sahagún, Diego Duran e José de Acosta ñas últimas décadas de Quinhentos pesquisam sistematicamente a religiâo indígena (sobretudo a religiâo asteca) na busca do saber e do dominio da "idolatría". Elas elabo-

24

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Para Manuel Alvar "Gomara es su obsesión" (Alvar J1998:128). Miguel León Portilla, porém, rejeita uma "explicaçâo" da Historia verdadera como critica à obra de Gomara por ser "bastante simplista" (León-Portilla 31985:42). Outra intergenericidade apontada freqüentemente na Historia verdadera é seu cruzamento entre crónica e romances de cavalaria (cf. León-Portilla 31985:56s.).

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ram, assim, urna visào diferenciada que admite a complexidade desta cultura e que fundamenta o reconhecimento do seu status antropológico da politia. Com o propósito missionàrio de compreender a cultura asteca, Sahagún compila doze livros sobre sua religiào, suas ciencias, sua historia etc. escritos por "naturales" em nahuatl que ele traduz ao espanhol. Ele terminou a Historia general de las cosas de la Nueva España em 1569 e revisou-a em 1585, sem poder publicá-la. A conclusào a que chega é que a catástrofe da conquista aniquilou a identidade cultural indígena. A conquista, portanto, torna-se nesta historia a causa da (aparente) barbarie indígena. A pesquisa, que dá voz aos próprios astecas, reconstrói a civilizaçâo que desabou com a chegada dos espanhóis: Esto a la letra ha acontecido a estos indios con los españoles: fueron tan atropellados y destruidos ellos y todas sus cosas, que ninguna apariencia les quedó de lo que eran antes. Así están tenidos por bárbaros y por gente de bajísimo quilate - como según verdad, en las cosas de policía echan el pie delante a muchas otras naciones que tienen gran presunción de políticos, sacando fuera algunas tiranías que su manera de regir contenía - . En esto poco que con gran trabajo se ha rebuscado parece mucho la ventaja que hicieran si todo se pudiera haber. (Sahagún >1975:18s.)

Observaçôes fináis A análise dos enunciados coloniais portugueses e espanhóis de Quinhentos revela que estes formam culturas de colonizaçào que divergem em muitos aspectos. Elas diferenciam-se sobretudo ñas dimensôes em que se configurant o que diz respeito principalmente à quantidade textual e à funçào que os enunciados coloniais exercem dentro do contexto cultural da sociedade colonizadora. A resistencia de urna naçào indígena contra o avanço do impèrio espanhol no seu mais remoto territorio é capaz de consagrar na literatura espanhola o género considerado como supremo na poética renascentista. A regiào mais periférica na América consegue, assim, avançar ao centro da literatura espanhola. O mesmo observa-se na literatura portuguesa, mas nao com respeito ao Brasil, senào à India, cujo descobrimento Luís de Camôes configura em urna das obras literárias mais celebradas desta literatura. Como paradigma central da cultura da colonizaçào espanhola revela-se a conquista americana, enquanto que o da cultura da colonizaçào portuguesa é o descobrimento da via marítima à India. A produçào textual relativa ao Brasil ocupa, portanto, um espaço subordinado dentro do conjunto da cultura da colonizaçào portuguesa. Nota-se nela, porém, as mesmas estratégias genéricas como no resto desta cultura, o que se evidencia na elevaçào literaria máxima dos eventos no Brasil adaptando a epopéia à pragmática colonial. No caso do poema De gestis Mendi de Saa, a produçào textual relativa ao Brasil até antecipa esta tendencia geral das culturas de colonizaçào. O exemplo também aponta a intensa interrelaçào destas culturas entre si. Elas apresentam claras analogías quanto à tensào que as estrutura. Esta tensào surge de posiçôes contrárias relativas ao status dos amerindios. Tais posiçôes disputam o controle das colonias: por um lado prevêem a escravizaçào geral dos amerindios "por estar certificado de sua vida e costumes que näo säo capazes pera serem forros, e merecem que os façam escravos pelos grandes delitos que têm cometido contra os

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portugueses" (Sousa 1942:379). A declaraçâo dos indígenas como escravos naturais é considerada a base do progresso económico das colonias. Por outro lado, a defesa das capacidades racionais dos autóctones constituí o fundamento da missáo evangélica que visa transformar as colonias em reinos da fé católica: [...] y en estas tierras y con esta gente, ha querido Nuestro Señor Dios restituir a la Iglesia lo que el demonio la ha robado (en) Inglaterra, Alemania y Francia, en Asia y Palestina, de lo cual quedamos muy obligados de dar gracias a Nuestro Señor y trabajar fielmente en esta su Nueva España. (Sahagún 3 1975:20)

Esta tensáo entre estratégias coloniais contrarias exerce uma funçao genérica ao gerar séries textuais em que nenhuma versao esgota a posiçâo que configura e provoca urna resposta, desencadeando um movimento intertextual. Este movimento é ao mesmo tempo intergenérico ao cruzar diversos géneros estabelecidos na composiçâo de novos enunciados. Ele é, por fim, internacional, conectando os posicionamentos das culturas da colonizaçâo espanhola e portuguesa que formam, assim, uma rede genérica comum que por sua vez se insere no contexto intelectual e político europeu.

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I. Je hais les voyages et les explorateurs. Et voici que je m'apprête à raconter mes expéditions. Mais que de temps pour m'y résoudre! Quinze ans ont passé depuis que j'ai quitté pour la dernière fois le Brésil et, pendant toutes ces années, j'ai souvent projeté d'entreprendre ce livre; chaque fois, une sorte de honte et de dégoût m'en ont empêché.1

C'est ainsi que commence Claude Lévi-Strauss lorsqu'il se met à rédiger lui-même une relation de voyage: Tristes tropiques. Π prend en même temps ses distances par rapport à la fascination moderne des voyages pour laquelle l'effort, l'aventure ou seule l'étendue du trajet importent alors que pour l'ethnologue le résultat de ses recherches seul compte. "Qu'il faille tant d'efforts, et de vaines dépenses pour atteindre l'objet de nos études ne confère aucun prix à ce qu'il faudrait plutôt considérer comme l'aspect négatif de notre métier. Les vérités que nous allons chercher si loin n'ont de valeur que dépouillées de cette gangue".2 Lévi-Strauss dénie à ces relations de voyage modernes toute valeur cognitive. Il les traite de "platitudes et de banalités", "de bribes d'informations délavés, traînant depuis un demi-siècle dans tous les manuels". Et pourtant, Lévi-Strauss s'approche lors de son premier voyage dans le Nouveau Monde du Brésil, muni d'une relation de voyage, à savoir le livre de Jean de Léry, Voyage faict en la terre du Brésil, qu'il ne rattache pourtant pas à la variante aventurière du genre mais qu'il qualifie carrément de "bréviaire de l'ethnologue".3 Son arrivée dans la baie de Guanabara fait penser à l'arrivée de Jean de Léry: "Π y a trois cent soixante-dix-huit ans presque jour pour jour, il arrivait ici avec dix autres Genevois, protestants [...]"/ Lévi-Strauss nous donne ensuite une évocation détaillée de la première tentative française de colonisation dans le Nouveau Monde. Il relate qu'il y avait dès le début du 16e siècle des expéditions françaises au Brésil, ainsi celle de Gonneville en 1503. De ces premiers contacts témoignaient une série d'emprunts français aux dialectes autochtones qui n'avaient pas passés par le canal ibérique (ananas, manioc, acajou et ainsi de suite). Grâce à ces nombreuses expéditions, le Brésil avait été en France et notamment en Normandie le pays extraeuropéen le plus connu. Et Lévi-Strauss conjure l'amitié qui avait régné alors entre Français et Indiens: "Mettant pour la première fois le pied sur la terre du Brésil, je ne puis

1

Claude Lévi-Strauss: Tristes tropiques. Paris: Presses Pocket, 1990, p. 9.

2

Ibidem, p. 9.

3

Ibidem, p. 87.

4

Ibidem, p. 87.

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me retenir d'évoquer tous ces incidents [...] qui attestaient il y a quatre cents ans l'intimité régnant entre Français et Indiens".5 La première tentative de colonisation française au Brésil remontait cependant à Nicolas Durand de Villegagnon. Le projet de Villegagnon avait été alors pleinement approuvée par l'amiral Coligny, et ceci pour deux raisons: d'une part, il s'agissait d'entrer en compétition avec les nations ibériques à un endroit où le territoire était très peu peuplé: au Brésil; d'autre part, on entendait créer un domaine pour des ressources humaines inemployées en Europe afin de les détourner ainsi de l'idée d'une guerre civile. Coligny était fasciné par l'idée utopique d'un Nouveau Monde. La France antarctique telle était la dénomination de la future colonie au Brésil - devait devenir un lieu d'entente paisible entre protestants et catholiques. Villegagnon partit de Dieppe, le 15 août 1555, et accosta dans la baie de Guanabara, le 10 novembre. Il ne s'installa pas sur la terre ferme, mais sur une petite île pour y fonder le Fort Coligny. Au sein de ce premier groupe il y avait protestants et catholiques, entre autres le père franciscain André Thevet. Villegagnon qui finissait par sympathiser avec le protestantisme s'adressa début 1556 à Calvin pour lui demander des renforts; l'île devait devenir un refuge pour des protestants persécutés. Au mois de mars 1557,14 calvinistes de Genève arrivèrent, parmi eux Jean de Léry qui n'avait que 22 ans. La vie dans cette petite colonie a été empreinte par des litiges théologiques que Lévi-Strauss s'imagine ainsi: [...] incapables de cultiver la terre pour assurer leur subsistance, dépendant pour tous leurs besoins d'une population incompréhensible qui les a d'ailleurs pris en haine, assaillis par les maladies, cette poignée de Français, qui s'étaient exposés à tous les périls pour échapper aux luttes métropolitaines et fonder un foyer où puissent coexister les croyances sous un régime de tolérance et de liberté, se trouvent pris à leur propre piège. Les protestants essayent de convertir les catholiques, et ceux-ci les protestants. Au lieu de travailler à survivre, ils passent les semaines en folles discussions: comment doit-on interpréter la Cène?6

Lorsque Villegagnon se détourna de nouveau des protestants, ceux-ci émigrèrent vers la terre ferme pour y vivre en commun avec la population autochtone. C'est à cet épisode que nous devons le livre de Jean de Léry Voyage faict en la terre du Brésil, "chef-d'œuvre de la littérature ethnographique" aux yeux de Lévi-Strauss.7 La tentative de colonisation française prit fin en mai 1560 lorsque le Fort Coligny tomba dans les mains des troupes portugaises de Mem de Sá qui devait fonder sept ans plus tard Rio de Janeiro. "Un chef-d'œuvre de la littérature ethnographique", tel est le jugement exprimé par Lévi-Strauss au sujet du livre de Jean de Léry qui paru en 1578, vingt ans après le séjour de l'auteur auprès des Tupinambá. C'est aux yeux de Lévi-Strauss le modèle d'une ethnographie qu'on désignerait aujourd'hui de participante. Le grand problème éthique et littéraire

5 6 7

Ibidem, p. 89. Ibidem, p. 90. Ibidem, p. 90.

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qui se posait, en effet, à Jean de Léry, c'était de décrire des objets, des hommes, des moeurs et des mentalités totalement inconnus des Européens.

Π. Le problème qui se posait à Jean de Léry était celui qui se pose à chaque ethnologue: Comment décrire avec ses propres instruments conceptuels une civilisation autre. C'est évident que Jean de Léry ne s'approchait pas naïvement de la civilisation Tupinambá; il se rendait compte des difficultés épistémologiques de son approche, quand il écrivit par exemple: Finalement, combien que durant environ un an que j'ai demeuré en ce pays-là j'aie été si curieux de contempler les grands et les petits que m'étant advis que je les voie toujours devant mes yeux, j'en aurai à jamais l'idée et l'image en mon entendement, si est-ce néanmoins qu'à cause de leurs gestes et contenances du tout dissemblables des nôtres, je confesse qu'il est malaisé de les bien représenter, ni par écrit, ni même par peinture. Par quoi pour en avoir le plaisir, il faut les voir et visiter en leur pays.8

Léry reconnaît la distance qui le sépare de cette civilisation différente et il mesure en même temps la difficulté de communiquer son expérience aux lecteurs européens qui ne disposaient que de leur cadre de référence spécifique. Jean de Léry a ainsi parfaitement mesuré la radicalité de la rencontre de deux civilisations qui s'ignoraient, bien qu'il ne disposât pas encore des instruments conceptuels adéquats pour traduire ce choc culturel dont parle également Lévi-Strauss dans Tristes tropiques: "Jamais l'humanité n'avait connu aussi déchirante épreuve, et jamais plus elle n'en connaîtra de pareille, à moins qu'un jour, à des millions de kilomètres du nôtre, un autre globe ne se révèle, habité par des êtres pensants".9 André Thevet, autre témoin de la tentative française de colonisation au Brésil, avait essayé dans ses relations Les singularités de la France antarctique (1558) et dans sa Cosmographie universelle (1575), d'interpréter le Nouveau Monde à travers la catégorie médiévale de l'analogie, qui insérait ce qu'on avait découvert à l'intérieur d'un univers hiérarchique préconçu. Léry, tout en étant contemporain de Thevet, ne se référait plus à cette épistémè de la similitude, pour reprendre un terme de Foucault. Il inventa lui-même un principe de classification des faits qui ne se fondait plus sur le postulat d'une similitude à l'intérieur d'une cohérence interne à l'univers: "Du moment que les phénomènes ne s'impliquent plus réciproquement, ils doivent être rangés selon un principe nouveau, empirique ou logique, mais certainement affranchi des hiérarchies spirituelles."10 Léry réfléchit constamment sur

8

Jean de Léry: Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil. Ed. Michel Contât. Lausanne: Bibliothèque romande, 1972, p. 108.

'

Claude Lévi-Strauss, op. cit., p. 79.

10

Michel Jeanneret: "Léry et Thevet: comment parler d'un monde nouveau?" in: Mélanges a la mémoire de Franco Simone. Vol. IV. Genève: Slatkine, 1983, p. 237.

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l'ordre immanent qu'il construit et qui obéit au principe de la contiguïté et il insère les faits à l'intérieur du cadre spatio-temporel à travers lequel ils ont été perçus. Ce sont trois domaines de la civilisation Tupinambá qui ont posé un problème épistémologique fondamental à Jean de Léry partant de son horizon européen: la nudité, l'anthropophagie et la religion.

ffl. Lors de la description de l'anthropologie physique des Indiens Tupinambá, Jean de Léry a été d'abord frappé par le phénomène de nudité. Les Européens ont fait la connaissance des habitants du Nouveau Monde dans des zones tropicales. Cette première rencontre devrait façonner durablement l'image européenne des Indiens. Christophe Colomb et Vespucci avaient constaté la nudité sans aucun problème. Ceux-ci se démenaient tels qu'"ils étaient sortis du ventre maternel". La nudité est associée au registre de la nature et Vespucci la rattache également à la beauté physique. Cette interprétation n'allait nullement de soi. Car pour la tradition judéo-chrétienne, le récit biblique de la Genèse déterminait l'attitude face à la nudité. Après le péché originel, Adam et Eve se couvrirent de feuilles de vigne (Gen. 3,7) et Jahwe mettait des tuniques de peaux à leur disposition (Gen. 3, 21). L'idée de la nudité a été rattachée à celle du péché de l'impudicité. Depuis la découverte de l'Antiquité greco-romaine, il existait cependant un autre type d'approche, celui d'une nudité innocente. L'horizon européen de l'époque face à ce phénomène était ainsi caractérisé par une certaine ambivalence. Après avoir décrit très minutieusement à travers sept pages l'aspect physique des Indiens Tupinambá, Jean de Léry aboutit au bilan que voici: Ainsi ayant déduit bien amplement tout ce qui se peut dire touchant l'extérieur du corps, tant des hommes que des enfants mâles américains, si maintenant en premier lieu, suivant cette description, vous vous voulez représenter un sauvage, imaginez en votre entendement un homme nu, bien formé et proportionné de ses membres, ayant tout le poil qui croît sur lui arraché [...]."

Le passage laisse clairement apparaître qu'il s'agit ici d'une représentation, d'une image des sauvages. Le sauvage est associé à la nudité et par là au registre de la nature, ce qui se constate dès le début quand l'auteur décrit les sauvages comme "aussi nus qu'ils sortent du ventre de leurs mères"12. La description qui suit contredit cependant la thèse initiale de la nudité intégrale: Les lèvres et joues fendues et des os pointus, ou des pierres vertes comme enchâssées en icelles, les oreilles percées avec des pendants dans les trous, le corps peinturé, les cuisses et jambes noircies de cette teinture du fruit genipat susmentionné; des colliers composés d'une infinité de petites

11

Jean de Léry, op. cit., p. 103.

12

Ibidem, γ. 97.

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pièces de cette grosse coquille de mer qu'ils appellent vignol, tels que je vous les ai déchiffrés, pendus au col.13 En effet, les corps des 'sauvages* ne se présentent pas dans leur nudité naturelle, mais avec une multitude de signes qui renvoient à une pratique 'culturelle': les tatouages, les ornements, les peintures sur corps. Dans cette description, on évoque les colliers, les pendants, des ornements... Mais tous ces objets ne sont pas rattachés par l'auteur à la technique culturelle qui consiste à couvrir le corps mais sont désignés comme des "accoutrements", des "parements" qui ne mettent pas en question l'attribut fondamental: "le naturel". Pour l'Européen, il n'y a qu'une seule technique culturelle quant au corps: l'habillement intégral par le moyen de vêtements; ceux-ci ont été par ailleurs offerts aux 'sauvages': "Nous autres ayant porté dans nos navires grande quantité de frises rouges, vertes, jaunes et d'autres couleurs, nous leur en faisions faire des robes et des chausses bigarrées".14 Pour les 'sauvages', la nécessité d'un habillement intégral ne s'impose pas et ils considèrent les vêtements comme des ornements et non pas comme une deuxième peau. ("Mais les uns sans rien avoir sur leur corps, chaussant aucune fois de ces chausses larges à la matelotte; les autres au contraire sans chausses vêtant des saies qui ne leur venaient que jusqu'aux fesses [...]" 15 ). André Thevet, en revanche, partant d'une vue providentialiste, concevait une évolution civilisatrice linéaire allant de la nudité vers l'habillement intégral. Les habitants d'Amérique abandonneraient au contact avec des chrétiens leur nudité "pour vestir d'une façon civile et plus humaine". Léry ne partage pas cette vue optimiste; selon lui, les indiens ne vont pas adopter le système vestimentaire occidental. Si la nudité 'naturelle' implique pour Léry d'abord l'absence de la technique culturelle de l'habillement - signe d'une non-culture - on trouve chez lui en même temps une appréciation positive de la nature comme perfection physique et santé: "Les sauvages de l'Amérique [...] n'ont le corps ni monstrueux ni prodigieux à notre égard; bien sont-ils plus forts, plus robustes et replets, plus dispos, moins sujets à maladie; et même il n'y a presque point de boiteux, de borgnes, contrefaits ni maléficiés entre eux". 16 Léry refuse ainsi un schèma d'interprétation projectif qui attribuait dès l'Antiquité les hommes des zones périphériques au domaine du monstrueux ou du prodigieux, donc à un écart par rapport à la norme biologique. Il attribue aux autochtones du Brésil beauté et santé et constate une absence presque totale de malformations physiques: "il n'y a presque point de boiteux, de borgnes, contrefaits ni maléficiés entre eux". 17 Il relève même une supériorité physique des indiens par rapport aux Européens. Ce qui frappe cependant, c'est son explication du bon état physique des indiens. L'intégrité est d'abord attribuée à des causes physiques - à savoir le climat ("le bon air et bonne température [...] sans gelées ni

13

" 15 16 17

Ibidem, p. m. ibidem, pp. 102-103. Ibidem, p. 103. Ibidem, p. 96. Ibidem, p. 96.

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grandes froidures"18). L'auteur avance ensuite des raisons psychologiques ("le peu de soin et de souci qu'ils ont des choses de ce monde"19). L'argumentation glisse enfin vers une explication morale: Et de ce fait, comme je le montrerai encore plus amplement ci-après, ou ainsi qu'ils ne puisent, en façon que ce soit en ces sources fangeuses, ou plutôt pestilentielles, dont découlent tant de ruisseaux qui nous rongent les os, sucent la moelle, atténuent le corps et consument l'esprit, bref nous empoisonnent et font mourir par-deçà devant nos cours; à savoir, en la défiance, en l'avarice qui en procède, aux procès et brouilleries, en l'envie et ambition, aussi rien de tout cela ne les tourmente, moins les domine et passionne.20

Si la nudité des indiens connote beauté et intégrité physique, on explique ces attributs donc par leur supériorité morale. Dans ce contexte, il est tout à fait logique que les indiens, selon Léry, ressentaient leur nudité comme innocente: Au reste, chose non moins étrange que difficile à croire à ceux qui ne l'ont vues, tant hommes, femmes qu'enfants, non seulement sans cacher aucune partie de leurs corps, mais aussi sans montrer aucun signe d'en avoir honte ni vergogne, demeurent et vont coutumièrement aussi nus qu'ils sortent du ventre de leurs mères.21

Ce constat s'opposait cependant à un des principes théologiques fondamentaux déduit de la Genèse. Le sentiment de honte y était présenté comme une conséquence du péché et la connaissance du péché comme une conséquence de la connaissance de la Loi. Des hommes innocents sans honte renvoyaient à l'état paradisiaque avant la chute ce qui n'était pas compatible avec le récit biblique. Le problème était théologiquement insoluble. Jean de Léry l'écarté en quelque sorte. C'est la simple description des faits qui met implicitement en question les présupposés orthodoxes: "Nous assistons dans ces textes", pense un interprète, "à une sourde érosion des croyances, à un subtil déplacement des représentations".22 Jean de Léry revient ensuite aux présupposés théologiques: "Ce n'est pas cependant que contre ce que dit la Sainte Ecriture d'Adam et d'Eve, lesquels, après le péché, reconnaissant qu'ils étaient nus furent honteux, je veuille en façon que ce soit approuver cette nudité".23 Le théologien calviniste s'oppose à une réhabilitation de la nudité telle qu'elle était propagée par les Adamites qui semblaient nier la chute: "Plutôt détesterai-je les hérétiques qui, contre le loi de nature [...] ont autrefois voulu introduire [la nudité] par-deçà".24 H reconnaît

Ibidem, Ibidem, Ibidem, Ibidem,

p. p. p. p.

96. 96. 96. 97.

Christian Marouby: Utopie et primitivismes. Essai sur l'imaginaire anthropologique à l'âge classique. Paris: Seuil, 1990, p. 132. Jean de Léry, op, cit, p. 109. Ibidem, p. 109.

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que cette 'loi de la nature' - et c'est pour le théologien l'obligation biblique - "n'est nullement observée entre nos pauvres Américains". 25 Mais cette condamnation est par la suite immédiatement relativisée. Si la nudité est rattachée dans le contexte européen à des excès sexuels, cette affirmation est mise en question par l'observation ethnographique. Les excès sexuels ne se constatent pas du côté des sauvages et de la nudité, mais du côté des Européens et du vêtement. Léry nie "que la fréquentation entre ces sauvages tout nus, et principalement parmi les femmes, incite à lubricité et paillardise", et il constate: "Cette nudité ainsi grossière en telle femme est beaucoup moins attrayante qu'on ne cuidrait".26 L'excitation sexuelle est à ses yeux plutôt motivée par la raffinesse vestimentaire des femmes européennes. Je maintiens que les attifets, fards, fausses perruques, cheveux tortillés, grands collets fraisés, vertugales, robes sur robes et autres infinies bagatelles dont les femmes et filles de par-deçà se contrefont et n'ont jamais assez, sont sans comparaison cause de plus de maux que n'est la nudité ordinaire des femmes sauvages, lesquelles cependant, quant au naturel, ne doivent rien aux autres en beauté.27

L'évocation du monde indien est ainsi pour Jean de Léry un moyen de formuler une critique morale des moeurs européennes. Il ne se contente pas uniquement d'une description; il prononce des jugements de valeur. Il s'approche de la civilisation du Nouveau Monde étant conscient des faiblesses européennes auxquelles il est, en tant que membre d'une minorité persécutée, particulièrement sensible alors que les représentants de la majorité dominante risquaient d'ériger leur propre civilisation en modèle absolu. Léry ne valorise cependant pas non plus la civilisation extra-européenne comme un modèle utopique. Il part de ses positions théologiques qui lui permettent d'affirmer des normes morales transculturelles en tant que paramètres. Sa position n'est pas unilatérale: "Afin que je dise le pro et le contra"2* - par un tel conseil, il s'incite lui-même à différencier ses jugements. Sa position se caractérise par des tensions internes; les contradictions sont exposées sans être résolues. La nudité apparaît ainsi, pour résumer sa position, comme une nonculture, ensuite comme un indice de santé et d'intégrité physique attribué à un comportement moral exemplaire. La nudité sans honte semble être en même temps en contradiction avec la loi biblique 'naturelle'; elle incite cependant beaucoup moins à la débauche sexuelle que l'habillement européen.

25

Ibidem, p. 109.

26

Ibidem,

27

Ibidem, p. 109. Ibidem, p. 228.

'

2

p. 108-109.

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IV. Une position relativiste similaire se constate au sujet de l'évaluation de l'anthropophagie des indiens Tupinambá. L'anthropophagie a figurée comme un trait caractéristique de l'image que l'Europe s'est faite du Nouveau Monde. Christophe Colomb avait distingué les autochtones exemplaires des anthropophages nommés Caribéens ou cannibales. Amerigo Vespucci a désigné les habitants du Nouveau Monde comme des 'Cannibales nus' condensant ainsi deux images stéréotypées. Dès les expéditions de Vespucci, on a localisée sur la carte les cannibales au Brésil - une idée encore renforcée par le livre de l'allemand Hans Staden datant de 1557, qui, lui, a été prisonnier des indiens Tupinambá et qui avait failli devenir victime de leur rituel anthropophagique. 29 Léry est obsédé par le problème de l'anthropophagie, ce qui s'explique par des expériences biographiques. Au bord du navire qui le ramenait en 1558 en Europe avait sévi une famine extrême. Quinze ans plus tard, il a été de nouveau témoin d'une famine dans la ville assiégée de Sancerre - famine qui avait provoqué des actes d'anthropophagie endogène. Le reproche d'anthropophagie a été proféré à l'époque à l'intérieur du discours protestant face aux catholiques, notamment au sujet des crimes de la Saint-Barthelémy. Le reproche s'est élargi ensuite vers celui de l'anthropophagie symbolique qu'on adressait aux catholiques qui croyaient en la présence réelle du Christ sous les deux espèces de l'Eucharistie. Jean de Léry mettra cette anthropophagie symbolique qui a été un sujet de discussion au Fort Coligny entre protestants et catholiques en rapport avec le cannibalisme exogène des indiens. Le gens de Villegagnon, écrit-il, "voulaient néanmoins non seulement grossièrement, plutôt que spirituellement, manger la chair de Jésus-Christ, mais qui pis était, à la manière des sauvages nommés Ouetacas [...] ils la voulaient mâcher et avaler toute crue". 30 André Thevet qui avait déjà évoqué l'anthropophagie rituelle jugeait celle-ci comme un phénomène purement négatif ("telle cruauté, digne plustôt des bestes que d'un homme''). Le jugement de Jean de Léry est plus différencié. A ses yeux, l'anthropophagie n'est pas seulement l'expression d'un instinct non-contrôlé; elle n'appartient pas au registre de la 'nature'; elle relève plutôt d'une technique 'culturelle' parce que ordonnée par un ensemble de règles. Léry décrit minutieusement - et sans en être ému outre mesure - les étapes du rituel anthropophagique. Il évoque d'abord les danses, les chants et les cérémonies de bienvenue qui durent jusqu'à sept heures. Ensuite, il décrit comment les indiens assomment la victime et préparent la chair humaine. Le prisonnier est assommé "tout ainsi que les bouchers assomment les bœufs par-deçà";31 ensuite on purifie le corps ("elles le font aussi blanc que les cuisiniers par-deçà sauraient faire un cochon de lait prêt à rôtir" 32 ). Puis il est

29

50 31 32

Hans Staden: Warhaftig Historia und bescbreibung eyner Landschaft der Wilden / Nacketen / Grimmigen Menschenfresser Leuthen / in der Newenwelt America gelegen, Marburg, 1557. Jean de Léry, op. cit., p. 77. Ibidem, p. 178. Ibidem, p. 178.

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coupé en morceaux, mais si rapidement "qu'il n'y a boucher en ce pays-ci qui puisse plus tôt démembrer un mouton", enfin il est rôti (selon "une façon de rôtir à nous inconnue"33) et on mange la chair humaine en commun, chaque membre de la communauté ayant droit à un morceau. Jean de Léry tient à souligner explicitement que ces actes d'anthropophagie ne sont pas motivés par l'instinct nutricier; ils sont plutôt la manifestation d'un processus identitaire de la tribu, destiné à intimider les ennemis potentiels de l'extérieur: Non pas cependant, ainsi qu'on pourrait estimer, qu'ils fassent cela ayant égard à la nourriture; car combien que tous confessent cette chair humaine être merveilleusement bonne et délicate, tant y néanmoins que plus par vengeance que pour le goût [...], leur principale intention est qu'en poursuivant et rongeant ainsi les morts jusqu'aux os, ils donnent par ce moyen crainte et épouvantement aux vivants.34 Léry décrit le consensus que les différentes tribus partagent au sujet de ce rituel, fondé sur une économie de la vengeance. Le prisonnier accepte son destin parce qu'il sait que sa tribu prendra revanche: "Et bien! répond-il encore (aussi résolu d'être assommé pour sa nation que Regulus fut constant à endurer la mort pour sa république romaine), mes parents me vengeront aussi".35 Léry observe d'abord le processus de l'anthropophagie et tente ensuite de le comprendre à partir de sa fonction à l'intérieur de la civilisation autochtone. Mais il ne va pas jusqu'à idéaliser ou à glorifier l'anthropophagie. Après sa description, il n'hésite pas à émettre des jugements d'ordre moral en parlant de "ces meurtres"36, "cette tant étrange tragédie"37; ces "barbares" tentaient "d'exterminer ainsi, tant qu'il leur est possible, la race de ceux contre lesquels ils ont guerre".38 La condamnation n'est pourtant pas absolue. L'auteur ne singularise pas les indiens brésiliens à travers le fait de l'anthropophagie décrite et condamnée. Il part plutôt de la thèse d'une anthropophagie universelle qui serait à condamner partout. Le cannibalisme symbolique en Europe ne lui semble pas être moins cruel: qu'on pense à "ce que font nos gros usuriers (suçant le sang et la moelle, et par conséquent mangeant tout en vie tant de veuves, orphelins et autres pauvres personnes auxquelles il vaudrait mieux couper la gorge tout d'un coup que de les faire ainsi languir) qu'on dira qu'ils sont encore plus cruels que les sauvages dont je parle".3' Léry formule ensuite le reproche de l'anthropophagie réelle au sujet des persécutions exercées par les catholiques lors de la SaintBarthelémy: "Les foies, cœurs et autres parties des corps de quelques-uns ne furent-ils pas

Ibidem, p. 179. Ibidem, p. 180. 5 Ibidem, p. 177. 6 Ibidem, p. 181. 7 Ibidem, p. 181. 8 Ibidem, p. 182. ' Ibidem, p. 185. 3 4

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mangés par les furieux meurtriers, dont les enfers ont horreur?" 40 Pour cette raison, ce ne serait pas légitime d'accuser les seuls 'sauvages' d'anthropophagie. L'anthropophagie européenne est à ses yeux pire parce qu'endogène: Pourquoi qu'on n'abhorre plus tant désormais la cruauté des sauvages anthropophages, c'est-àdire mangeurs d'hommes: car puisqu'il y en a de tels, voire d'autant plus détestables et pire au milieu de nous qu'eux qui, comme il a été vu, ne se ruent que sur les nations lesquelles leur sont ennemies, et ceux-ci se sont plongés au sang de leurs parents, voisins et compatriotes, il ne faut pas aller si loin qu'en leur pays, ni qu'en l'Amérique pour voir choses si monstrueuses et prodigieuses.41 O n ne saurait affirmer que Léry instrumentalise la description des 'cannibales' brésiliens pour dénoncer des actes - encore pires - des Européens. Le procédé comparatif sert plutôt à nuancer les jugements absolus. Cette position relativiste se retrouvera dans le chapitre 'Des cannibales' des Essais de Montaigne qui s'est inspiré de la relation de Jean de Léry. Montaigne rattache l'image des 'cannibales' au mythe de l'âge d'or. Ce type d'idéalisation ne se rencontrait pas chez Jean de Léry.

V. Π y a enfin un troisième point, la religion des Tupinambá, où le calviniste Jean de Léry se montre cependant moins relativiste. Π définit la religion exclusivement à partir de la forme particulière de sa confession. Pour cette raison, il peut se demander: "Comment donc [...], se peut-il faire que, comme bêtes brutes, ces Américains vivent sans aucune religion?"42 Le terme de 'bêtes brutes' révèle une réaction fortement émotionnelle qui surprend chez Léry. Parce qu'il ne trouve chez les Indiens aucune vision d'un dieu et aucun culte connu, il leur dénie simplement toute religion: Outre qu'ils n'ont nulle connaissance du seul et vrai Dieu, encore en sont-ils là que nonobstant la coutume de tous les anciens païens, lesquels ont eu la pluralité des dieux, et ce sont encore les idolâtres d'aujourd'hui, même les Indiens du Pérou [...] ils ne confessent ni n'adorent aucuns dieux célestes ni terrestres, et par conséquent n'ayant aucun formulaire, ni lieu député pour s'assembler, afin de faire quelque service ordinaire, ils ne prient par forme de religion, ni en public ni en particulier chose quelle qu'elle soit.43 Et pourtant, l'auteur n'entend pas contredire l'affirmation ciceronienne selon laquelle il n'y a aucun peuple - quelque barbare qu'il soit - qui n'ait le pressentiment d'une divinité. La croyance en l'immortalité de l'âme, la peur du tonnerre et des esprits malins prouveraient chez les Tupinambá le pressentiment d'un ordre surnaturel. Ils seraient cependant res-

40 41 42 43

Ibidem, p. 186. Ibidem, pp. 186-187. Ibidem, ψ. \i9. Ibidem, p. 187.

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ponsables de ne pas avoir développé à partir de cette base ("cette semence de religion") une vision claire de Dieu: "Cette crainte qu'ils ont de celui qu'ils ne veulent point connaître les rendra de tout inexcusables". 44 L'absence d'une vision d'un Dieu est, aux yeux de Léry, toujours inexcusable: "Quand les hommes ne connaissent pas leur créateur [...] cela procède de leur malice". 45 Il pense cependant qu'il aurait pu gagner les Tupinambá, vu leur religiosité potentielle, à la cause du christianisme: "Toutefois j'ai opinion, si Villegagnon ne se fût révolté de la religion réformée et que nous fussions demeurés plus longtemps en ce pays-là, qu'on en eût attiré et gagné quelques-uns à Jésus-Christ". 46 L'existence d'un peuple sans religion devait poser au théologien le problème de son insertion à l'intérieur des généalogies des peuples telles qu'elles étaient transmises par les récits bibliques. Les différences culturelles entre les peuples chrétiens et les autres ont été alors expliquées par la théorie de la dégénération naturelle, ce qui permettait de maintenir la thèse de l'origine unique de l'humanité (monogénisme). On s'est référé aux descendants des trois fils de Noè (Ham, Sem, Japhet). Les Indiens ont été insérés à l'intérieur de la lignée de Ham, le vagabond qui avait été maudit par le père, Noé, parce qu'il l'avait vu nu. L'hypothèse d'une descendance de Ham ou Cham apparaît à Léry d'abord "la conjecture plus vraisemblable qu'on pourrait amener", 47 ensuite, il semble se rétracter: " O n pourrait faire beaucoup d'objections là-dessus".48 Léry n'entend pas se fixer sur une des hypothèses et il finit par affirmer: "Mais quoi que c'en soit, tenant de ma part pour tout résolu que ce sont pauvres gens issus de la race corrompue d'Adam". 4 ' Déjà auparavant, il avait écrit d'une manière similaire: "Voilà l'inconstance de ce pauvre peuple, bel exemple de la nature corrompue de l'homme". 50 Les Indiens ne sont pas singularisés par la thèse de la descendance de Ham, mais rattachés à une catégorie universelle: celle de l'Humanité pécheresse. Cette insertion théologique implique l'idée d'une égalité fondamentale des hommes - comme pécheurs - ce qui fait apparaître les différences culturelles comme secondaires. L'anthropologie pessimiste a pourvu le calviniste Léry d'un regard ethnologue 'participant': "Au nom de son pessimisme théologique, Léry renvoie donc sauvages et Européens dos à dos", écrit un interprète à bon droit. Le résultat pratique de la doctrine calvinienne du péché, c'est ici la tolérance et le sentiment d'une fondamentale égalité parmi les hommes - égalité dans la réprobation et dans l'incertitude du salut.

44 45 46 47 41

'

4

50

Ibidem, p. m. Ibidem, p. 193. Ibidem, p. 202. Ibidem, p. 206. Ibidem, p. 206. Ibidem, pp. 206-207. Ibidem, p. 202.

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La chaleur fraternelle de Léry pour les cannibales, son étonnante disponibilité intellectuelle s'alimentent à une vision protestante, ou augustinienne, du monde.51

Léry n'a pas rattaché la société des indigènes au registre de la nature. Π explique l'écart fondamental par rapport à la 'nature' à travers un raisonnement théologique ("la nature corrompue"). Cette approche épistémologique lui a permis d'interpréter la société des Tupinambá comme une 'culture', une culture spécifique, différente de la culture européenne, mais étant sur le plan moral en certains points égale, voire supérieure à la culture européenne. Cette disjonction qui se fait en apparence au préjudice de la bonté native du sauvage s'avère en fait extraordinairement bénéfique pour l'analyse. Elle permet en effet d'isoler et de circonscrire avec netteté le champ de ce qui est déjà la culture, cette anti-nature radicale. La rupture consommée, l'exil reconnu, nulle préoccupation morale ou religieuse ne vient plus retarder l'enquête attentive de l'observateur, concentré sur l'autonomie d'un nouvel objet: la société indigène que l'ethnographie découvre en s'inventant par là même.52

La thèse théologique de l'égalité fondamentale des hommes en tant que pécheurs a renforcé l'idée de l'unité du genre humain et elle permettait de prendre au sérieux les représentants d'une autre civilisation. Léry n'a plus vu, comme un Thevet, les autochtones du Brésil comme une curiosité exotique, mais commes des partenaires réels. Le récit de Thevet a renforcé l'idée d'une supériorité de la France et de l'Europe; avec Léry commence un processus critique de réflexion sur les présupposés de la civilisation européenne, un processus qui trouvera un premier accomplissement avec Rousseau, et dans lequel s'insérera un Lévi-Strauss désignant Rousseau comme "le plus ethnographe des philosophes" et traitant le livre de Jean de Léry de "chef-d'œuvre de la littérature ethnographique".

51

Michel Jeanneret, art. «t., p. 233.

52

Frank Lestringant: "Le cannibalisme des 'Cannibales' Π. De Montaigne à Malthus", in: Bulletin de la Société des Amis de Montaigne, 11/12,1982, p. 37.

Francisco Foot Hardman

Larissa e o sonho das passagens: historia como deslocamento

Para Julianne e Eva, alunas do LAI/FU-Berlin Para os amigos Ligia e Gereon, bons companheiros de viagem "La nuit était tombée, nuit profondément obscure. Nous étions tous épuisés de fatigue, les yeux éblouis et l'esprit frappé de tant d'impressions diverses dont les imagesfinissaientpar se confondre." (Visconde de Taunay, La retraite de Laguna) "L'unité d'une époque n'est qu'un effet de perspective, ou un malentendu.'' (Georges Gusdorf, Les sciences humaines et la pensée occidentale, IX) "Aprender de la historia que nada se puede aprender de ella." (Elias Canetti, El suplicio de las moscas) "Me ocurría a veces que todo se dejaba andar, se ablandaba y cedía terreno, aceptando sin resistencia que se pudiera ir aside una cosa a otra." 0ulio Cortázar, "El otro cielo") É que às vezes ocorrem-me ainda certas passagens, e entre elas outras certas tantas. Palavra täo carregada de sentidos - geográficos, históricos, poéticos - será inevitável, nessa passagem de século (e milenio), associarmos o termo passagens, quase sempre tomado no plural, ao monumental mosaico metafórico que Walter Benjamin desenhou a propòsito da cidade de Paris como capital cultural do século XIX. Mas deixemos por ora tal presença que, de resto tao marcante, continuará assombrando, mesmo que nâo se queira, nossas associaçôes. Desejo apenas lembrar, de inicio, alguns outros sentidos produtivos de passagem na lingua portuguesa. Passagem pode significar urna mudança entre lugares, graus ou modalidades de açâo ou discurso, como quando dizemos: "a passagem da teoria à pràtica". Passagem é também o ato ou efeito do verbo passar, com todas as implicaçôes de significado ai contidas. E, no territorio da escritura, passagem equivale a fragmento textual, trecho de um texto maior escolhido por alguém para ser lido ou citado separadamente. Há, por outro lado, o sentido mais utilitàrio e materialista de passagem, associada aquí Λ passe ou passaporte, como bilhete de acesso a meios públicos de transporte - trens, bondes, ônibus, aviôes e navios. E dai também a palavra derivada -passageiro - para designar o usuàrio desses veiculos, e que sugere tratar-se, assim, de viajante de curta duraçâo, transitòrio ou em trànsito, abrindo-se aquí todo um universo metafórico-poético de imagens bastante usadas, como quando se diz, por exemplo, "noites passageiras" ou "mundo passageiro". Mas para procedermos, enfim, à passagem desse introito à trama propriamente dita Larissa como passagem possui esse duplo ss, nenhum espelho minimamente reconfortante se insinua aquí, pois entre Larissa e as passagens há o incomensurável da dor de todo

Larissa e o sonho das passagens: historia como deslocamento

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deslocamento, da historia que está sempre a narrar a dor da distancia, da palavra que nâo é régua nem esquadro mas destilado de um barril feroz, eco de vozes apenas assinaladas, ossuàrio de corpos, dizem, outrora felizes - , seria bom lembrar de um sentido mais físico, topográfico de passagem, alguma vez vinculado mesmo a estratégia geográfico-militar, próximo em geral da experiencia em caminho estreito, vereda difícil. Caminho ou vereda que dâo acesso, afinal, a outro lado da fronteira entre países, por exemplo, ou à outra margem do rio, passagem tal que, se atravessada, desencadeia peripecias que se fazem acompanhar muitas vezes, na historia literária, da narrativa épico-dramática. A travessia da passagem, nesse passo, pode valer a salvaçâo. Ou perdiçâo, como na passagem do sangue pelo buraco na pele de Larissa depois daquele cañivete cortante. Pois muitas vezes a passagem pode alimentar desastres. Assim, nessa obra fundadora da nacionalidade romántica no Brasil, escrita em francés pelo Visconde de Taunay - La retraite de Laguna - , narra-se uma operaçâo militar que redundou em grave derrota do exército brasileiro na guerra contra o Paraguai (1864-70); o relato está repleto de passagens, como a passagem do Apa, rio de fronteira, e outras passagens fluviais: do riacho das Cruzes, do Prata e do Miranda, todos eles cursos estratégicos. Se a geografía, pois, nao salva, convém passar do plano desse mapeamento ao das imagens de algumas das metáforas históricas das passagens, tomando-se as produçôes da historia social moderna - e, ai dentro, as construçôes de historias latino-americanas e, dentro délas por sua vez, as historias traçadas sobre um territorio apropriado como Brasil como experiéncia da des-locaçào, historia como deslocamento da dor de todo deslocamento, sonho acordado dessas passagens que, transcorrendo em lugares bem delimitados no espaço e bem ditos no mapa, sâo, a rigor, travessias no tempo. Sâo transporte entre épocas, mesmo que as fotos de Larissa estejam agora manchadas e o velho truque do fotógrafo antiquàrio nâo passe de um truque. E assim ouvimos amiúde que o tempo passa, voa, escoa, sempre o mesmo e tenebroso aviso da "passagem das horas", de que a historia, a memoria e o messias talvez nos salvariam. Mas, aqui, fixemos a sensaçâo, que foi dos románticos antes dos surrealistas e de nós, de que o tempo passa diferente ñas passagens, que existe, por conta disso, propriamente, um tempo das passagens e que o tempo là fora, para aquém ou para além das entradas e saídas, pertence a outros espaços-tempos, talvez porque regido por outro céu, neste caso o verdadeiro, talvez que com alguma dose de sorte, acaso à vera feliz, consigamos chegar até là, "a ese falso cielo de estucos y claraboias sucias, a esa noche artificial que ignoraba la estupidez del día y del sol ahí afuera".1 A tal desejo de transporte poderia responder Pedro Páramo, nessa Cornala fantasmagòrica e arruinada, que tantas passagens enfeixa sobre a historia e o labirinto das culturas ñas Américas: 'Con tal de que no sea una nueva noche', pensaba el.

