Anestesiologia e Analgesia Veterinaria 9781118526231, 9788527731768


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Frontispício
GEN
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Página de créditos
Colaboradores
Dedicatória
Apresentação
Prefácio
Sumário
Parte 1 Tópicos Gerais
1 Introdução à Anestesia e à Analgesia | Uso, Definições, História, Conceitos, Classificação e Considerações
2 Risco Anestésico e Consentimento Informado
3 Equipamento Anestésico
4 Monitoramento de Pacientes Anestesiados
5 Emergências Anestésicas e Reanimação
6 Eutanásia e Abate Humanitário
Parte 2 Farmacologia
7 Farmacologia Geral dos Agentes Anestésicos e Analgésicos
8 Anticolinérgicos
9 Agentes Adrenérgicos
10 Sedativos e Tranquilizantes
11 Opioides
12 Anti-inflamatórios Não Esteroides
13 Anestésicos e Analgésicos Adjuvantes
14 Relaxantes Musculares e Bloqueio Neuromuscular
15 Anestésicos Injetáveis
16 Anestésicos Inalatórios
17 Anestésicos Locais
Parte 3 Líquidos Corporais e Termorregulação
18 Fisiologia Acidobásica
19 Termorregulação Peroperatória e Equilíbrio Térmico
20 Tratamento dos Distúrbios da Coagulação e das Plaquetas
21 Farmacologia Clínica e Administração de Soluções de Líquidos, Eletrólitos e Componentes Sanguíneos
Parte 4 Sistema Cardiovascular
22 Fisiologia Cardiovascular
23 Medida do Débito Cardíaco
24 Anestesia por Derivação Cardiopulmonar
25 Marca-passos Cardíacos e Anestesia
26 Fisiologia e Administração Anestésica em Pacientes com Doença Cardiovascular
Parte 5 Sistema Respiratório
27 Fisiologia, Fisiopatologia e Conduta Anestésica em Pacientes com Doença Respiratória
Parte 6 Sistema Nervoso
28 Fisiologia, Fisiopatologia e Conduta Anestésica de Pacientes com Doença Neurológica
29 Nocicepção e Dor
Parte 7 Sistema Hepático
30 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doença Hepática
Parte 8 Sistemas Endócrino e Gastrintestinal
31 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doenças Gastrintestinais e Endócrinas
Parte 9 Sistema Urogenital
32 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doença Renal
33 Considerações Anestésicas para a Terapia Renal Substitutiva
34 Considerações Anestésicas Durante a Prenhez e no Recém-nascido
Parte 10 Anestesia e Analgesia Comparada
35 Anestesia e Analgesia Comparada em Cães e Gatos
36 Anestesia e Manejo da Dor em Populações de Abrigos
37 Anestesia e Analgesia Comparada em Equinos
38 Anestesia e Analgesia Comparada de Ruminantes e Suínos
39 Anestesia e Analgesia Comparada em Animais de Laboratório
40 Anestesia e Analgesia Comparada de Animais Selvagens de Zoológicos e de Vida Livre
41 Anestesia e Analgesia Comparada em Mamíferos Aquáticos
42 Anestesia e Analgesia Comparada de Répteis, Anfíbios e Peixes
43 Anestesia e Analgesia Comparada de Aves
Parte 11 Anestesia e Analgesia para Espécies Domésticas
44 Cães e Gatos
45 Técnicas de Anestesia Local e Analgesia em Cães e Gatos
46 Equinos
47 Equinos com Cólica
48 Técnicas de Anestesia e Analgesia Locais para Equinos
49 Ruminantes
50 Suínos
51 Técnicas de Anestesia Local e Analgésicas em Suínos e Ruminantes
Parte 12 Anestesia e Analgesia de Pacientes Selecionados e Procedimentos
52 Pacientes Oftálmicos
53 Animais Neonatos e Pediátricos
54 Animais Sênior e Geriátricos
55 Pacientes com Câncer
56 Pacientes Ortopédicos
57 Considerações sobre Segurança do Paciente e do Anestesista em Procedimentos com Laser, Radiográficos e de Ressonância Magnética
Encarte
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Anestesiologia e Analgesia Veterinaria
 9781118526231, 9788527731768

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■ Os autores deste livro e a EDITORA ROCA. empenharam seus melhores esforços para assegurar que as informações e os procedimentos apresentados no texto estejam em acordo com os padrões aceitos à época da publicação, e todos os dados foram atualizados pelos autores até a data da entrega dos originais à editora. Entretanto, tendo em conta a evolução das ciências da saúde, as mudanças regulamentares governamentais e o constante fluxo de novas informações sobre terapêutica medicamentosa e reações adversas a fármacos, recomendamos enfaticamente que os leitores consultem sempre outras fontes fidedignas, de modo a se certificarem de que as informações contidas neste livro estão corretas e de que não houve alterações nas dosagens recomendadas ou na legislação regulamentadora. ■ Os autores e a editora se empenharam para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores de direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro, dispondo-se a possíveis acertos posteriores caso, inadvertida e involuntariamente, a identificação de algum deles tenha sido omitida. ■ Traduzido de VETERINARY ANESTHESIA AND ANALGESIA: LUMB AND JONES, FIFTH EDITION This edition first published 2015 © 2015 by John Wiley & Sons, Inc. Fourth edition, © 2007 Blackwell Publishing Third edition, © 1996 Williams & Wilkins Second edition, © 1984 Lea & Febiger First edition, © 1973 Lea & Febiger ■ All Rights Reserved. Authorised translation from the English language edition published by John Wiley & Sons Limited. Responsibility for the accuracy of the translation rests solely with Editora Guanabara Koogan Ltda and is not the responsibility of John Wiley & Sons Limited. No part of this book may be reproduced in any form without the written permission of the original copyright holder, John Wiley & Sons Limited. ISBN 978-1-118-52623-1 ■ Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright © 2017 by EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. Publicado pela Editora Roca, um selo integrante do GEN | Grupo Editorial Nacional Travessa do Ouvidor, 11 Rio de Janeiro – RJ – CEP 20040-040 Tels.: (21) 3543-0770/(11) 5080-0770 | Fax: (21) 3543-0896 www.grupogen.com.br | [email protected] ■ Reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, em quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia,

distribuição pela Internet ou outros), sem permissão, por escrito, da EDITORA GUANABARA KOOGAN LTDA. ■ Imagens da capa (da esquerda para direita): Gato: Foto de iStock.com. iStock 16988839. © SondraP 6-26-11;Cavalo: Foto de iStock.com. iStock #14701119. © Groomes Photography 10-3010; Cabra: Foto de iStock.com. iStock #17108939. © LazingBee 7-10-11; Rato: Photo from iStock.com. iStock #16390014. © lculig 4-26-11; Cachorro: Photo from iStock.com. iStock #16146668. © CountryStyle Photography 3-29-11. ■ Design da capa: Andy Meaden Produção digital: Geethik ■ Ficha catalográfica L982 5. ed. Lumb & Jones | Anestesiologia e analgesia em veterinária / Kurt A. Grimm... [et al.]; Revisão técnica Flavio Massone; Tradução Idilia Vanzellotti, Patricia Lydie Voeux, Roberto Thiesen. – 5. ed. – Rio de Janeiro:Editora Roca, 2017. : il. Tradução de: Veterinary anesthesia and analgesia: Lumb and Jones ISBN: 978-85-277-3176-8 1. Anestesia veterinária. 2. Analgesia. 3. Anestesia veterinária. I. Tranquilli, William J. II. Greene, Stephen A.III. Grimm, Kurt A. IV. Lumb, William V. (William Valjean). V. Greene, Sheilah A. 17-40455

CDD: 636.089796 CDU: 619:616-089.5

Colaboradores

Jennifer G. Adams, DVM, DACVlM (LA), DACVAA Hull, Georgia, USA Jon M. Arnemo, DVM, PhD, DECZM Hedmark University College Campus Evenstad, Norway Swedish University of Agricultural Sciences Umeå, Sweden Sébastien H. Bauquier, DMV, MANZCVS, DACVAA Faculty of Veterinary and Agricultural Sciences, University of Melbourne Werribee, Victoria, Australia Richard M. Bednarski, DVM, MS, DACVAA College of Veterinary Medicine, The Ohio State University Columbus, Ohio, USA Stephanie H. Berry, DVM, MS, DACVAA Atlantic Veterinary College University of Prince Edward Island Charlottetown, Prince Edward Island, Canada Thierry Beths, DVM, Cert VA, MRCVS, PhD Faculty of Veterinary and Agricultural Sciences, University of Melbourne, Werribee, Victoria, Australia Regula Bettschart-Wolfensberger, Prof.Dr.med.vet., PhD, DECVAA Vetsuisse Faculty, Section Anaesthesiology University of Zurich Zurich, Switzerland

Lori A. Bidwell, DVM, DACVAA College of Veterinary Medicine Michigan State University East Lansing, Michigan, USA Benjamin M. Brainard, VMD, DACVAA, DACVECC Department of Small Animal Medicine and Surgery College of Veterinary Medicine University of Georgia Athens, Georgia, USA Dave C. Brodbelt, MA, VetMB, PhD, DVA, DECVAA, FHEA, MRCVS Veterinary Epidemiology, Economics and Public Health Group Royal Veterinary College North Mymms, Hertfordshire, UK Robert J. Brosnan, DVM, PhD, DACVAA Department of Surgical and Radiological Sciences, School of Veterinary Medicine University of California Davis, California, USA David B. Brunson, DVM, MS, DACVAA Zoetis, LLC Florham Park, New Jersey, USA Steven C. Budsberg, DVM, MS, DACVS College of Veterinary Medicine University of Georgia Athens, Georgia, USA Barret J. Bulmer, DVM, MS, DACVIM-Cardiology Tufts Veterinary Emergency Treatment and Specialties Walpole, Massachusetts, USA Christopher R. Byron, DVM, MS, DACVS Virginia-Maryland College of Veterinary Medicine Virginia Tech

Blacksburg, Virginia, USA Luis Campoy, LV, CertVA, DECVAA, MRCVS Department of Clinical Sciences College of Veterinary Medicine Cornell University Ithaca, New York, USA Rachael E. Carpenter, DVM Virginia-Maryland Regional College of Veterinary Medicine Blacksburg, Virginia, USA Nigel Anthony Caulkett, DVM, MVetSc, DACVAA Department of Veterinary Clinical and Diagnostic Science University of Calgary Calgary, Alberta, Canada Amandeep S. Chohan, BVSc & AH, MVSc, MS, DACVAA Veterinary Teaching Hospital Washington State University Pullman, Washington, USA Stuart C. Clark-Price, DVM, MS, DACVIM(LA), DACVAA Department of Veterinary Clinical Medicine College of Veterinary Medicine University of Illinois Urbana, Illinois, USA Elizabeth B. Davidow, DVM, DACVECC ACCES BluePearl Seattle, Washington, USA Helio A. de Morais, DVM, MS, PhD, DACVIM(SA), DACVIM-Cardiology College of Veterinary Medicine Oregon State University Corvallis, Oregon, USA

Timothy M. Fan, DVM, PhD, DACVIM-Oncology Department of Veterinary Clinical Medicine College of Veterinary Medicine University of Illinois at Urbana-Champaign Urbana, Illinois, USA Juliana Peboni Figueiredo, MV, MS, DACVAA Small Animal Medicine and Surgery Academic Program St. George’s University – School of Veterinary Medicine Grenada, West Indies Derek Flaherty, BVMS, DVA, DECVAA, MRCA, MRCVS School of Veterinary Medicine University of Glasgow Glasgow, Scotland, UK Paul A. Flecknell, VetMB, PhD, DECVAA, DECLAM Institute of Neuroscience Newcastle University Newcastle upon Tyne, UK Fernando Garcia-Pereira, DVM, MS, DACVAA Large Animal Clinical Sciences College of Veterinary Medicine University of Florida Gainesville, Florida, USA Gregory F. Grauer, DVM, MS, DACVIM(SA) Department of Clinical Sciences College of Veterinary Medicine Kansas State University Manhattan, Kansas, USA Thomas K. Graves, DVM, MS, PhD, DACVIM(SA) College of Veterinary Medicine Midwestern University Glendale, Arizona, USA

Stephen A. Greene, DVM, MS, DACVAA Washington State University, Pullman, Washington, USA Kurt A. Grimm, DVM, MS, PhD, DACVAA, DACVCP Veterinary Specialist Services, PC Conifer, Colorado, USA Marjorie E. Gross, DVM, MS, DACVAA Oklahoma State University Center for Veterinary Health Sciences Stillwater, Oklahoma, USA Tamara L. Grubb, DVM, PhD, DACVAA Veterinary Clinical Sciences, Washington State University Pullman, Washington, USA Sandee M. Hartsfield, DVM, MS, DACVAA Department of Small Animal Clinical Sciences College of Veterinary Medicine and Biomedical Sciences Texas A&M University College Station, Texas, USA Steve C. Haskins, DVM, MS, DACVAA, DACVECC School of Veterinary Medicine, University of California Davis, California, USA Rebecca A. Johnson, DVM, MS, PhD, DACVAA School of Veterinary Medicine University of Wisconsin Madison, Wisconsin, USA Robert D. Keegan, DVM, DACVAA Department of Veterinary Clinical Sciences College of Veterinary Medicine Washington State University Pullman, Washington, USA

Carolyn L. Kerr, DVM, DVSc, PhD, DACVAA Department of Clinical Studies Ontario Veterinary College University of Guelph Guelph, Ontario, Canada Butch KuKanich, DVM, PhD, DACVCP Department of Anatomy and Physiology College of Veterinary Medicine Kansas State University Manhattan, Kansas, USA Leigh A. Lamont, DVM, MS, DACVAA Atlantic Veterinary College, University of Prince Edward Island, Canada Phillip Lerche, BVSc, PhD, DACVAA Veterinary Clinical Sciences, The Ohio State University Columbus, Ohio, USA HuiChu Lin, DVM, MS, DACVAA College of Veterinary Medicine, Auburn University Auburn, Alabama, USA Andrea L. Looney, DVM, DACVAA, DACVSMR Massachusetts Veterinary Referral Hospital, IVG Hospitals Woburn, Massachusetts, USA John W. Ludders, DVM, DACVAA College of Veterinary Medicine Cornell University Ithaca, New York, USA Lais M. Malavasi, DVM, MS, PhD Department of Veterinary Clinical Sciences College of Veterinary Medicine Washington State University

Pullman, Washington, USA Khursheed R. Mama, DVM, DACVAA Department of Clinical Sciences Colorado State University Fort Collins, Colorado, USA Elizabeth A. Martinez, DVM, DACVAA College of Veterinary Medicine Texas A&M University College Station, Texas, USA Wayne N. McDonell, DVM, MSc, PhD, DACVAA University Professor Emeritus Department of Clinical Studies, Ontario Veterinary College University of Guelph Guelph, Ontario, Canada Carolyn M. McKune, DVM, DACVAA Mythos Veterinary, LLC Gainesville, Florida, USA Kristin Messenger, DVM, PhD, DACVAA, DACVCP Department of Molecular Biomedical Sciences College of Veterinary Medicine North Carolina State University Raleigh, North Carolina, USA Robert E. Meyer, DVM, DACVAA College of Veterinary Medicine Mississippi State University Mississippi, USA Cornelia I. Mosley, Dr.med.vet, DACVAA Ontario Veterinary College University of Guelph, Canada

Craig A. Mosley, DVM, MSc, DACVAA Mosley Veterinary Anesthesia Services Rockwood, Ontario, Canada William W. Muir, DVM, PhD, DACVAA, DACVECC VCPCS Columbus, Ohio, USA Joanna C. Murrell, BVSc. (Hons), PhD, DECVAA, MRCVS School of Veterinary Sciences University of Bristol Langford, North Somerset, UK Andrea M. Nolan, MVB, MRCVS, DVA, PhD, DECVAA, DECVPT Edinburgh Napier University Edinburgh, Scotland, UK Klaus A. Otto, Dr.med.vet., PD, DACVAA, DECVAA, DECLAM Institut für Versuchstierkunde und Zentrales Tierlaboratorium Medizinische Hochschule Hannover Hannover, Germany Mark A. Oyama, DVM, DACVIM-Cardiology Department of Clinical Studies-Philadelphia University of Pennsylvania Philadelphia, Pennsylvania, USA Luisito S. Pablo, DVM, MS, DACVAA College of Veterinary Medicine Auburn University Auburn, Alabama, USA Daniel S. J. Pang, BVSc, MSc, PhD, DACVAA, DECVAA, MRCVS Faculty of Veterinary Medicine and Hotchkiss Brain Institute University of Calgary Calgary, Alberta, Canada

Mark G. Papich, DVM, MS, DACVCP Department of Molecular Biomedical Sciences College of Veterinary Medicine North Carolina State University Raleigh, North Carolina, USA Peter J. Pascoe, BVSc, DVA, DACVAA, DECVAA Department of Surgical and Radiological Sciences School of Veterinary Medicine University of California Davis, California, USA Santiago Peralta, DVM, DAVDC Department of Clinical Sciences College of Veterinary Medicine Cornell University Ithaca, New York, USA Tania E. Perez Jimenez, DVM, MS College of Veterinary Medicine Washington State University Pullman, Washington, USA Sandra Z. Perkowski, VMD, PhD, DACVAA Department of Clinical Studies-Philadelphia School of Veterinary Medicine University of Pennsylvania Philadelphia, Pennsylvania, USA Glenn R. Pettifer, BA(Hons), BSc, DVM, DVSc, DACVAA College of Veterinarians of Ontario Guelph, Ontario, Canada Bruno H. Pypendop, DrVetMed, DrVetSci, DACVAA Department of Surgical and Radiological Sciences School of Veterinary Medicine University of California

Davis, California, USA Marc R. Raffe, DVM, MS, DACVAA, DACVECC Veterinary Anesthesia and Critical Care Associates LLC St. Paul, Minnesota, USA David C. Rankin, DVM, MS, DACVAA Department of Clinical Sciences Kansas State University Manhattan, Kansas, USA Matt Read, DVM, MVSc, DACVAA Faculty of Veterinary Medicine University of Calgary Calgary, Alberta, Canada Thomas W. Riebold, DVM, DACVAA Veterinary Teaching Hospital College of Veterinary Medicine Oregon State University Corvallis, Oregon, USA Eva Rioja Garcia, DVM, DVSc, PhD, DACVAA School of Veterinary Science University of Liverpool Leahurst Campus, UK Sheilah A. Robertson, BVMS (Hons), PhD, DACVAA, DECVAA, DACAW, DECAWBM (WSEL)

Michigan State University, East Lansing Michigan, USA Molly K. Shepard, DVM, DACVAA University of Georgia Athens, Georgia, USA André C. Shih, DVM, DACVAA

University of Florida College of Veterinary Medicine Gainesville, Florida, USA Melissa Sinclair, DVM, DVSc, DACVAA Department of Clinical Studies Ontario Veterinary College University of Guelph Guelph, Ontario, Canada Julie A. Smith, DVM, DACVAA MedVet Medical and Cancer Centers for Pets Worthington, Ohio, USA Eugene P. Steffey, VMD, PhD DACVAA, DECVAA, MRCVSHonAssoc, Dr.h.c.(Univ of Berne)

Emeritus Professor Department of Surgical and Radiological Sciences School of Veterinary Medicine University of California Davis, California, US Aurelie A. Thomas, DVM, MSc, MRCVS Comparative Biology Centre Newcastle University, Medical School Newcastle upon Tyne, UK William J. Tranquilli, DVM, MS, DACVAA College of Veterinary Medicine University of Illinois at Urbana-Champaign Champaign, Illinois, USA Cynthia M. Trim, BVSc, DVA, DACVAA, DECVAA Department of Large Animal Medicine College of Veterinary Medicine University of Georgia Athens, Georgia, USA

Alexander Valverde, DVM, DVSc, DACVAA Department of Clinical Studies Ontario Veterinary College University of Guelph Guelph, Ontario, Canada Alessio Vigani, DVM, PhD, DACVAA, DACVECC Department of Clinical Sciences College of Veterinary Medicine North Carolina State University Raleigh, North Carolina, USA Kate L. White, MA, Vet MB, DVA, DECVAA, MRCVS School of Veterinary Medicine and Science University of Nottingham Nottingham, UK Ted Whittem, BVSc, PhD, DACVCP, FANZCVS Faculty of Veterinary and Agricultural Sciences University of Melbourne Werribee, Victoria, Australia Ashley J. Wiese, DVM, MS, DACVAA Department of Anesthesia MedVet Medical and Cancer Center for Pets Cincinnati, Ohio, USA Deborah V. Wilson, BVSc(Hons), MS, DACVAA Department of Large Animal Clinical Sciences College of Veterinary Medicine Michigan State University East Lansing, Michigan, USA Bonnie D. Wright, DVM, DACVAA Fort Collins Veterinary Emergency and Rehabilitation Hospital Fort Collins, Colorado, USA

Dedicatória

A quinta edição desta obra é dedicada às muitas pessoas que apoiaram e aprimoraram a especialidade da anestesia e analgesia veterinárias, incluindo todos os cuidadores de animais, veterinários e cientistas que se esforçam para o progresso da medicina veterinária com caráter humanitário. Dedicamos nossos esforços para publicar esta quinta edição aos nossos pais, que nos incutiram valores como trabalho árduo, lealdade e paciência; aos nossos professores e colegas, pela crença de que o conhecimento científico nos dá a melhor chance de saber o que é real; aos animais sob nossos cuidados, que nos ensinaram muito; a outras pessoas importantes, pelo apoio; e àqueles que aprendem com esta obra, por tornar tudo prazeroso e compensador.

Apresentação

O conteúdo com diversas referências, acréscimos importantes e conteúdo atualizado desta quinta edição proporciona uma documentação significativa da ciência clínica básica e aplicada essencial para o emprego seguro da anestesia e o manejo da dor em animais. Lumb & Jones | Anestesiologia e Analgesia em Veterinária continua a ser a fonte mais completa de informação sobre o tema na literatura veterinária para estudantes, profissionais e especialistas. Como editores da última publicação da obra, queremos agradecer os esforços dos 85 colaboradores, especialmente aos Drs. Grimm, Lamont, Tranquilli, Greene e Robertson, por terem assumido a editoria de tão grande projeto. Como estamos no século XXI, a publicação desta obra em 2017 serve para destacar a importância, o significado e a necessidade de aprimorar continuamente a anestesia e a analgesia veterinárias. Com seus esforços combinados, colaboradores e editores preservaram admiravelmente a consagrada reputação deste livro como um recurso indispensável para o avanço e o aprimoramento do bem-estar animal. William Lumb Wynn Jones John Thurmon

Prefácio

Em seu 42o aniversário, contando de sua primeira publicação em 1973, Lumb & Jones | Anestesiologia e Analgesia em Veterinária está disponível para os profissionais de veterinária e a comunidade científica em sua quinta edição. Houve muitos progressos na anestesia e na analgesia veterinária, em paralelo com a evolução da medicina veterinária, razão pela qual cada edição desta obra atualiza e documenta esses avanços, o que se mantém nesta quinta edição. À medida que a anestesia e analgesia veterinária se tornaram reconhecidas e se estabeleceram em todo o mundo, o conhecimento e a prática clínica não são mais definidos por seus primórdios acadêmicos. Esta quinta edição reflete a visão coletiva dos atuais editores de que a especialidade da anestesiologia e da analgesia veterinária garantiu um lugar respeitado entre as especialidades reconhecidas na grande comunidade veterinária global. Essa conquista fica evidente pela composição internacional dos colaboradores desta edição e é corroborada pela prática mundial de cuidados mais avançados em termos de anestesia e manejo da dor. Como editores, nos empenhamos para fornecer informações sobre várias espécies e os aspectos importantes da fisiologia e da farmacologia para a administração segura de anestésicos e analgésicos em uma variedade de pacientes e condições clínicas. No entanto, dado o volume de informações recentes e os aspectos em evolução pertinentes à anestesia e à analgesia veterinária que necessitavam de espaço para discussão, foi impossível manter grande parte do texto das edições anteriores. Felizmente, tais informações, muitas de interesse histórico, continuam disponíveis nas edições prévias. Portanto, agradecemos a valiosa contribuição dos colaboradores e editores das edições anteriores. Esta edição tem mais de 80 colaboradores, todos com alto conhecimento científico e experiência clínica. Muitos são anestesiologistas, mas outros são especialistas de outras áreas, como farmacologia clínica, cirurgia, medicina, cuidados críticos, cardiologia, urologia e medicina de animais de laboratório. Esperamos que essa diversidade de expertise dos autores proporcione uma perspectiva mais abrangente com relação ao manejo de condições clínicas e doenças dos animais. Somos gratos aos colaboradores pelas horas dedicadas ao preparo de seus capítulos. Muitos deles dedicaram suas carreiras ao avanço da anestesiologia veterinária, ao manejo

da dor e ao tratamento humanitário de animais, o que contribuiu bastante para o progresso da medicina veterinária. Entre eles está o Dr. Steve C. Haskins, cuja morte inesperada entristeceu a comunidade veterinária mundial. Suas contribuições para o capítulo sobre monitoramento anestésico na terceira, quarta e quinta edições podem ser consideradas uma das discussões mais abrangentes dos princípios fundamentais do monitoramento anestésico. A dedicação do Dr. Haskins à descoberta de novo conhecimento e seu amor ao ensino eram motivados pela alegria de ver os estudantes aprenderem. Nossa perda com sua morte, como a de todos os grandes mestres, é imensurável. Como os editores atuais, esperamos que esta edição funcione tanto como um livro-texto quanto uma fonte abrangente de conhecimento científico relevante à conduta clínica na prática da anestesiologia e na instituição do tratamento analgésico. Conteúdo sobre imobilização e anestesia de animais silvestres, de zoológicos e de laboratório encontra-se nos capítulos dedicados aos aspectos comparativos da anestesia nessas espécies. Além da revisão dos capítulos sobre os sistemas cardiovascular, respiratório, nervoso e a fisiologia acidobásica, foi atualizada a farmacologia de várias classes de substâncias empregadas em anestesia e analgesia. Foram contemplados, ainda, capítulos sobre o equipamento de anestesia, o monitoramento e as técnicas de analgesia regional, e adicionados outros sobre considerações anestésicas e analgésicas em pacientes submetidos a terapia renal substitutiva, implantação de marca-passo cardíaco e derivação cardiopulmonar. Foram mantidos os capítulos dedicados à anestesia de determinadas espécies e classes de animais, incluindo cães, gatos, equinos, suínos, ruminantes, animais de laboratório e de zoológico, mamíferos terrestres e aquáticos de vida livre, aves, répteis, anfíbios e peixes. As considerações anestésicas acerca de pacientes com condições e patologias que afetam os sistemas do corpo foram consolidadas nos capítulos a respeito de cada um deles. Gostaríamos de agradecer aos colaboradores por compartilharem generosamente seu conhecimento, bem como a nossas famílias e colegas de trabalho por nos conceder o tempo necessário para completar este projeto. Por fim, agradecemos à equipe da Wiley Blackwell por seu apoio e estímulo. Kurt A. Grimm Leigh A. Lamont William J. Tranquilli Stephen A. Greene Sheilah A. Robertson

Sumário

Parte 1

Tópicos Gerais

1 Introdução à Anestesia e à Analgesia | Uso, Definições, História, Conceitos, Classificação e Considerações William J. Tranquilli e Kurt A. Grimm 2 Risco Anestésico e Consentimento Informado Dave C. Brodbelt, Derek Flaherty e Glenn R. Pettifer 3 Equipamento Anestésico Craig A. Mosley 4 Monitoramento de Pacientes Anestesiados Steve C. Haskins 5 Emergências Anestésicas e Reanimação Deborah V. Wilson e André C. Shih 6 Eutanásia e Abate Humanitário Robert E. Meyer Parte 2

Farmacologia

7 Farmacologia Geral dos Agentes Anestésicos e Analgésicos Ted Whittem, Thierry Beths e Sébastien H. Bauquier 8 Anticolinérgicos Phillip Lerche 9 Agentes Adrenérgicos Joanna C. Murrell 10 Sedativos e Tranquilizantes David C. Rankin

11 Opioides Butch KuKanich e Ashley J. Wiese 12 Anti-inflamatórios Não Esteroides Mark G. Papich e Kristin Messenger 13 Anestésicos e Analgésicos Adjuvantes Daniel S. J. Pang 14 Relaxantes Musculares e Bloqueio Neuromuscular Robert D. Keegan 15 Anestésicos Injetáveis Stephanie H. Berry 16 Anestésicos Inalatórios Eugene P. Steffey, Khursheed R. Mama e Robert J. Brosnan 17 Anestésicos Locais Eva Rioja Garcia Parte 3

Líquidos Corporais e Termorregulação

18 Fisiologia Acidobásica William W. Muir 19 Termorregulação Peroperatória e Equilíbrio Térmico Kurt A. Grimm 20 Tratamento dos Distúrbios da Coagulação e das Plaquetas Benjamin M. Brainard 21 Farmacologia Clínica e Administração de Soluções de Líquidos, Eletrólitos e Componentes Sanguíneos Amandeep S. Chohan e Elizabeth B. Davidow Parte 4

Sistema Cardiovascular

22 Fisiologia Cardiovascular William W. Muir 23 Medida do Débito Cardíaco Alessio Vigani

24 Anestesia por Derivação Cardiopulmonar Khursheed R. Mama 25 Marca-passos Cardíacos e Anestesia Barret J. Bulmer 26 Fisiologia e Administração Anestésica em Pacientes com Doença Cardiovascular Sandra Z. Perkowski e Mark A. Oyama Parte 5

Sistema Respiratório

27 Fisiologia, Fisiopatologia e Conduta Anestésica em Pacientes com Doença Respiratória Wayne N. McDonnel e Carolyn L. Kerr Parte 6

Sistema Nervoso

28 Fisiologia, Fisiopatologia e Conduta Anestésica de Pacientes com Doença Neurológica Klaus A. Otto 29 Nocicepção e Dor Carolyn M. McKune, Joanna C. Murrell, Andrea M. Nolan, Kate L. White e Bonnie D. Wright Parte 7

Sistema Hepático

30 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doença Hepática Fernando Garcia-Pereira Parte 8

Sistemas Endócrino e Gastrintestinal

31 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doenças Gastrintestinais e Endócrinas Jennifer G. Adams, Juliana Peboni Figueiredo e Thomas K. Graves Parte 9

Sistema Urogenital

32 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doença

Renal Stuart C. Clark-Price e Gregory F. Grauer 33 Considerações Anestésicas para a Terapia Renal Substitutiva Rebecca A. Johnson 34 Considerações Anestésicas Durante a Prenhez e no Recém-nascido Marc R. Raffe Parte 10

Anestesia e Analgesia Comparada

35 Anestesia e Analgesia Comparada em Cães e Gatos Peter J. Pascoe e Bruno H. Pypendop 36 Anestesia e Manejo da Dor em Populações de Abrigos Andrea L. Looney 37 Anestesia e Analgesia Comparada em Equinos Lori A. Bidwell 38 Anestesia e Analgesia Comparada de Ruminantes e Suínos HuiChu Lin 39 Anestesia e Analgesia Comparada em Animais de Laboratório Paul A. Flecknell e Aurelie A. Thomas 40 Anestesia e Analgesia Comparada de Animais Selvagens de Zoológicos e de Vida Livre Nigel Anthony Caulkett e Jon M. Arnemo 41 Anestesia e Analgesia Comparada em Mamíferos Aquáticos David B. Brunson 42 Anestesia e Analgesia Comparada de Répteis, Anfíbios e Peixes Cornelia I. Mosley e Craig A. Mosley 43 Anestesia e Analgesia Comparada de Aves John W. Ludders Parte 11

Anestesia e Analgesia para Espécies Domésticas

44 Cães e Gatos Richard M. Bednarski

45 Técnicas de Anestesia Local e Analgesia em Cães e Gatos Luis Campoy, Matt Read e Santiago Peralta 46 Equinos Regula Bettschart-Wolfensberger 47 Equinos com Cólica Cynthia M. Trim e Molly K. Shepard 48 Técnicas de Anestesia e Analgesia Locais para Equinos Rachael E. Carpenter e Christopher R. Byron 49 Ruminantes Thomas W. Riebold 50 Suínos Lais M. Malavasi 51 Técnicas de Anestesia Local e Analgésicas em Suínos e Ruminantes Alexander Valverde e Melissa Sinclair Parte 12

Anestesia e Analgesia de Pacientes Selecionados e Procedimentos

52 Pacientes Oftálmicos Marjorie E. Gross e Luisito S. Pablo 53 Animais Neonatos e Pediátricos Tamara L. Grubb, Tania E. Perez Jimenez e Glenn R. Pettifer 54 Animais Sênior e Geriátricos Tamara L. Grubb, Tania E. Perez Jimenez e Glenn R. Pettifer 55 Pacientes com Câncer Timothy M. Fan 56 Pacientes Ortopédicos Steven C. Budsberg 57 Considerações sobre Segurança do Paciente e do Anestesista em Procedimentos com Laser, Radiográficos e de Ressonância Magnética Julie A. Smith

1 Introdução à Anestesia e à Analgesia | Uso, Definições, História, Conceitos, Classificação e Considerações

2 Risco Anestésico e Consentimento Informado 3 Equipamento Anestésico 4 Monitoramento de Pacientes Anestesiados 5 Emergências Anestésicas e Reanimação 6 Eutanásia e Abate Humanitário

Introdução Uso de anestesia, sedação e analgesia Definições Breve história da anestesia em animais História das organizações norte-americanas Definição de anestesiologista Primeiros estágios conceituais da anestesiologia Classificação da anestesia Considerações ambientais Referências bibliográficas

Introdução A anestesia veterinária continua a evoluir como ciência e especialidade na profissão veterinária. As principais mudanças são os avanços na tecnologia médica e o desenvolvimento farmacêutico voltados para animais domesticados ou adaptados a partir da anestesia humana, da pesquisa em fisiologia, farmacologia e ensaios clínicos em pacientes humanos e veterinários, para se ter uma orientação melhor com base na evidência em prol da assistência aos pacientes, e as modificações socioeconômicas e demográficas em países onde a presença dos animais foi desenvolvendo os seus papéis. Os anestesiologistas veterinários continuarão a defender a segurança dos pacientes e os cuidados com eles por parte dos seres humanos, mediante informações sobre o manejo da dor e a qualidade de vida, bem como para os responsáveis pelo ensino da profissão e a sociedade como um todo sobre as melhores práticas atuais em anestesia, analgesia e

manejo da dor.

Uso de anestesia, sedação e analgesia O uso apropriado da anestesia, sedativos e analgésicos pode aliviar a dor, causar amnésia e proporcionar o relaxamento muscular essencial para a segurança humana e dos pacientes.1 Os usos importantes incluem facilitar a imobilização necessária para vários procedimentos diagnósticos, cirúrgicos e terapêuticos em animais silvestres e exóticos, bem como a eutanásia e o abate humanitário dos animais destinados à alimentação humana. A administração de anestesia, sedação e analgésicos não implica ausência de risco para os pacientes e não é recomendada para procedimentos triviais. O desenvolvimento contínuo de técnicas e fármacos melhores, associado ao esforço conjunto e constante no ensino profissionalizante dos veterinários, minimizou o risco global da anestesia e do alívio da dor em um contexto cada vez mais amplo e sofisticado da assistência aos pacientes. Qualquer discussão com pessoas que tenham animais, como a que se tem com os proprietários, ao se obter um consentimento informado, requer o uso da terminologia apropriada que ressalte as questões fundamentais para a segurança da anestesia e do tratamento da dor no âmbito veterinário.

Definições Usa-se o termo anestesia, derivado do grego anaisthaesia, que significa ‘insensibilidade’, para descrever a perda de sensação a toda ou qualquer parte do corpo. A indução da anestesia é feita por fármacos que deprimem a atividade do tecido nervoso em um local, região ou no próprio sistema nervoso central (SNC). No sentido farmacológico, houve uma redefinição significativa do termo geral anestesia.2 Tanto estimulantes como depressores nervosos centrais podem ser anestésicos gerais úteis.3 A conduta da dor nos pacientes envolve o uso de fármacos geralmente denominados analgésicos, termo derivado de an, que implica negativa ou ausência (sem), e alges(is), que significa dor.4 O manejo clínico da dor em geral resulta em vários graus de efetividade, que representam estados de hipoalgesia, ou uma sensação menor de dor. É importante entender que a administração de um analgésico não cria necessariamente o estado de analgesia. Vários termos são comumente usados para descrever os efeitos dos anestésicos e inibidores da dor: •

Analgesia é a ausência de dor em resposta à estimulação que normalmente seria dolorosa. O termo costuma ser reservado para descrever um estado em um paciente consciente5



• •







• •



• •

Nocicepção é o processo neural da codificação de estímulos nocivos.5 É processo fisiológico subjacente à percepção consciente da dor. Não requer consciência e pode continuar durante a anestesia geral, se não forem incluídas as técnicas que interrompam ou inibam a transdução, a transmissão e a modulação dos estímulos nociceptivos Dor é uma experiência sensorial e emocional associada à lesão tecidual real ou potencial, ou descrita em termos de tal lesão5 Tranquilização resulta em uma alteração do comportamento sempre que a ansiedade é aliviada e o paciente fica relaxado, mas continua ciente do que está acontecendo em torno dele. Tranquilizantes são fármacos que resultam em tranquilização quando administrados, mas há quem prefira o termo ansiolítico ou fármaco antiansiedade ao descrever os medicamentos que resultem tanto em redução da ansiedade como relaxamento Sedação é um estado que se caracteriza por depressão central, acompanhada por sonolência e algum relaxamento induzido centralmente. Em geral, o paciente não tem consciência do que o rodeia, mas pode despertar e responder a algum estímulo nocivo. Os sedativos não são recomendados para imobilizar um paciente durante um período em que há probabilidade de ocorrerem estímulos dolorosos Narcose é um estado de sono profundo, induzido por algum fármaco, no qual o paciente não pode ser despertado com facilidade. Ela pode ser acompanhada ou não por antinocicepção, dependendo das técnicas e medicamentos usados Hipnose é uma condição de sono induzida artificialmente, ou um estado de transe que lembra o sono, resultante da depressão moderada do SNC e da qual o paciente é despertado sem dificuldade Analgesia (anestesia) local é a perda da sensação de dor em uma área circunscrita do corpo Analgesia (anestesia) regional é a insensibilidade à dor em uma área maior do corpo, embora limitada, geralmente definida pelo padrão da inervação sobre a qual o efeito é exercido (p. ex., bloqueio e anestesia paralombar) Anestesia geral é a inconsciência induzida por um fármaco e que se caracteriza por depressão controlada, mas reversível, do SNC e da percepção. Em tal estado, o paciente não é despertado por qualquer estimulação nociva. As funções reflexas sensoriais, motoras e autônomas são atenuadas em níveis variáveis, dependendo do(s) medicamento(s) e técnica(s) específico(s) usado(s) Anestesia geral cirúrgica é o estado ou plano anestésico que proporciona inconsciência, amnésia, relaxamento muscular e hipoalgesia suficientes para uma cirurgia indolor Anestesia balanceada é a que se consegue mediante o uso simultâneo de vários



fármacos e técnicas. Os fármacos visam atenuar especificamente componentes individuais do estado anestésico, ou seja, amnésia, antinocicepção, relaxamento muscular e alteração dos reflexos autônomos Anestesia dissociativa é aquela induzida por fármacos (p. ex., cetamina) que promovem a dissociação dos sistemas talamocortical e límbico. Tal tipo de anestesia caracteriza-se por um estado de catalepsia em que os olhos permanecem abertos e os reflexos da deglutição mantêm-se intactos. A hipertonia da musculatura esquelética persiste, a menos que se administre ao mesmo tempo um sedativo forte ou relaxante muscular central potente.

Breve história da anestesia em animais Em 1800, Sir Humphrey Davy sugeriu que o óxido nitroso poderia ter propriedades anestésicas. Vinte e quatro anos depois, H. H. Hickman demonstrou que a dor associada à cirurgia em cães poderia ser aliviada pela inalação de uma mistura de óxido nitroso e dióxido de carbono. Ele argumentou que o último aumentava a frequência e a profundidade da respiração, acentuando assim os efeitos do óxido nitroso. Estudos mais recentes mostraram que é possível induzir inconsciência em 30 a 40 segundos em leitões que respirassem dióxido de carbono (50%) em oxigênio (50%).6 Até 1842, usava-se éter dietílico para anestesia humana. Dois anos depois, um dentista, Horace Wells, redescobriu as propriedades anestésicas do óxido nitroso. Embora este achado tenha sido ignorado por vários anos, em 1862 o óxido nitroso passou a ser usado na anestesia humana. C. T. Jackson, um médico de Boston, foi o primeiro a empregar o éter dietílico em animais.7 O clorofórmio foi descoberto por Liebig em 1831, mas só foi usado pela primeira vez em 1847 para induzir anestesia em animais por Flourens e em pessoas por J. Y. Simpson, em Edimburgo, na Escócia. Com a introdução do clorofórmio, começaram a surgir relatos sobre seu uso em animais na literatura veterinária. Dadd usava rotineiramente anestesia geral em animais e foi um dos primeiros nos EUA a defender o tratamento humanitário de animais e a sua aplicação científica (i. e., em anestesia) na cirurgia veterinária.8 Em 1875, Ore publicou a primeira monografia sobre anestesia intravenosa com hidrato de cloral; três anos depois, Humbert descreveu seu uso em cavalos. Pirogoff foi o primeiro a tentar a anestesia retal com hidrato de cloral em 1847. A injeção intraperitoneal foi empregada pela primeira vez, em 1892, na França. Portanto, várias vias de administração de anestesia geral em animais foram identificadas e minimamente investigadas no final do século XIX. Após o isolamento inicial da cocaína por Albert Niemann, da Alemanha, em 1860,

Anrep, em 1878, sugeriu a possibilidade do uso de cocaína como um anestésico local. Em 1884, Kohler usou cocaína como anestésico local no olho e, 1 ano depois, Halsted descreveu a anestesia regional com cocaína. Seu uso foi popularizado por Sir Frederick Hobday, um veterinário inglês. Depois disso, G. L. Corning recebeu o crédito por usar cocaína para anestesia espinal em cães em 1885. Contudo, a partir dessa descrição, ficou parecendo que ele induziu anestesia epidural. Em 1898, August Bier, da Alemanha, induziu anestesia espinal verdadeira em animais e, em seguida, em si mesmo e em um assistente.9 Embora a infiltração local tenha sido popularizada por Reclus (1890) e Schleich (1892), a anestesia regional de condução foi introduzida mais cedo por Halsted e Hall, em Nova York, em 1884. A popularidade destas técnicas aumentou com a descoberta de anestésicos locais menos tóxicos que a cocaína. Tal progresso possibilitou a Cuille e Sendrail (1901), na França, a indução de anestesia subaracnóidea em equinos, bovinos e cães. Cathelin (1901) relatou anestesia epidural em cães, mas foram Retzgen, Benesch e Brook que utilizaram esta técnica em espécies maiores durante a década de 1920. Embora a anestesia paralombar tenha sido empregada em seres humanos por Sellheim em 1909, só em 1940 Farquharson e Formston aplicaram esta técnica em bovinos. Apesar destes avanços promissores nas técnicas de analgesia local na última metade do século XIX, provavelmente em decorrência de muitos resultados desfavoráveis, a anestesia geral e a cirurgia humanitária não foram logo adotadas pelos veterinários até a segunda metade do século XX. É triste dizer, mas até então a prática veterinária de ‘grandes animais’ consistia mesmo na ‘mão pesada’, sem analgesia ou anestesia ou mesmo sedação, o que perdurou até a segunda metade do século XX. Nos pequenos animais domésticos, já era comum a administração de éter dietílico e clorofórmio no início do século XX. Entretanto, a anestesia geral passou a ser mais aceita após a descoberta dos barbitúricos, no final da década de 1920, e, em particular, com o desenvolvimento do pentobarbital em 1930. A anestesia com barbitúrico teve um avanço adicional com a introdução dos tiobarbitúricos, em geral o tiopental, em 1934. Por causa da recuperação difícil e prolongada, a aceitação da anestesia geral com barbitúrico em grandes animais demorou até que surgissem os derivados fenotiazínicos, também lançados por Charpentier na França em 1950. A anestesia geral nos grandes animais criados em fazendas passou por um avanço ainda maior com a descoberta dos hidrocarbonetos fluorados e o desenvolvimento do equipamento anestésico inalatório para ‘animais de grande porte’, que proporcionava uma administração segura. A descoberta de novas classes de fármacos, junto com a segurança de sua administração (p. ex., tranquilizantes, opioides, agonistas do receptor adrenérgico α2, dissociativos, relaxantes musculares e anestésicos inalatórios), aprimorou ainda mais a segurança e a utilidade da anestesia veterinária tanto para as espécies de grande porte como

para as de pequeno porte.10 A era moderna da anestesia veterinária começou nas últimas três décadas do século XX, facilitada pelo estabelecimento da especialidade em anestesia nas faculdades da América do Norte e da Europa. As metas dessas instituições eram a maior segurança do paciente e o desenvolvimento de novas técnicas e do conhecimento, em paralelo com os avanços conseguidos na anestesia humana. Novos fármacos e técnicas estão sendo criados continuamente para uso clínico em uma variedade de espécies e patologias de cada paciente. Além disso, o monitoramento do paciente, visando à maior segurança, levou à adaptação de tecnologias como a oximetria de pulso, a capnografia e a medida da pressão arterial. O valor do anestesiologista veterinário como um membro da equipe de cuidados com o paciente levou à sua presença cada vez maior na prática veterinária. Com o aumento demográfico na idade dos pacientes ficou evidente uma abordagem mais sofisticada da anestesia. Tal demanda continuará a expandir a importância do anestesiologista em nossa profissão, além dos papéis tradicionais dos instrutores universitários e pesquisadores farmacêuticos. O desafio de melhorar a qualidade de vida do paciente mediante um manejo mais apropriado para a dor também aumentou essa demanda. Muitos anestesiologistas veterinários tornaram-se líderes nesta área por meio da pesquisa contínua e da criação de escalas de avaliação da dor específicas e diretrizes terapêuticas para cada espécie, com base nesta evidência.

História das organizações norte-americanas No final da década de 1960 e início da de 1970, um pequeno grupo de anestesiologistas em medicina humana possibilitou a participação de vários futuros diplomados do American College of Veterinary Anesthesiologists (ACVA), o atual American College of Veterinary Anesthesia and Analgesia (ACVAA), em seus programas de treinamento e, assim, que aprendessem sobre o desenvolvimento de novos fármacos e técnicas em anestesia. Entre estes médicos estavam Robert Dripps, da University of Pennsylvania, Arthr Keats, da Baylor University, Mort Shulman e Max Sadolv, da University of Illinois, e Edmond I. Eger, da University of California Medical College. Durante o mesmo período, E. W. Jones (Oklahoma State University) e William Lumb (Colorado State University) fizeram contribuições significativas para o campo da anestesiologia veterinária. Jerry Gillespie deu uma contribuição significativa com seu trabalho sobre a função respiratória de cavalos anestesiados e William Muir relatou os efeitos cardiopulmonares de vários anestésicos em diversas espécies. Apesar da dedicação de muitas faculdades de veterinária e laboratórios de pesquisa na América do Norte, só em 1970 foi feito um grande esforço para organizar veterinários

interessados em anestesiologia como especialistas independentes. Para começar, foi criada a American Society of Veterinary Anesthesia (ASVA), aberta a todos os indivíduos que exercessem a profissão de veterinário e tivessem interesse em anestesiologia veterinária. Ainda em 1970, foi realizado o primeiro encontro da organização, em conjunto com a American Veterinary Medical Association (AVMA), para coordenar os esforços e o interesse de todos que quisessem especializar-se em anestesiologia veterinária. O objetivo primário era aprimorar as técnicas anestésicas e divulgar o conhecimento sempre que possível e onde fosse possível. Charles Short foi eleito o primeiro presidente da nova associação. A ASVA foi designada especialmente para promover a disseminação de informação, independente do treinamento e do embasamento individuais. A maior ênfase foi na escolha de indivíduos para falarem nos encontros da ASVA e de outras instituições científicas e educacionais. À medida que a ASVA se desenvolvia, houve a publicação da sua pesquisa original e subsequentes artigos de revisão. Bruce Heath aceitou a responsabilidade pelos manuscritos submetidos à publicação da ASVA. Em 1971, John Thurmon nomeou um comitê para fundar o ACVA. A AVMA estabeleceu as diretrizes para a escolha de instituições capazes de fornecer o diploma na especialidade. As exigências do comitê para o diploma na especialidade incluíam 10 anos de serviço ativo na especialidade, publicação significativa, treinamento intensivo e atuação como chefe de um programa de anestesiologia ou dedicação da maior parte do tempo na profissão à anestesia ou a alguma área relacionada. Foram designados sete membros da ASVA para diplomar veterinários pelo ACVA de acordo com tais qualificações. Entre 1970 e 1975, os estatutos e regulamentos foram formalizados. Em 1975, o AVMA Council on Education recomendou a aprovação preliminar do ACVA e isso foi confirmado pela AVMA House of Delegates no mesmo ano. Assim o ACVA foi estabelecido oficialmente na América do Norte. Neste processo, a percepção e os esforços de William Lumb e E. Wynn Jones foram importantes. Eles contribuíram muito para o estabelecimento do ACVA pelo seu interesse sincero nos princípios básicos da anestesiologia veterinária. No mesmo período, foram publicados vários textos didáticos sobre o estabelecimento da anestesiologia como uma disciplina e especialidade da medicina veterinária. A primeira edição deste livro, Lumb and Jones’ Veterinary Anesthesia, foi publicada em 1973; em 1974, foi publicado o Clinical Veterinary Anesthesia, de Charles Short, e, em 1971, foi publicado o Textbook of Anesthesia Veterinary, de Larry Soma. Na década de 1970, muitos dos especialistas diplomados criaram programas de residência para treinamento em suas respectivas faculdades. De 1975 a 1980, o ACVA desenvolveu programas de educação contínua, de autoaprimoramento e para exames e certificação de novos especialistas diplomados. Junto com os programas de residência para treinamento, foram sendo criadas normas sobre anestesiologia em diversas universidades

da América do Norte. Em 1980, sob o comando do então presidente Eugene Steffey, foi tentada e conseguida a certificação completa do ACVA pela AVMA. Nas últimas quatro décadas, várias outras instituições promoveram e contribuíram bastante para o avanço da anestesia veterinária, inclusive a Association of Veterinary Anesthetists of Great Britain and Ireland (AVA) e a Veterinary Anesthesia and Surgery Association no Japão. Junto com o ACVA, estas associações foram fundamentais para a organização do primeiro International Congress of Veterinary Anesthesiology, com seu objetivo estabelecido do avanço global no campo da anestesiologia veterinária. Esse congresso foi realizado em Cambridge, na Inglaterra, em 1982, tendo sido repetido a cada três anos, desde então, em vários lugares do mundo e em quase todos os continentes. Ao mesmo tempo, nas últimas décadas do século XX, a anestesiologia veterinária organizada avançou na Europa ocidental. No Reino Unido, os anestesiologistas veterinários criaram a Association of Veterinary Anaesthetists e concederam o diploma de anestesista veterinário àqueles com treinamento especialmente avançado. Por último, o interesse na especialização ficou cada vez mais evidente no Reino Unido e em muitos países europeus, resultando na criação do European College of Veterinary Anesthesiologists (ECVA). Para reconhecer melhor o papel central dos anestesiologistas no sentido de proporcionar o manejo da dor e o aprimoramento, tanto o ECVA como o ACVA em seguida buscaram e conseguiram a aprovação para incorporarem a palavra ‘analgesia’. Assim, as instituições foram renomeadas, como European College of Veterinary Anesthesia and Analgesia (ECVAA) e American College of Veterinary Anesthesia and Analgesia (ACVAA). Atualmente, vários anestesiologistas veterinários são credenciados tanto pelo ACVAA como pelo ECVAA, com ambas as instituições reconhecendo a legitimidade de tal credenciamento, o que permite a residência em programas de treinamento supervisionados pelo ACVAA para qualificar os candidatos ao exame do ECVAA e vice-versa. Para mais informação a respeito da história inicial da anestesia veterinária, o leitor deve consultar outras fontes.11–14 O estabelecimento do ACVAA e do ECVAA ajudou no avanço da anestesia veterinária e do manejo da dor em uma escala global por meio dos esforços de ambas as instituições para promover a pesquisa, gerar conhecimento e aumentar a disseminação via encontros científicos anuais e publicações. O ACVAA e o ECVAA têm sua publicação científica oficial, o Journal of Veterinary Anaesthesia and Analgesia, que também serve como publicação oficial da International Veterinary Academy of Pain Management (IVAPM; Academia Veterinária Internacional do Manejo da Dor). No início dos anos 2000, em um esforço para aprimorar os profissionais interessados na assistência humana, aumentar a confiabilidade do manejo da dor e criar programas educativos continuados para veterinários, a IVAPM concebeu o encontro anual denominado Veterinary Midwest

Anaesthesia and Analgesia Conference (VMAAC) Scientific Meeting. A missão estabelecida da organização era progredir na abordagem multidisciplinar ao manejo da dor na comunidade veterinária ampliada e foi patrocinada por uma parceria acadêmica com a indústria farmacêutica, o Companion Animal Pain Management Consortium (Consórcio para o Manejo da Dor em Animais de Estimação), liderada por Charles Short, do ACVAA (presidente da ASVA original), William Tranquilli e James Gaynor. De forma justificada, o primeiro presidente eleito da IVAPM foi o então presidente do ACVA, Peter Hellyer. É interessante notar que, durante a elaboração deste livro (2014), a atual presidente eleita da IVAPM, Bonnie Wright, continua a representar a legalidade da liderança do ACVAA no campo da analgesia e do manejo da dor em veterinária. Na verdade, o alívio da dor e do sofrimento em animais é uma questão cada vez mais importante e definida na medicina veterinária neste século XXI. Hoje, anestesiologistas acadêmicos e da prática particular, veterinários praticantes, técnicos em veterinária, veterinários dedicados à pesquisa e da indústria, além de cientistas que estudam os animais, estão cada vez mais trabalhando em conjunto nas organizações como o ACVAA, o ECVAA, a IVAPM, a AVA, a AVTA e outras, com objetivos em comum de ampliarem o conhecimento, coordenar programas educativos e avançar nos campos da anestesia, da analgesia e do manejo da dor no âmbito veterinário.

Definição de anestesiologista Em termos amplos, um anestesiologista é alguém com doutorado, reconhecido pelo ACVAA ou pelo ECVAA, e legalmente qualificado para administrar anestésicos e empregar técnicas relacionadas.15 O termo anestesista tem um significado mais variável, porque, em alguns países europeus, ambos os profissionais são equivalentes, mas, na América do Norte e em muitos outros países, anestesista refere-se a quem administra anestesia, sem ser diplomado, possivelmente nem mesmo em medicina ou veterinária. Talvez a maneira mais apropriada de definir um anestesiologista veterinário seja reconhecer o extenso treinamento desse profissional, supervisionado pelo ACVAA ou pelo ECVAA e credenciado de acordo com um exame (i. e., do ACVAA ou do ECVAA) para obtenção do diploma na especialidade de anestesia e analgesia, que consiste em administrar e tratar os riscos em uma ampla variedade de espécies e circunstâncias clínicas.

Primeiros estágios conceituais da anestesiologia Nos primeiros anos da administração de anestesia (éter dietílico) em pacientes humanos e veterinários, a avaliação da profundidade anestésica era uma habilidade ainda a ser

aprendida, considerada mais completamente por indivíduos com muita experiência e a coragem necessária para aprender a partir da tentativa e do erro. John Snow foi o primeiro médico a tentar classificar a profundidade da anestesia observando o paciente.16 Ensinar aos novos anestesistas a quantidade necessária de anestésico a ser administrada requeria a supervisão de alguém experiente. Tal sistema ficou mais evidente em períodos de alta demanda por anestesistas, como ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial. O Dr. Arthur Guedel foi um médico de Indianápolis, Indiana (EUA), que serviu na Primeira Guerra Mundial. Uma de suas tarefas era treinar assistentes hospitalares e enfermeiras a administrarem éter dietílico a soldados feridos. Assim, Guedel estabeleceu diretrizes mediante a elaboração de um gráfico colocado em uma parede, que poderia ser usado por anestesistas para calcular a profundidade anestésica (Tabela 1.1).17 Embora as observações originais de Guedel tenham sido feitas em pacientes humanos anestesiados com éter dietílico, subsequentemente elas foram adaptadas para o uso de outros anestésicos inalatórios, como o halotano. Foram caracterizados quatro estágios progressivos de anestesia, começando com a sua administração inicial e terminando na proximidade da morte. Há três ou quatro subclassificações no estágio 3 (Boxe 1.1). Estes planos anestésicos representam a depressão progressiva do sistema nervoso central, que se pode observar enquanto um paciente está em uma profundidade anestésica de cirurgia. As técnicas anestésicas modernas raras vezes utilizam apenas anestesia inalatória, o que tornou a classificação de Guedel menos confiável. A incorporação de outros fármacos nas técnicas anestésicas balanceadas (p. ex., antimuscarínicos e anestésicos dissociativos) influencia muito as respostas reflexas e autônomas do paciente. Diante disto, passou a ser comum confiar no monitoramento dos parâmetros fisiológicos do paciente, como a pressão arterial, a respiração e o tônus neuromuscular. Atualmente, há grande interesse no uso do monitoramento eletroencefalográfico da atividade do SNC (p. ex., índice biespectral), e sua aplicação clínica é cada vez maior para assegurar a profundidade anestésica adequada em procedimentos cirúrgicos. É interessante notar que uma comparação do índice biespectral com os sinais clássicos de profundidade anestésica de Guedel em pessoas anestesiadas com éter dietílico tem uma correlação relativamente boa (Figura 1.1).18 Apesar disso e da incorporação de muitas modalidades novas de monitoramento na prática diária, o anestesista ainda assim precisa entender a correlação entre alterações nos sinais físicos com a progressão da profundidade anestésica. Portanto, é bem provável que a classificação inicial de Guedel baseada na observação continue a ter relevância.

Classificação da anestesia Os usos diversos da anestesia (na medida em que ela se relaciona com imobilização,

relaxamento muscular e antinocicepção) e as necessidades peculiares de cada espécie, faixa etária e doença exigem o emprego de uma variedade de fármacos, suas associações e métodos. A técnica anestésica costuma ser classificada de acordo com o tipo de fármaco e/ou o método ou a via de administração: • Inalação: gases ou vapores anestésicos são inalados em associação com oxigênio • Injetável: soluções anestésicas são injetadas por via intravenosa, intramuscular e subcutânea. Outras vias injetáveis incluem a intratorácica e a intraperitoneal, ambas geralmente não recomendadas • Anestesia intravenosa total (AIVT), anestesia intravenosa parcial (AIVP) e infusãoalvo controlada (IAC): consistem em técnicas anestésicas em que se utiliza a infusão intravenosa de um ou mais fármacos para produzir um estado anestésico adequado. Existem alguns sistemas de infusão automatizada que permitem o aporte de parâmetros do paciente e a informação farmacocinética sobre fármacos específicos e possibilitam ao anestesiologista estabelecer uma concentração plasmática predeterminada do fármaco (IAC) Tabela 1.1 Características dos estágios de anestesia geral. Estágio da anestesia I

II

III Plano

Característica observada no sistema afetado

Cardiovascular

Pulsoa

Taquicardia

Pressão a

arterial

Hipertensão

1

2

Leve

Médio

progressiva

imperceptível

Normal

Aumenta a

Nível de

hipotensão

choque

Demora

capilar

menos

progressiva

+++

+++

Profundo Fraco ou

1 s ou

de arritmia

4

Bradicardia

Reenchimento

Probabilidade

3

++

+

3 s ou mais

++

++++

Respiratório

Frequência

Irregular ou

Diminuição

Lenta

respiratóriaa

aumentada

progressiva

irregular

Profundidade

Irregular ou

Diminuição

aumentada

progressiva

a

respiratória

Irregular

Cor das mucosas, cor

Normal

Cianose

da pele Ação

Pode ser

Toracoabdominal,

respiratória

mantida

abdominal

Reflexo da tosse Reflexo laríngeo Possibilidade de intubação

++++

++++

Não

+++

Pode vocalizar

+

Diafragmática

Zerada; pode haver suspiro terminal

Zerada

Pálida a esbranquiçada

Zerada

Perdido

Perdido

Sim

Diminuída Gastrintestinal

Salivação

++++

+++

+

a ausente, exceto em

Ausente

ruminantes Reflexo orofaríngeo Probabilidade de vômito

++++

+++

+

+++

+++

+

Refluxo (regurgitação) potencial

Nenhum

Aumenta com o relaxamento

Perdido

Muito pequena

++++

Aumento Timpanismo (rúmen, ceco)

potencial com a

Nenhum

duração da anestesia Normais ou

Ocular

Pupilas

Dilatadas

contraídas,

Agudamente

dilatação

dilatadas

progressiva

Reflexo da córnea

Lacrimação

Reflexo fotomotor Reflexo palpebral

Posição do globo ocular

Diminuição, perda Normal

+++

(em cavalos pode

Ausente

persistir)

Normal

+++

+

Normal

+++

+

Normal

+++

+

Diminui,

Ausente

ausente Diminui,

Ausente

ausente Diminui,

Ausente

ausente

Ventromedial em Normal

Variável

cães e gatos ou central

Em Nistagmo

++++

especial

+

cavalos e vacas

Musculoesquelético

Tônus mandibular

++++

++++

++++

++++

Tônus muscular dos

Diminuído, mínimo

Diminuído,

Perdido

Perdido

Nenhum

membros

mínimo

Tônus muscular

++++

++++

++

Perdido

abdominal

Nervoso

Esfíncteres

Pode haver

Relaxamento

Controle

(anal, vesical)

eliminação

progressivo

perdido

Sensório

+++

+

Perdido

++++

++++

Diminuído

Ausente

++++

++++

+

Nenhuma

Reflexo podálico Reação à manipulação cirúrgica a

A estimulação cirúrgica aumenta a frequência cardíaca, a pressão arterial e a frequência respiratória via respostas

autônomas que persistem no plano 2. Os reflexos vagais decorrentes da tração visceral persistem no plano 3. + a ++++ = nível presente. Boxe 1.1 Estágios anestésicos observados durante anestesia inalatória.

Estágio I. O estágio do movimento voluntário é definido como o que dura desde o início da administração até a perda da consciência. Pode haver alguma analgesia nas fases mais profundas deste estágio. Animais excitados e apreensivos podem debater-se violentamente e prender voluntariamente a respiração por curtos períodos. A liberação de epinefrina causa batimento cardíaco forte e rápido e dilatação pupilar. Salivação é frequente em alguns pacientes, bem como micção e defecação. Com a chegada do estágio II, os animais tornam-se progressivamente atáxicos, perdem a capacidade de ficar em posição quadrupedante e colocam-se em decúbito lateral. Estágio II. O estágio de delirium ou movimento involuntário. À medida que ocorre a depressão do SNC, os pacientes perdem todo o controle voluntário. Por definição, este estágio vai a partir da perda da consciência ao início de um padrão respiratório regular. Como resultado da depressão anestésica do SNC, os reflexos tornam-se mais primitivos e exagerados. Os pacientes reagem aos estímulos externos debatendo-se violentamente, mantendo a respiração, tendo taquipneia e hiperventilação. A liberação contínua de catecolamina causa um batimento cardíaco rápido e

forte, podem ocorrer arritmias e as pupilas ficam bastante dilatadas. Os reflexos ciliares e palpebrais são proeminentes. É comum a ocorrência de nistagmo em equinos. Durante este estágio, os animais podem gemer, chorar, rugir ou relinchar, dependendo da espécie em questão. Em algumas espécies, principalmente ruminantes e gatos, a salivação é abundante; em cães, gatos e caprinos, pode ocorrer vômito. A laringe de gatos e suínos é muito sensível neste estágio, e sua estimulação pode causar espasmos laríngeos. Estágio III. O estágio de anestesia cirúrgica caracteriza-se por inconsciência, com depressão progressiva dos reflexos. Sobrevém relaxamento muscular, e a ventilação torna-se lenta e regular. Os reflexos do vômito e da deglutição estão ausentes. Em seres humanos, este estágio foi dividido em 1 a 4 planos, para maior diferenciação. Outros preferem a classificação mais simples de leve, médio e profundo. A anestesia leve persiste até que o movimento do globo ocular cesse. A média caracteriza-se por paralisia intercostal progressiva, e a profunda por respiração diafragmática. Uma profundidade média de inconsciência ou anestesia é considerada tradicionalmente um plano leve de anestesia cirúrgica (estágio III, plano 2) e caracteriza-se por respiração e frequência de pulso estáveis, abolição dos reflexos laríngeos, reflexo palpebral quase imperceptível, reflexo corneano forte, relaxamento muscular e analgesia adequados para a maioria dos procedimentos cirúrgicos. A anestesia cirúrgica profunda (estágio III, plano 2) caracteriza-se por diminuição da função dos músculos intercostais e do volume corrente, aumento da frequência respiratória, relaxamento muscular profundo, respiração diafragmática, reflexo corneano fraco e pupilas centralizadas e dilatadas. Estágio IV. Depressão extrema do SNC. A respiração cessa e o coração continua a bater apenas por pouco tempo. A pressão arterial fica no nível de choque, o reenchimento capilar das mucosas visíveis é acentuadamente demorado e as pupilas ficam bastante dilatadas. A morte sobrevém rapidamente, a menos que sejam instituídas as medidas para a reanimação imediata. Se a administração do anestésico for interrompida e a respiração artificial for iniciada antes do colapso miocárdico, estes efeitos podem ser superados e os pacientes passarão de novo pelos vários estágios na ordem inversa.

Figura 1.1 Valores do índice biespectral (IBE) nos vários estágios da anestesia com éter (média ± DP). Fonte: referência 18. Reproduzida, com autorização, de Lippincott Williams & Wilkins.









Oral ou retal: são vias usadas comumente para anestésicos e analgésicos líquidos ou na forma de supositórios. Em geral, há uma variabilidade maior interespécie e entre os indivíduos da mesma espécie na relação entre dose e resposta de fármacos administrados por via oral, em decorrência de diferenças na absorção e no metabolismo hepático de primeira passagem Local e de condução: a aplicação do anestésico é tópica, ele é injetado localmente ou em torno do local da cirurgia (bloqueio de campo) ou de um grande tronco nervoso que supre uma região específica (bloqueio de condução ou nervoso regional). No último caso, a injeção pode ser perineural (bloqueio nervoso), ou no espaço epidural ou no subaracnoide Eletronarcose, eletroanestesia ou eletrossono: são passadas correntes elétricas através do cérebro para induzir narcose profunda. Embora tenha tido sucesso em estudos, esta forma de anestesia nunca teve popularidade e raramente é usada na prática veterinária. Não se deve confundir eletronarcose com a prática desumana da eletroimobilização Estimulação nervosa elétrica transcutânea (TENS, TNS ou TES): a analgesia local é

• •





induzida por estimulação elétrica de baixa intensidade e alta frequência da pele, por meio de eletrodos superficiais. Tem muitas similaridades com a eletroacupuntura Hipnose: estado semelhante ao transe, não induzido por fármaco, às vezes empregado em coelhos e aves Anestesia dissociativa: estado de sedação profunda em que o paciente fica consciente, coopera e tem lembrança limitada ou nenhuma (amnésia). É uma técnica popular para anestesia em pacientes ambulatoriais, na medicina humana, para procedimentos diagnósticos e cirurgias de pequeno porte, quando associada a anestésicos locais e analgésicos adicionais Acupuntura: um sistema de tratamento em que se usam agulhas finas para induzir analgesia. Outras modalidades de acupuntura de estimulação têm sido utilizadas, inclusive mecânica e elétrica Hipotermia: a temperatura corporal é diminuída, em um local ou todo o corpo, para suplementar a insensibilidade e diminuir a necessidade de anestésico, bem como reduzir as exigências metabólicas. É usada primordialmente em neonatos ou pacientes submetidos à cirurgia cardiovascular.

Considerações ambientais As preocupações quanto aos efeitos adversos potenciais associados ao uso de anestésicos se enquadram em três categorias gerais. A primeira consiste nas reações adversas do paciente ao fármaco, que podem ser classificadas em sete tipos: relacionadas com a dose (aumentadas ou do tipo A), sem relação com a dose (bizarras ou do tipo B), relacionadas com a dose e o tempo (crônicas ou do tipo C), relacionadas com o tempo (tardias ou demoradas, ou do tipo D, do inglês delayed), de abstinência (término ou encerramento [do inglês end] do uso ou do tipo E), falha do tratamento (falha ou do tipo F) e genéticas (do tipo G).19 As reações adversas específicas dos pacientes são revistas em outras partes deste texto. Um segundo tipo de efeito adverso acomete os profissionais de veterinária sadios expostos aos anestésicos e gases durante a realização de seu trabalho. A exposição aguda por penetração acidental de uma agulha ou respingos de fármacos é sempre um risco. Muitos empregadores têm padrões de procedimentos operacionais que instruem os funcionários a limitarem a exposição e como proceder se ela ocorrer. A exposição crônica em um local de trabalho a níveis baixos de anestésicos inalatórios foi uma preocupação desde que seu uso começou, e, embora bastante estudada, ainda há questões sobre o risco relativo de toxicidade, como infertilidade, aborto, câncer e outros problemas crônicos de saúde. Parte da dificuldade para a determinação dos níveis críticos de exposição tem

relação com a incidência aparentemente baixa de efeitos adversos e o período potencialmente longo entre a exposição e a manifestação da toxicidade. Em geral, a questão é abordada em grandes estudos epidemiológicos de prestadores de serviços de saúde que administram anestésicos. Isto implica muitos fatores passíveis de confusão, como a idade do profissional de saúde, os agentes usados, problemas de saúde coexistentes e a estimativa da exposição real do profissional, o que pode dificultar a interpretação dos resultados e levar a generalizações. A exposição ocupacional a anestésicos inalatórios é discutida no Capítulo 16, justamente dedicado a eles. O terceiro tipo de efeito adverso dos anestésicos é ambiental. Em termos históricos, durante o desenvolvimento de fármacos e o uso clínico de agentes anestésicos, não foram considerados os recursos consumidos para produzir os fármacos, nem sua destinação final, uma vez eliminados do paciente. Dos anestésicos inalatórios em uso clínico, o desfluorano é responsável pela maior emissão de gases (dióxido de carbono e compostos halogenados) do efeito estufa durante seu ciclo biológico, correspondendo a aproximadamente 15 vezes a de isofluorano e 20 vezes a de sevofluorano em uma base de concentração alveolar mínima (MAC) por hora. O uso simultâneo de óxido nitroso para facilitar a liberação de anestésicos inalatórios aumenta ainda mais as emissões. O impacto dos anestésicos inalatórios contemporâneos sobre a depleção de ozônio também foi estudado.20 Embora estes agentes tenham algum potencial de diminuir a camada de ozônio, sua contribuição relativa é baixa e o impacto sobre o aquecimento global deste mecanismo é mínimo. Com relação a todos os anestésicos inalatórios, sua liberação final como resíduos de gases anestésicos na atmosfera é o principal fator contribuinte para sua participação em efeito estufa e aquecimento global potencial. O impacto do propofol sobre o efeito estufa é muito menor, de quase quatro ordens de magnitude, do que o do desfluorano ou o do óxido nitroso. A emissão de gases do efeito estufa associada ao propofol e a muitos outros anestésicos injetáveis tem relação primária com sua produção e o consumo de combustíveis fósseis necessários para a fabricação e a liberação desses fármacos.21,22

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Avaliação do risco anestésico Visão geral | Avaliação pré-operatória do risco para o animal Morbidade e mortalidade Morbidade anestésica em pequenos animais Morbidade anestésica em grandes animais Estudos sobre mortalidade Consentimento informado Referências bibliográficas

Avaliação do risco anestésico A avaliação peroperatória do risco anestésico é um exercício valioso para minimizar as complicações e otimizar a segurança da anestesia. Foram publicados vários estudos sobre a morbidade e a mortalidade anestésicas em ambos, pequenos e grandes animais, e, com base nas evidências obtidas a partir deles, o melhor reconhecimento dos riscos anestésicos e dos animais que precisam de mais cuidados e de cuidado pré-operatório ajudaria a aprimorar os padrões da anestesia veterinária e o desfecho para o paciente.

■ Visão geral | Avaliação pré-operatória do risco para o animal Avaliação da saúde do animal A avaliação pré-operatória do estado de saúde do animal é valiosa para identificar os riscos anestésicos, as prioridades no manejo e alertar apropriadamente os clientes (proprietários dos animais) antes da anestesia e da cirurgia. Tem sido constante a associação do estado de saúde à morte durante anestesia em seres humanos e também é comum no caso de animais,

com relação à anestesia veterinária. A gradação1,2 crescente atribuída pela American Society of Anethesiologists (ASA) (Tabela 2.1) foi associada a um risco maior de morte em vários estudos feitos com pequenos animais anestesiados,3–12 equinos e seres humanos.15–34 Os agentes anestésicos causam depressão cardiopulmonar, e é provável que a presença de uma patologia preexistente predisponha a um distúrbio fisiológico maior induzido pela anestesia.35 Os distúrbios dos principais sistemas do corpo tornam o paciente menos tolerante à depressão fisiológica induzida pela anestesia. A existência prévia de uma patologia cardiopulmonar é particularmente relevante no período pré-operatório imediato, pois é provável que a mortalidade associada à anestesia envolva comprometimento respiratório ou cardiovascular, e a maioria dos anestésicos deprime um ou ambos os sistemas nos níveis clínicos de anestesia.35 Anormalidades hematológicas e bioquímicas também podem ser uma consideração importante. Em particular, a anemia reduz a capacidade de oxigenação e predispõe à hipoxia, e foi aventada a teoria de que a hipoproteinemia aumenta a resposta do paciente aos fármacos que se ligam com maior afinidade à proteína, o que resulta em sobredose relativa.35 Doença renal também é importante, em particular se houver desidratação ou uremia, pois em tais condições o sistema renal terá menor tolerância à anestesia e o paciente pode ser mais sensível a alguns anestésicos e fármacos peroperatórios, como antiinflamatórios não esteroides. Doença neurológica pode ser relevante quanto à ocorrência de convulsões no pós-operatório, maior sensibilidade aos anestésicos e quando a função cardiopulmonar está afetada, por exemplo, uma patologia medular pode deprimir a ventilação e a função cardiovascular. Além disso, doenças hepáticas e endócrinas podem influenciar a resposta à anestesia, sendo particularmente relevantes o diabetes melito e alterações celulares nas concentrações de glicose.36 Portanto, alguma forma de avaliação das condições físicas de saúde é uma consideração pré-anestésica importante. A gradação da ASA1,2 foi descrita com mais frequência. No entanto, a possibilidade de repetição e a concordância entre observadores de tais sistemas de gradação foram questionadas e a evidência sugere que há pouca concordância entre observadores quanto à classificação da saúde da ASA na anestesia veterinária.37 Há outros sistemas de avaliação na medicina humana, incluindo o Acute Physiology and Chronic Health Evaluation (APACHE) e o Physiological and Operative Severity Score for the enUmeration of Mortality and Morbidity (POSSUM), e, na prática pediátrica, o escore Neurological, Airway, Respiratory, Cardiovascular and Other (NARCO), todos tendo sido bem observados em predizer o risco peroperatório.38–40 Entretanto, estes sistemas são complexos, demorados e ainda precisam ser avaliados quanto à concordância entre observadores no contexto veterinário. Portanto, até o momento, parece haver pouco

consenso quanto ao método ideal de avaliação das condições de saúde do paciente para a classificação consistente e eficiente dos observadores, devendo-se ter cuidado ao interpretar as avaliações individuais de saúde. Apesar disso, há muitas evidências mostrando que pacientes com doenças são mais propensos a morrer no peroperatório e, por isso, algum tipo de avaliação de suas condições pré-operatórias é recomendável para distinguir os pacientes com doenças dos sadios, identificar aqueles em maior risco e tratá-los da maneira apropriada, para tentar minimizar o risco antes, durante e após a anestesia. Tabela 2.1 Classificação do estado físico.a Categoria

Condições físicas

Exemplos possíveis da categoria Nenhuma doença discernível; animais a serem

1

Pacientes normalmente saudáveis

submetidos a ovário-histerectomia, otectomia, caudectomia ou castração Tumor de pele, fratura sem choque, hérnia sem

2

Pacientes com doença sistêmica leve

complicação, criptorquidectomia, infecção localizada ou doença cardíaca compensada

3

4

5

Pacientes com doença sistêmica grave

Pacientes com doença sistêmica grave que é uma ameaça constante à vida

Febre, desidratação, anemia, caquexia ou hipovolemia moderada Uremia, toxemia, desidratação e hipovolemia graves, anemia, descompensação cardíaca, emaciação ou febre alta

Pacientes moribundos os quais não se espera que

Choque extremo e desidratação, malignidade

sobrevivam 1 dia, com ou sem a operação

terminal ou infecção, ou traumatismo grave

a

Esta classificação é a mesma adotada pela American Society of Anesthesiologists.

Exame de sangue pré-anestésico Ante o fato de que a disfunção orgânica e várias condições patológicas, como anemia ou hipoproteinemia, podem contribuir para maior morbidade ou mortalidade anestésica, o sensato seria fazer todo o esforço possível para detectá-las antes de uma anestesia geral. Por isso, o exame hematológico pré-anestésico de rotina é recomendado por muitos veterinários e, na verdade, por alguns especialistas em anestesia. Contudo, embora não haja dúvida de que as análises bioquímicas e hematológicas prévias tenham valor definitivo em

certos grupos de animais, continua a ser questionável se o seu uso se justifica em todos os animais, em particular aqueles saudáveis que serão submetidos a procedimentos eletivos. Uma pesquisa na internet sobre a triagem sanguínea pré-anestésica de animais (Preanesthetic blood screening in animals, http://www.google.com, acessada em agosto de 2013) resultou em mais de seis milhões de “dicas”, com uma proporção substancial parecendo ser de veterinários, detalhando suas razões e preços para a realização de tal procedimento; é interessante o fato de que, no fim da pesquisa, praticamente não surgiram artigos científicos sobre a prática. Além disso, como é possível encontrar muita informação na internet, muitos dos comentários relevantes sobre o assunto parecem ter sido escritos por pessoas aparentemente sem base científica ou credenciais para discuti-lo, sendo a maioria de fóruns de proprietários de animais de estimação. Embora seja possível que esses grupos de discussão não tenham base científica ou clínica genuína, é quase certo que ajudam a perpetuar a ‘necessidade’ de um exame de sangue pré-anestésico em todos os casos; porém, como muitos veterinários também recomendam seu uso rotineiro, é óbvio que tudo não pode depender das percepções dos proprietários dos animais. Sendo assim, há, realmente, uma justificativa racional para a realização de exames pré-anestésicos bioquímicos e hematológicos? Há numerosos estudos sobre anestesia em seres humanos que questionam a necessidade de exames laboratoriais pré-anestésicos em pacientes sadios,41–43 cada um demonstrando que – no caso de indivíduos sem anormalidades demonstráveis à anamnese e ao exame clínico – a triagem sanguínea prévia não parece diminuir a ocorrência de complicações perianestésicas. O UK National Institute for Health and Care Excellence (NICE) obteve evidência de uma variedade de fontes e, em seguida, elaborou recomendações para especialistas da medicina humana em diversas intervenções clínicas e cirúrgicas. Quanto ao exame sanguíneo pré-anestésico, o NICE subdivide as recomendações com base na idade do paciente e no ‘nível’ da cirurgia à qual ele será submetido, com o sistema de gradação indo de 1 a 4 (do menos para o mais invasivo), mas, no caso de cirurgia neurológica ou cardiovascular, são usados outros sistemas. Há uma infinidade de cirurgias diferentes em cada gradação. Exemplos de procedimentos do grau 1 incluem cirurgia na parte externa do nariz, no septo nasal ou no prepúcio; os procedimentos do grau 2 incluem tonsilectomia ou reparo de hérnia inguinal; do grau 3, mastectomia total ou histerectomia, e os do grau 4 abrangem substituição total do quadril ou transplante renal.44 Com base neste sistema, o NICE recomenda um hemograma completo apenas para pacientes com mais de 60 anos de idade a serem submetidos a procedimentos cirúrgicos de médio a grande porte (gradação cirúrgica ≥ 2), todos os adultos a serem submetidos a cirurgias de grande porte (gradação cirúrgica ≥ 3) ou aqueles com doença renal grave.44 Similarmente, o perfil bioquímico (ureia, creatinina e eletrólitos) só é recomendado para pacientes com mais de 60 anos de

idade a serem submetidos a procedimentos cirúrgicos de grau ≥ 3, todos os adultos a serem submetidos a cirurgias de grau 4 ou na vigência de qualquer doença renal ou cardiovascular grave.44 As recomendações para a avaliação sanguínea pré-anestésica são ainda mais restritas para pacientes humanos pediátricos (com menos de 16 anos de idade). Se o indivíduo estiver na categoria ASA 1, nenhum exame pré-anestésico rotineiro é recomendado, qualquer que seja o nível da cirurgia a ser realizada, sendo as únicas exceções se a criança for submetida a procedimentos neurológicos ou cardiovasculares.44 Surpreendentemente, não parecem ter sido publicadas diretrizes que sirvam como padrão para crianças em categorias ASA ≥ 2. É provável que a discrepância entre as recomendações para a triagem de pacientes pediátricos humanos e adultos tenha relação com a maior incidência de comorbidades nos últimos. Em decorrência das recomendações do NICE, as conclusões para diretrizes da Association of Anaesthetists of Great Britain and Ireland (AAGBI)45 para a anestesia humana foram de que “as investigações pré-operatórias rotineiras são dispendiosas, trabalhosas e de valor questionável, em especial no sentido de contribuírem para morbidade ou causar adiamentos em decorrência de resultados espúrios”. Junto à questão de resultados errôneos que possam ter impacto sobre a eficiência em determinado caso, também é importante lembrar que as faixas de referência estabelecidas para a maioria dos exames laboratoriais incorporam apenas aproximadamente 80% da população; isto é, cerca de um em cinco animais em perfeita saúde terá resultados laboratoriais fora dos parâmetros ‘normais’, o que pode levar então a mais investigações desnecessárias, além do adiamento do procedimento planejado. Por isso, é importante interpretar com cuidado os resultados dos exames e vê-los como parte da avaliação geral do paciente. A AAGBI também considera que a anamnese e o exame realizados por um profissional bem treinado e competente constituem a maneira mais eficiente e acurada para se detectar morbidade significativa logo de início: “portanto, é importante que, sempre que a avaliação sanguínea pré-anestésica for realizada, ela seja vista como complementar a um exame clínico abrangente, e não uma alternativa”. Embora sem dúvida seja este o caso tanto na anestesia veterinária como na humana, os resultados de estudos em pessoas com relação à avaliação sanguínea pré-anestésica de pacientes saudáveis podem não ser diretamente aplicáveis a animais, porque a maioria dos seres humanos é cognitiva e verbal, capaz de falar sobre seus problemas de saúde, enquanto os clínicos veterinários só podem obter informação relevante dos proprietários de seus pacientes, o que pode resultar na não identificação de detalhes importantes. Portanto, é possível a viabilidade de se detectar uma incidência maior de anormalidades com a triagem pré-anestésica de animais do que a relatada em seres humanos.

Ante a opinião de consenso de que na anestesia humana a triagem sanguínea préanestésica só parece justificável para pacientes “doentes”, e que indivíduos sadios submetidos a procedimentos eletivos não se beneficiam de tal prática, quais as recomendações para a anestesia veterinária? Parece que há pelo menos três estudos sobre a validade da triagem sanguínea pré-anestésica rotineira em animais. Toews e Campbell46 fizeram o hemograma completo em 102 equinos submetidos à criptorquidectomia e, então, determinaram se alguma anormalidade detectada poderia ter impacto no risco de complicações cirúrgicas. Eles verificaram que 55 animais tinham resultados fora dos valores de referência pelo menos para um parâmetro hematológico, mas não houve correlação entre esses valores e a probabilidade de complicações cirúrgicas intra ou pósoperatórias, nem tais anormalidades resultaram em alterações no manejo dos pacientes. Alef et al.47 analisaram os resultados de mais de 1.500 cães submetidos a anestesia na University of Leipzig e relataram que, se nenhum problema potencial fosse identificado na anamnese ou no exame clínico do animal, “as alterações reveladas pela triagem préoperatória em geral tinham pouca relevância clínica e não impunham modificações importantes na técnica anestésica”. Portanto, eles concluíram ser improvável que a triagem sanguínea pré-anestésica acrescente informação importante na maioria dos casos. No entanto, o mesmo estudo também revelou que, dos cães em que a anamnese e o exame clínico não tiveram resultados normais e foram submetidos a exames laboratoriais (equivalente a 84% dos cães recrutados), 8% demonstraram anormalidades bioquímicas ou hematológicas que os teriam classificado em um grau ASA mais alto, mesmo que isto não alterasse necessariamente o protocolo anestésico. Além disso, também identificaram que a cirurgia teria sido adiada por causa dos achados laboratoriais em 0,8% dos cães cuja avaliação sanguínea pré-anestésica em geral não seria realizada, enquanto 1,5% teria recebido tratamento pré-anestésico adicional. Embora os autores tenham concluído que em apenas 0,2% dos cães no estudo teria sido necessária alguma modificação no protocolo anestésico proposto por causa dos resultados bioquímicos ou hematológicos, a dedução de que uma patologia não diagnosticada pode ser detectada antes da cirurgia graças à triagem “rotineira” pode ter implicações no sentido de o proprietário decidir pela anestesia/cirurgia e também pode alterar o prognóstico esperado para o animal. Portanto, ainda que os exames bioquímicos e hematológicos pré-anestésicos na verdade possam não alterar a anestesia subsequente na maioria dos animais, podem ser um fator decisivo para a realização do procedimento. Como a idade avançada é um componente que tem impacto sobre as recomendações do NICE a respeito da avaliação sanguínea pré-anestésica em seres humanos, seria útil saber se há maior probabilidade de serem detectados resultados anormais no mesmo grupo de pacientes na anestesia veterinária, bem como qualquer impacto potencial que isto possa ter.

Joubert48 avaliou se as análises hematológicas e bioquímicas tiveram algum valor em cães na faixa etária geriátrica (com mais de 7 anos de idade) que seriam submetidos a anestesia. Dos 101 cães recrutados para tal estudo, foram feitos 30 novos diagnósticos (p. ex., neoplasia, hiperadrenocorticismo) com base na amostragem sanguínea, com 13 animais não sendo submetidos à anestesia geral por causa de tais diagnósticos. Entretanto, a similaridade da conclusão desse estudo com o de Alef et al.47 sugeriu que, embora a avaliação pré-anestésica tenha revelado a presença de doença subclínica em quase 30% dos cães estudados, e que a triagem de pacientes geriátricos é importante, “o valor da triagem antes da anestesia talvez seja mais questionável em termos de prática anestésica, mas é um momento apropriado para se fazer tal avaliação”. Em outras palavras, embora os exames de sangue pré-anestésicos possam ser válidos para se descobrir patologia não diagnosticada em pacientes geriátricos, há pouca evidência de que o problema detectado realmente teria impacto sobre o manejo após a anestesia ou o desfecho geral dela. Contudo, este estudo identificou que, em mais de 10% dos cães, a anestesia foi cancelada exclusivamente por causa dos achados à triagem sanguínea pré-anestésica, o que, evidentemente, é significativo. É interessante notar que, em contraste com estudos prévios, o trabalho do Confidential Enquire into Perioperative Small Animal Fatalities (CEPSAF) revelou redução no risco quando a triagem sanguínea pré-operatória foi feita em pacientes classificados nos graus mais elevados da ASA. Tal estudo, realizado no Reino Unido entre 2002 e 2004, foi multicêntrico, envolveu mais de 100 procedimentos e dados de mais de 200.000 cães e gatos.49 Ao serem analisados os fatores de risco de morte anestésica em cães doentes (ASA 3 a 5), a avaliação sanguínea pré-operatória foi associada a uma redução na ocorrência de óbitos, em particular nos cães das categorias ASA 4 a 5.50 Tal associação não foi detectada nas análises globais em que cães das categorias 1 a 5 da ASA foram considerados em conjunto ou em gatos, mas sugere que o perfil bioquímico e a hematologia no préoperatório tendem a ser mais valiosos em animais doentes com indicação para anestesia. Portanto, com base na evidência da anestesia em seres humanos, e em um número menor de estudos veterinários publicados, o benefício da triagem bioquímica ou hematológica de animais aparentemente saudáveis (ASA 1) antes da anestesia parece insignificante em termos da redução do risco ou de alteração do protocolo anestésico; no entanto, como uma porcentagem significativa de animais pode ter o procedimento cancelado por causa dos resultados destes exames (graças a um prognóstico desfavorável ou à necessidade de tratamento adicional antes da anestesia), isto pode contrabalançar o argumento anterior. Em termos gerais, é provável que a necessidade de triagem sanguínea pré-anestésica em animais classificados na categoria ASA 1 continue uma questão discutível, com argumentação válida tanto a favor como contra.

Contudo, é provável que a situação em animais na categoria ASA 2 ou maior seja mais definida, com os estudos veterinários publicados justificando de alguma forma a validade da triagem pré-anestésica, no sentido de alterar a conduta e o desfecho da anestesia. Junto com o impacto (ou sua ausência) que a triagem pré-anestésica possa ter na conduta subsequente da anestesia e no desfecho final em pacientes veterinários, talvez haja outro fator que possa requerer consideração, ou seja, o potencial de litígio jurídico. Parece que um número cada vez maior de clientes quer (às vezes acima de tudo) “colocar o dedo na ferida” do veterinário com relação à anestesia, mesmo que em muitos casos isto seja totalmente injustificado. Daí a razão genuína de muitos veterinários fazerem a triagem préanestésica rotineira para “se protegerem”, não realmente para verificar a adequação do manejo anestésico e alterá-lo conforme necessário se forem detectadas anormalidades. É impossível prever o que pode acontecer em termos legais no caso de um animal sadio submetido a um procedimento eletivo morrer durante a anestesia quando não tiver sido feita triagem prévia alguma; porém, de acordo com as recomendações para a anestesia em seres humanos e a ausência de evidência de qualquer benefício nos poucos estudos veterinários realizados, parece difícil afirmar que a triagem bioquímica ou hematológica pré-anestésica seja um padrão básico de cuidados. Como há uma base de evidência mais limitada para animais “doentes”, pode-se considerar recomendável fazer a triagem préanestésica em pacientes na categoria ASA 2 ou maior, tanto como um padrão de assistência como para evitar problemas legais.