1

Julio Cortázar: "El otro cielo", in: Todos losfuegos elfuego. Buenos Aires: Sudamericana, 1966, p. 168.

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Porque tenía miedo de las noches que le llenaban de fantasmas la oscuridad. De encerrarse con sus fantasmas. De eso tenía miedo.2

Destino de que, com efeito, o Ocidente nâo escapa, se considerarmos este intervalo ambiguo e abissai entre significante e significado, em que se inscrevem e misturam o misterio poético, as passagens mágicas entre infancia e historia, mas igualmente o perigo iminente de sermos devorados pela esfinge, passagem que, povoada por fantasmas ainda nâo nomeados, é a única vereda possível à palavra, que torna reconhecíveis nossos exercícios tipográficos ... Que oferece sentidos permutáveis pelos fantasmas da linguagem (e da historia), fazendo com que as noites sejam, ao menos para isso, propicias.3

O Oriente fica aqui Transfiguraçôes de espaços-tempos tornam-se freqüentes ñas narrativas de cronistas e viajantes, após o alargamento das referencias geográficas possibilitado pelas grandes navegaçôes e descobertas. Esse processo, crescente desde o século XVI, conheceu novo influxo e desdobramento na primeira metade do século XIX, sob impacto do Romantismo, que veio valorizar ao extremo o mito das fronteiras e a exploraçâo dos confins, dando margem a novas perspectivas de representaçâo da pluralidade dos mundos culturáis, em particular se valendo de imagens e discursos do orientalismo em voga. E assim que o ideólogo Volney, autor de Voyage en Egypte et en Sirie (1787) e de Les ruines: ou méditation sur les révolutions des empires (1791), chega até as Américas, tanto ao Norte, com a viagem pessoal do escritor aos Estados Unidos e sua amizade proficua com Thomaz Jefferson,4 quanto ao Sul, com a leitura, em primeira mào, de seus textos pelo grupo de revoltosos contra o poder colonial em Salvador, Bahia, em torno de 1798.5 Logo mais, para além do plano da circulaçào de idéias, imagens poéticas das ruinas orientais e da solitude dos desertos árabes começaram a transmigrar, seja para os pampas argentinos, na prosa fundadora de Sarmiento e Alberdi,6

2

Juan Rulfo: Toda la obra. Madrid/París: Col. Archivos, 1992, p. 303.

3

Inspiro-me aqui no belo conjunto de ensaios de Giorgio Agamben: Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale. Torino: Einaudi, 1993 [1977]. Cf. também, do mesmo autor: Infanzia e storia: distruzione dell'esperienza e origine della storia. Torino: Einaudi, 1978.

4

Cf. Gilbert Chinard: Volney et l'Amérique. Baltimore: Johns Hopkins Press; Paris: PUF, 1923. Cf. também: Jean Gaulmier: L'idéologue Volney (1757-1820): contribution à l'histoire de l'orientalisme en France. Genève/Paris: Slatkine Reprints, 1980.

5

Cf. Katia de Queirós Mattoso: Presença francesa no movimento democrático baiano de 1798. Salvador: Itapuà, 1969; István Jancsó: Na Bahia, contra o Impèrio: historia do ensato de sediçào de 1798. Sâo Paulo: Hucitec; Salvador: Edufba, 1996.

6

Cf., p. ex.: Domingo F. Sarmiento: Facundo. Civilización y barbarie. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1977, pp. 26-27 e p. 37, nota 14. Sobre as imagens do "vértigo del vacío" em Alberdi e Sarmiento, cf. Natalio R. Botana: La tradición republicana: Alberdi, Sarmiento y las ideas políticas de su tiempo. Buenos Aires: Sudamericana, 1984.

Larissa e o sonho das passagens: historia como deslocamento

219

seja para as paisagens da solidâo nos cerrados vazios do Centro-Oeste brasileiro, em narrativas de viagens ou prosas evocativas, como em alguns relatos de Hercule Florence e Visconde de Taunay.7 Insisto nessas passagens orientais, porque seu imaginario terá sido muito atuante ñas literaturas às voltas com novos ou imensos territorios a serem abordados, no século XIX, pelas linguagens da Naçâo e pelas legislaçôes do Estado, entre eles os da Rùssia, da América do Norte, do México, da Argentina e do Brasil. Além do obvio e já bastante comentado tema do exotismo, parece que os labirintos das cidades perdidas de Aladim penetram ñas paisagens inventadas pelo romantismo oitocentista, na Europa e alhures, devido a certos aspectos: a) seu pròprio caráter labirintico associa-se ao tema das passagens parisienses, em que ornamento, arabescos, artificio e esconderijo sâo alguns dos componentes que se condensam em atmosfera de encanto, desvio, diversao e escapismo; b) no aspecto temporal, o que conta, aqui, é a produçâo da sensaçào de viagem no tempo, de corte entre épocas, de quebra ñas seqüéncias cronológicas, de diferença abrupta dos ritmos nos eventos históricos interiores e exteriores; c) mediante procedimentos da estética do sublime, fixa-se, nessas imagens transportadas, a oposiçâo entre um "mundo exterior" dominado pelas forças brutas da natureza (ou já do mercado) e, por isso mesmo, imenso, inóspito, incontrolável; e um "mundo interior" dominado pelo mistério, cobiça, luxuria e jogo. E como se o espirito romántico da viagem, agora, se interiorizasse. E as paisagens naturais fossem substituidas pelos artefatos da cidade. Entreter-se nessa dinamica labirintica pode ser prazeroso, mas talvez, por isso mesmo, fatal. Este "sentimento de nao estar de todo" de que nos fala Cortázar, em sua magistral colagem La vuelta al día en ochenta mundos (1967), imagem que inspirou Flora Süssekind ao analisar os olhares deslocados na literatura dos viajantes, no século XIX, no Brasil,8 talvez tenha, ai, no tema das passagens e dos esconderijos, nesse estranhamento de um Oriente que, inventa-

7

Penso em especial na impressionante descriçâo da Chapada dos Guimarâes feita por H. Florence em seu diario da expediçâo Langsdorfs vide Viagem fluvial do Tietêao Amazonas - de 1825 a 1829. Sào Paulo: Cultrix/Edusp, 1977 [1875]. Quanto a Taunay, poderia destacar, entre tantas passagens, o imaginário mobilizado para evocar a cidade de Vila Bela, no rio Guaporé, onde viera a morrer o tio e pintor Adrien Taunay, na mesma expediçâo Langsdorff, num livro inacabado e primoroso: cf. A.E. Taunay: A cidade do ouro e das ruinas. Sâo Paulo: Melhoramentos, 1923 [1891]. As repercussôes desse imaginário na literatura brasileira pré-modernista do período 1890-1920 serio enormes: cf. F. Foot Hardman: "Antigos mapas gizados à ventura", in: Letterature d'America. Roma: Univ. Roma "La SapienzaVBulzoni, X (45/46), 1992, pp. 87-114; sobre a presença dessas imagens em Euclides da Cunha, cf. F. Foot Hardman: "Brutalité antique: Histoire et ruines dans Euclides da Cunha", in: Katia de Queiros Mattoso (ed.). Littérature/Histoire: regards croisés. Paris: Université de Paris-Sorbonne, 1996, pp. 125-142.

1

Cf. Julio Cortázar: "Del sentimiento de no estar del todo", in: La vuelta al día en ochenta mundos. Buenos Aires: Siglo XXI, 41968, pp. 21-26 e Flora Süssekind: O Brasil nào é longe daqui. Sâo Paulo: Cia. das Letras, 1990.

220

Francisco Foot Hardman

do, adquire vida pròpria aqui mesmo defronte aos nossos olhos, urna de suas primeiras manifestaçôes - Larissa, que supostamente desembarcara de Odessa, mas é difícil afirmar com certeza: como estabelecer bases geográficas sólidas ou mesmo dissertar sobre a insondável arte de se atribuir um nome de guerra? Oriente que está aqui, por exemplo, nos labirintos legendários de Alhambra, esta passagem da Arábia na Andaluzia, que Washington Irving recriou como escritor viajante nos Estados Unidos dos anos 1820.' Está, um sáculo depois, na magia com que o personagem-narrador de Joyce soletra as sílabas da palavra "Arábia", num conto homónimo incluido no volume Dubliners.10

E está certamente na atmosfera surreal e inteiramente

deslocada que Louis Aragon recriou ao narrar aventuras na antiga Passage de l'Opera, hoje já nâo mais existente, bem como ñas linhas tortuosas do Pare des Buttes Chaumont,

neste

livro "formador" de Benjamin e Cortázar que é Le paysan de Paris (1926).11 Esconderijos por onde se escapa do espaço-tempo devorador da esfinge moderna, ou que ao menos proporcionam tal ilusâo: nossas associaçôes levam-nos compulsoriamente à presença do conto fantástico de Irving, "Rip Van Winckle", 12 tâo divulgado no Brasil, parte integrante de nosso imaginario infantil, em que se configura urna oposiçâo radical entre o espaço-tempo da fundaçào nacional dos Estados Unidos - público, coletivo e prosaico - e o espaço-tempo ancestral e lendário da caverna ñas montanhas, onde urna noite de devaneio, jogo e bebida com os fantasmas-duendes de velhos navegadores pioneiros da colonizaçâo pode ser equivalente ao transcurso de toda urna vida no seio da comunidade-pátria. Forçoso recordar, aqui também, as passagens mágicas e universais de Lewis Carroll, nessas mil Alices extraviadas pelos espaços-tempos encantados que uma toca de coelho ou uma travessia de espelho sao capazes de desencadear.13 O sonho de todas essas passagens deve conduzir, afinal, a uma possível historiografía do deslocamento, uma das maneiras de expressar a pròpria deslocaçâo da historia que, nessa perspectiva, aparece distante do lugar para eia concebido pelos filósofos da historia. Porquanto, antes de mais nada, é uma historia ancorada na geografía, isto é, interessada ñas narrativas e marcas dos territorios que os homens percorrem e atravessam, seja em teste-

9 10

" 12

13

Washington Irving: Narrativas da Alhambra. Sào Paulo: Bras iliense, 1959. James Joyce: "Araby", in: Dubliners (1914). In: The Essential James Joyce. London: Grafton Books, 1989, pp. 35-40. L. Aragon: Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1984. Washington Irving: "Rip Van Winckle", in: The Sketch Book. Vol. I. New York/London: G. P. Putnam's Sons, 1848, pp. 42-74. Cf. também, na mesma vertente de um espaço regido pela temporalidade do mito e do sonho, do mesmo autor, a novela fantástica: "The Legend of Sleepy Hollow", in: op. cit. Vol. Π, pp. 248-303. A primeira ediçâo dessas narrativas é de 1819. Uma análise muito interessante dessas historias na perspectiva de verificar as relaçoes de seus espaços de encantamento com o "fantástico das origens" de um imaginario nacional encontra-se em Bernard Terramorsi: Le mauvais rêve américain: les origines du fantastique et le fantastique des origines aus Etats-Unis. Paris: L'Harmattan; Saint-Denis: Université de La Réunion, 1994. Lewis Carroll: The Annotated Alice. Ed. Martin Gardner. London: Penguin Books, 1970. Incluí Alice's Adventures in Wonderland [1865] e Through the Looking-Glass [1871],

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221

munhos pessoais ou relatos ficticios, seja ñas formas híbridas dessas duas modalidades discursivas. Em segundo lugar, é urna historia "onírica", já que o sonho pode ser seu objeto e, ao contrario do que se costumou afirmar sobre a condiçào dos "povos adormecidos, portanto sem historia", deve-se imaginar algo como uma historia feita a partir de restos de sonhos (leves ou pesadelos), em que a lentidáo dos movimentos e a afasia lingüística e conceptual podem fazer frente à razäo instrumental da historia solar, desvelando fantasmas que só a noite propiciou que fossem historiados. Larissa, mineira na origem, temia que o espirito de urna tal Mariazinha a dominasse ñas noites polvorosas do Triángulo. Na verdade - quem duvida disso? - , nao conhecera as antigas estancias hidrominerais, a estrada de Cambuquira, nem tampouco Aguas de Contendas. Estava só, gritando. Porque, finalmente, trata-se de uma historia de vazios e solidôes, ou seja, os confins geográficos ou imaginarios, os limites que os mapas e as oraçôes nos assinalaram nâo estâo "à margem da historia", nem "antes da historia", mas deixam igualmente sinais, rastros, vestigios, marcas e, sobretudo, pegadas que os remetem, como espaços cartografáveis, ao mundo dos caminhos e passagens. No Brasil, tal tópico reveste-se de suma importancia, já que a historiografía do país foi, durante muito tempo, perante a violencia do processo civilizatório e as necessidades de conquista do territorio e demarcaçào ou ampliaçâo de fronteiras, produtora privilegiada desses intermináveis inventarios dos caminhos, divisas e veredas. E boa parte da literatura romàntica e naturalista seguirá essa vertente, fazendo da experiencia de incorporaçâo do territòrio seu motivo condutor.14

Historia feita com pegadas Nâo seria preciso estender-se exaustivamente sobre essa tendencia. Bastaría lembrar obras da linhagem de Capistrano de Abreu,15 na virada do século e, após 1930, alguns ensaios de Sergio Buarque de Holanda,16 para ilustrar de modo significativo este tòpico. Caminhos e fronteiras, cuja primeira ediçâo data de 1957, abre-se, por sinal, com um estudo monográfico primoroso intitulado "Veredas do pé posto", a propósito desse saber pràtico que o nomadismo dos povos indígenas soube trilhar, ao percorrerem, como andarilhos descalços, territorios desconhecidos sertôes adentro, palmilhando vazios - e depois, no seu encalço, os predadores civilizados - , deixando arabescos nao-alfabéticos confundidos em meio as

14

Ocorre-me, entre outros, o exemplo do romance Canaà, de Graça Aranha, de 1902, em que a utopia de uma comunidade de colonos ¡migrantes (os dois protagonistas sâo alemïes), livre das peias do Estado, choca-se com a chegada, em pleno interior do estado periférico do Espirito Santo, dos representantes e marcos da jurisdiçâo nacional.

15

Cf. Capistrano de Abreu: Capítulos de historia colonial, 1500-1800 & Os caminhos antigas e o povoamento do Brasil. Brasilia: UnB, s 1963. (l"eds.: 1907, Capítulos...·,1930, Os caminhos..).

"

Cf., entre outros: Sergio Buarque de Holanda: Monçôes. Sào Paulo: Brasiliense 3 1990 [1945]; Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: José Olympio, 2 1975 [1957]; - O extremo oeste. Sao Paulo: Brasiliense, 1986.

222

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pegadas no barro e no pó, ou entäo mapas icônicos esboçados na areia, num estranho sistema combinatorio, que reunia artes milenares da memoria, da observaçâo e orientaçao no mato com a paixâo compartilhada pelo enveredar-se nos descaminhos. Essas "veredas do pé posto" que o historiador salvou do descaso já haviam sido, com efeito, apontadas por outros viajantes e escritores, valendo destacar, aqui, Claude LéviStrauss em Tristes tropiques (1955)17 e, muito antes disso, Visconde de Taunay, que, em seu primeiro livro publicado, narrativa iniciática de viagem ao cenário da guerra contra o Paraguai, assim anotava: Ai achavam-se vestigios da passagem de numerosa comitiva, e, ao aclarar o dia, reconheceram os soldados serem pisadas de indios, a despeito de nào apreciarmos os sinais que diferençassem essas pegadas, das de qualquer outra planta de pé, como com razào o afiançavam eles. Esses homens sào de urna sagacidade espantosa; nunca se enganam e conhecem perfeitamente os rastos de todos os animais. Ao depois, vimos nos indios demonstraçâo de um tino tào fino, que reconhecem, pela impressào do pé no terreno, a pessoa que a deixara."

Se, nessa passagem, Taunay narra-nos a incrivel capacidade de acerto do soldado-sertanejo ou do indio no sentido de desvendamento de sinais icônicos e sua identificaçâo individualizada, Valeria contrastá-la com um trecho de Euclides da Cunha, em Peru versus Bolivia, ensaio sobre a questâo histórico-diplomática dos limites entre os dois países sul-americanos vizinhos, onde o que sobressai, ao contrario, sào os erros tipográficos dos antigos cronistas e viajantes, nessa especie de encenaçâo épico-dramática do velho proverbio - "escrever certo por linhas tortas": Os antigos mapas sul-americanos têm às vezes a eloqüencia de seus próprios erros. [...] os mais falsos desenhadores do Novo Mundo foram exatos cronistas de seus primeiros días. A figura do continente deformado [...] é, certo, incorretíssima. Mas tem rigorismos fotográficos no retratar urna época. Sem o quererem, os cartógrafos [...] desenhavam-lhe as sociedades nascentes; e os seus riscos incorretos, gizados à ventura, conforme lhos dilava a fantasia, tornam-se linhas estranhamente descritivas. Num prodigio de síntese, valem livros."

O grande prosador de Oí sertôes, engenheiro militar e expedicionario oficial do governo no Amazonas e Acre, no Alto rio Purus, na fronteira brasileiro-peruana, em 1905, foi também eximio cartógrafo. Intuía, assim, nesse fragmento, a historiografía que podía se forjar desses desenhos disformes, desses rabiscos incorretos, dessas falsas e tortuosas linhas, desses mapas fantásticos riscados ao acaso, escritura como que produzida na fantasmagoría de retratos tirados sem querer (lembro-me aqui do paralelo possível com o drama revelado - ou velado

17

Claude Lévi-Strauss: Tristes tropiques. Paris: Pion, 1955. A primeira traduçào brasileira é da editora Anhembi (Sâo Paulo 1957) e a mais recente, da Companhia das Letras (Sào Paulo 1996).

18

Alfredo d'Escragnolle Taunay: Seenas de viagem: exploraçâo entre osríosTaquary eAquidauana no districto de Miranda. Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1868, p. 68.

19

Euclides da Cunha: Peru versus Bolivia. Sào Paulo: Cultrix; Brasilia: INL, 1975 [1907], p. 49.

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223

para sempre? - que a arte fotográfica desempenha no magistral conto de Cortázar "Las babas del diablo*,20 fonte inspiradora do também notável filme de Antonioni, Blow up). N o último ensaio que publicou em livro, no ano de 1909, e que encerra o volume À margem da historia, Euclides da Cunha, nesse texto enigmático que se chama "Estrelas indecifráveis",21 esboça um percurso que vai do misterio astronómico em torno da trajetória de algumas "estrelas errantes" (na verdade as supernovas, ainda indeterminadas pela ciencia), à lenda crista sobre a passagem dos reis Magos no deserto, guiados por um desses "astros volúveis". Há, no texto, como que urna encenaçâo "orientalizada" que se pauta numa fala estranila, numa prosa mesclada entre técnica e mito capaz de produzir urna sorte de messianismo científico-religioso. Nesse andamento, na essência romántico, poderia reintroduzir-se nâo a decifraçào pela palavra da escritura nem pelo cálculo algébrico, de resto impraticáveis naquele estágio da ciencia e da linguagem, mas a iluminaçâo vinda deste "otro mundo, el del cielo alto y sin guirnaldas de la calle".22 Luz erradia na noite das caravanas que pode, para além da melancolía lunar do Oriente, abrir passagem em seu passo ñas areias infinitas do deserto, a essa outra historia feita com pegadas.23 Mas a força poética originària das passagens cobertas e galerías reside nao no céu "verdadeiro e alto", e sim neste "outro céu", falso, "céu mais próximo", porém, feito com

20

21

22 23

Julio Cortázar: "As babas do diabo" [1959], in: As armas secretas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994 (trad. bras, de Eric Nepomuceno). Euclides da Cunha: "Estrelas indecifráveis'', in: À margem da historia. Sâo Paulo: Cultrix; Brasilia: INL, 1975 [1909], Urna análise mais ampia deste texto encontra-se em: Francisco Foot Hardman: "Estrelas indecifráveis ou: um sonhador quer sempre mais", in: Francisco Moraes Paz (ed.): Utopia e modernidade. Curitiba: UFPR, 1994, pp. 15-31. Cortázar, "El otro cielo", op. cit., p. 171. As dividas dessa historiografía assim concebida para com a paleontologia e a arqueología, como ciencias indiciarías, sào enormes. Cf., p. ex., Marlise Becker; J. C. Dalponte: Rastros de mamíferos silvestres brasileiros: um guia de campo. Brasilia: UnB, 1991. As correlaçôes de campos semánticos e metafóricos com a psicanálise também sâo pertinentes e férteis. Cf. Peter Gay: "Introduction"; Donald Kuspit: "A Mighty Metaphor: the Analogy of Archaeology and Psychoanlysis", in: Lynn Gamwell; Richard Wells (eds.): Sigmund Freud and Art: his Personal Collection of Antiquities. New York: SUNY; London: Freud Museum, 1989, pp. 15-19 e pp. 133-151. Cf. Eric Gubel: "Sigmund Freud: l'art et l'archéologie", in: Le sphinx de Vienne: Sigmund Freud, l'art et l'archéologie. Bruxelles: Ludion, s/d, pp. 15-56. Em torno de pés, pegadas e sonhos arqueológicos, vide o belo ensaio de Freud a propòsito da novela de W. Jensen, Gradiva: urna fantasia pompearía [1903]: "El delirio y los sueños en 'La Gradiva', de W. Jensen" [1907], in: Obras completas. Vol. Π. Madrid: Biblioteca Nueva, 41981, pp. 1285-1336. No plano da representaçâo literaria, as associaçôes sao inúmeras. Cf. Nicolai Gogol: Avenida Niévski. Sâo Paulo: Ars Poética, 1992 (ed. bilingüe russoportuguês): "[...] quantos pés deixaram nela as suas pegadas! [...] Que rápida fantasmagoría realizase nela no transcurso de um único dia!" (11). E em "El otro cielo", o narrador traça varias imagens dos passeios sonhadores e noturnos, dos efeitos fantásticos da iluminaçâo a gás das calçadas, dessa "vaga esperanza inútil que me sigue por las calles como un perro sarnoso", ou desse andarilho convicto das passagens e galerías, que vaga aos tropeços "por calles donde los tacos se hundían en el asfalto blando" (op.cit., p. 182).

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estuques de gesso e vidros sujos, onde se desenharam, naquelas noites que sao puro artificio, "figuras alegóricas que tienden las manos para ofrecer una guirnalda".24 Para lá, entio, nossos sonhos se dirigem.

U n cielo más próximo: mi patria desde siempre "En la numerosa penumbra, el desconocido se creerá en su ciudad y lo sorprenderá salir a otra ele otro lenguaje y de otro cielo. " (Jorge Luis Borges, El forastero)

Entre a Pasaje Giiemes, Buenos Aires, 1928, e a Galerie Vivienne, Paris, cerca de 1870, as passagens sao instantáneas, quase imperceptíveis, nos suaves movimentos de urna memòria divagante, na maestria da sintaxe de um narrador que, flanando entre blocos espaço-temporais tao distantes, aproximaos no movimento sutil da frase e do ato ficcional primario de quem nâo deseja perder esse dom da simultaneidade. No lirismo melancólico do que já vai se perdendo ñas brumas da memoria, vem esse sabor antigo das galerías e passagens cobertas, plataformas de jogos de transferencia e metamorfose espaço-temporal, porquanto construidas num mesmo ideal arquitetônico e, igualmente, num mesmo movimento histórico fundado na era do espetáculo, de auto-exibiçâo da sociedade burguesa, entre a vertigem eufórica de vitrines ainda acolhedoras e a doce fantasia de um amor de prostituta romàntico, como o encarna, em "El otro cielo", a figura tâo amistosamente erótica de Josiane. Fora do espaço-tempo utopico, em que o diálogo, a amizade e o amor se cumpriam, mesmo diante da ameaça criminosa de um matador em série,25 a vida resumia-se no tedio do filho e noivo resignado, do corretor da Bolsa (francesa? argentina? "Acaso mezclo dos momentos de una misma temporada, y en realidad poco importa"),26 do cidadäo prosaico e honesto. Entào, de repente, desponta o desejo irrefreável de fuga rumo a "ese mundo que

24

Idem, p. 169.

25

Chamado Laurent, ou simplesmente "o sul-americano", há varias sugestòes de que seja um trocadilho com o nome do poeta Lautréamont, uruguaio-francês, cujos Chants de Maldoror inspiram a escritura de "El otro cielo" ñas epígrafes de abertura dos dois blocos narrativos que compöem o conto. Este tema da "ancestralidade" poética (e criminal) na estrutura das passagens de "El otro cielo" foi bem analisado em duas outras leituras do conto, bastante diversas entre si e da minha: cf. Bernard Terramorsi: Le fantastique dans les nouvelles de Julio Cortázar: rites, jeux et passages. Paris: L'Harmattan, 1994, pp. 44-50; Jorge H. Wolff: Julio Cortázar: a viagem como metáfora produtiva. Florianópolis: Letras Contemporáneas, 1998, pp. 22-35. Convém sublinhar que na organizaçâo temática de seus cornos e novelas realizada pelo pròprio Cortázar para a ediçâo em 4 volumes da série Los relatos (Madrid: Alianza 1976-1985), ele escolheu os seguintes núcleos: Ritos (1); Juegos (2); Pasajes (3); Ahí y ahora (4).

26

Cortázar, "El otro cielo", op. cit., p. 183.

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225

ha optado por un cielo más próximo", a repetiçâo detalhista de um passeio que, por mais distraído que se fizesse, acabava sempre por desembocar naquele "barrio de las galerías cubiertas, quizá porque los pasajes y las galerías han sido mi patria secreta desde siempre".27 Interessante: provavelmente nao tendo lido os ensaios benjaminianos sobre Paris como "capital do século XIX", 2 8 embora, mais certamente, possa ter lido Le paysan de Paris, de Aragon, obra matriciel do surrealismo e do interesse moderno pela arqueología desses espaços urbanos, Julio Cortázar, que publicou "El otro cielo" em 1966, traça, na narrativa, urna topografía bastante precisa e detalhada das principáis passagens parisienses, que sao aproximadas pela voz do narrador no plano da memoria afetiva de um bairro da juventude que as leis do progresso e da historia - em especial as referencias a guerras e ao "grande terror" - estäo sempre prestes a extingüir. Assim, ao lado da Galerie Vivienne (eia pròpria, na planta urbana de París, sintomaticamente vizinha dessa antiga e gigantesca galería de livros - memoria acumulada de signos e icones - que é a Bibliothèque Nationale), os personagens movem-se pela Passage des Panoramas, Galerie Sainte-Foy, Passages du Caire, Passage des Princes, Passage Verdeau, Passage des Petits-Pères, Galerie Colbert, afora a infinidade de ruas e bulevares que, com efeito, em sua maioria, correspondem a um mapa de um trecho do centro parisiense ao redor do bairro da Bourse, noroeste antigo de urna antiga cidade ambientada no século XIX, 2 9 numa forma de reminiscencia que serve, também, como arqueología poética e ode a essa capital eminentemente literária, por tantas geraçôes, de toda a América Latina. O mais notável aqui, porém, é o entrecruzamento e intercambio das historias da Europa e da América Latina, assim como, em movimento paralelo, as historias ocidentais modernas do século X I X e do século X X . Como um espetáculo de panorama, a narrativa desenrola-se, ao fundo, com poucos elementos referenciais de época, em torno de acontecimentos essenciais da historia política e social entre 1870 e 1945, dos dois lados do Atlàntico, e isso sempre num jogo de deslocaçôes e simultaneidades de eventos que, embaralhados na aparência, apontam sempre para o fim das utopias románticas. Intensifica-se com isso o drama daquele narrador que persegue, como refugio contra o frío, a chuva e a mera vida estúpida là fora, "a ese falso cielo de estucos y claraboias sucias", por encontrar, ali, frente

27

Ibid., pp. 168-169.

21

As principáis traduçôes dos Schriften, de W. Benjamin (Frankfurt: Suhrkamp 1955), que incluem "Paris, capital do século XIX", datam de 1962 (Torino: Einaudi), 1971 (Paris: Denoël) e 1972 (Madrid: Taurus). Quanto ao Das Passagen-Werk (Frankfurt: Suhrkamp 1982), conhecemos as traduçôes italiana (Torino: Einaudi 1986) e francesa (Paris: Eds. Cerf 1989). O mais provável, nesse caso, é a existencia de urna "afinidade eletiva" profunda entre Benjamin e Cortázar, mediada pelas leituras do surrealismo que ambos incorporam com ênfase em suas obras.

29

Sobre as decisivas relaçôes entre geografia e literatura na modernidade, mais especificamente entre topografía urbana e prosa de ficçâo na Europa oitocentista, cf. Moretti, Franco: Atlas of the European Novel, 1800-1900. London: Verso, 1998. Sobre as pontes atlánticas entre Paris e América Latina, cf. a tese de doutorado de Florian Nelle: Atlantische Passagen. Berlin: LAI/FU, 1995 - da quai pude consultar urna versào sintética da introduçâo ("Paris, los pasajes atlánticos y el discurso de la imitación", 18 pp.).

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ao desencantamento do mundo, adentrando nessa "noche artificial" tào uterinamente chamativa, "las puertas del pasaje donde empezaba el último misterio". 30 Nesse clima dramático, fragmentos de grandes desastres históricos se sucedem no pano de fundo da narrativa: a guerra franco-prussiana de 1870; a derrota da Comuna de Paris; golpes de Estado, governos conservadores e ditadura militar na Argentina (1930-1946); Segunda Guerra Mundial; bomba atómica dos E U A sobre Hiroxima; rendiçâo da Alemanha e derrota do nazismo; e quedas ñas Bolsas de Valores. Nao importa tanto, na historia de suas passagens, como tantas vezes o narrador adverte ao longo de todo o conto, a cronologia exata nem o encadeamento mais ordenado desses fatos. Passagens que funcionam também como esconderijo, esse mundo interior das galerías é o lugar de negaçâo radical da Historia, no que esta representa enquanto rolo compressor das identidades pessoais, como poder unitario da máquina do Estado-naçâo - detentora do monopolio do uso legal da violencia - , como continuidade linear, previsível e massacrante do "tempo vazio e homogéneo", porque ancorada num progresso técnico-burocrático que está, em suma, inteiramente apartado da vida das pessoas e da memoria dos pequeños lugares. Em Sâo Paulo, no firn do século X I X , também houve um projeto de passagens à la Paris, como as chamadas Galerías de Cristal, que nao seguiram adiante.51 Na literatura brasileira deste século, talvez seja José Geraldo Vieira - escritor de alta qualidade, relativamente pouco presente na historia literária e na crítica e, de certo modo, algo injustiçado em face da perspectiva mais cosmopolita de sua obra - , no romance A ladeira da memòria

(1950),32

quem melhor permitiría que se traçasse contraponto lírico-dramático com "El otro cielo" de Cortázar. Ali, também, em outro registro, o lugar da memoria afetiva, melancólica do velho centro da cidade de Sao Paulo cruza-se com recortes descontinuos, mas nada arbitrários, da cena histórica contemporánea internacional. Enfim, a atraçào irresistível desse "outro céu" pertence à mesma linhagem que o fascínio exercido pelos lugares em que brincamos na infancia. Ao percorrer, como vertigem alucinatória adulta, o antigo bairro das passagens, o narrador simplesmente nao quer "fazer cessar a recordaçâo de que a pàtria original do homem é o prazer". 33 Por isso, estampa-se

30 31

32 33

Cortázar, "El otro cielo", op. cit., p. 168. Cf. Emani da Silva Bruno: Historia e tradiçôes da cidade de Sào Paulo. Voi. IH. Sào Paulo: Hucitec/ Secret. Municipal Cultura, 31984, pp. 978-979; Sào Paulo: onde está sua historia. Sào Paulo: MASP/ Secret. Est. Cult. / Secret. Mun. Cult., 1981, pp. 134-135. José Geraldo Vieira: A ladeira da memòria. Sào Paulo: Saraiva, 1950. Giorgio Agamben: "Tempo e storia", in: Infanzia e storia, op. cit., 21979, p. 107. No mesmo trecho, pouco adiante, o autor concluí: "Colui che, nell'epoché del piacere, si è ricordato della storia come della propria patria originale, porterà infatti in ogni cosa questo ricordo, esigerà in ogni istante questa promessa: egli è il vero rivoluzionario e il vero veggente, sciolto dal tempo non nel millennio, ma ora." Sobre ficçào e encenaçào com categorías antropológicas, cf. Wolfgang Iser: O ficticio e o imaginario: perspectivas de urna antropologia literária. Rio de Janeiro: UERJ, 1996.

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117

essa necessidade vital de que o jogo da ficçâo prossiga, quando, confessa-o logo o narrador, o espaço singular desses "falsos céus" terá sido sempre sua "pàtria secreta".

Larissa e a guerra 34 Que é que adianta escolher epigrafe, Larissa? Revolvendo velhos papéis, encontro anotado num caderno que servia ocasionalmente de diàrio a caligrafía sem margem à dúvida: [Trem de Praga - próximo a Budapeste]: duas meninas / sâo mesmo figuras pelos ares pela / luz amarela do Danubio / quería ser só escritor de paisagens / mas a vida mesmo me pôs a fabricar mentiras / árvores húngaras árvores húngaras / teu verdadeiro nome nâo sei / as meninas têm passaporte. Já sabíamos, entâo, o dialeto dos trens. A sensaçâo de urna plataforma vazia ou cheia, o expresso que vai chegar ou que partirá inexorável no minuto assinalado; aquele aceno que se amplificava na marcha lenta da saída da gare, havendo tempo até talvez para alguma reversáo imediata do destino; pequeña corrida, tropeço, um salto no vâo dos trilhos "mind the gap", diz uma voz ñas estaçôes londrinas - , corpo cambaleante no vôo imprudente, cegó apesar dos avisos impressos e sonoros, uma mäo apenada de vontade, talvez abraço, talvez frase inaudível, quem sabe talvez, mesmo que a cena continuasse fora da tela. Nunca tivemos medo dos trens, é verdade, sem dúvida pela distancia da guerra. Quando Larissa chegou em Belém, o monumento à Cabanagem já estava erguido na saída da cidade para a Belém-Brasília; nenhum trem da Bragantina, nenhum sinal da inacabada ferrovia de Alcobaça, là embaixo, no Tocantins, mais fantasma que a Madeira-Mamoré, 35 enterrada junto com seus batalhôes de maleitosos. E nâo precisou de entrevista, de nenhuma misera palavra, porque nossos olhos se cruzaram na vertigem da luz negra do Lapinha, os olhos de Larissa como lanternas vermelhas e seu vestido branco, e depois dos olhos só havia os lábios vermelhos e seus dentes brancos, um sorriso que dizia: sim. Eramos herdeiros de J K e da Era Rodoviária: impensável, já agora, reconhecer o país pelos trilhos, nao era só a descontinuidade no tamanho das bitolas, era toda a ruina do sistema, dormentes e restos de vagòes jogados pelas várzeas, locomotivas tragadas pela selva como Benjamin Péret já anunciara na revista Minotaure em 1937,36 e isso - impressionante como às vezes a ordern das coisas se embaralha - , muito antes dos trens de Treblinka.

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Uma primeira versáo reduzida e alterada do texto que segue neste tópico apareceu como Francisco Foot Hardman: "Antes ou depois dos trens de Treblinka" in: Foiba de S. Paulo (Caderno Mais.), Sào Paulo, 29.10.1995, pp. 5-6. Cf. Francisco Foot Hardman: Trem fantasma: a modernidade na selva. Sao Paulo: Cia. das Letras 1988. Cf. Benjamin Péret: "La nature dévore le progrès et le dépasse", in: Minotaure. Paris, (10), hiver 1937, pp. 20-21.

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Sei que voce desejava mesmo era organizar teu pequeño grande caos, Larissa. Por isso aquela agenda tao surpreendente, onde, toda manhà, voce ensaiava contabilidades absurdas, horarios improváveis, números de fones e nomes toscamente invertidos, recortes de palavras cruzadas, estampas de qualquer revista feminina, colagens ingenuas, urna foto polaróide da escada rolante do shopping, frases truncadas entre o conselho de vida e o plano de abordagem do próximo avilo, com tudo para constar de um horóscopo ou de um futuro discurso presidencial. A agenda apostava no imediato, com eia a recusa de ir ver o Ver-oPeso, a praça do Relógio era suja de historias, as linhas nada ponderadas do mercado de ferro art nouveau anunciando um trem que já desaparecera antes de existir. E junto da agenda o ursinho batizado Ananindeua, para lembrar todo santo dia aquela cidade-satélite tâo triste e pobre, ali onde se arrancava a amizade efémera, pouco importa, das meninas da casa da Verónica. Bem depois, já em Sao Paulo, voce adorava passeios de metrò até as estaçôes terminais, porém tinha ojeriza quando cruzávamos pelos lados da Luz. Mineira do Triángulo, teus trens eram outros, era difícil retroceder nesta historia e prometer algum futurismo, que já se mostrava roto de antemlo pelo ritmo extremo dos acontecimentos, após aquela morte de moto na estrada e prolongada internaçâo num sanatorio. E as locomotivas, que algum otimista bem chamara de as "catedrais do século XIX", tinham virado megatérios já no começo dos 1900, muito antes de JK e os desenvolvimentistas, Lima Barreto entre outros assim o pressentira. De nada serviría a agenda a Larissa, ou melhor, servia, e muito: era um jogo que bastava a si mesmo, tinha urna figura de pessoa que se imprimía naquelas frivolidades baratas que iam sendo assim colecionadas, como marcas aleatorias de um futuro e jamais escrito diàrio, por isso meu alegre espanto ao vê-la retirar o mesmo bloco mágico de papel da bolsa quando nos reencontramos no Café Hegel, em Berlim, eu na véspera de tomar o trem para Varsóvia, um sonho de cidade em junho, Larissa trazida ao trottoir da Savignyplatz pelas mäos da Glauce Kelly, a Passagem Savigny que Benjamin nâo viu, a Kantstraße em parte agora controlada pela màfia russa. Larissa: parecía que entâo seu nome combinava com algo da paisagem, e naquela noite houve risos bastantes, tua agenda tornava-se, disso nao tinhamos o que duvidar, o melhor fluxo narrativo das tantas desandanças da menina-damaguerreira, quase perco o trem tu Hauptbahnhof, e nessas alturas era ridículo imaginar algum centro em Berlim, havendo ainda ali muitos muros invisíveis. E no expresso de Varsóvia reli Onetti, quem sabe a República da Banda Orientai do Uruguai ajudasse a entender as fronteiras do Leste, El astillero17 trazendo-me a esse decadentismo de portos e navios, um amontoado de roldanas e guindastes desolados, poderia muito bem ser o mundo dos meus vagôes fantasmas, Gdansk, Montevidéu, a imaginaria Santa Maria ou minha querida Cabedelo, restos de trilhos que já nâo pretendem transportar ninguém para nada, cascos de vapores ou de baleias, que diferença faz? E me vieram por inteiro esses fináis de linha imponderáveis, o olho duplo da caixa de fósforos mirando-me fixo na grande parede da fábrica daquela parada do subùrbio de Vila Anastácio, o latim vivo

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Juan Carlos Onetti: El astillero. Madrid: Cátedra ,'1993 [1961],

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no "fiat lux" que acendeu o primeiro cigarro, ou no "fides, honor, labor" interminável dos galpôes das fábricas Matarazzo, a fumaça de chaminés-mâes e de urna locomotiva gravadas no logotipo da firma e de suas embalagens, Larissa ocupa agora todo o lugar da minha desmemoria, eia é minha cobiça e seu incendio. E agora penetro nesse grande vazio, um terreno baldio gigantesco como a Potsdamer Platz, onde, ao fundo, tremem as flámulas do Circo Garcia. Nenhum trilho mais nesse ramal, Larissa, voce tâo longe hoje, sei que certamente adoraría ter visto o equilibrista chines de très pratos e os formidáveis acróbatas poloneses da familia Markov, únicos na arte de erguer urna piràmide humana de cinco andares. Como escapar ao fascinio dessas engenhosas composiçôes de amigos artífices do corpo? Entretanto, a atmosfera desse trem de Varsóvia atirava-me muito aquém, na direçâo dos comboios enfileirados para Treblinka, as imagens em preto-e-branco do filme de Wadja sobre a derradeira viagem do professor Janusz Korczak e seus cento e cinqiienta órfàos do Gueto rumo à vaia comum de Treblinka. Era agosto de 1942, o tempo se esboroa, a historia imolava suas últimas pretensôes aos conquistadores da noite, mas o trem, no filme, parava bruscamente, as crianças saíam pelo campo com seu velho protetor e bailavam fora de qualquer melodia, era valioso sonhar com este sonho antes do buraco negro de Treblinka, lugar do vazio para além do limite de qualquer ruina, de qualquer voz, o filme congelava suas imagens fináis naquele bailado triste da nào-história, era bom que os trilhos da arte e o olhar da càmera se fixassem numa interrupçào do caminho, numa parada nao prevista pela autoridade antes do firn da linha já conhecido, passagem e trégua e palpitaçâo (quantas batidas um coraçâo assustado de criança?), assim como os violinos que continuavam a se fazer ouvir no Titanic, fingindo ignorar que arte e vida soçobravam, assim como, nesta Sarajevo destruida, numa pausa da guerra provocada pela neblina, a orquestra multiétnica de jovens tocava antes da próxima artilharia, mesmo que logo depois, já se sabia, Thanatos voltaria ao comando pieno da cidade. E, là, em meio aos corpos em pirámides macabras incontáveis, Treblinka remeteu duzentos comboios com roupas e sapatos dos mortos de volta ao Reich, afora os trens noturnos semi-clandestinos com ouro e jóias. Entâo Larissa, claro, nâo tinha sonhado em nascer, mas seus bisavós, ciganos, já tinham pegado o trem até o desvio que levava ao caminho de pedras mudas do campo de exterminio. E mesmo sua memòria completamente negada, pois o vazio total é aquele em que se aboliram todos os registros e marcas, mesmo com todas suas obsessôes voltadas para o presente mais rasante, entre dinheiro e pó, vislumbrei leve fio de humanidade insuspeitada entre voce e o professor Korczac, reliquia naoescrita, quando te vi, meio século depois, do lado de um caixa eletrônico conversando como urna igual com os meninos de rua da Augusta com a Paulista, todos os trens da modernidade descarrilados para esta ciranda de afetos que nenhuma lingua, nem mesmo a de um lamento de cigana, seria capaz de traduzir. Pontes das mais temerarias entre eras, de fato. Mas, afinal: estamos ou nao dentro da mesma historia? De todo modo, quando voce me ligou falando de voltar ao Brasil e a Belém, eu disse, bem, quem sabe um dia conseguimos viver um pouco num país viável, embora voce

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confiasse agora demasiado nos poderes de um celular da mesma forma que antes pensara que a agenda te tirana do vermelho de urna página-dia para outra. Nem tanto: nao era para depositar tamanha crença, era que nem quando voce encarnava o espirito de Mariazinha achando que te iluminaría ñas noites sem droga, aflitas. Voce continuava agitadíssima, Larissa, e a agenda e o celular e o cigarro compunham tua cena. Bety já tinha voltado para Balsas, no Maranhào. Glauce Kelly partira com o dinamarqués das madeiras para Amsterdâ. A esperta Màrcia já estava feita em Uberlândia, agencia de carro importado montada. Que é que voce vinha fazer nesta confa? Mas contigo nao havia meias medidas. E do mesmo jeito que desapareceram os caminhos de ferro neste país, nao sendo mais possível qualquer resto de veleidade romantica a respeito de algum encontro ferroviàrio fora da Europa, assim também nâo nos sobravam palavras que dissessem bem da força va daquele amor, que pudessem repetir nossos entreolhares mais fundos no Lapinha e que fizessem reavivar este imperativo categórico: venha. Ou entâo: vamos. Nâo, nâo, que alias quase nunca houvera palavras. E até porque nos gostávamos demais, ninguém se atrevía, agora, a arriscar roteiros ou prometer passagens. E, no entanto, havia que inventar uma última frase. E foi durissimo dizer, com sentimento veraz, para um ateu, escolhendo entre o silencio e a mentira: "fique com Deus". E mais insuportável ainda ouvir este teu "amém" quase sussurrado, pura fé límpida, instantánea, que se foi com a voz de Larissa, rápida, rouca, como fagulha de uma composiçâo ferroviària extinta, fim de uma prece inexistente, um coraçâo apertado de verdade, talvez um soluço contido, talvez algum presságio, quem sabe, talvez, mesmo que a viagem já tivesse, há muito, se acabado. Mesmo que nao tenhamos nunca, nem em sonho, viajado juntos de trem.

Berlim, todavia "¿Dónde estarán?pregunta la elegía De quienes y no son, como si hubiera Una región en que el Ayer pudiera Ser el Hoy, el Aún y el Todavía. " (Jorge Luis Borges, El tango) Tantos espaços e tempos revolvidos, tantas escavaçôes apenas começadas, talvez seja tempo de regressar a Berlim, onde este texto pode finalmente ter inicio, começou a tomar essa forma. Porque nesta cidade, a um só tempo símbolo e palco de algumas passagens decisivas da humanidade no século X X , há ainda muita terra a revolver, muita arqueología a praticar. Talvez que o traballio das passagens pudesse prosseguir em Berlim, percorrendo-se ao revés o trajeto da Paris do século X I X . Talvez que agora a Unter den Linden3* possa ser revista

38

Cf. Winfried Löschburg: Panorama der Straße Unter den Linden. Berlin/München: Koehler & Amelang, 1997. No plano teòrico, este tòpico inspira-se em: Jacques Derrida: Mal d'archivé: une impression freudienne. Paris: Galilée, 1995.

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em panorama que reúna, num mesmo plano, a belle-époque do Kaiser-Panorama e as horas terríveis da fogueira de livros na Bebelplatz, onde, hoje, apenas o silencio de estantes vazias e subterráneas ficou por testemunha. Se passagem pode traduzir-se, como no conto de Cortázar, por galería, isso nos remete mais ainda ao mundo dos subterráneos, das galerías das minas ou galerías de escoamento das aguas pluviais, das catacumbas antigas e modernas, estas últimas entre ossuários superpostos à rede de aguas e esgotos que o tempo da revoluçâo urbana e industrial cavou sob a paisagem das grandes metrópoles. E, no Brasil, valeria anotar a ocorrência das chamadas matasgalerías, vegetaçâo florestal nao muito cerrada que acompanha o leito de certos ríos, passagem botánico-fluvial que nos restituí a essa historia singular feita de caminhos, monçôes, fronteiras e desvíos - infinitos artificiáis e ruinas naturais. Por isso näo importa tanto aqui o lugar, se todos os lugares é que importam ao mesmo instante. A rota Buenos Aires-París pode ser refeita e repassada na rota Berlim-Säo Paulo. Sonhadas em París, no outono de 89, pouco antes da queda do Muro e da abertura de tantas passagens à historia humana contemporánea, nesta virada de século e milenio, este sonho das passagens somente agora está podendo ser datilografado em rascunho desde Berlim. Mas seus materials já haviam sido coletados muito antes, nos intervalos ou vésperas de tantas outras guerras, persistente e obsessivo mal de arquivo, em Santiago de Chile e em Buenos Aires, em 73/74, em Sao Paulo e em Campinas e, mais recentemente, entre 93-95, em Sâo Petersburgo, em Manaus e em Belém. Porque talvez nenhum de voces tenha-se dado conta, mas é até evidente, desde que se acerte a perpectiva de onde se lança o olhar, que Berlim vista assim de cima, do anjo de tantas vitórias ilusorias, desta Siegessäule que tantas ruinas já contemplou, num traballio de luto que lembra nao só as passagens de Benjamin mas ora se associa às imagens das asas dos anjos de Wim Wenders, esta mesma Berlim vista assim de cima trai também os olhos miopes de quem vive intensamente a vertigem das alturas desses 280 degraus e 70 metros: o Tiergarten dali de tao alto, tao perto e tâo longe, pode fazer o viajante supor, num átimo de fuga, numa fuga de sonho, que está sobrevoando urna cidade amazónica - Berlim quase na floresta, Manaus e Belém em Berlim. Mas essa ilusâo de ótica logo se resolve. E da vista aérea, panoràmica, enganadora, passase à visào subterrànea. E aqui nossos olhos parecem nao se iludir, pelo menos assim imaginamos. De tal sorte que, cruzando os trens amarelos de alguma linha de U-Bahn, linha que até há bem pouco se interrompia quase no vazio, naquela terra de ninguém entre o Leste e o Oeste assim murados, Oriente e Ocidente inventados pela politica de blocos, bem a Leste de Greenwich, muito tempo após aquela convençâo internacional que fez do Old Royal Observatory "the centre of time and space", lá apenas um meridiano imaginário representando o lado lúdico e extravagante do invento da longitude, em Berlim, porém, um muro em armas, por entre estaçôes-fantasma do metrò, passagens interditadas, depois permitidas, e nâo havia nada demais do outro lado, apenas o eco da voz de Larissa, apenas seus olhos e sorriso infinitamente lindos e tristes, somente entäo, na solidâo dolorida dessa paisagem, na tristeza que agora pode ser calma, melancolía de tal maneira pacificada, somente entäo o viajante poderá reconhecer os escombros da Pariser Platz, que o transportarlo às ruinas

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surrealistas parisienses de Benjamin Péret, descritas como fósseis de um futuro indeterminado,39 mas as ruinas de que falo nao sao futuras, estío aqui na minha frente e, apesar do pó das escavaçôes e dos olhos secos sem nenhum derramamento de lágrima, é possível agora sair de urna boca de metrò para fotografar esta paisagem, literalmente, como um canteiro de obras da historia. Talvez fosse nesse cenário, nesse terreno baldio, nestas ruinas do Potsdamer Platz que poderia ter inicio urna historia dos pontos extremos mundiais, incluindo-se todos os orientes e ocidentes que as sociedades humanas inventaram e impuseram à força de armas e palavras, os nortes e suis de tantas Américas e também de tantas indias (pressupostas ou efetivas), os Brasis dispersos e separados por tao irreconciliáveis diferenças. Poderia cruzarse, aqui, lá, nesses enormes vazios berlinenses, passagens como a Savigny-Passage, que nos conduzem de volta à música, sons que ainda insistem em abrir passagens em meio aos labirintos da historia, o Oriente está posto ainda sobre o Tejo, a Europa toda vem a esse (des-)encontro, ou para tal foi convidada, e entâo, de fato, poder sentir que [...] tudo espera o ingresso numa dança que nenhuma Isadora jamais dançou deste lado do mundo, terceiro mundo global do homem sem fronteiras, chapinhador de historia, véspera de si mesmo.40

Apenas assim, incorporando a historia como deslocaçâo, como sonho acordado, como delirio lúcido, com o coraçâo vivo e grande e os olhos da razâo bem abertos para sentir e ver o peso dessa Era dos Extremos, 41 o peso das ruinas de nossa contemporaneidade mais atual, de alguma nova passagem feita de restos do Muro, o viajante pode enfim retornar à primeira passagem, a urna das epígrafes-guias deste texto, até à abertura de "El otro cielo", justamente ali, onde o narrador, claudicante entre o pretérito imperfetto, tempo preferido da narrativa e da historia, e o futuro do subjuntivo, tempo em que se aloja o princípioesperança,42 introduz, en passant, a utopia de qualquer ainda, mesmo que vâ, mesmo que no váo de uma frase coloquial, congelada numa fraçâo dos séculos X I X e X X , entre a América do Sul e a Europa, no väo da passagem de uma intersubjetividade já rememorável porque distante, estranha matèria de prosa porque também já experiencia perdida, desejo infantil que teima em voltar, apesar de tudo, da dor e do esquecimento, apesar dos pesares. Ouçamos a passagem toda:

39

Benjamin Péret: "Ruines: ruine des ruines", in: Minotaure, París, (12-13), mai 1939. Em outro texto do mesmo período, contra o encapsulamento do espirito humano, Péret protesta: "Ouvrons l'armure. Ouvrons toutes les armures." (Cf. "A l'interieur de l'armure", in: Minotaure, Paris, 11 de maio de 1938). Todas essas contribuiçôes de Péret para a revista surrealista Minotaure foram recentemente recolhidas em: B. Péret: Oeuvres complètes. Vol. VII. Paris: Association des amis de Benjamin Péret/Librairie José Corti, 1995, pp. 37-43.

40

Julio Cortázar: Prosa do observatorio, Sào Paulo: Perspectiva, 2 1985 [1972], pp. 97-99 (trad. bras, de Davi Arrigucci Júnior).

41

A expressâo, que sintetiza com muita propriedade a historia do século X X , está em: E.J. Hobsbawm: Era dos extremos: breve historia do século XX. Sào Paulo: Cía. das Letras, 1995.

42

Cf. Ernst Bloch: Il principio speranza. 3 vols. Milano: Garzanti, 1994 [1959],

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Me ocurría a veces que todo se dejaba andar, se ablandaba y cedía terreno, aceptando sin resistencia que se pudiera ir así de una cosa a otra. Digo que me ocurría, aunque una estúpida esperanza quisiera creer que acaso ha de ocurrirme todavía.43 Acaso a melhor traduçâo para este tâo castelhaníssimo vocábulo "todavía" seja a palavra de lingua portuguesa: ainda.

Berlim - Sao Paulo, 1995-1998

43

Cortázar, "El otro cielo", op. cit., p. 167.

Perspectivas brasileiras

Dietrich

Briesemeister

O Brasil como "país do futuro" ñas imaginaçôes livrescas de Policarpo Quaresma

Os livros marcam o destino do personagem Policarpo Quaresma, leitor-investigador paradoxal no romance de Afonso Henrique de Lima Barreto. O que e como este bibliólatra coleciona livros ou lê determina fatalmente sua existencia até o triste final, já pressagiado no título. O comportamento de Policarpo (cujo nome, nâo sem ironia mordaz, significa "que produz ou tem muitos frutos", enquanto Quaresma é o tempo de jejum, abstinencia e retraimento meditativo quarentenário) em face da realidade, isto é, da historia, sociedade, tradiçâo e consciência nacional do seu país, é conduzido pelas idéias, fantasias e imaginaçôes que derivam da leitura. Os livros no livro sâo mais que requisitos decorativos na obra, eles apontam um motivo fundamental e desencadeiam urna açào trágica. Thomas Bremer chamou a atençâo para a funçâo do ato de leitura no romance latino-americano do século XIX: Innerhalb der lateinamerikanischen Literatur (und dort insbesondere im 19. Jahrhundert, in der Phase des Ubergangs zu einer national definierten und als eigenständig intendierten Literatur) erhält das Buch im Buch [...] eine Sonderstellung, weil es sofort grundlegende Fragen des lateinamerikanisch-europäischen Verhältnisses, von kultureller Dependenz versus kultureller Eigenständigkeit berührt. Esta observaçâo geral é particularmente valida para o romance de Lima Barreto O triste firn de Policarpo Quaresma, publicado por trechos de folhetim em 1911; a ediçâo definitiva saiu em 1915. Já no inicio do livro o autor abre ante os olhos do leitor urna enorme biblioteca imaginária, que forma obviamente o núcleo da vida íntima do patrào solitàrio. Nela retira-se o estranho homem depois de ter cumprido com seu trabalho rotineiro e descansa na cadeira de balanço em companhia muda e ao mesmo tempo eloqüente de semnúmero de livros que, para o fanático leitor, significam o mundo. A vasta sala da biblioteca encontra-se no interior da casa e dá para urna rua lateral. Nâo é urna mera decoraçâo acidental ou uma peça de exibiçâo luxuosa "em estilo nacional" de burgués afetado, que deve ostentar ou simular urbanidade em um estrato social suburbano. Semelhante biblioteca, um salâo abarrotado de livros sobre sólidas estantes de ferro, era ñas condiçôes de vida no Brasil do século XIX sem dúvida rarissima. Lima Barreto, escritor negro que penosamente abriu seu caminho para o livro, para a cultura e para uma atividade jornalística (mas que cedo deveria fracassar na literatura), criou no "herói do livro" urna espécie de alter ego antagónico que vive completamente de e com seus livros: um bibliófilo maníaco, que é arrastado irresistivelmente ao sinistro por sua paixâo pela leitura. Para Policarpo Quaresma a biblioteca é um elixir de vida, um narcòtico em um sentido ironicamente invertido da inscriçâo "ίατρείον τή? ψυχήΐ" (sanatòrio da alma) colocada acima do portal de uma antiga biblioteca, ou também uma forma de manicomio (hospicio), signo e designio no quai tanto

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o herói do romance como o seu autor percebem a realidade exterior. Aquela imensa "coleçâo de livros", que Lima Barreto retrata como fruto do furor compilador de Policarpo, representa um projeto antològico; é ao mesmo tempo espelho, fonte e compendio de tudo o que o erudito protagonista, até a sua morte violenta, intenta realizar em suas utópicas projeçôes de reformas. Os livros sao seus espíritos tutelares e diretores, mas causam também o seu desatino fantasmal. O acervo guardado em segredo no interior da casa constituí um ambicioso programa inteletual para o público brasileiro, isto é, a apresentaçâo de um ideario da consciência nacional recolhido dos melhores genios. O catálogo da biblioteca modelo para este mundo especulativo nao oferece naturalmente nenhuma bibliografia formal, pelo contrario, ele estabelece um cànone ideal de leituras que circunscrevem as moradas espirituais, as pretensòes civilizatórias e as visóes utópicas de Policarpo. Lima Barreto, cujas Impressöes de leitura (publicadas só em 1956) mostram urna ampia leitura, evoca laconicamente nomes famosos, apenas menciona títulos, de acordo tácito (às vezes com um piscar de olhos) com o versado leitor real de seu romance, que deve detectar as obras aludidas para chegar a urna compreensâo do sentido analógico, paradigmático da coleçâo imaginada. Lima Barreto serve-se da técnica da sugestáo, evitando assim urna liçâo pedante incompatível com o caráter literario do romance. Ele tampouco procede convocando um tribunal satírico-cómico sobre livros e autores, como Cervantes (Dom Quixote I, cap. 6), mas sim aventa uma compilaçâo de obras de très séculos, as quais projetam e transmitem a essência prototípica do Brasil. O elenco literário nâo recomenda autores estrangeiros, apesar de serem bastante freqüentes as alusôes a livros franceses, que marcam o horizonte e a curiosidade de certos grupos do público leitor brasileiro, por exemplo obras triviais em estilo da "bibliothèque rose", autores contemporáneos de moda ou nomes significativos como Frédéric Mistral, Pierre-Jean de Béranger e Descartes. "Na ficçâo havia unicamente autores nacionais ou tidos como tais" (Barreto 2 1959:31). Esta irónica restriçâo "alternativa", com respeito ao caráter nacional dos autores nacionais mencionados, será logo repetida com a fórmula "autores nacionais ou nacionalizados". Lima Barreto evidentemente tem certas ressalvas tanto a respeito da naturalizaçâo quanto ao isolamento dos escritores brasileiros cem anos depois da independencia do Brasil de Portugal. Assim, ele intervém na polémica sobre a formaçâo e legitimidade da literatura nacional brasileira, já desde muito tempo disputada entre os críticos literários do lado de cá e de lá do Atlántico, com uma enumeraçâo casual e seletiva, sem se declarar em favor de nomes e argumentos. Na mostra antològica da poesia brasileira encontra-se, no inicio, a Prosopopéia de Bento Teixeira, um poema épico, como obra mais antiga (Lisboa 1601) de um autor que, nascido em Portugal, vivia no Brasil escrevendo na esteira de Camôes. Em segundo lugar, é nomeado o poeta Gregorio de Matos (falecido em 1696), que Adolfo Varnhagen redescobriu em 1850 para a poesia brasileira. Com seu "patriotismo" este crioulo pode dar um exemplo estimulante do amor pàtrio que Policarpo Quaresma sente. Lima Barreto viu em Matos um crítico sem medo e, ao mesmo tempo, um satírico cheio de humor, que enfoca, como ele mesmo, as debilidades da sociedade colonial e as instituiçôes poderosas da época.

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No inventario da biblioteca de Policarpo, evocada em forma narrativa no romance, vem logo a seguir José Basilio da Gama (falecido em 1795) com o poema épico O Uraguay (1769), reeditado por Varnhagen em 1845 na coleçào Épicos brasileños. As figuras principáis desta epopéia, efetivamente composta para glorificar os feitos portugueses, sao os indios, que no seu espaço natural atuam, sem dúvida, de urna maneira idealizada. O poeta, oriundo de Minas Gérais, era aluno dos jesuítas, porém viveu, estudou e morreu em Portugal. Além disso, o poema Caramuru (1781) de Frei José de Santa Rita Durâo (falecido em 1784), escrito na veia camoniana e imbuido de nacionalismo, nao pode faltar na coleçào de Policarpo. Aqui sao ressaltados os problemas da época colonial desde a fundaçâo da Bahia até o governo de Joäo Mauricio de Nassau-Siegen - mistura de raças, escravidâo, indios e tradiçôes indígenas - , e também o motivo da natureza exótica, evocada com uma nítida consciência patriótica. Chamando a atençâo para a estima tradicional da epopéia como a forma de mais prestigio no sistema dos géneros poéticos transmitido às literaturas européias desde a Antigüidade, aparecem no acervo de Policarpo sobretudo autores de epopéias que em suas obras dio uma expressáo sublime aos traços do povo considerados como típicos. A epopéia - a literatura brasileira oferece uma série notável de exemplos - propaga uma visáo da identidade nacional exaltando, num enfoque histórico, o destino brasileiro. A necessidade, que cresceu com a Independencia, de afirmar uma literatura nacional pròpria, quadra com a legitimaçào histórica proposta na epopéia. O empenho temporáo de Varnhagen de editar, já em 1845, uma poesia épica brasileira é o corolario de uma intensa discussáo sobre a literatura nacional e a poesia épica que surgiu na Alemanha com Johann Gottfried Herder no século XVin. Nove anos depois da ediçâo de O triste firn de Policarpo Quaresma em forma de livro, Oswald de Andrade publicou Pau Brasil (1925), panorama alucinante do decorrer histórico-cultural do Brasil desde o século XVI até o século XVIII, que igualmente pretende ser um poema atávico brasileiro e que se molda conforme as exigencias estéticas do modernismo. O cànone da literatura brasileira nao pode ser resenhado no romance com o devido registro de todas as obras-primas respectivas, mas por outro lado intenta ser crítico ao nao mencionar certos títulos. Nao fica claro se a Policarpo lhe faltam competencia consumada e gosto literario ou se Lima Barreto distribuí, ele mesmo, censuras e remoques omitindo determinadas obras. Continua a resenha da biblioteca ideal de Policarpo Quaresma com a seçâo "Novela". Aqui encontram-se "todos" os romances de José de Alencar (1829-1877), que quis criar o romance brasileiro com O Guarani (1856-57). Em Iracema (1865) e em Ubirajara (1874), o autor trata temas indígenas; já em As minas deprata (1865) desenha um quadro descritivo histórico-realista do país, cujas regiôes também figuram na trama de, por exemplo, Osertanejo (1876) e O gaucho (1870). O fato de todas as obras de Alencar estarem colocadas ñas prateleiras do bibliófilo acentúa a importancia deste romancista (pelo menos para o leitor Policarpo). Com Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) será evocado outro autor brasileiro de sucesso; mas nem Policarpo Quaresma nem Lima Barreto pelo visto estimaram as Memorias de um sargento de milicias (1853/55) de Manuel Antonio de Almeida

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(que morreu em 1861), um livro quase esquecido, e talvez menosprezado até a sua redescoberta pelos modernistas. Entre os poetas só há lugar para o nome de Antonio Gonçalves Dias (1823-1864), este também com todas as suas obras. Ele é considerado como o maior poeta brasileiro, como "poeta dos poetas". Por isso sobeja a mençâo de outros poetas líricos, por exemplo de Castro Alves como "poeta da raça". Usando uma maliciosa preteriçâo, Lima Barreto esquivou-se dos autores contemporáneos. Ele aponta simplesmente que todos os escritores nativos ou "nacionalizados" desde os anos 80, como, por exemplo, Alfredo d'Escragnolle Taunay (1843-1899), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e proeminente advogador da Aboliçâo, estâo completamente reunidos na biblioteca. Policarpo aparece assim aberto para a literatura contemporánea e decididamente inclinado ao moderno, apesar dos dados preliminares relativamente detalhados sobre os documentos da literatura clàssica e da preferencia pelas modinhas. Machado de Assis, que tinha cortado relaçôes com Lima Barreto, é, por esta razâo, tao pouco citado (Memorias postumas de Brás Cubas, 1881; Quíneos Borba, 1891), assim como os naturalistas Aluísio Azevedo (Casa depensào, 1884; O cortiço, 1890) e Marcos Inglés de Sousa (O missionàrio, 1888). Mas que justamente dois autores "preferidos" de Policarpo fossem omitidos e mencionados só em apéndice traduz a ironia mordaz de Lima Barreto. Domingos José Gonçalves de Magalháes (1811-1882), o "Lamartine brasileiro", segundo a opinilo de Alencar, malogrou a representaçâo do indio americano, e com isto nào cumpriu a reivindicado de uma epopéia nacional. A crítica de Alencar suscitou uma discussäo na qual até o Imperador Pedro Π interveio pessoalmente a favor do diplomata, sem que Gonçalves de Magalháes expérimentasse a satisfaçâo de ser reabilitado como príncipe dos poetas. Manuel José de Araújo Porto Alegre (1806-1879), por sua vez, pintor, poeta e diplomata, publicou varios poemas na Minerva Brasiliense (1843/44) e que sob o título Brasilianas dedicou a Magalháes em uma ediçào ampliada (Viena 1863); seu desejo foi apoiá-lo na "Reforma da Arte", que começou com os Suspiros poéticos (1836) e continuou com A Confederaçào dos Tamoyos (1856), epopéia sobre a revolta de uma tribo tupi contra os portugueses no século XVI. Nela, o cacique tupi é considerado como figura simbólica do nacionalismo americano. Policarpo Quaresma nao estava à altura da avaliaçâo literaria do momento, pelo menos no caso desses dois "esquecidos" autores. Lima Barreto certamente também nao gostava deles. Inclui-os, por conseguirne, no suplemento com uma restriçâo a respeito da nomenclatura vigente das letras brasileiras. A seçào de belas letras na biblioteca de Policarpo reúne em urna esquisita seleçâo todas as obras significativas que oferecem uma tipologia ideal do brasileiro e da terra brasileira. Aquela biblioteca imaginaria é completada por uma extensa seçào da historia brasileira. No entanto, aquí figuram obras exemplares de autores estrangeiros. A enumeraçâo, por sua vez, fica limitada a poucos títulos e nâo pretende ser uma completa bibliografia históricogeográfica da civilizaçâo brasileira. Sao citadas antigas crónicas, como o Tratado descritivo do Brasil (1587) de Gabriel Soares de Sousa e a Historia da provincia de Santa Cruz de Pero de Magalháes de Gândavo (1576), uma descriçâo do descobrimento e da posse pelos portugueses que foi redigida com um propósito propagandístico para aumentar o interesse pelo

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Novo Mundo e para incentivar a imigraçâo. Assim encontramos ñas estantes, entre outras, a Historia da América portuguesa (1730) de Sebastiäo da Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, John Armitage (The History ofBrazil, 1836), Aires do Casal, Pereira da Silva, Heinrich Handelmann (Geschichte von Brasilien, 1860, urna obra capital cujo título aparece até mesmo em alemäo), Alexandro José de Mello Moraes, José Capistrano de Abreu, Robert Southey {History of Brazil, 1810-1819), Francisco Adolfo Varnhagen assim como "outros mais raros ou menos famosos autores". Em conexäo com as fontes históricas e obras historiográficas, encontramos livros sobre geografia e etnologia, assim como relatos de viagem. Aqui convém destacar preciosidades como o conhecido clàssico Hans Staden e Jean de Léry, ediçôes caras como as obras de Spix e Martius, Maximilian zu Wied-Neuwied, Louis Claude Freycinet, Auguste Saint-Hilaire, Louis Agassiz, Wilhelm Ludwig von Eschwege, Darwin, Bougainville, Pigafetta e outros nomes famosos na ciencia. Esta extraordinaria Biblioteca do Brasil representa um valor em si que devia ultrapassar os meios financeiros de Policarpo Quaresma. Nao falta nenhum título importante da pesquisa científica internacional sobre o Brasil. Ainda hoje, tal coleçào seria o adorno de qualquer bibliófilo brasilianista no mundo. Como convém para uma biblioteca bem armada, o acervo contém obras de consulta, dicionários, enciclopédias e manuais de conversaçâo em varios idiomas, que Policarpo - e isso também devia ser raro no Brasil finisecular - pelo menos passivamente dominava. O tesouro de livros que Policarpo Quaresma orgulhosamente guarda é um espelho de seus vastos interesses e da curiosidade versátil que ele compartilha com Lima Barreto: uma enciclopédia no que se refere a historia e cultura brasileiras, um impèrio de livros na imaginaçâo que o leitor incansável, como autodidata e diletante, construiu silenciosamente ao longo dos anos ao seu redor e dentro de si mesmo e que ele domina com enorme capacidade consumidora. O Brasil existia para ele numa visäo mental, numa introspecçâo livresca e experiencia letiva. A biblioteca é um hortus conclusus, um refugio onde se conserva a quinta-essência do ser nacional extraída e filtrada dos livros no meio de um mundo que de modo político, social, cultural e científico se via bem diferente da ideaçâo visionaria que criam os livros. Os livros e a biblioteca formam parte integrante e expressiva do patriotismo que Policarpo Quaresma cultiva fervorosamente, até que ele acaba num cataclismo grotesco e trágico como traidor da pàtria. Livros anunciam para ele o "laus Brasiliae", o louvor da pàtria, no molde retórico antigo por meio de comparaçôes sobrepujantes com os demais países. O Brasil aparece como paraíso terrestre. Apoiado nos conhecimentos retirados de livros, Policarpo converte-se ñas saídas quixotescas em um "inventor feliz" da realidade brasileira no duplo sentido do verbo latim "invenire": buscar, encontrar, descobrir, achar e, por outro lado, conceber, inventar no sentido da inventio retórica. Lima Barreto era tudo, menos um defensor cegó do patriotismo. Ele nao via no Brasil só uma Terra Prometida mas, ao contrario, uma república bagunçada que lhe inspirava graves preocupaçôes. Ele observava e criticava implacavelmente o estado do país pàtrio. No personagem ficcional de Policarpo, ele encena uma contra-imagem. O patriotismo é uma forma de conhecimento da realidade:

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O que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditaçôes sobre os seus recursos, para depois entäo apontar os remedios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa. (32) Patriotismo é, no entender de Policarpo, urna categoría utópica do pensamento que inventa o melhor de todos os Brasis imagináveis e possíveis com base em livros. Saindo de um assim definido patriotismo, o protagonista converte-se em um reformador político que medita sobre a "grande obra" e sobre a "emancipaçâo do povo" (58). Paradoxalmente, as leituras de livros ruins durante a vida de Policarpo se inscrevem sob o signo de "Reformas radicals", como diz o título ambiguo do capítulo 1,2 do romance. A leitura chega a ser um exercício patriótico obrigatório. Em conseqüencia do trato íntimo de Policarpo com os livros, o seu afastamento das pessoas e do mundo aumenta cada vez mais. O leitor assiduo persegue a meta de conformar a realidade com seu hábito de 1er, o que causa urna profunda alienaçâo. "Vivia imerso no seu sonho incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fora deles, ele nâo conhecia ninguém" (82). A leitura nutre a transformaçâo ideal do mundo, eia é revolucionaria. Semelhante ao cavaleiro errante Dom Quixote, Policarpo devora livros cujos mundos ficticios ele percebe na realidade. Policarpo dedica-se a percorrer com entusiasmo as publicaçôes científicas para aperfeiçoar a realidade brasileira segundo as instruçôes livrescas e teóricas suscetíveis de criar urna brasilidade exemplar. Ele é certamente menos leitor, e sim mais um visionario. Como Bouvard e Pécuchet (de Flaubert, 1851), ele acha que pode se apropriar do mundo pela leitura. No entanto, a leitura nunca se deve desligar da inteligencia. Por desgraça, isto se manifesta em diversas tentativas radicals. Em primeiro lugar Policarpo aprende o guarani, urna lingua indígena falada no Paraguai, por meio da obra de Antonio Ruiz de Montoya Arte y diccionario de la lengua guaraní (Madrid 1640), livro reeditado por Francisco Adolfo de Varnhagen com o aditamento errado no título Arte de la lengua guarani, ó mas bien tupi (Paris; Viena: 1878). Policarpo ocupa-se também da fala dos caboclos. No tupi-guarani ele procura, de uma maneira diletante, a lingua original e inveterada do Brasil. Na "Memoria sobre a necessidade do estudo e do ensino das línguas indígenas do Brazil" (1841), Varnhagen já tinha reclamado nao só o ensino do grego e latim, mas também o estudo das línguas indígenas nos liceus. Lima Barreto (ou Policarpo) usa também o termo "jargâo caboclo" (p.33) ou "idioma tupiniquim" (depreciativo para 'pròprio do Brasil', 'nacional'). Na procura dos indios, de seus "costumes e usanças" como base para o tipo brasileiro autentico, eie procede a compilar excertos em manuais etnológicos, contudo precisa pedir continuamente explicaçôes das "coisas antigas" ao seu velho empregado negro, um escravo alforriado, que vivia já há trinta anos com ele. Sendo analfabeto, ele estava em melhores condiçôes de compreender as tradiçôes que o seu amo e senhor erudito. A descriçâo de Lima Barreto ridiculariza estas tentativas pseudo-científicas de Policarpo para fundamentar a identidade nacional (neste caso baseado num "estudo lingüístico"). O fracasso torna-se evidente quando Policarpo Quaresma apresenta na Cámara dos Deputados uma petiçâo redatada em complicada linguagem burocrática, que é uma parodia ao estilo formalista oficial. O requerente exige declarar "o tupi-guarani como lingua oficial e nacional do povo brasileiro" para desta forma conseguir definitivamente a

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emancipaçao idiomàtica em analogia à independencia política do país. No entanto, o pròprio Policarpo nâo fala tupi, possui apenas um dicionário, porém nenhum texto escrito. Apesar disto, está convencido de que esta "lingua originalissima" corresponde perfeitamente à constituiçào do cerebro e das cordas vocais de um brasileiro e seria fisiologicamente mais adequada para "traduzir as nossas belezas, de pôr-nos em relaçâo com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente aos nossos órgàos vocais e cerebrais" (81). Policarpo entende o idioma como expressäo de urna visào do mundo. A lingua nao só se ajusta às condiçôes raciais e orgánicas, mas estabelece também urna completa consonancia entre o individuo e seu meio ambiente (natureza, sociedade, cultura). Policarpo adota um conceito determinista em voga na época para formular a expressäo brasileira. Como era de se esperar, a proposta provocou um grande escándalo na imprensa e colocou o experto, que vivia há decenios retirado da vida pública, de repente no centro de uma apaixonada polémica. A teoria de Policarpo é naturalmente tâo falsa como sua rigorosa (mas também leiga) noçào da lingua como receptáculo do caráter do povo. Os esforços de Mário de Andrade (Aíacunaima, 1928) ou Joäo Guimaràes Rosa (Grande Sertào: veredas, 1956) para criar uma lingua pròpria demonstram que o projeto de uma nova lingua nacional como instrumento de escritura para as belas letras do futuro acerta no cerne de um dos desejos mais ambiciosos dos poetas brasileiros desde o modernismo. Macunaíma é o "herói de nossa tribo"; nele Andrade intenta "salientar a essência nacional do brasileiro" (se bem que ele com isto igualmente fracassa e por firn verifica que o brasileiro nâo tem caráter). Andrade qualifica seu "romancinho" como uma antologia resumida do folclore brasileiro. A riqueza de Macunaíma consiste justamente em um novo discurso "impuro" ou idioma artificial em comparaçâo com as normas lingüísticas de Portugal, uma mistura de regionalismos e falares de diversos pontos do país, com inclusâo de indianismos e africanismos. Ainda que Lima Barreto, com intençâo satírica, sobrecarregue a caraterizaçâo do herói do livro, Policarpo toca, porém, com a preocupaçâo fundamental, a identidade nacional e o idioma - sem com seus meios deficientes, qualidades e idéias - poder nem mesmo aproximadamente solucionar os problemas. Em todo o caso, como fervoroso leitor de jomáis, ele está consciente da brisante atualidade política da questáo, como demonstra a alusäo aos tchecos e à Alsácia-Lorena. Policarpo sofre um fracasso rotundo: por um lado, defende o tupi-guarani como lingua literária e oficial - um empreendimento titànico para elevar a lingua dos oprimidos da pura comunicaçâo oral ao uso escrito e colocá-la na posiçâo de lingua dominante - , por outro lado, coleciona modinhas. Ambos empenhos contraditórios coincidem na busca quixotesca de prototipos entre fantasia e realidade. Policarpo considera as modinhas - cançôes populares - como a mais genuina expressäo da poesia nacional e das tradiçôes brasileiras. Na sua indagaçào pela "expressäo poético-musical característica da alma nacional" (37), Policarpo recorre os historiadores, cronistas e filósofos reunidos na sua biblioteca, até que ele alcança a certeza de que as modinhas - cançôes rimadas, sem maior exigencia formal, com simples acompanhamento melódico sobretudo pelo violino, "instrumento genuino brasileiro" (38) sao testemunhos, como as chansons populaires dos franceses, os Volkslieder alemäes ou os romances dos espanhóis, que expressam o ser íntimo dos brasileiros. Nelas fala o espirito

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original do povo e prefigura-se a poesia brasileira que precisa ser cultivada artisticamente. Por isto Policarpo toma aulas particulares de violino sem perceber que o desprezo por este instrumento está em desacordo com a pretensa popularidade de modinha tradicional. Talvez pensava Lima Barreto na coleçâo do poeta mulato Domingos Caldas Barbosa Viola de Lereno (Lisboa 1798-1826), cançôes sem música, que passam por um dos poucos documentos da poesia negra da época colonial, quando atribuiu ao fanático colecionador e leitor o entusiasmo pela modinha. Evidentemente eia nâo se presta para urna evocaçâo sentimental dos tempos passados, que Policarpo admira ñas modinhas como poesia da restauraçâo: "Houve em todos um desejo de sentir, de sonhar, de poetar à maneira popular dos velhos tempos" (46). Uma parte integrante da reforma radical de Policarpo consiste em "desenvolver o culto das tradiçôes" (51), para as quais as modinhas constituem um receptáculo, uma forma de transmissäo. No seu vivarium fora da cidade, Policarpo mora em clausura de monge da ordem de leitura e de "meditaçâo patriótica". Ele lê diariamente vários jomáis, procurando permanentemente informaçôes que dêem um estímulo útil para seu querido país. Policarpo abisma-se no estudo minucioso das revistas especializadas {Anais da Biblioteca, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, pp. 44s.) e de outras fontes nâo pormenorizadas no elenco bibliográfico. As pesquisas da lingua, antropologia e etnologia dos silvícolas desenvolvem uma especie de sociologia cultural, que revela as formas de vida primitivas da sociedade brasileira. Sobre esta base chegaria a ser o "Brasil o primeiro país do mundo" até ultrapassando a Inglaterra com o tempo. Como Dom Quixote devorava os livros de cavalaria, que alimentavam sua visâo da realidade e dos valores de outrora, assim Policarpo Quaresma, com vocaçào para "grandes empreendimentos", sente-se destinado a realizar as grandes idéias concebidas no decurso de trinta anos para assentar cabalmente o "grande país do Cruzeiro do Sul" (45). Numa primeira tentativa para sair do casulo medular da biblioteca, o mundo in nuce, ele vai viver no campo, a duas horas de trem do Rio, e observa "com entusiasmo de ideòlogo" (124) - tomando o termo ambiguo no sentido de filósofo no século das Luzes na França - o projeto da reforma agrària como ponto de partida para renovar o Brasil, desde sua Fazenda Sossego (Sanssouci), adquirida em troca de sua casa. Agora ele rejeita os antigos "desejos de reformas capitals nas instituiçôes e costumes" (120) e volta-se para o culto do solo. A brasilidade, definida como "espirito territorial" (Angel Ganivet), brota como produto da conjuntura de terra, raça e ambiente. O espiritualista Policarpo adota uma posiçâo claramente determinista. A transformaçâo da natureza em espaço cultivável será exaltada como ato fundador civilizatório que sustenta a inconfundível peculiaridade do Brasil. O terreno cultivado, o solo, a paisagem conformam a identidade nacional e condicionam o patriotismo. A questào agrària de fato permanece um problema fundamental do desenvolvimento brasileiro até o presente. Lima Barreto interessa-se muito pela agricultura e pelo desenvolvimento urbano. Policarpo, seu sonhador em idéias ou "ideólogo", encara exatamente um mal da pàtria, só os remédios que ele inventa e pretende aplicar sao inúteis ou uma grotesca mistura do falso, inadequado e clarividente. O negro Anastácio deve ajudar seu senhor "muito lido e sabido em coisas brasileiras" (120) com

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experiencia e bom senso. Em urna agricultura próspera, Policarpo vê a condiçâo previa para a ascensäo do Brasil como potencia mundial, como futuro paraíso. Já antes ele tinha defendido exlusivamente os produtos do Brasil, licor nacional, até mesmo uma horticultura nacional que só utilizaría plantas nativas da terra brasileira e nâo aquelas exóticas rosas de moda, magnolias e crisantemos. Em compensaçâo à venda da biblioteca, ele instalou no campo um "museu de produtos naturais" (40). Este museu de ciencias naturais funciona como arquivo e inventario para registrar a realidade natural do país com criterios científicos ao teor do século XIX. Com a mesma paixâo com que ele anteriormente se consagrou a colecionar livros, Policarpo agora entrega-se a herborizar e formar uma "biblioteca agrícola": pede livros da França e de Portugal, compra uma quantidade de aparelhos para medir o vento, a temperatura, humidade, pressâo atmosférica, as chuvas, mas que logo estâo espalhados sem ser usados, porque Anastácio, o ingenuo, nâo necessita nem sabe manejar instrumentos tao sofisticados; em vez de ciencia tem sabedoria e já sabe tudo a respeito da lavoura, servindo-se de utensilios tradicionais e simples, enquanto Policarpo, agora como incorrigível jardineiro e "inventor feliz" da realidade agrícola, se guia por livros. Ele solicita catálogos de maquinaria agrícola, planeja a importaçâo de um arado de dupla relha, uma semeadora, mas como ecologista avant la lettre se opôe ao uso do adubo químico. Estrumar com nitrato e fosfato seria profanar a terra brasileira (179). Os milhares de pequeños jardineiros ou minifundiários ao redor do Rio deveriam formar uma rede de depósitos da colheita que garantisse o abastecimento descentralizado da capital com produtos hortenses. Policarpo já nâo estuda a historia e a política, mas sim a mineralogia e geologia, as plantas úteis nativas. Ele planeja a alternancia de cultivos, organiza a contabilidade da fazenda experimental com habitual exatidâo matemática da planificaçâo. Ele lavra a terra como "demonstraçâo das excelencias do Brasil" (118), assim como antes ele tinha considerado a produçâo literária como fecundo repertorio do espirito nacional brasileiro. Todavía Policarpo falha de novo nos escolhos da burocracia, da maquinaria legislativa, das intrigas, e nâo por último na falta de conhecimentos úteis (como da veterinària) e de experiencia. Só o saber teórico nâo garante nenhum melhoramento nem progresso. Depois do malogro da reforma agrària, que também incluiu o problemático conflito cidade-campo, Policarpo porém nâo se desanima, acha que é necessàrio "refazer a administraçâo", um empreendimento de Sisifo, que desde o principio estava condenado a falhar. Policarpo Quaresma, o herói sem medida ocular, aposta entâo na tentativa de forjar um futuro Brasil grandioso, com a meta de um governo forte e respeitado que promovesse o desenvolvimento do país no sentido do lema pàtrio de "Ordern e Progresso". Novamente apresenta, o convencido leitor, um memorial para melhorar a agricultura. "Era um combate com sombras, com aparêneias" (171), como também Dom Quixote armou a luta contra as asas do moinho de vento. E a trágica ironia do romance de Lima Barreto, que o seu antiherói logo será vítima deste "forte" poder executivo. Numa virada absurda e catastròfica do destino, Policarpo perde a vida fazendo uso do direito fundamental da livre expressâo quando protesta em público para salvar da execuçâo os prisioneiros selecionados arbitrariamente ñas cadeias militares. Durante toda a vida ele queria ser um zeloso patriota e morre

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executado como infame traidor. Antes deste vergonhoso final, Policarpo segue estudando livras com obsessâo, agora sobre ciencia militar, especialmente artilharia, balística, mecánica, geometria e trigonometria. Aqui ele faz valer seu talento matemático com assustadora pedanteria, por um lado "para a grandeza da patria" (227) como se fosse um problema de acrobacia mental, por outro lado com incrível ingenuidade, como se fosse possível computar a realidade. Em 1891 intervieram, pela primeira vez, os militares na política brasileira. Quaresma, completamente distraído e fora da realidade, faz, de maneira paradoxal, carreira até o posto de major; é a caricatura de um oficial ou, visto pelo outro lado, se um homem do calibre de Policarpo Quaresma pode ascender ao grau de major, a qualidade do corpo de oficiáis deve ser suspeitosa. Policarpo burla-se furiosamente do exército, "a tiranía domestica". É notável que o romance alude abertamente a acontecimentos políticos e à "santa falange" (208) da casta de oficiáis. Outra vez Policarpo se vé desiludido em seu ardor insaciável de reforma. Agora ele admite a "tolice de estudar inutilidades" (285), uma confissâo amarga de desencanto. "A patria que quería ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silencio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectualidade, nem a política que julgava existir, havia" (285). Com a revolta da Armada em 1893 e a execuçâo de Quaresma se desfaz fatalmente o mundo fantástico do bibliómano incorregível. Como Dom Quixote, Policarpo morre no momento da lucidez, da libertaçâo das ilusôes e obsessôes de leitura. Como a Quixote, faltava a Policarpo o "juízo" (30), o dom do discernimento, o bom senso. Só no último momento ele consegue a clarividencia. Assim como Quixote, Policarpo tem suas manias, sobretudo a "mania da leitura" (77). Ambos os heróis tomam o partido da justiça, do ideal, dos valores, ambos ressentem-se da "insania declarada" (79). Em ambos a "loucura sagrada" (116) é a força motriz principal. Policarpo esteve hospitalizado por um tempo, por causa de um ataque de alienaçào mental provocado pelo patriotismo excessivo escrevendo em "tupi". O problema da demencia ocupava Lima Barreto em relaçào a seu pai, que vivia em um hospicio. Cemitério dos vivos é o título de um romance inacabado sobre esta experiencia. Lima Barreto estudava a psicologia e psicopatologia da loucura, nao só devido à situaçâo familiar, mas também a respeito do corpus politicum da sociedade. Ambos os heróis ficcionais nâo tinham interesses materials pelo dinheiro, sucesso, fama. Eles viviam em uma "reserva de sonho", com "candura" e "pureza de alma" (83), embelecados por idéias fixas e obsessôes. Sâo "ideólogos" e visionários. Em uma resenha de O tristefirnde Policarpo Quaresma, Manuel de Oliveira Lima denominou o protagonista do título, com razio, "Dom Quixote nacional", ambos sâo figuras "otimistas incorrígiveis". Como Quixote se inspirou na idéia missionària de ser o último cavaleiro medieval errante, assim perseverou Policarpo Quaresma na missâo fatal do patriota reformador do mundo brasileiro. Quixote é vítima da quimera dos velhos romances de cavalaria, Policarpo é vítima da "filosofia social da época", celebrada como mito redentor pelos correligionarios e fanáticos do poder. Ele acaba como mártir da sociedade, que nao o entende mais, porque, como Dom Quixote, defende as "velhas coisas" contrárias ao mundo de hoje.