Morbidade e mortalidade A ocorrência de complicações não fatais é mais frequente que eventos mortais, embora tenham sido documentadas com menos frequência na literatura veterinária. Os riscos relatados de morbidade para pequenos animais variam de 2 a 10%.4,5,10,51 Sabe-se da dificuldade de assegurar a detecção e o registro consistentes de eventos mórbidos no contexto da prática anestésica em pequenos e grandes animais.3,4,52,53 Em pequenos animais, os padrões de monitoramento da anestesia em geral são superficiais54–56 e, a menos que uma complicação resulte em distúrbio óbvio no paciente, podem passar despercebidos. Assim, ao considerar complicações mórbidas, só serão discutidos aqui eventos importantes, mais prováveis de serem observados de maneira consistente e que poderiam contribuir para um grande impacto sobre o paciente (além de sua morte).

■ Morbidade anestésica em pequenos animais Estudos sobre a morbidade anestésica em pequenos animais são realizados com maior frequência em hospitais de faculdades de veterinária, havendo poucos relatos com base na

prática primária que também relatem complicações não fatais importantes.3–5,10,51,56,57 As condições mais descritas incluem complicações respiratórias, cardiovasculares, renais, gastrintestinais, aquelas relativas à termorregulação e neurológicas. Foram observadas complicações respiratórias em 0,54% de cães e 0,34% de gatos em um estudo feito por veterinários em Ontário, no Canadá, que incluíram depressão respiratória ou apneia, angústia respiratória e dificuldade à intubação (embora suas definições não tenham sido estabelecidas).4 Em um hospital veterinário de uma faculdade, foram observadas complicações respiratórias semelhantes, mas com maior frequência. Hipoventilação e hipocapnia (definidas como pressão parcial de dióxido de carbono arterial ou volume corrente de dióxido de carbono > 55 mmHg) foram relatadas em 1,3% e em 1 de 683 cães e gatos submetidos a anestesia, respectivamente, e hipoxemia (pressão parcial de oxigênio arterial < 60 mmHg ou saturação arterial de oxigênio na hemoglobina < 90%) foi informada em 0,5% dos cães, e, ocasionalmente, também se observou comprometimento de via respiratória.51 Mais recentemente, em um hospital-escola veterinário na Espanha, foram observadas hipoventilação (definida como ventilação minuto < 100 mℓ/kg/min) em mais de 60% dos cães anestesiados e hipoxemia (definida como uma SpO2 < 90%) em 16% deles.57 O comprometimento cardiovascular em pequenos animais incluiu o desenvolvimento de arritmias cardíacas, notavelmente bradicardia, em 0,62 e 0,14% de cães a gatos anestesiados em um contexto de prática primária, embora a última fosse classificada como < 60 bpm e irregular ou < 50 bpm e regular, tanto para cães como para gatos.4 Em contraste, no contexto de um hospital de ensino, as complicações cardiovasculares registradas com maior frequência foram hipotensão (definida como uma pressão arterial sistólica < 80 mmHg ou pressão arterial média < 60 mmHg, e observada em 7% de cães e 8,5% de gatos) e arritmias cardíacas (observadas em 2,5% de cães e 1,8% de gatos).51 Hosgood e Scholl5,10 relataram níveis similares de arritmias em um hospital de ensino, com 4% de cães e 3,6% de gatos exibindo arritmias cardíacas. As arritmias registradas incluíram contrações ventriculares prematuras, síndrome sinusal, bloqueio cardíaco de segundo grau e taquicardia ventricular. Bradicardia (frequência cardíaca < 50 bpm) foi relatada em aproximadamente 36% dos cães anestesiados em um hospital-escola veterinário na Espanha e hipotensão (pressão arterial média < 60 mmHg ou pressão arterial sistólica < 90 mmHg) em quase 38%.57 Regurgitação foi a complicação gastrintestinal documentada com mais frequência. O risco de regurgitação relatado em cães sem doença predisponente preexistente de alguns estudos ficou entre 0,42 e 0,74%,58–60 embora outro relato tenha documentado um índice bem maior (5,5%).61 É provável que a variação na frequência entre estes estudos reflita diferenças nos procedimentos realizados, medicação pré-anestésica, anestésicos e as doses usadas, bem como as populações de cães estudadas. O risco de refluxo gastresofágico, que

pode resultar em lesão substancial da mucosa esofágica, era muito maior do que 16 a 17% e chegou até a 27 a 60%, mais uma vez dependendo dos animais estudados e dos anestésicos administrados, sugerindo que o risco de lesão da mucosa possa ser muito maior do que a proporção de pacientes em que se observa refluxo.58,59,61,62 A hipotermia, quando monitorada, foi uma complicação particularmente comum. Em um estudo feito em um hospital veterinário de ensino, 85% dos cães tiveram temperatura registrada no peroperatório inferior a 37,3°C durante ou após a anestesia.5,10 Trabalho recente em um hospital veterinário universitário na Espanha revelou hipotermia peroperatória em mais de 70% dos gatos e 32% dos cães (temperatura corporal < 36,5°C).63,64 Também foi documentada recuperação insatisfatória, em geral registrada como demora na recuperação da consciência, tendo sido observada em 0,14 a 0,18% dos cães e gatos anestesiados em um estudo.4 Um número menor de cães e gatos apresentou complicações que incluíram excitação durante a recuperação, colapso, hipotermia prolongada, redução da consciência após uma recuperação aparentemente normal e insuficiência renal.4 Além disso, foram publicados relatos de casos esporádicos de cegueira peroperatória, mas há dados limitados sobre a frequência desta complicação com relação ao número de animais anestesiados.65,66 É interessante notar que 16 de 20 gatos observados com cegueira cortical pós-operatória estavam usando um abre-boca, embora os dados relativos ao uso de tal dispositivo em geral não estejam disponíveis, o que limita a capacidade de se concluir se há realmente uma associação entre o uso do abre-boca ou de algum procedimento e o desenvolvimento de cegueira.65

■ Morbidade anestésica em grandes animais Foi relatada uma variedade de complicações não fatais, embora a informação sobre sua frequência nas populações de equinos em geral seja limitada. O comprometimento cardiovascular, conforme relatado na anestesia em pequenos animais, é uma consideração importante na anestesia em equinos. Foram descritas hipotensão, bradi e taquiarritmias. Em particular, também houve relatos de bloqueio atrioventricular de segundo grau, fibrilação atrial e contrações ventriculares prematuras.67 As complicações mórbidas respiratórias principais foram hipoventilação, hipercapnia e hipoxemia, relatadas como complicações potenciais da anestesia em equinos.67,68 Em contraste com a anestesia em pequenos animais, os equinos parecem demonstrar uma ampla variedade de complicações pós-operatórias, incluindo fraturas e lesão de tecido mole, miopatia, neuropatia e mielopatia, muitas vezes resultando em morte ou eutanásia.67 Há dados limitados sobre a frequência destes eventos quando não fatais, embora a evidência destas complicações que resultam em mortalidade ressalte sua importância.

Foram relatadas fraturas de maneira intermitente e, em geral, resultaram em eutanásia. No Confidential Enquire into Perioperative Equine Fatalities (CEPEF), um estudo prospectivo multicêntrico sobre as complicações da anestesia em equinos, estimou-se que as fraturas foram a causa de 25% das mortes por anestesia, 7% das miopatias e 5,5% das complicações no SNC.53 De maneira semelhante, em um estudo unicêntrico feito no Kentucky (EUA), as fraturas foram a causa de 17% das mortes ou eutanásias e 7% de neuropatias e miopatias.69 Outras complicações relatadas incluíram cólica pós-anestésica, que, em um estudo multicêntrico feito no Reino Unido, foi estimada em aproximadamente 5% de todos os equinos anestesiados.70

■ Estudos sobre mortalidade Fatalidades anestésicas em pequenos animais Riscos de morte por anestesia A mortalidade, em contraste com a morbidade, foi observada com mais consistência e relatada de maneira extensa na literatura veterinária. Na anestesia em pequenos animais, o risco de morte foi documentado nos últimos 50 anos71 e as tendências para sua redução, ao longo do tempo, têm sido relatadas (Tabela 2.2). Estudos feitos em centros de referência e universidades em geral relataram riscos maiores de mortes por causa da natureza de seus pacientes e dos procedimentos, enquanto os estudos realizados por veterinários particulares tiveram uma tendência a refletir populações mais sadias e procedimentos mais simples. A comparação direta de riscos de morte entre estudos foi limitada por diversos fatores, inclusive variações nas definições de estudos de caso, populações estudadas e procedimentos realizados. Tabela 2.2 Resumo dos riscos de morte anestésica em cães e gatos publicados em estudos de veterinários privados e instituições. Risco de morte anestésica (%) Localização [referência]

Ano

Âmbito

Cães

Gatos

Angell Memorial AH, Boston [72]

1946–1950

Institucional

0,26

0,36

CSU, Colorado [73]

1955–1957

Institucional

1,08

1,79

Wheatridge AH, Colorado [73]

1960–1969

Institucional

0,23

0,40

Univ. Missouri, VH [73]

1968–1969

Institucional

0,8

0,53

CSU, Colorado [74]

1979–1981

Institucional

0,43

0,26

CSU, Colorado [51]

1993–1994

Institucional

0,43

0,35

Estado da Louisiana [5, 10]

1995–1996

Institucional

1,49

5,80

RVC, Londres [6]

1999–2002

Institucional

0,58



Escócia [75]

1975

Privado



0,31

Vermont [76]

1989

Privado

0,11

0,06

Reino Unido [3]

1984–1986

Privado

0,23

0,29

Ontário, Canadá [4]

1993

Privado

0,11

0,10

0,13 em Finlândia [77]

1993

Privado

pequenos animais

África do Sul [56]

1999

Privado

Reino Unido [7]

2002–2004

Privado

Espanha [11]

2007–2008

Privado

França [12]

2008–2010

Privado

0,08 em cães e gatos 0,17

0,24

1,39 em cães e gatos 1,35 em cães e gatos

CSU = Colorado State university, AH = Animal Hospital, VH = Veterinary Hospital, RVC = Royal Veterinary College. Os primeiros estudos em instituições nos EUA documentaram uma ampla variedade de riscos relativamente altos de mortalidade. Um deles, realizado no Angell Memorial Animal Hospital, em Boston, publicou que os riscos de morte anestésica foram de 0,26% em cães, 0,36% em gatos e 5% em outras espécies.72 A Colorado State University relatou riscos maiores de 1,08% em cães e 1,79% em gatos, entre 1955 e 1957,73 e o relato do Wheatridge Animal Hospital (Colorado) revelou riscos de mortalidade anestésica de 0,23% em cães e 0,40% em gatos entre 1960 e 1969.73 Mais ou menos na mesma época, o Hospital

Veterinário da University of Missouri relatou riscos de mortalidade de 0,8% em cães e 0,53% em gatos.73 Estudos mais recentes em centros de referência relataram riscos menores de mortalidade, sugerindo que os resultados melhoraram. Outro trabalho da Colorado State University documentou riscos de 0,43% em cães e 0,26% em gatos entre 1979 e 1981, e de 0,43% em cães e 0,35% em gatos entre 1993 e 1994. A Louisiana State University relatou riscos maiores de morte peroperatória de 1,49% em cães e 5,80% em gatos em sua instituição entre 1995 e 1996, embora isto se referisse a todas as mortes, não apenas à mortalidade relacionada com a anestesia.5,10 Pesquisa do Royal Veterinary College no Reino Unido revelou um risco de mortalidade anestésica de 0,58% em cães entre 1999 e 2002.6 Com base no trabalho mais recente que mencionamos, o risco de morte relacionada com a anestesia no contexto de referência pareceria ser da ordem de 0,25 a 0,60% em cães e gatos. Trabalhos realizados por veterinários de clínicas particulares com pequenos animais geralmente documentaram riscos menores de mortalidade do que os estudos feitos em instituições de referência. Um desses primeiros estudos particulares avaliou a mortalidade de felinos na Escócia (Reino Unido) e publicou que o risco de morte foi de 0,31% em gatos.75 Seguiu-se uma outra pesquisa particular sobre anestesia em pequenos animais em Vermont (EUA), que relatou um risco de morte de 0,11% e 0,06% em cães e gatos, respectivamente.76 Um estudo semelhante foi feito na Finlândia, em 1993, e relatou um risco de morte de 0,13% em pequenos animais em geral.77 Um estudo retrospectivo mais recente avaliou a mortalidade em uma população de pequenos animais na África do Sul, em 1999, e o risco estimado de mortalidade foi de 0,08% para cães e gatos,56 e uma clínica veterinária particular, na França, relatou um risco de morte anestésica geral de 1,35% e 0,12% para pacientes sadios (ASA 1 a 2).12 O estado de saúde dos pacientes anestesiados nestes estudos nem sempre foi registrado, embora seja provável que reflita animais relativamente saudáveis e explique em parte os riscos mais baixos geralmente relatados. O primeiro estudo prospectivo multicêntrico de complicações em coorte de pequenos animais foi realizado entre 1984 e 1986, no Reino Unido.3 Foram recrutados 53 veterinários, registradas 41.881 anestesias e relatados riscos de morte anestésica de 0,23% em cães e 0,29% em gatos. No caso de pacientes sadios (ASA 1 a 2, Tabela 2.1), esses riscos foram de 0,21% em cães e 0,18% em gatos, enquanto, no caso de pacientes com doenças (ASA 3 a 5, Tabela 2.1), mais de 3% dos cães e gatos tenham morrido no período peroperatório. As mortes peroperatórias em pacientes sadios (ASA 1 a 2), que ocorreram durante ou logo após as cirurgias, foram consideradas “decorrentes primariamente da anestesia”, a menos que houvesse uma causa cirúrgica óbvia, enquanto, nos pacientes com doenças (ASA 3 a 5), todas as mortes foram relatadas, independentemente das causas. Em seguida, houve um estudo prospectivo multicêntrico de grupo sobre mortalidade anestésica

em pequenos animais atendidos por veterinários de clínicas particulares em Ontário, no Canadá.4 Durante o período de seis meses do estudo, 8.087 cães e 8.702 gatos foram anestesiados, e 0,11% dos cães e 0,10% dos gatos tiveram paradas cardíacas e morreram. No caso de animais saudáveis (ASA 1 a 2), os riscos foram de 0,067% em cães e 0,048% em gatos, enquanto, no caso de pacientes com doenças (ASA 3 a 5), 0,46% dos cães e 0,92% dos gatos morreram por causa de uma parada cardíaca. Só foram incluídas as mortes peroperatórias que resultaram de parada cardíaca em um período de acompanhamento não especificado. O maior estudo multicêntrico recente com pequenos animais de clínicas veterinárias particulares, o Confidential Enquire into Perioperative Small Animal Fatalities (CEPSAF), foi realizado no Reino Unido, entre 2002 e 2004, tendo registrado 98.036 procedimentos anestésicos e de sedação em cães e 79.178 em gatos, com a participação de 117 centros.49 Definiu-se morte anestésica e por sedação como o óbito peroperatório até 48 h após o término do procedimento, exceto quando a morte se devia exclusivamente a casos cirúrgicos inoperáveis ou condições clínicas preexistentes (i.e., a anestesia e a sedação não poderiam ser excluídas razoavelmente de terem contribuído para a morte). O risco de morte relacionado com a anestesia e a sedação foi de aproximadamente 0,17% em cães e 0,24% em gatos (Tabelas 2.2 e 2.3). Em pacientes sadios (ASA 1 a 2), os riscos foram de 0,05% em cães e 0,11% em gatos, enquanto, em pacientes doentes (ASA 3 a 5), mais de 1% dos cães e gatos morreram (Tabela 2.4). Coelhos foram a terceira espécie mais comumente anestesiada na prática, mas os riscos de morte relacionados com a anestesia foram substancialmente maiores, com 0,73% de coelhos saudáveis e 7,37% dos doentes morrendo. Os riscos em outras espécies de pequenos animais também foram altos, entre 1 e 4% (Tabela 2.3). Tabela 2.3 Risco de morte relacionada com a anestesia e a sedação em pequenos animais, de acordo com o CEPSAF.7 Número de mortes Espécie

relacionadas com a anestesia e a sedação

Risco de morte Número de animais

relacionada com a

anestesiados e sedados

anestesia (%) (intervalo de confiança de 95%) (%)

Cães

163

98.036

0,17 (0,14 a 0,19)

Gatos

189

79.178

0,24 (0,20 a 0,27)

Coelhos

114

8.209

1,39 (1,14 a 1,64)

Cobaias

49

1.288

3,80 (2,76 a 4,85)

Hamsters

9

246

3,66 (1,69 a 6,83)

Chinchilas

11

334

3,29 (1,38 a 5,21)

8

398

2,01 (0,87 a 3,92)

Ratos

Fonte: referência 7, reproduzida, com autorização, de Wiley. Tabela 2.4 Risco de morte relacionado com a anestesia e a sedação em cães, gatos e coelhos sadios e doentes, de acordo com o CEPSAF.7

Espécie

Cães

Gatos

Coelhos a

a

Estado de saúde

Número de mortesb

Número estimado

Risco de morte relacionada com

de anestesias e

a anestesia (%) (intervalo de

sedações

confiança de 95%) (%)

Sadios (ASA 1 a 2)

49

90.618

0,05 (0,04 a 0,07)

Doentes (ASA 3 a 5)

99

7.418

1,33 (1,07 a 1,60)

Sadios (ASA 1 a 2)

81

72.473

0,11 (0,09 a 0,14)

Doentes (ASA 3 a 5)

94

6.705

1,40 (1,12 a 1,68)

Sadios (ASA 1 a 2)

56

7.652

0,73 (0,54 a 0,93)

Doentes (ASA 3 a 5)

41

557

7,37 (5,20 a 9,54)

ASA 1 a 2 incluem pacientes sem doença pré-operatória ou com doença leve; ASA 3 a 5 abrangem aqueles com doença

pré-operatória grave. b

Só foram incluídas aqui as mortes cuja informação detalhada estava disponível.

Fonte: referência 7, reproduzida, com autorização, de Wiley. Logo depois do CEPSAF, foi realizado outro estudo prospectivo com 39 clínicas veterinárias da Espanha, e os dados de 2.012 anestesias foram registrados. Definiu-se morte anestésica como aquela que ocorria no peroperatório até 24 horas após o término do procedimento, e foi relatado um risco de morte global de 1,29%, com os riscos, em cães e gatos sadios, sendo de 0,33% e de 4,06% nos doentes.11 Em suma, as estimativas recentes dos riscos de morte relacionados com a anestesia na prática com pequenos animais pareceram ser da ordem de 0,1 a 0,3%, embora, em algumas

circunstâncias, possam ser mais altos, com o risco, em cães e gatos sadios, sendo de aproximadamente 0,05 a 0,30%, e, em cães e gatos doentes, de 1 a 4%.3,4,11,12,49,56,76 Os gatos pareceram correr risco maior de morte do que cães em alguns trabalhos,3,49 e coelhos e outras espécies de animais de estimação pareceram correr um risco ainda maior quando estudados.7 Em instituições de referência, a mortalidade variou de 0,30 a 0,60% em cães e gatos.5,6,10,49,51 Causas de morte anestésica A causa fisiológica de muitas mortes anestésicas pode ser multifatorial, embora as complicações cardiovasculares e respiratórias representem as causas primárias de muitas mortes peroperatórias relatadas. Outras causas relatadas incluem as gastrintestinais, neurológicas e hepáticas ou renais. Foi relatada parada cardíaca resultante de arritmias associadas a aumento das catecolaminas circulantes, hipoxia miocárdica, agentes anestésicos específicos, patologia preexistente, procedimentos específicos (p. ex., tração vagal e enucleação) e depressão miocárdica decorrente de sobredose anestésica relativa.35,78 Entre 30 e 70% das mortes resultaram de sobredose anestésica relativa e depressão miocárdica, arritmias cardíacas ou insuficiência circulatória e hipovolemia em inúmeros estudos.3–5,56,74 A anestesia com halotano, éter e tiobarbitúricos foi associada frequentemente a sobredose de anestésico nas primeiras pesquisas.3,76 Em um estudo, as complicações cardiovasculares foram mais frequentes em cães que em gatos, e pacientes de alto risco foram os mais propensos a morrer em decorrência de insuficiência circulatória, geralmente quando têm hipovolemia.3 As complicações respiratórias representaram a outra causa principal de morte relacionada com anestesia, tendo sido a causa subjacente de óbito em 30 a 40% dos cães e cerca de 40 a 50% de gatos.3,4,74 Os problemas relacionados com a intubação endotraqueal e obstrução respiratória representaram a maioria das causas respiratórias de morte em felinos.3,4 Em cães, também foram relatadas complicações com a intubação endotraqueal e insuficiência respiratória, embora, em cães braquicéfalos, a obstrução respiratória tenha sido a principal causa de complicações respiratórias.3,4,76 Na anestesia em pequenos animais, com pouca frequência foram relatadas outras causas além de complicações respiratórias e cardiovasculares, embora tenham sido incluídas insuficiência renal pós-operatória, trombose ilíaca em gatos, aspiração de conteúdo gástrico, reações anafiláticas, demora em recuperar a consciência e causas desconhecidas.3,4,56,76 As últimas causas, que, em geral, surgem quando os pacientes não são observados estritamente, ocorreram em cerca de 5 a 20% deles. Momento da morte

O momento das mortes anestésicas variou, com os estudos mais recentes revelando cada vez mais que elas ocorrem no período pós-operatório. Albrecht e Blakely72 relataram em um estudo apenas uma morte durante a indução e uma durante a recuperação da anestesia, com o restante dos óbitos ocorrendo durante a manutenção da anestesia. Em contraste, uma pesquisa feita na Colorado State University na década de 1950 revelou que 36 cães e gatos morreram, 17% deles durante a indução anestésica, 22% durante a manutenção anestésica e, um fato interessante, a maioria (61%) durante a recuperação.73 No entanto, uma pesquisa posterior da mesma instituição (1979 a 1981) mostrou que a maioria das mortes ocorreu no período intraoperatório74 e outra pesquisa na década de 1990 mostrou que apenas cerca de 25% dos cães e gatos morreram durante a recuperação, com o restante dos óbitos acontecendo durante a própria anestesia.51 Outras instituições de referência revelaram períodos de alto risco diferentes; Hosgood e Scholl5,10 documentaram que 9 de 14 (61%) mortes em cães e 4 de 7 (57%) em gatos ocorreram no pós-operatório, embora o número de mortes registradas tenha sido pequeno e incluído todas as causas. No contexto de cuidados primários, apenas os estudos maiores quantificaram o momento de fatalidades. Clarke e Hall3 relataram a ocorrência de óbitos principalmente durante a anestesia. No caso de cães, 22% morreram durante a indução, 55% durante a manutenção e 18% durante a recuperação, enquanto, no caso de gatos, as porcentagens foram de 30%, 39% e 31%, respectivamente. Similarmente, no estudo de Ontário, Canadá,4 a maioria dos cães e gatos morreram durante a própria anestesia (6/9 cães e 7/8 gatos) e apenas 33% dos cães e 13% dos gatos morreram no pós-operatório (3/9 cães e 1/8 gatos). Mais recentemente, o CEPSAF afirmou ser mais comum a morte de cães, gatos e coelhos no período pós-operatório.49 Mais de 60% dos gatos e coelhos e quase 50% dos cães morreram durante este período (Tabela 2.5). É digno de nota o fato de que a maioria das mortes pós-operatórias ocorreram até 3 horas após o término do procedimento, sugerindo que a maior vigilância, em particular no início do período pós-operatório, pode reduzir o risco de morte. Subsequente a este estudo, um trabalho da Espanha ressaltou ainda mais a ocorrência de óbitos no pós-operatório, com mais de 75% dos cães tendo morrido após anestesia neste estudo multicêntrico. Portanto, cada vez mais, o período pós-operatório representou um momento de alto risco, levando à recomendação de monitoramento estrito e manejo até que se observe a recuperação completa do animal da anestesia. Tabela 2.5 Momento da morte causada por anestesia em cães, gatos e coelhos, de acordo com o CEPSAF.7 Momento da morte

Cães

Gatos

Coelhos

Após a pré-medicação

1 (1%)

2 (1%)

0

a

Indução anestésica

9 (6%)

14 (8%)

6 (6%)

Manutenção da anestesia

68 (46%)

53 (30%)

29 (30%)

Pós-operatório:a

70 (47%)

106 (61%)

62 (64%)

0 a 3 h de PO

31

66

26

3 a 6 h de PO

11

9

7

6 a 12 h de PO

12

7

13

12 a 24 h de PO

13

12

9

24 a 48 h de PO

3

10

3

Desconhecido

0

2

4

Totalb

148 (100%)

175 (100%)

97 (100%)

As mortes no pós-operatório (PO) foram categorizadas ainda de acordo com o tempo decorrido após a anestesia.

b

Só foram incluídas aqui as mortes cuja informação detalhada estava disponível.

Fonte: referência 7, reproduzida, com autorização, de Wiley. Fatores de risco de morte anestésica Os primeiros estudos institucionais sugeriram fatores contribuintes, sem uma análise profunda dos fatores de risco.72,73 O uso de fármacos específicos foi associado a mortalidade maior em cães e gatos, bem como em pacientes com traumatismo, os submetidos a procedimentos de castração, certas raças caninas, inclusive as braquicefálicas, terriers e spaniels, frequentemente representadas entre as fatalidades.72–74 A idade avançada e as más condições de saúde foram associadas a maior probabilidade de mortalidade em cães, e apenas as más condições de saúde em gatos em um estudo subsequente de referência.5,10 A pesquisa do Royal Veterinary College também mostrou que más condições de saúde aumentam tal probabilidade e, além disso, a medicação pré-anestésica com acepromazina foi associada a uma possibilidade menor de morte em cães.6 Embora tenham identificado fatores de risco importantes, todos estes estudos foram feitos por um único centro de referência, com amostras de pequeno tamanho e capacidade limitada para detectar mais que um pequeno número de fatores de risco importantes. Um trabalho inicial baseado na prática clínica também teve sua capacidade limitada

para avaliar os fatores de risco. Dodman75 identificou uma tendência à redução do risco com a anestesia com tiopental (tiopentona)/halotano, em comparação com outros fármacos, na prática anestésica com felinos. Em um estudo ulterior, Dodman e Lamb76 identificaram alto risco com a administração de xilazina e em raças braquicefálicas, embora em ambos os estudos a quantificação dos fatores de risco tenha sido limitada. Clarke e Hall identificaram vários fatores de risco para morte anestésica em cães e gatos saudáveis.3 Os maiores riscos foram vistos com a administração do agonista do receptor adrenégico α2 da xilazina e a redução do risco com a medicação pré-anestésica com atropina ou acepromazina. Em gatos, a intubação endotraqueal, a indução anestésica com um agente volátil, tiopental, meto-hexital (meto-hexitona), cetamina, halotano, éter e o uso de óxido nitroso também foram associados a riscos maiores de morte, e a administração de alfadolona/alfaxalona foi associada a riscos mais baixos, embora não tenham sido feitas comparações estatísticas. Nos cães da raça pequinesa, as mortes foram mais comuns. A administração de xilazina foi associada a maior risco de morte, enquanto o uso de halotano e tiopental foi associado a um risco mais baixo. O estudo de Ontário identificou fatores de risco semelhantes com a administração de xilazina e que pacientes com doenças (ASA 3 a 5) tinham maior probabilidade de parada cardíaca no caso de cães, enquanto os gatos doentes (ASA 3 a 5) corriam risco ainda maior, embora a presença de um técnico no monitoramento da anestesia o reduzisse.4 Um estudo feito em um único centro na França também demonstrou maior risco para animais em más condições de saúde,12 o que foi confirmado por um estudo multicêntrico realizado na Espanha.11 Mais recentemente, de acordo com o CEPSAF, foram avaliados vários fatores de risco em um estudo com populações maiores com modelos de regressão logística multivariáveis para cães e gatos.9,79 Em gatos, uma categoria ASA alta, a urgência do procedimento, a indicação de procedimentos maiores versus menores, a idade avançada, extremos de peso, a intubação endotraqueal e o uso de terapia hídrica foram associados a maior probabilidade de morte relacionada com a anestesia e a sedação (Tabela 2.6).79 O monitoramento do pulso e a oximetria de pulso foram associadas a uma redução nessas probabilidades. Em cães, más condições de saúde (com base na gradação da ASA), a maior urgência do procedimento, a indicação de procedimentos maiores versus menores, a idade avançada e o baixo peso foram associados à morte relacionada com a anestesia. Além disso, a maior duração do procedimento e a combinação de indução e manutenção anestésicas foram associadas a maior probabilidade de morte relacionada com a anestesia. A manutenção da anestesia com halotano após a indução com um agente injetável e cães submetidos à anestesia inalatória total foram associados a um aumento aproximado de seis vezes na probabilidade, em comparação com a manutenção com isofluorano após a indução com um anestésico injetável.9

A associação entre a condição de saúde do paciente (gradação da ASA) e a morte relacionada com a anestesia foi documentada repetidamente em muitos dos estudos descritos e já foi comentada anteriormente.3–6,11,12,50,79 A existência prévia de patologia pode reduzir o índice terapêutico de anestésicos administrados, predispor a depressão cardiopulmonar e deprimir de maneira significativa outras funções fisiológicas. Além disso, no CEPSAF, a urgência do procedimento foi associada a maior probabilidade de morte,9,79 razão pela qual a maior atenção à avaliação pré-operatória e à estabilização do paciente antes do procedimento podem reduzir de modo substancial as fatalidades. Também se identificou maior risco com a idade avançada, independentemente da condição física do paciente (gradação da ASA), como um fator de risco importante, mas apenas algumas das pesquisas mais recentes em pequenos animais relataram isto.5,9,79 Pacientes idosos podem ser mais suscetíveis aos efeitos depressores dos anestésicos, à hipotermia via mecanismos termorreguladores comprometidos e à recuperação prolongada por causa das tendências à função reduzida e à hipotermia.80–82 A maior probabilidade de morte relatada em cães de pequeno porte e gatos no CEPSAF9,79 foi consistente com um trabalho sobre anestesia pediátrica.83 Pacientes menores podem ser mais propensos à sobredose de medicamentos, à hipotermia e a apresentar mais dificuldades durante o manejo peroperatório (p. ex., colocação de cateter intravenoso, intubação endotraqueal). É provável que o maior risco observado em gatos com mais peso tenha refletido, pelo menos em parte, os riscos associados à obesidade.79 É interessante notar que, embora tenha havido uma tendência à associação racial no CEPSAF, após o ajuste para o peso, tal associação diminuiu, sugerindo que um aspecto importante do risco associado à raça poderia estar relacionado com o tamanho do animal.9 Apesar disso, outro trabalho revelou aumento das complicações em raças braquicefálicas e terriers,3,4,73 sendo aconselhável cautela com a anestesia nestas raças. Tabela 2.6 Modelo multivariável de fatores de risco para morte relacionada com anestesia e sedação em gatos, de acordo com o CEPSAF.8 Fator de risco

Categorias

Condição de saúde (gradação

ASA 4 a 5 vs. ASA 3 vs. ASA 1 a

da ASAb)

2 (tendênciac)

Urgência do procedimento

Emergência vs. urgência vs. planejamento (tendênciac)

Razão de

Intervalo de

probabilidadea confiança de 95% (%)

Valor de P

3,2

2,0 a 5,0

< 0,001

1,6

1,0 a 2,5

0,050

Procedimento pretendido

Idade

Peso

Intubação endotraqueal (ET)

Uso de monitoramento do pulso e oximetria de pulso

Líquidos intravenosos (IV) no peroperatório

De pequeno porte

1

De grande porte

2,7

1,4 a 5,4

0,005

0 a 6 meses

0,4

0,1 a 2,4

0,058

6 meses a 5 anos

1

0,9 a 3,0

5 a 12 anos

1,7

1,1 a 3,9

12 anos em diante

2,1

0 a 2 kg

15,7

2,9 a 83,6

2 a 6 kg

1

1,1 a 7,4

6 kg em diante

2,8

0,2 a 5,5

Desconhecido

1,1

Não

1

Sim

1,9

Nenhum

1

Apenas avaliação do pulso

0,002

1,0 a 3,7

0,042

0,3

0,2 a 0,6

< 0,001

Apenas oximetria de pulso

0,2

0,1 a 0,5

Ambos

0,2

0,1 a 0,4

Nenhum

1

Uso apenas de cateter IV

0,7

0,2 a 2,5

Administração de líquidos IV

3,9

2,2 a 7,1

a

< 0,001

Razões de probabilidade maiores que 1 indicam aumento da probabilidade, enquanto aquelas menores que 1 indicam

redução dos riscos de morte relacionada com a anestesia.

b

ASA 1 a 2, apenas animal sadio ou com doença moderada; ASA 3, doença grave, que limita a atividade; ASA 4 a 5,

doença potencialmente fatal. c

A tendência representa a razão de probabilidade de aumento de uma categoria do fator de risco.

Fonte: referência 8. Reproduzida com permissão de Oxford University Press. O risco crescente para pacientes submetidos a procedimentos de grande porte, conforme documentado pelo CEPSAF,79 foi consistente com a pesquisa sobre anestesia em equinos.14,53 É provável que procedimentos mais complexos e invasivos imponham maior estresse sobre a fisiologia do paciente e, ao se avaliar o risco para o paciente antes da anestesia, deve-se considerar a complexidade do procedimento. A maior duração do procedimento, além de seu tipo, foi associada a maior risco para cães no CEPSAF.9 Procedimentos mais demorados poderiam expor o paciente a longos períodos de comprometimento fisiológico, mais tempo de hipotermia e perda hídrica, podendo-se esperar uma predisposição a maior risco.35 A associação antes não relatada de maior risco de morte com a terapia hídrica em gatos no CEPSAF foi surpreendente.79 Embora isto possa refletir em parte uma confusão residual, um componente da maior razão de probabilidade pode estar relacionado com a administração excessiva de líquidos e sobrecarga hídrica. São recomendáveis a administração de líquido criteriosa e seu monitoramento cuidadoso em gatos, embora seja necessária mais pesquisa para confirmar tal observação. A redução da probabilidade de morte relacionada com a anestesia mediante o monitoramento do pulso e da oximetria de pulso em gatos no CEPSAF não fora relatada antes em pequenos animais.79 Análises teóricas na anestesia humana confirmam estes achados e sugeriram que a oximetria de pulso teria detectado 40 a 82% dos incidentes peroperatórios relatados e, quando observados junto com a capnografia, esse índice subiu para 88 a 93%.84−86 Tais associações sugerem que alguma forma de avaliação da função cardiovascular (qualidade e frequência do pulso) e da respiratória (saturação de oxigênio e volume corrente final de CO2) podem ser importantes para minimizar a mortalidade. O papel dos anestésicos específicos nas mortes causadas por anestesia foi avaliado em vários estudos com pequenos animais. A medicação pré-anestésica administrada foi um fator de risco em vários estudos feitos com cães e gatos.3,4,6,53 A pesquisa inicial identificou uma associação da acepromazina à probabilidade reduzida de morte3,6 e complicações mórbidas importantes,4 em comparação com nenhuma pré-medicação, enquanto o agonista do receptor adrenérgico α2 xilazina foi associado a maior probabilidade de morte.3,4 No CEPSAF, embora tenha havido tendência à redução da probabilidade com a administração de acepromazina, após o ajuste para os principais fatores de confusão, este não foi um fator

importante em cães ou gatos. Além disso, ao se avaliar a pré-medicação com o agonista do receptor adrenérgico α2 metomidina, não se detectou aumento da probabilidade de morte.9,79 Verificou-se que a xilazina reduziu o limiar para arritmias induzidas por catecolaminas na anestesia com halotano,87,88 enquanto não aconteceu o mesmo com relação à metomidina,89 diferença que, combinada com o maior conhecimento dos efeitos fisiológicos e o melhor entendimento do método ideal de administração de um agonista do receptor adrenérgico α2, pode ser a base para ausência de maior risco com a medetomidina, em comparação com a acepromazina, observada no CEPSAF. Não parece que o agente específico usado para indução teve importância no CEPSAF, em contraste com a tendência a maior risco com o uso de tiopental e cetamina em gatos e menor risco com alfadolona/alfaxalona em gatos e tiopental em cães no último estudo feito no Reino Unido.3,9,79 É provável que a ausência de uma diferença consistente em termos de risco com agentes de indução diferentes reflita que o efeito do agente de indução foi pequeno. No entanto, o agente de manutenção usado foi relevante em cães no CEPSAF e pareceu que o isofluorano esteve associado a uma probabilidade reduzida de risco, em comparação com o halotano após a indução da anestesia com um agente injetável. Estudos clínicos confirmam isto, indicando que, embora o isofluorano induza maiores depressão respiratória e vasodilatação do que o halotano, causa menos depressão miocárdica direta e sensibiliza menos o coração a arritmias induzidas por catecolaminas, parecendo haver um equilíbrio que causa menor depressão cardiovascular total.90–99 Em suma, apenas os estudos mais recentes avaliaram de maneira crítica os fatores de risco para morte.3–6,9–12,50,79 Aqueles relatados comumente incluem más condições de saúde, idade avançada, monitoramento precário, intubação endotraqueal em gatos e possíveis associações raciais em cães.3–6,9,10,79 Além disso, o CEPSAF identificou vários fatores de risco não relatados antes, inclusive o uso da oximetria de pulso e o monitoramento da pulsação aumentando a probabilidade de morte em gatos e a manutenção com isofluorano estando associada a redução da probabilidade, em comparação com o halotano após indução da anestesia com um agente injetável em cães.9,79 O conhecimento destes fatores de risco pode ajudar os veterinários a identificarem, no pré-operatório, os pacientes que correm maior risco de mortalidade e, no peroperatório, a instituírem o manejo adequado para reduzir a mortalidade. Mortalidade anestésica em grandes animais Risco de morte por anestesia Em grandes animais, a pesquisa concentrou-se nas complicações da anestesia em equinos. Os primeiros estudos tiveram como foco principalmente populações de referência, e os riscos de morte foram divididos mais frequentemente em populações eletivas e de

emergência, com a última representando principalmente a cirurgia para dor abdominal aguda ou “cólica”. Mitchell100 conduziu um estudo retrospectivo na Royal (Dick) Vet School (Reino Unido) entre 1962 e 1968; 473 equinos foram anestesiados e ocorreram sete mortes (1,47%). Short, na University of Missouri, (EUA), fez um estudo retrospectivo menor com 125 equinos anestesiados, sem que tenham ocorrido mortes.73 Heath relatou um risco de mortalidade peroperatória de equinos em uma única clínica na Colorado State University, entre 1968 e 1970, de 4,35% (13 mortes dentre os 295 animais anestesiados).73 O risco de morte anestésica diminuiu para 1,69% quando foram consideradas apenas as mortes relacionadas com anestesia. Um estudo de acompanhamento na Colorado State University revelou um risco global reduzido de morte de 1,18%.74 Muitas destas fatalidades decorreram de cirurgias gastrintestinais de emergência em equinos que eram pacientes de alto risco e todos estes estudos foram limitados pelo pequeno tamanho da amostra, podendo, portanto, refletir apenas estimativas aproximadas da frequência de morte. Tevick101 identificou retrospectivamente um risco de 2,70% de mortalidade peroperatória em equinos de uma única clínica em um período de 17 anos, reduzido para 0,8% quando decorrente “apenas da anestesia”. A maioria destas mortes ocorreu até 24 horas após a anestesia. As cirurgias gastrintestinais representaram o principal tipo de operação dos pacientes que morreram, e a maior parte deles era de alto risco. Outros relatos de um único centro se concentraram em populações hospitalares específicas. Ao avaliarem equinos submetidos à cirurgia por causa de cólica, Trim et al.102 conduziram um estudo retrospectivo de uma única clínica e detectaram um risco de morte peroperatória de 12,5% até 3 dias após a anestesia e de 20% até 16 dias depois. Em contraste, Young e Taylor excluíram a cirurgia gastrintestinal e revelaram um risco menor de morte em clínica única, em um período de 7 anos, de 0,68%. Subsequentemente, a Liverpool Veterinary School (Reino Unido) relatou riscos de mortalidade tanto em procedimentos eletivos como de emergência em um estudo retrospectivo de clínica única.105,106 De 2.276 animais anestesiados, 1.279 procedimentos foram classificados como eletivos e 995 como de emergência. Fez-se o acompanhamento dos equinos até a alta. Dos casos eletivos, oito morreram e tanto a anestesia como a cirurgia contribuíram para o óbito (0,63%), e um (0,078%) morreu exclusivamente por causa da anestesia.106 No caso das emergências que não eram cólica, o risco de morte decorrente da anestesia ou da cirurgia foi de 2%, e, naquelas de cólica, foi de 4,35%.105 O risco global de morte por causa de anestesia ou cirurgia em procedimentos eletivos e de emergência foi de 2%. Depois disso, Bidwel et al.69 relataram riscos reduzidos em outro centro único no Kentucky (EUA). De 17.961 equinos anestesiados na clínica entre 1997 e 2001, o percentual de mortes foi de 0,12%, classificadas como diretamente relacionadas com a anestesia, e 0,24% morreram ou foram submetidos à eutanásia em 7 dias. Tais estimativas foram mais baixas que nos trabalhos

prévios e é provável que tenham refletido, pelo menos em parte, diferenças nas populações estudadas e na duração dos procedimentos (a maioria levou menos de 1 hora). Todos estes relatos foram de estudos em centros únicos; é provável que a precisão de alguns tenha sido limitada pelo tamanho das amostras, e os riscos foram altamente específicos das populações anestesiadas. O primeiro estudo prospectivo multicêntrico de coorte peroperatório sobre anestesia em equinos, o Confidential Enquiry into Perioperative Equine Fatalities (CEPEF), foi realizado no Reino Unido entre 1991 e 1997.52,53 De um total de 41.824 equinos anestesiados, 39.025 sobreviveram e 785 morreram até o sétimo dia de pós-operatório, resultando em um risco de morte de 1,89%.53 Quando foram excluídas a cirurgia abdominal de emergência e o nascimento de potros, o risco de morte caiu para 0,90%.53 Seguiu-se o CEPEF 3, um ensaio controlado randomizado com 8.242 equinos em que foi comparada a anestesia com isofluorano e halotano.13 Embora representando a manutenção anestésica apenas com agentes inalatórios, foram relatados riscos semelhantes aos da pesquisa prévia. Foi relatado um risco global de morte de 1,61% em equinos; porém, quando foram excluídas as cirurgias para cólica e outras de emergência, observou-se um risco de aproximadamente 0,9%. Em ambos estes estudos, a morte peroperatória foi definida como aquela inexplicada ou eutanásia por causa de complicações peroperatórias até 7 dias após a anestesia. Em suma, foram relatados riscos gerais de morte por anestesia de aproximadamente 2%, que diminuíram nos casos de equinos que não eram de emergência para cerca de 1% e ainda mais em algumas populações.13,52,53,69,103,104,106 Quando a anestesia era considerada a única causa de morte, estimou-se um risco de 0,1%.106 Nas anestesias de emergência, o risco de morte foi de quase 1 em 10 a 30.52,53,102,105 Causas de morte por anestesia Na anestesia em equinos, as principais causas de morte foram parada cardíaca e colapso cardiovascular, resultando em 20 a 50% de todos os óbitos relatados.52,53,101,103–106 Em contraste, as complicações respiratórias foram relatadas com pouca frequência. Embora Tevik101 não tenha feito distinção entre causas respiratórias e cardiovasculares, que, quando combinadas, foram responsáveis por todas as 10 mortes anestésicas descritas, outros estudos registraram menos de 25% de todos os óbitos como resultantes de comprometimento respiratório.52,53,103–106 Johnston et al.52,53 documentaram que apenas 4% das mortes resultaram de problemas respiratórios. Causas não cardiopulmonares levaram à morte ou à realização de eutanásia em até 77% de todas as fatalidades em equinos.13,52,53,101,103–106 Em 55% de todos os casos, Johnston et al.52,53 atribuíram a morte a fraturas durante a recuperação, miopatia pós-operatória e complicações abdominais como sepse e colite. Young e Taylor103 relataram mortes

decorrentes de miopatia pós-operatória e fraturas em sete de nove óbitos, enquanto Bidwell et al.69 relataram que fraturas e miopatia foram a base de 50% de mortes anestésicas em seu centro. Há raros relatos de equinos “encontrados mortos” ou morrendo por causas desconhecidas, talvez por serem observados mais estritamente durante a recuperação que muitos pequenos animais. Johnston et al. classificaram apenas 5% das fatalidades em equinos como “encontrados mortos”.53 Momento da morte por anestesia Consistente com o trabalho em pequenos animais, a pesquisa recente sobre anestesia em equinos também mostrou que o pós-operatório é o principal período de risco. Johnston et al.52,53 relataram mais de 44% de mortes como eventos pós-operatórios. Young e Taylor103 relataram fatalidades pós-operatórias em sete de nove mortes. No estudo mais recente de clínica única, mais de 50% de 22 óbitos tidos como relacionados com a anestesia ocorreram no pós-operatório.69 Portanto, embora a preocupação com o intraoperatório continue importante, o pós-operatório também merece muita atenção no caso de anestesia em equinos. Fatores de risco de morte por anestesia Vários estudos retrospectivos em centro único identificaram fatores de risco associados a complicações peroperatórias em equinos. Nos estudos realizados na Colorado State University, a sobredose de anestésico foi considerada uma causa importante de morte ou eutanásia, e muitas fatalidades foram associadas a cirurgia gastrintestinal de emergência e condições de alto risco.73,74 Tevick101 identificou a cirurgia gastrintestinal como o tipo principal de operação nos equinos que morreram e cuja maioria foi considerada casos de alto risco. Entre os equinos submetidos à cirurgia abdominal de emergência aguda, longa duração da anestesia e hipotensão intraoperatória foram associadas a risco elevado de morte em outro estudo retrospectivo de centro único.102 Ao serem avaliados os fatores em equinos cujo problema não era cólica, foram identificados fatores de risco semelhantes.103,104 Líquidos e suporte inotrópico no intraoperatório foram associados à redução no risco de miopatia fatal, enquanto procedimentos prolongados e idade avançada foram associados a risco elevado de morte ou miopatia. Um trabalho subsequente avaliou tanto procedimentos eletivos como de emergência em outro estudo retrospectivo de única clínica.105,106 Uma pontuação ASA alta nos casos eletivos, como, por exemplo, laparotomia exploradora eletiva para cólica, foi associada a risco elevado de morte e, entre os pacientes de emergência, a cirurgia abdominal aguda (para “cólica”) aumentou o risco. O grupo multicêntrico prospectivo de Johnston et al.52,53 avaliou os fatores de risco de

maneira mais abrangente em uma grande população de equinos anestesiados e identificaram como sendo de alto risco a anestesia de éguas prenhes, potros, cavalos submetidos à cirurgia abdominal, casos ortopédicos que requeriam fixação interna, tempo prolongado de operação, posicionamento em decúbito dorsal, ausência de sedação e prémedicação com xilazina. A medicação pré-anestésica com acepromazina e a anestesia intravenosa total foram associadas a risco reduzido. A fase subsequente do trabalho, um ensaio clínico randomizado com isofluorano e halotano para manutenção da anestesia, resultou em achados semelhantes.13 Em geral, não foi encontrada diferença entre os dois anestésicos inalatórios; porém, em equinos com 2 a 5 anos de idade, o isofluorano foi associado a menor risco. Em ambos os grupos de tratamento, observou-se maior risco nas cirurgias ortopédicas e abdominais de emergência, enquanto o monitoramento da pressão sanguínea e cirurgias da orelha, do nariz, da garganta e urogenitais resultaram em menor risco. Este trabalho multicêntrico também quantificou fatores de risco específicos e associações medicamentosas,13,52,53 mas os padrões são similares aos relatados em outros estudos com equinos. O trabalho sobre anestesia em equinos indica fatores de risco semelhantes aos publicados para outras espécies. Em particular, cirurgias de emergência, abdominais e ortopédicas, cirurgias longas, más condições de saúde e extremos etários foram fatores comumente relatados como associados à morte. Além disso, os riscos associados a agentes anestésicos específicos foram verificados, e a falta de sedação e a administração de xilazina foram associadas a um risco maior, enquanto a pré-medicação com acepromazina, anestesia intravenosa total, isofluorano em equinos de 2 a 5 anos de idade e o monitoramento da pressão foram associados a risco reduzido.

Consentimento informado Além de dar ao anestesista informação que possa ajudar nas estratégias de manejo dos riscos, uma avaliação do risco perianestésico é um componente essencial no processo de obtenção do consentimento informado do proprietário do animal. Com a ajuda de quem fará a anestesia, o proprietário pode contar com a avaliação dos riscos significativos associados ao procedimento proposto para seu animal e assim tomar a decisão de aceitar os riscos ou recusar a realização do procedimento por considerar que não podem ser mitigados. Este processo de obtenção do consentimento informado do proprietário ou lidar com a recusa dele envolve uma conversa entre ele e o anestesista ou uma discussão dos riscos relevantes e significativos. Nesta época em que o público tem acesso rápido e direto a informação (certa ou errada), os proprietários de animais podem procurar saber com outras fontes a respeito dos cuidados anestésicos de acordo com os conceitos existentes

sobre risco relacionado com anestesia. A possibilidade de tais informações preconcebidas leva à necessidade de uma discussão mais detalhada sobre o assunto. Se for o caso, deve-se incluir no consentimento informado uma discussão sobre o uso de fármacos além das indicações habituais. O processo de anestesia veterinária costuma envolver esse tipo de uso, sobre o qual o proprietário do animal deve ser informado. Em muitos casos, esse uso está associado a um nível baixo de risco e o consentimento para o uso de cada fármaco é impraticável. Em vez disso, deve-se fazer um breve comentário a respeito do risco baixo e bem documentado de usar tais fármacos desta maneira. Nos casos em que a procedência do fármaco não é garantida e o risco pode ser maior, deve-se obter o consentimento informado do proprietário quanto ao uso específico do fármaco em questão. Clientes e proprietários de animais têm percepções diversas sobre o papel do anestesiologista veterinário no comando da anestesia, razão pela qual a discussão do consentimento informado deve incluir uma exposição geral dos papéis de cada indivíduo envolvido na anestesia durante determinado procedimento. É possível ter um especialista em anestesia para prescrever o protocolo anestésico apropriado e supervisionar sua administração com os devidos cuidados, que podem ser delegados não necessariamente a um veterinário, e sim a um técnico habilitado, enfermeiro especializado ou generalista. Os modelos de cuidados anestésicos são vários. O consentimento informado adequado do cliente requer uma discussão que o faça entender e aceitar o modelo a ser empregado. A documentação do consentimento informado pode ser uma simples anotação no prontuário médico, incluindo o registro dos elementos do processo que tenham sido discutidos. Nos casos em que os riscos associados do procedimento são mais substanciais, um formulário pode ajudar a estruturar a conversa antes do consentimento informado de maneira sistemática, considerando todos os riscos significativos. Embora o uso de um formulário assinado como consentimento possa servir para subestimar a existência de algum risco real e substancial, uma discussão franca e informativa com o proprietário continua sendo indispensável ao processo de obtenção do consentimento informado. Em suma, houve muito aprimoramento na anestesia em pequenos e grandes animais nos últimos 50 anos. Os riscos diminuíram e os padrões de cuidados melhoraram bastante, e o esclarecimento a respeito dos fatores associados a complicações ajudou muito. Além disso, a comunicação bem-sucedida dos riscos aos proprietários e clientes é fundamental para se proporcionar uma anestesia segura e manter expectativas realistas. A avaliação contínua dos riscos e fatores que os provocam é fundamental para prosseguir e melhorar ainda mais a anestesia na prática veterinária.

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Introdução Segurança e design (projeto) Introdução ao manejo da via respiratória e equipamento de suporte Tubos endotraqueais, dispositivos de isolamento pulmonar, dispositivos supraglóticos para a via respiratória, laringoscópios, auxiliares para intubação e técnicas Tubos endotraqueais Tubos endotraqueais para isolamento de um pulmão Dispositivos supraglóticos para via respiratória Laringoscópios Auxílios e técnicas para intubação Intubação nasotraqueal Técnicas orientadas por guia metálica ou tubo Técnica orientada por endoscópio Trocadores de tubo endotraqueal Intubação retrógrada Traqueostomia Faringotomia lateral Técnicas de administração de oxigênio Liberação por máscara Insuflação nasal Insuflação traqueal Gaiolas de oxigênio Toxicidade do oxigênio

Introdução ao aparelho de anestesia e aos circuitos anestésicos Fornecimento de gás medicinal Segurança dos gases medicinais Válvula para reduzir a pressão (reguladora) Calibradores de pressão Aparelho de anestesia moderno Fluxo de gás no aparelho de anestesia Fluxômetros Vaporizadores Descrições de vaporizadores comuns na medicina veterinária Manutenção de vaporizadores Uso do anestésico errado em um vaporizador específico para o agente Válvula do fluxo de oxigênio Saída comum de gás Sistemas respiratórios Sistema com retorno respiratório (circular) Sistemas sem retorno respiratório Sistema de eliminação dos resíduos de gás Procedimento rotineiro de verificação do aparelho de anestesia Ventiladores para anestesia Classificação Introdução sobre os ventiladores de circuito único e duplo Ventiladores de circuito único com pistão Ventiladores de circuito único a gás comprimido Ventiladores de circuito duplo Controle do gás que aciona o ventilador Fatores que afetam a liberação do volume corrente Alarmes Ajuste e monitoramento apropriados do ventilador Modelos selecionados de ventilador

Dispositivos de assistência respiratória Reanimadores manuais Válvulas de demanda Agradecimentos Referências bibliográficas

Introdução A liberação e a manutenção de uma anestesia segura dependem cada vez mais de equipamentos mecânicos e elétricos. É necessário que o anestesista tenha um entendimento abrangente do funcionamento do equipamento e dos riscos potenciais para o paciente e a equipe cirúrgica, antes da adaptação para os cuidados rotineiros do paciente. O equipamento anestésico inclui vários produtos de suporte respiratório, dispositivos para a liberação de oxigênio, aparelhos de anestesia, sistemas de eliminação (limpeza), ventiladores e muitas configurações de monitores do paciente e outros produtos de suporte. Os produtos disponíveis para o anestesista veterinário incluem quase qualquer um usado em pacientes humanos que possa ser adaptado para uso na anestesia veterinária, itens produzidos regularmente de maneira específica para o mercado veterinário e muitos produtos que têm sua quantidade limitada ou são adaptados e só ocasionalmente podem estar disponíveis. Há vários livros excelentes voltados para a descrição com grandes detalhes do equipamento anestésico disponível para uso na anestesia humana1–4 e, embora não inteiramente aplicáveis à anestesia veterinária, grande parte do equipamento usado é a mesma (i. e., vaporizadores, laringoscópios, tubos endotraqueais, alguns aparelhos de anestesia) ou pode ser adaptada de produtos destinados ao uso humano. Como tal, seria impossível comentar todo o equipamento anestésico relacionado e produtos disponíveis hoje em um único capítulo. Neste capítulo, oferecemos ao leitor os princípios operatórios e uma visão geral do trabalho prático com produtos comuns relacionados com anestesia (i.e., tubos endotraqueais, auxiliares para intubação etc.), aparelho de anestesia, vaporizadores, circuitos respiratórios e ventiladores. Além disso, há produtos designados especificamente para uso veterinário que serão descritos aqui em maiores detalhes.

Segurança e design (projeto) Desde 1989 e 2000, respectivamente, os circuitos respiratórios para anestesia humana (i.e., sistema circular) e aparelhos de anestesia na América do Norte precisam satisfazer padrões mínimos de projeto e segurança, estabelecidos por organizações como a American Society

for Testing and Materials (ASTM) e a Canadian Standards Association (CSA). A atualização mais recente desses padrões foi em 2005, com o documento designado ASTM F1850 (Standard Specification for Particular Requirements for Anesthesia Workstations and Their Components). Os aparelhos de anestesia destinados ao uso veterinário não precisam satisfazer quaisquer projetos ou padrões de segurança específicos, além daqueles associados aos riscos básicos para o operador (i.e., exigências de segurança elétrica). Frequentemente, são acrescentados aspectos de segurança em uma base ad hoc e não há exigências quanto à demonstração da eficácia do equipamento. O ideal é que alguns aspectos de segurança, como alarmes de pressão na via respiratória, façam parte do projeto de qualquer aparelho de anestesia. A inclusão de alguns destes sistemas de segurança nos aparelhos de anestesia pode ajudar a eliminar acidentes anestésicos passíveis de prevenção. No entanto, até que os padrões de segurança e projeto sejam adotados pelos fabricantes de equipamentos de anestesia veterinária, continuará havendo opções de equipamentos de qualidade, eficácia e segurança variáveis para a liberação de anestésicos inalatórios aos animais. O equipamento antigo e de suporte para animais, inclusive monitores e ventiladores, também não é submetido a testes de eficácia e segurança. Felizmente, a maioria dos fabricantes e distribuidores mais confiáveis fornece com presteza as especificações, informação sobre a acurácia e qualquer teste de eficácia de seus projetos. Apesar da existência de padrões, o anestesista veterinário sempre terá de saber bem a função, os princípios de operação e uso de todas as peças do equipamento relacionadas com a anestesia, bem como terá de assegurar que o aparelho ou peça do equipamento tenha um projeto adequado para cumprir sua função com segurança.

Introdução ao manejo da via respiratória e equipamento de suporte O manejo e o suporte da via respiratória são vitais para a liberação segura da anestesia. A maioria dos anestésicos, senão todos, causa depressão respiratória nas doses adequadas para anestesia. Além disso, o relaxamento e/ou a perda dos reflexos das vias respiratórias deixam o paciente mais propenso à obstrução das vias respiratórias superiores. Ambos estes fatores implicam maior risco de hipoxia para o paciente anestesiado. Além disso, os anestésicos inalatórios precisam ser liberados para os pulmões ao mesmo tempo que se minimiza a exposição do ambiente e da equipe aos resíduos de gases anestésicos. Por isso, o manejo e o suporte da via respiratória são aspectos críticos da anestesia geral inalatória, quando realizada adequadamente.

Tubos endotraqueais, dispositivos de isolamento pulmonar, dispositivos supraglóticos para a via respiratória, laringoscópios, auxiliares para intubação e técnicas ■ Tubos endotraqueais Os tubos endotraqueais são usados comumente para manter uma via respiratória em um paciente anestesiado. Dispositivos supraglóticos para via respiratória (DSGVRs ou SGADs, de supraglotic airway devices) também foram avaliados em várias espécies domésticas e podem ser alternativas adequadas em algumas circunstâncias.5–9 Um tubo endotraqueal ou dispositivo supraglótico para via respiratória bem colocado com coxim insuflado adequadamente proporciona uma via respiratória para o paciente, facilita a ventilação com pressão positiva, protege os pulmões contra a aspiração de líquidos e impede a contaminação do ambiente de trabalho com resíduos de gases anestésicos. Ocasionalmente, é melhor limitar o manejo da via respiratória a um único pulmão (i.e., toracoscopia), dispondo-se de equipamento projetado especialmente para cumprir esta tarefa em cães. Há muitos estilos e tipos de tubos endotraqueais que podem ser usados na medicina veterinária. A maioria é fabricada para pacientes humanos, mas também pode ser usada na maioria dos pequenos animais. Há alguns produtos veterinários específicos para pacientes que precisam de tubos maiores e menores do que os disponíveis para uso humano. Os tubos endotraqueais fabricados para pacientes humanos precisam ter várias marcações e abreviaturas diretamente no tubo que descrevam cada característica do mesmo e também a profundidade de inserção. As marcações podem incluir o fabricante, o diâmetro interno (I.D.) e o externo (O.D.), seu comprimento e códigos de identificação, indicando a toxicidade tecidual ou testes de implantação (p. ex., F29) (Figura 3.1). Não há exigências para marcações semelhantes nos tubos fabricados exclusivamente para uso veterinário, mas é comum constarem neles, no mínimo, o diâmetro e o comprimento. Em geral, o tamanho dos tubos endotraqueais é dado de acordo com seu diâmetro interno. Por exemplo, um tubo endotraqueal de tamanho 6.0 é aquele com diâmetro interno de 6 mm. Alguns tubos fabricados especificamente para uso veterinário têm o tamanho indicado pela escala de calibre francês para cateter, e, em geral, isto reflete, embora nem sempre, seu diâmetro interno. O diâmetro externo de um tubo de qualquer tamanho pode variar, dependendo da construção do tubo. Nos tubos endotraqueais com paredes mais espessas, a diferença entre o diâmetro interno e o externo é maior, o que pode ser importante ao se escolher um deles para animais muito pequenos. Os tubos de parede muito espessa terão, de fato, o diâmetro interno da via respiratória muito reduzido, em comparação com um de parede fina, pois o

tamanho de um tubo endotraqueal que pode ser colocado em um paciente é limitado pelo seu diâmetro externo, não pelo interno. Contudo, os tubos macios de parede muito fina são suscetíveis à obstrução decorrente da compressão externa ou por causa de dobras (Figura 3.2). Os materiais comuns de tubos endotraqueais incluem cloreto de polivinil, silicone ou borracha vermelha. Os tubos endotraqueais preferidos são, em geral, os transparentes, porque podem ser inspecionados visualmente quanto à presença de muco ou sangue, no período intraoperatório, ou de resíduos após a eliminação. Em geral, deve-se usar o tubo endotraqueal do tamanho maior, que se adapte à traqueia do paciente sem causar traumatismo. Embora haja várias regras básicas para selecionar o tamanho de um tubo, provavelmente é mais fácil estimar o tamanho mais apropriado do tubo palpando-se a área cervical da traqueia do paciente. O tubo não deve estender-se distalmente além da entrada torácica e o ideal é que não se estenda rostralmente além dos dentes incisivos do paciente, pois qualquer tubo que faça isso aumentará o espaço morto mecânico. Se o tubo endotraqueal for muito comprido, e a inserção adicional levar à possibilidade de intubação endotraqueal, a extremidade do aparelho pode ser cortada e o conector do tubo, reinserido.

Figura 3.1 A. A maioria dos tubos endotraqueais tem aspectos comuns no projeto. Contudo, o projeto e os materiais específicos podem variar entre os diversos fabricantes. B. Os tubos podem ser feitos de silicone, cloreto de polivinil e borracha vermelha (de cima para baixo). (Fonte: B. Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.) (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 3.2 Tubos endotraqueais de parede muito fina são propensos à oclusão em decorrência de compressão externa ou dobras. É necessária a avaliação contínua da permeabilidade do tubo endotraqueal quando são usados tubos endotraqueais de parede fina muito flexíveis. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

O tipo de tubo endotraqueal mais comumente usado, tanto para grandes como pequenos animais, é o do tipo Murphy com manguito, mostrado na Figura 3.1. Os tubos do tipo Cole e os protegidos (espiral embutida, blindada) também são usados ocasionalmente na medicina veterinária. Os tubos Cole ficam em um tubo sem manguito que tem um diâmetro menor na extremidade do paciente (distal) com relação à extremidade do aparelho (proximal). A parte do tubo com o diâmetro distal menor é inserida na traqueia até onde o ombro entra em contato com a laringe, formando uma vedação. Entretanto, os tubos Cole não têm a mesma segurança de via respiratória de um tubo padrão com manguito e normalmente são usados apenas em pacientes muito pequenos, para intubação por pouco tempo (Figura 3.3). Tubos protegidos incorporam uma espiral de metal ou náilon que reforça o arame no tubo e, assim, ajuda a impedir que ele se feche (colapse) e haja oclusão (Figura 3.4). Os tubos protegidos são úteis nas situações em que há probabilidade de o tubo ser comprimido ou dobrar-se, como nos procedimentos que requerem extrema flexão da

cabeça e do pescoço (p. ex., coleta de líquido cerebrospinal cervical e procedimentos oftalmológicos) ou aqueles que envolvem compressão da traqueia (p. ex., retração traqueal durante abordagem ventral à coluna vertebral cervical).

Figura 3.3 Tubo endotraqueal Cole, demonstrando o ombro afilado, usado para posicionar o tubo na laringe, formando uma vedação. Notar que o tubo não tem manguito ou balão-piloto.

Figura 3.4 Tubos protegidos contêm uma espiral metálica ou de náilon (A), que impede seu colapso (fechamento) se encurvados ou dobrados (B). Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

A extremidade do tubo que o conecta ao aparelho contém o conector do tubo endotraqueal. A parte mais proximal do conector, usado para pequenos animais e seres humanos, tem um tamanho uniforme (15 mm de diâmetro externo [O.D.]), facilitando a conexão universal a todos os circuitos anestésicos considerados dentro do padrão. Tubos projetados para grandes animais costumam ter conectores maiores, que incluem tipos de metal e funil. O tamanho da extremidade distal (do paciente) do conector varia de acordo com o diâmetro do tubo endotraqueal. Adaptadores do tubo endotraqueal também podem incorporar saídas para amostragem de gás (Figura 3.5), particularmente úteis em pacientes pequenos, nos quais a minimização do espaço morto pode ser importante e pode melhorar a acurácia da amostragem de gases em pacientes pequenos, em que costumam ser usados sistemas não respiratórios.

Figura 3.5 Dois adaptadores de tubo endotraqueal que incorporam uma saída para amostragem de gás. Notar o diâmetro interno (volume) do projeto pediátrico à direita. Este tipo de projeto pode ajudar a melhorar a acurácia da amostragem do gás corrente e residual em pacientes menores. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Os tubos endotraqueais destinados aos grandes animais normalmente são fabricados com um adaptador afunilado de silicone (Figura 3.6), projetado para se adaptar a uma peça

em Y para grandes animais (54 mm de O.D.). Também há adaptadores de aço inoxidável (22 mm de O.D.), projetados para adaptação ao dispositivo de inserção Bivona, às vezes, encontrado em peças em Y para grandes animais. A extremidade do paciente (distal) do tubo endotraqueal normalmente é biselada. Os tubos do tipo Murphy têm um orifício na parede do tubo oposta à do bisel, com referência ao olho ou orifício de Murphy (ver Figura 3.1A). A finalidade do orifício é proporcionar uma via alternativa para o fluxo de gás se a abertura biselada ficar obstruída. Os tubos endotraqueais sem olho de Murphy são conhecidos como do tipo Magill. É possível encontrar a maioria dos tamanhos de tubo endotraqueal sem manguito inflável, embora o uso de tubos com manguito proporcione uma via respiratória mais confiável. Os tubos sem manguito tendem a ter o diâmetro muito pequeno, de modo que o acréscimo de um manguito pode não ser viável ou limitar o diâmetro máximo do tubo que pode ser usado em um paciente. O manguito fica na extremidade do aparelho em que se localiza o olho de Murphy nos tubos com manguito e pode ser um projeto de volume baixo e alta pressão ou de volume alto e baixa pressão (Figura 3.7). Em geral, os manguitos de volume alto e pressão baixa são preferidos para minimizar o risco de lesão traqueal isquêmica, que pode resultar de pressão excessiva contra a parede traqueal. Quando se usa um tubo endotraqueal com manguito de alto volume e pressão baixa que se adapta bem, a pressão exercida pelo manguito sobre a parede traqueal é similar àquela dentro do manguito. Isto permite uma estimativa melhor da pressão exercida pelo manguito na parede traqueal. Quando se usa um tubo endotraqueal com manguito de alta pressão e volume baixo, a pressão dentro do manguito não reflete aquela na parede traqueal, mas sim a criada pela espiral elástica do manguito, dificultando as estimativas da pressão exercida pelo manguito sobre a parede traqueal. Pressões na parede traqueal que ultrapassem 48 cmH2O podem impedir o fluxo sanguíneo capilar, com o potencial de causar lesão traqueal isquêmica, e pressões abaixo de 18 mmHg podem aumentar o risco de aspiração.10 Também há vários casos de ruptura da traqueia ou seus relatos na medicina veterinária, ocasionando pneumotórax, pneumomediastino e/ou enfisema subcutâneo.11

Figura 3.6 Dois tubos endotraqueais usados para anestesia em grandes animais. Estes

tubos costumam ser de silicone e fabricados com um funil adaptador, também de silicone, que é compatível com a peça em forma de Y da maioria dos circuitos respiratórios para anestesia em grandes animais. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.7 O tubo endotraqueal de cima tem um manguito de alto volume e baixa pressão, enquanto o tubo de baixo é um exemplo de um manguito de alta pressão e baixo volume. Notar o volume que pode ser associado ao primeiro, em comparação com o segundo. O volume associado a alguns manguitos pode limitar o tamanho do tubo endotraqueal, o que pode causar problemas em pacientes muito pequenos. Entretanto, os manguitos de alto volume e baixa pressão podem ajudar a reduzir o dano endotraqueal resultante da hiperinsuflação do manguito. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Um método confiável para assegurar que as pressões do manguito estejam dentro da faixa recomendada é usar um monitor de manguito para insuflar aqueles de volume alto e pressão baixa. Um monitor de manguito é essencialmente um manômetro de pressão baixa, similar ao usado para medir a pressão arterial com o Doppler, inserido ao balão-piloto do manguito para fornecer uma medida da pressão dentro dele. Há outros guias de insuflação de manguito disponíveis no comércio para o mercado humano que podem ser adaptados para uso veterinário (Figura 3.8). Como alternativa, é mais comum usar um teste de vazamento, que é realizado insuflando-se o manguito até não se ouvir mais um vazamento, enquanto são mantidas pressões na via respiratória de 20 a 30 cmH2O. O balão-piloto usado para insuflar o manguito de um tubo endotraqueal é conectado ao manguito por um canal

incorporado no tubo endotraqueal e, normalmente, inclui uma seringa com sistema de válvula de vedação ativado automaticamente. No entanto, também há balões-pilotos sem válvulas e sem sistema de autovedação, que precisam ser fechados com uma pinça ou rolha.

Figura 3.8 Pode-se usar um guia ou monitor de insuflação de manguito para avaliar as pressões dentro do tubo endotraqueal e ele pode ajudar a evitar lesão traqueal secundária a pressões excessivas sobre a parede traqueal. Há vários estilos disponíveis. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Recentemente, foi lançado no mercado veterinário um tubo endotraqueal autosselante sem manguito (Safe-SealTM, Innovative Animal Products, Rochester, MN, EUA, 55901), com uma série de orlas aneladas flexíveis na extremidade que fica no paciente e se deformam, adaptando-se aos contornos da traqueia, formando uma vedação contra a parede traqueal, que elimina a necessidade de insuflação do manguito (Figura 3.9). Atualmente, não há estudos de pesquisa independentes avaliando a efetividade deste tubo para uso na anestesia veterinária. Ele está disponível em um número apenas limitado de diâmetros internos e difere de um tubo endotraqueal convencional por não ter o olho de Murphy nem o manguito inflável.

■ Tubos endotraqueais para isolamento de um pulmão Além dos tubos endotraqueais que acabamos de descrever, existem outros projetados especialmente para isolar e ventilar um só pulmão. As indicações para o uso destes tubos incluem melhora das condições cirúrgicas em vários procedimentos torácicos (i.e., toracoscopia), controle de contaminação ou hemorragia e uso nas circunstâncias em que há patologia unilateral. Em geral, há três métodos de isolamento ou ventilação de um único pulmão: um tubo de lúmen duplo (TLD), um bloqueador brônquico ou o uso de um tubo endotraqueal padrão longo. É provável que a intubação endobrônquica para a ventilação ou o isolamento de um único pulmão seja menos desejável, pois ela proporciona um controle menos direto para fazer alterações no pulmão não intubado. Contudo, não requer equipamento especializado, além de um tubo endotraqueal com comprimento suficiente, e é relativamente fácil de fazer. Tem sido usada com sucesso em cães e pode ser uma alternativa quando não se dispõe de TLDs e bloqueadores brônquicos.12,13 Os TLDs tendem a ser a opção preferida na medicina humana. Todos os TLDs disponíveis no comércio foram projetados especificamente para pacientes humanos e adaptados para uso em cães. Vários tipos deles foram avaliados em cães de uma grande variedade de tamanhos e raças.14–17 Os TLDs, na verdade, consistem em dois tubos unidos em um lúmen único e estão disponíveis para o lado direito e o esquerdo (Figura 3.10), conforme o brônquio principal ao qual deve adaptar-se. A maioria dos TLDs é projetada com uma extremidade distal angulada para facilitar a colocação em um ou outro brônquio. Os três estilos mais comuns são o Robertshaw, o Carlens e o White. Eles têm dois

manguitos elípticos, um para ocluir a traqueia e outro para ocluir o brônquio (Figura 3.11). O manguito brônquico e o balão-piloto normalmente são azuis, para diferenciá-los do manguito traqueal.

Figura 3.9 Um exemplo de tubo endotraqueal autosselante (A). Ele não tem manguito inflável e, em vez disso, contém uma série de orlas moles flexíveis para dar segurança à via respiratória (B). Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.10 Um exemplo de tubo endotraqueal de lúmen duplo esquerdo de Robertshaw. Os TLDs podem ser usados para ventilar seletivamente um ou ambos os campos pulmonares em cães de tamanho apropriado. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

O formato e o projeto dos manguitos brônquicos direitos variam para facilitar a ventilação do lobo pulmonar direito superior em seres humanos. O uso de tubos direitos em cães pode resultar em maior incerteza na colocação e falhas, pois o brônquio do lobo pulmonar cranial direito do cão se ramifica mais proximal que no ser humano, e o manguito brônquico pode ocluir o brônquio ou ocorrer falha no isolamento completo do hemitórax. Em geral, os tubos esquerdos são usados com maior frequência e podem ser efetivos tanto nos procedimentos do lado esquerdo como do direito. Mesmo se houver necessidade de pinçamento ou transecção proximal do brônquio principal esquerdo, o tubo do lado esquerdo pode simplesmente ser retirado da traqueia, de modo que a parte distal do tubo no brônquio não interfira no pinçamento. O lúmen interno da parte traqueal do tubo é oval ou em forma de D e os tamanhos são projetados usando-se a escala francesa, que varia de 26 a 41. O lúmen reduzido aumenta a resistência à respiração, em comparação com o lúmen de um tubo de tamanho padrão apropriado, mas isto é superado pelo uso frequente de ventilação com pressão positiva intermitente nestes casos. Os TLDs permitem que o anestesista ventile cada campo pulmonar independentemente do outro ou ambos em

conjunto, sem trocar ou mover o tubo, mas requer desconexão e reconexão do circuito anestésico ao adaptador apropriado do tubo endotraqueal (brônquico ou traqueal) ou ambos, usando-se um adaptador com peça em Y (Figura 3.12).

Figura 3.11 Imagem de perto demonstrando a extremidade distal de um tubo endotraqueal de lúmen duplo Robertshaw esquerdo. Notar o ângulo da extremidade distal do tubo e os dois manguitos. O manguito azul mais distal é o brônquico. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

A capacidade de ventilar de maneira seletiva cada campo pulmonar ou ambos simultaneamente é uma vantagem distinta sobre os sistemas de bloqueio brônquico ou intubação endotraqueal, quando as condições cirúrgicas exigem operar em ambos os lados

do tórax. Contudo, os tamanhos que costumam estar disponíveis limitam o uso dos TLDs em cães de 5 a 20 kg de peso. Alguns TLDs (Carlens, White) também têm incorporado um gancho de carina projetado para ajudar na colocação apropriada do tubo e evitar movimentação após o posicionamento. Em animais, esta modificação, na verdade, pode ser prejudicial em vez de contribuir para a colocação correta do tubo.14 Também é preciso cuidado ao colocar TLDs com um gancho de carina, para assegurar que ele não se prenda em quaisquer tecidos ou estruturas ao se introduzir o tubo na traqueia. Por isso, é provável que o TLD Robertshaw esquerdo seja o tipo mais versátil para uso em cães. Em animais, a colocação correta de um TLD em geral é confirmada por visualização direta, usando-se um broncoscópio de pequeno diâmetro. Recentemente, também foi descrita uma técnica toracoscópica assistida.14 A colocação correta e completa também é confirmada pela ventilação de ambos os campos pulmonares, direito e esquerdo, auscultando-se os sons pulmonares. A colocação correta e completa deve ventilar todos os campos pulmonares pretendidos (i.e., direito ou esquerdo), sem ventilar qualquer um dos campos do lado contralateral. Embora a colocação às cegas de alguns tubos seja possível, está associada a um índice de falhas relativamente alto no sentido da colocação correta e completa do tubo.14 Pequenos movimentos do tubo e/ou do paciente podem anular a colocação correta e completa, ocasionalmente com prolapso do manguito brônquico para a traqueia, causando obstrução completa da via respiratória. É necessário vigilância por parte do anestesista para reconhecer e corrigir quaisquer problemas de posicionamento que possam ocorrer (p. ex., desinsuflação do manguito brônquico).

Figura 3.12 Os TLDs podem ser usados para ventilar (ou colapsar) cada campo pulmonar independentemente ou ambos ao mesmo tempo (A). A configuração do adaptador necessário para ventilação (ou colapso) de um campo pulmonar independente e (B) o uso de um adaptador em Y para facilitar a ventilação simultânea de ambos os campos pulmonares. Notar o balão-piloto azul e o tubo azul correspondentes à parte brônquica do tubo. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Os bloqueadores brônquicos representam outro sistema para facilitar o isolamento ou a ventilação de um pulmão em cães (Figura 3.13).13,15,18,19 Na anestesia humana, em geral são usados quando o tamanho do paciente impede o uso de um TLD ou há anormalidades ou diferenças anatômicas que impeçam a adaptação ideal de um tubo. O fato de serem muito adaptáveis para uso em uma ampla variedade de tamanhos de pacientes e não tão específicos em termos anatômicos como os TLDs constitui vantagens distintas de seu uso na anestesia veterinária. Entretanto, não é possível a ventilação pulmonar independente sem retirá-los e recolocá-los no brônquio contralateral. Os bloqueadores brônquicos são essencialmente cateteres longos, com um manguito ou balão inflável elíptico ou redondo na ponta (Figura 3.14). Os manguitos e balões-pilotos da maioria dos bloqueadores brônquicos projetados são azuis para diferenciá-los daqueles dos tubos endotraqueais. Como seria esperado, cateteres de Foley ou do tipo balão, usados como bloqueadores brônquicos, não seguem este esquema de cor. Os bloqueadores brônquicos podem ser usados coaxialmente ou em paralelo com um tubo endotraqueal padrão. Vários adaptadores giratórios são comercializados com bloqueadores brônquicos para facilitar o uso coaxial. Os adaptadores giratórios conectam-se ao adaptador do tubo endotraqueal e têm saídas para a passagem do bloqueador brônquico, um broncoscópio e um conector para o circuito anestésico (Figura 3.15).

Figura 3.13 Um exemplo de sistema de bloqueio brônquico de uso comum em veterinária. O sistema consiste em um bloqueador brônquico (cateter com balão na ponta) e um adaptador giratório, que permite a colocação coaxial do bloqueador. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

As saídas são projetadas de maneira a impedir vazamento e fixar o bloqueador brônquico assim que for colocado. Também há um produto coaxial para uso humano no comércio (tubo Univent®, Teleflex Inc., Limerick, PA, EUA), que incorpora o bloqueador brônquico em um canal que passa pelo lúmen do tubo endotraqueal. Todavia, o comprimento do bloqueador brônquico é limitado e pode não ser suficiente para pacientes maiores. Também se pode usar um cateter com balão (de Fogarty ou Foley) como bloqueador brônquico, colocado em paralelo com o tubo endotraqueal ou coaxialmente com um adaptador modificado para isso (Figura 3.14).

Figura 3.14 O cateter amarelo (mais externo) com o óbvio balão-piloto é projetado especificamente para uso como um bloqueador brônquico. O cateter interno mais curto é um cateter de Foley com balão na ponta. Embora os cateteres de Foley não sejam projetados para uso como bloqueadores brônquicos, têm sido colocados com tubos endotraqueais e usados com sucesso para bloqueio brônquico, mas seu uso e sua colocação não são tão simples como os de um bloqueador brônquico projetado para isso. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. (Esta figura encontrase reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 3.15 Um exemplo do adaptador de via respiratória fornecido com o Arndt Endobronchial Blocker™ (Cook Medical, Bloomington, IN, EUA). O adaptador é colocado entre o do tubo endotraqueal e o circuito respiratório. Na saída para a direita, encaixa-se no adaptador do tubo endotraqueal; as saídas que se movimentam em sentido horário incluem a saída brônquica (com uma adaptação anular de compressão), uma saída para um broncoscópio e a saída do circuito do paciente. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Os bloqueadores brônquicos requerem visualização direta com broncoscópio de fibra óptica para a colocação correta. Um dos únicos aspectos em que os bloqueadores brônquicos superam os TLDs é que podem ser usados para isolar um único lobo pulmonar, além do hemitórax inteiro. O bloqueador brônquico pode ser direcionado para o brônquio para ser bloqueado pela manipulação direta de sua parte proximal ou pela colocação de uma guia metálica no brônquio a ser bloqueado, deslizando o bloqueador sobre ela. Um bloqueador brônquico (Arndt Endobronchial BlockerTM, Cook Medical, Bloomington, IN, EUA) tem uma pequena alça metálica que sai da sua extremidade distal (Figura 3.16). A alça pode ser usada para facilitar a colocação, deslizando-a sobre a extremidade do broncoscópio. Assim que se consiga a colocação correta, pode-se insuflar o balão ou manguito, impedindo a ventilação daquela região. Deixa-se então que o pulmão colapse, abrindo-se o canal do cateter do bloqueador brônquico. O canal aberto pode ser usado para aplicação de pressão positiva contínua da via respiratória (CPAP, de continuous positive

airway pressure), insuflação de oxigênio e/ou aspiração. A colocação do bloqueador brônquico no brônquio direito pode ser um desafio, por causa do ramo proximal do lobo pulmonar cranial. O prolapso de um bloqueador brônquico na traqueia pode ocasionar obstrução completa da via respiratória, mais provável quando a colocação é proximal no brônquio e/ou se o tubo montado com o bloqueador brônquico for retirado inadvertidamente ao se mover ou manipular o paciente.

■ Dispositivos supraglóticos para via respiratória Tais dispositivos (DSGVRs ou SGADs), também conhecidos como máscaras laríngeas para vias respiratórias (MLVRs ou LMAs, de laryngeal mask airways), estão ficando cada vez mais populares para uso veterinário. Há um grande número de produtos projetados para os seres humanos que têm sido adaptados para uso veterinário. No entanto, estes produtos foram otimizados especificamente para a anatomia orolaríngea/faríngea de seres humanos e podem não servir bem para a anatomia variada, o tamanho do paciente, as espécies e as raças comumente encontradas na medicina veterinária. O uso apropriado destes produtos é importante porque um SGAD impróprio e/ou a escolha inadequada de um paciente podem levar a dificuldades ou falhas na colocação, dano aos tecidos da região orofaríngea e/ou proteção inapropriada e permeabilidade das vias respiratórias. Recentemente, foi lançado no mercado um SGAD veterinário específico (v-gel® para gatos e coelhos, Docsinnovent Ltd, Londres, RU), projetado para uso em gatos e coelhos (Figura 3.17).

Figura 3.16 A extremidade distal de um Arndt Endobronchial Blocker™ (Cook Medical, Bloomington, IN, EUA) mostrando a alça metálica usada para facilitar a colocação adequada usando-se um broncoscópio. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.17 Máscaras laríngeas específicas veterinárias (v-gel®) projetadas para uso em gatos (A) e coelhos (B). Elas podem ser usadas como alternativas à intubação traqueal e são mais fáceis de colocar que tubos endotraqueais em algumas espécies. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Os SGADs representam uma alternativa à intubação endotraqueal para manutenção de uma via respiratória patente, e há alguma evidência de que sua colocação seja mais simples e rápida que a dos tubos endotraqueais em algumas espécies.20–22 Também há alguma evidência de que a necessidade de anestésico é menor com a colocação de um SGAD, em comparação com um tubo endotraqueal. A colocação dos SGADs não requer o uso de um laringoscópio e eles não entram na laringe ou na traqueia. Um dispositivo típico consiste em um tubo, similar a um tubo endotraqueal, conectado a uma máscara elíptica que tem uma borda externa inflável. Quando colocados e insuflados corretamente, formam uma vedação em torno da glote. Os critérios para corrigir a colocação de um SGAD foram descritos em várias espécies e devem ser revistos antes do uso destes dispositivos.20,22,23 SGADs colocados e insuflados corretamente não estão associados a maior vazamento de gases anestésicos, em comparação com tubos endotraqueais, e a ventilação com pressão positiva mediante o uso de um SGAD foi realizada com sucesso e avaliada em várias espécies veterinárias.6,8,20,24–26 O uso de SGADs ainda é relativamente comum na medicina veterinária, mas, à medida que seu uso aumenta e mais estudos prospectivos em grande escala são completados, podem ser detectadas mais vantagens e desvantagens relacionadas com eventos relativamente raros (p. ex., refluxo gastresofágico e aspiração subsequente, irritação significativa da via respiratória após a extubação).

■ Laringoscópios Consistem em um cabo e uma lâmina iluminada, sendo usados para ajudar na intubação traqueal e na avaliação orofaríngea durante a intubação. Infelizmente, os laringoscópios em geral são considerados uma peça opcional do equipamento relacionado com anestesia, mas seu uso apropriado pode ser vital para a intubação bem-sucedida em alguns pacientes (p. ex., os braquicefálicos e aqueles com traumatismo laríngeo/oral). Qualquer que seja a necessidade absoluta de intubação assistida com laringoscópio, seu uso é recomendado em todas as intubações para assegurar que o anestesista mantenha suas habilidades motoras e a coordenação para usar adequadamente um laringoscópio e, assim, possa realizar uma avaliação orofaríngea. Há vários estilos e tipos de laringoscópios e lâminas disponíveis. Alguns laringoscópios têm uma lâmina fixa (i.e., de tipo e tamanho determinados) e podem ser feitos de plástico, enquanto outros são projetados para uso com lâminas de vários tamanhos e estilos, sendo feitos de aço inoxidável. Como na medicina veterinária há uma grande variedade de

tamanhos de pacientes, com configurações diferentes da cavidade oral, a opção de usar múltiplas lâminas é uma vantagem significativa ao se escolher um laringoscópio. O tamanho do cabo também pode variar e, embora isto raramente cause impacto no uso funcional do laringoscópio, um cabo menor pode ser mais confortável e fácil para alguns anestesistas manipularem, em particular quando usados para intubar pacientes muito pequenos. Em geral, os cabos são específicos para iluminação com fibra óptica ou bulbo na lâmina, embora haja alguns cabos que possam aceitar qualquer tipo de sistema de iluminação da lâmina. Não há uma vantagem nítida de um sistema de iluminação sobre outro. Existem dois tipos de lâminas usadas na medicina veterinária, a MacIntosh e a Miller. Ambas são comercializadas em vários tamanhos (000 a 5). A MacIntosh é uma lâmina curva com flange (ou orla) vertical proeminente, enquanto a Miller é uma lâmina reta com flange vertical menos proeminente; ambas são adequadas para intubação da maioria dos pacientes e a decisão de usar uma ou outra costuma ser determinada pela preferência pessoal (Figura 3.18). Entretanto, o flange proeminente da MacIntosh pode interferir na visualização da laringe, quando usada para intubar animais (ver adiante). Além das lâminas de tamanho padrão disponíveis na medicina humana, também existem lâminas do estilo Miller extremamente longas (cerca de 300 mm), úteis para intubar suínos, camelídeos, ovinos e caprinos.

Figura 3.18 Cabo de laringoscópio com lâminas de Miller (no alto) e MacIntosh (abaixo). Notar o flange vertical mais proeminente na MacIntosh. Este flange pode prejudicar a visualização da laringe ao se intubar um paciente em decúbito esternal usando-se a mão direita. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

É interessante o fato de que a maioria das lâminas de laringoscópios e tubos endotraqueais destinados a uso humano seja projetada para anestesistas que usam a mão direita para passar o tubo endotraqueal, enquanto seguram o laringoscópio com a esquerda. O bisel do tubo endotraqueal fica para a esquerda, se o tubo for visto a partir do aspecto côncavo, e o flange da lâmina do laringoscópio normalmente fica à direita da lâmina, quando ela é vista do alto. Esta configuração proporciona uma ótima visualização da laringe quando se intuba um paciente na posição supina (decúbito dorsal), caso em que o laringoscópio é mantido com a superfície côncava para cima. Contudo, a maioria dos animais é intubada em decúbito esternal, situação em que o flange do laringoscópio na mão esquerda pode obscurecer a visualização, e o bisel do tubo endotraqueal será pequeno para melhorá-la quando na mão esquerda. Há lâminas MacIntosh para uso à esquerda que podem ser mais apropriadas para a intubação rotineira de espécies veterinárias, pois tais lâminas colocam o flange no lado esquerdo da lâmina, melhorando a visualização da área laríngea quando o laringoscópio é segurado com a mão esquerda em posição ereta. Como o flange da lâmina Miller é menos proeminente, não há necessidade real de um projeto para a mão esquerda.