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As triplas saídas, saldas para grandes façanhas, sâo respectivamente atos de leitura equivocada de livros. Em sua "fé de inventor" (277) Policarpo forja urna visâo de um futuro melhor do Brasil. Mas essa utopia nâo é o Brasil que o cético Lima Barreto esperava em sua amarga denùncia da realidade contemporànea. Lima Barreto encena urna variante moderna da batalha dos livros. A batalha dos livros que se dà no romance nâo é entre antigos e modernos, é urna polèmica sobre a realidade nacional, sobre o Brasil possível, sobre o "país do futuro". O romance de Lima Barreto é um livro amargo, agressivo e militante, uma apaixonada tomada de posiçâo crítica perante a questäo sobre o que será o Brasil. Policarpo é um leitor voraz que adivinha nos livros o estado vindouro do país, ele percebe o futuro como exercício de soletrar a prefiguraçào ideal do Brasil documentada em livros. Num gesto gigantesco de revisâo ou releitura questiona a historia, a literatura, o folclore, as tradiçôes indígenas para constituir o Brasil. "Reviu a historia, viu as mutilaçôes, os acréscimos em todos os países históricos e perguntou de si para si, como um homem [...] podía sentir sua patria" (286). Nos limites das ficçôes fabuladas na mente de Policarpo o livro dentro do livro assume a funçâo de veículo deliberativo para fustigar os delirios dos teóricos ufanistas da brasilidade. O livro no livro permite a discussâo crítica, satírica e irónica de questôes sociais e problemas políticos em um requintado reflexo e panorama dos projetos livrescos. O romance de Lima Barreto nâo é mera caricatura, sátira ou panfleto; seu herói lido é todo o contràrio de um protagonista "ativo" no sentido comum. A figura contraditória de Policarpo Quaresma situa-se na grande controvèrsia de idéias sobre a modernizaçâo que ocorreu por volta de 1890, que tanto irritava o escritor Lima Barreto. Policarpo, com sua "perspectiva otimista" e entusiasta sem cessar contrariada publicamente, encarna tragicamente as incongruencias irrealistas dos projetos. Ao contràrio dos apologistas e pregadores oficiáis que proclamavam o Brasil como país do futuro, Lima Barreto revela uma visâo entranhadamente cética e desconfiada do hoje e do amanhâ. O mote francés de Ernest Renan, que abre o romance, antecipa a liçâo fatídica do "triste fim" do protagonistaleitor louco e bibliómano ante a discrepancia irreconciliável entre realidade e visâo: Le grand inconvénient de la vie réelle et ce qui la rend insupportable à l'homme supérieur, c'est que, si l'on y transporte les principes de l'idéal, les qualités deviennent des défauts, si bien que fort souvent l'homme accompli y réussit moins bien que celui qui a pour mobiles l'égoisme ou la routine vulgaire.

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A "Nota preliminar" d'Cte sertôes Embora explorada pelos intérpretes, a "Nota preliminar" contém algumas das questôes básicas a Os sertôes. A primeira concerne ao problema da raça. Sua afirmaçâo inicial expressa ponto de vista inabalável: Intentamos esboçar, pálidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazêmo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situaçâo mental em que jazem, as tornam talvez efémeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigencias crescentes da civilizaçâo e a concorrência material intensiva das correntes migratorias que começam a invadir profundamente a nossa terra. (Cunha 1902a:85)

Cinco anos depois de findo o conflito, o modo de examiná-lo já nâo poderia ser semelhante ao de urna reportagem extensa; nao porque nào mais despertaría o interesse do público senâo pela convicçâo adquirida do que ali se passara. Canudos fora síntoma de algo bastante grave. Era o país, a cuja historia Canudos de chofre se incorporara, que carecía de interpretaçâo. Conforme a passagem acima, a variável étnica era o primeiro elemento a ser esmiuçado. E isso por um interesse documental: o que durante a luta se arrasara era urna sub-raça a que, "faltando urna situaçâo de parada ou equilibrio" (ibid.), se fraudara em seu destino de servir "à formaçâo dos principios imediatos de urna grande raça" (ibid). Contemporàneo e leitor da antropologia biològica e evolucionista, Euclides, na neutralidade que se julgava a regra de ouro de urna mente científica, via o sertanejo como urna das "raças fracas", esmagadas por "raças fortes", de acordo com "essa implacável 'força motriz da Historia' que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial [...]" (86). Duas questôes entäo de imediato apontam: (a) sendo Gumplowicz a fonte decisiva para o juízo de Euclides, o quai, como "A Terra" o mostra, é fundamental quanto a Canudos e quanto ao pròprio futuro do país, valerá sabermos melhor o que de fato escrevera o sociòlogo polonés; (b) se os trechos citados enfatizam a inexorabilidade com que a Historia selaria o tempo de vida da sub-raça indicada, a imagem freqüente (e nâo distorcida) que os leitores têm de Os sertôes é diversa e, a bem da verdade, incongruente: a de que Euclides teria feito a naçâo conhecer a atrocidade que ali se cometerá. Com efeito, nenhum leitor poderá deixar de ver que, embora se louvem alguns chefes militares, a açâo do Exército é severamente criticada. Mostra-o com mais nitidez a comparaçâo com que escreveram outros contemporáneos. Tanto em Dantas Barreto como em Macedo Soares nào há algum desmentido cabal de que Canudos fizesse parte de urna conspiraçâo de monarquistas. Se a afirmaçâo, no inicio de seu relato, "[...] Canudos parecía constituir a força demolidora das instituiçôes republicanas do Brasil" (Barreto 1898:11), poderia ser entendida como simples eco da opiniâo entâo divulgada pelos jomáis, depois desmentida por o autor acrescentar que "desconhece até hoje" provas seguras da "grande conspiraçâo" (ibid., 20), o curso efetivo de

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sua análise nâo é esse. A falta de comprovaçâo de contato com grupos monarquistas é substituida por urna presunçâo psicológica: Cornudo, o que parece razoável é que os interessados na subversio da ordem pública do país, começassem a lançar suas vistas sobre esse grande núcleo faccioso, tocados da maior simpatia; que afagassem a idéia do aniquilamento total do exército republicano ali; que depois a naçâo enflaquecida, exausta de recursos, caisse em franca anarquía, para entâo se apresentarem e vibrarem o golpe fatal. (Barreto 1898:20-21)

É com base nessa presunçâo que o ex-oficial na campanha de Canudos mantém até o firn a justificativa oficial das expediçôes. Tampouco vem ao caso qualquer mençâo a qualquer massacre. Mesmo que dele tenha sabido, o autor o julgaria de somenos dado o projeto de que via investidos os comandantes das expediçôes: dotar o Exército de urna força moderna, capaz de enfrentar seu inimigo (!?) no continente e torná-lo, ante a opiniâo pública, uma instituiçâo temida e respeitável. A propósito de pontos controversos, ainda mais discreta e ambigua é a posiçâo do outro combáteme em Canudos, o tenente Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares. Embora também eie saiba que "em falta de provas materials nâo estava plenamente verificado ser o dito movimento o começo duma grande sediçâo monarquista" (Soares 1902:40), logo acrescenta que "veementes indicios" viriam depois a ser "corroborados com a leitura de importantes documentos, apreendidos após a queda do famoso baluarte" (40-41). Como ele mesmo nao se dá ao trabalho de referi-los, o leitor fica com a impressäo de que o importante era defender a missào do Exército republicano: "Era esse o último esforço que a República punha em prova. Vencedora a expediçâo, eia estaña salva, ou perdida com a derrota" (41). E idéntico ainda seria seu silencio sobre o massacre dos sobreviventes. Em flagrante contraste, em Euclides nao só a hipótese da conspiraçâo monárquica é simplesmente descartada como é bem evidente e até mesmo pontual a denùncia do último crime: "De que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de nâo aparecerem mais, desde a manhä de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera [...]?" (Cunha 1902a:571). A inferencia evolucionista sobre o futuro da sub-raça se chocava pois com o que afirmava sobre a açào das tropas federáis. Nâo é que a explicaçâo evolucionista impugnasse o tom de denùncia, mas a enfraquecia de maneira taxativa: a comunidade que ali se trucidara, durante anos de urna luta desigual, já estava fadada pela "força motriz da Historia" a desaparecer. Conquanto a açâo do governo republicano haja sido impiedosa ou mesmo criminosa, buscando resolver pelas armas o que era um conflito de mentalidades e assim demonstrando, em seu "litoralismo", como diría Amoroso Lima, uma ignorancia mais injustificada que a dos fanáticos, o fato científico cru era que os assassinados tinham curto prazo de vida. A explicaçâo evolucionista nâo coibia a denùncia, mas por certo a limitava ao aspecto humanitário. O interesse da observaçâo nao está em assinalar a contradiçâo do autor. Tampouco em acrescentar ao rol das contradiçôes, "explicáveis" por seu talento de "romancista", uma outra sem nenhum efeito literário. Seu interesse está sim em concretizar o embaraço que o

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evolucionismo criava para seu adepto nos trópicos. Esse embaraço inexistia para os evolucionistas admirados por Euclides: enquanto europeus, pertencentes a populaçôes que podiam supor homogéneas, a mestiçagem seria para eles problema doutros povos e doutros continentes. Para Euclides, ao invés, o embaraço torna a contradiçâo motivada·, a denuncia que acompanha seu grande livro é provocada por um movimento de revolta que nào encontra apoio e, na verdade, se manifesta em independencia da explicaçâo "científica" que adota - o que ali se massacrara se extinguiría pelo mero curso do tempo. É certo que, a partir da frase já comentada - "Destinavam-se talvez à formaçào dos principios imediatos de urna grande raça"-, poder-se-ia entender que a açâo criminosa do Estado fizera abortar "urna grande raça". Essa seria a maneira de subjugar a contradiçâo. Mas Euclides, conquanto a "Nota" deva haver sido escrita depois do pròprio livro, nào se empenha em subjugá-la e o "talvez" soa como sinal de dúvida. E, porquanto a contradiçâo nâo se dissolve, toma-se mais forte a questâo do embaraço criado pela teoria. Os poucos parágrafos da "Nota preliminar" a tornarâo ainda mais aguda. Porém, antes de enfrentá-los, levante-se urna questâo que parece nâo haver interessado aos estudiosos de Euclides. Como vimos, a raiz de sua certeza sobre o destino da sub-raça sertaneja e seu conseqüente embaraço dependeram da influencia marcante de Gumplowicz. Tem-se partido do suposto que o sociólogo de Graz respaldava biologicamente o argumento. Os comentaristas, ainda quando pareçam haver consultado a fonte, têm dado por correta a interpretaçâo. Em Der Rassenkampf (1883), provavelmente lido na traduçâo francesa, La lutte des races (1893), Ludwig Gumplowicz nâo se mostrava um autor complicado. Sua tese era bem transparente. Defensor do poligenismo, para ele a especie humana consta de raças diversas porque diversos haviam sido seus centros de criaçâo. Desde o começo da historia conhecida, "nos deparamos com um grande número de raças humanas, que se encaram entre si como estrangeiras pelo sangue e pela descendencia diferente" (Gumplowicz 1883:54). Por inferencia assim já se dava antes do período histórico conhecido e, do ponto de vista de sua formaçào, nenhuma mudança notável se verificara na sociedade dos homens. Cada comunidade humana fora constituida por fusôes semelhantes de raças diferentes, tendo como único denominador comum a "organizaçâo do poder" e a articulaçâo de interesses e conquistas (170). Essas comunidades sociais se produzem, ao curso do processo natural histórico, sob a forma de combinaçôes as mais diversas: superpôem-se, cruzam-se, enlaçam-se de muitas maneiras, segundo as diversas complicaçoes que apresentam tanto os interesses como as relaçôes de subordinaçâo sobre as quais se estabelecem. (ibid.)

Os únicos traços que singularizam a sociedade humana sâo o principio de poder e a conseqüente subordinaçâo dos membros da comunidade ao grupo dominante. Por efeito desses dois traços, a fusâo e a superposiçâo com outros grupos, de mesma ou diversa familia étnica, bem como a conquista, o massacre e o exterminio de grupos diferentes do que dispôe da força do poder constituem o processo histórico natural. Por esse aspecto, Gumplowicz é um darwinista. Por outro lado, por se tratar de um processo natural, de um ponto de vista que hoje chamaríamos diacronico, eie se cumpriria pela seqiiéncia das mesmas fases. O evolucionismo de Gumplowicz se pretende tâo científico e, portanto, formulador de leis,

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como os diversos evolucionismos propostos na época: "Estas fases constitutivas

devem

necessariamente [...] haver sido sempre e em todas as partes semelhantes àquelas que observamos, considerando esse processo durante todo o lapso de tempo que nos oferece a historia conhecida e a época atual" (172). O caráter de "processo natural" e, por conseguirne, de lei emprestaría ao objeto 'historia da humanidade' urna estabilidade científicamente verificável. A historia é impulsionada pelo conflito e o conflito se nutre da heterogeneidade étnica dos grupos. Por isso a guerra é "natural e inevitável". "Se a guerra alcança sua meta, produz-se, entre os elementos heterogéneos, urna relaçào de dependencia ou de dominaçâo" (176). É deste sentido preciso que deriva o título do livro. "Estas lutas constituem a essência do processo histórico" (193). A aliança ou a hostilidade entre os grupos é definida em termos políticos ou, como Gumplowicz escreve, em funçào da divisào do traballio, e nào por motivos biológicos. E verdade que, ao definir "raça", Gumplowicz poderia dar condiçôes de se entender que privilegiava o fator biológico: A raça é urna unidade que, ao curso da historia, se produziu no desenvolvimento social e por ele. Seus fatores iniciáis [...] sào intelectuais: a lingua, a religiào, o costume, o direito, a civilizaçào, etc. Só mais tarde aparece o fator físico: a unidade de sangue. Esse é bem potente: é o cimento que mantém essa unidade. (192)

Mas, se a dúvida ainda fosse cabível, eia se dissiparla ao se recordar que todo o ensaio insiste em ver em cada comunidade "o processo de assimilaçào dos elementos heterogéneos" (183). Por conseqüéncia, o pròprio privilègio que, posteriormente no tempo, seria concedido ao sangue haveria de ser entendido dentro de coordenadas sociais e nao biológicas. A comunidade de sangue nào seria naturalmente estabelecida porque nao passarla doutro nome para a comunidade de interesses, efetivos ou potenciáis. Por isso, conquanto os povos primitivos desconheçam tribos etnicamente puras, no espirito de muitos povos "as unidades étnicas originarias das tribos" foram conservadas "porque a mistura de sangue nao produz modificaçôes sensíveis no espirito [...] [e] o sangue estrangeiro mergulha na circulaçâo intelectual da tribo como correntes de agua doce penetram no mar [...]" (195). Nos termos do autor, isso equivalerla a dizer: o sangue, embora estrangeiro, deixa de se-Io quando se integra na mesma "circulaçâo intelectual", i.e., quando se amolda aos mesmos interesses. Biologicamente, pois, as raças sao sempre mestiças porque, na terminologia do autor, constituidas por raças heterogéneas. Dai resulta a possibilidade de inversâo entre os polos dominante e dominado. "Inúmeros países independentes, Estados ou territorios ou apenas partes de Estado nos apresentam, em sua superposiçâo étnica, aínda perfeitamente visível, a persistencia do processo de desenvolvimento em que os antigos dominadores se converteram em dominados" (206). Insurgindose pois contra o postulado da versäo do evolucionismo majoritário, Gumplowicz dizia com todas as letras:

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A coincidencia das classes e das castas professionals com as diferenças étnicas e com as diferenças de raças na populaçâo de um Estado provém de que é unicamente em vista da divisào económicopolítica do trabalho que coube focosamente organizar a dominaçâo. (210) Ou porque nâo tivesse outras idéias a explorar ou porque temesse a incompreensào de sua tese, Gumplowicz a repete por todo o livro. Mas, apesar de seu cuidado, Euclides nâo o entendeu. Seria por acaso a incompreensào dependente do uso do termo "singenetismo"? O desentendimento ainda seria plausivel perante frase como: "Está na natureza que 'toda exploraçâo' doutros homens, onde quer que eia se dê, sempre busca suas vítimas fora de seu circulo singenético" (210). Mas, independente do fato de a frase vir logo a seguir da acima citada, páginas adiante o autor definía o sentimento que o singenetismo provoca: é ele "o sentimento da ligaçâo entre todos os membros do bando.

Nâo é precisamente a

consangiiineidade produzida por uma origem comum; é o sentimento da comunidade dos elos do bando" (242). O desentendimento de Euclides parece entâo bastante curioso. E ainda mais intrigante porque se baseia exatamente na passagem que condensa toda a tese de Gumplowicz: A luta das raças pela dominaçâo, pelo poder, a luta sob todas suas formas, sob uma forma confessada e violenta ou latente e pacifica, é portanto o principio propulsionador propriamente dito, a força motriz da historia·, mas a pròpria dominaçâo é o pivô em torno do quai giram todas as fases do processo histórico, o eixo em torno do qual elas se movem pois os amalgamas sociais, a civilizaçâo, a nacionalidade e todos os fenómenos mais elevados da historia só se revelam em decorrência de organizaçôes de poder e por meio dessas organizaçôes. (217) Portanto, ainda que se confesse discípulo do sociólogo polonés - "sou um discípulo de Gumplowicz, aparatadas todas as arestas duras daquele ferocissimo gènio saxônico" (sic) (Cunha 1903 11:624) - e seu constante leitor - "[...] passo o melhor da vida às voltas com o gárrulo H. Heine ou com o Gumplowicz terrivelmente sorumbático" (Cunha 1904 11:648) - , Euclides nâo soube perceber a singularidade de sua posiçâo, a quai, entretanto, teria sido capaz de provocar, por seu antibiologismo, a emersâo de um prisma completamente diverso da historia particular da guerra e geral do país. A clareza de Gumplowicz nâo o impedia de ser um estranho darwinista. Desde logo porque, como assinalava Durkheim em resenha doutro livro seu, nâo acreditava no progresso. Fazendo justiça à tese do sociòlogo polonés de que a luta pelo poder, a guerra em suma, é o fator dinámico ñas relaçôes entre os povos, Durkheim o criticava justamente por isso: a dinámica das sociedades era estimulada por um fator apenas externo, a guerra; tirante a guerra, as sociedades se manteriam sempre iguais (Durkheim 1885:344-354). Poder-se-ia pensar que o sociólogo polonés abandonara a explicaçâo étnico-biológica e que teria combinado sua adesâo a Darwin com a influencia de Nietzsche, sem, entretanto, e aqui entraria o reparo de Durkheim, fazer que esta iluminasse as lutas pelo poder internamente processadas. Seria interessante desenvolver esta via, capaz de provocar um novo interesse em um autor que, na bibliografia estrangeira, se torna objeto de meras notas ao péde-página. Mas eia só aumentaría o embaraço que causa a leitura feita por Euclides.

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Quais as conseqiiências do modo como Euclides leu A luta das raçasi É inquestionável que seriam ¡números os dentistas sociais daquele firn de século em que o autor encontraría respaldo para a condenaçâo da mestiçagem. E mesmo extraordinario que Gumplowicz desvinculasse a sociologia do esteio biológico em que o evolucionismo se enraizava. E até aceitável que, para Euclides, a originalidade de seu admirado autor estivesse menos na condenaçâo dos mestiços - condenaçâo que, como devemos reconhecer, Gumplowicz nâo fazia - do que na formulaçâo de "a força motriz da Historia". Seja como for, é tâo central o papel do tropeço na leitura de A luta das raças que ignorá-lo é transtornar a obra euclidiana. Na verdade, nâo saberíamos bem imaginar como seria Os sertôes sem a desleitura de Gumplowicz. O fato é que seria outra coisa. Sem essa desleitura, a "Nota preliminar" nâo se libertaria do obstáculo que a trava? Com efeito, a destruiçâo de Canudos nâo seria considerada urna inevitabilidade histórica e o sertanejo, se nâo estava destinado a formar "urna grande raça" - o que nâo se inferiría de Gumplowicz! - , tampouco estava condenado a desaparecer. Em troca, a acusaçâo ao governo e ao Exército nâo teriam ressalvas. Tudo, em suma, seria mais nítido e claro, exceto o pròprio Os sertôes, que, resumindo-se a documento da indignaçâo moral do autor, nâo justificaría a amplidâo de suas duas primeiras partes. Além do mais, se estivesse limitado à terceira parte, "A Luta", nâo caberia n'Oj sertôes a preocupaçâo quanto ao país, em seu momento presente ou no futuro. Pois essa preocupaçâo nâo é urna mera decorrência de sua indignaçâo moral. Quaisquer que sejam as reservas quanto à sua interpretaçâo, é inegável que Euclides foi o escritor que mais se empenhou em tentar compreender o país, nâo se deixando para isso enredar por vantagens e compromissos. Sem a desleitura, portanto, de Gumplowicz, os impactos da afirmaçâo da "rocha viva" da nacionalidade e, indiretamente, da denùncia da "civilizaçâo de empréstimo" arraigada no litoral seriam nenhum. Escoimar o erro interpretativo ou de alguma maneira neutralizá-lo comprometería a obra que o acolhera, a diminuiría em mero documento de um massacre planejado. A desleitura de Gumplowicz é, pois, o esteio inarredável para a interpretaçâo "científica" do país e, involuntariamente, o amenizador da denuncia contra o que se perpetrara em Canudos. Seu efeito contraditório, entretanto, ai nâo termina: o evolucionismo endossado por Euclides nâo se move com menos embaraço diante do outro parágrafo capital: A campanha de Canudos tem por isto a signifïcaçào inegável de um primeiro assalto, em luta calvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradiçôes nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlantico dos principios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela industria alema tivemos na açâo um papel singular de mercenarios inconscientes. (Cunha 1902a:86)

A principio, o parágrafo alude ao mesmo quadro étnico que apoiara a indagaçâo do sertanejo, apenas mudando a focalizaçao deste pela das tropas federáis, compostas por membros "etnologicamente indefinidos". A cláusula seguirne, "sem tradiçôes nacionais uniformes", conquanto já saia do marco étnico, nâo criaría problema por se referir ao contorno histórico onde as misturas raciais se processam. A verdadeira questâo aparece na continuaçâo da

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frase: "vivendo parasitariamente", prolongando-se até o final do trecho. Embora o termo "parasitario" remeta ao contexto biológico, implica urna metáfora que urna sociologia de cunho biológico nao justificaría. Prova indireta: quando Manuel Bonfim publica em 1905 A América Latina o termo "parasita" já alcança uma funçâo central. Mas como justifica o parasitismo das sociedades latino-americanas? No fato de que, havendo sido escravocratas, criaram-se na classe dos senhores, os hábitos da preguiça e da indolencia (cf. Bonfim 1905 Π, I, esp. 63). Ou seja, a metáfora biológica era subrepticiamente passada para um quadro explícitamente social. E certo que, à semelhança do modo como argumentamos a propósito da contradiçâo contida no primeiro parágrafo central, poderíamos pensar que a inferioridade (também) mental dos mestiços os levava a parasitar as correntes civilizatórias e, dai, por firn, acederem à condiçâo de mercenários. Mas o pròprio Euclides nâo é tao determinista que ousasse o passo. O parasitismo do litoral, acusaçâo que extrema nossa tendencia a macaquear o estrangeiro - "parece que nossa divisa é o arremedo" (Gama 1840:339) -, freqiiente desde as "pressôes modernizantes [...] particularmente vivas no período regencial e nos primeiros anos do reinado de dom Pedro Π" (Mello 1996:11), na verdade supunha um quadro teórico diverso do fornecido por uma base estritamente biológica. A seu propósito, poder-se-ia mesmo pensar em uma teorizaçâo do social onde o simbólico desempenhasse um peso decisivo. De acordo com eia, o Brasil seria exemplo de uma sociedade tao insegura de si mesma, tao alheia ao conhecimento de sua pròpria realidade que a maneira de administrarse, desde os modos de se vestir até à confecçâo de suas leis, se vinha fazendo pela importaçâo da simbòlica européia. Mas, obviamente, isso nâo tem nada a ver com o modo de pensar de Euclides. O que estaría mais próximo dele seria no máximo a teoria da imitaçâo, em voga desde meados do XIX. Entre a teoria da desigualdade das raças em que Euclides converte a tese de Gumplowicz, base do primeiro argumento, e a teoria da imitaçâo, em que soa à distancia a acusaçâo ao parasitismo da civilizaçâo litorànea, nâo há imbricaçâo direta. Ao contràrio, há mesmo uma relativa descontinuidade: a imitaçâo, por mais mecánica que seja concebida, sempre supôe uma causa social. Essa descontinuidade é, entretanto, compensada pelo propòsito comum aos defensores de uma e outra teoria: tratava-se em ambos os casos de dotar o exame do social de um instrumental científico-positivista. Esse contorno, ademais explicitado pela citaçâo de Taine, com que se encerra a "Nota", de certo modo explica por que Euclides podía fundar seus dois argumentos em teorías distintas. Apontar para o papel desempenhado na economia d'Os sertôes pela teoria da imitaçâo terá a vantagem de dar condiçôes a que se concretize melhor a posiçâo de seu autor quanto à obra literária. Mais longinquamente ainda poderá apresentar outra vantagem: permitir ao analista, ao combiná-la com outros dados, verificar a maneira como Euclides se conduzirá diante do problema da teorizaçâo. Em suma, a leitura da "Nota preliminar" a mostra como um microcosmo orientador do vasto espectro que é o livro que anuncia.

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Joäo Cezar de Castro Rocha

Um tempo antropófago para um espaço multicultural. Notas sobre antropofagia e multiculturalismo1

Antes da geografia A conhecida fórmula do "Manifesto antropòfago", de Oswald de Andrade, fornece o ponto de partida para meu argumento: "antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade".2 Antes do multiculturalismo, Oswald de Andrade inventara a antropofagia. Em poucas palavras, essa é a reflexâo que pretendo propor. Nesse caso, contudo, além de escassas, as palavras dizem muito pouco. Pois, além de anacrónica, a simples justaposiçâo de antropofagia e multiculturalismo confunde o que desejo distinguir. A consulta a très críticos brasileiros contemporáneos auxiliará minha tarefa, permitindo diferenciar o que denomino "tempo antropófago" de "espaço multicultural".

O malandrò e sua dialética Como o ensaio de Antonio Candido sobre as Memorias de um sargento de milicias é bastante conhecido, limito minha leitura ao propósito que me orienta. De qualquer modo, o leitor interessado pode encontrar nos estudos de Roberto Schwarz, Roberto Goto e Paulo Arantes urna análise detalhada dos pressupostos e possiveis conseqüencias da "dialética da malandragem".3

1

Ensaiei algumas das idéias desenvolvidas nesse ensaio em "Do malandrò ao antropófago: por urna epistemologia da ausencia", traballio apresentado no XVIII Symposium on Portuguese Tradition, realizado na Universidade da California, Los Angeles, em 1995. O texto foi publicado em Mester. Special Issue on Brazilian Literature. Los Angeles: UCLA, Spring 1995, pp. 173-184. Agradeço a Emanuelle Oliveira o interesse na publicaçâo do texto.

2

Oswald de Andrade: "Manifesto antropòfago". Publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, n s 1, Maio de 1928. In: A utopia antropofdgica. Sào Paulo: Globo, 1990, p. 51.

3

Ver: Roberto Schwarz: "Pressupostos, salvo engano, de 'Dialética da malandragem'", in: Que horas sào? Sào Paulo: Cia. das Letras, 1987, pp. 129-155; Roberto Goto: Malandragem revisitada (urna leitura ideològica de 'Dialética da malandragem'). Sào Paulo: Pontes, 1988; Paulo Arantes: Sentimento da dialética na experiencia intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Sào Paulo: Paz e Terra, 1992. Para urna avaliaçâo recente do tema, ver: Goiamérico Felício Carneiro dos Santos: A angùstia da influencia: urna leitura da "Dialética da malandragem" de Antonio Candido. Tese de Doutorado em Literaturas de Lingua Portuguesa de PUC-Rio, 1999.

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Antonio Candido principia sua leitura das Memorias de um sargento de milicias através da distinçâo entre o malandrò e o picaro. Enquanto esse constituí figura central em determinado género espanhol, aquele representa a emergencia tanto de personagem quanto de forma novelística propriamente brasileiros.4 Sem dúvida, o argumento de Candido é bem mais sofisticado do que posso aqui expor. De qualquer forma, e fiel a seu método crítico, fundado na dialética do elemento externo que é transformado em componente interno ao texto literario, Candido diferencia o malandrò do picaro com base em articulaçôes discursivas caracterizadoras de estrategias textuais diversas. Em geral, o pròprio picaro narra suas aventuras, o que fecha a visào da realidade em torno do seu ángulo restrito [...]. Ora, o livro de Manuel Antonio é contado na terceira pessoa por um narrador (ángulo primario) que nao se identifica e varia com desenvoltura o ángulo secundario.5 Portanto, e essa é a distinçâo que importa ao meu argumento, enquanto o principio narrativo pròprio à intriga picaresca consiste no emprego da primeira pessoa como urna forma de aproximar o leitor à narrativa, tornando-o urna especie de ouvinte privilegiado dos inúmeros "segredos" que dominam as aventuras do picaro, Manuel Antonio de Almeida opta pelo recurso em aparência tradicional da narrativa em terceira pessoa. Porém, em lugar do olhar panóptico do observador onisciente, ñas Memorias de um sargento de milicias o uso da terceira pessoa recorda a margem outra do conto de Guimarâes Rosa: urna terceira margem, um estar-entre que oscila da ordern à desordem, adquirindo o viés antropológico do olhar treinado em descentrar-se. Por essa condiçâo, o "livro de Manuel Antonio é talvez o único em nossa literatura do século X I X que nao exprime urna visào de classe dominante". 6 Leonardo flui de um extremo a outro da sociedade joanina: ora às margens da ordem, ora no tránsito da desordem, encenando "um individuo de personalidade muito pouco marcada",7 quase um herói sem nenhum caráter. Menos do que a interioridade psicológica do personagem condutor-do-sentido,' Leonardo desenvolve em suas aventuras cotidianas uma arte especial de lidar com a alteridade representada pelos extremos da ordem e da desordem. Desse modo, em lugar de ensimesmar-se num padrâo definido porque autocentrado, segundo o figurino típico do romance psicológico, Leonardo reveste a ausencia de um

4

5

6 7

8

Como o pròprio Antonio Candido ressalta, Walnice Nogueira Galvào sugeriu essa leitura em texto publicado em 1962 e republicado em Saco de gatos. Ensates críticos. Sao Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976. Trata-se do ensaio "No tempo de rei", pp. 27-33. Antonio Candido: "Dialética da malandragem", in: O discurso e a cidade. Sao Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993, p. 21. Publicado pela primeira vez em 1970, na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Itálicos meus. Idem, p. 51. Eliane Zagury: "Apresentaçâo", in: Memorias de um sargento de milicias. Sao Paulo: Ática, 1986, P-6. A expressào é de Wolfgang Iser e refere-se ao típico personagem do romance setecentista, cuja travessia no mundo parece sempre progredir em direçào a uma auto-realizaçâo psicològica. Ver: Laurence Sterne·. Tristram Shandy. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. Para a definiçâo e análise do personagem condutor-do-sentido, ver especialmente o primeiro capítulo.

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centro único, portanto estável, com urna subversiva despreocupaçâo. Como o caminhar gingado, quase ziguezagueado, andar que deve insinuar a plasticidade social do malandrò, Leonardo transforma a ausencia de traços definidores de urna personalidade numa especie de definiçâo pelo avesso. Uma indefiniçào que promete uma mobilidade de outra forma inimaginável; mobilidade essa também intelectual, vale frisar. Em suma, do emprego narrativo da terceira pessoa identificado por Antonio Candido, destaco a potencia antropológica de uma perspectiva formada na desenvoltura com que os ángulos da narraçâo sâo alterados. Potencia que será otimizada pela perspectiva pròpria à antropofagia oswaldiana, como esclarecido na célebre fórmula: "Absorçâo do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura". 9 Na aventura de incorporaçâo do alheio como se fosse o pròprio, encontra-se o potencial mais fecundo da intuiçâo de Oswald de Andrade e, muito provavelmente, a atualidade da antropofagia num mundo globalizado.10

O lugar do entre-lugar O segundo instante de meu argumento pode ser economicamente apresentado através de determinada reflexäo de Silviano Santiago. Em " O entre-lugar do discurso latino-americano", Silviano Santiago procura pensar aspectos da circunstancia latino-americana a partir da obra de Jacques Derrida. Se a crítica desconstrucionista encontrou seus alvos prioritarios nos principios clássicos da unidade e da imediaticidade, vale dizer, na figura de um centro estável e sempre idéntico a si mesmo, entâo, a "precariedade" latino-americana bem poderia revelar um animo desconstrucionista avant la lettre. A maior contribuiçào da América Latina para a cultura ocidental vem da destruiçâo sistemàtica dos conceitos de unidade e de pureza. Esses dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o traballio de contaminaçâo dos latino-americanos se afirma." A ausencia de um centro estável, presente na malandragem do Leonardo das Memorias de um sargento de milicias, e tornada paradigmática, por exemplo, ñas múltiplas metamorfoses de Macunaíma, proporcionaría ao discurso latino-americano um descompromisso desestabilizador de todo enunciado fundado em verdades essenciais. Aliás, Antonio Candido

9 10

11

Oswald de Andrade: op. cit., p. 51. Para uma avaliaçâo recente da atualidade da antropofagia oswaldiana, ver a coletânea de ensaios: Joào Cezar de Castro Rocha; Jorge Ruffinelli (eds.): Anthropophagy Todayí Nuevo Texto Crítico, nB 23/24,1999. Na introduçào, procurei propor parámetros para uma releitura das idéias de Oswald: "Let us Devour Oswald de Andrade. A Rereading of the Manifesto Antropófago", pp. 7-22. Silviano Santiago: Ό entre-lugar do discurso latino-americano", in: Uma literatura nos trópicos. Sào Paulo: Perspectiva, 1978, p. 18. Itálicos do autor. O leitor interessado deve consultar, no mesmo livro, outro ensaio relevante para essa questào: "Eça, autor de Madame Bovary".

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já assinalara a convergencia de traços entre os dois personagens, assim como o aprofundamento temático presente ñas duas obras. Se, "Leonardo [é] o primeiro grande malandrò que entra na novelística brasileira", com a rapsodia de Mario de Andrade "o malandrò seria elevado à categoria de símbolo".12 Porque sem nenhum caráter, Macunaíma pode driblar de infinitas maneiras os embaraços que porventura venha a enfrentar: talvez, deixando de ser negro como o escuro da noite para fazer-se louro de olhos azuis; possivelmente, transformando-se na "máquina telefone" a cada vez que precisar e, sem dúvida, "brincando" todo o tempo com quem nâo deve e fazendo coisas de sarapantar, como é bem do seu feitio. Na apresentaçâo do personagem, Mário de Andrade insinua a arte especial de Macunaíma: Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos nào fatando. Si o incitavam a falar exclamava: - Ai que preguiça!... e nâo dizia mais nada. Ficava no canto da maloca [...] espiando o traballio dos outros.13

A mudez de Macunaíma merece algumas palavras. O herói sem nenhum caráter simplesmente nào sabia falar ou, pelo contrario, decidiu passar seis anos nào fatando} Tal atitude supôe uma opçâo específica, esclarecida, alias, na seqiiência do texto: como incluir a Macunaíma no ritmo do traballio, se o herói cuidou de excluir-se do circuito das palavras? Por isso, a frase-emblema de Macunaíma - "Ai que preguiça!..." - , significante que atravessa a superficie do texto, apenas alcança a devida eloqüéncia na observaçâo prazerosamente ociosa do trabalho dos outros. Ócio sem dignidade alguma, desafiando o perfil da formaçâo social brasileira. Afinal, como "preto retinto e filho do medo da noite", Macunaíma deveria submeter-se ao trabalho, deixando a contemplaçâo ociosa para os tantos Venceslau Pietro Pietra que ainda hoje parecem determinar a historia brasileira. De igual modo, segundo a sugestäo de Silviano Santiago relativa à formaçâo do cànone da cultura ocidental, o intelectual latino-americano, ainda que à sua revelia, apenas pode produzir textos escrevíveis, isso é, textos derivados de uma leitura particular de trabalhos anteriores.14 Barthes define texto legível como "o texto clàssico por excelencia, o que convida o leitor a permanecer no interior do seu fechamento",15 reverenciando o texto·

12

Antonio Candido: "Dialética da malandragem", in: O discurso e a cidade. Sao Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993, p. 25.

13

Mário de Andrade: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Ediçào crítica de Telé Porto Ancona Lopez. Sâo Paulo: LTSC, 1978, p. 7.

14

Silviano Santiago: op. cit., p. 21.

15

"Há, por um lado, o que é possível escrever e, por outro, o que já nào é possível escrever: o que está na pràtica do escritor e o que se afastou déla: que textos aceitaría escrever (re-escrever), que textos gostaria de desejar, de investir como uma força, neste mundo que é o meu? A avaliaçâo descobre apenas este valor: o que hoje pode ser escrito (re-escrito): o escrevível [...]. A par do texto escrevível estabelece-se, entâo, o seu contra-valor, o seu valor negativo, reactivo: o que pode ser lido, mas nao escrito: o legível. Chamamos clàssico a todo texto legível". Roland Barthes: S/Z. Lisboa: Ediçôes 70,1980 [1970], p. 12.

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cànone, origem de urna pretensa Weltliteratur.1'' Tais textos dependem de urna aura que, por definiçâo, a condiçâo colonial inviabiliza, já que o clàssico equivale a um texto-origem, um texto-metrópole, por assim dizer. Pelo contrario, textos oriundos de culturas cujo passado evoca a condiçâo colonial, em certa medida presentificada na assimilaçâo da lingua do colonizador, seriam sempre escrevíveis, isso é, na impossibilidade de impor um textoorigem a ser reproduzido com distintos graus de fidelidade por textos-influências, "o escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra obra",17 quase sempre europeus. Porém, a ambigüidade da escrita que sempre principia como leitura pode engendrar uma potencia definida por Ernesto Sàbato: "Los europeos no son europeístas: son simplemente europeos".18 Segundo Sàbato, os europeos somente possuem olhos de Narciso, encontrando feio tudo que nâo é espelho,19 enquanto os europeístas trazem na cor da pele, ou no incerto de sua origem, o hiato preciso para estimular um olhar crítico aguçado. Como o criollo dos tempos coloniais que, embora gerado em ventre espanhol, portava a "mácula" de nao haver nascido na metrópole, o europeista lida com os códigos de uma cultura que permanecerá sempre estrangeira em alguma medida. E precisamente porque estrangeiro, o europeista possui a dose necessària de cinismo para sorrir da empáfia dos europeos. Um sorriso entre dentes, bem entendido. Sorriso de antropófago, sempre pronto à açâo: "E arreganho a dentuça. Gente: pode ir pondo o cauim a ferver".20

À margem do centro e da periferia O terceiro momento da hipótese que proponho foi sistematizado por Luiz Costa Lima. Em Limites da voz. Kafka, Costa Lima busca ampliar o conceito de "littérature mineure", desenvolvido por Gilles Deleuze e Felix Guattari,21 relacionando-o à "reflexâo sobre a cultura e a literatura dos Estados-naçôes periféricos [em] suas relaçôes com as culturas metropolitanas".22 O conceito de "literatura menor", conforme o compreendo, possui sua cunha mais incisiva na idéia de desterritorializaçâo da lingua. Nâo se trata de caracterizar uma literatura

16

Em "Weltliteratur: o conceito e sua 'filologia'", desenvolvo uma reflexâo sobre a origem e limite desse conceito, assim como discuto a melhor traduçâo para o portugués. In: Matraga, Rio de Janeiro: UERJ, 1997, pp. 31-39.

17

Silviano Santiago: op. cit., p. 23.

18

Ernesto Sàbato: La cultura en la encrucijada nacional. Buenos Aires: Crisis, 1973, p. 27. Os itálicos sào do autor.

"

Como o leitor terá escutado, aproveito o verso de Sampa, de Caetano Veloso.

20

Antonio de Alcántara Machado: "Abre-alas", in: Revista de Antropofagia, nQ 1, Maio de 1928.

21

Ver: Gilles Deleuze; Felix Guattari: Kafka. Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977 [1975], pp. 25-28.

22

Luiz Costa Lima: Limites da voz. Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p. 180.