■ Auxílios e técnicas para intubação A intubação orotraqueal na maioria dos animais não requer qualquer equipamento especial, além do uso de um laringoscópio e familiaridade com a anatomia normal do paciente. Todavia, há circunstâncias e situações resultantes de aspectos anatômicos, patologia ou traumatismo que dificultam ou impossibilitam a intubação. É importante que o anestesista esteja familiarizado com as técnicas alternativas e preparado para usá-las, de modo a conseguir uma via respiratória. As seções a seguir mostram algumas opções disponíveis, o equipamento associado e descrevem as técnicas em termos gerais. Para detalhes mais específicos, o leitor deve consultar os capítulos deste livro sobre as espécies ou outras referências sobre anestesia veterinária.27

■ Intubação nasotraqueal É uma técnica útil para procedimentos que envolvem a cavidade oral em que um tubo endotraqueal pode impedir ou limitar o acesso cirúrgico ou diagnóstico, ou ser usada para procedimentos em animais conscientes sedados que não toleram um tubo orotraqueal, mas

precisam de suplementação de oxigênio e suporte. A intubação nasotraqueal também pode ser usada com segurança para a administração de anestésicos inalatórios para indução anestésica em alguns animais (potros e bezerros).28,29 A técnica para intubação nasotraqueal foi descrita em potros, bezerros, cavalos, camelídeos, coelhos e um canguru, mas certamente foi empregada e não relatada em muitas outras espécies de animais.28–32 As características de uma intubação nasotraqueal ideal incluem um tubo com curvatura mínima e comprimento adequado para passar distal à laringe. O tubo deve ser feito de material inerte (p. ex., borracha de silicone) e ter paredes relativamente finas, para maximizar o diâmetro interno, embora isso possa aumentar o risco de compressão ou dobramento do tubo. Manguitos de baixo volume e alta pressão costumam ser menos volumosos e podem ser menos traumáticos durante a colocação, mas os de alto volume e baixa pressão podem ser melhores no caso de anestesia mais prolongada. O tamanho do tubo vai depender da espécie e do tamanho do paciente, mas, em geral, será menor do que um tubo orotraqueal de tamanho apropriado. O diâmetro interno menor pode aumentar a resistência ao fluxo de gás e ser um problema para alguns pacientes que estejam respirando espontaneamente. A intubação nasotraqueal envolve a passagem de um tubo endotraqueal de tamanho apropriado pela narina, pelo meato nasal e pela laringe até a traqueia. Um gel contendo lidocaína pode facilitar a colocação e proporciona lubrificação para o tubo, devendo ser aplicado na narina e na parte rostral da passagem nasal, antes de se avançar o tubo em animais acordados ou sedados. Um lubrificante hidrossolúvel estéril sem lidocaína é apropriado para pacientes anestesiados. O tubo deve ser passado com delicadeza, e pode ser necessária alguma rotação para facilitar a passagem entre os cornetos nasais. Ocasionalmente, ocorre hemorragia nasal ou outro dano tecidual durante esse procedimento, em particular se for empregada força excessiva ou um tubo muito grande com relação às vias nasais, ou se o tubo for passado no meato nasal incorreto. Em geral, a cabeça e o pescoço do paciente devem ser estendidos para facilitar a passagem do tubo desde a nasofaringe até a traqueia. No entanto, por causa das diferenças entre as espécies, pode ser necessário um posicionamento alternativo ou mais manipulação do posicionamento da cabeça, do pescoço e da laringe. O ar deve circular livremente através do tubo, colocado corretamente durante a ventilação espontânea. Pode-se confirmar logo de início se o tubo endotraqueal foi colocado corretamente usando-se o bulbo de uma seringa adaptada à sua extremidade. Assim que o tubo estiver no lugar certo, o bulbo pode ser esvaziado e adaptado ao tubo; se ele se expandir logo, deve estar em uma via respiratória e, se isso não ocorrer, é provável que tenha entrado no esôfago (Figura 3.19). Para uma confirmação definitiva da colocação correta do tubo, os sons pulmonares devem ser auscultados durante a ventilação manual

e/ou verificando-se a confirmação da onda na capnografia. A extubação após intubação nasotraqueal deve ser feita com cuidado. Após a desinsuflação do manguito, deve-se retirar o tubo devagar e deliberadamente, com a cabeça do paciente contida, para evitar quaisquer movimentos espasmódicos súbitos. A extubação rápida e sem cuidado pode causar hemorragia nasal.

Figura 3.19 Pode-se usar um bulbo de aspiração adaptado à extremidade do tubo endotraqueal para a avaliação rápida da intubação endotraqueal correta. O bulbo é desinsuflado e adaptado ao tubo, usando-se um adaptador de tamanho apropriado. Se o tubo endotraqueal estiver na traqueia, o bulbo deve voltar a ficar insuflado imediatamente, mas, se estiver no esôfago, em geral isso não vai acontecer. Esta técnica proporciona uma avaliação rápida da intubação correta, quando a visualização direta não é possível (i.e., intubação nasotraqueal), mas sempre deve ser usada em conjunto com outros métodos para se confirmar a intubação endotraqueal apropriada (i.e., observação da onda à capnografia ou auscultação dos sons pulmonares durante a ventilação manual). Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

■ Técnicas orientadas por guia metálica ou tubo Às vezes, são empregadas técnicas orientadas por guia metálica ou tubo, quando a

visualização direta da abertura laríngea não é possível ou está obscurecida. Isto costuma resultar de características anatômicas específicas da espécie (p. ex., coelhos, raças caninas braquicefálicas) e do tamanho do paciente com relação ao equipamento disponível. Por exemplo, o laringoscópio pode ser muito pequeno para ser efetivo em uma vaca, em que se costuma usar a palpação manual e um tubo-guia de diâmetro menor para facilitar a passagem do tubo endotraqueal desejado; em pacientes muito pequenos, a presença simultânea de um laringoscópio e um tubo endotraqueal pode obscurecer a visualização, podendo-se colocar logo de início uma guia metálica fina para facilitar a intubação.33 Em alguns pacientes, traumatismo ou condições patológicas (pólipo ou massa nasofaríngeos) podem obscurecer a abertura laríngea, ficando apenas uma pequena parte visível. Em tais circunstâncias, pode-se introduzir um tubo ou guia metálica de diâmetro pequeno para facilitar a colocação de um tubo endotraqueal do tamanho apropriado (Figura 3.20). A técnica envolve o uso de uma guia (metálica ou tubo) com diâmetro externo menor do que o diâmetro interno do tubo endotraqueal que se pretende introduzir. Essa guia também deve ter um comprimento suficiente para possibilitar a intubação completa (cerca de metade da distância desde a cartilagem cricóidea até a entrada torácica), permitindo ainda que o tubo seja colocado sobre ela e uma parte dela fique disponível para o operador poder segurar enquanto avança o tubo (Figura 3.21). O tubo ou guia metálica deve ter a extremidade cega (romba) para não causar dano à traqueia ou às estruturas associadas. Guias metálicas associadas a alguns cateteres intravenosos (p. ex., cateteres jugulares de lúmen múltiplo) têm a extremidade romba e servem como guias excelentes para alguns pacientes de pequeno porte. Em primeiro lugar, coloca-se a guia de maneira apropriada e, em seguida, o tubo endotraqueal sobre ela e através da abertura laríngea às cegas; ocasionalmente, é necessário fazer uma leve rotação com o tubo, e passá-lo através da laringe durante a inspiração, quando as aritenoides estão completamente abduzidas, facilitando a passagem suave. A guia é então removida e o tubo, fixado no lugar.

Figura 3.20 Exemplos de combinações de várias guias metálicas e tubos para intubação endotraqueal orientada. Coloca-se primeiro, na traqueia, uma guia metálica ou tubo de diâmetro menor, e muito mais fácil de introduzir, do que o tubo endotraqueal do tamanho apropriado. Em seguida, passa-se o último sobre a guia, normalmente sem mais visualização. Assim que se consegue fazer a intubação endotraqueal, remove-se a guia. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Técnica orientada por endoscópio A laringoscopia com um endoscópio flexível ou rígido pode ser útil para ajudar a intubação em pacientes com anatomia anormal ou processos mórbidos que envolvam a faringe, a cabeça ou o pescoço. Também costuma ser usada em pacientes nos quais se pode tentar a intubação usando visualização direta (p. ex., coelhos pigmeus e outros pequenos mamíferos). Dependendo da espécie e das condições específicas, pode-se colocar o endoscópio dentro do tubo endotraqueal para orientar a intubação diretamente ou passá-lo por via oral ao lado do tubo endotraqueal para orientar visualmente a colocação correta. Coelhos e outros pequenos mamíferos são intubados frequentemente empregando-se essa técnica.34 Quando necessário, os endoscópios também podem ser usados para facilitar a intubação nasotraqueal. Esta técnica pode ser particularmente vantajosa em equinos (e outros grandes animais) com anatomia orofaríngea, laríngea e/ou nasal anormal, em que a visualização direta com um laringoscópio é praticamente impossível sem equipamento especializado adaptado.

■ Trocadores de tubo endotraqueal Às vezes é necessário trocar os tubos endotraqueais durante um procedimento cirúrgico ou diagnóstico em um animal anestesiado, por falha do manguito ou quando é preciso usar um tubo de tamanho ou comprimento alternativo. Pacientes posicionados e já com os campos cirúrgicos para a cirurgia, em geral, não estão em uma situação ideal para a intubação. A troca do tubo orientada por uma guia metálica ou outro tubo provavelmente é uma técnica mais fácil e eficiente de fazer o procedimento. Dependendo do tamanho do paciente, podem ser usados trocadores padrões comerciais disponíveis para uso humano. Como alternativa, pode-se usar qualquer tubo ou guia metálica de diâmetro e comprimento suficientes, como, por exemplo, sondas gástricas e cateteres metálicos.

Figura 3.21 Diagrama ilustrando a passagem de um tubo endotraqueal na traqueia de um cão, usando-se um dispositivo que serve como guia (cateter urinário). Fonte: Hartsfield SM. Alternate methods of endotracheal intubation in small animals with emphasis on patients with oropharyngeal pathology. Tex Vet Med 1985; 47:25. Reproduzida, com autorização, de TVMA.

Para trocar tubos endotraqueais, insere-se a guia (metálica ou tubo) através do tubo endotraqueal original para a área da traqueia mesocervical. Deve-se notar que, se o paciente estiver sendo mantido sob anestesia inalatória, é melhor interrompê-la durante a troca do tubo. Dependendo do tempo necessário para trocar o tubo, a profundidade da anestesia pode tornar-se muito leve, devendo-se ter à mão um anestésico intravenoso e um meio de administrá-lo sem demora. A seguir, o manguito do tubo endotraqueal é desinsuflado e o tubo endotraqueal é empurrado sobre a guia, sem removê-la da traqueia. Em seguida, o novo tubo endotraqueal é manobrado através da laringe e para a traqueia, usando-se a guia para direcionar sua passagem. O manguito do novo tubo é insuflado para proteger a via respiratória, e o novo tubo é fixado da maneira apropriada para a espécie em questão.

■ Intubação retrógrada Se a visualização direta de pelo menos uma parte da glote for impossível, pode-se fazer a intubação retrógrada, que foi avaliada como uma técnica alternativa para a intubação

endotraqueal em camelídeos e camundongos da América do Sul,35,36 além da realização de um estudo cadavérico em coelhos.37 A técnica envolve essencialmente a passagem de uma agulha através da pele da parte ventral do pescoço e para a traqueia, entre os anéis traqueais superiores. Em pacientes humanos, a agulha é passada através da membrana cricotireóidea. Uma guia metálica é então manobrada através da agulha rostralmente para a laringe, a faringe e a cavidade oral, até que possa ser usada como guia para a passagem do tubo endotraqueal (Figura 3.22). O tubo endotraqueal é então passado sobre a guia e manipulado na laringe. Depois que a extremidade do tubo endotraqueal está dentro da laringe, a agulha e o tubo-guia são removidos, e o tubo endotraqueal é manipulado em sua posição final, com a extremidade do manguito perto da entrada torácica. O manguito deve ficar caudal ao local de punção da agulha hipodérmica, para evitar forçar gases subcutaneamente ou para o mediastino durante a ventilação com pressão positiva. Enfisema subcutâneo e pneumotórax são complicações possíveis com esta técnica.

Figura 3.22 Ilustração da intubação usando-se um dispositivo como guia retrógrada em um cão. Cateteres ou outros dispositivos metálicos usados como guias são ótimos para este procedimento, graças ao seu pequeno diâmetro. Esta técnica deve ser reservada para os casos em que não se pode fazer a intubação por outros métodos. Fonte: Hartsfield SM. Alternate methods of endotracheal intubation in small animals with emphasis on patients with oropharyngeal pathology. Tex Vet Med 1985; 47:25. Reproduzida, com autorização, de

TVMA.

■ Traqueostomia É possível fazer uma traqueostomia temporária para manejo da via respiratória durante anestesia, porém, como é um procedimento invasivo, ela costuma ser reservada para os pacientes que, mesmo com assistência orientada, a intubação oro ou nasotraqueal não é possível em decorrência da anatomia, das patologias ou do procedimento cirúrgico em questão. Em alguns casos, pode-se recomendar uma traqueostomia para facilitar um procedimento cirúrgico que envolva a orofaringe, embora um tubo de faringostomia possa ser uma alternativa mais desejável, se apropriado. Também se pode colocar um tubo de traqueostomia quando há uma expectativa razoável de que o paciente venha a precisar de traqueostomia após o procedimento anestésico (p. ex., ressecção incompleta de tumor laríngeo). Ocasionalmente, os pacientes podem chegar para receber anestesia já com uma traqueostomia de emergência, em decorrência de obstrução aguda da via respiratória. É relativamente simples fazer a intubação via traqueostomia, mas pode ser complicado em pacientes com traqueia de diâmetro muito pequeno ou naqueles com anéis traqueais muito espessados e calcificados (p. ex., algumas raças caninas braquicefálicas). Pode-se usar um tubo endotraqueal padrão ou de traqueostomia para a intubação, porém é preciso cuidado ao usar um tubo endotraqueal de comprimento padrão, pois facilmente pode resultar em intubação endobrônquica. Em geral, os tubos de traqueostomia são curtos, têm uma curvatura pronunciada e um estilete interno para facilitar a colocação (Figura 3.23). A curvatura também permite fixar o tubo achatado contra o pescoço do paciente e os tubos são normalmente fixados com um adaptador padrão de 15 mm para tubo endotraqueal, manguitos infláveis e balões-pilotos, embora muitos dos tubos de tamanho menor não tenham manguito. Alguns tubos de traqueostomia também têm uma cânula interna removível, para facilitar a limpeza e a manutenção mais prolongada nos pacientes. É muito importante cuidar do tubo. Tubos negligenciados que não são limpos regularmente podem ficar obstruídos por muco, que resseca dentro do lúmen.

Figura 3.23 Um exemplo de tubo de traqueostomia com manguito e estilete interno para facilitar a colocação. Alguns tubos também contêm um tubo interno removível que facilita sua limpeza. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

A traqueostomia tem sido associada a infecção, granulomas, estenose da traqueia, dano à cartilagem, hemorragia, pneumotórax, enfisema subcutâneo, fístula traqueocutânea ou traqueoesofágica, aspiração, disfagia e malacia traqueal, motivos pelos quais não se deve considerar a traqueostomia um procedimento inócuo. As técnicas específicas, indicações e desfechos são revistos nos textos sobre bovinos, equinos, cães e gatos.38–42

■ Faringotomia lateral É uma alternativa para uma traqueostomia e facilita procedimentos cirúrgicos na mandíbula, no maxilar e na cavidade oral. Melhora ainda a visualização dentro do campo operatório durante cirurgia orofaríngea e a oclusão dentária normal, ajudando, assim, na redução adequada de fraturas mandibulares ou maxilares. Também é uma alternativa potencialmente menos invasiva a uma traqueostomia quando o manejo da via respiratória

nasal é indesejável ou inviável para facilitar o procedimento cirúrgico. Esta técnica foi descrita em detalhe em outro texto (Figura 3.24).43 A base da colocação do tubo envolve a passagem de um tubo endotraqueal com manguito do tamanho ideal e a realização de uma incisão cutânea rotineira perto do ângulo da mandíbula. Em seguida, são passadas pinças hemostáticas de ponta romba através da incisão cutânea até a parte caudal da faringe. Após a remoção do adaptador do tubo endotraqueal, sua extremidade no tubo é pega e puxada da faringe, através do tecido subcutâneo e da incisão cutânea. O adaptador do tubo endotraqueal é recolocado e o tubo reconectado ao sistema respiratório para manutenção. Um tubo colocado corretamente deve ser fixado à pele com esparadrapo e vários pontos com fio de sutura.

Figura 3.24 Tubo endotraqueal colocado por faringotomia externa em um cão pequeno, para facilitar a cirurgia orofaríngea. Fonte: Hartsfield SM. Alternate methods of endotracheal intubation in small animals with emphasis on patients with oropharyngeal pathology. Tex Vet Med 1985; 47:25. Reproduzida, com autorização, de TVMA.

Técnicas de administração de oxigênio Usa-se oxigênio suplementar em pacientes anestesiados e criticamente enfermos para aumentar a pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (PaO2) e promover a liberação de oxigênio para os tecidos. Quando um paciente está respirando ar ambiente, valores de PaO2

inferiores a 80 mmHg indicam o potencial de hipoxemia. Qualquer paciente com dificuldade respiratória ou aqueles com probabilidade de ter hipoxia no período perianestésico (p. ex., raças braquicefálicas) devem receber oxigênio suplementar. Se a PaO2 diminuir para menos de 60 mmHg, está indicada a necessidade de oxigênio suplementar. Também é importante lembrar que tanto a hemoglobina como a perfusão tecidual desempenham papéis fundamentais para assegurar a liberação de oxigênio suficiente para os tecidos e, quando indicado, para evitar hipoxia celular, pode haver necessidade de transfusões de hemácias e/ou suporte cardiovascular, além do fornecimento de oxigênio suplementar. A fração de oxigênio nos gases inspirados (FIO2) tem um papel significativo no estabelecimento da PaO2. Como regra, o valor da PaO2 deve ser de aproximadamente cinco vezes o da FIO2 se não houver grandes anormalidades na combinação de ventilação e perfusão pulmonares. A suplementação com oxigênio pode ser um meio efetivo de corrigir a hipoxemia em animais com anormalidades da difusão, má combinação entre ventilação e perfusão e/ou hipoventilação. Além da suplementação com oxigênio, as condições subjacentes específicas que contribuem para hipoxemia devem ser verificadas quando possível. A suplementação com oxigênio pode não melhorar de maneira significativa a PaO2 em pacientes com desvios substanciais da direita para a esquerda (desvios pulmonares ou cardíacos). Várias técnicas podem ser usadas para administrar oxigênio a pacientes anestesiados e enfermos. A avaliação da efetividade da suplementação com oxigênio é feita mediante as respostas clínicas do paciente (p. ex., melhora na cor das mucosas e caráter da ventilação), medindo-se a FIO2 e monitorando-se a PaO2, a saturação arterial de oxigênio (SaO2) e a saturação de oxigênio periférico (SpO2). Embora os dados da PaO2 e da SaO2 sejam confiáveis, requerem amostragem periódica de sangue arterial e o uso de um analisador dos gases sanguíneos. Pode-se medir a SpO2 pela oximetria de pulso, um método prático de estimativa não invasiva, a cada momento da saturação de hemoglobina do oxigênio em animais anestesiados, em recuperação e enfermos.44–51 Várias técnicas para suplementação de oxigênio são delineadas a seguir e, na Tabela 3.1, há um resumo da FIO2 aproximada obtida com cada uma das técnicas disponíveis em cães e gatos.

■ Liberação por máscara As máscaras para liberação de oxigênio destinadas a animais são úteis para pré-oxigenação imediatamente antes da indução da anestesia e para pacientes conscientes com dificuldade respiratória. O uso de máscaras para oxigenação requer atenção constante e alguns pacientes não as aceitam, a menos que estejam sedados. Ambos os fatores limitam a efetividade de máscaras em pacientes conscientes. Na verdade, alguns pacientes reagem tão

violentamente à máscara que o aumento no consumo de oxigênio associado à contenção pode anular os benefícios de uma FIO2 maior. Se a máscara de oxigênio estiver conectada ao circuito anestésico respiratório, deve-se irrigar o circuito para reduzir os odores anestésicos e melhorar potencialmente a complacência, mas sua utilidade é variável. As taxas de fluxo recomendadas para aumentar a FIO2 quando se usa máscara são variáveis entre as espécies. Por exemplo, têm sido recomendadas taxas de fluxo de 10 a 15 ℓ/min de oxigênio suplementar para aumentar a concentração de oxigênio inspirado para aproximadamente 35 a 60% em equinos adultos, embora não haja estudos confirmatórios e a insuflação nasal e a traqueal representem opções melhores e mais práticas em pacientes maiores. As taxas de fluxo para pacientes menores, inclusive cães e gatos, em geral variam de 2 a 8 ℓ/min para produzir uma concentração de oxigênio inspirado de 30 a 60%,52 mas também não há estudos confirmatórios. Com uma máscara bem adaptada, taxas de fluxo de oxigênio mais altas tendem a produzir valores maiores da FIO2 e menos dióxido de carbono expirado. Tabela 3.1 Valores aproximados da FIO2 obtidos com várias técnicas de suplementação de oxigênio para cães e gatos.* FIO2 aproximada obtida

Taxa de fluxo

Fluxo por oxigênio

25 a 40

0,5 a 5 ℓ/min

Máscara facial

35 a 60

2 a 8 ℓ/min

Insuflação nasal

30 a 70

100 a 150 mℓ/kg/min

Insuflação traqueal

40 a 60

50 mℓ/kg/min

Gaiolas de oxigênio

25 a 50

Variável

Técnica

*Estes valores não são aplicáveis a todas as espécies veterinárias durante todas as circunstâncias e dependem da taxa de fluxo e da característica (frequência e profundidade) da respiração. Máscaras bem adaptadas devem ser usadas com um sistema respiratório (circuito anestésico ou bolsa de reanimação manual) que tenha um reservatório capaz de satisfazer as demandas de volume corrente do paciente ou a máscara tenha ventilação ou válvula, permitindo o aprisionamento de ar de fora da máscara. Como exemplo, um cão com volume corrente de 300 mℓ e um período inspiratório de 1 s tem um pico de fluxo inspiratório de gás de aproximadamente 18 ℓ/min, que excede a taxa de fluxo prático para

oxigênio durante o uso da máscara. Altas taxas de fluxo inspiratório podem ser acomodadas se a máscara for conectada a um circuito respiratório anestésico apropriado com uma bolsa como reservatório ou máscara adaptada a uma bolsa de reanimação manual. Além disso, um sistema respiratório apropriado tem um hiperfluxo que impede a formação de pressão excessiva com uma máscara bem adaptada. Como alternativa, pode-se usar uma máscara frouxa que permita a entrada de ar ambiente, mas esse ar reduz a FIO2 inspirada associada à liberação de oxigênio suplementar. É fácil adquirir no comércio máscaras faciais para suplementação de oxigênio em animais (Figura 3.25). A maioria consiste em um cone transparente de plástico adaptado a um diafragma de borracha preta que pode melhorar a conexão e a vedação em torno da face do animal. A menos que estejam sedados ou minimamente responsivos por outros motivos, animais mais conscientes raramente aceitam máscaras faciais no focinho. Embora haja máscaras faciais destinadas especificamente a animais muito pequenos (Figura 3.26), é comum o uso de uma seringa de plástico, luvas de látex e um adaptador de tubo endotraqueal para ‘customizar’ uma máscara facial (Figura 3.27). Cones de trânsito têm sido adaptados e usados em suínos para liberar anestésicos inalatórios.

Figura 3.25 Máscaras faciais à venda no comércio para uso específico em animais muito pequenos. As máscaras são usadas com dois tamanhos de diafragmas intercambiáveis. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Insuflação nasal Insuflação envolve a liberação de oxigênio para a via respiratória do paciente em taxas de fluxo relativamente altas; o paciente inspira oxigênio e ar ambiente, com as proporções relativas de cada um sendo determinadas primariamente pela taxa de fluxo de oxigênio e a de gás durante a inspiração. Pode-se fazer a insuflação por uma variedade de métodos. No caso de equinos que estejam se recuperando da anestesia, o oxigênio pode ser liberado de um fluxômetro por um tubo de liberação e para um tubo de insuflação de tamanho apropriado na cavidade nasal ou na traqueia dos animais. Em geral, são usados tubos endotraqueais de tamanho apropriado ou sondas gástricas para grandes animais como tubos nasais. As sondas gástricas intactas têm comprimento suficiente e também podem ser usadas para insuflação traqueal se avançadas pela cavidade nasal para a traqueia. Na maioria dos animais conscientes, o oxigênio é insuflado por um cateter nasal cuja ponta é posicionada na nasofaringe. O cateter costuma ser de borracha macia e o tubo deve ter várias fenestrações, para minimizar a ocorrência de lesões causadas por fluxo na mucosa nasofaríngea. No caso de pacientes despertos, instila-se lidocaína a 2% (ou em gel) ou proparacaína a 0,5% na passagem nasal, com a cabeça e o pescoço do animal estendidos e elevados para facilitar a passagem do tubo. A colocação envolve a inserção de um cateter de insuflação de tamanho adequado na passagem nasal e na nasofaringe, a distância sendo aproximadamente a mesma da ponta do nariz ao canto medial do olho. Há cateteres projetados especificamente para insuflação nasal (com múltiplas fenestrações) ou eles podem ser feitos de sondas para alimentação ou de outro tubo não reativo macio e adaptados à linha de liberação de oxigênio. A parte externa do cateter é fixada à cabeça do paciente com fita adesiva e/ou suturas ou grampos. Um tubo flexível de comprimento adequado fornece oxigênio de um fluxômetro e permite que o paciente faça algum movimento livre em uma gaiola ou baia. A troca do cateter para a via nasal oposta a cada 1 a 2 dias foi recomendada para evitar necrose por pressão, lesões por fluxo e acúmulo de muco.53 A umidificação do oxigênio também é aconselhável se houver necessidade de insuflação por um tempo maior.

Figura 3.26 A e B. Existem no comércio máscaras faciais de muitos estilos e tamanhos. Deve-se escolher uma que minimize o potencial de o animal voltar a respirar os gases exalados (i.e., que esteja bem adaptada), em especial quando usada com o diafragma de borracha no lugar. Fonte: Advanced Anesthesia Specialists, Phoenix, AZ, EUA. Reproduzida, com autorização, de Advanced Anesthesia Specialists.

Figura 3.27 As máscaras faciais podem ser confeccionadas com peças de seringas e luvas de borracha, podendo servir para animais muito pequenos. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

As exigências de taxa de fluxo de oxigênio durante insuflação são variáveis, e a característica da ventilação do paciente e a FIO2 desejada são dois fatores importantes que causam impacto nas taxas de fluxo adequadas. Após a anestesia, equinos adultos precisam de um mínimo de um fluxo de 15 ℓ de oxigênio/min para melhorar a PaO2 no sangue arterial, e, proporcionalmente, fluxos menores (p. ex., 5 ℓ/min) são adequados para equinos menores, potros e bezerros.54–57 Em pequenos animais, costumam ser usadas taxas de fluxo de 1 a 7 ℓ/min para a administração nasal de oxigênio. Foram sugeridas taxas de fluxo aproximadas para que se consigam faixas mais específicas de FIO2 em cães e gatos, mas o monitoramento da SpO2 ou a PaO2 deve orientar o ajuste da taxa de fluxo.58 Em cães, foram estudadas várias taxas de fluxo de 100% de oxigênio administrado por via intranasal, e taxas de fluxo de 50, 100, 150 e 200 mℓ/kg/min produziram concentrações de oxigênio inspirado medidas na bifurcação traqueal de 28, 37, 40 e 47, respectivamente.53 Para

prevenir que ocorra ressecamento da mucosa com a insuflação prolongada, o oxigênio deve fluir por um umidificador do tipo bulbo. Frequentemente, são colocados cateteres de insuflação nasal bilaterais, e pode-se esperar que a FIO2 máxima alcançável melhore, conseguindo-se até 80% a 200 mℓ/kg/min.59

■ Insuflação traqueal Pode-se conseguir a insuflação traqueal via administração de oxigênio nasotraqueal ou transtraqueal, técnicas úteis para pacientes com condições que causam obstrução da via respiratória superior. A insuflação transtraqueal é conseguida passando-se um cateter pelas narinas até a traqueia. Em animais conscientes, esse processo normalmente é realizado após instilação de um anestésico tópico local (lidocaína, proparacaína) no nariz, usando-se um lubrificante que contenha um anestésico local (lidocaína em gel). Para facilitar a colocação do tubo na traqueia e não no esôfago, o pescoço do animal deve estar estendido. Pacientes conscientes em geral tossem, à medida que o cateter entra na laringe; pode-se diminuir a tosse instilando-se uma pequena quantidade de lidocaína tópica no tubo nasotraqueal na área laríngea. Pode-se avaliar a colocação adequada do tubo nasotraqueal demonstrando ausência de pressão negativa quando o ar é evacuado do tubo ou cateter. É possível evacuar o ar com uma seringa de tamanho apropriado ou mediante a compressão do bulbo de aspiração para o cateter. Se for detectada pressão negativa enquanto se faz a evacuação do ar do tubo, isto sugere que o tubo não está na traqueia e pode ter sido deglutido pelo paciente e está no esôfago. Pode-se colocar um cateter transtraqueal por via percutânea na traqueia através da membrana cricotireóidea ou entre os anéis traqueais da laringe e usá-lo para insuflar oxigênio em pacientes comprometidos. A administração intratraqueal de 100% de oxigênio foi avaliada em cães, e taxas de fluxo de 10, 25, 50, 100, 150, 200 e 250 mℓ/kg/min produziram concentrações de oxigênio inspirado de 25, 32, 47, 67, 70, 78 e 86%, respectivamente, na bifurcação traqueal.58 A técnica para insuflação traqueal foi descrita em pequenos animais.58 O cateter deve ser colocado de maneira asséptica, ser do tipo que passa sobre a agulha, ter um calibre relativamente grande e várias fenestrações lisas para evitar lesões por fluxo e, por fim, ser posicionado com a extremidade perto da carina. O oxigênio deve ser umidificado, e as taxas de fluxo devem se aproximar das usadas para insuflação nasal.

■ Gaiolas de oxigênio Há, no comércio, gaiolas de oxigênio projetadas especificamente para pequenos animais (Figura 3.28), mas são caras. Elas regulam o fluxo de oxigênio, controlam a umidade e a

temperatura, e eliminam o dióxido de carbono dos gases exalados. A maioria das gaiolas de oxigênio é capaz de produzir concentrações de oxigênio entre 30 e 60%, mas as taxas de fluxo podem ser tão altas quanto 15 ℓ/min.60 No entanto, há uma variedade considerável de projetos e eficácia entre os muitos produtos disponíveis no comércio, bem como no tempo necessário para que se obtenha a concentração desejada de oxigênio, de 30 a 45 min.60 Os fatores que influenciam isto incluem o volume interno da gaiola, sua impermeabilidade e a frequência com que é aberta. Para pequenos animais, têm sido recomendadas taxas de fluxo de oxigênio, temperatura e umidade na gaiola inferiores a 10 mℓ/min (embora isso dependa muito da eficiência da gaiola), aproximadamente 22°C e 40 a 50%, respectivamente.61 Em geral, concentrações de oxigênio de 30 a 40% são adequadas para pacientes com doença pulmonar moderada.62 As gaiolas de oxigênio não são práticas para equinos ou animais maiores e, mesmo em animais menores, sua efetividade diminui de acordo com o tamanho maior do corpo. Pacientes menores podem ter tratados facilmente nessas gaiolas, mas, no caso de cães maiores, é mais difícil controlar a temperatura e a umidade. Uma desvantagem importante dessas gaiolas é a necessidade de retirar o animal (ou abrir a porta) para ser examinado e receber tratamento, o que o leva a respirar ar do ambiente ou oxigênio com máscara durante algum tempo.

Figura 3.28 Gaiolas de oxigênio à venda, capazes de controlar com precisão a concentração

de oxigênio dentro delas e remover o CO2 exalado. Muitas delas também incorporam controle de umidade e temperatura (calor e frio). Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Antes de adquirir uma gaiola de oxigênio, é importante entender bem seu funcionamento e conhecer as necessidades de oxigênio dos pacientes. Gaiolas sem uma boa vedação podem consumir quantidades significativas de oxigênio, bem como durante sua abertura frequente para manejo do paciente. Em tais circunstâncias, o consumo de oxigênio necessário pode esgotar rapidamente as reservas de oxigênio do hospital. Em termos comparativos, as gaiolas de oxigênio constituem um método relativamente ineficiente de suplementação de oxigênio, mas podem ser bastante úteis no manejo de pacientes específicos. É melhor reservá-las para a suplementação de oxigênio imediata e a curto prazo em pacientes menores, com dificuldade respiratória. Já em termos clínicos, alguns cães e gatos com comprometimento ventilatório grave reagem muito bem a um ambiente enriquecido com oxigênio como tratamento inicial; o aumento na FIO2 está associado a menos esforço ventilatório e, assim, o paciente fica estabilizado, mais fácil de ser manipulado antes de um exame adicional e da instituição do tratamento. A insuflação nasal é um método muito mais efetivo e eficiente de suplementação de oxigênio na maioria das circunstâncias, em particular quando a suplementação é necessária por um período prolongado, mesmo em cães pequenos e gatos.

■ Toxicidade do oxigênio É um problema que pode surgir com a exposição prolongada a altas concentrações de oxigênio, ocasionando deterioração da função pulmonar. Os efeitos iniciais são dano endotelial, destruição de células alveolares e aumento da permeabilidade microvascular, acarretando edema, hemorragia e congestão.52 Os estágios tardios da toxicidade são associados a proliferação de alvéolos do tipo II e de fibroblastos, o que resulta em fibrose.52 O período que a PaO2 de um paciente está elevada pode ser mais preditivo de toxicidade do oxigênio que a duração da exposição a uma FIO2 alta.63 Há uma variabilidade significativa entre as espécies e os indivíduos na suscetibilidade à toxicidade do oxigênio.63 Para animais, são recomendadas as seguintes diretrizes: usar PaO2 de 70 mmHg como ponto terminal da terapia com oxigênio, a menor FIO2 possível para alcançar tal PaO2 e não usar uma FIO2 > 0,6 por mais de 24 h, se possível.52

Introdução ao aparelho de anestesia e aos circuitos anestésicos

A anestesia inalatória forma a base dos protocolos anestésicos mais modernos na medicina veterinária. A administração de anestésicos inalatórios potentes requer técnicas específicas. O aparelho de anestesia permite a liberação de uma associação variável, embora precisa, de anestésico inalatório e oxigênio. Os componentes básicos e as funções de todos os aparelhos de anestesia são similares, porém há diferenças significativas no projeto de cada um deles. Os aparelhos podem ser muito simples, como, por exemplo, aqueles usados para aplicação móvel em estações de trabalho com ventiladores, monitores e sistemas de segurança (Figura 3.29). Independentemente da complexidade do projeto, todos os aparelhos de anestesia têm componentes em comum: uma fonte de oxigênio, um regulador de oxigênio (que pode ser parte do sistema de fornecimento do gás), um fluxômetro para o oxigênio e um vaporizador. Se também forem usados outros gases (p. ex., óxido nitroso), também haverá uma fonte, um regulador e um fluxômetro para cada um, em geral em uma via paralela com a do oxigênio, embora existam algumas exceções (p. ex., válvula do fluxo de oxigênio). O aparelho básico de anestesia é então usado em conjunto com um circuito respiratório e um sistema anestésico de eliminação dos resíduos de gás para liberação do anestésico para o paciente.

Figura 3.29 A complexidade e a sofisticação dos aparelhos de anestesia para uso veterinário podem variar bastante. A. Uma estação de trabalho completa para anestesia veterinária em grandes e pequenos animais e (B) um sistema de anestesia portátil para uso no campo. Ambos os sistemas fornecem todos os componentes necessários para a liberação controlada de anestésicos inalatórios. Fontes: A. Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA. Reproduzida, com autorização, de Hallowell EMC. B. Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Fornecimento de gás medicinal O ideal é que os aparelhos de anestesia tenham duas fontes de gás, uma de um tanque pequeno com alta pressão conectado diretamente ao aparelho e uma segunda em geral originária de um sistema canalizado central do hospital. Os tanques pequenos acoplados diretamente ao aparelho de anestesia costumam servir como um recurso de reserva quando o sistema de gás canalizado funciona mal ou se trabalha em um local onde não há acesso a tal sistema. Sem dúvida, o oxigênio é o gás medicinal mais utilizado durante anestesia veterinária, com o óxido nitroso sendo usado muitas vezes em conjunto com ele, como adjuvante para os inalatórios. A maioria dos gases medicinais normalmente é armazenada sob alta pressão em cilindros de vários tamanhos apropriados para gás ou em tanques criogênicos para líquido isolados e sob baixa pressão. As características (p. ex., pressão de funcionamento) e a capacidade dos cilindros de gás variam de acordo com o tipo de gás que contêm (ver Tabela 3.2). Como alternativa, podem ser usados concentradores de oxigênio para fornecer oxigênio a um hospital, conforme a necessidade, quando obter e armazenar tanques é inconveniente, impossível ou proibitivo por causa do custo (comunidades remotas).A maioria dos concentradores de oxigênio usa um sistema de absorção do nitrogênio do ar para produzir gás com uma concentração de oxigênio entre 90 e 96%. Recentemente, foram lançadas no mercado veterinário unidades pequenas e integradas com oxigênio concentrado em um único aparelho (Pureline™, Supera Anesthesia Innovations, Clackamas, Oregon, EUA) (Figura 3.30). As instituições veterinárias mais modernas terão alguma forma de fornecimento central de gás e um sistema de distribuição canalizada para liberar gases medicinais para vários locais de trabalho. A complexidade desses sistemas pode variar bastante, desde um pequeno banco de cilindros grandes (G ou H) e um regulador, até sistemas mais complexos, que consistem em vários tanques grandes de oxigênio líquido, diversos controles automáticos, reguladores, alarmes e bancos de cilindros de reserva grandes e com alta pressão (Figura 3.31). O tamanho e a complexidade do sistema de distribuição de gás dependem das necessidades de gás, da área necessária de sua distribuição e do número de

locais de trabalho. A instalação apropriada de sistemas grandes de distribuição de gás é essencial para a segurança e a eficácia. Todas as instalações para gás devem ser feitas por profissionais especializados no assunto, antes de serem usadas para administrar gás aos pacientes. Tabela 3.2 Características dos cilindros de gases medicinais.2 Tamanho

Gás

E

Oxigênio

Símbolo

Código de

Capacidade e pressão (a

Peso do cilindro vazio (em

do gás

cores (EUA)

70°F ou 21,1°C)

libras e kg)

O2

Verde

E

Óxido nitroso

N2O

Azul

G

Óxido nitroso

N2O

Azul

H

Oxigênio

O2

Verde

H

Óxido nitroso

N2O

Azul

psi, libras por polegada quadrada (pounds per square inch).

660 ℓ

14

1.900 psi

(6,35 kg)

1.590 ℓ

14

745 psi 13.800 ℓ

(6,35 kg) 97

745 psi

(cerca de 44 kg)

6.900 ℓ

119

2.200 psi

(cerca de 54 kg)

15.800 ℓ 745 psi

119 (cerca de 54 kg)

Figura 3.30 Cada vez mais, dispõe-se de concentradores pequenos, silenciosos e portáteis, como uma alternativa ao uso de tanques de gás comprimido que podem ser cheios novamente. Esta figura mostra um aparelho de anestesia com concentrador de oxigênio incluído, localizado em sua caixa inferior. Fonte: Supera Anesthesia Innovations, Clackamas, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Supera Anesthesia Innovations.

Figura 3.31 O volume das necessidades de oxigênio de grandes hospitais costuma ser

satisfeito com o uso de grandes tanques de oxigênio líquido (A) ou bancos de tanques de gás comprimido (B). Ambos esses sistemas normalmente são designados com um fornecimento de reserva para o caso de falha ou esgotamento do suprimento principal. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Segurança dos gases medicinais Existem vários documentos internacionais (ASTM), nacionais e locais sobre o uso, o transporte e o armazenamento seguros de gases pressurizados. Também existem padrões quanto à instalação de sistemas de canalização de gás e alguns foram incorporados nas exigências para autorização de funcionamento de um hospital veterinário. Contudo, as diretrizes específicas podem variar bastante entre as jurisdições e regiões. Houve vários acidentes médicos bem documentados relacionados com o uso impróprio de gases medicinais em seres humanos, mas a incidência desses acidentes tem diminuído.64,65 É provável que a redução de tais acidentes se deva em grande parte ao monitoramento e à manutenção melhores dos sistemas de liberação de gás. Em consequência, foram desenvolvidos vários sistemas de segurança, para ajudar a reduzir e eliminar esses problemas. Por exemplo, todo equipamento anestésico tem um conector não intercambiável específico do gás, que faz parte da unidade básica (aparelho de anestesia, ventilador). Estes conectores, o indicador do diâmetro do sistema de segurança, o sistema de trava e a rapidez dos conectores são descritos a seguir. Código de cores Os cilindros e linhas de gás costumam seguir um código de cores, para evitar uso indevido, mas os sistemas de código de cores podem variar de acordo com os países. Por exemplo, no Canadá, a cor para o oxigênio é branco, enquanto, nos EUA, é verde. Além do código de cores, todos os tanques têm um sistema de rotulagem que consiste em vários formatos de rótulo, palavras-chave e cores usados juntos para identificar os perigos associados ao gás contido neles. A maioria dos tanques originários de instalações de fornecimento de gás normalmente tem etiquetas perfuradas (que mostram se estão cheios, em uso ou vazios) para que se saiba da condição do cilindro em uso. Indicador do diâmetro do sistema de segurança O sistema de segurança indicador do diâmetro (SSID ou DISS, de diameter index safety system) é um sistema de conexão em linha não intercambiável específico do gás (Figura 3.32). É a conexão do gás usada quase universalmente por todos os fabricantes de equipamentos e cilindros para a conexão de gases medicinais. Rapidez dos conectores

Foram desenvolvidos muitos sistemas de conexão rápida patenteados (específicos do fabricante), que são padronizados por um fabricante, mas em geral não são compatíveis com os de outros fabricantes (Figura 3.33). Tais sistemas facilitam a conexão e a desconexão rápidas da mangueira de gás e podem ser úteis nas situações em que é necessário conectar e desconectar o sistema com frequência (p. ex., áreas de trabalho com múltiplas finalidades).

Figura 3.32 O indicador do diâmetro do sistema de segurança (DISS) usa um padrão em linha não intercambiável específico do gás, para evitar a liberação incorreta de gás. Os gases também seguem o código de cores visível na figura. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 3.33 Há acoplamentos patenteados para a conexão rápida ao gás, para facilitar a conexão e a desconexão frequentes das linhas de gás. Estes sistemas, como o Ohmeda mostrado na foto, são específicos do fabricante e incompatíveis com os de outros fabricantes. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Indicador do sistema de segurança da trava O indicador do sistema de segurança da trava (PISS, de pin index safety system) usa padrões de trava específicos do gás, que só permitem a conexão entre os cabeçotes do cilindro apropriado e cilindros de gás menores (de tamanho E). É comum encontrar o PISS nos cabeçotes montados em aparelhos de anestesia e em alguns fluxômetros reguladores específicos do cilindro (Figura 3.34).

Figura 3.34 O indicador do sistema de segurança da trava (PISS) usa uma série de posições de trava específica do gás no cabeçote que correspondem a saídas no receptor da trava posicionadas de maneira similar no tanque. A. O PISS típico do cilindro do cabeçote do cilindro de um aparelho de anestesia. B. O PISS em uso em uma associação de regulador/fluxômetro para a liberação de oxigênio. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Válvula para reduzir a pressão (reguladora)

Essa válvula é um componente fundamental, necessário para diminuir as altas pressões dos cilindros de gás para um de trabalho mais razoável e segura (i. e., 40 a 55 psi). Os reguladores também reduzem ou impedem flutuações na pressão à medida que o tanque esvazia. Normalmente, os reguladores são encontrados sempre que um cilindro de gás sob alta pressão está em uso (p. ex., canalizações de gás, cilindro conectado diretamente ao aparelho) (Figura 3.35). Os reguladores usados em canalizações de gás costumam ser ajustáveis, enquanto os da maioria dos aparelhos de anestesia são ajustados pelo fabricante. O padrão de ASTM exige que os reguladores em aparelhos de anestesia sejam ajustados para uso preferencialmente de gases canalizados antes do uso do gás do cilindro de reserva no aparelho de anestesia. Entretanto, como nenhum sistema canalizado nem aparelho de anestesia veterinária têm de satisfazer os padrões de ASTM, não é raro que o projeto dos aparelhos dê preferência aos tanques de reserva, em vez do gás canalizado. Este problema pode ser evitado assegurando-se que a pressão do gás canalizado esteja ajustada em aproximadamente 5 psi mais alta que a do regulador do aparelho de anestesia para o cilindro de oxigênio de reserva.

■ Calibradores de pressão São usados comumente para medir as pressões do cilindro, da canalização, do aparelho de anestesia em funcionamento e dentro do sistema de respiração. As pressões de funcionamento de cilindros, canalizações e aparelhos de anestesia normalmente são expressas em libras por polegada quadrada (psi, de pounds per square inch) ou quilopascals (kPa), enquanto as pressões dentro do sistema de respiração do aparelho de anestesia normalmente são expressas em centímetros de água (cmH2O) (Figura 3.36). A medida do calibre da pressão do sistema de respiração em geral também é dada por um manômetro de pressão. A informação fornecida por estes calibradores é vital para a operação segura do equipamento de anestesia.

Aparelho de anestesia moderno ■ Fluxo de gás no aparelho de anestesia O aparelho básico de liberação de anestesia é constituído por uma série de partes que funcionam coletivamente para liberar anestésico inalatório com segurança e suporte respiratório. Tais componentes incluem: o sistema de liberação de gás, o vaporizador, o circuito respiratório e o sistema de eliminação dos resíduos do gás. Talvez a maneira mais simples de descrever um aparelho de anestesia seja descrevendo seus componentes em ordem do fluxo de gás através do aparelho, da fonte para o paciente. Todavia, antes de descrevermos esses componentes, é importante reconhecer que as pressões de gás variam

em diferentes localizações em um aparelho de anestesia, e o conhecimento dessas pressões facilita a avaliação e a operação segura desses aparelhos. Há áreas de pressão alta, intermediária e baixa. A área de pressão alta aceita gases nas pressões do cilindro, reduzindo-a e regulando-a; essa área inclui os cilindros de gás, encaixes do cabeçote, blocos do cabeçote, mangueiras de alta pressão, calibradores e reguladores de pressão, a qual pode chegar a 2.200 psi. A área de pressão intermediária aceita gases da tubulação central ou dos reguladores no aparelho de anestesia e os conduz para a válvula de fluxo e fluxômetros; essa área inclui as entradas para a tubulação, saídas de potência para os ventiladores, condutos das entradas para fluxômetros na tubulação e condutos dos reguladores para os fluxômetros, o conjunto que abrange o fluxômetro e o aparelho que emite o fluxo de oxigênio. A pressão em geral varia de 40 a 55 psi. A área de baixa pressão consiste nos condutos e componentes entre o fluxômetro e a saída comum de gás; essa área inclui vaporizadores, transporte dos fluxômetros para o vaporizador, conduto do vaporizador para a saída comum de gás e o sistema de respiração. A pressão nessa última área é próxima daquela do ambiente. As pressões na área de baixa pressão podem variar, dependendo da maneira como o sistema estiver sendo usado (p. ex., ventilação com pressão positiva), mas, em geral, nunca devem ultrapassar 30 cm de H2O, pois são transmitidas diretamente para os pulmões do paciente (Figura 3.37).