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a partir de urna lingua considerada menor. Trata-se de assinalar o uso que urna minoría realiza de urna lingua hegemónica. De imediato, esse critèrio desautoriza a legitimaçâo tipicamente oitocentista dos estudos literarios, pois claramente nao se relaciona com a idéia de nacionalidade. O conceito de "literatura menor" nâo supôe o convivio com urna lingua "maior" numa relaçâo de causa e efeito, cujo corolario habitual é o estudo de fontes e influencias. Pelo contrario, o elemento característico de uma "literatura menor" consiste em sua inserçâo num código hegemônico, ao mesmo tempo em que esse código é apropriado e metamorfoseado.Em ensaio de 1965, Vilém Flusser desenvolveu uma notável reflexâo sobre a linguagem de Kafka muito próxima ao posterior e celebre estudo de Deleuze e Guattari. A citaçâo é longa mas valiosa: A obra de Kafka está escrita em alemâo. Isto nao é uma circunstancia fortuita, mas um dado fundamental da sua mensagem. Os pensamentos que perfazem a obra de Kafka sao frases da lingua alema. Como tais, sao esses pensamentos regidos pela estrutura da gramática alema. Kafka tinha pensamentos alemàes e tudo que pensava estava, a priori, informado pela gramática dessa lingua. [...] Na Praga das chancelarias do Imperador Carlos IV surgiu aquela lingua oficial e artificial que deu origem ao "alto" alemäo moderno. Neste sentido é o alemao de Praga o mais "puro", isto é, o mais estéril e seco. Em compensaçâo, sofre essa lingua o impacto continuo do tcheco, com sua estrutura inteiramente estranha ao alemao. A lingua alema de Praga absorve essa estrutura parcialmente, sem jamais poder assimilá-la. [...] Graças a esta linguagem adquire a mensagem de Kafka aquela atmosfera de pedantismo ridiculamente absurdo que lhe é tâo característica."

Aqui, o cinismo do europeista dá as mâos ao involuntario (e por isso mesmo revelador) ridículo do híbrido tcheco-alemâo de Kafka. Posso, agora, retornar à distinçâo que avancei no parágrafo inicial, ou seja, uma "literatura menor", menos do que constituir um espaço simbólico capaz de definir papéis e estabelecer hierarquias, pressupôe uma operaçào temporal

definida pela simultaneidade dos gestos de assimilaçâo de uma norma estrangeira e sua desnormatizaçâo pelo uso desnaturalizado de suas convençôes. Exatamente como a lingua alemâ de Kafka. Ou ainda: exatamente como Pedro, o Vermelho, o macaco de um de seus relatos, "Comunicaçâo a uma academia" (1920), cuja perfeita mímica dos gestos humanos apenas realça a incómoda diferença: a persistente cicatriz que registra o ato de sua captura inscreve a inalienável distancia entre o erudito macaco e a audiencia que o escuta.24 Exatamente como um Pierre Menard cuja reescrita nao pudesse ocultar o caráter de còpia, em virtude da perfeita porém incompleta identidade com o original. Essa incompletude, índice da impossibilidade de naturalizar o código hegemônico, cria condiçôes favoráveis para uma abordagem crítica daquele código. Condiçôes favoráveis, nâo necessárias, vale a pena frisar.

23

Vilém Flusser: "Esperando por Kafka", in: Da religiosidade. Sao Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1967, pp. 60-61. Devo essa referencia a Gustavo Bernardo. Os estudos sobre a obra de Flusser tém conhecido um vigor renovado no Brasil. Ver Gustavo Bernardo; Ricardo Mendes: Vilém Flusser no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.

24

Para urna bela análise comparativa desse relato com os contos "Yzur" de Leopoldo Lugones (1906) e "Los Caynas" de César Vallejo (1921), ver Jorge Schwartz: "De simios y antropófagos. Los monos de Lugones, Vallejo y Kafka". In: Joao Cezar de Castro Rocha; Jorge Ruffinelli (eds.): Anthropophagy Today? op. cit., pp. 153-166.

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No entanto, em sua leitura do conceito, Costa Lima termina por reterritorializá-lo na forma da dicotomia centro/periferia. Segundo o autor, essa estrategia permitiría conceber urna atitude distinta ñas relaçôes entre culturas periféricas e culturas metropolitanas: Na categoría "literatura menor" permite visualizar-se outra atitude: os membros de urna literatura menor, nao apesar de mas justamente por pertencerem a tal menoridade, têm a possibilidade de enxergar movimentos da terra que passam despercebidos aos sentidos metropolitanos, porque a estabilidade das instituiçôes metropolitanas os tornam remotos.25

Uma outra vez, de uma determinada posiçào deriva-se a relativizaçâo de códigos culturáis automatizados. Antonio Candido concentra seu estudo na definiçâo de uma forma novelística brasileira. Silviano Santiago amplia o caráter antropológico daquela posiçào ao propor um espaço específico para o discurso latino-americano. Já na reflexäo de Costa Lima, e apesar da permanencia da dicotomia espacial, expressa no par centro/periferia, ocorre uma quase desterritorializaçâo dos pressupostos analíticos. Nesse sentido, a dicotomia centro/periferia, em sua potencial universalizaçào, sugere uma alternativa, na quai a territorializaçào dos pressupostos é substituida pela complexificaçâo da perspectiva. Contudo, para melhor explorar essa possibilidade, explícito o limite que encontro ñas análises dos críticos com os quais trabalho. Para tanto, recorro a uma sugestâo de Haroldo de Campos.

O perfetto devorador dos espaços deste mundo Em sua apresentaçâo de O perfetto cozinheiro das almas deste mundo, Haroldo de Campos compara o exercício oswaldiano à figuraçâo da memòria em Walter Benjamin.26 Segundo essa leitura, Benjamin revisita sua infancia berlinesa menos para recompor seu passado do que para vislumbrar possíveis futuros. Em lugar de compor um ordenado museu da memoria, assegurando a cada lembrança um lugar e a todo lugar uma significaçâo, Benjamin flagra o passado, tornando-o simultàneo ao futuro que, como se fosse um insòlito instantáneo fotográfico, captura o momento imediatamente anterior ao registro, o pròprio registro e sua precipitaçâo numa imagem futura. De igual modo, a leitura de Haroldo de Campos segue um ritmo fotográfico: "O que nos interessa (e fascina) nesse livro passado é recapturar nele a figuraçâo do futuro".27 Para explorar essa sugestâo, sintetizo os momentos que até agora apresentei.

25

Luiz Costa Lima: op. cit., pp. 180-181. O autor ampliou essa idéia em Ό pai e o trickster (individuo e cultura nos campos metropolitano e marginal)", in: Terra ignota·. A construçâo de Os sertòes. Rio de Janeiro: Civilizaçào Brasileira, 1997, pp. 239-274.

26

Apenas como um esclarecimento, vale lembrar que o texto de O perfetto cozinheiro das almas deste mundo teve origem num diàrio coletivo mantido por Oswald de Andrade e alguns amigos.

27

Haroldo de Campos: "Réquiem para Miss Ciclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana", in: O perfetto cozinheiro das almas deste mundo. Sào Paulo: Globo, 1992, ρ. ΧΧΠ.

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Para além de obvias distinçôes, dois aspectos comuns podem ser encontrados ñas fecundas análises de Antonio Candido, Silviano Santiago e Luiz Costa Lima. Primeiro, urna determinada posiçào assume um caráter antropológico, permitindo a relativizaçlo de códigos sociais de outra forma naturalizados. Essa posiçào, ao mesmo tempo, encontra-se sintomaticamente representada mediante metáforas espaciais. Antonio Candido sistematiza a "dialética da malandragem" como um vaivém, um estar à margem dos polos da ordem e da desordem. Silviano Santiago define a circunstancia da cultura latino-americana como um entre-lugar. Luiz Costa Lima associa ao espaço periférico urna sensibilidade crítica difícilmente encontrável ñas condiçôes estáveis das culturas centrais. "Estar à margem", "entrelugar", "centro/periferia" sao categorías instigantes e que trazem à superficie aspectos até entäo negligenciados. No entanto, elas terminam por estabelecer um outro conjunto estável de valores, cuja tendencia à estabilizaçâo parece explicar a insistencia desses autores no emprego de metáforas espaciais. Essa tendencia talvez esclareça o paradoxo que subjaz as reflexôes dos críticos mencionados. Como vimos, suas análises apontam para a relativizaçao de códigos automatizados. No entanto, embora inovadoras, elas permanecem cegas à sua pròpria localizaçâo. Vejamos. O malandrò possibilitaria um olhar incisivo porque parcialmente estrangeiro. No entanto, no ensaio de Antonio Candido, com seu transito fluente entre polos opostos, Leonardo, em lugar de evidenciar a fratura da sociedade em segmentos cuja comunicaçào nem sempre é possível, parece desempenhar o papel de amalgama das diferenças, auténtico homem-ponte entre os universos da ordem e da desordem. Como a pròpria expressâo sugere, o "entre-lugar" do discurso latino-americano a tal ponto fixa um espaço definido para o impulso descentralizador que Silviano Santiago nao resiste a mais urna metáfora espacial: "A América Latina instituí seu lugar no mapa da civilizaçâo ocidental [...]".M Ora, o entre-lugar seria o lugar que instaura a descentralizaçâo como o novo centro? Por firn, a dicotomia centro/periferia, proposta por Costa Lima, em nenhum momento leva em consideraçâo a presença de áreas periféricas ñas regióes ditas centrais e a existencia de núcleos centrais em qualquer periferia. Além disso, nenhuma razio "objetiva" justifica o privilègio de membros de uma "literatura menor" no "enxergar movimentos da terra que passam despercebidos aos sentidos metropolitanos" Ora, a instabilidade dos países periféricos pode estimular tanto um olhar crítico quanto uma atitude compensatoria; aliás, essa última atitude costuma constituir a resposta mais usual as condiçôes precárias da

21 29

Silviano Santiago: op. cit., p. 18. Itálicos meus. Luiz Costa Lima: Limites da voz. Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, pp. 180-81. Tive oportunidade de propor essa ressalva a Luiz Costa Lima em encontro realizado sobre sua obra, ver: Joào Cezar de Castro Rocha: "Notas para um debate com Luiz Costa Lima", in: Rosane Araújo Dantas; Aristides Alonso: Pensamento original made in Brazil. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999, pp. 88-91. Eis a resposta de Costa Lima: "A contradiçào [...] entre minha visäo extremamente cética quanto ao sistema intelectual brasileiro é um relativo otimismo quanto à situaçâo hispanoamericana. A contradiçào de fato existe. O boom do romance hispano-americano na década de 1970, junto a meu desconhecimento do continente me levaram a pensar que existia ou estaría prestes a existir uma melhoria geral das condiçôes de produçâo intelectual nesta parte do continente. Hoje sei que me baseava numa crença infundada", in: op. cit., ρ 92-93.

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produçâo naqueles países. Urna vez mais, postular qualquer tipo de privilegio termina por inverter o paradigma, mas o solo em que se assenta permanece estável, embora percebido de ponta-cabeça. Sobretudo, trata-se aínda de encontrar um centro para privilegiar um impulso que se imagina descentralizado^ trata-se, por firn, de inventar um solo para o olhar que se deseja desestabilizador. Idèntico paradoxo afeta as práticas académicas e políticas agrupadas sob a agenda do multiculturalismo.30 A principio proposto como uma negaçâo radical de principios eurocêntricos ou de qualquer forma de universalizaçâo naturalizadora de interesses hegemônicos, o multiculturalismo parece enredado em articulaçôes institucionais e disputas de poder académico que, ao obedeceram criterios políticos, raciais ou sexuais, terminam por reterritorializar práticas que deveriam questionar o estabelecimento de territorios com base em principios absolutos. Por isso, as práticas características do multiculturalismo nem sempre tém conseguido evitar o retorno de essencialismos em detrimento da afirmaçâo da pluralidade de identidades - distinçào sem a qual o projeto multiculturalista nao tem sentido. Gayatri Spivak nao ignora essa ambigüidade, pois, logo após propor que "identity is a very different word from essence. We 'write' a running biography with life-language",31 reconhece com coragem: I have, then, reconsidered my cry for a strategic use of essentialism. In a personalist culture, even among people within the humanists, who are generally wordsmiths, it's the idea of strategy that has been forgotten.32

Isso é, como um primeiro passo, e desde um ponto de vista antes político do que académico, determinadas minorías podem ter utilizado argumentos potencialmente essencialistas com proveito. Um exemplo típico seria a pretensa superioridade de minorías raciais no desenvolvimento de teorías sobre a discriminaçâo racial. Outro exemplo seria o aparente privilegio de minorías sexuais no estudo dos conflitos associados à segregaçâo em virtude de género ou de opçôes sexuais. Cria-se assim, porém, uma atividade tautològica na qual, em tese, supòe-se que um critico negro escreverá com mais propriedade sobre a "literatura negra"; um crítico gay, sobre a "literatura gay"; e uma crítica, sobre a "literatura feminina". Contudo, a medio prazo, essa posiçào transforma o pròprio traballio teòrico e analitico em um simples apéndice de interesses político e institucionais. Essa ingenua confusäo entre vida e obra torna o esforço teórico ocioso, se nao impertinente, ao mesmo tempo em que reduz a maior parte das análises ao papel de simples representaçâo de verdades previamente aceitas.

30

O termo multiculturalismo expressa distintas posiçôes académicas e políticas segundo a área específica na qual se insere. De fato, o traço mais marcante do multiculturalismo refere-se à impossibilidade de definir principios universais capazes de definir suas características, pois seu denominador comum corresponde à recusa de principios universalizadores.

31

Gayatri C. Spivak: "In a word: Interview", in: Outside in the Teaching Machine. New York: Routledge, 1993, p. 4.

32

Ibid., p. 5. Itálicos da autora.

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267

Sem dúvida, nâo pretendo relacionar diretamente as posiçôes dos très críticos brasileiros ao paradoxo que identifico no multiculturalismo; afinal, a preocupaçâo presente em seus textos antecede em muito a voga do multiculturalismo. No entanto, mais do que um simples argumento cronológico, destaco o ponto realmente significativo: seus textos sugerem a possibilidade de relativizaçâo antropológica que procuro relacionar à antropofagia.33 De qualquer modo, as categorías "estar à margem", "entre-lugar" e "centro/periferia" terminam por engendrar territorializaçôes que comprometem o caráter antropológico de suas pesquisas. O malandrò, o intelectual latino-americano e o intelectual periférico emergem como conseqüencia quase natural de uma circunstancia sintomaticamente definida em termos espaciais. Essa territorializaçâo parece autorizar a atribuiçâo de qualidades que passam a ser apresentadas como necessárias e nâo mais como códigos culturáis apropriados. Nao se trata, porém, de negar a potencia antropológica vislumbrada com inteligencia pelos críticos. Pretendo precisamente preservá-la, ressalvando que se trata de uma possibilidade e nào de uma necessidade, derivada quase naturalmente de uma determinada condiçâo cultural. Posso, por fim, retomar à distinçao que avancei no primeiro parágrafo desse texto. Por espaço multicultural entendo toda pràtica académica e institucional cujo "essencialismo estratégico" promove a subsunçâo da estratégia à essência que deveria ser estrategicamente questionada. Pelo contràrio, tempo antropòfago sugere uma possibilidade distinta, na qual espaços simbólicos sao substituidos por uma perspectiva cultural marcada pela simultaneidade entre a observaçào do objeto e a constituiçâo do sujeito observador. Noutras palavras, num tempo antropófago, o "eu" somente se constituí através do encontro e/ou confronto com o "outro". 34 De modo a concluir meu argumento, enumero alguns dos elementos desse tempo antropófago. Logo no principio do "Manifesto antropófago", um dos mais importantes vem à tona: Só me interessa o que nao é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.35 Lei cuja dinámica já se podia extrair do final do "Manifesto da poesia Pau-Brasil":

33

Propus parcialmente essa possibilidade em "Montaignes Kannibalen. Die Wilden Brasiliens und die europäischen Religionskriege", in: Frankfurter Allgemeine Zeitung, 6 de setembro de 2000, p. N5. Nessa direçâo, ver, também, numa recente traduçâo para o italiano do "Manifesto da poesia Pau-BrasiP e do "Manifesto antropòfago", Ettore Finazzi-Agrò: "L'identità mangiata. Considerazioni sull'Antropofagia". In: Ettore Finazzi-Agrò; Maria Caterina Pincherle (eds.): La cultura cannibale. Oswald de Andrade. da Pau-Brasil al Manifesto Antropòfago. Roma: Meltemi, 1999, pp. 79-93.

34

Em publicaçâo recente, Maria Rita Kehl propos o conceito de "funçâo fraterna" num viés muito próximo a esse entendimento da antropofagia: "Ao propor a indagaçâo sobre a existencia de uma funçâo fraterna na constituiçâo do sujeito, já estou sugerindo que sim: o outro, o semelhante - a começar pelo irmâo - contribuì decisivamente para nos estruturar". "Introduçâo: Existe a funçâo fraterna?", in: Maria Rita Kehl: A funçâo fraterna. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000, p. 31.

35

Oswald de Andrade: op. cit., p. 47.

268

Joäo Cezar de Castro Rocha Apenas brasileiros de nossa época. O necessàrio de química, de mecánica, de economia e de balistica. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscencias livrescas. Sem comparaçôes de apoio. Sem pesquisa etimològica. Sem ontologia.16

Na ausencia do Ser, previo à existencia, somente podemos ser a partir da experiencia do outro. Em todo o "Manifesto antropòfago", e de maneiras múltiplas e nao necessariamente convergentes, subjaz urna oposiçào entre "o lado doutor, o lado citaçôes", ridicularizado no "Manifesto da poesia Pau-Brasil", e a agoridade de eventos de toda sorte. Recusa-se a catequese, tanto a jesuíta quanto a do homem moderno, isso é, a psicanálise. Rejeita-se a Historia, sinónimo de tradiçâo, vale dizer, reflexo de urna percepçâo linear e sucessiva do tempo. "Contra a Memoria fonte do costume", propôe-se "a experiencia pessoal renovada".37 Tal oposiçào traz à superficie urna outra ainda mais significativa. No caso, à ordern linear com base numa cadeia de fatos informada por urna seqüéncia repetida (e repetitiva) de causa e efeito, Oswald de Andrade opôe a compreensao de urna realidade dinámica, inventada por urna perspectiva temporal em que eventos distintos e mesmo antagónicos podem ser aproximados por um olhar definido pela simultaneidade na qual observador e observaçâo se constituem. Outro momento do "Manifesto antropófago" potencializa o que busco fotografar. De modo a tornar o instantáneo ainda mais nítido, principio por um diagnóstico da cultura brasileira até hoje freqiientemente citado: Somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra [...] o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evoluçâo pròprio de outro clima e de outra paisagem."

A exemplo do que assinalei na obra dos très críticos analisados, a insistencia no vocabulario espacial fornece a nota dominante. Menos do que um tempo antropófago, essa perspectiva funda espaços simbólicos. Contra o pano de fundo dessa constituiçào constante de territorios, talvez o que denomino tempo antropófago adquira concretude na estrategia oswaldiana de urna negaçâo sistemática de toda forma imaginável (e imaginaria) de configuraçôes cartográficas:3'

36

Oswald de Andrade: "Manifesto da poesia Pau-Brasil". Publicado pela primeira vez no Correlo da Manhà, 18 de março de 1924. In: A utopia antropofágica. Sao Paulo: Globo, 1990, p. 45.

37

Oswald de Andrade: "Manifesto antropófago". Op. cit., p. 51. É preciso, porém, ressalvar que a recusa absoluta da tradiçâo corre o risco de transformar-se num elogio ingenuo e nada antropofágico do primitivo. Ver: Luiz Costa Lima: "A vanguarda antropófaga". In: Joäo Cezar de Castro Rocha; Jorge Ruffinelli (eds.): Anthropophagy Today? Op. cit., 1999, pp. 211-218.

38

Sergio Buarque de Holanda: Raizes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956 [1936], p. 16.

39

O leitor interessado nessa questâo, deve consultar O Brasil nào é longe daqui. O narrador, a viagem. Sâo Paulo: Cia. das Letras, 1992. Nesse livro, Flora Süssekind mapeia a presença de urna obsessâo cartográfica no romantismo brasileiro, reveladora de urna incessante busca de origens, isso é, de um solo estável para a fundaçâo simbólica da nacionalidade.

Um tempo antropòfago para um espaço multicultural

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Foi porque nunca tivemos gramáticos, nem coleçôes de velhos vegetáis. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-mundi do Brasil.40

Na ausencia de fronteiras físicas, um mapa-múndi é sobretudo mapa nenhum. Especialmente, no caso de um mapa-múndi do Brasil. A complexidade da associaçlo proposta por Oswald de Andrade talvez possa ser mais bem apreendida se aceitarmos a possibilidade de urna cartografia que fotografe instantes em lugar de fixar espaços. Em relaçâo aos estudos dos très críticos com os quais trabalhei, acredito que suas análises adquirem vigor renovado se imaginarmos que o malandrò, o intelectual latino-americano e o intelectual periférico, menos do que representantes de um determinado espaço, pôem em movimento urna complexa operaçào temporal, na quai se observa a um outro, observando-se a si mesmo. E para observar-se a si mesmo é sempre preciso estar observando a um outro.41 Portanto, em principio, nada impede que um burócrata ou um intelectual oriundo de um país central relativizem suas posiçôes. Ao mesmo tempo, nada assegura que um malandrò, um intelectual latino-americano ou um intelectual periférico necessariamente poderâo fazê-lo. Por isso, e como na lei do antropòfago somente importa o que pertence ao outro, a antropofagia talvez possa ser apreendida como urna epistemologia das diferenças que, em seu exercício, produz novas diferenças, ao invés de reduzi-las numa posiçâo estável.

40 41

Oswald de Andrade: "Manifesto antropófago". Op. cit., p. 47. Ressalvo o que apenas esboçarei num próximo esforço, isso é, pretendo associar a antropofagia oswaldiana ao conceito desenvolvido por Niklas Luhmann de "observador de segunda instancia".

Achim Schroder

Ainda existem "Os dois Brasis"? Sobre as estruturas sociais e as imagens da estrutura social no Brasil

Entre as metáforas mais queridas, que os brasileiros costumam usar quando mais urna vez o seu país parece tornar-se o "país do futuro" (Stefan Zweig), encontra-se o discurso sobre "os dois Brasis". Ele ainda tem a vantagem de ser formulado por um francés, por uma autoridade intelectual incontestável, levando em conta a francofilia tradicional dos intelectuais brasileiros. Trata-se do cientista social francés Jacques Lambert que, em 1953, publicara, em Paris, os resultados de uma pesquisa que conduziu nos anos anteriores sob o título bem neutro de Lé Brésil. Structure sociale et institutions politiques. Seis anos mais tarde, em 1959, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos publicou no Rio de Janeiro a ediçâo brasileira sob o título Os dois Brasis, que, até 1972, chegou a, pelo menos, uma terceira ediçâo. Embora o Brasil dos anos 90 se distinga consideravelmente daquele dos anos 50, a metáfora é aparentemente imortal.

Preferencia pelos conceitos paradoxals O uso de conceitos duplos, juntados pela ambigua conjunçào "e", é uma constante na sociologia brasileira. Encontra-se no título de muitas obras clássicas: Gilberto Freyre (Casagrande e senzala, Sobrados e mocambos, Ordern e progresso), Florestan Fernandes (Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Capitalismo dependente e classes sociais), Octávio Ianni (Raças e classes sociais) ou Manuel Diégues Junior (Etnias e culturas). Os títulos sào afirmaçôes paradoxals, que "contêm dois valores, dos quais nenhum pode ser excluido de forma inequívoca".1 O paradoxo é um problema de qualquer observaçâo que resulta do fato de que o observador se inclui na observaçâo de forma auto-referencial. Os paradoxos nao podem ser resolvidos. O que é possível e preciso, no entanto, é a análise de como se chegou às diferenças e quai é o conteúdo das diferenças.

Verificaçâo empírica dos paradoxos? Parece fácil chegar à conclusâo de que os antagonismos económicos, sociais e políticos podem ser caracterizados de forma melhor falando-se de dois Brasis e imputando-se que

Georg Kneer; Armin Nassehi: Niklas Luhmanns Theorie sozialer Systeme. München: Fink, 1993, p. 105. Traduçâo minha.

A inda existem "Os dois Brasis"f

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exista tanto um Brasil velho como um moderno, como também um rico e um pobre, um bom e um mau, na medida em que a metáfora independe da pesquisa de Lambert. Aparentemente há uma confirmaçâo empírica das diferenças sociais extremas, por exemplo, entre o luxo dos palacios em Copacabana e a pobreza dos barracos ñas favelas, entre as noticias repetidas sobre o assassinato dos meninos de rua e sobre os desempenhos nos direitos da cidadania, entre os direitos dos indios estabelecidos na nova Constituiçâo a as usurpaçôes continuas das terras dos mesmos, entre o discurso do Movimento dos SemTerra e a praxe económica dos assentados, entre o impeachment de um presidente corrupto e os escándalos continuos de corrupçâo cotidiana em todos os níveis. Também a estatística oficial brasileira e os cálculos de institutos científicos independentes aparentemente têm confirmado as diferenças sociais agudas. Analisando-se mais de perto a sociedade brasileira, da forma como os observadores profissionais observam, com conceitos quantificáveis e, de fato, quantificados, nota-se a tendencia de se formularem diferenças bastante artificiáis ou - em termos mais técnicos - como se dividem escalas métricas para se chegar a escalas ordinais e até dicotômicas. Mede-se, por exemplo, a renda de uma pessoa em unidades monetárias numa escala em R$. Em uma tal escala se pode observar que quanto maior a renda menor o número de pessoas. Essa distribuiçâo de pessoas, alias, é bastante regular em sua obliqüidade; nâo se acha uma incisâo para poder identificar empiricamente os "pobres" e os "nâo-pobres" ou aquelas partes da escala que podem ser denominadas respectivamente de "renda baixa" ou de "renda alta". Na tentativa de identificar o número de pessoas "pobres", os estatísticos cortam artificialmente a escala num determinado valor monetàrio. Esse corte se aplica freqüentemente usando-se o valor vigente do salàrio mínimo garantido pela Constituiçao. Assim se chega a constatar que grandes partes da populaçâo brasileira sao "pobres". Ora, com esse raciocinio nao será menosprezada a "pobreza" no Brasil; nâo se pode negar que milhôes de brasileiros vivem em condiçôes que devem ser classificadas como insuportáveis mesmo com pretensôes modestas. O que importa neste argumento é que a introduçào de uma divisäo categorial entre "pobres" e "nâo-pobres" é uma forma de observaçâo da sociedade brasileira que estabelece uma diferença que nao corresponde à realidade. De fato, o Governo nâo respeita a Constituiçâo no ato de alterar o valor do salàrio minimo, pois no cálculo os custos da satisfaçâo das necessidades dos empregados têm uma significancia secundária. Sâo mais importantes certos parámetros da política económica, tais como as taxas de inflaçâo e do cambio de moedas. Até certo ponto é legítimo ignorar os custos de vida dos empregados, porque, na pràtica, o salàrio mínimo raramente é o ordenado que se paga aos empregados, porque nele se deduzem as prestaçôes náo-monetárias dos empregadores; ou, porque se paga um múltiplo de um salàrio mínimo. Mesmo se o preço de uma cesta básica, que satisfizesse as necessidades de um empregado e de sua familia, tivesse maior influencia sobre o estabelecimento do valor do salàrio mínimo e se baseasse nos levantamentos no comércio a retalho, isto nâo correspondería ao que manda a Constituiçâo, pois as pessoas pobres nao podem aproveitar os preços menores nos supermercados longes de suas moradias ou onde os guardas nao os admitem com a sua

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roupa "suja". Além disso, muitos daqueles com pouca renda estâo satisfazendo as suas necessidades no "setor informal" ou na "economia de troca"; essas áreas económicas nâo pertencem aos objetos da observaçâo continua pela pesquisa económica. A identificaçâo de uma "classe pobre" em contraposiçâo à urna "classe nâo-pobre" como aparece em inúmeras publicaçôes oficiáis e científicas é, portanto, um artefato. Os observadores vêem uma dicotomia que de fato nâo existe.

A tradiçâo dualista no pensamento sociológico sugere a formulaçâo de paradoxos Por que os cientistas sociais formulam tais observaçôes binarias? Eles parecem ser fascinados pelas idéias dualistas para as quais existe, na sociologia autòctone, uma certa legitimaçâo. A simultaneidade e a interdependencia de diferentes fenómenos sociais ocupavam repetidamente a sociologia latino-americana e notadamente a brasileira com vocabularios e abordagens diferentes, como, por exemplo, Florestan Fernandes, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Helio Jaguaribe e muitos outros. Também a teoria da dependencia pode ser tomada como uma continuaçào da abordagem "dualista", como afirma Werz: "A situaçâo de dependencia forma uma característica em comum das formaçôes sociais da América Latina. Eia reflete-se também no interior dos países".2 As diversas teorías convergem na indicaçâo à simultaneidade da existencia de uma formaçâo mais antiga e de uma mais nova ñas sociedades latino-americanas. A diferença entre as teorías dualistas doutrora e a teoría da dependencia consiste em que nesta nâo é a velha formaçâo que deve ser superada, mas a nova. A nostalgia, nisso inerente, jamais tem sido observada, mas talvez explique por que após a redemocratizaçâo do país se tenha descoberto que a Nova República tem muitos aspectos em comum com a Velha.

A pesquisa sociológica de fato se dedica às áreas intermediárias A visâo dualista permite observar a área intermediària entre os extremos, como por exemplo: Como se encontram as áreas onde paralelamente à agricultura se desenvolveu a industria, como, por exemplo, ñas regiôes que tiveram uma imigraçâo européia ou japonesa: ainda tradicionais ou já modernas? Como se encontram os funcionários das burocracias públicas e de todos os níveis administrativos das empresas públicas - notadamente uma massa tâo grande que a sua reduçâo quantitativa tinha que ser um dos objetivos prioritarios das políticas de austeridade de Collor e Cardoso: usufruem da exploraçâo tradicional do país pelo aparelho estatal ou sâo agentes de um cambio social que, como sempre, vai se impor de cima para baixo? Como se encontram os operários na indùstria, relativamente bem

2

Nikolaus Werz: Das neuere politische und sozialwissenschafiliche Denken in Lateinamerika. Freiburg: Arnold-Bergstraesser-Institut, 1993, p. 179. Traduçâo minha.

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qualificados e empregados de forma relativamente estável: formam um proletariado ou urna elite operaría? Com base em inúmeros estudos sociológicos, ρ ode-se chegar a responder essas perguntas, levando-se em consideraçâo o que se sabe a respeito da classe média: dotados de urna certa formaçâo escolar e profissionai, os integrantes das carnadas medias, tendo mais de um emprego ou trabalhando horas extras, conseguem urna renda que, por um lado, nao os permite participar no consumo da mesma forma como nos países industrializados, mas que, por outro lado, também os livra da luta diaria pela sobrevivencia. Respeitam as leis, providencian! a melhor educaçâo possível para os seus filhos e esperam do governo que cumpra o que foi prometido ñas leis e na Constituiçâo. Estes empregados e também os donos de pequeñas empresas aspiram à educaçâo e sâo capazes de serem qualificados; e, como consumidores, têm uma alta elasticidade procura-renda; eles sâo, portanto, um elemento estratégico de qualquer política económica, pretendendo eia distanciar-se do mercado mundial ou näo. Mostraram-se equivocadas as hipóteses que afirmaram que a classe média pode tomar decisóes referentes a estruturas e processos económicos como classe3. Antes constatamos uma petrificaçâo massiva das formaçôes sociais ñas carnadas médias. Visto de perto, em caso algum se trata de uma massa amorfa, inerte nas decisôes e carente de solidariedade, mas de uma área social, onde se efetuaram numerosas e diferentes consolidaçôes das relaçôes sociais em forma de estruturas sociais. Uma délas será tratada, de forma exemplar, no que se segue: a estrutura profissionai corporativa, a infra-estrutura local e as relaçôes raciais.

Corporativismo O exercício de uma profissâo de elite (académica ou liberal) é tradicionalmente ligado à admissâo a uma das organizaçôes profissionais que, em parte, ainda se chamam de "ordern" ("Ordern dos Advogados", por exemplo). Essas limitaçôes de acesso ao exercício de profissôes de alta qualificaçâo relativa têm uma importante funçâo seletiva. As organizaçôes profissionais privilegiadas servem de intermediàrio entre o Estado e a sociedade, entre o direito estatal a controlar e a liberdade de disposiçâo dos especialistas que trabalham por conta pròpria. Pertence aos privilegios a possibilidade de limitar o acesso para tornar mais escassa a oferta dos serviços, a firn de garantir um renda alta aos profissionais. Por outro lado é importante para os que procuram tais serviços que as corporaçôes vigiem o cumprimiento das normas profissionais e éticas (pense-se sobretudo no segredo profissionai do médico e do advogado). Neste meio tempo, no Brasil e noutras partes da América Latina, as organizaçôes corporativas se estenderam a atividades em que a qualificaçâo é bem menor (contadores,

Rodolfo Stavenhagen: "Sieben Trugschlüsse über Lateinamerika", in: Feder, Ernest (ed.): Gewalt und Ausbeutung. Lateinamerikas Landwirtschaft. Hamburg: Hoffmann u. Campe, 1973, p. 58 (Primeira publicaçâo no diàrio El Día [Cidade do México] em julho de 1965).

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secretarias) ou em que nâo se exerce a profissâo por conta pròpria (incluindo até os sociólogos) e em que nâo existe urna compensaçâo ao Estado ou à sociedade. Hélio Jaguaribe denomina isto de "corporativismo cartonai". Trata-se da "outorga legal de privilegios e imunidades a grupos e associaçôes representativos de determinados interesses setoriais",4 portanto de um fechamento de um corporativismo, antes aberto, ocorrido nos últimos decenios. O novo corporativismo engloba nao somente certos grupos profissionais indentificáveis por sua capacidade, mas também organizaçôes dos produtores industriáis, altamente oligopolistas como também empresas estatais. Até na "classe operaría" existe, segundo ele, um corporativismo cartorial em forma de sindicatos de traballio e centrais sindicáis, dominados por pequeñas oligarquías controlando as empresas prestadoras de serviços públicos: "O Estado fica segmentado em feudos, apenas nominalmente submetidos à direçâo do Congresso e do Executivo e, de fato, dominados por cartórios sindicáis".5 E verdade que essas corporaçôes nâo surgiram sem a cooperaçâo das elites, especialmente na época de Vargas, mas elas desenvolveram uma dinámica independente das camadas superiores tradicionais e, neste meio de tempo, posicionam-se contra a hierarquia. Como um exemplo, podem-se citar as greves dos empregados de empresas estatais que se negam à privatizaçâo das mesmas. Nâo se pode falar que nessas pessoas haja uma falta de consciência do lugar onde se encontram na ordem social; pois como membros das corporaçôes defendem os seus interesses, participam em açôes e se comportam, portanto, "cientes de sua classe". Nos anos 70 e no inicio dos anos 80 ainda se observava que existia uma disposiçào à organizaçâo social também fora do padrâo corporativista e que pôde ser eficiente para a defesa dos interesses; como, por exemplo, os numerosos movimentos de moradores e das associaçôes de bairros, como, em gérai, o movimento das Comunidades de Base que se apresenta a entidades doadoras no estrangeiro como organizaçôes dos "mais pobres dos pobres", mas que, na verdade, sao fenómenos nítidos da classe média.

Infra-estrutura local Além da estrutura corporativa na área profissionai, o observador imparcial pode reconhecer formaçôes sociais ñas favelas que podem ser tomadas, sem mais nada, como parte da estrutura social. Os barracos feitos de detritos (latas, papelâo) predominam ñas favelas mais recentes as quais se encontram sobretudo ñas áreas periféricas. Novas favelas surgem freqüentemente numa açâo coletiva dirigida, com logística e planejamento e com assistência espiritual, pedagógica e até política. Dentro de uma "auto-urbanizaçâo"6 alcança-se logo um

4

Hélio Jaguaribe: Alternativas do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989, p. 122.

5

Ibid., p. 124.

6

P.O.E. Gogolok: "Urbanisierung der Favelas in der Stadt Rio de Janeiro. Tendenzen und Bewegungen", in: Brasilien Dialog (Mettingen), n B 1,1982, p. 11.

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mínimo de participaçâo, embora somente na forma aguda da política clientelista. Acontece que as pessoas continuam a morar na favela mesmo depois de ultrapassarem um certo limite de renda devido o fato de que os programas sociais de habitaçào se executam com criterios inacessíveis para os que procuram urna moradia. Focosamente se constróem as casas populares muito distantes do lugar das oportunidades de aquisiçâo e se exige para o financiamento inicial um certo capital pròprio e urna renda regular para pagar as anuidades. Mesmo que a policía nâo tenha acesso a muitas favelas, no seu interior nao existe caos ou - sociologicamente falando - anomia, falta de normas, arbitrariedade na escolha dos meios para chegar a um determinado firn. Na maioria das vezes, nota-se que os moradores conseguem montar um mínimo de infra-estrutura material e social como é o caso esperadamente - nos planos sociais de habitaçào. O que se pode conseguir nesse tipo de infra-estrutura pode freqüentemente nao corresponder as normas constitucionais e ambientáis. Mas, o que farào as pessoas que precisam de urna soluçào para seus problemas de hoje, e, portanto, confiam num "juiz de paz", possivelmente instalado por si mesmo, em vez de esperar até que o sistema político finalmente tenha democratizado o acesso à justiça?

A questäo racial é urna questäo da classe média Para nâo provocar a impressâo de que a auto-ajuda das carnadas médias-baixas solucionaría definitivamente os grandes problemas do Brasil, indicaremos, recorrendo ao exemplo das relaçôes raciais, tendencias segregacionistas que podem surgir das classes médias. As carnadas de posse superiores sempre observam as normas da endogamia por motivos económicos e, com isso, evitam a introduçâo de influencias indígenas e negroides indesejadas. Nao precisam de urna ideologia "racista" para legitimar um tal comportamento. Nas carnadas mais baixas, por outro lado, a luta pela sobrevivencia é de tal forma proeminente, que as estruturas familiares sâo altamente precarias e as mulheres nào se podem permitir um preconceito racial na busca de alguém que forneça proteçâo a eia e aos seus filhos. Delimitar os grupos étnicos, portanto, é um fenomeno nitidamente da classe média. A sociologa afro-americana, Peggy Lovell, pensa ter provado que o prejuízo racial na remuneraçâo dos empregados aumenta gradativamente quanto se procede no Brasil do norte para o sul. Trata-se do resto inexplicado numa análise de variância, em que foram excluidos outros fatores que possam ter urna influencia sobre o valor do salario. Observando a composiçâo étnica da populaçâo também se torna claro que, do norte ao sul, a parcela da populaçâo negroide diminuì e a daqueles com bem-estar relativo e, portanto, o volume das classes medias aumenta.7

7

Peggy A. Lovell: "Development and Racial Inequality in Brazil: Wage Discrimination in Urban Labor Markets, 1960-1980", in: The Peopling of the Americas (International Union for the Scientific Study of Population), η» 2, 1991, pp. 481-498.

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Com relaçâo as diferenças raciais é importante observar como se diferenciam os grupos étnicos entre si, até que ponto concorrem pelas mesmas posiçôes e até que ponto certos grupos conseguem defender uma posiçâo um tanto superior. Isto parece ser o fato nao só na remuneraçâo, mas também no uso dos direitos do cidadáo: pesquisas recentes mostram entre os nào-brancos uma certa "alienaçâo" no processo eleitoral que os motiva, mais freqiientemente, a votar em branco ou abster-se da eleiçâo apesar das sançôes estabelecidas.®

Falta de apoio para as classes médias A elite reage de forma insuficiente às tendencias perigosas que podem surgir de um agravamento das relaçôes raciais e da privaçâo das classes médias. Uma série de instituiçôes que, nos países industrializados, leva à mobilidade social individual ou à manutençâo do nivel de vida e da aquisiçào obtida inexiste na América Latina ou nào funciona de forma certa: o sistema educacional freqüentemente nem oferece uma formaçâo adequada, nem as conclusses dos cursos encontram reconhecimento geral, a previdencia social é imprevisível, nao existem serviços públicos de empregos, sistemas urbanos de transporte coletivo nâo têm funcionamento seguro, carecem os insumos políticos ao planejamento espacial e social.9 As classes médias se decepcionaran! com o fracasso da Nova República no Brasi,1 que nâo conseguiu chegar a um balanço dos interesses e a uma reforma da política social.10 Por isso é difícil seguir a afirmaçâo do dentista social paulistano Pedro Jacobi quando afirma que: "a responsabilidade crescente da sociedade civil na década perdida tem conseguido um processo em marcha lenta de transformaçâo da cultura sócio-institucional".11 Sao duas as metáforas disfarçantes nessa curta frase: a da "década perdida" e a da "sociedade civil". A primeira parece ser uma desculpa da elite intelectual que lastimavelmente perdeu as oportunidades que lhe ofereceu o processo da redemocratizaçâo na América Latina. Com a segunda, a da "sociedade civil", entendem-se no discurso latino-americano aquelas instituiçôes que - do ponto de vista do individuo - estáo aquém do aparelho do governo, do complexo militar e das empresas estatais, construindo assim mais um conceito dualista. É verdade que algumas instituiçôes têm conseguido algum avanço: no Brasil, o impeachment do presidente Collor, a importancia de um partido programático (PT) ñas

Monica Mata Machado de Castro: "Raça e comportamento político", in: Dados. Revista de Ciencias Sociais (Rio de Janeiro), n° 36,1993, pp. 469-491. ® No Brasil, por exemplo, somente em 1988 se introduziu os dispositivos constitucionais para o planejamento urbano. Compare os artigos de François J.E. de Bremaker na Revista de Administraçâo Municipal (Rio de Janeiro) 1988s. 10 Marcus André Β. C. de Leo: "Anatomia do fracasso: intermediaçâo de interesses e a reforma das políticas sociais na Nova República", in: Dados. Revista de Ciencias Sociais (Rio de Janeiro), n e 36, 1,1993, pp. 119-165. 11 Pedro Jacobi: "La politica del hambre. Brasil tras la década perdida", in: Nueva Sociedad, 131, 1994, pp. 106-117. 8

Ainda existent "Os dois Brasisi

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eleiçôes de 1994 e a campanha contra a fome. Em perspectiva a longo prazo deve se notar, no entanto, que o PT reagiu à derrota com autofagia e que a campanha contra a fome era de curta duraçâo: nâo se conseguiu dar continuidade a urna alternativa da distribuiçâo de alimentos.

O que se observa e como se observa? Os inúmeros estudos sobre a área entre os extremos sociais mostram bem claro que nâo há como continuar identificando dois Brasis e manter as teorías dualistas da estrutura da sociedade brasileira. Sem que se ignore o fato de que realmente existam pobreza e riqueza extremas, total impotencia e extrema potencia políticas, exclusâo e inclusào extensas, a dinàmica social, política e economica nâo se desenvolve no confronto entre os extremos, mas onde os pobres lutam para ser um pouco menos pobres, os sem poder ganham um pouco mais de influencia, os excluidos conseguem urna inclusào parcial. Numa sociedade cada vez mais complexa, o método da observaçâo exige instrumentos e conceitos bastante complexos e múltiplos e a verificaçâo da influencia da auto-referência do observador. Os paradoxos, tais como o dos dois Brasis, tornaram-se atavistas.

José Ruiz Rosas Poesía brasileña

Expreso mi agradecimiento a los organizadores de este Coloquio acerca del Brasil en el contexto latinoamericano, del que todos, particularmente yo, vamos a beneficiarnos, dada la calidad de los disertantes y los temas indicados. Mi presencia en Freiburg tiene un motivo familiar-turístico y el honor que hoy se me hace no fue considerado inicialmente, debiéndose a la involuntaria ausencia de un amigo ponente que ha viajado por motivos imprevistos. Debo, por ello, pedir se me excusen las imperfecciones en que incurra y se tenga sólo presente, sí, la antigua y enorme admiración que siento por la poesía de la notable República Federativa del Brasil. El tema que tenía programado se titulaba "Aproximación e integración: el lugar del Brasil en la literatura latinoamericana", pero me he visto obligado, por la premura y con la venia de los señores organizadores, a tratar sólo el tema "Poesía brasileña". Durante el coloniaje portugués y el imperio brasileño la literatura y la poesía del gran país hermano tuvieron notoria influencia lusitana y europea; se cultivó del barroco al simbolismo y al neorromanticismo. Proclamada la Independencia del Perú en 1821, España se había resistido a dejar tan rica colonia, a lo que puso fin la Capitulación de Ayacucho, en diciembre de 1824. Brasil fue sede imperial de Portugal desde 1808 hasta 1822, año en que el heredero al trono proclamó el Imperio del Brasil, el cual duró hasta 1889. Fue entonces cuando se constituyó la República Federativa, que es hoy ante el mundo la mayor potencia sudamericana. Pues bien, la Independencia del Perú no fue vista con agrado por el periodismo brasileño de aquel entonces, pero hubo un acercamiento protocolar al establecerse el nuevo Imperio. Existía en Río de Janeiro la Academia Brasileira, creada a imitación de la Academia Francesa, lo que provocaba la burla de los poetas jóvenes, ya que los académicos habían copiado no sólo los vistosos uniformes que lucían sino hasta los cuarenta sillones que pomposamente ocupaban autotitulándose "Inmortales"; usaban además, sombrero de dos picos y espadín. Tengo la impresión de que esta situación no fue modificada rápidamente, pues recuerdo una divertida novela de Jorge Amado en la que ridiculiza los afanes de un maduro escritor por llegar a sentarse en uno de aquellos cuarenta sillones. A partir de 1917 empiezan a producirse situaciones de vibrante novedad en las artes y las letras brasileñas. Una pintora realista nacida en 1896 presenta en Sao Paulo, a su vuelta de nueva York, una exposición que motivó expresiones de gran entusiasmo y cuyos cuadros fueron calificados como "obras jamás vistas por aquí". Además, también se afirmó que "con un puñado de ellas su valiosa exposición se transforma en una centella de eclosión del modernismo entre nosotros". En Brasil se le ha llamado modernismo a las manifestaciones del vanguardismo y al respecto encontramos el siguiente comentario en un libro sobre el arte brasileño del siglo XX titulado Entre dois Séculos: "O modernismo, como movimento,

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açâo de grupo, principiava o seu longo percurso no país. E nao o fazia apenas no ámbito das artes visuais. Abarcava igualmente a literatura, a música e as diversas outras áreas da criaçâo artística e da animaçâo cultural" (Puntual 1987:19). Por esos años había empezado en Sao Paulo su infatigable tarea de opositor a lo establecido culturalmente, el poeta, abogado y periodista Oswald de Andrade, nacido en 1890 y, podría decirse que cumplido su propósito, muerto en 1954. Afirman los críticos brasileños Antonio Candido y José Aderaldo Castello en su libro Presertça de Literatura Brasileira, volumen ΠΙ, "Modernismo", que "Oswald de Andrade encontró en Mario de Andrade - no eran parientes - el año de 1920, el tipo de artista moderno que buscaba y lo reveló al público, abriendo la lucha". No se equivocò, pues Mario de Andrade se convirtió en piloto del movimiento modernista en Säo Paulo y por ello en promotor de la poesía brasileña del siglo XX, con todo lo que eso tiene de importancia para la poesía en Sudamérica y el mundo. Empezaban por entonces los contactos brasileños con sus vecinos, lo que no era fácil debido a las distancias y a la escasez de vías de comunicación. Debe tenerse en cuenta que Brasil ocupa una extensa superficie que, al este, es la ventana más grande que tiene el continente hacia el Atlántico, y que por el norte, el oeste y el sur limita con diez de los doce restantes países de América del Sur. Antes de la llegada de Colón a este antiguo mundo las tribus amazónicas y las de más al sur (son más de quinientas las existentes en los países que participamos de la gran selva amazónica) sostenían relaciones mediante las vías fluviales. En la actualidad somos trece los estados sudamericanos y nuestras comunicaciones alcanzan incluso las fluviales - los mayores progresos. Consideramos que tanto la superficie como la población de la República Federativa del Brasil constituye casi la mitad de la de toda Sudamérica. A finales del siglo XIX destacó en Brasil un gran poeta simbolista, Joäo de Cruz e Sousa, hijo de esclavos negros (la esclavitud fue abolida hasta 1888). A pesar de su debilidad, su autodidactismo y su falta de recursos se convirtió en uno de los más brillantes poetas simbolistas de América y del mundo. El célebre escritor peruano radicado en París, Ventura García Calderón (propuesto para el Premio Nobel conjuntamente con su hermano Francisco en 1934 por escritores, políticos y académicos), deseaba que se tradujesen al francés dos libros de Cruz e Sousa, a quien comparaba con Baudelaire. El poeta boliviano (nacido en Tacna, Perú, hijo del cónsul boliviano Jaimes Freyre y de la poetisa tacneña Carolina Freyre) Ricardo Jaimes Freyre, amigo de Rubén Darío y creador de unas "Leyes de la Versificación Castellana", visitó a Cruz e Sousa en 1912 cuando era Embajador de Bolivia en Río y presentó después en Buenos Aires una conferencia sobre su obra. Pese a su corta vida - apenas sobrepasó los cuarenta años -, la poesía de Cruz e Sousa (a quien se le llamó "Dante Negro") permanecerá más allá del tiempo. Mário de Andrade preparó con Oswald de Andrade la celebérrima Semana de Arte Moderna, la cual se llevó a cabo del 11 al 18 de febrero de 1922 en el Teatro Municipal. Participaron con ellos otros poetas y la Semana logró su objetivo de romper con las normas e imponer novedades de todo tipo. Guilherme de Almeida, el eximio poeta de "Definición

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de la poesía" también fue de aquellos; Manuel Bandeira, a través de cuya "Apresentaçâo de Poesia Brasileira" conocemos bastante de ella, no participó. Dicha Semana de Arte se llevó a cabo en Sao Paulo, de donde eran casi todos los organizadores, incluso la casi precursora de tales novedades cuya mencionada exposición causó revuelo cinco o seis años antes, Anita Malfatti. Sâo Paulo crecía entonces considerablemente por el gran desarrollo de su industria, lo que los recifenses verían con recelo dado que su ciudad, cincuenta años atrás, había sido dos veces más grande que Sao Paulo. Manuel Bandeira, de Recife, era casi contemporáneo de los dos enardecidos paulistas pero innegable precursor de todo aquel movimiento, pues por algo fue llamado "San Juan Bautista del Modernismo", ya que publicó poemas de furibundo ataque al parnasianismo y a románticos, arcádicos y similares corrientes mantenedoras de las formas que eran cambiantes, sí, pero en el fondo conservadoras. Oswald de Andrade quiso caracterizarse con un "Manifesto antropófago" (pero mucho después de realizarse la Semana de Arte) en su Revista de Antropofagia, año I, n s 1, mayo de 1928, con medio centenar de sentencias y pensamientos de tipo "anti" o "contra" como confirmación de su ironía rigurosamente acerba. Había dicho en 1915, en un artículo titulado "En pos de una pintura moderna", que era necesario tener una visión nacionalista de la tierra brasileña, y denunciaba a los pintores y escritores que regresaban de Europa con la sola intención de cultivar el arte, la vida y el paisaje "de allá", lo europeo. En efecto, ya en 1900 había declarado Joaquim Nabuco: "O sentimento em nós é brasileiro; a imaginaçâo, européia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazónica, os pampas argentinos, nâo valem para mim um trecho da Via Appia, urna volta de estrada de Salerno a Amalfi, um pedaço do cais do Sena à sombra do velho Louvre"(ap«¿ Puntual 1987:8), lo que explica por qué Oswald de Andrade, en aquel artículo mencionado, reclamase a los nuevos artistas que se incorporasen "ao nosso meio, à nossa vida", usando los inmensos recursos del país. "Dos tesouros" - decía - "de cor, de luz, dos bastidores que os circundam, a arte nossa que confirme, ao lado do nosso intenso traballio material de construçâo de cidades, e desbravamento de terras, urna manifestaçâo [superior] de nacionalidade" (apud Puntual 1987:10). Se oponía tenazmente al arte del final del Imperio y preguntaba si ese desnacionalismo amenazaba con continuar. En 1916 apareció en Sao Paulo la Revista do Brasil, que declaraba proponerse "una consciencia nacionalista", y en la que Monteiro Lobato atacaba "el francesismo declarado de la época" como una barrera que debía ser derribada para que se irguiese "una cultura verdaderamente nacional". Simultáneamente, en esos años se producían en el mundo muchos fenómenos literarios y artísticos posteriores a la guerra mundial, correspondientes a la introducción de movimientos como el surrealismo, el ultraísmo, el dadaísmo y tantos otros, tal y como se puede leer en la Historia de las Literaturas de Vanguardia de Guillermo de Torre, es decir, las revoluciones literarias y artísticas que en Europa y América lucharon contra el conservadurismo y entronizaron la plena libertad de creación ganaron la batalla a las reacciones de lectores y espectadores, así como de auditores en el campo de la música. El movimiento de los Andrade se basaba en novedades científicas de carácter etnológico y antropológico obtenidas al estudiarse poblaciones selváticas, insistiendo en la necesidad, urgencia y justicia

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de incorporar al lenguaje de la poesía brasileña la terminología de esas regiones, expresivas de su riquísimo mundo, así como la lógica utilización de los términos rurales por las mismas razones de la deseuropeización y, desde luego, la literaturización de los lenguajes citadinos, puesto que al reconocer su derivación del portugués, constituían ya para entonces un nuevo y verdadero lenguaje brasileño, enriquecido con localismos y afronegrismos. La raza negra había tenido enorme importancia en la población brasileña debido a la esclavitud, y en la actualidad conforma un significativo porcentaje de la población brasileña, alrededor del diez por ciento. El modernismo brasileño se basaba también en aquellas noticias europeas, así como también en las de los países americanos y de otros continentes. La proliferación de ismos era común e inherente al afán de progreso. Autores brasileños próximos al comienzo del siglo como Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graça Aranha, Monteiro Lobato e incluso Carlos Drummond de Andrade (nacido en 1902) habían mostrado desde mucho antes su deseo de ver un nuevo Brasil, un Brasil que revelase su propio carácter, y se notaba que apoyaban abiertamente ese nuevo movimiento, inclinándose porque primase una "inestancable corriente de nacionalismo". La imagen paulista de esos momentos era la de competencia nacionalista frente al poder federal de Río de Janeiro, antiguo centro administrativo y cultural. Entre los años de 1910 y 1920 la población de Sao Paulo había crecido en un 108%, de 240.000 a medio millón de habitantes, debido a una fuerte inmigración procedente de diversos países, especialmente de Italia. Curiosamente, los acaudalados jóvenes empresarios que transformaban Sao Paulo mantenían relaciones cordiales con los modernistas y compartían sus ideales de nacionalismo y de progreso, estando siempre dispuestos a ayudar aunque se conociesen motivos de ataques. Por esa época comenzaba a desarrollarse la industria paulista, hasta llegar a lo que es hoy. En el mencionado "Manifesto antropófago", Oswald de Andrade había escrito: Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissäo. O rei analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita labia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açùcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a labia, (apud Teles

1987:355)

El Padre Vieira fue un jesuíta lisboeta nacido en 1608 y fallecido en Bahía en 1697, quien aconsejaba en el siglo XVII que se transfiriese la sede de la monarquía imperial portuguesa al Brasil (lo que se produjo en 1808 por una emergencia). Del ciclo modernista brasileño suele decirse que abarca de 1917 a 1945. Los cambios en la poesía de una nación se dan en realidad simultáneamente con los de otras artes y, en forma más palpable, con el del arte pictórico. Artistas y poetas forman, a veces sin proponérselo, un frente común para conquistar a un público frío y adverso a todo lo revolucionario y a la renuncia de sus preferencias. En el Perú hubo por ese tiempo revistas en pro de aquellos cambios, entre las que destacaba Amauta, fundada y dirigida por José Carlos Mariátegui; además, también circulaba otra revista titulada "La Sierra", de características similares. La figura de Luis Carlos Prestes era conocida en el Perú y con seguridad llegaban

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al Brasil revistas como las citadas y, además, muestras de la corriente indigenista iniciada, en lo pictórico, por José Sabogal, así como del mestizaje rural y citadino captado por Julia Codesido; en lo poético de raíces indígenas por José Varallanos o Nazario Chávez, y en lo poético de ambiente minero por Clodoaldo Alberto Espinoza Bravo, así como en lo poético ultraísta propiamente dicho el poderoso canto de Carlos Oquendo de Amat, "Cinco metros de poemas" - poeta que por desgracia murió en plena juventud - , y en lo musical la creación de Daniel Alomía Robles, entre otros. Como las de muchos creadores en el continente, la personalidad de Mario de Andrade había ido creciendo en Brasil desde aquella Semana del año 22 y trascendía sus fronteras. Mario de Andrade era un poeta exigente consigo mismo y con los demás. En una prosa suya, "A forma na literatura", dice tajantemente: Nao há obra-de-arte sem forma e a beleza é um problema de técnica e de forma. [...] O artista de mais nobres intençôes sociais, o poeta mais deslumhrado ante o mistério da vida, o romancista mais piedoso ante o drama da sociedade poderào perder até noventa por cento do seu valor pròprio se nao tiverem meios de realizar suas intençôes, suas dores e deslumbramentos. [...] E os meios de realizar intençôes e deslumbramentos só podem vir da técnica e da criaçâo da forma. Jamais me preocuparam erros de gramática, mas me preocupam "erros" de linguagem que fragilizam a expressâo. Jamais exigí de ninguém a forma rija do ditirambo, mas repudio e hei de profligar o amorfo, as confusöes do prosaico com o verso-livre, a troca de técnica por um magro catecismo de receitas, o monótono realismo escamoteando em sua estupidez moluscóide aquela transposiçâo para o mundo da arte, em que o mal de um se converte em mal de muitos. (apud Candido/Castello 1983:90)

Poeta, gran docente, crítico de arte y folklorista, todo eso fue Mário de Andrade. Esto mismo hacían nuestros mejores poetas de América, Borges y Huidobro entre ellos. Por ejemplo, procedían al uso del versolibrismo y a las formas externas, es decir, jugaban con la impresión en la página, con lo visual, porque eran expertos, amplios conocedores de la poética y de las artes de la versificación. Fue en vano que un poeta como Coelho Neto, Presidente de la Academia Brasileira, dijera oponiéndose a los modernistas de 1922: "¡Soy el único Heleno!" El poeta Guilherme Andrade e Almeida, nacido en 1890, participante en primera línea en la Semana de Arte Moderna y considerado un artífice del verso comparable al maestro portugués Camôes, dijo en un texto de 1925: "Pela primeira vez no Brasil se tem consciência de ser brasileiro" y agrega: "Já nao somos apenas recptores: temos de ser transmissores" (apud Puntual 1987:44). La profecía se cumplió más tarde, al iniciarse la poesía concreta. Al respecto, Mário de Andrade había manifestado en 1924 en una carta a un amigo: Problema atual. Problema de ser alguma coisa. E só se pode ser, sendo nacional. Nós temos o problema atual, nacional, moralizante, humano, de abrasileirar o Brasil. Problema atual, moderno, repara bem porque hoje só valem as artes nacionais. E nós só seremos universais no dia em que o coeficiente brasileiro nosso concorrer para a riqueza universal, (apud Puntual 1987:44)

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En el Perú, Mariátegui implantaba por esa misma época la hermosa frase "Peruanicemos al Perú", que logró a su vez una radical transformación en el pensamiento y la acción peruanos. Los poetas brasileños del modernismo abogaban insistentemente por el fenómeno de lo popular como medio ideal para la difusión del arte y la poesía en toda su realidad nacional. Ya antes y durante el romanticismo se le dio ese uso, pero fue como pinceladas convenientes para una expresión de globalidad. El éxito que alcanzaron los modernistas luego de su estremecedora Semana de Arte Moderna es visible hasta hoy y cada vez con más fuerza en el pueblo brasileño; lo sabemos porque participamos de las alegrías y los dolores de ese pueblo que ha alcanzado tan merecida fama en el mundo por su progreso material, industrial y agrícola, así como también debido a uno de los factores más populares del mundo actual, el del fútbol. Había mencionado entre los poetas no pertenecientes al modernismo pero que lo apoyaban en sus propósitos, al notabilísimo Carlos Drummond de Andrade. Este poeta, uno de los mayores de la poesía no sólo en lengua portuguesa sino en el mundo, longevo y prolifico, publicó el 3 de julio de 1966, a los 64 años de su gloriosa edad, el poema "Na semana", en el que finalizan los cerca de cincuenta endecasílabos pareados de que consta con estos cuatro versos: "[...] enquanto o povo, preso ao transistor, / com angùstia, impaciencia, febre, amor, / nosso escrete acompanha pela Europa: Nâo nos deixes, Pelé, sem esta Copa!" (Andrade 1977:512-513). Veintiún días después escribe el poema "Aos atletas", ligeramente más extenso, que comienza así: Os poetas haviam composto suas odes para saudar atletas vencedores. A conquista brilhava entre dois toques. Era frágil e grácil fazer da gloria ancila de nós todos. Hoje, manuscritos picados em soluço chovem do terraço chuva de irrisao. Mas eu, poeta da derrota, me levanto sem revolta e sem pranto para saudar os atletas vencidos. (Andrade 1977:513-514)

El poeta más grande del Brasil en ese momento muestra verdadera sensibilidad que no le permite reprochar a sus hermanos deportistas por la pérdida sufrida sino, al contrario, saludarlos por sus reconocidos méritos. No sólo epinicios, pensaría Drummond de Andrade, así como una derrota bélica no impide a un pueblo celebrar el heroísmo de los suyos. Hay un género mixto, de poesía y música, el de los llamados cantautores, que tiene raíces en la poesía clásica, representada por una lira, en la trovadoresca europea de la Edad Media, acompañada de un laúd, o en las canciones románticas del siglo X I X . Un célebre cantautor brasileño, Chico Buarque de Holanda (el padre, Sérgio, tuvo actuación en el movimiento cultural brasileño al que me he referido), es conocido en toda Sudamérica por sus grabaciones. Nacido en 1944, publicó Roda Viva en el 68, Calabar en el 73, Gota d'água

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en el 75 y Ópera do Malandrò en el 79. A los 30 años había publicado una novela (Fazenda modelo, 1974) y en 1991 su primer romance, Estorvo. Chico Buarque puso música al bello poema de Joào Cabrai de Melo Neto (otro de los grandes poetas brasileños) acerca de la periódica sequía en el Norte Brasileño titulado "Muerte o vida severina". Posteriormente al movimiento originado por el modernismo brasileño, hubo uno singular en el Noroeste, y más hacia nuestro tiempo hizo su aparición en el mundo la poesía concreta llamada también poesía visual, con notables seguidores en el Perú y otros tantos países. Se inició a fines de 1956 en el Museo de Arte Moderno de Sao Paulo y se propagó por Suecia y otros países. En el Perú, el poeta y editor César Toro Montalvo (Lambayeque, 1947) cultivó el género de poesía concreta o visual. Los poetas brasileños de este siglo son sin duda numerosos, y lamento que un viaje que hice hace poco a Roma no me haya permitido documentarme mejor, así como tampoco el no poder mostrar en esta ocasión al menos uno de la veintena de libros de poesía brasileña editados en Lima desde 1978 por el Centro de Estudios Brasileños, ediciones bilingües con traducciones encargadas a poetas peruanos residentes en Lima. El Centro de Estudios Brasileños realizó una fructífera labor de difusión de la poesía brasileña, no sólo mediante el obsequio de aquellas antologías bilingües sino también debido al dictado de conferencias, la presentación de exposiciones y otras actividades, lo cual todavía se lleva a cabo. Hago estas menciones porque denotan con claridad la amplia vinculación que también en el terreno de lo cultural existe entre Brasil y Perú, la que se mantiene además por medio de un permanente intercambio de actuaciones de teatro, música, danza, cine club, fotografía, etc., así como de publicaciones periódicas, como no dudo sucede en los demás países hermanos de Latinoamérica. Personalmente recuerdo haber leído hacia 1962, en la edición en castellano de la Revista O Cruzeiro, entregas semanales de las memorias de Pablo Neruda ("Confieso que he vivido"), que modificadas en 1974 publicó la Editorial Losada de Buenos Aires. Existe, como con muchos países, un constante intercambio de estudiantes becados y otro de adolescentes que pasan un año en sendas familias huéspedes. Me pesa también haber tenido que omitir tantos nombres de la poesía brasileña, por lo medido del tiempo, aunque espero poder ampliar estas páginas con el material que he reunido estos días y convertirlas en un pequeño ensayo que publicaré en el Perú a mi retorno. Agradezco nuevamente a los señores organizadores de esta Semana del Brasil y América Latina, que enriquecerá en particular mi conocimiento de ese admirado país. No cabe duda que la Universidad del Estado de Rio de Janeiro y la Albert-Ludwigs-Universität de Freiburg han realizado un esfuerzo que habrá de mejorar los vínculos entre los países latinoamericanos.

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Bibliografia Andrade, Carlos Drummond de (1977): Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar Buarque, Chico (1991): Estorvo. Sâo Paulo: Companhia das Letras Candido, Antonio; Castello, José Aderaldo (1979): Presença da literatura brasileira. Historia e antologia. Vol. ΠΙ: "Do Romantismo ao Simbolismo". Sào Paulo/Rio de Janeiro: Difel — (1980): Presença da literatura brasileira. Historia e antologia. Vol. I: "Das Origens ao Romantismo" Sào Paulo/Rio de Janeiro: Difel — (1983): Presença da literatura brasileira. Historia e antologia. Vol. IV: "Modernismo". Sào Paulo/ Rio de Janeiro: Difel — (1991): Presença da literatura brasileira. Historia e antologia. Voi. Π: "Das Origens ao Realismo". Sào Paulo/Rio de Janeiro: Difel Muricy, José Candido de Andrade (1973): Panorama do movimento simbolista brasileiro. Vols. I e Π. Brasilia: Instituto Nacional do Livro Puntual, Roberto (1987): Entre dois séculos. Arte brasileira do século XX na Coleçào Gilberto Chateaubriand. Voi. Π. Rio de Janeiro: Edit. J.B. Teles, Gilberto Mendonça (1987): Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. Rio de Janeiro: Record

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Práticas de representaçao luso-brasileiras do século XVII

A representaçao colonial luso-brasileira hoje unificada como "Barroco" é urna evidencia de práticas históricas que só existem para além de si mesmas, no tempo, quando as fazemos falar produzindo urna presença verossímil para a sua ausencia, numa situaçâo determinada como posiçâo teórica ou interesse específico. Seu modo de existencia é o da contradiçâo cultural e política dos valores-de-uso da noçâo de "barroco" que as classifica no presente. Falar dos residuos coloniais implica, por isso, duas articulaçôes temporais complementares. Urna délas é a do lugar institucional deste lugar de fala académica mediada pelo estado contraditório das interpretaçôes. Outra articulaçâo é a do passado, que entendo, com Michel de Certeau, como a metáfora ou o morto produzido pela fala.1 No caso, o passado nao é a determinaçâo primeira, objetiva e positiva que caberia simplesmente reconhecer, porque é urna construçâo. O "colonial" a que me refiro tem urna articulaçâo necessariamente descontinua, pois sua ordem verossímil é urna montagem que resulta da minha apropriaçâo de materials dos arquivos. Os estudos universitários brasileiros sobre as letras coloniais costumam aplicar a elas o padrâo de legibilidade específico da literatura densamente letrada da modernidade pósvanguarda. Tal padrâo é modelado pelos esquemas do texto impresso e implica critérios de orientaçâo temporal, psicológica, profissionai e institucional do sentido - como "racionalizaçâo negativa da forma", "ruptura estética", "originalidade", "utopia política", "progresso", "subjetividade psicológica", "autoría", "plagio", "analfabetismo", "mercado" e "direitos autorais" - que se evidenciam exteriores ou anacrónicos quando sâo aplicados retrospectivamente a representaçôes originalmente ordenadas por outras categorías de pensamento e convençôes técnicas, veiculadas por outros suportes e meios, visando outros fins, e lidas, vistas e ouvidas por outros públicos, conforme outros sentidos históricos dados à experiencia do tempo. Quando se tenta determinar históricamente a representaçao colonial, ficam evidentes nela as técnicas retóricas aplicadas como uma racionalidade nao-psicológica que figura várias possibilidades de usos dos efeitos na recepçào, conforme orientaçôes pragmáticas diversas. Os estilos das representaçôes especificam várias posiçôes hierárquicas a partir das quais seus efeitos se tornam adequados aos temas e às circunstancias do consumo, podendo-se generalizar a afirmaçâo de que o decoro retórico dos estilos coloniais também é o decoro éticopolítico das várias posiçôes hierárquicas representadas neles. Assim, suponho que as categorías de pràtica, de representaçao e de apropriaçâo têm valor heurístico no seu estudo, pois permitem desnaturalizar a representaçao colonial, ou seja,

1

Michel de Certeau: L'absent de l'histoire. Paris: Maison Mame, 1973, pp. 151-153.

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deslocá-la da generalidade trans-histórica e determinista das categorías románticas e mágicas, rotineiras ñas historias literarias brasileiras, como as de "influencia", "importaçào de idéias", "imitaçao unidirecional da Metropole" e similares. Pràtica, apropriaçào e representaçào sâo pertinentes porque permitem a crítica de interpretaçôes que ignoram ou excluem os residuos, porque nâo se adaptam à teleologia organicista de seu programa estético e político, que concebe as formas passadas de maneira unilateral quando as considera como etapas para si mesmo. Pode-se evidenciar, por exemplo, que a presença dos residuos no cànone literario, como "obras representativas", resulta de longos encadeamentos de apropriaçôes polémicas e contraditórias. Quando se dissolve a naturalidade da representaçào, os residuos falam a partir de si mesmos, como diz Roger Chartier, podendo ser reatualizados como evidencia de práticas datadas, isto é, como representaçôes que hoje sao metonimias ou restos de práticas históricas de representaçào. Assim, pressupondo que os residuos que chegaram ao nosso presente existiam em seu tempo através de sistemas de representaçào, pressuponho também que nào se pode fazer a historia dessas práticas utilizando simplesmente as representaçôes délas, porque é preciso fazer, ao mesmo tempo, também uma historia das regras - modelos, esquemas e convençôes - de sua produçào textual e iconográfica.2 Como representaçôes de práticas, os residuos coloniais aparecem ordenados por esquemas culturáis cuja estrutura pode ser deduzida a partir dos usos diferenciáis de referencias comuns encenadas neles; pode-se também, deste modo, especificar o caráter diferencial das auto-representaçôes dos agentes históricos desses usos, como apropriaçôes diferenciadas em situaçào. No Brasil, ainda é necessàrio determinar as diferenças culturáis das integraçôes produzidas na Colonia pela análise de seus meios materials e suportes institucionais, suas correspondencias e fluxos internos, e também das iniciativas grupais e pessoais de letrados e artesâos do século XVII. No caso, uso a expressào "século XVII" para classificar a longa duraçâo cujos limites podem ser 1580, inicio da Uniäo Ibérica, quando Portugal passa para o dominio de Espanha, e 1750, ano da morte de D. Joäo V e inicio das transformaçôes políticas e culturáis da Qustraçào do Marqués de Pombal. As datas sào apenas indicativas, podendo-se recuá-las ou avançâ-las, porque várias temporalidades e sedimentos de dimensöes e estilos variados coexistem no recorte. Se algumas aparecem como longuíssimas duraçôes de sedimentos medievais, romanos e gregos, que praticamente desaparecem por volta do final do século XVIII, outras duraçôes nào menos longas continuam sendo transformadas fora do limite cronológico desse recorte. Ε o caso de modelos artísticos italianos e ibéricos quinhentistas e seiscentistas, aplicados na arquitetura, na escultura e na pintura do barrococó mineiro e goiano do final do século X V m e inicio do X I X . Várias questôes políticas, religiosas e económicas agitam esse recorte, em Portugal e no Brasil. O referencial de seus discursos encontra-se dramatizado na representaçào. Quase

2

Roger Chartier: "Historia y prácticas culturales". Entrevista a Roger Chartier por Noemi Goldman y Leonor Arfuch, in: Entrepasados. Revista de Historia. Buenos Aires: El Libro, Año IV,

7, 1994, p. 140.

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todas sâo tratadas ñas cartas, sermôes e obra profética do Padre Antonio Vieira, entre 1626 e 1697; muitas aparecem ñas sátiras atribuidas ao poeta Gregorio de Matos e Guerra, que viveu em Salvador, entre 1682 e 1695; algumas sao temas específicos de cronistas, historiadores, pregadores e académicos, entre 1640 e 1730 - por exemplo, as guerras de 1624 e 1640 contra a Holanda, tratadas por Duarte de Albuquerque Coelho em Memorias diarias da guerra do Brasil ou por Diogo Lopes Santiago em Historia da guerra de Fernambuco·, as questôes dinásticas portuguesas, envolvendo a Espanha dos Habsburgos, a França de Luís XIV e a Sabóia; a regulamentaçâo da "guerra justa" contra indios e conflitos coloniais de jesuítas, carmelitas, governadores, colonos e clero secular, como os ataques bandeirantes às missôes jesuíticas do Paraguai e a escravizaçâo dos indios do Maranhâo; a perseguiçâo aos comerciantes judeus e aos cristâos-novos; a competiçâo comercial com a Holanda, a Inglaterra e a França; o fracasso do projeto jesuítico de fixar os capitals judaicos na Península Ibérica com a formaçâo de urna companhia de comércio, a Companhia do Brasil; a destruiçâo do grande reduto de escravos rebelados, o quilombo de Palmares, em 1695. No recorte, após o término das guerras portuguesas de Restauraçâo e do reconhecimento da independencia de Portugal pela Espanha, em 1660, e o reinado do Duque de Bragança, D. Joâo IV, segue-se o curto reinado de D. Afonso VI, declarado louco e deposto em 1667 pelo golpe de estado articulado pelo irmâo, o Príncipe D. Pedro, que se casará com a cunhada, Maria Sofia de Sabóia, será regente e depois rei, como D. Pedro Π, até 1705, quando sobe ao trono seu filho, D. Joâo V. A partir de 1675, as barreiras alfandegárias impostas por Inglaterra, França e Holanda à distribuiçâo e à venda dos açùcares brasileiros nos mercados europeus fazem os estoques avolumar-se nos armazéns de Lisboa. A Coroa ordena entâo que se reduzam os preços, visando a tornar o açùcar brasileiro competitivo. Na Bahia e Pernambuco, a baixa dos preços afeta imediatamente as folhas de pagamento do clero e da burocracia, eleva o valor e o preço dos escravos e do cobre, ferro e breu indispensáveis aos engenhos, descapitaliza os senhores, leva-os ao crédito, à impossibilidade de saldar dividas, às falencias e ao fechamento dos engenhos ou ao "fogo morto", afeta a cobrança de donativos e dizimos, intensifica a misèria da populaçâo já cronicamente miserável. A crise se amplia quando a moeda metropolitana de prata e ouro é fixada num valor facial inferior ao da moeda circulante no Brasil, o que produz a evasâo dos metáis para Portugal, acompanhada da alta dos géneros3; em 1688, após a desvalorizaçâo de 20% da pataca espanhola, a moeda portuguesa torna-se mais vulnerável ao contrabando e a outras práticas de desvio, como a do corte de seus bordos e fundiçâo das aparas, transformadas entâo pelos ourives baianos em barras de ouro e prata, ou em baixelas e outros objetos suntuários que, junto com o tabaco e a jeribita, a aguárdente de cana, eram trocados em Angola e no Golfo da Guiñé por africanos. Em 1692, o governador Cámara Coutinho escreve desesperado ao rei. Dizendo-lhe que a crise é tâo grande que já nâo há moedas para as esmolas, pede providéncias para pôr fim à situaçâo que impede a caridade. Ainda entre 1680 e 1700, na Bahia e

3

Carl Hanson: Economia e sociedade no Portugal barroco 1668-1703. Lisboa: Publicaçôes Dom Quixote, 1986, pp. 167-168.

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outros lugares do Nordeste, grandes mortandades da escravaria, causadas pela "bicha", a febre amarela trazida nos navios negreiros, tornam mais precaria a situaçâo, caracterizada entâo pela murmuraçâo popular, por sediçôes de soldados do Terço da Infantarla, por révoltas de escravos, por ataques de indios bravos e piratas franceses e ingleses, pela aseensao de mercadores e membros das ordens mecánicas a posiçôes na aristocracia, com a oposiçâo cerrada da fidalguia velha de Portugal aliada da Inquisiçâo. A hierarquia entâo sofre abalos constantes, para ¡mediatamente recompor-se, em inúmeros conflitos de representaçôes. Por volta de 1690, a penetraçâo bandeirante do sertäo mineiro e o ouro descoberto na regiäo de Vila Rica e, logo, os diamantes do Arraial do Tijuco, hoje Diamantina, asseguram o luxo e a pompa da corte de D. Joâo V, a construçâo do palacio-convento de Mafra, a continua importaçâo portuguesa de arquitetos, pintores, músicos e letrados italianos, que reativam esquemas seiscentistas e quinhentistas. Na arquitetura, na escultura, na pintura, na poesia, no teatro e na música, recorre-se mais uma vez a Borromini, Palladio, Scamozzi, Serlio, Ripa, Possevino, Gilio, Marino, Bernini, Monteverdi... No Brasil, os mesmos esquemas sao reativados ñas academias fundadas de 1724 até meados do século XVIII, como uma primeira tentativa de organizaçâo sistemática da cultura. A primeira délas, a Academia Brasílica dos Esquecidos, fundada na Bahia em 1724, tinha a finalidade de escrever as varias historias - administrativa, militar e eclesiástica - da conquista do Brasil. A obra de Sebastiâo da Rocha Pita, Historia da América portuguesa, de 1730, resulta desse projeto. A partir de 1750, os esquemas da teologia-politica e da retórica seiscentistas estäo esgotados em Portugal, sendo substituidos por modelos franceses e italianos da Ilustraçâo árcade, mas continuarâo sendo aplicados no Brasil como um barrococó, até a Missâo Francesa vinda por iniciativa de Dom Joäo VI, em 1817. É o caso das Obras poéticas, editadas em 1768 pelo árcade Cláudio Manuel da Costa, que ao mesmo tempo imita a engenhosidade do estilo asiático de Góngora e a pastoral das óperas neoclássicas de Metastásio, adaptando-os à paisagem pedregosa da mineraçâo; ou, no inicio do XIX, das obras do Aleijadinho e de Athayde, entre 1810/1817, na Igreja de Sâo Francisco de Assis, em Ouro Preto; ou da escultura religiosa de Veiga Vale, em Goiás, por volta de 1840. Pressupondo-se a sincronia do Brasil com as colonias africanas e asiáticas de Portugal, as colonias espanholas e outros centros europeus de cultura, a representaçào colonial pode ser descrita num primeiro momento como resultado de processos técnico-políticos de integraçâo de códigos culturáis diversos, que adaptam e deformam os mesmos padröes em valoresde-uso locáis. E sobre o padrlo teológico-político dessa integraçâo que vou falar adiante. Antes, devo dizer que alguns estudos brasileiros sobre a representaçào colonial vêm tornando inoperantes as conceituaçôes estilísticas dadas a prion, como a de um único estilo, "o Barroco", que estaría posto na base das letras e das artes coloniais como uma unidade unidirecionalmente imitada da metrópole na generalidade "América Latina". Penso nos trabalhos que o Prof. Alcir Pécora, da Universidade de Campinas, vem fazendo sobre a oratoria sacra de Vieira, nos textos inquisitoriais editados pela pesquisadora baiana Adma Fadul Muhana, e nos cursos de pôs-graduaçâo realizados anualmente, ñas férias de janeiro

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e julho, pela Universidade Federal de Ouro Preto. Também devo dizer que a expressâo "América Latina", que hoje unifica a enorme diversidade geogràfica e cultural americana, nâo tem pertinencia histórica no caso da representaçâo de que falo. Eia é um anacronismo comprometido com a política de Napoleâo ΠΙ na ocupaçâo francesa do Mexico e, como demonstrou Richard Morse, é parte de um discurso "geoideológico" para a suposta unidade cultural e "racial" de povos latinos, em oposiçâo aos germánicos, anglo-saxôes e eslavos.4 No século X V n , a internacionalizaçào da racionalidade de Corte das monarquías absolutistas católicas faz com que os letrados e os artesäos da Italia, Espanha, Portugal, Peru, Nova Espanha e Brasil, principalmente, partilhem a mesma referencia retóricoteológico-politica de base. Os letrados que entâo vivem no Brasil sâo quase sempre pessoas da burocracia e do clero; geralmente, sao formados no curso de Cánones da Universidade de Coimbra. Como os artesäos que realizam encomendas para confrarias, irmandades e ordens religiosas, os letrados dependem diretamente de mecenas ou patrocinadores. A partir da Academia dos Esquecidos, é típico o patrocinio dispensado a eles por Vice-Reis. O letrado colonial nâo é ainda urna figura social justificadora de um imaginario social associado a eia.5 Assim, nao é ainda o "autor" ou o "escritor", no sentido iluminista e pós-iluminista; mas também nâo é mais o "escriväo" de urna corporaçâo de oficio medieval. Para defini-lo, deve-se tentar determinar o valor ou os valores da sua representaçâo numa sociedade de ordens em que a pessoa e sua posiçâo se definem por pertencerem a um grupo, a urna ordern ou um estamento, mais que por seus atributos individuáis. A identidade social do letrado colonial nâo se define especificamente no campo das letras, mas, antes de tudo, no de outros serviços. Um indice disso consiste no número muito baixo de documentos iconográficos onde apareçam figuras de escritores; outro indicio é a inexistencia de qualificaçôes como "autor", "escritor" ou "homem de letras" na papelada administrativa e jurídica portuguesa. Entâo, o escritor é designado por categorías profissionais (Ouvidor Geral, Juiz de Fora, Desembargador, Padre), por categorías da posiçâo (fidalgo/nâo-fidalgo) e, ainda, da formaçâo. Por exemplo, nos papéis portugueses, "letrado" quase sempre significa "formado em Direito por Coimbra". Ou seja, a posiçâo letrada é determinada pelas categorías hierárquicas e profissionais da pertença ao "corpo místico" do Estado, mais do que pela autonomia autoral, pela originalidade e pela invençâo literaria como as entendemos hoje. A representaçâo discursiva que o letrado colonial produz, principalmente em portugués, espanhol e latim, é mimètica, feita como aplicaçâo de técnicas retóricas anónimas e coletivizadas que emulam modelos de autoridades, adaptando a eles a referencia institucional e informal do lugar. As adaptaçôes locáis produzem deformaçôes de varios graus e valores que repetem sistemicamente as prescriçôes dos esquemas imitados e sâo diferenças materials,

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Richard Morse: O espelho de pròspero. (Cultura e idéias na América). Sâo Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 14. Alain Víala: "Du caractère d'écrivain à l'Âge Classique", in: Textuel. Images de l'écrivain. Paris: Université de Paris ΥΠ, n a 22, 1989, pp. 51-52.

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institucionais, formais e mesmo pessoais, como intervençâo no padrâo coletivo. Como a representaçào nâo conhece a divisâo dos regimes discursivos produzida a partir do ¡luminismo, tem entâo um uso fundamentalmente utilitario. Nao se pensa que a poesia, por exemplo, possa ser objeto de contemplaçâo desinteressada, ou que a oratoria possa ser objeto de contemplaçâo estilística ou estética. Numa aproximaçâo primeira das práticas letradas coloniais, podiam-se dividir os discursos em dois grandes grupos: obras de circunstancia selene e obras de circunstancia polémica, adaptadas às circunstancias da hierarquia como celebraçâo e crítica de abusos.6 A divisâo é arbitraria, como qualquer outra, e sua possível validade decorre de dar conta dos discursos segundo um principio de classificaçào pragmática, que considera antes de tudo a condiçâo de possibilidade do discurso e o firn para o quai é produzido, nâo tratando da sua codificaçâo retòrica como género, implicada nâo obstante na pragmática. Obras de circunstancia solene sâo as de celebraçâo de cerimônias, entendendo-se por "cerimonia" toda circunstancia em que o poder monárquico se dá a ver em suas várias instituiçôes locáis, segundo o regramento específico de cada urna délas. As cerimônias envolvem as circunstancias específicas do clero - procissôes da Igreja, dias santos, auto-da-fé, entrada de bispo, liturgia etc - ; circunstancias celebratórias da nobreza e da familia real ocasiòes encomiásticas, natalicios, nascimentos e esponsais, e ocasiôes de luto e pesar, encomendaçôes e enterros - ; mais genericamente, circunstancias do poder monárquico: entradas e saídas de governadores; celebraçâo de vitórias contra sediçôes, como é o caso do poemeto heroico atribuido a Gregorio de Matos que celebra Dionisio Vareiro, vencedor de um grupo de 35 bandidos paulistas que assolavam a regiâo de Camamu e Porto Seguro, no sul da Bahia, em 1691; ou, ainda, vitórias contra piratas, indios bravos, negros rebelados, como é o caso de um relato das festas feitas em Salvador em 1695, quando o quilombo de Palmares foi destruido por bandeirantes paulistas. Também devem ser lembrados os certaines letrados, em que vários letrados reunidos compunham discursos sobre um tema predeterminado, como faziam, em tardes de sábado, na Quinta do Tanque, em Salvador, Vieira e seu irmâo, Bernardo Vieira Ravasco, e sobrinho, Gonçalo Ravasco de Albuquerque Cavalcanti, além de Gregorio de Matos, Eusebio de Matos e outros. Pode-se inferir a posiçâo do letrado nessas práticas quando ele é um tipo áulico, quando é um tipo de urna das instituiçôes administrativas e mesmo quando aparentemente é um tipo nâo relacionado diretamente às instituiçôes. Quando se lembra que, quase invariavelmente, o letrado era membro do clero, muitas vezes com o curso de Teologia, como Vieira membro da milicia, como o Coronel Sebastiâo da Rocha Pita, membro do Tribunal da Relaçâo e formado em Direito Civil, como os inúmeros académicos da Academia Brasílica dos Esquecidos e dos Renascidos, ou formado em Cánones em Coimbra, sem ligaçâo direta com nenhuma das instituiçôes, como Gregorio de Matos, pode-se também supor que o fato de pertencer direta

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Hélène Duccini: "L'état sur la place publique: pamphlets et libelles dans la première moitié du XVIIe siècle", in: Méchoulan, Henry (ed.): L'état baroque. Regards sur la pensée politique de la France du premier XVIIe siècle. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1985, pp. 291-300.