Figura 3.35 Válvulas redutoras de pressão são usadas para diminuir a pressão do gás em um cilindro de gás comprimido até um valor baixo, às vezes mencionado como pressão de trabalho, normalmente de 45 a 55 psi. Estas válvulas mantêm uma pressão constante de liberação do fornecimento de gás e ajudam a prevenir flutuações associadas ao gasto e ao uso do gás. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.36 Os calibradores de pressão são usados para medir a pressão em cilindros de

gás, aparelhos de anestesia e sistemas de respiração. A. Um calibrador de pressão associado a um tanque de gás comprimido, fazendo a medida em libras por polegada quadrada (psi). B. O calibrador de pressão encontrado comumente na maioria dos circuitos anestésicos. Notar que a pressão no circuito de respiração é medida em cmH2O. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Na medicina veterinária, ocasionalmente o aparelho anestésico é usado para administrar vários gases medicinais (p. ex., oxigênio, ar, óxido nitroso). No entanto, para administrar anestesia, normalmente o único gás usado é oxigênio a 100% no equipamento de anestesia (p. ex., ventiladores). Se o leitor pretender usar vários gases para administrar anestesia, é sua responsabilidade entender completamente as implicações desse uso (indicações e contraindicações), assegurar-se de que o equipamento de anestesia seja adequado e monitorar para evitar a possibilidade de liberar uma mistura de gás que cause hipoxia no paciente. Todos os aparelhos humanos precisam ter um sistema proporcional associado ao fluxo de oxigênio e monitores da concentração de oxigênio para garantir que uma mistura de gases que causariam hipoxia não será liberada; em geral não é este o caso dos aparelhos para anestesia veterinária. O fluxo de gás em um aparelho de anestesia pode seguir vários caminhos assim que entra nas áreas de pressão intermediária do aparelho. No mínimo, o gás precisa ser liberado para o fluxômetro, onde então é direcionado para o vaporizador e subsequentemente para o paciente. Contudo, além dessa via de movimento, pode haver várias outras vias disponíveis para a distribuição de gás no aparelho de anestesia. Normalmente, na maioria dos aparelhos de anestesia, gás com pressão intermediária também é desviado para uma válvula de fluxo de ar fresco que desvia do fluxômetro e do vaporizador, liberando gás fresco diretamente para o circuito respiratório. Há circunstâncias em que pode não haver as válvulas de fluxo ou elas não estarem disponíveis nos aparelhos de anestesia. Além disso, o gás das áreas de pressão intermediária pode ser desviado para uma ou mais saídas auxiliares de oxigênio, que podem ser usadas como gás direcionado para um ventilador externo ou fluxômetro de oxigênio também externo.

■ Fluxômetros Os fluxômetros controlam a taxa de liberação de gás para as áreas de pressão baixa do aparelho de anestesia e determinam o fluxo de gás fresco (FGF) para o circuito anestésico. É preciso que haja um fluxômetro separado para cada tipo de gás usado no aparelho de anestesia (Figura 3.38). O tipo de sistema respiratório usado, o volume do circuito respiratório e o tamanho do paciente são fatores que influenciam a taxa de FGF. Há vários fluxômetros disponíveis, mas a maioria baseia-se em um tubo de gás afilado com flutuação móvel. O gás normalmente flui no fundo do tubo e vai para fora no topo. O

tubo é mais largo no fundo e mais estreito no alto, de modo que, conforme a boia move o tubo para cima, pode fluir mais gás em torno dela, produzindo taxas mais elevadas de fluxo (Figura 3.39). A quantidade de gás que entra no tubo é controlada por um botão de controle do fluxo, que ajusta uma válvula com agulha. Uma boia indica o fluxo de gás em uma escala calibrada. As taxas de fluxo de gás normalmente são expressas em mℓ/min ou ℓ/min. A distância espacial entre as marcações verticais no fluxômetro não corresponde necessariamente a alterações iguais na taxa de fluxo. Em outras palavras, a distância entre 0 e 1.000 mℓ medida verticalmente no fluxômetro pode não ser a mesma distância vertical entre 1.000 e 2.000 mℓ. Isso é semelhante à separação espacial das porcentagens encontradas em muitos vaporizadores que têm uma alocação espacial maior no mostrador para porcentagens normais de trabalho do que as usadas raramente. Alguns aparelhos de anestesia podem ter dois fluxômetros para o mesmo gás, colocados em série para permitir maior precisão a taxas de fluxo menores (Figura 3.40). Os fluxômetros são específicos do gás e calibrados em 760 mmHg e 20°C; a acurácia pode ser afetada se forem usados em condições muito diferentes da calibração, embora isso raramente seja significativo para uso rotineiro. Eles também são calibrados como uma unidade (fluxo no tubo, escala e boia ou flutuador) e, portanto, se qualquer parte falhar, é melhor substituir a unidade inteira. É improvável que a substituição da gaxeta, do botão ou mostrador do controle do fluxo e/ou da arruela ou o reparo afete a acurácia, mas só pessoas familiarizadas com o projeto e o modo operacional do fluxômetro em questão devem fazer isso. O botão de controle do fluxo nos aparelhos de anestesia contemporâneos tem de seguir os padrões de ASTM. Por exemplo, o do oxigênio tem de ter um formato desigual e ficar mais à direita do banco do fluxômetro da corrente abaixo de todos os outros gases. Estas considerações do projeto são importantes para minimizar a liberação acidental de uma mistura de gases hipóxicos.

Figura 3.37 Diagrama do aparelho anestésico básico e sistema respiratório circular. As posições exatas dos vários componentes e aspectos específicos podem variar bastante entre os fabricantes. Fonte: Kath Klassen, Vancouver Animal Emergency Clinic, Vancouver, Canadá. Reproduzida, com autorização, de Kath Klassen.

Figura 3.38 Dois fluxômetros dispostos em paralelo em um aparelho de anestesia com óxido nitroso (azul) à esquerda e oxigênio (verde) à direita. Nos aparelhos de anestesia humana, os fluxômetros precisam estar em um posicionamento específico (i.e., o fluxômetro de oxigênio mais à direita) e de acordo com a dimensão do botão de controle (i.e., o oxigênio é desviado e vai mais para fora); não é este o caso dos fluxômetros em aparelhos de anestesia destinados exclusivamente a uso veterinário. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 3.39 Diagrama de um fluxômetro ilustrando o fluxo de gás de baixo para cima com estágio único e duplo. Conforme o indicador de fluxo (bobina, balão ou fuso) sobe, o fluxo aumenta por causa do aumento de tamanho do orifício. O estágio duplo possibilita maior acurácia na extremidade inferior do tubo, enquanto mede com precisão fluxos maiores vindos do alto. Fonte: Hartsfield SM. Machines and breathing systems for administration of inhalation anesthetics. In: Short CE, ed. Principles and Practices of Veterinary Anesthesia. Baltimore: Williams & Wilkins, 1987; 395. Reproduzida, com autorização, de Lippincott Williams & Wilkins.

Figura 3.40 Um exemplo de fluxômetros múltiplos sendo usados em um único aparelho de anestesia destinado a uso humano. Notar o posicionamento dos fluxômetros e o formato dos botões de controle. Notar também que os fluxômetros de óxido nitroso e oxigênio são de estágio duplo em série, permitindo maior precisão da liberação de gás. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Vaporizadores Eles transformam o líquido anestésico em vapor e medem a quantidade de vapor que deixa o vaporizador. Os mais modernos são os vaporizadores específicos do agente, calibrados de acordo com a concentração, que têm desvios variáveis, fluxo sobre pavio, fora do círculo, e os vaporizadores de alta resistência (ou plena) que são compensados pela temperatura, pelo fluxo e pela pressão de retorno. A ausência de precisão e a baixa resistência nos vaporizadores em círculo continuam a existir na medicina veterinária, decorrentes de seu baixo custo, mas, sem o monitoramento adequado do gás inspirado inalado, esses vaporizadores implicam um risco desnecessário durante a anestesia e seu uso provavelmente deve ser desestimulado, a menos que sejam empregados em conjunto com monitores do agente anestésico. Os vaporizadores funcionam fazendo o gás fluir dividido na sua câmara (onde captura o vapor anestésico) ou para o canal de desvio, onde não faz isso (Figura 3.41). A razão da quantidade de gás que capta o inalatório para o gás que o desvia, junto com a pressão do vapor do anestésico volátil, determinará a concentração final do gás que deixa o vaporizador. O débito dovaporizador é expresso como uma concentração (p. ex., volume por cento) de vapor no gás que sai do vaporizador.

Figura 3.41 Esquema de um vaporizador genérico com desvio variável demonstrando a divisão do fluxo de ar fresco para a câmara do vaporizador e o canal de desvio. A razão da divisão e a pressão do vapor do anestésico volátil vão determinar o débito percentual final do vaporizador. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

A temperatura, o fluxo e a pressão são fatores que podem alterar o débito do vaporizador. Os mecanismos para compensação da temperatura, do fluxo e da pressão variam de acordo com o fabricante e os modelos. Em geral, os vaporizadores mais

modernos pressurizados compensados manterão um débito consistente, com fluxo entre 0,5 e 10 ℓ/min, temperatura entre 15 e 35°C e alterações de pressão associadas à ventilação com pressão positiva e ao uso de válvula de fluxo. Compensação da temperatura É conseguida mediante o uso de materiais para a construção do vaporizador que fornecem e conduzem o calor de maneira eficiente, promovendo maior termoestabilidade. Além disso, a maioria dos vaporizadores tem circuitos mecânicos e, alguns, elétricos que comandam sistemas de termocompensação. Esses vaporizadores compensam as alterações de temperatura alterando a razão da divisão, de modo que uma quantidade maior ou menor de gás é conduzida através da câmara do vaporizador, conforme a temperatura muda durante o uso. Nos sistemas mecânicos, à medida que o vaporizador resfria, o elemento térmico restringe o fluxo de gás para a câmara de desvio, fazendo com que mais gás entre nela. Ocorre o oposto se o vaporizador ficar muito quente. Os sistemas de termocompensação exata variam de acordo com o fabricante, mas o elemento térmico normalmente é um (ou mais de um) metal termossensível(is) que vai(vão) se expandir e contrair quando submetido(s) a alterações de temperatura. Taxa de fluxo Alterações na taxa de fluxo através do vaporizador podem ocasionar mudanças no débito. Por exemplo, se o fluxo for excessivamente alto, pode não ocorrer a saturação completa do gás que se move através da câmara de vaporização, ocasionando uma redução no débito. A compensação da taxa de fluxo é alcançada assegurando-se uma saturação confiável e consistente de todo o gás que flui através da câmara de vaporização, usando-se uma série de pavios, abafadores e espirais para facilitar a vaporização do gás líquido. Essas técnicas são empregadas para aumentar a área de superfície da interface transportadora de gás e líquido, assegurando que todo o gás que sai da câmara de vaporização esteja completamente saturado. Todos os vaporizadores de funcionamento moderno têm débitos muito previsíveis dentro de uma variação clinicamente útil das taxas de fluxo de gás (500 a 2.000 mℓ/min). Pressão de retorno A pressão de retorno no vaporizador pode ocorrer durante ventilação com pressão positiva intermitente ou mediante o uso da válvula de fluxo, e esse efeito pode aumentar o débito do vaporizador se os mecanismos de compensação não entrarem em ação. Existem várias maneiras de minimizar os efeitos da pressão de retorno nos vaporizadores modernos. Uma delas consiste em reduzir o tamanho da câmara de vaporização com relação à de desvio.

Outra opção é usar um tubo longo, espiralado, ou de diâmetro pequeno para conectar a câmara de vaporização ao canal de desvio. Qualquer uma dessas opções reduz a quantidade de gás pressurizado que irá alcançar a câmara de vaporização. O uso de válvulas de verificação de via única imediatamente corrente acima, a partir do vaporizador, também pode prevenir os efeitos da pressão de retorno e elas já fazem parte de alguns aparelhos. Válvulas de verificação de via única às vezes também são usadas corrente abaixo da válvula de fluxo (corrente acima do vaporizador), para evitar a pressão de retorno associada ao uso da válvula de fluxo. Há muitos vaporizadores para uso em anestesia veterinária, mas a maioria baseia-se em três estilos principais: as séries Ohmeda Tec, Dräger Vapor e Penlon Sigma. As diferenças primárias entre as séries de vaporizadores incluem a capacidade da câmara de vaporização (as maiores permitem intervalos maiores para enchimento, sendo particularmente úteis para uso em grandes animais), a suscetibilidade a alterações no débito por causa da inclinação (raramente uma consideração em circunstâncias normais) e opções de montagem. Todas são muito acuradas e bem projetadas, com a escolha em geral sendo determinada mais pela preferência pessoal e pela disponibilidade que pelas diferenças em termos de desempenho. A maioria dos vaporizadores consiste em dispositivos mecânicos que não precisam de uma fonte de energia externa para funcionar normalmente. Entretanto, em decorrência das propriedades singulares do vapor do desfluorano, são necessários vaporizadores aquecidos especiais para assegurar um débito consistente. Apesar da necessidade de fonte externa de energia, a maioria dos vaporizadores para o desfluorano funciona de modo muito similar ao dos vaporizadores de desvio variável tidos como o padrão, embora, em termos técnicos, sejam classificados como vaporizadores de fluxo medido; ver adiante a descrição do vaporizador Tec 6. Também há vaporizadores eletrônicos tanto para uso na anestesia humana (Alladin cassete vaporizer, GE Healthcare) como na veterinária (Vetland EX 3000 Electronic Vaporization System). Tais vaporizadores funcionam como os de desvio variável, mas a taxa de divisão do gás transportado é determinada eletronicamente, não por meios mecânicos. Como o sistema é eletrônico, podem ser incorporados vários ajustes de alarme, tanto pelo fabricante como pelo usuário. Por exemplo, o vaporizador pode alertar o usuário se estiver sendo liberada uma concentração incomumente alta de anestésico ou se o ajuste do vaporizador não for alterado para um período específico, evitando assim sobredose inadvertida de anestésico (p. ex., o débito do vaporizador aumenta momentaneamente e o usuário esquece de fazer o ajuste para diminuí-lo). Embora os sistemas eletrônicos forneçam alguma informação adicional para o anestesista, também podem ser mais propensos a problemas e danos relacionados com o fato de seu funcionamento operacional adequado depender da eletrônica. Os vaporizadores podem ser preenchidos por meio de uma entrada padrão rosqueada ou

codificada específica do agente. A última destina-se a evitar o enchimento inadvertido do vaporizador com o anestésico errado (Figura 3.42). A maioria dos vaporizadores modernos é extremamente segura e durável, precisando de muito pouca manutenção e cuidados mínimos de rotina. No entanto, a manutenção e os cuidados devem ser proporcionados de acordo com as recomendações do fabricante e só por um técnico qualificado. Em geral, os vaporizadores são montados na citada ‘barra posterior’, que nada mais é senão a grade ou sistema montado que se usa para manter o vaporizador conectado no aparelho. A maioria dos vaporizadores veterinários usa sistemas em caixas montadas para fixar o vaporizador à barra posterior; nesses sistemas, usam-se adaptadores de 23 mm (entrada e saída, fêmea e macho) para fixar o vaporizador ao sistema de liberação de gás e o vaporizador é fixado diretamente à barra posterior (Figura 3.43). Em geral, as cabines afuniladas são conhecidas como capuzes, adaptadores ou cotovelos dos vaporizadores.

Figura 3.42 Muitos vaporizadores são preenchidos usando-se bocais específicos para

enchimento, representados pelos quatro modelos mostrados à esquerda na figura A. Esses bocais são encaixados no frasco e no vaporizador (B) e evitam o enchimento inadvertido de um vaporizador com o agente anestésico errado. Também há muitos vaporizadores que não têm aberturas para esses bocais e, em vez deles, usa-se uma abertura rosqueada padrão para encher o vaporizador. A melhor maneira de encher estes vaporizadores é com um bocal específico para o gás inalatório (segundo bocal à direita em A). Estes bocais se encaixam no frasco do agente específico, mas não no vaporizador. Fonte: A. Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold. B. Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Também há vários sistemas patenteados de suporte (ou braçadeiras) que permitem que os vaporizadores sejam removidos com facilidade, como, por exemplo, o GE Healthcare Ohmeda Selectatec e o Dräger Interlock, o primeiro sendo o mais popular. O Selectatec consiste em duas aberturas machos com válvula, situadas verticalmente, havendo um pino acessório e recesso para encaixe entre a abertura de entrada e a de saída (Figura 3.44). Os vaporizadores compatíveis com o Selectatec têm duas aberturas fêmeas com uma reentrância para receber o pino acessório. O vaporizador é abaixado sobre as aberturas machos com válvula e encaixado no lugar, usando-se o botão localizado no vaporizador. Os anéis em forma de O nas aberturas machos com válvulas garantem a vedação segura para o gás entre o vaporizador e a unidade Selectatec. A perda ou a deformação desses anéis pode originar vazamentos entre o vaporizador e o Selectatec. Não se pode ligar o vaporizador antes que ele esteja fixo no lugar. Quando se liga o vaporizador (Tec 4, 5, 6, 7), um fuso retrátil deprime a válvula em forma de bola nas aberturas machos com a válvula, deixando que o gás flua do vaporizador para o aparelho de anestesia. Os modelos de vaporizadores Tec 4, 5, 6 e 7 também têm incorporado um sistema de trava de segurança (oclusão/isolamento do vaporizador) que usa um bastão horizontal a ser empurrado, assegurando que apenas um vaporizador possa ser usado de cada vez, quando vários vaporizadores são montados em série com um Selectatec. O sistema Dräger Interlock é muito semelhante ao Selectatec e também inclui um sistema interligado de segurança; todavia, as dimensões são únicas, significando que cada sistema só pode ser usado com um vaporizador compatível com o sistema em questão. A maioria dos vaporizadores está disponível em modelos compatíveis com o sistema Selectatec.

Figura 3.43 Um exemplo de vaporizador típico em caixa montada com pinos para liberação do gás do vaporizador e para ele. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.44 A barra de um Selectatec para vaporizadores do estilo Tec. Tal sistema é mais conveniente para a colocação e a remoção rápidas dos vaporizadores. As aberturas machos verticais liberam gás do vaporizador e para ele; o pino entre as duas aberturas é o sistema de encaixe para anexação ao vaporizador, no qual tem de ser encaixado antes de se ligar o controle. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

■ Descrições de vaporizadores comuns na medicina veterinária Os vaporizadores descritos aqui são alguns dos mais comumente usados em anestesia veterinária. Vaporizadores antigos que não são mais fabricados podem estar em uso ainda, e alguns foram descritos nas edições anteriores deste livro e em outros textos.66 Vaporizadores Ohmeda/Datex-Ohmeda/GE Healthcare Tec Os vaporizadores designados especificamente para a vaporização de halotano ou isofluorano, em particular o Fluotec Mark 3 e o Isotec 3, são usados comumente na anestesia veterinária e descritos em maiores detalhes a seguir. Eles são considerados confiáveis e compensam a temperatura, o fluxo e a baixa pressão em condições normais de operação. O predecessor do Fluotec Mark 3, o Fluotec Mark 2, não está mais sendo fabricado, mas ainda pode estar disponível, fazer parte do equipamento e ser encontrado em algumas clínicas veterinárias.66 Foi associado a características de desempenho

relativamente fracas, devendo-se considerar sua substituição por unidades mais acuradas e confiáveis. Os vaporizadores Tec 4, 5, 6 e 7 superaram o Tec 3 para uso nos aparelhos de anestesia humana contemporâneos.2 O Tec 4 só era disponível para a liberação de isofluorano e o Tec 6 é um modelo específico para o desfluorano (Figura 3.45). A série Tec 5 está disponível para a liberação de enfluorano, halotano, isofluorano e sevofluorano, tendo sido substituída pela série Tec 7 mais recente (Figura 3.46). O uso desses vaporizadores é cada vez mais comum na anestesia veterinária, encontrando-se informação sobre o uso e o desempenho deles em várias publicações e nos manuais de operação específicos.1 Vaporizadores Tec 3 Estes são classificados como de desvio variável, fluxo sobre pavio, termocompensação automática, específico do agente, de alta resistência e baixa pressão compensada.67 O modelo Tec 3 inclui o Fluotec Mark 3, o Pentec Mark 2 e o Isotec 3 (Figura 3.47). O vaporizador Tec 3 tem a temperatura compensada por um elemento bimetálico termossensível associado à câmara de vaporização. Seu débito é quase linear com a variação de concentrações e as taxas de fluxo que tipicamente seriam selecionadas para animais (250 mℓ/min a 6 ℓ/min).A compensação da pressão de retorno é conseguida na parte interna do vaporizador, com um tubo longo que leva à câmara de vaporização, uma área de expansão no tubo e a exclusão de pavios das áreas da câmara de vaporização perto da entrada.67

Figura 3.45 Um aparelho montado com várias séries de vaporizadores da série Ohmeda/Datex-Ohmeda Tec. Da esquerda para a direita: vaporizadores Tec 4, 5 e 6. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.46 Um vaporizador Datex-Ohmeda/GE Healthcare Tec 7 específico para isofluorano. A série Tec 7 é a mais recente de desvio variável pleno oferecida pela DatexOhmeda/GE Healthcare. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

Figura 3.47 Exemplo de um vaporizador estilo Tec 3 específico para isofluorano. Este estilo de vaporizador é bastante comum em muitas clínicas veterinárias. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Vaporizadores Tec 4 e 5

Também são classificados como de desvio variável, fluxo sobre pavio, termocompensação automática, específico do agente, de alta resistência e baixa pressão compensada.67 As principais características de um vaporizador em comparação com os modelos mais antigos estão associadas ao seu uso obrigatório com um sistema Selectatec. O Tec 4 foi a primeira versão desses vaporizadores e o único disponível para a liberação de isofluorano (Figura 3.48). O Tec 5 está disponível para a liberação de enfluorano, halotano, isofluorano e sevofluorano, podendo ser encontrado nas versões com configuração de chave ou funil para enchimento (Figura 3.49). Quando o botão para ligar e desligar está zerado e o fluxômetro é ativado, todo o gás desvia do vaporizador através de um Selectatec, em vez de passar pelo canal de desvio dos vaporizadores. Só quando o vaporizador sai do ‘0’ é que o gás entra no vaporizador. A compensação da temperatura é conseguida mediante a presença de uma tira bimetálica localizada no canal de desvio; conforme a temperatura diminui, passa menos gás pelo canal, de modo que passa relativamente mais gás através da câmara de vaporização. Os vaporizadores Tec 5 também têm um sistema de trava de segurança (sistema de isolamento/exclusão do vaporizador), ativado quando vários vaporizadores são montados em série.

Figura 3.48 O Ohmeda Tec 4 (IsoTec) foi o primeiro vaporizador projetado para uso com o sistema Selectatec e disponível para liberação apenas de isofluorano. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.49 A série Tec 5 de vaporizadores incluía modelos específicos para enfluorano, halotano, isofluorano e sevofluorano. O modelo Tec 5 também tinha incorporado um sistema interno de trava de segurança para impedir que vários vaporizadores fossem ligados ou quando montados em série. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

Tec 6 Esse vaporizador é designado para uso apenas com o desfluorano (Figura 3.50). Por causa de sua potência relativamente baixa e ao ponto de ebulição também baixo (próximo à

temperatura do ambiente), o desfluorano líquido precisa ser aquecido para se assegurar que haja vaporização completa e estável do líquido e débito acurado do vaporizador. O vaporizador é classificado como de fluxo medido, termocompensação automática, específico do agente, de alta resistência (ver adiante) e baixa pressão compensada. Sua condição operacional, o nível do agente, o controle da pressão de equilíbrio (entre o diluente/desvio do gás e o inalante), o aquecimento do desfluorano líquido e a carga da bateria são indicados eletronicamente. O vaporizador só pode ser ligado quando os controles eletrônicos sinalizam que pode entrar em operação. Os aquecedores no agente aquecem o desfluorano até 39°C, produzindo desfluorano saturado a uma pressão de vapor de aproximadamente 1.500 mmHg no reservatório. Quando se liga o vaporizador, a válvula abre e o vapor pressurizado move-se para um regulador de pressão que a reduz até aquela normalmente encontrada em um vaporizador de alta resistência (pleno; 10 a 20 cmH2O). O vapor do desfluorano então se move para um restritor variável, controlado pelo dial de seleção da concentração, onde é acrescentado ao transportador de gás que deixa o vaporizador. O fluxo de gás fresco (gás transportador) passa através de um restritor fixo que aumenta sua pressão e normalmente é encontrado em vaporizadores de alta resistência (pleno). Dois sensores independentes de pressão na via detectam as alterações de pressão e instruem o regulador de pressão a modificar a pressão (e o fluxo) do desfluorano proporcionalmente, à medida que mantêm a concentração de vapor ajustada. Por exemplo, se a taxa de fluxo do gás fresco aumenta, a pressão criada pelo gás transportador que se move através do restritor fixo também aumenta. Então, há uma instrução para haver um aumento proporcional da pressão (e do fluxo) do desfluorano, mantendo o débito do vaporizador, apesar das modificações no fluxo do gás transportador. Se as leituras dos dois sensores não forem semelhantes, a câmara de vaporização do vaporizador fecha-se, disparando um alarme. A abertura de enchimento só aceita um bocal específico para enchimento, que se encaixa no frasco do desfluorano.

Figura 3.50 O vaporizador Datex-Ohmeda Tec 6 é um modelo que incorpora uma câmara de vaporização aquecida. O Tec 6 Plus da Datex-Ohmeda/GE Healthcare é a série mais atual destes vaporizadores. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Vaporizadores Dräger a vapor | Vapor 19.1 É comum encontrar essa série de vaporizadores na medicina veterinária. Também há um modelo compatível de engate, a série Vapor 19.3. É provável que a série Vapor 19.1 tenhase tornado popular primeiro na anestesia veterinária para grandes animais (Figura 3.51),

pois seu reservatório de inalante tinha uma capacidade significativamente maior com relação aos vaporizadores Tec 3 e Tec 4 padrões, de uso comum na época (embora modelos Tec 3 com maior capacidade também tenham sido produzidos). O reservatório maior de inalante é bem adequado para as demandas maiores de inalante associadas à anestesia inalatória em grandes animais e diminui a probabilidade do enchimento do vaporizador no meio de um caso. Os vaporizadores da série Vapor 19.1 são classificados como de desvio variável, fluxo sobre pavio, termocompensação automática, de alta resistência, específico do agente e de baixa pressão compensada.67 Há vaporizadores específicos para a administração de sevofluorano, isofluorano, enfluorano e halotano. A compensação de temperatura é automática com um compensador de temperatura, que usa as características térmicas de dois materiais diferentes para expandir ou contrair o canal de desvio, diminuindo ou aumentando a quantidade de gás que passa através da câmara de vaporização. A compensação de pressão é conseguida pela presença de um tubo de entrada espiralado longo para a câmara de vaporização.2 Esse vaporizador é acurado de 0,3 a 15 ℓ/min de fluxo de gás fresco nos ajustes menores no dial de controle, mas pode não ocorrer saturação completa nos ajustes altos com fluxos maiores. O vaporizador é projetado para operar (compensação de temperatura) na variação de 10 a 40°C.2 O Dräger também produz vaporizadores específicos para o desfluorano, o D Vapor e o DIVA, exemplos adicionais de vaporizadores de fluxo medido, similares ao Tec 6.

Figura 3.51 Vaporizadores Dräger Vapor 19.1 para isofluorano e sevofluorano montados em um aparelho de anestesia para grandes animais. É provável que tenham se tornado populares primeiro para uso na medicina veterinária para anestesia de grandes animais por causa de seu reservatório relativamente grande de inalante, exigindo menos enchimento durante um caso. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

Vaporizadores Penlon Sigma Delta São outro tipo de vaporizadores usados ocasionalmente na medicina veterinária. O Sigma Delta (Figura 3.52) é um vaporizador classificado como de desvio variável, fluxo sobre pavio, termocompensação automática, de alta resistência, específico do agente e de baixa pressão compensada.67 Há vaporizadores específicos para a administração de sevofluorano, isofluorano, enfluorano e halotano. A Penlon também produz um vaporizador para o desfluorano, o Sigma Alfa. A compensação da temperatura é feita mediante um termostato no canal de desvio. A temperatura operacional situa-se entre 15 e 35°C, e o mecanismo de compensação reage lentamente, levando 1 a 2 h para compensar alterações na temperatura do ambiente. Esse vaporizador é acurado de 0,2 a 15 ℓ/min de fluxo de gás fresco em todos os ajustes no dial, com apenas uma queda leve do débito nos ajustes mais baixos e um aumento discreto no débito nos ajustes mais altos, quando usadas taxas de fluxo muito baixas.

Figura 3.52 Vaporizador Penlon Sigma Delta específico para sevofluorano. O Sigma Delta também está disponível para a liberação de enfluorano, halotano e isofluorano. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Vaporizador Ohio calibrado Por muitos anos, este vaporizador (Figura 3.53) esteve disponível para uso veterinário e era empregado comumente em aparelhos de anestesia humana. É classificado como de desvio variável, fluxo sobre pavio, termocompensação automática, específico do agente VOC e de alta resistência.67 São fabricadas unidades específicas para a administração de isofluorano, halotano e sevofluorano. Os vaporizadores eram projetados para acurácia a fluxo de gás fresco entre 0,3 e 10 ℓ/min e a compensação da temperatura ocorria entre 16 e 32°C. Inclinações até 20° durante o uso ou até 45° quando inoperante não causam problemas. Inclinações maiores do vaporizador podem resultar na liberação de concentrações maiores.

Entre os pavios de papel, há espaçadores que podem reagir com o enfluorano ou o isofluorano, causando alterações na cor do líquido anestésico, aparentemente sem consequências importantes.67 Vaporizadores de fluxo medido O Verni-Trol e o Copper Kettles são vaporizadores controlados por fluxômetro que eram populares para uso em anestesia de pacientes humanos.67 Embora esses vaporizadores não estejam mais sendo fabricados, não satisfaçam os padrões de ASTM para equipamento de anestesia e raramente sejam encontrados em uso clínico (ou outro qualquer), uma descrição de seu modo operacional pode ser instrutiva para quem queira uma explicação alternativa sobre o funcionamento de um vaporizador. Em termos históricos, também são importantes por terem sido os primeiros dispositivos que possibilitaram a vaporização precisa de anestésicos líquidos e serviram como precursores dos vaporizadores modernos atuais de desvio variável.

Figura 3.53 Vaporizador Ohio específico para isofluorano. Também tem sido fabricado para liberação de halotano e sevofluorano. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Estes vaporizadores controlados por fluxômetro são classificados como de fluxo medido, através da bolha, de alta resistência VOC, com compensação de temperatura (termoestáveis com ajustes manuais do fluxo fundamentados na temperatura do anestésico líquido) e multifuncionais. Foram classificados como vaporizadores de saturação. São construídos com cobre (Copper Kettles) ou silicone bronze (Verni-Trol) para terem termoestabilidade. Os mecanismos de compensação da pressão retrógrada estão presentes nos modelos da última geração e podem ser adaptados em modelos mais antigos (p. ex., válvulas de verificação). Como esses vaporizadores são multiuso ou universais, podem vaporizar com acurácia o halotano, o isofluorano, o sevofluorano ou o metoxifluorano, devendo ser rotulados com clareza para mostrar o agente em uso. São necessários ajustes manuais das taxas de fluxo nesses vaporizadores, para compensar as variações no fluxo total de gás, as alterações diárias na temperatura e na temperatura do líquido durante o uso, em especial com altas taxas de fluxo de gás fresco. Na maioria dos casos, é fornecido um calculador com cada vaporizador para determinar as taxas de fluxo mais apropriadas. Os aparelhos de anestesia com vaporizadores de fluxo medido têm dois fluxômetros para oxigênio: um direciona todo seu oxigênio através da câmara de vaporização, onde é completamente saturado com anestésico; o outro pega o oxigênio que desvia do vaporizador e o fornece para satisfazer as necessidades do paciente. Ao se alterar manualmente a razão de gás que vai para o vaporizador, seriam liberadas concentrações exatas do anestésico para o paciente. Ambas as fontes de gás combinam-se em uma válvula mista para atingir a concentração adequada de anestésico, antes que os gases entrem no sistema respiratório. Os vaporizadores modernos específicos do agente com desvio variável simplesmente eliminaram a necessidade de determinação e ajuste manual dessas razões. Maiores detalhes sobre o uso dos vaporizadores de fluxo medido podem ser encontrados nas edições anteriores deste livro.66

■ Manutenção de vaporizadores Os vaporizadores precisam de manutenção. Em geral, o melhor a fazer é seguir as orientações do fabricante quanto aos cuidados e funcionamento. As recomendações variam, mas, qualquer que seja o esquema de manutenção, deve-se cuidar de um vaporizador se, com base nas respostas do paciente, houver suspeita de que a concentração de anestésico ajustada no aparelho esteja errada ou algum dos componentes do vaporizador esteja funcionando mal (p. ex., há dificuldade para o ajuste do dial de controle). As

recomendações do fabricante em geral incluem uma avaliação do funcionamento, eliminação, troca de filtros, substituição de partes danificadas e recalibração. O halotano e o metoxifluorano contêm conservantes (timol e butilato de hidroxitolueno, respectivamente), que não são altamente voláteis e, portanto, são recolhidos nas câmaras na vaporização e nos pavios, com o potencial de afetar o débito anestésico. Esses vaporizadores devem ser drenados periodicamente para remoção da maior parte desses conservantes. Não se deve enchê-los demais nem incliná-los muito quando estiverem cheios. Também devem ser drenados antes que se desligue o aparelho de anestesia. No passado, era recomendável a irrigação de um vaporizador com dietil éter para dissolver partículas de conservantes que se acumulavam dentro dele, mas agora isso não é mais aconselhável, porque o dietil éter é inflamável, explosivo, e é comum o uso de oxigênio a 100% como gás transportador. A irrigação do vaporizador não elimina a necessidade de assistência regular por um técnico autorizado.

■ Uso do anestésico errado em um vaporizador específico para o agente O uso de um vaporizador de agente específico para administrar um anestésico para o qual o vaporizador não está calibrado é problemático, em especial se a introdução de um anestésico não for intencional (i.e., o operador do vaporizador não está ciente do erro). Se um anestésico com um valor de pressão mais baixo for colocado em um vaporizador destinado a um fármaco com pressão maior (p. ex., sevofluorano em um vaporizador para isofluorano), espera-se um débito do anestésico inferior ao indicado. Em contrapartida, é provável que um anestésico altamente volátil em um vaporizador destinado a um fármaco com pressão de vapor inferior produza uma concentração alta, potencialmente letal. É de se esperar que as potências diferenciais dos fármacos em questão afetem a profundidade da anestesia em cada situação. Quando o isofluorano começou a ser usado na anestesia veterinária, era comum administrá-lo com vaporizadores de halotano específicos do agente, que eram rotulados de novo, mas não recalibrados para o isofluorano. Como as pressões de vapor do halotano e do isofluorano são similares (p. ex., 243 e 240 mmHg a 20°C, respectivamente), não se esperava uma grande diferença no débito a partir do ajuste no dial de controle. Na verdade, os vaporizadores para halotano produzem concentrações de isofluorano razoavelmente próximas do ajuste do dial para o halotano.68 Apesar disso, as recomendações atuais do fabricante são contra o uso de isofluorano em vaporizadores específicos para halotano e vice-versa.69 Dependendo do vaporizador e das condições de operação, o isofluorano em um vaporizador para halotano pode produzir 25 a 50% mais de vapor que o esperado, e o halotano em um vaporizador específico para isofluorano em geral libera uma concentração

inferior à esperada.69 Caso se use isofluorano em um vaporizador específico para halotano, o vaporizador deve ser adaptado e completamente recalibrado para o uso de isofluorano. A calibração completa implica que a acurácia do vaporizador seja testada com um analisador de gás anestésico em várias taxas de fluxo de gás e diversas temperaturas, para que se assegure o funcionamento de maneira confiável.

■ Válvula do fluxo de oxigênio As válvulas do fluxo de oxigênio são encontradas na maioria dos aparelhos de anestesia veterinária, mas não em todos. Não há convenção para a localização, o tamanho ou o projeto da válvula do fluxo na medicina veterinária e, portanto, a variação entre elas é imensa (p. ex., botão, pino ou interruptor) (Figura 3.54). As válvulas de fluxo nos aparelhos de anestesia para pacientes humanos têm de ter um botão em um recesso e ser de fácil acesso na frente do aparelho. As válvulas de fluxo são projetadas para liberar rapidamente grandes volumes de gás que não contenha anestésico para o paciente que esteja no circuito de respiração em situações de emergência. O fluxo origina uma corrente para cima do regulador dentro da área de pressão intermediária do aparelho de anestesia (cerca de 50 psi) e desvia do fluxômetro e do vaporizador, liberando gás a taxas que variam entre 35 e 75 ℓ/min para o circuito do paciente. Para evitar pressão excessiva no circuito do paciente, não se deve usar uma válvula de fluxo ou fazê-lo com muita cautela em circuitos não respiratórios, aqueles adaptados a ventiladores mecânicos e os que funcionam com volumes muito baixos (p. ex., sistemas circulares pediátricos), porque as pressões no circuito respiratório podem subir temporariamente, gerando pressões altas muito perigosas para os pulmões do paciente. As válvulas com limite de pressão ajustável (LPA ou APL, de adjustable pressure-limiting) devem ficar completamente abertas o tempo todo, para ajudar a prevenir pressurização excessiva do circuito respiratório.

Figura 3.54 Exemplos de vários botões de válvula de fluxo em aparelhos de anestesia. A. O botão de fluxo de oxigênio fica em um recesso, protegido em um colar, para evitar ativação inadvertida se for acionado sem querer. Muitos botões de fluxo são relativamente pequenos e não têm proteção contra acionamento acidental (B). Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Saída comum de gás A saída comum de gás vai do aparelho de anestesia para o circuito de respiração (Figura 3.55). O gás que alcança essa saída comum veio do fornecimento dele (cilindro ou encanamento/tubulação), passou através do regulador, do fluxômetro e do vaporizador. O gás que flui da saída comum normalmente libera o anestésico e o gás (ou gases) transportador(es) para o circuito do paciente na concentração e na taxa de fluxo determinadas pelo ajuste do vaporizador e pela taxa de fluxo do fluxômetro. No entanto, a concentração de gás inalatório proveniente da saída comum de gás em geral não é equivalente à inalada pelo paciente quando se usam circuitos respiratórios, em particular com taxas de fluxo baixas, por causa da diluição dos gases que chegam com aqueles já presentes no circuito no paciente. A configuração exata da saída comum de gás varia de acordo com os fabricantes, mas normalmente é uma abertura I.D. de 15 mm. Os aparelhos de anestesia para pacientes humanos têm de ter um mecanismo de trava no lugar, para evitar desconexão inadvertida do aparelho (Figura 3.55), mas isso não constitui uma exigência na medicina veterinária. Entretanto, pelo menos uma empresa projeta a saída de gás fresco com um sistema de conexão rápida, para prevenir a ocorrência de desconexões inadvertidas (Figura 3.56).

Figura 3.55 As saídas comuns de gás o liberam do aparelho de anestesia para o circuito respiratório do paciente. Conexões que são empurradas são comuns na medicina veterinária (A). Nos aparelhos de anestesia para pacientes humanos, o padrão é haver travas nas saídas comuns de gás (B). Os sistemas de trava ajudam a prevenir a desconexão inadvertida do fornecimento de gás do aparelho para o circuito respiratório. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.56 Um sistema de conexão e desconexão rápidas para a saída comum de gás em um aparelho projetado exclusivamente para uso veterinário pode ser um aspecto de segurança para evitar desconexões inadvertidas entre o circuito do paciente e o aparelho de anestesia. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Sistemas respiratórios Embora alguns componentes do sistema respiratório façam parte dos aparelhos de anestesia (p. ex., o frasco absorvente de dióxido de carbono do sistema circular), os sistemas respiratórios são considerados separadamente a partir do aparelho real de anestesia (i.e., componente corrente acima da saída de gás fresco). Essa maneira de comentar sobre os sistemas respiratórios na medicina veterinária é conveniente porque, em qualquer aparelho de anestesia, o sistema de respiração pode ser mudado com frequência, dependendo das

necessidades do paciente ou das circunstâncias em que o anestésico é liberado (Figura 3.57). As finalidades primárias do sistema respiratório são levar oxigênio para o paciente, liberar gás anestésico também para o paciente, remover dióxido de carbono das respirações inaladas (para evitar nova respiração significativa de dióxido de carbono) e proporcionar um meio de controlar a ventilação. Os sistemas de respiração foram classificados conforme diversos esquemas, com pouca uniformidade ou consenso quanto à nomenclatura (i.e., aberto, semiaberto e semifechado). Por isso, sugere-se o abandono desses termos, dando-se preferência a uma descrição das taxas de fluxo e do sistema de respiração (p. ex., circular, Mapleson D), que é tudo o que se precisa. Para maior clareza, é mais fácil classificar os circuitos de respiração em um ou dois grupos: aqueles designados para a respiração repetida de gases exalados (sistemas de retorno respiratório ou de retorno respiratório parcial) e os designados para uso em circunstâncias de respiração mínima ou ausente (sistemas sem retorno respiratório). Alguns questionaram que essa classificação é mal denominada, pois, dependendo do sistema específico utilizado e das taxas de fluxo de gás fresco usadas, um sistema respiratório pode ter respiração mínima (i.e., fluxos de gás excessivamente altos) ou um sistema não respiratório pode não prevenir completamente a respiração (fluxo de gás fresco inadequado ou baixo). Para ajudar nesse debate, sugeriu-se que, além de descrever o projeto do circuito, a taxa de fluxo de ar fresco deve ser providenciada para se descrever completamente como o sistema está sendo usado.70 Na medicina veterinária, a taxa de fluxo de gás fresco deve ser expressa em mℓ/kg/min, por causa da ampla gama de tamanhos de paciente encontrada. Além disso, o grau de retorno respiratório nos circuitos pode ser afetado por outros fatores, como o espaço morto do equipamento e o padrão respiratório do paciente. Os sistemas de respiração foram designados para funcionar com ou sem retorno respiratório, devendo ser usados de acordo com a finalidade original.

Figura 3.57 Exemplo de aparelho anestésico montado com circuito circular (à esquerda) e circuito de respiração Bain (à direita). A troca do fluxo de gás para os circuitos é feita mediante o uso de um cabo interruptor localizado na parte da frente inferior direita do aparelho. Não há saída óbvia comum de gás neste aparelho, porque ela está integrada no pino de madeira do interruptor do circuito respiratório. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Sistema com retorno respiratório (circular) O sistema circular é o mais comumente usado e será o único descrito aqui, embora haja outros tipos (p. ex., to-and-fro), usados raramente, cujas descrições podem ser encontradas nas edições anteriores deste livro.66 O sistema circular é projetado para produzir um fluxo unidirecional de gás através do sistema e tem um meio de absorver o dióxido de carbono dos gases exalados. Os componentes desse sistema incluem uma entrada de gás fresco, válvula inspiratória de via única, tubos para respiração, válvula expiratória de via única, válvula LPA, bolsa-reservatório e dispositivo para absorver dióxido de carbono (ver Figura 3.37). Os fluxos de gás fresco usados em um sistema circular determinam a quantidade de retorno respiratório: retorno completo (fechado), parcial (semifechado ou de baixo fluxo) e mínimo. Historicamente, muitos termos foram aplicados para descrever a quantidade de

respirações, mas não há um padrão ou descrição aceitos universalmente desses termos. Contudo, vários autores sugeriram que o uso dos termos aberto, semiaberto e semifechado devam ser abandonados, para evitar confusão.71 Circuito total (completo) Descreve um sistema circular em que as taxas de fluxo são iguais ou próximas do consumo metabólico de oxigênio do paciente, entre 3 e 14 mℓ/kg/min. Às vezes, também é descrito como um sistema fechado, mas talvez seja melhor evitar tal expressão, para não haver confusão. Notar que, em um ‘sistema fechado’, a LPA normalmente não é fechada, pois poderia criar uma situação potencialmente perigosa, visto que as taxas de fluxo de gás fresco excedem as necessidades metabólicas de oxigênio. Circuito parcial Em geral, é um sistema circular que utiliza uma taxa de fluxo maior do que o consumo metabólico de oxigênio (p. ex., 20 mℓ/kg/min), porém inferior à necessária para impedir respiração. Por ser uma variação muito grande, costuma ser dividida de maneira arbitrária em baixo fluxo (20 a 50 mℓ/kg/min), fluxo médio (50 a 100 mℓ/kg/min) e alto fluxo (100 a 200 mℓ/kg/min), embora essa não seja uma descrição universalmente aceita. Sistema circular sem retorno respiratório (mínimo) É um sistema circular em que as taxas de fluxo são superiores a 200 mℓ/kg/min (taxas de fluxo que normalmente não seriam usadas na maioria das circunstâncias). Essas taxas muito altas podem resultar quando são usados sistemas circulares para manutenção da anestesia em pacientes muito pequenos (com menos de 5 kg de peso corporal), com taxas de fluxo de 1.000 mℓ/min ou maiores. Na medicina veterinária, muitas vezes recomenda-se não usar taxas de fluxo abaixo de 1.000 mℓ/min. Embora tal recomendação possa ser clinicamente útil para evitar alguns erros na liberação do anestésico, os sistemas de anestesia mais modernos (i.e., vaporizadores) continuam a funcionar da maneira ideal com taxas de fluxo abaixo de 200 a 500 mℓ/min. Com a disponibilidade de sistemas circulares de baixo volume e baixo espaço morto pediátricos e neonatais acoplados com o melhor monitoramento do paciente (oximetria de pulso e volume corrente final de dióxido de carbono), é comum o uso de sistemas circulares com taxas de fluxo respiratórias parciais (i.e., < 1.000 mℓ/min) em pacientes pequenos (com menos de 5 kg de peso corporal). É mais econômico tanto para uso de oxigênio como de anestésico inalatório empregar taxas de fluxo baixas quando possível. Taxas de fluxo mais baixas também estão associadas a menos contaminação ambiental por hidrocarbonetos halogenados (todos sendo anestésicos inalatórios de uso comum) e manutenção marginalmente melhor da temperatura

corporal. Entretanto, taxas de fluxo mais baixas também estão associadas a menor liberação de gás anestésico (a menos que sejam utilizados ajustes mais altos no vaporizador). Além disso, quando são usados fluxos baixos de gás transportador (com relação ao volume do circuito), o tempo necessário para mudar a concentração anestésica dentro do circuito aumenta significativamente. De início, a maioria dos inalatórios é liberada usando-se taxas de fluxo de gás fresco relativamente altas (p. ex., 50 a 100 mℓ/kg/min no caso de cães) para facilitar aumentos rápidos na concentração inspirada dentro do sistema e substituir o vapor anestésico que está se dissolvendo nos tecidos do paciente durante o período inicial de captação do inalatório liberado. Em seguida, as taxas de fluxo são diminuídas (p. ex., para 20 a 50 mℓ/kg/min no caso de cães) após o período de captação inicial (p. ex., os primeiros 10 a 20 min), para economizar o uso e o gasto de gás. As taxas de fluxo inicial e de manutenção recomendadas (em mℓ/kg/min) de uso clínico geral tendem a ser muito mais altas em pacientes menores (p. ex., gatos) com relação a pacientes maiores (p. ex., cavalos). Isso assegura que a concentração de gás inspirado pelo paciente seja mais um reflexo daquela de gás anestésico liberada do vaporizador, o que contrasta com o uso de taxas de fluxo de gás fresco baixas, em que a concentração de anestésico inspirada pelo paciente não irá refletir necessariamente a concentração de gás do vaporizador até perto do equilíbrio. O uso de analisadores do agente anestésico para monitorar as pressões parciais do anestésico inspirado e expirado facilita muito a tomada de decisão quanto aos ajustes do vaporizador e ao período de trocas nos fluxos de gás, quando são usados fluxos mais baixos de gás transportado. A interação do débito do vaporizador, o volume do circuito, o tamanho do paciente e a taxa de fluxo em geral é um conceito não familiar e difícil de captar. Equiparar a liberação de anestésico a uma taxa de infusão constante de um fármaco intravenoso talvez seja uma comparação mais familiar para se entender a liberação de anestésicos inalatórios. A configuração e as características dos sistemas circulares disponíveis variam um pouco, dependendo do fabricante, mas em geral é seguido um padrão comum de fluxo de gás através da entrada de gás fresco, da válvula inspiratória de uma via, dos tubos para inspiração e expiração (de entrada no e saída do paciente), da válvula expiratória de uma via, da válvula com limite de pressão ajustável (LPA), da bolsa reservatório e do recipiente de absorção de dióxido de carbono de volta para a entrada de gás fresco (Figura 3.58). Alguns sistemas circulares também podem ter incorporadas características como um interruptor para abrir automaticamente as portas do ventilador mecânico e do sensor de oxigênio (Figura 3.59). Entrada de gás fresco É o local de liberação do gás no sistema circular da saída comum de gás do aparelho de

anestesia. Normalmente, a entrada de gás fresco é encontrada após o dispositivo de absorção de dióxido de carbono e antes da válvula inspiratória de uma via.

Figura 3.58 Exemplos de vários circuitos circulares de retorno respiratório usados na medicina veterinária. O grau de integração no aparelho de anestesia e outros detalhes variam muito entre os fabricantes, mas os aspectos essenciais e a função são semelhantes. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.59 Exemplo de um sistema de respiração circular em um aparelho anestésico com ventilador embutido acionado por um interruptor. Isso pode minimizar o potencial de conexões ou desconexões erradas, ou ainda dobras nas mangueiras ao se ligar o ventilador. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Válvula inspiratória de uma via Durante a inspiração, essa válvula se abre, permitindo que o gás se mova da entrada de gás fresco e da bolsa reservatório para a válvula na alça inspiratória do circuito respiratório. Normalmente, essas válvulas consistem em uma cúpula transparente (para visualização direta de sua função), uma válvula de peso médio e um compartimento para a válvula (assentamento dela e guias). Sua limpeza e seu reparo costumam ser fáceis, por meio de

uma capa removível. Durante a expiração, a válvula inspiratória fica fechada, impedindo que o gás exalado entre na alça inspiratória do circuito respiratório, forçando-o para a alça expiratória do circuito. Pelo menos um sistema (Matrx, Midmark Animal Health, Versailles, Ohio, EUA) também incorpora uma válvula de alívio da pressão negativa, proporcionando uma via alternativa de fluxo de gás (ar do ambiente) para o paciente, devendo a válvula inspiratória ficar fixa na posição fechada (Figura 3.60). Tubulação do circuito de respiração O circuito respiratório mais básico é feito de uma alça inspiratória e uma expiratória de plástico corrugado ou borracha. A tubulação corrugada ajuda a prevenir dobras e permite alguma expansão se o circuito respiratório estiver sujeito a compressão ou tração. As duas alças respiratórias ficam conectadas por meio de uma peça em Y que as conecta ao tubo endotraqueal ou à máscara facial. Também há vários projetos coaxiais que colocam a alça inspiratória dentro da expiratória do circuito. Os sistemas coaxiais reduzem o volume associado ao sistema respiratório e (pelo menos teoricamente) facilitam o aquecimento dos gases inspirados pelos expirados. O circuito Universal F (um sistema coaxial) é projetado para funcionar com sistemas circulares padrão (p. ex., conectores O.D. de 22 mm do sistema circular). A maioria dos circuitos respiratórios é adaptada para uso com todos os sistemas circulares, pois os diâmetros são padronizados. Todavia, existe um circuito coaxial patenteado que utiliza conectores do sistema circular fora do tamanho padrão, que requerem o uso de um sistema circular também patenteado (Moduflex Coaxial Breathing Circuit, Dispomed, Joliette, Quebec, Canadá). Também há circuitos respiratórios de vários tamanhos que variam no comprimento, no volume e na quantidade de espaço morto, para satisfazer várias necessidades anestésicas. Os circuitos pediátricos e neonatais normalmente são sistemas de baixo volume e espaço morto pequeno, permitindo que funcionem de maneira ideal em pacientes pequenos (i.e., aqueles com volumes correntes pequenos) (Figura 3.61). Válvula expiratória de uma via Funciona junto com a válvula inspiratória de uma via, fechando-se à inspiração e abrindose durante a expiração. Essa válvula ajuda a direcionar o gás para a alça expiratória do sistema respiratório através da válvula expiratória e para a bolsa reservatório.

Figura 3.60 Válvulas de alívio da pressão negativa são incorporadas em alguns sistemas circulares e, para serem ativadas (para que o paciente inale ar do ambiente), a válvula inspiratória deve ser ocluída ou fechada.

Figura 3.61 A peça em Y de três circuitos circulares diferentes, demonstrando a diferença no espaço morto. Os circuitos de sistema circular são comuns em configurações neonatais/pediátricas e para adultos (a do meio e a da direita, respectivamente). O sistema à esquerda é um circuito veterinário específico, designado especificamente para pacientes muito pequenos e com espaço morto mínimo associado ao seu uso. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Bolsa reservatório Também é conhecida como bolsa respiratória ou de retorno respiratório. O objetivo é ser um reservatório de gás cujo volume se altera com a expiração e a inspiração do paciente. É comum recomendar-se que ela tenha um volume aproximado de 5 a 10 vezes o volume corrente normal do paciente (10 a 20 mℓ/kg) ou mais ou menos equivalente ao volumeminuto do paciente. Por fim, a bolsa reservatório deve ser grande o suficiente para se

constituir em um reservatório de tamanho razoável de gás, mas não tanto a ponto de dificultar a observação de seus movimentos associados à respiração. Além disso, uma bolsa reservatório muito grande contribuiria para o volume funcional total do sistema de retorno respiratório (i.e., sistema circular), contribuindo assim para taxas mais lentas de troca na concentração de anestésico dentro do sistema de respiração quando o débito do vaporizador é alterado. Não seria esse o caso quando se usa um sistema sem retorno respiratório. Válvula limitante de pressão ajustável A válvula LPA também é conhecida como de hiperfluxo, válvula de escape (pop-off) ou para alívio da pressão. É uma válvula de segurança que permite que o excesso de gás escape do circuito do paciente. Com a válvula funcionando bem, o gás deve escapar se a pressão do sistema ultrapassar 1 a 3 cmH2O. Normalmente, ela deve ser deixada completamente aberta o tempo todo, a menos que esteja sendo usada ventilação com pressão positiva e, em seguida, reaberta imediatamente, quando a ventilação cessar, para evitar pressão excessiva no circuito do paciente. Em algumas circunstâncias, a válvula é fechada parcialmente, para evitar o colapso da bolsa reservatório devido à pressão negativa ou ao vácuo do sistema de eliminação. Embora isso possa remediar a situação, não é estimulado, porque pode levar ao fechamento da válvula, ocasionando pressão excessiva no circuito do paciente. Se a bolsa reservatório sofrer colapso contínuo durante o uso normal, isso indica necessidade de ajuste do sistema de vácuo central/eliminação e/ou de incorporar uma interface de limpeza que funcione de maneira apropriada para anular esse efeito. Vários fabricantes comercializam produtos que permitem o fechamento intermitente do sistema com LPA. Tais dispositivos permitem o fechamento temporário do fluxo de saída para o sistema de eliminação pressionando-se um botão. Esses sistemas de fechamento momentâneo fazem parte intrínseca de algumas válvulas LPA ou podem ser acrescentados às válvulas LPA em uso atualmente (Figura 3.62) e são acréscimos valiosos ao sistema de válvula LPA, ajudando a prevenir a pressão excessiva associada ao fechamento inadvertido da válvula LPA, que pode acarretar barotrauma ou a morte do paciente. Também facilitam bastante o uso e a segurança de ventilação com pressão positiva intermitente. Dispositivo para absorção de dióxido de carbono Tal peça contém o absorvente químico para remover dióxido de carbono dos gases exalados. Há muitos tipos (de recipiente duplo, descartável etc.) e tamanhos de tal dispositivo (Figura 3.63). Todos contêm algum tipo de tela para evitar que grânulos absorventes entrem no circuito respiratório e a maioria contém um sistema de dispensa para evitar a canalização de gases dentro do recipiente. No entanto, apesar das telas, os grânulos e/ou a poeira absorventes às vezes entram no circuito respiratório. É provável que isso

ocorra mais comumente em sistemas para grandes animais, em que são mais comuns fluxos máximos de gás relativamente altos (associados à inspiração e à expiração). Há uma variação considerável entre os padrões do fluxo de gás nos recipientes, mas normalmente o projeto dos recipientes tenta assegurar uma absorção ótima e eficiente.

Figura 3.62 Exemplo de fechamento momentâneo da válvula LPA (A) que faz parte do sistema e pode ser acrescentada a qualquer uma LPA padrão (B). C. Demonstração da oclusão momentânea da válvula para liberar uma respiração para um paciente. Fonte: A. Supera Anesthesia Innovations, Clackamas, Oregon, EUA, reproduzida, com autorização, de Supera Anesthesia Innovations; B e C. de Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.63 Três recipientes diferentes com produto para absorção. O que está mais à esquerda é um tipo que vai através do fluxo, em que o gás exalado do circuito do paciente

entra por um lado (i.e., o alto) do recipiente e sai pelo outro (i. e., o fundo) à inspiração. Os dois recipientes à direita têm encaixe para um tubo condutor que direciona os gases exalados ou inalados em um padrão previsível através do recipiente. O gás entra e sai do recipiente pela mesma abertura (i.e., no alto do recipiente) por vias diferentes. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Na medicina veterinária, em geral sugere-se que a capacidade do recipiente do absorvente seja equivalente ao dobro do volume corrente do paciente, mas parece haver pouca evidência que justifique isso. A maioria daqueles destinados a grandes animais raras vezes tem um volume igual ou equivalente ao dobro do volume corrente do paciente, na verdade podendo ter um volume inferior ao volume corrente do paciente. Além disso, o volume de muitos absorventes de dióxido de carbono usados nos aparelhos de anestesia destinados a seres humanos é inferior ao volume corrente do paciente. Recipientes menores costumam ser preferidos para assegurar a troca mais frequente do absorvente, reduzindo a probabilidade de produção de produtos tóxicos pelo absorvente ressecado. Entretanto, a eficiência relativa de absorção (i.e., a carga de dióxido de carbono absorvida quando parece que o absorvente se esgotou) pode melhorar com recipientes de absorventes maiores de dióxido de carbono.4 Os menores reduzem o volume interno do circuito respiratório, ocasionando mudanças na concentração do vaporizador, que se refletem mais rapidamente na concentração de gás inspirado, mas requerem trocas mais frequentes do absorvente. Absorventes de dióxido de carbono O princípio geral da absorção de dióxido de carbono envolve uma base (absorvente) que neutraliza um ácido (CO2). Os produtos finais da reação são água, um carbonato (p. ex., de cálcio) e produção de calor. O principal componente dos absorventes de uso mais comum é o hidróxido de cálcio [Ca(OH)2]. Atualmente, existem três absorventes na América do Norte: cal de soda, Baralyme e Amsorb (hidróxido de cálcio, isto é, soda cáustica), a primeira sendo a de uso mais comum; ela contém cerca de 80% de hidróxido de cálcio, 15% de água e 4% de hidróxido de sódio (NaOH). O Baralyme é uma mistura de aproximadamente 20% de hidróxido de bário e 80% de hidróxido de cálcio, podendo conter ainda algum hidróxido de potássio. O Amsorb, comercializado como Amsorb® Plus, consiste em aproximadamente 80% de hidróxido de cálcio, 1% de sulfato hemi-hidratado de cálcio, 3% de cloreto de cálcio e 15% de água. O Amsorb é o absorvente mais novo e está associado à produção mínima (se alguma) de monóxido de carbono e Composto A, bem como uma quantidade menor de degradação do sevofluorano, em comparação com a cal de soda e o Baralyme.72 A capacidade de absorção aproximada desses dois últimos é de 25 e 27 ℓ de dióxido de carbono por 100 g, respectivamente, enquanto a do Amsorb é de cerca de 50% a da cal de soda.73

A absorção de CO2 na cal de soda ocorre por meio de uma série de reações químicas. Primeiro, o CO2 se combina com a água e forma ácido carbônico, que então reage com os hidróxidos para formar carbonato de sódio (ou de potássio), água e calor. Em seguida, o hidróxido de cálcio aceita o carbonato para formar carbonato de cálcio e regenerar hidróxido de sódio (ou de potássio). 1 CO2 + H2O ⇋ H2CO3 2 H2CO3 + 2NaOH (KOH) → Na2CO3 (K2CO3) + 2H2O + calor 3 NaCO3 (K2CO3) + Ca(OH)2 → CaCO3 + 2NaOH (KOH) Algum CO2 pode reagir diretamente com o hidróxido de cálcio, mas a reação é relativamente lenta, em comparação com o processo que utiliza hidróxido de sódio ou de potássio. H2CO3 + Ca(OH)2 → CaCO3 + 2 H2O + calor A reação do Baralyme difere porque mais água é liberada pela reação direta do CO2 com o hidróxido de bário. 1 Ba(OH)2 + 8H2O + CO2 → BaCO3 + 9H2O + calor 2 9H2O + 9CO2 → 9H2CO3 Então, por meio de reações diretas (a seguir) e por KOH e NaOH (como anteriormente) 3 9H2CO3 + 9Ca(OH)2 → 9CaCO3 + 18H2O + calor A reação do Amsorb é mais simples, com o CO2 reagindo com a água para formar ácido carbônico e este reagindo diretamente com o hidróxido de cálcio para formar carbonato de cálcio. 1 CO2 + H2O ⇋ H2CO3 2 H2CO3 + Ca(OH)2 ⇋ CaCO3 + 2H2O + calor Quando em uso contínuo, pode parecer que os absorventes se esgotaram (i.e., alteração da cor do indicador) antes de ser ultrapassada a capacidade de absorção dos grânulos, os quais normalmente passam de branco para roxo ou rosa conforme vão se esgotando, dependendo do indicador usado. O etil violeta (roxo) e a fenolftaleína (vermelha) são indicadores sensíveis ao pH, comumente acrescentados aos grânulos para ajudar a

identificar o esgotamento do absorvente. Não se deve usar a alteração de cor como único indicador do esgotamento do absorvente. É comum um absorvente que mudou de cor voltar a ficar branco se o deixarmos sem uso por várias horas. Costuma ser fácil esmigalhar absorvente fresco (sem uso) ao pressioná-lo, enquanto o absorvente usado fica duro (carbonato de cálcio). Além disso, como a reação de absorção do dióxido de carbono produz calor e umidade, é possível avaliar a atividade do absorvente observando se há evidência da produção de calor e umidade no recipiente. Também, usa-se a capnografia, quando disponível, para detectar o esgotamento do absorvente. A taxa de esgotamento do absorvente será determinada pelo tamanho do paciente (produção de CO2) e pela taxa do fluxo de gás fresco (mℓ/kg/min). O esgotamento do absorvente será mais rápido em pacientes maiores e quando forem usadas taxas de fluxo de gás fresco baixas. O recipiente do absorvente deve ser preenchido com cuidado para evitar preenchimento excessivo, compactação de grânulos no recipiente e escapamento deles no sistema respiratório. Ocorre alguma degradação de anestésicos inalatórios com sua exposição aos absorventes de dióxido de carbono. Normalmente, essa degradação é insignificante, porém o sevofuorano pode se decompor, gerando um composto potencialmente nefrotóxico, o Composto A. Os fatores associados ao aumento da produção desse composto incluem uma alta concentração de sevofluorano, taxas de fluxo baixas de gás fresco, absorvente seco, alta temperatura e o uso de cal de bário. O significado da produção de Composto A em termos de efeitos na saúde humana e de outros animais foi amplamente debatido, mas seu significado clínico parece ser pouco preocupante em cães e gatos. Também pode haver produção de monóxido de carbono quando desfluorano, enfluorano ou isofluorano passa através de absorventes secos que contenham um álcali forte (hidróxido de potássio ou de sódio). De acordo com relatos, a maioria dos casos humanos de intoxicação por monóxido de carbono ocorreu durante o primeiro anestésico geral administrado a partir de um aparelho de anestesia pouco usado. Na anestesia humana, é recomendável usar apenas absorventes que não ressequem nem contenham hidróxido de potássio e tenham pouco ou nenhum hidróxido de sódio. Embora a intoxicação por monóxido de carbono associada ao uso de anestésico na medicina veterinária pareça ser uma ocorrência muito rara (ou simplesmente não reconhecida), é provável que sejam aplicáveis as mesmas recomendações.

■ Sistemas sem retorno respiratório Caracterizam-se pela ausência de válvulas unidirecionais e de um absorvente de dióxido de carbono. Em vez de depender da absorção do dióxido de carbono para a remoção de CO2, esses sistemas dependem das taxas de fluxo de gás fresco para retirar o CO2 do circuito. Normalmente, tais sistemas não são usados em pacientes com mais de 10 kg, por serem

menos econômicos, devido à necessidade de altas taxas de fluxo de gás fresco para evitar que o paciente volte a respirar CO2. As taxas de fluxo recomendadas para minimizar a respiração do CO2 expirado variam de 130 a 300 mℓ/kg/min, embora tenham sido recomendados valores tão altos como de 600 mℓ/kg/min. É provável que a grande variação nas taxas de fluxo recomendadas tenha alguma relação com o fato de que, além da taxa de fluxo de gás fresco, o padrão respiratório intrínseco do paciente terá influência se ocorrer essa respiração repetida (discussão adiante). Esses sistemas eram recomendados antigamente, de maneira um tanto arbitrária, para pacientes com menos de 5 kg, mencionando-se a resistência mais baixa durante a respiração, menos espaço morto no equipamento e um volume total menor no circuito. Contudo, com o uso dos circuitos respiratórios mais modernos pediátricos, neonatais e específicos para pacientes pequenos, muitas das vantagens normalmente associadas aos sistemas não respiratórios são negadas e é possível manter pacientes com menos de 5 kg em segurança mediante o uso de sistemas respiratórios, desde que o volume corrente do paciente seja adequado para a atuação das válvulas unidirecionais. Em geral, os circuitos específicos para pacientes pequenos não têm mais, e em alguns casos até menos, espaço morto e volume total que os sistemas padrões sem retorno respiratório (Figura 3.61). Não há um tamanho mínimo de paciente geralmente aceito entre os anestesiologistas para se usar um sistema de retorno respiratório. O tamanho mínimo de paciente costuma variar entre 3 e 7 kg, embora alguns anestesistas possam escolher pacientes fora dessa faixa de tamanho, dependendo do monitoramento disponível (p. ex., capnografia para avaliação da ausência de retorno respiratório) e do modo pretendido de ventilação (espontânea versus controlada). Embora o sistema Mapleson para a classificação dos circuitos respiratórios em anestesia já tenha sido popular, tem pouca relevância hoje, com relação àqueles sem retorno respiratório de uso comum, mas incluímos aqui diagramas apenas para referência (Figura 3.64 e Tabela 3.3). Em geral, ainda que haja três ou mais sistemas sem retorno respiratório comumente descritos para uso em medicina veterinária na América do Norte, todos são quase idênticos em termos funcionais e baseiam-se em dois dos seis antigos sistemas Mapleson descritos, o D e o F (ver Figura 3.65).

Figura 3.64 A a F. Diagramas de cada um dos sistemas respiratórios Mapleson antigos descritos. Fonte: Rayburn RL, Pediatric anesthesia circuits. Annual Refresher Course Lecture 117, Washington, DC, 1981. Reimpressa, com permissão, da American Society of Anesthesiologists. Tabela 3.3 Características dos sistemas respiratórios Mapleson.

Classe

A

Entrada de gás

Localização do

Presença de um

Tubulação

Exemplo de

fresco

hiperfluxo

reservatório

corrugada

sistema

Perto do paciente

Sim

Sim

Magill

Perto do reservatório

B

Perto do paciente

Perto do paciente

Sim

Sim

a

C

Perto do paciente

Perto do paciente

Sim

Não

a

D

Perto do paciente

Sim

Sim

a

Afastado do pacientea

MDc

Perto do paciente

E

Perto do paciente

F

Perto do paciente

Afastado do paciente Afastado do paciente Afastado do pacienteb

Sim

Sim

Bain

Não

Sim

Peça em T

Sim

Sim

Jackson-Rees

a

Nenhum sistema desta classificação é de uso comum em anestesia veterinária.

b

O hiperfluxo pode ser localizado entre o reservatório e a tubulação corrugada do sistema.

c

MD, sistema Mapleson D modificado.

O sistema sem retorno respiratório inclui uma mangueira que conduz gás fresco, conexão para o paciente, tubulação para exalação (normalmente corrugada), sistema de ventilação do excesso de gás e uma bolsa reservatória. Em todos os sistemas de uso comum, a entrada de gás fresco fica perto da conexão com o paciente e depende do influxo de gás fresco para deslocar para baixo o gás expirado contendo CO2 por uma extensão variável da tubulação que leva na direção da bolsa reservatório e, por fim, para o sistema de eliminação. São necessários fluxos de gás fresco para ajudar a minimizar a respiração dos gases expirados. Durante a pausa expiratória, a alta taxa de fluxo de gás fresco da tubulação que o conduz empurra o ar exalado da expiração prévia para baixo do tubo que a conduz para fora do paciente, na direção da bolsa reservatório. Quando o paciente inspira, ele inspira o gás que vem tanto do tubo que leva ar fresco como do que leva o gás exalado. Em circunstâncias normais (i.e., paciente com padrão respiratório e taxa de fluxo inspiratório normais), a maior parte da respiração inspirada vem do tubo que transporta a exalação. Em algumas circunstâncias (i.e., pacientes com padrões respiratórios incomuns), um paciente pode respirar novamente gases exalados, apesar de fluxos de gases frescos aparentemente normais. Por exemplo, um paciente com a respiração rápida pode não ter uma pausa respiratória de duração suficiente para o CO2 ser eliminado distal o bastante do terminal do tubo conectado a si, de modo a prevenir a respiração repetida, em particular se a ela for suficientemente demorada. O monitoramento do volume corrente final de dióxido de carbono pode ser útil para se determinar se estão sendo usados fluxos de gás fresco adequados para minimizar essa repetição da respiração.

Figura 3.65 Diagramas dos sistemas Mapleson (D e F) de uso mais comum, como fundamento para os sistemas não respiratórios modernos. Os sistemas mais modernos sem retorno respiratório são modificações da classificação Mapleson e podem não ser mais classificados estritamente como um tipo ou outro. Por exemplo, um sistema Bain é um sistema coaxial como o Mapleson D e pode ser configurado com o gás exalado saindo antes da bolsa respiratória – Mapleson D (A) – ou após a bolsa respiratória – Mapleson F (B). O sistema Jackson Ree é um sistema não coaxial que pode ser configurado similarmente com o gás exalado saindo antes da bolsa respiratória – Mapleson D (C) – ou após a bolsa respiratória – Mapleson F (D). Fonte: Kath Klassen, Vancouver Animal Emergency Clinic,

Vancouver, Canadá. Reproduzida, com autorização, de Kath Klassen.

É provável que os nomes Bain e Jackson Rees Modificado sejam os mais comumente colocados em sistemas sem retorno respiratório, mas não servem para descrevê-los de maneira adequada conforme costumam ser usados na medicina veterinária. Tampouco há uma definição definitiva do sistema no sentido de que nem sempre se pode confiar que a configuração deles seja a mesma. Com base nas descrições antigas desses circuitos, o Bain (fundamentado em um sistema Mapleson D) teria uma válvula LPA proximal à bolsa respiratória, enquanto o Jackson Rees Modificado (baseado em um sistema Mapleson F) teria uma válvula do tipo alavanca ou torneira, localizada distal à bolsa de respiração. Entretanto, ambos os sistemas podem ser adaptados para uso em um bloco montado e várias combinações de bolsa reservatório e sistema ventilatório, tornando a classificação estrita quase impossível. Na prática, a principal diferença entre o modo de funcionamento clínico dos dois sistemas é o fato de um ser coaxial (Bain) e o outro não (Jackson Rees Modificado). Talvez um jeito menos confuso e consistente de classificar os circuitos sem retorno respiratório na medicina veterinária seria com base na configuração da tubulação condutora (i.e., coaxial ou não coaxial), na localização do sistema de eliminação (i.e., proximal ou distal à bolsa reservatório) e no método de limpeza (válvula LPA, com alavanca ou do tipo torneira). O projeto coaxial do sistema Bain reduz o volume geral e constitui um método para aquecer potencialmente os gases frios inspirados. Os blocos montados são métodos convenientes para o arranjo de sistemas sem retorno respiratório, porque proporcionam pontos firmes de conexão para o circuito respiratório, a bolsa reservatório e a tubulação de limpeza (Figura 3.66). O uso de um bloco montado minimiza o potencial de conexões e desconexões erradas ou dobras na mangueira. O posicionamento fixo com relação ao aparelho de anestesia também permite que o anestesista avalie prontamente a integridade de todas as conexões. Sistemas sem retorno respiratório usados sem um bloco montado podem ser colocados em qualquer lugar na área de trabalho com anestesia e correr o risco de ser cobertos por panos que pendem de mesas cirúrgicas, puxados ou agarrados por pernas ou equipamento em movimento na sala de cirurgia, tudo isso aumentando a possibilidade de complicações anestésicas. A maioria dos blocos montados também tem um manômetro de pressão incluso no sistema, um acréscimo inestimável que capacita o usuário a monitorar e avaliar alterações na pressão da via respiratória. A maioria dos sistemas sem retorno respiratório vendida a veterinários não é configurada com um manômetro de pressão como parte do sistema padrão, o que, junto com altos fluxos de gás fresco e circuitos com volumes relativamente pequenos, expõe os pacientes ao potencial de barotrauma acidental. Uma

solução para superar esse problema quando não se dispõe de um bloco montado com manômetro é adquirir manômetros de pressão descartáveis designados para uso com uma bolsa de reanimação. É fácil colocá-los dentro de todos os sistemas sem retorno respiratório e usá-los muitas vezes, além de ser um método não dispendioso de avaliação das pressões na via respiratória (Figura 3.67). Uma alternativa é usar alarmes de alta pressão no paciente, que podem ser inseridos no sistema entre o paciente e a válvula usada para isolar o sistema da parte da limpeza.

Figura 3.66 Um bloco montado (às vezes também conhecido como montagem Bain, embora não seja exclusivo para uso com circuitos Bain) fornece pontos de conexão fixa para o circuito sem retorno respiratório, a bolsa reservatório e o tubo de limpeza. A maioria tem incorporada uma válvula limitante da pressão ajustável (LPA) e calibrador da pressão. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.67 A e B. Exemplo de um manômetro descartável em bolsa de reanimação, que pode ser adaptado para uso na maioria dos sistemas sem retorno respiratório. A presença do manômetro permite que o anestesista avalie melhor as pressões na via respiratória no sistema de respiração. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Sistema de eliminação dos resíduos de gás Tal sistema direciona os resíduos de gases do circuito respiratório anestésico para o espaço de trabalho imediato e a atmosfera. O ideal é que o sistema de eliminação inclua a válvula LPA, uma interface e um sistema de eliminação dos resíduos do gás (Figura 3.68), embora seja importante notar que esses componentes podem não ser encontrados como parte de todos os sistemas de eliminação. Muitos sistemas em uso consistem em uma mangueira conectada à válvula LPA (ou outra saída do circuito respiratório) para um ventilador que

leva para fora da área imediata de trabalho. O sistema de eliminação de resíduo de gás pode ser ativo ou passivo. O último não usa pressão negativa (p. ex., abre-se à pressão atmosférica), enquanto um sistema ativo usa um vácuo leve. O tipo de sistema de eliminação de resíduo de gás irá determinar a necessidade e o tipo de interface de resíduo de gás requerido. Os sistemas passivos podem usar um recipiente de carvão ativado para inativar anestésicos halogenados ou desviar os resíduos de gases anestésicos por meio de um conduto curto fora do ambiente de trabalho diretamente para a atmosfera.

Figura 3.68 Uma interface de limpeza ajustável tanto com pressão positiva como negativa alivia as funções. Esses tipos de interfaces funcionam bem com sistemas ativos de eliminação. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Os sistemas de eliminação com pressão negativa (vácuo) estão sendo usados cada vez mais na medicina veterinária. Pode ser que façam parte de um sistema cirúrgico de vácuo (sucção), vácuo estático, de ventilação ou outro projeto, desde que sem padrões específicos quanto a esses sistemas. Todos os sistemas de eliminação com pressão negativa requerem algum tipo de interface para operar adequadamente e impedir que a via respiratória do paciente receba vácuo. O ideal é que a interface de limpeza de gás deva ter meios de lidar com um excesso de pressão tanto positiva como negativa, um sistema de reservatório para acomodar alterações na liberação de resíduos de gás para o sistema de eliminação e um meio de inativar qualquer gás halogenado que escape do sistema de eliminação (Figura 3.69). A maioria das interfaces de limpeza falha no sentido de satisfazer todas essas especificações em todas as circunstâncias variáveis encontradas durante o uso (p. ex., sistemas de eliminação com alta pressão negativa, alterações de pressão dentro do sistema de vácuo, alterações acentuadas na taxa de resíduos de gases esgotados para o sistema de eliminação), mas a maioria funciona adequadamente em condições operacionais normais.

Figura 3.69 Diagrama de uma interface de limpeza. As configurações exatas das interfaces de limpeza comercializadas variam muito e podem não conter todos os componentes mostrados. Fonte: Kath Klassen, Vancouver Animal Emergency Clinic, Vancouver, Canadá. Reproduzida, com autorização, de Kath Klassen.

Sistemas de eliminação com pressão negativa baixa (de ventilação ou em leque) funcionam bem com a maioria das interfaces de limpeza. Em geral, esses sistemas destinam-se a eliminar os resíduos de gás e podem ter localização central ou no próprio aparelho. Esses sistemas costumam ser acionados por sopradores ou ventarolas que não

mantêm uma taxa de evacuação constante (pressão negativa) o tempo todo e em todos os locais. Vários fatores, como o número de locais em que atuam, a distância do soprador ou ventarola e o número de locais em uso, podem afetar as taxas de evacuação em qualquer local. Os sistemas de eliminação com alta pressão negativa são encontrados mais comumente em instituições maiores com sistemas de vácuo de localização central, e o sistema de eliminação ativo funciona com o mesmo sistema de pressão negativa, usado para aspiração médica. Embora geralmente seja mais conveniente e efetivo, com relação ao custo, usar o mesmo sistema de vácuo para todas as funções no hospital, há alguns desafios únicos associados a esse tipo de instalação. Como esses sistemas funcionam com uma quantidade significativa de pressão negativa, com relação à necessária para a eliminação, requerem interfaces de limpeza ajustáveis para se regular o nível de sucção na interface e fazer ajustes frequentes menores para prevenir o colapso da bolsa reservatório do sistema de respiração. Qualquer que seja o tipo de sistema de eliminação usado, os recipientes de carvão ativado devem estar disponíveis para situações em que não se disponha de outros modos de eliminação dos resíduos de gás anestésico (p. ex., ao se movimentar um paciente conectado ao aparelho de anestesia ou trabalhar em áreas sem instalações para limpeza).

■ Procedimento rotineiro de verificação do aparelho de anestesia A avaliação rotineira do aparelho de anestesia e dos sistemas associados, antes e durante todo o período de anestesia, deve fazer parte dos procedimentos operacionais padrão (POP) de todo anestesista. No passado, falhas do equipamento parecem ter sido uma causa relativamente comum de morbidade e mortalidade relacionadas com a anestesia.2 No entanto, com os aprimoramentos na tecnologia, no monitoramento e na adoção de padrões universais de segurança para o equipamento humano de anestesia, as complicações relacionadas com o mau funcionamento do equipamento foram reduzidas. As recomendações para verificação do equipamento de pré-anestesia, no caso de seres humanos, foram desenvolvidas em conjunto com regulamentos, a indústria e pessoas ligadas à anestesia, tendo sido publicadas em muitos países. Infelizmente, em geral não há um padrão reconhecido de recomendações para verificação do equipamento de préanestesia na medicina veterinária. Todavia, foi proposta uma lista de verificação excelente para anestesistas veterinários, elaborada por Hartsfield, com base nas ‘Anesthesia Apparatus Checkout Reccomendations’ do US Food and Drug Administration’s Center for Devices and Radiological Health.66,74 Na Tabela 3.4, apresentamos um resumo modificado da lista proposta por Hartsfield.

Ventiladores para anestesia O ventilador para anestesia destina-se a proporcionar ventilação para o paciente no período perianestésico. A maioria dos ventiladores para anestesia não tem a sofisticação de controle e função encontrada nos ventiladores de unidades de tratamento intensivo (UTI) e funciona melhor quando eles são usados para ventilar pacientes com função pulmonar relativamente normal e necessidades simples de ventilação. Entretanto, alguns ventiladores para anestesia humana e veterinários específicos agora oferecem características e desempenho que rivalizam com aqueles de um ventilador básico de UTI. Na América do Norte, os ventiladores de anestesia destinados a uso em seres humanos estão sujeitos a uma série de padrões internacionais e nacionais, ao passo que aqueles destinados ao mercado veterinário não são obrigados a satisfazer quaisquer padrões similares de projeto. Mais uma vez, isso obriga o anestesista veterinário não apenas a ter um entendimento completo das implicações fisiológicas e práticas do uso do ventilador, como também a estar muito bem familiarizado com o projeto, a função e as deficiências de qualquer ventilador usado.

■ Classificação Os ventiladores são classificados de maneira variável por diferentes critérios que descrevem seu projeto e seu controle. Infelizmente, há várias inconsistências no uso da terminologia e suas definições. Em geral, também não há consenso aceito sobre como classificar os ventiladores anestésicos, e alguns deles simplesmente não podem ser descritos de maneira adequada, conforme os esquemas de classificação atuais. Por exemplo, alguns ventiladores anestésicos humanos modernos são máquinas sofisticadas controladas por um processador, capazes de múltiplos modos de ventilação, e têm um desempenho semelhante ao dos ventiladores de UTI, razão pela qual não é fácil classificálos de acordo com os critérios atuais. Os critérios usados mais comumente para descrever ou classificar os ventiladores anestésicos incluem a principal variável de controle, o tipo de fonte de energia, o mecanismo de acionamento, o de ciclo e o tipo de fole. Principal variável de controle A maioria dos ventiladores é descrita como controlada pela pressão ou pelo volume. Isso se refere à variável visada, pré-ajustada ou limitante, usada para determinar o volume corrente liberado pelo ventilador. Em um ventilador limitado pelo volume, o volume corrente é predeterminado e será liberado, quaisquer que sejam as pressões associadas necessárias para isso. Tal afirmação não é totalmente acurada, pois muitos ventiladores (aparelhos/circuitos de anestesia) têm inclusos sistemas para alívio da pressão ou de alarme, que são ativados e limitam o volume liberado, se forem alcançadas pressões excessivamente altas na via respiratória. Além disso, alterações no circuito e na

complacência pulmonar do paciente alteram o volume corrente real liberado para o paciente, em comparação com o volume corrente aparente ajustado no ventilador (ver a seção intitulada Fatores que afetam a liberação do volume corrente, mais adiante). Normalmente, esse efeito é negligenciável, porque é improvável que ocorram alterações significativas mantidas no sistema ou na complacência respiratória do paciente, durante um caso rotineiro. Com um ventilador limitado pela pressão, usa-se uma pressão inspiratória máxima pré-ajustada para limitar o volume corrente liberado para o paciente. O volume liberado pode ser afetado por alterações na complacência ou na resistência respiratória ou do circuito, nas taxas de fluxo inspiratório, vazamentos, pelo período inspiratório e pela localização do sensor de pressão. Fonte de energia É a necessária para que se opere um ventilador mecânico, podendo ser gás comprimido, eletricidade ou ambos. Ainda que, em geral, não seja aceito, pode ser mais útil classificar os ventiladores com base no que realmente aciona a ventilação com pressão positiva: gás comprimido ou um pistão controlado eletronicamente. Embora antigamente muitos ventiladores não contivessem microprocessadores sofisticados que dependem de eletricidade, e, portanto, só precisavam de gás comprimido para que funcionassem, a maioria dos ventiladores modernos tem alguns componentes elétricos, independentemente do que realmente produz ventilação com pressão positiva. O mecanismo de acionamento normalmente se refere de modo mais específico à maneira como a ventilação com pressão positiva é produzida de fato. Tabela 3.4 Assegurar que todo o equipamento esteja funcionando bem é uma etapa fundamental, que deve ser cumprida antes de se iniciar a anestesia. As recomendações propostas para a verificação do equipamento baseiam-se nas “Anesthesia Apparatus Checkout Recomendations”, do Food and Drug Administration´s Center for Devices and Radiological Health. Recomendações para verificação do aparelho de anestesia veterinária* Essa lista não substitui a experiência de um operador com pleno conhecimento que monitore continuamente o equipamento de anestesia. Todas as partes do equipamento e do sistema de respiração devem estar presentes, funcionando bem, sem defeitos e conectadas corretamente. Essa lista inclui a avaliação de ventiladores automatizados e dos monitores do paciente, se houver.

Sistema de alta pressão

A quantidade e a pressão dos suprimentos centrais de gás (oxigênio, óxido nitroso, ar) devem ser adequadas. A pressão da tubulação central não deve flutuar, e sim permanecer no nível pré-ajustado (normalmente cerca de 50 psi), quando os fluxômetros no aparelho de anestesia são ajustados para uma taxa de fluxo de 3 a 5 ℓ/min. A quantidade e a pressão dos suprimentos portáteis de gás (cilindros de oxigênio no aparelho de oxigênio) devem ser adequadas. Esses cilindros devem ser inspecionados em busca de vazamentos. Com o fluxômetro desligado e a válvula do cilindro aberta, não deve haver vazamentos audíveis ou queda na pressão do cilindro com o tempo (i.e., 10 min). Sistema de baixa pressão Testar os fluxômetros de cada gás. Com o controle do fluxo desligado, a boia deve ficar no fundo do tubo de vidro. Conforme se ajusta o fluxômetro em todas as suas variações, a boia deve mover-se devagar, sem aderir ao vidro nem fazer movimentos erráticos. Os vaporizadores devem ser preenchidos, as tampas dos recipientes colocadas e o dial de controle ficar na posição desligada. As conexões de entrada e saída devem estar no lugar e fixas. Teste de vazamento no sistema de baixa pressão: a. Colocar um ‘bulbo de aspiração’ na saída comum de gás. b. Espremer o bulbo até ficar totalmente colapsado. c. Verificar se o bulbo fica totalmente colapsado por pelo menos 10 s. d. Abrir cada vaporizador, um de cada vez, se houver mais de um, e repetir as etapas b e c com cada vaporizador. Sistema de eliminação Confirmar a conexão adequada entre o sistema de eliminação e a válvula LPA. Ajustar o fluxo de vácuo para resíduo de gás, se possível, para satisfazer as necessidades do caso em questão. Com a válvula LPA completamente aberta e a peça em Y ocluída: a. Deixar o reservatório voltar a colapsar completamente e verificar se a leitura do calibrador da pressão no circuito está zerada.

b. Com a válvula de fluxo de oxigênio ativada, deixar a bolsa reservatório de eliminação distender-se completamente e, então, verificar se a leitura no calibrador de pressão do circuito é de 10 cmH2O. Se o sistema de eliminação abrange um recipiente de carvão, a qualidade de absorção do carvão deve ser verificada.

Sistema de respiração Sistema com retorno respiratório (circular) Confirmar se o circuito selecionado e o tamanho da bolsa reservatório são apropriados para o paciente. Verificar se o sistema de respiração está completo, não danificado nem obstruído. Verificar se o absorvente de dióxido de carbono é adequado. Fazer um teste para ver se há vazamento no sistema: a. Zerar todos os fluxos de gás (ou colocá-los no mínimo). b. Fechar a válvula LPA e ocluir a peça em Y. c. Pressurizar o sistema de respiração usando a válvula de fluxo para uma pressão de cerca de 30 cmH2O. d. Confirmar se a pressão se mantém por pelo menos 10 s. Como alternativa, a taxa de vazamento necessária para manter a pressão em 30 cmH2O deve ser inferior a 300 mℓ/min. e. Abrir a LPA e confirmar se a pressão diminui apropriadamente. Sistema sem retorno respiratório Confirmar se o circuito selecionado e o tamanho da bolsa reservatório são apropriados para o paciente. Verificar se o sistema de respiração está completo, não danificado nem obstruído. Fazer um teste para ver se há vazamento no sistema: a. Zerar todos os fluxos de gás (ou colocá-los no mínimo). b. Fechar a válvula LPA e ocluir a peça em Y. c. Pressurizar o sistema de respiração usando a válvula de fluxo para uma pressão de cerca de 30 cmH2O. Se não houver calibrador da pressão associado ao sistema, a bolsa reservatório deve permanecer completamente distendida, sem nenhuma perda de pressão. d. Nos sistemas Bain (coaxiais Mapleson D), deve-se avaliar a integridade do tubo interno. Com o fluxômetro ajustado em 1 ℓ/min, deve-se ocluir o tubo interno por pouco tempo, e a boia do fluxômetro deve cair até perto de zero.

e. Abrir a LPA e confirmar se a pressão diminui apropriadamente. Ventilador Colocar uma segunda bolsa reservatório no circuito do paciente, apropriada para o tamanho dele. Ajustar os parâmetros do ventilador apropriados para o paciente. Conectar o ventilador, de acordo com as instruções do fabricante, e encher o fole e a bolsa reservatório usando a válvula de irrigação. Ligar o ventilador, confirmar se são liberados volumes correntes adequados e se o fole se enche completamente durante a expiração. Verificar a ação apropriada das válvulas unidirecionais do círculo, se for o caso. Manipular os parâmetros de ventilação para confirmar se tudo está funcionando normalmente. Desligar e desconectar o ventilador conforme as instruções do fabricante. Monitores Confirmar a presença de todos os fios e conectores. Conferir se todos os alarmes estão nos ajustes corretos.