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ou indiretamente a um lugar da instituiçâo fazia com que necessariamente se limitasse o tema dos discursos e o àmbito da sua açâo intelectual. Como obras adequadas às situaçôes da hierarquia, observa-se nelas, por isso, também a forte determinaçâo da circunstancia que as adapta a um evento determinado. Pode-se também supor, por isso, que o absoluto senso de decoro que regia a encenaçào do poder predeterminava o qué e o como o letrado podia falar ou escrever. Sendo discursos de pessoa conhecida, tinham urna destinaçâo pública direta, que impedia todo anonimato. Por isso, subordinavam-se imediatamente à palavra de ordern das instituiçôes, de modo que nao incluíam, em sua formulaçâo, aquelas doutrinas julgadas heréticas e politicamente perigosas para o "bem comum" do Reino, do que também decorre a ausencia de traços de luteranismo, calvinismo, erasmismo ou maquiavelismo neles, que só referem as heterodoxias negativamente, para combatê-las. Isso parece implicar seu alinhamento com a ortodoxia do poder central, pelo menos em sua formulaçâo, já que muito pouco ou quase nada se sabe dos modos como eram consumidos e deformados. Também é oportuno lembrar que, mesmo limitadas pelas prescriçôes institucionais, como a forte censura, muitas obras conseguiam operar incluindo a variedade dos interesses contemporáneos na medida em que sua formulaçâo metafórica permitía condensar ou integrar varios motivos, tornando-se pelo menos ambiguas. É o caso exemplar dos sermôes de Vieira e da sua Historia do futuro ou, ainda, das varias copias manuscritas da sua obra profética em latim, Clavis prophetarum. Nâo é o caso, no entanto, do Tratado teológicopolítico, escrito por Rocha Pita em 1713, e oferecido ao nobre poderoso, o Marqués de Angeja, que reitera os principios doutrinários do Direito Natural e da sacralidade do poder real. Tem-se de considerar, porém, que mesmo uma obra de sentido aparentemente unívoco como a de Rocha Pita podia ser apropriada segundo sentidos nao previstos na sua formulaçâo original, passando a ter outros valores. Afinal, como diz Bourdieu, toda prescriçâo produz imediatamente sua pròpria subversâo. Por exemplo, ñas sátiras contra o clero baiano produzidas entre 1680 e 1700, os vicios dos padres sâo compostos segundo as tópicas medievais convencionais da gula, da luxuria, da simonia e da usura. Em Cartas da Cámara de Salvador ao Rei, entre 1650 e 1700, é rotineiro o pedido de que seja suspenso o privilègio de isençâo de impostos do clero local. Os senhores referem-se principalmente aos jesuítas, que eram proprietários, nesse tempo, do maior engenho colonial, o Sergipe do Conde. Pode-se inferir que a crítica moral ao clero, encontrável ñas sátiras, era perspectivada segundo outros interesses contemporáneos, passando a significar outra coisa em usos diferenciados. Por exemplo, quando a sátira apenas moral ao clero era apropriada pelos oficiáis da Cámara, representantes dos interesses dos senhores de engenho, a desqualificaçâo moral era aplicada na circunstancia bastante particular das contendas económicas dos senhores contra os jesuítas, e também contra os beneditinos e carmelitas, refratando-se nos usos. Havia, certamente, uma circulaçâo de obras de circunstancias abertamente polémicas provavelmente, Gregorio de Matos é o caso mais famoso, mas também se deveriam lembrar os panfletos anónimos contra grupos inteiros, como os cristâos-novos, e pessoas de várias posiçôes, como os governadores, o pròprio Gregorio de Matos, senhores de engenho,

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advogados, freiras, mulatos e escravos individualizados, segundo varios motivos integrados ao tema nuclear do "bem comum". Até o XVIII, também foram correntes na Bahia os assim chamados "passaportes", folhas volantes que saíam no sábado de Aleluia e que inseriam casos imaginarios e reais de "procedimento escandaloso" de moradores de Salvador e vilas do Recóncavo. Os panfletos ligavam-se ao antigo costume medieval, corrente no norte de Portugal, em lugares como Braga, das folhas volantes ou "testamentos de Judas" e loas das "judengas".7 A primeira vista, o fato de a maioria da populaçâo ser analfabeta, de nao haver universidades, de a imprensa ser proibida e o livro ser censurado parece restringir o alcance da produçào escrita. Devem ser lembradas, contudo, outras formas de circulaçâo e apropriaçâo dos discursos letrados, que nao dependiam necessariamente da leitura. Por exemplo, costumava-se 1er em voz alta para um público analfabeto o discurso escrito segundo o padrâo erudito da cultura letrada que aparecía pregado ñas portas de igrejas ou circulando em folhas avulsas. Os discursos escritos entâo pressupôem outras formas de organizaçâo do tempo e da memòria, adaptando o estilo ao tempo curto das ruas e praças. Por exemplo, as sátiras atribuidas a Gregorio de Matos dramatizam tópicas eruditas das letras latinas, como as da poesia de Ovidio, Horácio, Lucano e Juvenal, ou da poesia portuguesa e espanhola dos sáculos XV, XVI e XVII, como a do Cancioneiro gérai de Garcia de Resende, a de Camòes, Quevedo, Góngora e Lope. Os poemas compôem a imitaçâo, porém, com lugares-comuns muito estereotipados, do género epidítico, dispondo-os na ordern previsível de urna trama típica. Os esquemas sào facilmente memorizáveis e reaplicáveis em outras circunstancias, segundo a "movência" de que falava Paul Zumthor. É o que evidenciam os poemas com variantes, algumas délas com alteraçôes essenciais do sentido, dos códices gregorianos hoje guardados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, cujas deformaçôes evidenciam as apropriaçôes contemporáneas. No caso colonial brasileiro, o estudo dos padrôes retóricos e teológico-políticos portugueses é fundamental para se especificar o caráter das trocas e circuitos culturáis segundo o eixo Colonia/Europa, mas também devem ser consideradas as trocas entre o Brasil e as outras colonias portuguesas, como Angola e Macau, e espanholas, a regiâo do Rio da Prata, o Peru e o México. A consideraçâo deve incluir limites institucionais e materials geralmente nâo observados em análises imanentes das formas. Numa sociedade escravista organizada segundo o estereotipo ibérico da "limpeza de sangue" e da desigualdade natural das ordens que a compôem, o fato de os letrados nâo se definirem como "escritores", mas serem quase sempre funcionarios da burocracia e do clero, geralmente brancos ou assim classificados, somado ao fato de nâo existirem especializares dos saberes, como um mercado cultural das obras e instituiçôes universitárias, contrasta com o fato de os artesáos serem quase que invariavelmente mulatos, mamelucos ou negros. Por outras palavras, há um duplo padrâo na representaçâo colonial que integra referencias culturáis diversas: no caso das letras, a

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Joâo da Silva Campos: Procissöes tradicionais da Babia. Obra postuma. Pref. de Arnaldo Pimenta da Cunha. Salvador: Museu da Bahia/Secretaria de Educaçâo e Saude, n° 1, 1941, p. 77.

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integraçâo funciona dominantemente de "cima para baixo" e, no caso das artes plásticas, muito provavelmente de "baixo para cima". Na sátira que circulou na Bahia entre 1682 e 1700, por exemplo, alguns poemas adaptam de "cima para baixo" os falares banto e tupi das populaçôes africanas e indígenas do lugar as convençôes retórico-poéticas que entâo definem aristotelicamente os barbarismos como linguagens próprias do género cómico, que é entâo instrumento de constituiçâo da inferioridade natural de negros, mulatos e mamelucos ñas críticas a suas apropriaçôes da representaçâo discreta dos "melhores" do lugar. No caso das artes plásticas, deve-se propor como uma determinaçâo básica da produçâo das obras o padrâo ibérico da distinçâo fidalga, que desqualifica radicalmente o traballio manual, entâo relegado a plebeus e escravos. O desprezo ibérico pelo traballio manual determinou que as artes plásticas coloniais fossem produzidas por artesâos negros, mulatos e mamelucos, observando-se a ambigüidade cultural das apropriaçôes de modelos feitas de "baixo para cima". Ε o caso dos búzios, dos falos, dos chifres de bode e tubérculos de inhame representados nos altares da igreja de Sta. Ifigenia, em Ouro Preto, construida no inicio do XVin, que o artesäo negro ou mulato aplicou como ornato que condensa referencias eruditas da iconografia antiga, como o mito do nascimento de Afrodite, e crista, em que a estrutura labirintica da concha alegoriza os mistérios do Amor da Encarnaçâo de Maria. Mas, numa igreja de negros que cultua uma santa negra, os búzios provavelmente também tinham valor ritual análogo ao que têm hoje no candomblé. Recentemente, um pesquisador brasileiro, o Prof. Lázaro Francisco da Silva, os analisou.8 Tem-se de considerar também, no caso das artes plásticas, a abertura semántica propiciada pelos materials nào-discursivos, que admitem maior indeterminaçào do sentido das formas em usos inesperados. Da mesma maneira, as grandes distancias, que tornavam os materials tradicionais inacessíveis, escassos ou muito caros, determinavam a substituiçâo de materials previsíveis, como os azulejos portugueses ou o mármore, por madeiras recortadas e pintadas com tintas feitas de graxas animais, sucos vegetáis e pós minerais do local, caso do "sangue de boi", segundo várias apropriaçôes que adaptavam os modelos à matèria disponível. Em Minas, a abundancia da pedra-sabâo, muito macia e plástica, facilitou a transposiçâo da estrutura dos emblemas de Cesare Ripa, Horapolo, Alciato e Valeriano na composiçâo das alegorías pictóricas de vários frontispicios de igrejas, o mesmo ocorrendo com os ornatos de madeira que integram elementos locáis, como é o caso dos atlantes da base de colunas ou os anjos de talhas que apresentam narizes negroides e cocares indígenas de plumas, na Matriz de Antonio Dias, de Ouro Preto. Outros fatores de ordem material devem ser lembrados na especificaçâo dos circuitos das trocas - por exemplo, nos séculos XVII e XVIII, cristaos-novos portugueses, contrabandistas de prata de Potosí, peles de Buenos Aires e madeiras do Brasil, faziam circular modelos da representaçâo discursiva e plástica no eixo Portugal-Salvador-Buenos Aires-Tucumán-Cuzco-Lima-Santiago-Quito, como demonstra a Profa. Maria José Goulâo,

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Lázaro Francisco da Silva: "Conjuraçâo negra em Minas", in: Revista IFAC. Ouro Preto: IFACUFOP, 1995, pp. 68-78.

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da Faculdade de Belas Artes do Porto. 9 Na Bahia, além dos jesuítas portugueses vindos da Asia e da Africa, também padres capuchinhos franceses e italianos faziam escala em Salvador quando vinham do Congo antes de passarem por Lisboa indo para Roma, fazendo circular modelos que escapam à estrita área lusitana. Padrôes orientais de representaçào birmaneses, chineses e indianos - também foram adaptados no Brasil, principalmente na arquitetura, no mobiliário, na escultura, em serviços de mesa, nos objetos do culto e na decoraçâo do interior de igrejas. Ε o caso, em Minas, das chinoiseries da Igreja Matriz e da capela de N.S. do Ó de Sabara, da Sé de Mariana ou da capela do Padre Faria, de Ouro Preto, que integram a perspectiva chinesa e as cores orientais aos ornatos europeus; ou dos crucifixos de marfim modelados com as linhas das imagens budistas de Goa, que se acham no Museu do Carmo, de Ouro Preto; ou, em Sao Paulo, dos leôes birmaneses do Embu, que serviam de catafalco em cerimônias fúnebres no colégio jesuítico local; ou das imitaçôes de animais similares com idéntica funçio, feitas pelo Aleijadinho. O fato de a Coroa proibir a presença de ordens religiosas ñas Minas - que foram substituidas pelo clero regular e por confrarias ou irmandades rivais, que se organizavam segundo divisôes do espaço urbano e dispendio ostentatório de signos - também nao pode deixar de ser considerado, pois a concorrência determinava o caráter conspicuo das refraçôes da representaçào em festas, como o Triunfo eucaristico, de 1733, ou dos modelos aplicados à construçâo de igrejas. Ε o caso das irmandades rivais do Carmo e de Säo Francisco, em Mariana, e de outras, em Minas, na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Apesar do exclusivo monopolista que teoricamente as censurava, as trocas culturáis faziam com que contemporáneos, que muitas vezes nunca tiveram noticia uns dos outros, concebessem o plástico e o discursivo neo-escolasticamente, como representaçào mimètica e retoricamente ordenada que resultava de operaçôes intelectualistas aconselhadas pela "luz natural" da Graça inata sobre os conceitos extremos de urna matèria anònima e coletiva. Autores como Vieira, Gregorio de Matos e Nuno Marques Pereira, no Brasil, ou Sor Juana Inés de la Cruz, nos versos 280/360 de El sueño, no México, ou o satírico Caviedes, no Peru, aplicam as mesmas tópicas, léxico e decoros quando desenvolvem seus temas. A internacionalizaçâo dos modelos é devida, por exemplo, as partilhas territoriais européias. Por exemplo, a ocupaçao de partes da Italia pela Espanha faz com que, no Brasil do XVH, circulem matrizes italianas discursivas e plásticas, como a poesia de Marino, os tratados de civilidade de Giovanni della Casa e Castiglione, as preceptivas retóricas de Boccalini, Peregrini, Pallavicino e Tesauro, o livro de emblemas de Ripa ou os de cenografia e perpectiva de Serlio e Pozzo. Os casamentos de D. Pedro Π com Maria Sofia de Neuburgo, em 1687, e o de D. Joâo V, em 1708, com a arquiduquesa Marie-Anne, da Austria, vêm sendo apontados por vários autores como ligaçôes que permitiram o estabelecimento de canais de circulaçâo entre Portugal e os países de origem das rainhas e, assim, com o Brasil. Ε ο caso

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Maria José Goulâo: "A triangulaçâo Portugal/Brasil/Rio da Prata e a arte colonial sul-americana: fronteira, conflito e integraçào", in: O barroco e o rococó nos zonas de influencia portuguesa. Lisboa: Fundaçào das Casas de Fronteira e Alorna, 1994.

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das estampas gravadas em Augsburgo, levadas como modelos do rococó para o Norte de Portugal, a regiâo donde saiu o maior contingente dos migrantes que foram para as Minas; e, no final do XVIII, das matrizes plásticas da Europa central, como as estampas do barroco de Praga, que provavelmente foram imitadas no interior de Minas Gérais pelo Aleijadinho e artesâos do seu círculo. A internacionalizaçâo dos estilos é devida também à educaçâo dos letrados em ordens religiosas contrarreformadas, que impunham o dogma católico, divulgando modelos de comportamento social integrado à racionalidade de Corte absolutista. N o tempo do meu recorte, em Portugal e suas colonias, a representaçâo é produzida no interior de urna "política católica" de centralizaçâo monárquica, que se caracteriza pelo combate acirrado às teses laicas de Guicciardini e Maquiavel sobre a natureza do poder político e às teses luteranas e calvinistas sobre a predestinaçâo, o livre-arbítrio, os ritos visíveis e a Graça. Observase, no caso brasileiro, a ocorrência de adaptaçôes às novas situaçôes coloniais da teorizaçào teológica das estruturas políticas européias surgidas no século X V I após a invasâo da América, a divisäo da Cristandade, a conquista das novas terras, a catequese do indio, a escravizaçâo do africano e, a partir de 1580, a dominaçâo espanhola. Teologemas do pensamento aristotélico, patristico e escolástico, como urna neo-escolástica, sao aplicados entâo à doutrina do poder monárquico como "política católica", de que os reis portugueses se fazem paladinos. Deve-se também considerar a especificidade das relaçôes da Coroa e da Igreja, em Portugal, onde os reis eram chefes do padroado desde a Idade Média, quando uma bula papal lhes concedeu o direito de nomear os bispos das dioceses e o de vetar os nomes dos religiosos escolhidos para as paróquias. O direito real sobre o padroado faz com que o clero portugués seja um braço difusor da política da Coroa, ao mesmo tempo em que produz tensôes manipuladas pelo rei no interior das ordens religiosas e entre as ordens. Como fusâo de poder espiritual e temporal, a doutrina neo-escolástica do Estado é difundida com intensidade ñas instituiçôes universitárias portuguesas e nos colégios jesuíticos no Brasil. A doutrina é divulgada, ensinada e imposta de modo a garantir-se a ortodoxia da unificaçào cultural, que integra as diversas culturas indígenas e africanas, e níveis sociais jurídicamente diferenciados da cultura ibérica, como plebeus e fidalgos. Recentemente, pude 1er cerca de trinta teses de doutoramento sobre a doutrina do signo em Santo Tomás de Aquino, que foram defendidas entre 1700 e 1730 por padres do colégio jesuítico do Maranhâo. Têm, em média, dez páginas, escritas em latim eclesiástico ou em portugués, e todas apresentam o mesmo exordio, os mesmos topoi argumentativos, as mesmas autoridades eclesiásticas citadas, a mesma conclusâo, sendo praticamente idénticas. As obras de poetas e prosadores evidenciam a mesma unidade de base de retórica e teologia-politica e uma das razôes dessa unidade pode ser buscada, como disse, na educaçâo de sua forma mentis pelo Direito Canònico, que entâo é a disciplina fornecedora dos principios teóricos das doutrinas contratualistas do absolutismo monárquico. Contra Lutero, o Direito portugués seiscentista reafirma o dogma católico, defendido em Trento e retomado por Suárez na Defensio fidei, em 1614, de que o pecado nao corrompe totalmente a natureza humana e de que há esperança ñas obras dos homens, que também

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sao perfectíveis pelas artes. Segundo a doutrina, a Graça inata - como "luz natural" demonstra a presença de Deus na consciência como a sindérese, a iluminaçâo interior que aconselha o engenho ou que ilumina o juízo, permitindo-lhes distinguir o bem do mal ñas ocasiôes de livre-arbítrio. E a doutrina da "luz natural" que fundamenta a catequese jesuítica do indio e a escravizaçâo do africano; do mesmo modo, fundamenta a adequaçâo dos varios estilos da representaçâo às matérias e às circunstancias empíricas de seus usos, pois a representaçâo demonstra a luz da Graça ñas metáforas hierarquicamente integradas e verossímeis de seus efeitos. Produzida e difundida principalmente por jesuítas, a doutrina portuguesa da "luz natural" define a "razâo de Estado" da expansâo mercantilista no Brasil como urna técnica de conquistar, manter e ampliar o poder em que a política da "razâo de Estado" anti-maquiavélica, anti-luterana e, genericamente, anti-heresia nao se dissocia da ética aristotélico-cristâ. Na doutrina do jesuíta Giovanni Botero (Della ragione di stato, 1588), entäo ensinada em Coimbra, é a "luz natural" que opôe o "interesse" mercantilista da integraçâo harmonica das ordens do reino no "bem comum" contra a doutrina da "guerra de todos contra todos" de Maquiavel. A representaçâo produzida na Colònia como "política católica" é, assim, fundamentalmente integrativa, pois nela a ordem retòrica do concetto engenhoso é simultaneamente a teatralizaçâo do conceito teológico-politico da ordem da racionalidade de Corte imposta, ensinada, imitada e deformada em varios registros e meios materials como padrâo civilizatório. As agudezas da representaçâo evidenciam a homología da técnica retórica com os principios doutrinários da "luz natural". O mesmo principio de integraçâo da diversidade de culturas aparece ñas artes seiscentistas portuguesas, por isso, como oposiçâo à maniera quinhentista, que era tipicamente compositiva e desintegradora do espaço e dos discursos, ou como subordinaçâo da maniera à unidade da hierarquia, definida sempre como naturalidade do poder do Estado e da desigualdade essencial das ordens que o compôem. A mesma integraçâo dramatiza o "ponto fixo" donde deriva o sentido das representaçôes como o lugar sagrado do Rei-hipóstase de Deus ou da Trindade, segundo as très virtudes estudadas por André Robinet na França de Luís ΧΠΙ e Luís XIV: Potencia do Pai, Sabedoria do Filho e Amor do Espirito. 10 Na representaçâo de que falo, a Potencia subordina as outras virtudes a si, assegurando o monopolio da violencia da "razâo de Estado" em nome da prudencia política do bom governo cristâo que visa o "bem comum", o que se faz, segundo as suas figuras, com Sabedoria e Amor. No Brasil, a proibiçâo da imprensa e a censura intelectual; a atuaçâo do Santo Oficio da Inquisiçâo; as ordens régias e bandos que determinam as devassas dos foros falsos de fidalguia, dos desvíos de impostos, das sediçôes de soldados e da plebe, de amores freiráticos, de casos de heresia, de sexo nefando e blasfemia; a reiterada negaçâo do pedido insistentemente feito entre 1660 e 1700 pelos senhores de engenho da Bahia de abertura de uma universidade que deveria ter os mesmos estatutos da universidade de Evora; o ensino baseado em "casos" nos colégios jesuíticos, segundo os

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André Robinet: "Préface", in: Méchoulan, Henry (ed.): L'état baroque. Regards sur la pensée politique de la France du premier XVlle siècle, op. cit.

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modelos medievais do trivium e do quadrivium do ratio studiorum etc. sao definidos como açôes amorosas e prudentemente sabias, que sao complementadas pelo degredo, pelos açoites, pela forca e outros castigos exemplares e nâo menos prudentes, exercidos com Sabedoria pela Potencia pública em nome do Amor do todo ou, como rotineiramente se lê ñas Cartas e ñas Atas do Senado da Cámara de Salvador, em nome do "bem comum do corpo místico do Estado do Brasil". Na representaçâo dita "barroca" dos temas desse "corpo místico", o principio de integraçâo da "luz natural" regula as adaptaçôes católicas da retórica de Quintiliano, Cicero e Aristóteles à dilataçâo da Fé e do Imperio, e aparece dramatizado nos sermôes e na obra profética de Vieira, na sátira atribuida a Gregorio de Matos, no Compendio narrativo do peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, nos inúmeros cronistas das invasôes holandesas, como Frei Manuel Calado, autor de O valeroso lucideno·, na Historia da América Portuguesa, de Sebastiào da Rocha Pita; em discursos e atos académicos; em documentos oficiáis de Cámaras, regimentos e ordens de governadores, sentenças do Tribunal da Relaçâo, livros de alfândegas, ordens-régias, pragmáticas suntuarias, de precedencias e tratamentos; ñas narraçôes de triunfos, entradas de bispos e festas de igreja e, ñas mesmas igrejas, na figuraçâo alegórica da luz divina em talhas, pinturas, emblemas, imagens de santos, altares e no espaço das vilas, em geral, como ordenaçâo alegórica dos poderes. A representaçâo figura sempre a integraçâo do "bem comum" do Estado como theatrum sacrum, nome com que entâo os jesuítas chamam a representaçâo em geral. Hierarquizada segundo a metáfora orgacinista com que Santo Tomás de Aquino define o terceiro modo da unidade de integraçâo das partes do corpo humano quando comenta o Livro V, da Metafísica, de Aristóteles, a doutrina política do Estado portugués dramatizada na representaçâo colonial brasileira répété a idéia escolástica de que a perfeiçâo do corpo resulta da integraçâo harmónica dos diversos membros como instrumento para um principio superior, a alma. Como a unidade do corpo pressupòe a pluralidade dos membros e a diversidade das funçôes na integraçâo, que é ordem, o corpus hominis naturale é, por analogia, o termo de comparaçâo para o "corpo político do Estado", entendido como integraçâo harmónicamente hierárquica das ordens que o compôem. O "bom uso" político dessa hierarquia reatualiza o elenco medieval das virtudes cristâs, adaptando-as a novos fins, como disse, como a integraçâo do indio como trabalhador assalariado nos engenhos, o controle de escravos e colonos, a defesa do territòrio e o monopolio económico e cultural. Seu principal modelo é o conceito da virtude como meio-termo racional da Ética nicomaquéia. A esses esquemas culturáis, junta-se a obra de Tácito, como uma espécie de "Maquiavel de bolso" para uso de católicos, pois as açôes de Tibério nos Annales sâo entâo politicamente adaptadas como exemplos de "dissimulaçâo honesta" para o Príncipe e os "melhores" que o imitam. Vieira, no "Sermâo de Nossa Senhora do Ó", que pregou na Bahia, em 1640, monta um paradoxo especular pelo qual o continente é menor que o conteúdo, quando propôe a figura em que o ventre de Maria contém o Filho que é o Pai déla. Para figurar o paradoxo da imersâo do infinito ñas suas espécies finitas, Vieira usa a alegoría do mar aonde se lançou

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urna pedra: os círculos concéntricos vâo pouco a pouco se afastando, mas em todo novo círculo o centro está presente por reverberaçâo, nâo estando. Na capela de Nossa Senhora do Ó, construida no inicio do século XVIU em Sabara, Minas Gérais, o artífice desenhou, nos caixotes do forro, emblemas de um círculo que circunda outro. Na poesia, é rotineiro o padräo sintático em que as palavras formam quiasmas cuja especularidade metafórica evidencia para o destinatario o artificio da analogia aplicada, como urna dramatizaçâo do procedimento técnico. Outras igrejas coloniais mineiras demonstram a mesma teatralizaçâo: por exemplo, na Sto. Antonio, de Tiradentes, ainda existem os restos de um trilho semicircular por onde corria um telâo que abría ou fechava a cena infinita do theatrum sacrum do aitar, também dado a ver no dourado dramáticamente iluminado das talhas dos altares da Igreja do Pilar ou na figuraçâo da vanitas no teto pintado por Athayde na Sao Francisco, em Ouro Preto. Essa homología, visível ou legível ñas representaçôes como a teatralizaçâo de um efeito que resulta de um procedimento técnico aplicado segundo categorías de pensamento específicas do catolicismo portugués contrarreformado, corresponde à oposiçâo complementar que atravessa todas as práticas do século XVII luso-brasileiro, a oposiçâo complementar de finito/infinito. A oposiçâo compôe a natureza e a historia como espécies figurais do divino, que as orienta providencialmente no tempo. A tendência quase absoluta que a representaçào colonial tem ao espelhismo, à duplicaçâo, à saturaçâo binaria do espaço, ao aparentemente desordenado acumulo, à incongruencia, e, enfim, à ordenaçâo como quiasma, como um grande X espacial no plástico, e, nos discursos, à disposiçâo sintática por antíteses cujos termos sâo traduzidos como semelhanças de outras oposiçôes funciona como o regrado theatrum sacrum. Naquele X encenado dos seus quiasmas, a representaçào colonial figura o plano inclinado por onde os conceitos da matèria sobem, atraídos pela secreta simpatia da Luz inteligível da sua Causa, e por onde os conceitos do espirito descem, encarnados participativamente ñas espécies sensíveis de seus signos e efeitos. Como alegoría de um lugar atópico, que unifica todo acídente e redistribuí participativamente todo conceito, ai se vé, no XVII, o ponto fixo da hierarquia, espelhada na discriçao, na prudéncia, na agudeza das representaçôes. Tudo aquilo que Deleuze, por exemplo, propôe como o pli, a dobra, quando trata de Leibniz, pode ser entendido, em termos do XVH colonial brasileiro, como a encenaçâo ou a visibilidade das operaçôes de um engenho cujo juízo é iluminado pela Graça ñas agudezas. Resultado da sindérese acesa na alma no ato perceptivo, a agudeza desdobra sensivelmente, no espaço ou no tempo, a qualidade ético-teológica da participaçâo do observador na Luz divina. Por isso, também se pode afirmar que a agudeza é mais que o simples efeitismo retòrico acusado nas interpretaçôes neo-clássicas e románticas que ainda sâo correntes no Brasil, pois é um modo históricamente determinado de pensar. Como urna síntese disjuntiva, que une dois conceitos dividindo-os e separando-os, a agudeza ensina que a representaçào é infinita, por isso demonstra que a unidade pressuposta da Luz teológica, espelhada nela como luz natural da proporçâo do juízo, encontrou mais um espelho no destinatàrio. Nas dobras das suas metáforas, a alusâo continua ao inexpresso e inefável da Causa surge como a visibilidade de um vazio puro da linguagem, entào tradu-

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zido como presença de Deus, e que hoje induz a pensar que o barroco é urna primeira modernidade. Hoje, alias, quando a indeterminaçâo temporal da historia é interpretada, como o faz Lyotard, por meio da analítica kantiana do sublime, é muito imediata a associaçâo: pelo efeito dos efeitos da representaçâo, supôe-se que o sublime do XVII seja o nosso. Parece-me que as discussôes estéticas contemporáneas também se voltam para o barroco, recuperando-o como termo da definiçâo do "pós-moderno" como um "neobarroco" porque é a questâo política do sentido da temporalidade, depois da proclamada destruiçâo da utopia iluminista, que está pressuposta nelas. Quando as discussôes contemporáneas das artes se constituem como o campo privilegiado onde se debatem os temas da teoria da historia ordenada teleologicamente, segundo o tema da diatètica e dos processos macro, ou nâo ordenada, segundo o tema da diferença e dos processos micro, é a experiencia contemporánea da "destemporalizaçâo", para usar um termo de Hans-Ulrich Gumbrecht, que leva à identificaçâo do vazio teológico do infinito na representaçâo colonial com a desmaterializaçâo contemporánea da realidade telemática. Nao há evidencia histórica, contudo, de que tal identificaçâo seja adequada. A representaçâo colonial também pode ser entendida segundo a forma-matriz do emblema, género dotado de duas partes complementares, corpo, ou imagem, e alma, ou discurso. O recurso ao emblema como uma forma-matriz da representaçâo colonial permite que se postule a homología dos procedimentos construtivos do espaço com os procedimentos de formulaçâo dos discursos, segundo categorías que distribuem o pensamento analógico em formas e substancias de expressâo diversas, como uma retoricizaçâo generalizada do campo das práticas de representaçâo. E isso ainda - talvez principalmente - quando o efeito produzido é desproporcional, acumulado e incongruente. O procedimento técnico com que se representa a Luz divina nos efeitos luminosos do plástico e do discursivo é o "ornato dialético" dos italianos, Peregrini, Pallavicino, Tesauro, ou o silogismo retórico, de Gracián, ou meramente o entimema, ñas reciclagens do Livro III da Retórica, de Aristóteles. A etiqueta nâo importa, valendo sim a operacionalidade do procedimento e o que ele implica históricamente como categoria de pensamento e técnica de formar teatralizada ñas representaçôes. Na representaçâo colonial, o ornato passa da funçâo tradicionalmente acessória para a base mesma da inventio. Com o deslocamento, transforma-se também a funçâo das tópicas prefixadas, tanto na poesia quanto na pintura. Reciclando católicamente o aristotelismo, principalmente o Livro III da Retórica, o Livro III do De anima e a Ética nicomaquéia, a representaçâo colonial pressupôe que a phantasia é a imagem que se forma na mente - os noeta - como o conceito daquilo que os sentidos percebem - os aistbeta. A imagem é entendida como uma espécie de metáfora antes da expressâo, de modo que o conceito mental que se produz sobre os temas já é, antes de sua figuraçâo exterior, uma imagem interna - "imagem arquétipa", como se diz entâo, ou metáfora. Na mente, a idéia aparece já como imagem numa forma plástica ou visual; e nela o conceito já está classificado como conceito de uma certa espécie, uma vez que é ordenado pelo juízo, que o especifica por meio das dez categorías aristotélicas, que o distribuem por classes de significaçâo. Como um phantasma, ou a "definiçâo ilustrada" de Cesare Ripa, o

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conceito mental aguarda a formulaçâo exterior que o represente. Assim, quando Aristóteles é apropriado e traduzido neo-escolasticamente na representaçâo colonial, toda representaçâo passa a ser a metaforizaçâo exterior de metáforas mentais ordenadas segundo a sindérese. Isto implica que, tanto na inventio quanto na dispositio, o letrado ou o artesâo operam com elementos de um ornato - porque metáfora - que se torna um ornato estruturante porque ornato que sai diretamente das operaçôes de um juízo. Também se pode dizer, assim, que toda obra particular representa seu código, pois as obras figuram os criterios mentais de sua formalizaçâo, quando compöem os temas como a cena em que sao postos em evidencia os principios lógicos e retóricos de sua forma, fundamentada metafisicamente como participaçâo no divino. A representaçâo colonial concebe o tempo qualitativamente, como análogo do divino, por isso formaliza a percepçâo do destinatàrio nos estilos como participaçâo da visâo física e espiritual na Luz. A visâo é organizada retoricamente por urna proporçâo óptica, que compôe o "ponto fixo" da observaçâo do efeito. Quase sempre o efeito é urna anamorfose plástica ou uma alegoría discursiva, que exigem um ponto de vista calculadamente exato para que a representaçâo seja observada como convém. O dispositivo nuclear da representaçâo é a analogia, definida neo-escolasticamente como participaçâo - metafísica e lógica - das linguagens no divino. Metafisicamente, pela analogia de atribuiçâo, aquilo que absolutamente e plenamente é, é Deus, sendo os outros entes apenas suas imagens e semelhanças. Operando logicamente a analogia de atribuiçâo, os letrados coloniais estabelecem a relaçâo entre duas imagens mentais, ou duas metáforas, por meio de um terceiro termo comum a ambas. Quando compôem poesia, pensam que termos como neve e lirio podem ser aproximados por meio de um gènero comum a ambos, brancata. Isso lhes permite dizer, por exemplo, que a neve é o lirio do inverno e que o lirio é a neve do prado. Este exemplo, porém, é de fácil entendimento, porque preferem demonstrar erudiçâo aproximando termos distantes, o que fazem por meio da analogía de proporçâo, que metafisicamente estabelece os graus hierárquicos de participaçâo dos entes no Ser de Deus e, logicamente, uma relaçâo de semelhança entre dois géneros comuns a duas especies, de modo que à primeira vista nâo é clara a relaçâo entre eles. Por exemplo, Manuel Botelho de Oliveira, autor baiano de Musica doparnasso, livro editado em 1705, num dos sonetos em que trata da dureza cruel do amor de Anarda, sua musa, afirma que "A serpe é maio errante de torcidas flores". Nâo é clara ¿mediatamente a relaçâo entre a metáfora do reptil, "serpe", e a do mes, "maio". Com um pouco de esforço, percebe-se que Botelho de Oliveira pensa que, assim como a serpente tem movimento e desliza, assim também o tempo tem movimento, pois passa; logo, pela semelhança de dois movimentos, fisico e temporal, estabelece a equivalência de duas espécies, dizendo que a serpe é maio. Como os discursos entâo metaforizam as artes plásticas, Botelho de Oliveira também pode propor que o mes de maio tem uma pele manchada de "torcidas flores", como uma cobra que traz a primavera da Europa tatuada em suas roscas. Outro exemplo, agora de analogia de proporcionalidade - que metafisicamente propôe que todos os entes criados convém com Deus e que logicamente faz relaçâo entre termos

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distantissime«, de modo que o resultado costuma aparecer como incongruencia fantástica pode ser o de um sermâo em que, para alegorizar o amor de Deus, o franciscano Frei Antonio do Rosario usa, na Bahia do final do XVII, mais de vinte nomes de frutas tropicais do Brasil - o amendoim, o ananás, o araçà, o areticuapé, a banana, o cajá, o cajú, o camboi, a cana, a capucaia, os cocos, a fruta-do-conde, a gargaúba, a jabuticaba, o jenipapo, o joá, o mamâo, a mangaba, o maracujá, o moreci, o mucujé, a mupurunga, o oitiroco, a oitiruba, o piquiá, a pitomba e o umbu. Na época, era rotineiro em Portugal, como se pode 1er em A feira dos anexins, de D. Francisco Manuel de Melo, compor discursos em forma de metáforas de doce, de cabeça, de legumes ou frutas. Como Gregorio de Matos, que integra termos bantos e tupis em poemas que imitam as sátiras de Quevedo contra o neoterismo de Góngora, Frei Antonio do Rosàrio também imita um modelo europeu, mas adapta o catolicismo aos usos do trópico, quando propôe que "ananás", o abacaxi, é o rei das frutas, porque seus espinhos e sua cor avermelhada säo coroa e manto; além disso, interpreta "ananás" como "metáfora do rosàrio", quando, dentro da analogia, faz outra, em que diz: "Ananás vale o mesmo que Annanascitur. De S. Anna naceo a Mäy de Déos: Anna quer dizer graça; cento e sincoenta vezes se nomea no Rosario a filha de Anna chea de graça".11 O principal modelo cultural que define a excelencia humana na representaçâo colonial produzida segundo essas técnicas é o do discreto. Sendo um ideal cortesáo, também é urna categoria intelectual e uma personagem ou um tipo no processo de interlocuçâo das representaçôes. O discreto é invariavelmente caracterizado com as virtudes heroicas do cortesáo e do perfeito cavaleiro cristäo; distingue-se pelo engenho e pela prudencia, que fazem dele um tipo agudo e racional, dotado de instrumentos éticos e retóricos que o tornam senhor dos decoros das várias ocasiòes da hierarquia. Como é moldado pela retórica aristotélica, a observaçâo de suas convençôes permite demonstrar-se que sua identidade como tipo é definida como representaçâo, quero dizer, como um estilo de aplicar estilos, ou um estilo de afetar uma aparêneia. A capacidade de escolher e aplicar um decoro específico da ocasiâo e nâo outro define a superioridade social do tipo como forma de representaçâo adequada à hierarquia. Logo, também sua distinçâo, como excelencia e poder, decorre da forma da representaçâo. No caso, é a agudeza conceituosa que o distingue do vulgar, pois o juízo e o engenho sâo teorizados como aptos para produzir e compreender as dificuldades programáticas da representaçâo como distinçâo social. As disputas das representaçôes coloniais brasileiras sâo ordenadas pela mesma apropriaçâo do modelo cultural do discreto que ocorre, por exemplo, na carta em que, defendendo as Soledades, Góngora afirma o desejo de escrever grego e ser obscuríssimo: "escribo no para muchos". Retoricamente, a agudeza discreta é hermética porque é culta: aproxima conceitos distanciados e condensa-os em metáforas eruditas, cuja interpretaçâo depende de faculdades inexistentes no vulgo, segundo a convençâo. Por isso, quando figura destinatários discretos, a representaçâo seiscentista é tendencialmente hermética, segundo estilos próprios de discretos; mas quando

Frei Antonio do Rosario: Frutas do Brasil numa nova e ascetica monarchia, consagrada à Santissima

Senhora do Rosàrio. Lisboa: Antonio Pedroso Galram, 1701, p. 21.

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o vulgo é tema ou destinatàrio, varias clarezas sâo aplicadas - por exemplo, a obscenidade, que é óbvia e clarissima. Assim, as apropriaçôes coloniais do modelo cortesào do discreto produzem representaçôes conflitantes, em que "negros", "indios" e "cristàos-novos", mas também outros tipos e categorías sociais, como "comerciantes", "padres", "mulatos", "ourives", "putas" e "sodomitas", sao identificados a vulgares ou em que, ao contrario, apropriam-se da convençào do discreto para impor com eia as mesmas classificaçôes negativas a concorrentes. Assim, na Colonia, o modelo da discriçâo define a representaçào dos que pretendem ser auténticos discretos, mas também a afetaçào de vulgares, como um instrumento político de conferir posiçôes sociais. Ε o caso das roupas de Gregorio de Matos que, sendo conhecido por trajar um colete de pelica cor de rato, toma-se objeto da zombarla dos mulatos de Salvador, que vestem sedas e veludos proibidos para a gente de infima condiçào. Jurídicamente, os mulatos sao vulgares, mas apropriam-se da representaçào de discretos quando afetam o juízo no riso com que constituem e ironizam a vulgaridade do Doutor Gregorio. Como diz uma sátira atribuida ao mesmo, provavelmente a maior discriçâo consiste no fingimento da falta de discriçâo, principalmente quando se está entre vulgares. Também é o caso dos senhores de engenho aspirantes à fidalguia, que se esforçam por exercer cargos nao remunerados na administraçào, como o de oficial da Cámara, pois é típico da aristocracia o desprezo nao pelo dinheiro, mas pelas formas de ganhá-lo; ou que tentam garantir vagas para as filhas entre as freiras do véu preto do Convento do Desterro do Carmo, impedindo-as de casar com os tipos vulgares da terra, os soldados do Terço da Infamaría, para com isso obterem um atestado da honra pretendida, uma vez que o pròprio ingresso das moças no convento também prova sua superioridade social, pois pressupôe a "limpeza de sangue". Em 1739, por exemplo, o Conde das Galveas escreveu ao Rei chamando a Bahia de "terra de hotentotes"; dizia-lhe entào que tinha havido apenas dois casamentos de gente de representaçào nos quatro anos do seu governo, uma vez que as moças fidalgas ou ricas iam todas para o convento.12 No caso da sátira, como a de Gregorio de Matos, no Brasil, e a de Caviedes, no Peru, o ataque à agudeza dos emuladores da poesia de Góngora associa-se aos temas da crítica à ascensâo social de tipos vulgares. Segundo a sátira, a sintaxe latina, a erudiçào neotérica, a elegancia hermética, que entào distinguem como superiores os capazes de entender Góngora, tornam-se indecorosas quando sào apropriadas por arrivistas que, pretendendo a representaçào dos melhores, perdem o senso dò seu decoro quando a aplicam indiscriminadamente, em todas as ocasiôes. A representaçào se apresenta, assim, engenhosa e fantástica, tendencialmente hermética. No entanto, quando a relaçào analógica de suas metáforas é entendida, o receptor contemporáneo se revela tào engenhoso ou agudo quanto o autor e o destinatàrio da obra. Esta é uma das principáis razôes do hábito que os poetas seiscentistas têm de evitar a publicaçào, preferindo que os poemas circulem na forma de folhas avulsas ou cadernos manuscritos, que hoje se empoeiram nos arquivos portugueses e brasileiros com o nome de Poesías varias.

12

A.J.R. Russell Wood: Fidalgos e filántropos. A Santa Casa da Misericordia da Bahia, 1550-1755. Trad, de Sergio Duarte. Brasilia: UNB, 1981, p. 154.

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A agudeza distingue socialmente, como um mecanismo da hierarquia; por isso o hermetismo é programático, operando como um dispositivo que teoricamente excluí a recepçâo dos institucionalmente "vulgares". Ñas letras do meu recorte, é rotineira a reiteraçâo de tais dispositivos na crítica à confusâo das representaçôes, segundo os temas do mundo às avessas e da simulaçâo maquiavélica, propondo-se como alvo privilegiado de ataques o tipo social recém-saído das fileiras cristas-novas do capital mercantil e financeiro dos negocios do Brasil, Africa e Asia. O tipo entâo sobe hierarquia acima enquanto se apropria da educaçâo superior ministrada em Coimbra; ou obtém posiçâo por foros falsificados de nobreza, que entâo se compram em Lisboa; ou por empréstimos à Coroa; ou por casamentos, como na Bahia, com as filhas riquíssimas de senhores de engenho. Para terminar, lembro Lope de Vega, que afirma em seu Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo escrever conforme a arte inventada pelos que pretenderam o aplauso vulgar.13 Ñas imitaçôes coloniais de Lope, o fingimento retórico da falta de discriçâo é efetuado nos géneros baixos que circularam em Salvador no final do XVII e ainda no XVIII, mas também em Lima, com Caviedes, e no Mexico, com Sor Juana, como o artificio de urna natureza néscia que diverte néscios com falas néscias. Por urna leitura determinada da codificaçâo retòrica dos tipos do discreto e do vulgar, em que "retórica" significa a pràtica de aplicaçâo de esquemas de formar por aqueles que se apropriam dos modelos, pode-se demonstrar que a discriçâo é o diferencial que especifica as apropriaçôes coloniais, evidenciando-se varias ambigüedades, tensôes, conflitos e mesmo contradiçôes. A representaçâo seiscentista evidencia um conceito de superioridade social que para nos provavelmente é paradoxal, como diz Chartier, pròprio da racionalidade absolutista de Corte: a superioridade só se afirma pela submissâo política e simbòlica. A submissào estabelece urna lògica da distinçâo pela dependencia nas relaçôes: a fidalguia locai se mantém em sua posiçâo frente a concorrentes só quando se subordina à vontade real e à etiqueta,14 recebendo os privilegios que a diferenciam como "superior". Em decorrência, a forma da representaçâo confere posiçâo e, por isso, a unidade das representaçôes resulta da ficçâo de efeitos de unidade virtuosa ou decorosa, aparecendo na pràtica como conflito das representaçôes. O estudo dos dispositivos retóricos e teológico-políticos permite, por isso, que se faça urna reclassificaçâo das apropriaçôes coloniais dos varios géneros e estilos da agudeza, segundo ocasiöes da hierarquia especificadas como decoro ético-político, podendo-se demonstrar que, nessas práticas, a identidade é definida como representaçâo e pela representaçâo; que o poder é deduzido da aparéncia; e que a posiçâo deriva da forma da representaçâo.15

13 14 15

Lope de Vega: Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, 1609, vs. 44-48. Cf. R. Chartier: Trajectoires et tensions culturelles de l'Ancien Régime. Paris: EHESS, 1989. Chartier 1989, op.cit.

índice onomástico Abreu, J. Capistrano de 91,102, 221,241 Acízelo, R. 257 AcostaJ.de 198 Acosta Saignes, M. 151-152,165 Acuña, C. 142 Adonias, I. 142 Agamben, G. 218, 226 Agassiz, L. 241 Aiex, A. 248 Alberdi, J. B. 218 Albuquerque, D. de Coelho 288 Albuquerque, L. de 202-203 Albuquerque, P. Rodrigues de 121 Alciato, A. 294 Aleijadinho 289, 295-296 Alencar, J. de 123,239-240 Almeida, M. A. de 239, 259 Almeida, G. Andrade e 279, 282 Alomía Robles, D. 282 Alvar, M. 198, 201 Amado J . 131,278 Anchieta, J. de 187,193,195-196, 201 Andrade, C. Drummond de 87,281, 283,285 Andrade, J. P. de 49, 66, 85 Andrade, M. de 3, 8,104,109-111,113,115, 117-118,167-176, 243, 256, 261, 279 Andrade, O. de 5,9,18,96,109, 239,258, 260, 264, 267-269, 279 Angola, F. 158 Angola, J. 156,158 Antonioni, M. 53, 223 Apel, K. 15 Aquino, T. de 296, 298 Aragon, L. 220, 225 Aranha, G. 13,17, 221, 281 Arantes, P. 58, 258 Araripe Junior, T. de Alencar 256 Arau, A. 81 Araújo, G. 52,121, 240, 265 Arfuch, L. 287 Arguedas, J. M. 133-134 Arilla, M. 161 Aristóteles 36,185 -186,190,194, 201, 298, 300-301

Arlt, R. 104 Armitage, J. 241 Assis, M. de 2, 7,13, 91-95, 240, 289 Assunçïo, R. 170,176 Athié, F. 81 Avellar, J. C. 2 , 7 , 6 6 Avron, D. 50, 64 Azevedo, A. 240 Azpilcueta Navarro, M. de 191, 202 Babenco, H. 17 Bakhtin, M. 63 Bandeira, M. 98, 138, 280 Baralt, G. A. 160-161,163,165 Barbieri, I. 7,13, 91 Barbosa, R. 13,124,244 Barlaeus, K. van 53 Barreto, A. H. de Lima 9,228,237-248, 281 Barreto, D. 249-250, 256 Barreto, L. F. 177-180, 201 Barros, J. de 181-183,197,201 Barros, M. de 66, 80, 87 Barthes, R. 261 Basso, E. 71, 87 Bastide, R. 131 Baudelaire, C. 279 Beatles 50-51, 53 Becker, M. 223 Beethoven, L. van 20 Belaunde, V. 126 Belluzzo, A. M. de Moraes 97,107 Benjamin, W. 8, 216,220, 225, 227-228, 231-232,264 Benzoni, G. 192 BeozzoJ. O. 145 Béranger, P.-J. de 238 Berg, W. B. 1, 6-7, 35,44,168,175 Bergman, I. 79, 87 Bernardo, G. 75,263, 291 Bernini, P. 289 Bethânia, M. 51 Bhabha, H. 63 Bioy Casares, A. 85, 87 Birri, F. 85, 87

308 Blest Gana, A. 92 Bloch, E. 48,232 Boal, A. 49 Boas, F. 34,125,135,171 Boccalini, T. 295 Boff, L. 1, 6,21,26,27 Bonfim, M. 102,255, 256 Borgé, M. 87 Borges, J. L. 8,13,93-95,97,104,166-172, 174-175, 224, 230,282 Borromini, F. 289 Borsò, V. 167,175 Boscoli, R. 51 Botana, Ν. R. 218 Botero, G. 297 Bougainville, L. A. de 241 Bourdieu, P. 292 Bourne, R. 99,107 Boytler, A. 96 Braga, S. 17,293 Bragança, Duque de 288 Bravo, C. A. Espinoza 282 Brecht, B. 84 Bremer, T. 237,248 Briesemeister, D. 4, 9, 62, 237 Brito, A. C. de 58, 64,248 Broca, Β. 248 Bruno, E. da Silva 226 Biy, T. de 192, 203 Buist, H. 159,161 BunyanJ. 102 Buñuel, L. 75, 80, 86 Cabinda, B. 154,156 Cabrai, P. Alvares 81, 87, 179,181-183, 202, 256 Cabrera, L. 82, 158, 165 Cadornega, A. de Oliveira 151, 165 Caïman, Β. 163 Calado, M. 74, 298 Calvin, J. 205 Caminha, P. Vaz de 22-23,77,179-183, 197,201 Camôes, L. de 193,199, 238, 282, 293 Campos, A. de 55, 64

índice onomástico Campos, H. de 264 Campos, J. da Silva 293 Candido, A. 49, 56, 62, 64, 93,95,123, 258-261,264-265, 279,282, 285 Canetti, E. 216 Cardenal, E. 38 Cardim, F. 193,202 Cardoso, A. 201 Cardoso, F. H. 48 Cardoso, V. L. 256 Carlos V 190,201 Carpentier, A. 69,163 Carrera, C. 81 Carriego, E. 169-170 Carroll, L. 220 Cascudo, L. da Cámara 167,175 Castellanos, J. de 197 Castello, J. Aderaldo 123, 279, 282,285 Castelo Branco, F. Caldeira de 142 Castiglione, G. della Casa 295 Castro, M. Mata Machado de 276 Castro, R. 51, 64 Cavalcanti, G. Ravasco de Albuquerque 291 Caymmi, D. 51 Certeau, M. de 286 Cervantes, M. de 101,238 Chagas, M.J. das 154,156 Chaplin, C. 80 Chardère, Β. 70, 87 Chardin, T. de 24 Chartier, R. 287, 304 Chavez, Ν. 282 Chichorro, L. M. de Sousa 151 Chinard, G. 218 Cicero 298 Clifford, J. 45 Cocteau, J. 2, 7 Codesido, J. 282 Coimbra, E. 98 Coligny, G. de 205, 211 Colombo, C. 46,121,181-182,201, 203,279 Congo, M. 3, 8,151-159,164 Conselheiro, A. 38,128 Cornejo Polar, Α. 62

índice onomástico Correia, J. C. Martinez 49,84 Cortázar, J. 8, 216-217, 219-220, 223-226, 231-233 Cortés, H. 183-184,189,197-198,201 Cortesâo, J. 179,182,201 Costa, C. M. da 289 Costa, G. 51 Costa, M. da 160,165 Crioulo, M. 157 Cro, S. 180,201 Cruz, Sor J. I. de la 295 Cunha, E. da 4,9,13,36,102,128,219, 222-223,249-250,253-254, 256, 281 Cunha, M. R. Pimenta da 256, 293 DaMatta, R. 64 Dalponte, J. C. 223 Darío, R. 169,279 Darwin, C. 241,253 Dávila y Quiñones, T. 159 Davis, Β. 96 Debrun, M. 137 Deleuze, G. 262-263,299 Derrida, J. 230,260 Descartes, R. 47, 238 Dias, A. Gonçalves 123,156-157, 240, 294 Díaz del Castillo, Β. 188,198, 201-202 Diegues, C. 76, 82 Diégues Junior, M. 131-132,270 DJ Malboro 45 Dostoïevski, F. 75, 81 Dotta, P. 82 Doublier, F. 78 Dreifuss, R. 26 Duccini, H. 291 Duran, D. 198, 201 Durand de Villegagnon, N. 205 Durâo, J. de Santa Rita 239 Durkheim, E. 253, 256 Eco, U. 18,46, 64 Eisenstein, S. 72-73, 75, 80, 85, 87 Ercilla y Zúfiiga, A. de 197, 201 Eschwege, W. L. von 241 Espinoza, G. 167, 282

309 Fabbri, P. 94 Favaretto, C. F. 64 Favio, L. 82 Feldmann, H. 62 Fellini, F. 53,73-75 Fernandes, F. 131, 270, 272 Ferreira, A. Rodrigues 146 Fiedler, L. 50 Fierro, M. 93,166-171,175 Figueroa, D. 44 Figueroa, F. de 148 Flaubert, G. 242 Florence, H. 219 Flusser, V. 46, 55, 64,263 Fons, J. 82, 84 Forster, M. H. 166,175 Foucault, M. 5,9, 95,206 Fowler, A. 196,201 France, A. 13, 188, 218, 291,297 Franco, F. 161 Franco, J. 45,47, 50, 58, 62,64 Freire, J. Ribamar Bessa 7,140 Freitas, L. de 256 Freud, S. 66-67, 70-72, 75, 78, 80, 87,100, 172, 223 Freycinet, L. C. 241 Freyre, G. 2, 7- 8,40, 44,96-107,130-132, 177,201,270,279 Fulleda León, G. 165 Gabeira, F. 46 Galindo, A. Flores 111-112,118 Galvâo, P. 96 Galvâo, W. Nogueira 256,259 Gama, J. B. da 239 Gama, L. 255-256 Gândavo, P. de Magalhâes de 193-194, 196-197, 201 Ganivet, A. 101,244 Garaudy, R. 25-26 Garcia, R. 193, 202 García Calderón, V. 279 García Canclini, Ν. 2, 7, 45-47, 58-59, 63-64 García Cárcel, R. 192,202

índice onomástico

310 Gaulmier, J. 218 Gay, P. 223, 266 Giddins, Α. 102 Gil, G. 49, 51, 55, 57, 60 Gilio, G. A. 289 Ginés de Sepúlveda, J. 190 Giucci, G. 7, 96,179, 202 Gledson, J. 92 Godard, J. L. 53 Gogol, N. 223 Gogolok, P. O. E. 274 Goldman, N. 287 Gomara, F. López de 188-190,198,202 Gomes, C. 123 Gomes, N. Pereira de Magalhàes 163,165 Gomes, R. Cordeiro 248 Góngora, L. de 289,293, 302-303 Gonzales Prada, M. 132 Gorki, M. 78 Goto, R. 258 Goulïo, M. J. 294-295 Gouveia, D. 84 Granrut, C. 26 Gruszinski, S. 64 Guattari, F. 262-263 Gubel, E. 223 Guevara, E. Che 38 Guimaries, M. 256 Guimaraes, M. L. Lima Salgado 123 Güiraldes, R. 104, 169 Gumbrecht, U. 46, 64, 300 Gumplowitz, L. 127 Gusdorf, G. 216 Gutiérrez Alea, T. 75, 82 Habermas, J. 15, 42, 44 Haeckel, E. 127 Handelmann, H. 241 Hanke, L. 190, 202 Hansen, J. Α. 5, 9, 62,187, 202, 286,288 Hanson, C. 288 Hardman, F. Foot 4, 8,62,216,219,223,227 Hegel, F. 42,168, 228 Heidegger, M. 18,27 Heine, H. 253 Hemming, J. 142

Herder, J. G. 239 Hernández, J. 2, 7, 93,170,203 Hinkelhammert, F. 26 Hirsch, R. 183, 202 Hitler, A. 96 Höffner, J. 184,189-190,202 Holanda, C. Buarque de 53, 283 Holanda, S. Buarque de 221, 268 Hölderlin, F. 108 Horacio 293 Houtart, F. 26 Hubert, M. 142 Huidobro, V. 282 Humberto Hermosillo, J. 84 Huntington, S. 119 Huret, J. 97 Hurt, W. 17 Hutinet, J. Rittaud 87 Ianni, O. 270 IhweJ. 44 Ingelhardt, R. 26 Ingenieros, J. 102 Iribertegui, R. 147 Irving, W. 220 Iser, W. 226, 259 Jaguaribe, H. 272, 274 Jancsó, I. 218 Jardim, L. 73, 97 Jeanneret, M. 4, 8,206,215 Jensen, W. 223 Joäo V 287-289, 295 José I 146 Joyce, J. 96,102, 220 Jurt,J. 3-4, 8,188,204 Justiniano, G. 81 Juvenal, A. 171,293 Kafka, F. 262-263, 265 Kant, I. 15, 22,108 Kaufman, R. 70, 78 Kehl, M. R. 267 Kimminich, O. 188,202 Kindlimann, A. 156,158,165 Kinnear, J. C. 248

índice onomástico Klee, F. 87 Klee, P. 73 Kneer, G. 270 KorczakJ. 229 Kracke, W. 72, 87 Kraniauskas, J. 58, 64 Kurosawa, A. 75,161 Kurz, R. 26 Kuspit, D. 223 Labov, W. 36, 44 Lambert, J. 270-271 Las Casas, Β. de 35,126,142,188,190-192, 198, 201-203 Lathrap, D. 140 Ledesma, M. 191 Leibniz, G. W. 299 Leite, S. 66, 81,202-203 Léry.J. de 4, 8,188, 204-215, 241 Lestringant, F. 215 Lienhard, M. 3, 8,150,153,165 Lima, A. de 249-250, 256 Lima, F. 169 Lima, G. J. Perreira 154,156 Lima, L. Costa 4, 9, 48, 62, 64,249,262, 264-265,268 Lima, O. 98,102 Lins, O. 248 Littin, M. 81 Lobato, J. B. Monteiro 280, 281 Lobo, M. 96 Lombardi, F. 81 López de Gomara, F. 188-189, 198 Lorenzo Alcalá, M. 174-175 Löschburg, W. 230 Loti, P. 102 Loukotka, C. 140 Lovell, P. 275 Lugones, L. 169,263 Luhmann, N. 269 Lumière, A. 77-78, 87 Lumière, L. 66-67, 69-71, 77-80, 84-85, 87 Lutero, M. 296 Lynch, B. 169 Lyotard, J.-F. 18, 50, 62, 64,300

311 Macedo, J. M. de 239 Machado, A. de Alcántara 262 Maciel, L. C. 57,160,165 Maffesoli, M. 60, 64 Magalhâes, J. Gonçalves de 123, 240 Magalhàes, F. de 21 Magro, A. 157, 282 Malfatti, A. 280 Manchester, A. K. 96 Mariátegui, J. C. 108-116,118,133, 166-167, 281, 283 Marino, G. Graef 82 Maroni, P. 148 Marouby, C. 209 Marques de Pombal 287 Marten, R. 1,6,27 Martí, J. 91,161,165 Martínez Estrada, E. 2,7,96-102,104-107 Martins, M. H. 151,171,175 Martius, C. F. Ph. von 241 Marx, K. 20,108 Matos, G. de 238, 288, 291-293, 295,298, 302-303 Matos, R. de 49 Mattelart, A. 50, 64 Mattoso, K. de Queirós 218- 219 Mauro, H. 85, 87, 96 Meggers, B. 140 Mello Neto, E. C. 256 Melo Neto, J. Cabrai de 87, 284 Menard, P. 169-171, 263 Mendonça, S. R. 114,118, 248, 285 Mercena, A. de 143 Meredith, G. 102 Merquior, J. G. 105,107, 136, 137 Mesa, L. López de 96 Mesguich, F. 77 Métraux, A. 162,165 Michael, J. 3,8,177 Migliazza, E. C. 140 Mignolo, W. 178,188,191, 202 Mistral, F. 238 Moctezuma 184 Molina, L. de 191 Monegal, E. 174-175

índice onomástico

312 Monsiváis, C. 2, 7, 46-47, 49, 61-64 Montaigne, M. de 99, 213, 215 Monteverdi, C. 289 Moraes, A. J. de Mello 107,223,241 Morales Saravia, J. 44 Moraña, M. 64-65 Moretti, F. 225 Morin, E. 26, 55, 64 Morse, R. 290 Mota Filho, C. 92 Motta, C. G. 137 Moura, C. de 193,195 Moussaieff Masson, J. 87 Muçambique, E. 154,156 Muhana, A. F. 289 Muricy, J. C. de Andrade 285 Nabuco, J. 13,102,280 Napoleâo ffl 290 Nassehi, A. 270 Natalicio Gonzalez, J. 96 Naves, R. 57 Nelle, F. 225 Neruda, P. 284 Neto, C. 282,284 Neuburgo, M. S. de 295 Neves, M. Souza 125 Newman, P. 102 Nietzsche, F. 100,108-109,253 Nistal Moret, B. 159,165 Nitschak, H. 2,7,108 Nóbrega, M. da 185-187,191, 202 Nunes, B. 115,118 Nunes, M. 248 Oblau, G. 248 Oertzen, E. von 120 Oiticica, H. 49, 52, 54, 64 Oliveira, E. 258 Oliveira, L. Lippi 246,248 Oliveira, M. Botelho de 301 Oliveira, V. 98,102-103,127 Oneil, D. Timoteo 159 Onetti, J. C. 228 Oquendo de Amat, C. 282 Ortega y Gasset, J. 100-101

Ortiz, F. 96,162,165 Ortiz, R. 58, 62-63, 65 Osorio, N. 166 Ossio, J. 118 Ovidio 180, 293 Pagden, A. 183,185,189-191, 202 Palladio, A. 289 Pallavicino, S. 295, 300 Palma, R. 93 Pape, L. 57 Parker, R. 53, 65 Pasolini, P. P. 74, 87 Pater, W. 102-103 Paz, F. Moraes 223 Paz, O. 92,105 Pécora, A. 289 Pedreira, A. 96 Pedro Π 240,288, 295 Pedrosa, M. 55, 58, 65 Peixoto, A. 256 Penha, J. da 256 Peña, M. 197-198, 203 Peregrini, M. 295,300 Pereira, E. de Almeida 163, 165 Pereira, L. M. 92 Pereira, Ν. Marques 295,298 Péret, Β. 227,232 Petrella, R. 26 Picchia, M. del 114 Pigafetta, A. 241 Pinaud, J. L. Duboc 153-154,165 Pincherle, M. C. 267 Pinochet, A. 81 Pinto, E. Pimentel 96,174-175, 257 Pinero Ramírez, M. 197,203 Pires, F. 186,203, 213 Pita, S. da Rocha 241,289, 291-292,298 Planchón, V. 69 Plekhanov, G. V. 102 Portinari, C. 131 Porto Alegre, J. de Araújo 240, 256 Possevino, A. 289 Pozzo, A. 295 Prada, M. Gonçales 127, 132-133 Prado, G. de Almeida 82

índice onomástico Prado Júnior, C. 96 Prestes, L. C. 225, 265,281 Promio, E. 69, 84 Proust, M. 102 Puig, M. 17 Puntual, R. 279-280, 282, 285 Purchas, S. 193 Quevedo, F. de 293, 302 Quijano, A. 133,138 Quinn, M. 59 Quintiliano 298 Rabelo, S. 256 Rama, Á. 2,7,93,133-134 Ramos, S. 96 Ravasco, B. Vieira 291 Reis, A. C. Ferreira 146 Reis Católicos 181-182 Reisz de Rivarola, S. 36,44 Resende, Garcia de 293 Reyes, L. 81,189 Rezende, S. 81 Ribas, R. de Oliveira 157,165 Ribeiro, D. 107,121,131 Ribeiro, J. 102,107 Ribeiro, J. Ubaldo 1, 6,13, 35, 39-44 Ribeiro, M. 79, 87 Ricardo, C. 93,114,169,202,263,279 Rincón, C. 48-50, 58,62-63, 65 Ripa, C. 289, 294-295, 300 Ripstein, A. 81, 84 Riva Agüero, J. de la 81,126 Robin, J. 26 Robinet, Α. 297 Rocha, J. C. de Castro 4-5, 9,258, 260, 263, 265,268 Rocha, G. 49, 53-54, 56, 87 Rodó, J. E. 91,126 Rodrigues, Ν. 102-103,121,127 Rodríguez Monegal, E. 175- 176 Roentgen, W. 68 Rojas, R. 169 Romero, S. 91,102,118,127,256 Rondon, C. M. da Silva 123 Ronsin, A. 183,203

313 Roosevelt, A. Curtenius 140 Roosevelt, T. 96 Roquette-Pinto, E. 96 Rosa, J. Guimaries 104, 243,259 Rosàrio, A. do 302 Rotberg, D. 81 Rouanet, S. P. 1, 6,13 Rowe, W. 50,65 Rubios, P. 183 Ruffinelli, J. 260,263, 268 Ruiz de Montoya, A. 242 Ruiz Rosas, J. 5,9, 278 Rulfo.J. 218 Russell Wood, A. J. R. 303 Sá, M. de 142,187, 201,205 Sàbato, E. 262 Sabogal J . 282 Sabóia, M. S. de 288 Saco, J. A. 160-161,165,259 Sadoul, G. 66 Sahagún, Β. de 198-200,203 Saint-Hilaire, A. 241 Salgado, P. 109-110,113-116,118,123,145 Salles, M. 67 Salomâo, W. 49, 57 Salvador, V. do 241 Salvattecci, H. Garcia 118 San Roman, J. 147 Sandoval, A. de 155,165 Santangel, L. de 181-182 Santiago, D. L. 288 Santiago, S. 52-54, 56-58, 62, 65,231, 248, 260-262, 264-265 Santos, L. 17 Santos, Ν. Pereira dos 79, 84, 87 Sapateiro, C. 157 Sariñana, F. 81 Sarlo, B. 63,97,104,107,168-170,175 Sarmiento, D. F. 91,102,122,126, 218 Sarno, G. 84-85 Scamozzi, V. 289 Schaeffer, J.-M. 195,203 Schäffauer, Μ. Κ. 3, 8,13,166,168,172,175 Schelling, V. 50, 65 Schiller, F. von 20

índice onomástico

314 Schopenhauer, Α. 91 Schräder, Α. 5, 9,270 Schwarcz, L. Moriz 127-128 Schwartz, J. 118,166,174-175,263 Schwarz, R. 49, 56-58, 62, 65,201, 258 Serlio, S. 289, 295 Serrâo, J. 193,203 Sevcenco, N. 65 Seyferth, G. 136 Shadow, M. 76 Sievernich, G. 192,203 Silva, L. F. da 293-294 Silva, P. da 241 Silveira, T. de 114,118 Simmel, G. 100-101 Soares, F. de 193-195, 203 Soares, H. Duque-Estrada de Macedo 249-250,257 Solanas, F. 76 Sontag, S. 18, 50 Sorel, G. 108-111,114,118 Souza, E. M. de 173-174,177 Sousa, F. de 151,155,165 Sousa, G. Soares de 193-197, 200,203,240 Sousa, J. de Cruz e 279 Sousa, T. de 183, 202 Southey, R. 241 Speck, Β. W. 3,7,119,122 Spengler, O. 100-101,107,109 Spielmann, E. 2, 6, 45, 48, 58, 62, 65 Spivak, G. C. 266 Spix, J. B. von 241 Staden, Η. 211, 241 Stavenhagen, R. 273 Sterne, L. 95,259 Stravinsky, I. 73 Süssekind, F. 219, 268 Tabío, J. C. 82 Tácito 298 Tarkovski, Α. 75 Taunay, A. d' Escragnolle 216-217, 219, 222,240 Tedlock, Β. 87 Teixeira, Β. 238 Teixeira, P. 142

Teles, G. Mendonça 114,118,281,285 Tello, J. 126 Terramorsi, Β. 220,224 Terrazas, F. de 197 Tesauro, E. 295, 300 Thevet, Α. 188,205-206, 208, 211,215 Thomas, G. 145,183, 203,237, 248 Tiberio 298 Todorov, T. 35-36,44, 63,190-191, 203 Tolstoi, L. 102 Toro Montalvo, C. 284 Torre, G. de 168,280 Torres, M. de 127, 202-203 Touraine, A. 47-48, 65 Truffaut, F. 52 Uñarte, P. 148 Valcárcel, V. E. 111-112,118,133 Vale, V. 289 Vallejo, C. 166, 263 Vallejo, G. 85 Vansina, J. 151, 165 Varallanos, J. 282 Varela, C. 181, 201,203 Vargas, G. 274 Vargas Llosa, M. 1, 6,13, 35-38, 41,43-44 Vargas Vila, J. M. 102 Varnhagen, F. A. de 122-123, 238-239, 241-242 Vasallo, P. 159 Vasconcellos, G. 57, 65,151 Vázquez-Rial, H. 97,107 Vega, L. F. de 198, 304 Velasco, J. de 149 Veloso, C. 17, 49, 51-53, 55, 57, 65,262 Venancio Filho, F. 257 Ventura, Z. 49, 60, 222, 279 Verani, H. 166 Verissimo, J. 256-257 Vernek, J. Pinheiro de Souza 154 Vespucci, A. 183,203,207,211 Viala, A. 290 Vianna, H. 59 Vianna, S. Romero e Oliveira 102,127 Viany, A. 87

índice onomástico Vieira, Α. 140,142,288-289,291-292, 295,298 Vieira, J. G. 226 Villaverde, C. 157,165 Vitoria, F. de 188-190, 203 Volney, C. F. 218 Voltaire 38,44 WaletzkyJ. 36,44 Werz, N. 122, 272 Wied-Neuwied, M. zu 241 Wolff, J. H. 224

Xavier, I. 58 Yeats, W. B. 102 Yrigoyen, H. 98 YúdiceJ. 59 Zagury, E. 259 Zea, L. 91 Zeiss, C. 69 Zumthor, P. 293 Zweig, S. 78,119-120,240, 270

Biobibliografia

José Carlos Avellar é critico de cinema com colaboraçôes em jornais brasileiros (como Jornal do Brasil e O Estado de Sâo Paulo) e atualmente pertence ao conselho de redaçâo da revista Cinemais. Autor de livros sobre cinema brasileiro e latino-americano, entre eles: O cinema dilacerado, o cinema brasileiro entre a ditadura e a abertura (1987); Ochäodapalavra, cinema e literatura no Brasil (1994); A ponta clandestina - teorías de cinema na América Latina (1995); Deus e o Diabo: A linha reta, o melaço de cana e o retrato do artista (1996). Foi o diretor cultural da Embrafilme (1985/1987) e atualmente dirige a Riofilme, distribuidora de cinema brasileiro da Secretaria de Cultura da cidade do Rio de Janeiro. Ivo Biasio Barbieri é Professor Titular de Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sua pesquisa concentra-se em temas relacionados à modernidade. Seus livros Oficina da palavra (1981) e Geometria da composiçào (1997) consistem em estudos de poesia contemporánea. Atualmente, pesquisa sobre obras da psicologia e da psiquiatría oitocentista existentes na biblioteca de Machado de Assis, assim como seu impacto na obra deste escritor. Walter Bruno Berg estudou Filologia Romànica e Filosofia ñas Universidades de Colònia e Clermont-Ferrand. Foi Professor Assistente ñas Universidades de Heidelberg (1971-77) e Mannheim (1977-88), foi bolsista da Fundaçâo von Humboldt no Peru (1982-83). Desde 1989 é Professor Catedrático de Literatura Latino-americana na Unversidade de Freiburg im Breisgau. Suas áreas de pesquisa e docencia sâo as literaturas hispano-americana, brasileira, espanhola e francesa. Publicou os seguintes livros: Der literarische Sonntag (1975); La americanidad de Julio Cortázar: Literatura, política, cultura (1986, em colaboraçâo com R. Kloepfer); Grenz-Zeichen Cortázar. Leben und Werk eines argentinischen Schrifstellers der Gegenwart (1991); Lateinamerika. Literatur · Geschichte •Kultur. Eine Einführung (1995); Oralidad y argentinidad. Estudios sobre la función del lenguaje hablado en la literatura argentina (1997) e Discursos de oralidad en la literatura rioplatense del siglo XIX al XX (1999) (ambos em colaboraçâo com M.K. Schäffauer). Leonardo Boff é teólogo da libertaçâo e autor de vários livros no àmbito desta teologia. Foi professor de Ética e de Filosofia da Religiâo na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, desde fevereiro de 1996 professor convidado na Universidade Harvard e desde novembro de 1997 em Basel. Dedica-se ao diálogo entre ecologia e teologia. Publicou entre outros: Dignitas Terrae: ecologia, grito da Terra, grito dos pobres (1995) em traduçâo em alemâo, italiano, espanhol e inglés; e Tempo de transcendência (2000). Cláudia Nogueira Brieger formou-se em Letras na Universidade Estadual de Campinas. Estudou Filologia Portuguesa e Germánica na Universidade de Freiburg, onde fez sua dissertaçâo de mestrado sobre o romance Quarup de Antonio Callado. Atualmente leciona portugués para estrangeiros e literatura brasileira nesta mesma universidade. Elabora no ámbito do projeto de pesquisa 541 "Identidades e Alteridades", apoiado pela Deutsche For·

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Biobibliografìa

schungsgemeinschaft, sua tese de doutorado sobre a funçâo da crònica brasileira na construçào de modelos de identidade nacional e cultural no Brasil. Dietrich Briesemeister formou-se em Filologia Clàssica, Latim Medieval e Filologia Romànica assim como em Filosofia em Tübingen, Rennes e Munique. Terminou seu doutorado em 1959 e seu pós-doutorado em 1967 em Mimique. Exerceu atividades na Biblioteca Municipal em Munique (1959-1971). Foi professor na Universidade de Mainz (1971-1987), diretor do Instituto Ibero-americano (Preußischer Kulturbesitz) em Berlim (1987-1999), professor de Filologia Ibero-românica e Latino-americana da Universidade Livre de Berlim (1987-1999). Desde 1999 é professor de Filologia Ibero-românica na Universidade de Jena. Tem publicaçôes sobre a literatura latina, espanhola, portuguesa e brasileira. E editor de varias coletâneas, entre outras, da Biblioteca Luso-brasileira (20 volumes, 1996-2000); da Biblioteca Iberoamericana (1988-2000) e co-editor da revista Iberoromanía (desde 1969). José Ribamar Bessa Freire é coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela disciplina Etnohistória. Cursou o doutorado de très ciclos na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, com Ruggiero Romano, pesquisando sobre a organizaçâo do trabalho indígena na Amazonia. Publicou varios livras e artigos, entre os quais A Amazonia no periodo colonial (1987); "Da fala boa ao portugués na Amazonia brasileira" Amerindia, n° 8 - Université Paris VIH); Os indios em arquivos do Rio de Janeiro (1996); Os aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro (1997), além de dois artigos na Alemanha: "Ein Jahr danach", publicado no livro Der Völkermord geht weiter (1982) e "Indianische Völker werden massakriert. Interview mit Las Casas", em: Lateinamerika Nachrichten (1985). Guillermo Giucci, doutor pela Universidade de Stanford (USA), é autor de Viajantes do maravilhoso: o novo mundo (1992); Sem fé, lei ou rei: Brasil 1500-1532 (1993); La segunda muerte de DelmiraAgustini (1995). Foi professor convidado na Albert-Ludwigs Universität de Freiburg e na Universidade de Stanford. Prepara atualmente, com Enrique Rodríguez Larreta, urna biografia cultural de Gilberto Freyre, projeto que recebeu, em 1999, o premio Guggenheim. Coordena, com Enrique Rodríguez Larreta, a ediçâo crítica de Casa-grande & senzala de Gilberto Freyre para a Coleçâo Arquivo da Unesco (Paris). JoIo Adolfo Hansen, graduado em Letras Anglo-Germânicas, é professor das áreas de Literatura Brasileira e de Estudos Comparados de Literaturas de Lingua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas da Universidade de Sâo Paulo. Sua área de pesquisa aborda as práticas de representaçâo luso-brasileiras dos séculos XVI, XVII e XVIII. Publicou os seguintes livros: Alegoría. Construçào e interpretaçào da metáfora (1986); Carlos Bracher. Da mineraçâo da alma (1988); A sátira e o engenho. Gregorio de Matos e a Bahia do século XVII (1989); A ftcçâo da literatura em Grande Sertào: veredas (2000). Atualmente, está preparando dois livros: um sobre a correspondencia (1626-1695) do Pe. Antonio Vieira; o outro sobre os modelos retóricos e teológico-políticos das representaçôes coloniais.

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Francisco Foot Hardman é Professor Livre-docente na área de Literatura e Outras Produçôes Culturáis do Departamento de Teoria Literaria do Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas e Coordenador do Programa de Pôs-Graduaçâo em Teoria e Historia Literaria. Entre outras obras, é autor de Nem pàtria, nem paträo: vida operaría e cultura anarquista no Brasil (1983) e Trem fantasma: a modemidade na selva (1988) e organizador de Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros (1998). Joseph Jurt estudou Filologia Románica, Historia e Filosofìa na Universidade de Fribourg na Suiça e na Sorbonne. Terminou o seu pós-doutoramento em 1978. Em 1988 foi professor em Regensburg. Desde 1981 é professor de Literatura Francesa na Universidade de Freiburg. Publicou entre outros: Les attitudes politiques de Georges Bernanos jusqu'en 1931 (1968); Georges Bernanos. 1. Essai de bibliographie des études en languefrançaise (1972/1975/1976); La réception de la littérature par la critique journalistique (1980); Französischsprachige Gegenwartsliteratur 1918-1986/87 (1989) em colaboraçâo com Martin Ebel e Ursula Erzgräber; Das literarische Feld Das Konzept Pierre Bourdieus in Theorie und Praxis (1995); Georges Bernanos: essais et écrits de combat (1972/1995). E editor de Die 'Franzosenzeit' im Lande Baden von 1945 bis heute (1992); Algérie-France-Islam (1997), Zeitgenössische französische Denker: eine Bilanz (1998); Von Michel Serres bis Julia Kristeva (1999). Martin Lienhard é Professor Catedrático de Literatura Hispano-americana, Espanhola, Brasileira e Luso-africana na Universidade de Zurique. Sua pesquisa privilegia as práticas literárias e discursivas - em particular populares - em situaçâo de conflito étnico, social e cultural. Seus últimos livras foram: La voz y su huella. Escritura y conflicto étnico-social en America Latina (1492-1988) (1990); Testimonios, cartas y manifiestos indígenas (desde la conquista hasta comienzos del siglo XX) (1992); O mar e o mato - historias da escravidäo (Congo-Angola, Brasil, Caribe) (1998) (traduçâo francesa no prelo). Luis Costa Lima graduou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Fernambuco. Fez seu doutorado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na USP, tendo defendido sua tese em 1972. Atualmente é Professor Titular de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Professor Associado na Pontificia Universidade Católica (RJ). Publicou entre outros: O controle do imaginario (21989); Pensando nos trópicos. (Dispersa demanda II) (1991); Limites da voz (Montaigne, Schlegel) (1993); Limites da voz (Kafka) (1993); Vida e mimesis (1995); Terra ignota. A construçâo de Os sertôes (1997). Organizou, entre outras, as seguintes coletâneas: O estruturalismo de Lévi-Strauss (1968); Teoria da cultura de massa (1970); Teoria da literatura em suasfontes (introduçào geral e seleçâo de textos relativos à artálise estilística, formalista, do new criticism, sociològica e estruturalista) (1975); A literatura e o lettor. Textos de estética da recepçâo, introduçào e seleçâo (1979). Rainer Marten trabalhou com Martin Heidegger (como élève, e nâo como disciple) entre 1950 e 1962. Recebeu o título de doutor em 1955 e concluiu seu pós-doutoramento em 1963 com trabalhos sobre Platäo. É professor de Filosofia na Universidade de Freiburg tendo como áreas especificas a filosofia grega, filosofia do século XX e filosofia pràtica. Publicou os seguintes livras: Der Logos der Dialetik (1965); Existieren, Wahrsein und Verstehen (1972);

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Der menschliche Tod (1987); Der menschliche Mensch (1988); Denkkunst (1989); Heidegger lesen (1991); Lebenskunst (1993); Menschliche Wahrheit (2000). Joachim Michael estudou Filologia Portuguesa e Historia em Freiburg e Lisboa. Sua dissertaçâo de mestrado aborda o tema da imagem dos indios em textos portugueses no século XVI (Das Bild der Indios in portugiesischen Texten des 16. Jh., Universidade de Freiburg, 1994.) Elabora no ámbito do projeto de pesquisa 541 "Identidade e Alteridade", apoiado pela Deutsche Forschungsgemeinschaft, urna tese de doutorado na Universidade de Freiburg sobre a funçào de telenovelas na constituiçâo de identidades nacionais e culturáis na America Latina. Horst Nitschack formou-se em Filologia Germànica, Romànica e Historia em Munique, Aix en Provence e Freiburg. Sua tese de doutorado é sobre as teorías estéticas de Kant e Schiller. Trabalhou como leitor do DAAD e professor convidado na França (Université de Nantes), no Brasil (Universidade Federal do Ceará, Fortaleza), no Peru (Pontificia Universidad Católica del Perú, Lima) e desde 1995 no Chile (Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación und Universidad de Chile). Tem varias publicaçôes em revistas e livros ñas áreas de literatura latino-americana e de literatura comparada. Joäo Cezar de Castro Rocha é Professor Adjunto de Literatura Comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com estudos de pôs-graduaçâo realizados na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Universidade de Stanford. Bolsista da CAPES/DAAD, para temporada de pesquisa na Alemanha. Pesquisador do Programa Nacional de Excelencia (PRONEX/CNPq), junto à Pontificia Universidade Católica, do Rio de Janeiro. Autor de Literatura e cordialidade. O público e o privado na cultura brasileira (1998) - o livro recebeu o premio Mario de Andrade, concedido pela Biblioteca Nacional em 1998. Co-autor de René Girard. Um longo argumento do principio ao fim. Diálogos com Joäo Cezar de Castro Rocha e Pierpaolo Antonello (2000). Organizador de varios livros, entre os quais Interseçôes: ensaios sobre a materialidade da comunicaçâo (Imago, 1998); Hans Ulrich Gumbrecht: corpo eforma (1998); As mascaras da mimesis: a obra de Luiz Costa Lima (1999); A teoria daficçâo:indagaçôes a obra de Wolfgang Iser (1999). José Ruiz Rosas é poeta. Entre 1951 e 2000 publicou 34 livros de poemas em Arequipa, Lima e Tacna (Peru), México D.F., Morelia (México) e Freiburg. Recebeu em 1979 o primeiro premio do Concurso Ibero-americano de Poesia sobre o tema da dança da Universidad Nacional Autònoma de México. Foi finalista do Premio Poesía Mística Fundación Fernando Rielo; Mene. Honr. Premio Nacional J. S. Chocano, Peru; e finalista do Premio COPÊ de Poesia, Peru. Exerceu entre outros os seguintes cargos: de diretor do Instituto Nacional de Cultura Filial em Arequipa e assessor de cultura da Municipalidad Provincial em Arequipa. Sergio Paulo Rouanet formou-se em Direito pela Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Freqüentou a Escola Superior de Diplomacia "Rio Branco" no Rio de Janeiro, começando assim a sua carreira diplomática. Fez seus estudos de pôs-graduaçâo em Ciencias Políticas e Económicas na Universidade Georgetown em Washington/EUA, assim como

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em Filosofia na New Scholl in New York/EUA. Em 1980 recebeu o título de doutor na área de Ciencias Políticas na USP. Foi Consul do Brasil na Dinamarca, Ministro da Cultura no Brasil, Cónsul Geral em Berlim na Alemanha. E membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Brasileira de Filosofia, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do PEN-Club. Entre outros, publicou O homem e o discurso - arqueología de Michel Foucault (1971); Edipo e o anjo - itinerarios freudianos em Walter Benjamin (1983); As razòes do 1luminismo (1987); Jürgen Habermas em colaboraçâo com Barbara Freitag (1990); Malestar na modernidade (1993) e A razào nòmade (1994). Markus Klaus Schäffauer estudou Filologia Romànica (espanhola e portuguesa), Filologia Germànica e Historia ñas Universidades de Freiburg e Salamanca. Recebeu o título de doutor em 1996 com tese de doutorado sobre as funçôes da oralidade na literatura argentina. Foi bobista do CNPq e professor convidado da Universidade de Sâo Paulo de 1997 a 1998. Atualmente leciona literatura espanhola e latino-americana na Universidade AlbertLudwig em Freiburg, onde também investiga a questâo dos géneros literários e audiovisuais no projeto de pesquisa 541 "Identidade e Alteridade" da DFG. Publicou os seguintes livros: Oralidad y argentinidad. Estudios sobre la función del lenguaje hablado en la literatura argentina (1997) e Discursos de oralidad en la literatura rìoplatense del siglo XIXal XX (1999) (ambos em colaboraçâo com W.B. Berg) e scriptOralität in der argentinischen Literatur. Funktionswandel der literarischen Oralität in Realismus, Avantgarde und Post-Avantgarde (1890-1960) (1998). Achim Schräder é Professor Emerito de Sociologia do Instituto de Sociologia da Westfälische Wilhems-Universität Münster. Foi fundador e, por longo tempo, diretor do Centro America Latina da Universidade de Münster. Desde 1966 realizou vários projetos de pesquisa, além de lecionar e atuar como conselheiro na America Latina, principalmente no Brasil. Suas áreas de traballio com relaçào ao Brasil sào: pesquisa social empírica, principalmente indicadores sociais, sociologia de ensino, sociologia científica e sociologia económica. Bruno Wilhelm Speck é cientista político fomado pela Universidade de Freiburg com doutorado em Ciencias Políticas também nesta Universidade. É atualmente professor na UNICAMP (Campinas) e pesquisador no IDESP (Sâo Paulo). Tem trabalhos publicados sobre o pensamento social e político no Brasil, sobre controle da administraçâo pública e sobre partidos e eleiçôes no Brasil. Atualmente está editando o Source Book Brasil, um manual de meios e modos de combater a corrupçao no Brasil. Ellen Spielman é doutora em Filologia pela Universidade Livre de Berlim e pesquisadora de literatura e cultura latino-americana, vinculada à Universität Jena está preparando o seu pós-doutorado. Editou os volumes L@s relaciones culturales entre ®méric® L@tin@ y los Est@dos Unidos después de l® guerr® fri® (2000) e Exzentrische Räume. Festschrift für Carlos Rincón (1999) junto com Florian Nelle e Nan Badenberg. Na área de estudos brasileiros publicou o livro Brasilien: Gegenwart als Pastiche (1994) com leituras de Clarice Lispector, Darcy Ribeiro, Ignacio de Loyola Brandâo, Jorge Amado, Silvianos Santiago e Antonio Callado. Editará junto com Mabel Moraña o volume Los debates posmoderno y poscolonial en América Latina y los Estados Unidos.