*Por causa da variabilidade significativa e da falta de padrões para o equipamento de anestesia veterinária, nem todos os procedimentos de verificação aplicam-se aos aparelhos de anestesia. Mecanismo/circuito de acionamento Tanto um dispositivo mecânico que funciona com gás comprimido como o que o faz eletronicamente, como um pistão, pode acionar ventiladores. Os ventiladores movidos a gás comprimido são conhecidos como de circuito duplo, pois têm dois circuitos de gás, um contendo gás para acionar o ventilador e o outro contendo gás que é liberado para o paciente. Os ventiladores que não funcionam com gás comprimido são conhecidos como de circuito único. Todavia, há pelo menos um no comércio que usa gás comprimido como fonte de energia, mas não contém fole nem pistão e, em termos técnicos, é um ventilador de circuito único, o Penlon Nuffield 200 (Penlon Ltd, Abingdon, Reino Unido). No entanto, esse ventilador também pode ser combinado com um sistema de fole (bolsa em uma caixa), criando um ventilador de circuito duplo. A ausência de barreira física nesse projeto pode ter o potencial de permitir a mistura de gases do circuito usado para fornecer

energia para o ventilador com gás do circuito do paciente. Entretanto, o significado clínico da mistura é mínimo, desde que as taxas de fluxo de ar fresco sejam adequadas para garantir a respiração sem retorno respiratório. Qualquer mistura entre o gás que aciona o ventilador e o circuito de gás do paciente só deve envolver o gás exalado pelo paciente, que se move através do circuito respiratório destinado a ser eliminado e coletado pelo sistema de eliminação. Mecanismo de ciclo É a expressão usada para descrever como um ventilador segue um ciclo de inspiração para expiração e retorno. Também é provável que seja a expressão usada da maneira mais inconsistente. Na maioria dos ventiladores, o ciclo é determinado por um mecanismo temporal, embora em pelo menos um ventilador de uso comum (os da série Bird Mark) se possa usar mais a pressão que o tempo para acionar o ciclo do ventilador. Um microprocessador eletrônico ou uma unidade coerente de líquido podem controlar o mecanismo temporal. Mecanismos temporais eletrônicos predominam nos ventiladores atuais, embora ainda sejam produzidos alguns sistemas de controle coerente de líquido. Antes do advento dos microprocessadores e produtos eletrônicos acessíveis, o controle coerente de líquido era popular e pode ser encontrado em muitos ventiladores antigos ainda em uso (p. ex., Air-Shields, Ohio V5A e Metomatic). As unidades com microprocessador eletrônico praticamente abrem e fecham válvulas que permitem que o gás vá para o ventilador ou, no caso de um projeto com pistão, ativam o movimento deste. As unidades coerentes de líquido funcionam com gás comprimido, normalmente a uma pressão constante, para ativar válvulas de cronometragem para inspiração e expiração. A quantidade de gás necessária para ativar essas válvulas e, em consequência, os períodos inspiratório e expiratório pode ser alterada aumentando-se ou diminuindo-se o fluxo de gás na válvula em questão, o que gera períodos de ativação mais curtos ou mais longos. Por fim, essas válvulas se abrem e fecham em decorrência de alterações na pressão do gás dentro de válvulas cronometradas e é provável que tal fato cause alguma confusão e uso errôneo da terminologia. Embora as alterações de pressão sirvam para ativar o momento inspiratório e o expiratório, o ciclo desses ventiladores ainda é controlado estritamente pelo tempo, com a pressão sendo usada para produzir cronometragens previsíveis de líquido. Deve-se reservar a classificação de ventiladores como tendo o ciclo determinado pela pressão para aqueles em que a pressão no circuito do paciente é responsável pelo funcionamento do ventilador em ciclo. A série Bird Mark de ventiladores pode ser desse tipo. A cronometragem para a inspiração nesses ventiladores é uma função da duração de tempo necessária para que seja atingida uma pressão específica no circuito do paciente, durante ventilação com pressão positiva. A duração do ciclo pode ser modificada pelas

taxas de fluxo de gás para o ventilador e por alterações na complacência pulmonar do paciente. Quando se usam esses ventiladores, a inspiração continuará até ser alcançado um limiar específico de pressão, qualquer que seja o tempo necessário para isso. Os ventiladores para anestesia têm sido classificados como tendo o ciclo determinado pelo volume, mas os mecanismos de cronometragem, em geral, são o fundamento desses ventiladores, devendo-se deixar a classificação de ciclo determinado pelo volume para um modo específico de ventilação, normalmente possível apenas quando se usa um ventilador do tipo empregado em UTI e para alguns ventiladores avançados, usados em anestesia, que são equipados com espirometria e microprocessadores capazes de compensar as alterações no volume corrente causadas por aquelas na complacência pulmonar e do circuito. Não se deve confundir a classificação de ciclo determinado pela pressão ou pelo volume com limitação pela pressão e pelo volume, que se usa para descrever os principais fatores que limitam o volume corrente liberado, e apenas os ventiladores cujo ciclo depende da pressão são limitados por ela. Fole Se um ventilador tem um fole, pode ser classificado como ascendente ou descendente. Tal terminologia se refere à direção do fole durante a expiração, e, em geral, causa confusão. Talvez os termos ‘fixo’ e ‘suspenso’ sejam mais apropriados e usados para descrever a configuração ascendente e descendente dos foles, respectivamente. Isso então se refere à posição dos foles durante a pausa expiratória ou antes do início da ventilação.

■ Introdução sobre os ventiladores de circuito único e duplo A maioria dos ventiladores para anestesia, usados na medicina veterinária, tem seu ciclo de tempo controlado eletronicamente e pode ser classificada como de circuito duplo acionado por gás ou de circuito único a pistão. No entanto, há pelo menos dois ventiladores que funcionam a gás comprimido que podem ser usados como de circuito duplo ou único, dependendo de sua configuração, e vamos comentar sobre eles separadamente mais adiante (na seção intitulada Ventiladores de circuito único a gás comprimido). É importante notar que o uso da expressão circuito único por si só pode ser errôneo. Antigamente, tal expressão era usada para descrever os ventiladores em que se usavam dois gases (um para o ventilador e outro para o circuito de gás do paciente), que operavam em um único circuito (i.e., não havia barreira física entre os gases). Em tal situação, há possibilidade de mistura do gás do ventilador com o do circuito do paciente. Portanto, é mais descritivo incluir acionamento ‘a pistão’ ou ‘a gás comprimido’ para descrever ventiladores de uso veterinário. Normalmente, o ventilador para anestesia substitui a bolsa reservatório e a válvula LPA

do aparelho de anestesia por um fole (ou câmara de pistão) e uma válvula de escape (de esvaziamento ou alívio), respectivamente, mas mesmo assim há exceções no projeto e no uso dos ventiladores. Um projeto não substitui a bolsa reservatório e a válvula LPA do aparelho de anestesia, sendo simplesmente acrescentado ao circuito do paciente (Merlin, Vetronic Services, Abbotskerswell, Devon, Reino Unido).

■ Ventiladores de circuito único com pistão Nesses ventiladores, há pistões controlados eletronicamente para comprimir o gás no circuito respiratório. O uso de um pistão sob controle eletrônico elimina a necessidade de um segundo circuito (i.e., o gás que o aciona) e isso, evidentemente, capacita o ventilador a liberar volumes correntes com maior precisão, pois não haverá influência da presença de um gás compressível para o acionamento. Os ventiladores movidos a pistão também são mais eficientes em termos do uso de gás, pois não há necessidade de gás adicional para acionar o ventilador, que normalmente é controlado por circuitos eletrônicos sofisticados, capazes de proporcionar modos mais avançados de ventilação e opções de ciclo. A energia elétrica é usada para levantar a abaixar o pistão, acionando um motor e uma bola rosqueada em uma montagem (de ação linear). Os ventiladores com pistão podem oferecer ao usuário uma variedade muito grande de opções sofisticadas de ventilação, em geral não disponíveis com os ventiladores comuns de circuito duplo. Cada ventilador acionado a pistão é único em seu projeto específico, porém a maioria compartilha as seguintes características: tem um cilindro, pistão, montagem de ação linear, diafragmas giratórios e válvulas para alívio de pressão positiva e negativa. A configuração exata de cada componente e o mecanismo para facilitar a expiração e a respiração espontânea variam de acordo com o fabricante. O ventilador para anestesia em grandes animais Tafonius (Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA) é acionado a pistão e específico para uso veterinário, que vamos usar como exemplo para descrever a operação de ventiladores com pistão. As descrições de outros ventiladores com pistão destinados a uso humano, como o Dräger Apollo, o Divan ou o Fabius GS, encontram-se em outros textos.75 Dois diafragmas giratórios vedam o pistão do ventilador Tafonius, para evitar a mistura do ar ambiente com o circuito de gás do paciente (Figura 3.70). O diafragma inferior veda o gás respiratório abaixo do pistão no sistema respiratório. O diafragma superior veda o lado superior do diafragma inferior do ar ambiente, criando um espaço entre os dois diafragmas. Aplica-se vácuo a esse espaço, para manter os dois diafragmas aderidos às paredes do pistão e do cilindro. À medida que o pistão é ativado, ele se movimenta para baixo e o espaço abaixo do diafragma inferior diminui, forçando o gás para os pulmões do paciente; ao final da inspiração, o paciente exala e o pistão sobe. Durante a ventilação controlada, o pistão direciona a inspiração de acordo com os ajustes do ventilador. Quando

o paciente expira, o pistão move-se em resposta à pressão da via respiratória, medida na peça em Y do paciente. Quando a pressão na via respiratória aumenta 0,5 cmH2O, o pistão move-se para cima o suficiente para trazer a pressão na via respiratória de volta a zero. Essa correção é feita a cada 5 ms (200 vezes por segundo). Isso assegura que, a menos que se queira, não há resistência à exalação (i.e., pressão terminal expiratória e positiva, ou PEEP, de positive end expiratory pressure). A maioria dos foles fixos tidos como o padrão tem PEEP obrigatória (2 a 4 cmH2O), em decorrência do projeto da válvula de escape do ventilador, necessária para compensar o peso do fole. Durante a respiração espontânea, o pistão move-se para cima (expiração) e para baixo (inspiração) em resposta às alterações na pressão medida da via respiratória, assegurando que a pressão na via respiratória seja mantida perto de zero. A expiração ocorrerá conforme dito, enquanto durante a inspiração, quando a pressão na via respiratória cai 0,5 cmH2O, o pistão move-se para baixo o suficiente para trazer a pressão de volta para perto de zero. As válvulas de alívio eletrônicas, positiva e negativa, estão localizadas no limpador multíplice para proteger contra pressão excessiva positiva ou negativa dentro do circuito do paciente.

■ Ventiladores de circuito único a gás comprimido Há pelos menos dois desses ventiladores disponíveis para anestesia veterinária, que podem ser configurados como os de circuito único da série Bird Mark e Penlon Nuffield 200 (Figura 3.71). Quando usados como um ventilador de circuito único, não há barreira física entre o gás que vai para a ventilação e o do circuito do paciente. Entretanto, esses ventiladores têm dois ‘circuitos’ de gás separados, o do ventilador e o do paciente, daí a denominação de ‘circuito único’ ser um tanto enganosa. O gás do paciente e o do ventilador simplesmente se movem dentro do mesmo circuito contínuo (ou o compartilham), sem qualquer barreira física entre ambos os gases. Assim, eles operam dentro de um único circuito de gás sem interrupção física. É importante notar que os respiradores Bird Mark e Penlon Nuffield 200 são usados comumente como sendo de circuito duplo, combinando-os com foles em um compartimento (‘bolsa em uma caixa’), conforme descrito adiante. Só se deve usar um ventilador de circuito único a gás com taxas de fluxo sem retorno respiratório (circuitos de respiração sem retorno respiratório – Mapleson D ou F) para evitar a contaminação do circuito do paciente com gás do ventilador. Como são necessárias taxas de fluxo sem retorno respiratório, esses tipos de configurações de ventilador são mais adequados para pacientes menores, embora seja possível ventilar pacientes maiores que precisam de volumes correntes aproximados de 1.000 mℓ, mas a eficiência do consumo de gás (oxigênio e inalatório) necessário é acentuadamente reduzida.

Figura 3.70 Configuração de um ventilador acionado por pistão (sistema Tafonius de diafragma giratório) durante a inspiração (à esquerda) e a expiração (à direita), demonstrando vários aspectos e os princípios gerais de operação. Fonte: Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA. Diagrama modificado reproduzido, com autorização, de Hallowell EMC.

Figura 3.71 O respirador Bird (A) e o ventilador Penlon Nuffield 200 (B) são exemplos de ventiladores que funcionam a gás comprimido. Eles podem ser usados como ventiladores de

circuito único e duplo, embora a última configuração seja a mais utilizada e apropriada. A válvula do paciente, localizada no fundo do ventilador Penlon Nuffield, age como um ponto de conexão para o gás do ventilador, controlado pela unidade de controle, a mangueira condutora para o circuito do paciente (tubo corrugado preto) e a válvula de escape para a limpeza. O gás é liberado para essa válvula durante a inspiração, que o empurra na direção do paciente. Durante a expiração, a válvula se abre, permitindo que o excesso de gás vá para o sistema de eliminação. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

O ventilador Penlon Nuffield 200 é comercializado e descrito como sendo de circuito único (Figura 3.71B). Ele é conectado à montagem da bolsa no circuito por meio de um longo tubo corrugado que age como um ‘reservatório’, substituindo a bolsa reservatório. O gás do ventilador move-se ‘do paciente e para ele’ através desse tubo. Os gases exalados do paciente também se movem através desse tubo e serão eliminados pela chamada válvula ‘do paciente’, que age como uma válvula de escape, permitindo que todo o excesso de gás – o do ventilador, o exalado do paciente e qualquer excesso do fluxo de gás fresco – deixe o sistema. O gás do ventilador e o do paciente se move dentro do mesmo circuito, sem qualquer separação física, daí a designação de ‘circuito único’. Durante a inspiração, a válvula do paciente fecha, forçando o gás do ventilador para o tubo ‘reservatório’, comprimindo o gás do circuito de volta para o paciente, levando à inspiração. Durante a pausa expiratória, a válvula do paciente se abre, permitindo que o gás do ventilador saia do sistema, imediatamente, quando a pressão dentro do circuito cai para zero. Esse gás é acompanhado pelo gás exalado do paciente, que é empurrado para fora do paciente, como resultado do fluxo de gás fresco do sistema de respiração sem retorno respiratório liberado para o circuito do paciente. A taxa de fluxo de gás fresco deve ser alta o bastante para evitar que o paciente volte a respirar os gases expirados (i.e., um volume de gás fresco similar ou maior do que o volume corrente do paciente deve ser liberado para o circuito durante cada ciclo respiratório, para evitar que o paciente respire CO2 novamente). O volume corrente é criado para eliminar efeito combinado do volume de gás liberado pelo ventilador e o volume do fluxo de gás fresco que entra no circuito durante a inspiração.

■ Ventiladores de circuito duplo Os ventiladores de circuito duplo têm uma separação física entre o gás do ventilador e o circuito de gás do paciente. Esses ventiladores contêm um fole e o mecanismo de controle para o movimento do gás. Normalmente, nos ventiladores mais modernos, o mecanismo de controle é um microprocessador eletrônico, mas alguns ventiladores antigos tinham unidades coerentes de líquido para controlar o movimento do gás. A montagem do fole substitui a bolsa reservatório e a válvula LPA, sendo constituída pelos seguintes

componentes: o fole, seu compartimento, a válvula de escape e seu local apropriado e a conexão da base do ventilador (Figura 3.72). O circuito primário é contínuo com o do paciente e consiste no fole e na válvula de escape. O segundo circuito contém o gás usado para comprimir o fole. O circuito respiratório e o de gás não estão conectados; o fole age como uma barreira complacente entre esses dois circuitos. O gás entra onde está o fole por um período específico e é liberado a uma taxa específica; durante esse tempo, a válvula de saída fica fechada, causando compressão do fole e fechando a válvula de escape. Isso força o gás dentro do fole na direção dos pulmões do paciente, expandindo o tórax. Durante a expiração, o fluxo de gás é interrompido (pela pressão onde fica o fole e, consequentemente, pela queda de pressão no circuito do paciente) e o gás onde está o fole escapa por uma válvula de saída, permitindo que o paciente exale passivamente para o fole. A válvula de escape reabre, deixando que o excesso de gás fresco flua do circuito do paciente para fora, o que impede que haja pressão dentro do circuito do paciente. Embora haja diferenças específicas no projeto quanto ao funcionamento dos ventiladores de duplo circuito, os princípios gerais são similares. Fole (configuração) O fole é um dispositivo semelhante a um acordeão, conectado ao alto ou ao fundo do conjunto montado. Os ventiladores para anestesia podem ser configurados com foles ascendentes (fixos) ou descendentes (suspensos) (Figura 3.73). Os termos ascendente e descendente referem-se à direção em que o fole se move durante a exalação e antigamente eram usados para descrever a orientação do fole. Entretanto, é cada vez mais comum a substituição desses termos por fixo (ascendente) e suspenso (descendente), para descrever a posição do fole durante a pausa expiratória; essa em geral é considerada uma descrição mais apropriada para a configuração do fole. A maioria dos ventiladores modernos usa uma configuração de fole fixo (ascendente), em que ele se move na direção da base do ventilador durante a inspiração e depois da exalação se expande para cima. O volume corrente pode ser ajustado conforme o período inspiratório e/ou a taxa de fluxo, ou por uma placa ou outro dispositivo limitante que restrinja a excursão do fole (ver Figura 3.72).

Figura 3.72 Diagrama esquemático de um ventilador de circuito duplo genérico demonstrando os fluxos de gás dentro dele durante a inspiração e a expiração. Notar que a posição exata e o projeto dos vários componentes variam entre os fabricantes. Fonte: Kath Klassen, Vancouver Animal Emergency Clinic, Vancouver, Canadá. Reproduzida, com autorização, de Kath Klassen.

As válvulas de escape nos ventiladores com foles fixos normalmente têm pouca

resistência (2 a 4 cmH2O) à abertura, criando assim uma PEEP leve no sistema, que se contrapõe à tendência do fole a colapsar em decorrência de seu peso e sua natureza elástica. No caso de foles muito grandes e pesados, isso pode ter o efeito de causar uma PEEP clinicamente relevante. Em alguns casos, isso pode ser considerado desejável, mas pelo menos um fabricante desenvolveu um método para superar esse efeito sobre a PEEP, dando a opção de se aplicar um vácuo leve ao interior do recipiente que contém o fole. Um aspecto desejável da configuração fixa do fole é que, se ocorrer um vazamento no sistema de respiração, o fole não vai se expandir completamente e acabará colapsando de maneira progressiva durante a pausa expiratória. Um anestesista observador pode detectar rapidamente um vazamento. O fole suspenso (descendente) é conectado ao alto da montagem do ventilador e comprimido para cima durante a inspiração. Durante a exalação, o fole desce passivamente, o que é facilitado por um peso colocado na parte pendente do fole. Conforme o fole desce, pode causar uma leve pressão negativa no compartimento e no sistema de respiração. Se houver um vazamento ou desconexão no sistema de respiração, o peso do fole fará a parte de baixo se expandir normalmente, levando os gases estranhos para o sistema de respiração, com o vazamento ou mediante a pressão negativa da válvula de alívio. Durante a inspiração subsequente, não apenas o gás no circuito de respiração será diluído pelos gases que não contenham anestésico, como toda ou parte da inspiração será perdida pelo vazamento. Os vazamentos (em particular os grandes) no sistema de respiração não são identificados com tanta facilidade mediante a avaliação visual do fole nesse tipo de configuração de ventilador, em comparação com a configuração fixa. Entretanto, é possível detectar pequenos vazamentos que se tornam mais significativos com a pressão alta. Por exemplo, um pequeno vazamento entre o manguito do tubo endotraqueal e a traqueia do paciente será muito mais significativo à medida que as pressões da via respiratória associadas à IPPV subirem; isso levará parte do volume corrente destinado ao paciente para o ambiente. À exalação, um volume de gás inadequado para substituir o volume perdido do fole durante a inspiração será expelido pelos pulmões do animal. O fole, então, tentará descer, porém o fará mais lentamente se a taxa de aspiração do ar ambiente por um pequeno vazamento (e o volume que representa a contribuição para o sistema via fluxo de ar fresco) for inferior à necessária para o fole baixar normalmente. O resultado será uma descida muito lenta do fole ou nenhuma, antes que ocorra a próxima inspiração. É mais comum reconhecer esse efeito durante a ventilação de pacientes grandes, em que o vazamento costuma ser relativamente pequeno (e aumentar com a pressão positiva), o volume corrente, relativamente grande, e os fluxos de gás fresco, baixos com relação ao volume corrente do paciente. Existe pelo menos um único ventilador de circuito duplo (Anesthesia Workstation,

Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA) projetado especificamente para pacientes que precisam de volumes correntes inferiores a 100 mℓ e no qual, em vez de fole, há um disco flutuante (Figura 3.74), que separa o circuito de respiração do paciente daquele do gás. Nessa configuração, o gás que aciona o sistema e o circuito do paciente não entram em contato, mas não se movem para trás e para a frente na mesma superfície do tubo de ventilação. A configuração requer uma operação muito precisa tanto do tubo de ventilação como do disco flutuante, para assegurar que o gás continue separado dentro de seus respectivos circuitos e o disco se mova livremente sem resistência significativa.

Figura 3.73 O ventilador Ohio V5A é um exemplo de configuração descendente ou suspensa (A). Usa-se um peso na maior parte pendente do fole, para facilitar a descida do fole durante a exalação; isso também pode ocasionar falha em reconhecer uma desconexão ou vazamento, conforme o fole parece mover-se da maneira apropriada, mesmo não estando conectado a um paciente. O fole do ventilador para anestesia de grandes animais Mallard

2800 (B) é um exemplo de fole com configuração ascendente ou fixa. Os foles fixos ou ascendentes normalmente produzem pressão positiva leve durante a pausa expiratória. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.74 A Hallowell Anesthesia WorkStation (AWS) é um ventilador e sistema de respiração destinado especificamente a pacientes animais muito pequenos (aqueles entre 150 g e 7 kg). O sistema tem um único ventilador que utiliza um disco flutuante, em vez de um fole, para separar o gás do ventilador do circuito de respiração do paciente. O sistema circular também é otimizado para pacientes muito pequenos com volume baixo (do circuito e do recipiente de absorvente) e uma peça em Y com espaço morto próximo de zero. Fonte:

Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA. Diagrama modificado reproduzido, com autorização, de Hallowell EMC.

Compartimento do fole Consiste em um compartimento feito de plástico transparente, para que o anestesista possa observar os movimentos do fole. É vedado e pode ser pressurizado durante o ciclo do ventilador, para que ocorra compressão do fole. Em geral, há uma escala lateral no fole, indicando o volume corrente aproximado liberado. No entanto, esse volume não costuma ser exatamente equivalente ao volume corrente real recebido pelo paciente (ver Fatores que afetam a liberação do volume corrente, adiante). Válvula de exaustão Possibilita a comunicação entre o lado interno do compartimento do fole e a atmosfera externa em ventiladores pneumáticos (i.e., aqueles que usam gás comprimido para comprimir o fole). Durante a inspiração, essa válvula fica fechada, permitindo que o gás faça pressão dentro do compartimento. Durante a exalação, a válvula se abre (e a liberação de gás cessa), permitindo que a pressão caia e haja reexpansão do fole. Os ventiladores que funcionam com pistão não precisam de uma válvula de exaustão. Válvula de escape Substitui a função da válvula LPA do aparelho de anestesia (que ainda está presente, mas fechada durante a ventilação mecânica) e, às vezes, também é citada como válvula de ventilação, esvaziamento, hiperfluxo, saída do gás expirado, válvula de escape, alívio ou alívio da pressão. É usada para direcionar o excesso de gás fresco do circuito respiratório para o sistema de eliminação durante a pausa expiratória. Durante o ciclo inspiratório do ventilador, a válvula fica fechada, para evitar escape do gás para o sistema de eliminação e permitir que se desenvolva pressão positiva no circuito respiratório. Isso é semelhante ao fechamento da válvula LPA para liberar uma respiração manual usando a bolsa reservatório. Em um fole de configuração fixa, a válvula de escape normalmente tem uma pressão de abertura mínima entre 3 e 4 cmH2O para anular a força para baixo criada pelo peso do fole. Isso permite que ele se encha completamente durante a exalação. A válvula de escape em geral é controlada pneumaticamente em ventiladores cujo fole funciona a gás comprimido, mas, no caso de ventiladores a pistão, ela pode ser aberta e fechada eletronicamente. Conexão com a mangueira do ventilador Essa conexão é uma saída de tamanho padrão (adaptador macho cônico de 22 mm),

geralmente encontrada na parte posterior do fole montado. Usa-se um tubo de comprimento padrão corrugado entre a conexão da mangueira do ventilador e o adaptador do aparelho, que normalmente mantém a bolsa reservatório. Nos aparelhos de anestesia com ventiladores embutidos, essa conexão em geral é feita usando-se um interruptor ou dial, que minimiza o potencial de erros nas conexões, desconexões ou dobras na mangueira.

■ Controle do gás que aciona o ventilador O gás fornecido para o ventilador costuma estar sob pressão intermediária (35 a 55 psi) e é liberado a uma taxa de fluxo específica por um tempo também específico, de modo a produzir um volume de gás suficiente para comprimir o fole e ventilar os pulmões do paciente. Esse gás tipicamente consiste em oxigênio a 100% e é usado porque em geral é de fácil acesso e, para minimizar o potencial de redução da concentração de oxigênio do circuito respiratório, deve surgir um vazamento entre os dois circuitos do ventilador (o de respiração e o do gás). O fluxo de gás para o ventilador em geral é controlado eletronicamente com diais marcados para ajustar três variáveis essenciais: o período durante o qual o gás deve ir para o compartimento do fole (período inspiratório), a taxa em que o gás flui no compartimento do fole (taxa de fluxo inspiratório) e a pausa entre as inalações (período expiratório). Manipulando-se essas três variáveis, é possível controlar as variáveis respiratórias mais comumente descritas: a frequência respiratória (f), o volume corrente (Vt) e a razão inspiratória-expiratória (I:E). A operação dos ventiladores controlados por coerência de líquido é um pouco menos apropriada, mas, na prática, mediante manipulações relacionadas com os limiares de pressão, as taxas de fluxo e o período, as mesmas variáveis podem ser controladas.

■ Fatores que afetam a liberação do volume corrente A menos que o ventilador de anestesia tenha mecanismos para compensação, vários fatores podem afetar o volume corrente real liberado para o paciente. Na maioria das circunstâncias, e com o uso dos procedimentos apropriados de monitoramento e ajuste, estes fatores são insignificantes. Fluxo de gás fresco Embora muitos ventiladores modernos de anestesia humana compensem as alterações no fluxo de gás fresco, a maioria dos ventiladores para uso veterinário não o faz. O controle eletrônico da maioria dos ventiladores para anestesia veterinária serve para liberar uma quantidade ajustada de gás, qualquer que seja a compressão real do fole. Durante a inspiração, o fluxo de gás fresco continuará no circuito do paciente, contribuindo para o seu

volume corrente real. O aumento no fluxo de gás fresco ou o prolongamento do período inspiratório acarretará volumes correntes maiores. Ainda que esse efeito possa ser insignificante na maioria dos pacientes, pode ser significativo naqueles muito pequenos, em que um fluxo de gás fresco de 1.000 mℓ/min contribuirá com aproximadamente 17 mℓ/s de gás para o volume corrente dos pacientes durante a inspiração. Volumes de complacência e compressão As alterações na complacência do sistema de respiração podem ser acompanhadas por alterações no volume corrente de gás liberado para o paciente. Aumentos na complacência de um sistema de respiração podem ser acompanhados por diminuições no volume corrente do paciente à medida que uma quantidade maior do volume de gás liberado é gasta, expandindo os componentes respiratórios. Além disso, alterações nas pressões da via respiratória associadas à ventilação e/ou alterações na complacência pulmonar podem alterar o volume corrente real de gás que o paciente recebe, porque o volume de gás é compressível quando sujeito a pressões crescentes. Vazamentos Vazamentos no sistema (p. ex., em torno do tubo endotraqueal) causam impacto no volume corrente liberado, pois algum gás irá escapar através desses vazamentos, ocasionando uma redução no volume corrente liberado. Embora os monitores do gás da via respiratória na corrente lateral não sejam considerados vazamentos, eles aspiram um pequeno volume de gás do sistema de respiração (50 a 250 mℓ/min ou 0,8 a 4 mℓ/s), que pode causar uma redução marginal no volume corrente, a menos que o gás seja reintroduzido à medida que deixa o monitor. Normalmente, este efeito é negligenciável, mas pode ser significativo em pacientes que precisem de volumes correntes extremamente pequenos (i.e., < 50 mℓ).

■ Alarmes Não há configurações consideradas padrão para alarmes nos ventiladores de anestesia veterinária. Alguns dos alarmes mais comuns são descritos adiante. Alarme de pressão baixa do gás Às vezes também conhecido como alarme de pressão baixa, detecta quando a pressão do gás cai abaixo de um valor pré-ajustado (i.e., 35 psi). Uma queda mínima na pressão do gás abaixo de certo nível acarreta redução do volume corrente liberado. Alarmes de pressão na via respiratória Alguns ventiladores têm alarmes tanto para a pressão alta como para a baixa na via

respiratória. Eles são importantes para ajudar a proteger um paciente contra barotrauma (pressão alta na via respiratória) e ajudam a detectar vazamentos ou desconexões. Os ajustes do alarme podem ser predeterminados pelo fabricante ou pelo usuário. Ocasionalmente, alarmes pré-ajustados não são compatíveis com as necessidades de ventilação em alguns pacientes. Por exemplo, um alarme de pressão mínima na via respiratória, ajustado para 6 cmH2O, pode ultrapassar as pressões máximas usadas na via respiratória durante a ventilação de pacientes muito pequenos, com o tórax extremamente complacente (p. ex., filhotes de gatos e de cães, répteis e aves). Determinantes do volume corrente Um dos principais riscos associados à ventilação mecânica é o volutrauma ou barotrauma nos pulmões do paciente, se os ajustes do ventilador não forem feitos da maneira adequada. Felizmente, é improvável que a maioria desses erros cause problemas sérios, pois o anestesista vigilante deve notá-los imediatamente. O volume corrente na maioria dos ventiladores pneumáticos é limitado (ou determinado) pela taxa de fluxo de gás que entra no compartimento do fole e pelo tempo durante o qual se permite que esse gás entre no fole. Em alguns ventiladores, também há dispositivos limitadores mecânicos para restringir o movimento do fole, limitando, assim, efetivamente o volume corrente que pode ser liberado, quaisquer que sejam as alterações na taxa de fluxo inspiratório e nos períodos de inspiração (Mallard 2400V, Mallard Medical, Redding, CA, EUA, e Dräger Large Animal Ventilator). Uma recomendação comum ao se iniciar a ventilação mecânica em um paciente consiste em começar com ajustes baixos de volume corrente e aumentá-los com base nos parâmetros monitorados, assim que a ventilação for iniciada. Essa é uma consideração especialmente importante se o ventilador não tiver um dispositivo mecânico limitante do volume. Na maioria dos ventiladores, o volume corrente é controlado por diais com marcações variadas para a taxa de fluxo inspiratório, o volume corrente ou o volume minuto, e sofrerá impacto do período inspiratório da razão I:E e da frequência respiratória. É importante rever os ajustes antes do início da ventilação e certificar-se da maneira como as alterações em qualquer parâmetro podem afetar outros. Por exemplo, se a frequência respiratória for reduzida em alguns ventiladores, automaticamente o período inspiratório aumentará para refletir a nova frequência respiratória, ocasionando um aumento no volume corrente (i.e., a taxa de fluxo inspiratório permanece a mesma, porém a duração da inspiração aumenta).

■ Ajuste e monitoramento apropriados do ventilador Antes de usar um ventilador em anestesia, é importante que o anestesista determine com clareza os ajustes pretendidos no ventilador. Os ajustes típicos usados para pacientes

animais pequenos e grandes estão listados na Tabela 3.5. O anestesista deve ter um entendimento sólido das indicações, contraindicações e fisiologia da VPPI antes de iniciar a ventilação. Além disso, o anestesista deve estar familiarizado com todos os aspectos e a operação adequada do ventilador que está utilizando, revendo as instruções do fabricante. O uso impróprio de um equipamento de ventilação com pressão positiva pode ocasionar morbidade e mortalidade desnecessárias. As etapas descritas adiante servem como uma revisão geral para ajuste do ventilador e podem não ser aplicáveis a todos os ventiladores, pacientes e circunstâncias. • •







Assegure a fonte de energia disponível para o ventilador; a maioria dos ventiladores requer gás comprimido e energia elétrica Conecte a mangueira de limpeza do ventilador a um sistema de eliminação. Muitas interfaces de limpeza têm duas aberturas para tal, uma para o aparelho de anestesia e outra para o ventilador Esvazie a bolsa reservatório no sistema de eliminação, remova-a e conecte a mangueira do ventilador para respiração à montagem da bolsa reservatório perto da válvula LPA. Não é necessário remover a bolsa reservatório nem fechar a válvula LPA em alguns aparelhos com ventiladores embutidos; em vez disso, usa-se um interruptor ou dial para isolar a bolsa reservatório do ventilador Deixe o fole encher, o que pode ser facilitado aumentando-se momentaneamente a taxa de fluxo de gás fresco. Não se deve usar a válvula de irrigação com esta finalidade, a menos que o fluxo de gás fresco não possa ser aumentado da maneira adequada e com relativa rapidez (p. ex., em um ventilador para animal grande) Inicie a ventilação de acordo com os parâmetros predeterminados. Em geral, é melhor começar com volumes correntes na extremidade inferior da variação típica, para evitar barotrauma ou volutrauma. Em qualquer circunstância, é fundamental avaliar imediatamente e, em seguida, como parte da rotina as pressões máximas na via respiratória e outros parâmetros monitorados (p. ex., o volume corrente terminal de CO2, a gasometria e a pressão arteriais) para verificar a adequação dos ajustes do ventilador.

Tabela 3.5 Orientações sobre os parâmetros para iniciar a ventilação com pressão positiva intermitente (VPPI ou IPPV, de intermittent positive pressure ventilation) em pequenos animais e equinos.a Frequência Paciente

respiratória (respirações/min)

Volume corrente

Pressão inspiratória

(mℓ/kg)

(cmH2O)

Razão I:E

Pequeno animal

10 a 15

10 a 20

10 a 15

1,2

Equino

6a8

10 a 20

10 a 25

1,3 a 1,4

a

É importante reconhecer que estas são apenas diretrizes, e os ajustes específicos podem variar bastante entre os

pacientes, dependendo de fatores deles próprios, como a raça, a condição corporal e a existência de doença. Além disso, as limitações do ventilador podem influenciar os parâmetros específicos alcançáveis (p. ex., limites de fluxo inspiratório mínimo). Por fim, a melhor maneira de avaliar a adequação da ventilação individualmente é com a capnografia e/ou a gasometria sanguínea.

■ Modelos selecionados de ventilador Embora não totalmente inclusiva, a discussão a seguir descreve ventiladores apropriados para animais. Alguns foram projetados especificamente para manter animais anestesiados, enquanto outros foram designados para uso humano, mas são aplicáveis a animais ou podem ser modificados para isso. Incluímos a classificação, os princípios de operação e outros aspectos sobre o funcionamento geral de cada ventilador. Antes de operar um ventilador, o usuário deve consultar o respectivo manual e seguir os procedimentos de avaliação recomendados pelo fabricante. Ventilador para pequenos animais Dräger Era comercializado como um componente opcional do Dräger Narkovet 2 Anesthesia Machine, como um modelo móvel (polo universal), projetado especificamente para o ventilador. Atualmente, não está sendo mais fabricado, porém esses ventiladores continuam em uso para anestesia veterinária. O ventilador para pequenos animais (SAV, de small animal ventilator) é classificado como de duplo circuito, ciclo temporal, com um fole ascendente (fixo), pneumático e de circuito fluídico. A pressão do gás deve estar entre 40 e 60 psi. Os controles incluem um interruptor para ligar e desligar, um bastão para ajuste do volume corrente na placa conectada ao compartimento do fole para selecionar o volume corrente (200 a 1.600 mℓ) e um botão para o fluxo inspiratório que controla a taxa de fluxo no compartimento do fole para liberar a respiração e normalmente é ajustado de modo que o fole seja totalmente comprimido no final da fase inspiratória, não devendo, porém, ficar deformado. A deformação do fole no final da fase inspiratória pode ser indício de um aumento no volume corrente até de 100 mℓ. O ajuste para controle do fluxo inspiratório afeta a pressão inspiratória máxima que é alcançada e o período inspiratório. Fluxos inspiratórios mais altos causam períodos de inspiração mais curtos e tendem a gerar pressões inspiratórias máximas mais altas. A razão de período da fase inspiratória para a expiratória é preestabelecida em 1:2. A válvula de escape do ventilador atrás da câmara do

fole compensa a entrada contínua de gases frescos no sistema de respiração. Como o ventilador usa um fole ascendente, o efeito da gravidade sobre o fole mantém uma PEEP de aproximadamente 2 cmH2O. Antes de usar o ventilador, deve-se conectar o suprimento de gás ao sistema de eliminação, além de seguir os procedimentos de verificação de todo o equipamento. Desde que o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estejam funcionando normalmente, a abordagem por etapas descrita a seguir é razoável para a operação deste ventilador com um sistema de respiração circular: • Faça o ajuste do volume corrente apropriado para o paciente no bastão a ele destinado • Conecte o tubo corrugado da mangueira para respiração no terminal do ventilador à bolsa reservatório montada no sistema circular • Feche a válvula LPA (válvula limitante de pressão ajustável ou escape) do sistema circular • Ajuste a frequência da ventilação para perto do número desejado aproximado de respirações por minuto • Acione o interruptor do ventilador para ligá-lo • Ajuste o controle do fluxo inspiratório para produzir o período inspiratório pretendido para liberar o volume corrente preestabelecido • Pode ser necessário reajustar a frequência da ventilação e o fluxo inspiratório, para que se consiga a frequência respiratória e o período inspiratório pretendidos. Sistema de liberação de anestesia veterinária Engler ADS 1000 e 2000 e ventilador para cuidados com pacientes em estado crítico Este ventilador controlado por microprocessador é comercializado para uso com um vaporizador ou para pacientes que não precisam de anestésico inalatório (p. ex., aqueles em unidades de cuidados críticos). O sistema de anestesia com ventilador funciona como um circuito sem retorno respiratório (unidirecional), não tem fole montado incorporado, nem pistão e não inclui um recipiente para absorvente químico para eliminação de dióxido de carbono. Não pode ser conectado a outro sistema de respiração. Este ventilador se adapta na classe de circuito único e funciona à base de eletricidade ou pneumaticamente. Entretanto, seu funcionamento é diferente daquele dos ventiladores de circuito único tanto a pistão como pneumáticos. O ventilador só libera gás de maneira intermitente para o paciente (i.e., durante a inspiração) e, se usado com um vaporizador, o gás da ventilação move-se através do vaporizador. Na maioria dos outros sistemas de ventilação, o fluxo de gás para o vaporizador é independente daquele liberado pelo ventilador e contínuo. Não há possibilidade de retorno respiratório e o fluxo de gás é

unidirecional. De acordo com o manual de operação, o ventilador tem de ser suprido com oxigênio a uma pressão de 50 (modo normal) ou 5 psi (modo de laboratório ou de baixo fluxo), para o mostrador indicar com acurácia o volume-minuto por quilograma de peso corporal. Quando no modo de laboratório, um volume corrente é registrado. Quando usado no modo normal, o microprocessador do ventilador determinará os valores (fará uma estimativa) dos vários parâmetros do ventilador a serem estabelecidos, com base no peso corporal do paciente. Todavia, é importante notar que os valores pré-selecionados podem não resultar na ventilação ideal de todos os pacientes, devendo-se, assim, fazer ajustes manuais dos parâmetros do ventilador com base na gasometria sanguínea e/ou nos valores do CO2 corrente final, para assegurar a ventilação adequada do paciente. As especificações do fabricante sugerem que o ADS 2000 é capaz de ventilar pacientes com menos de 1 kg até 68 kg. O ventilador também é capaz de operar em um modo de ventilação assistida, liberando uma respiração cada vez que o paciente tenta respirar espontaneamente. A sensibilidade desse aspecto é controlada manualmente pelo usuário. O Engler ADS 2000 tem características eletrônicas atualizadas e um microprocessador, mas em termos funcionais é idêntico ao Engler ADS 1000. Este ventilador age como um circuito sem retorno respiratório, ocasionando um consumo excessivo de oxigênio e anestésico inalatório quando usado em pacientes maiores, em particular aqueles com mais de 10 kg de peso. Também é importante notar que as taxas de fluxo de gás necessárias para gerar os volumes correntes exigidos por grandes pacientes podem estar fora das taxas de fluxo recomendadas (200 a 15.000 mℓ/min) na maioria dos vaporizadores. Por exemplo, para se obter um volume corrente de 600 mℓ em um período inspiratório de 2 s, o ventilador terá que liberar gás a uma taxa de 300 mℓ/s ou 18 ℓ/min para chegar ao volume corrente almejado. Há alguma preocupação quanto à acurácia do débito do vaporizador resultante da natureza intermitente da liberação do transportador de gás para o vaporizador. Quando se usa um ventilador com vaporizador, provavelmente é melhor assegurar que as taxas de fluxo sejam aquelas recomendadas pelo fabricante do vaporizador, para garantir um débito acurado. O painel frontal do ventilador tem os seguintes controles e componentes: interruptor para acionamento, interruptor para o modo com máscara, interruptor de ajuste, botões para seleção de peso, botão para preenchimento, botão de respiração, mostrador de vários parâmetros ventilatórios com ajustes abaixo dele, duas entradas para conexão de tubos corrugados para respiração e uma entrada de amostra de gás (os primeiros modelos ADS 1000 podem não ter esta entrada). Antes de tentar usar o ventilador, o operador deve ler o manual fornecido pelo fabricante e familiarizar-se com a maneira de modificar manualmente vários parâmetros do ventilador, se os valores preestabelecidos não forem os ideais para os pacientes em questão.

Segue-se um resumo das orientações do fabricante para operar o ventilador, mas não se pretende substituir ou suplantar o manual do produto: • • • • • • •





Conecte a mangueira verde de oxigênio na parte posterior do ventilador como fonte de oxigênio (50 ou 5 psi) Coloque os tubos do sistema circular nas entradas do circuito de respiração na frente do ventilador Conecte a saída de limpeza na parte posterior do ventilador ao sistema de eliminação do hospital Conecte o fio elétrico a uma tomada na parede do recinto Coloque os conectores do vaporizador nas entradas apropriadas na parte posterior do ventilador Coloque a linha de amostra de gás no adaptador apropriado do circuito e na entrada para amostra de gás no ventilador Deixe que o ventilador complete o teste autodiagnóstico descrito no manual do operador. O teste ajudará a determinar se há falha na válvula de segurança ou escape, suprimento inadequado de oxigênio e vazamentos Após o término do teste, deve-se desligar a função da máscara, e o interruptor de ajuste deve ser colocado em posição para tal. O mostrador então exibirá os ajustes para um paciente de 20 kg (taxa de fluxo de 24 ℓ/min, 9 respirações/min, pressão inspiratória máxima de 15 cmH2O e o modo assistido na posição desligada) Usando o botão de ajuste de peso, coloca-se o peso correto do paciente em quilogramas no mostrador, e o ventilador irá ajustar automaticamente os parâmetros ventilatórios de acordo com o peso do paciente. A ventilação será completamente controlada (o ajuste de falha fica desligado).

Assim que estas etapas forem completadas, o paciente deve ser anestesiado e intubado com um tubo endotraqueal que contenha manguito. A peça em Y de conexão dos tubos respiratórios deve ser conectada ao tubo endotraqueal e o vaporizador deve ser ajustado da maneira apropriada. Aciona-se então o interruptor do ventilador. A ventilação controlada deve começar. Ventiladores de anestesia Hallowell EMC 2000 e 2002 e Matrx 3000 Estes ventiladores (Figura 3.75) foram projetados para uso com aparelhos de anestesia e sistemas de respiração (circuitos circulares e sem retorno respiratório) para pequenos animais. As conexões com o sistema de respiração, o de eliminação e o gás que aciona o ventilador estão localizadas na parte posterior da unidade. O Matrx 3000 é o modelo de

ventilador Hallowell EMC 2000 produzido pela Matrx/Midmark. O modelo 2002 praticamente substituiu o 2000, mas muitos modelos 2000 ainda estão em uso. A diferença primária entre ambos é o dial para ajuste fino do fluxo inspiratório, que foi acrescentado ao modelo 2002. Esse acréscimo permite um controle mais preciso do volume corrente, em particular quando são necessários volumes correntes menores. Esse ventilador é classificado como de circuito duplo e ciclo dependente do tempo, tendo um fole ascendente (fixo) e sendo movido a energia elétrica, mas com funcionamento pneumático e controlado eletronicamente por uma válvula solenoide ativada por energia elétrica, que permite que o gás sob pressão seja fornecido para o controle do volume durante a fase inspiratória do ciclo ventilatório. O interruptor que aciona o ventilador faz parte do controle da frequência respiratória. A pressão do gás fornecido (oxigênio, nitrogênio ou ar comprimido condicionado) deve ser regulada entre 30 e 60 psi. Só é necessária alta pressão para taxas de fluxo inspiratório altas em pacientes maiores. Os módulos de controle dos modelos EMC 2000 e 2002 de ventiladores têm os seguintes componentes ajustáveis: o interruptor para ligar e desligar, o botão de controle da frequência respiratória, um botão de controle do volume (fluxo inspiratório no modelo 2002), uma tecla para manter o valor inspiratório e um limite máximo de pressão de funcionamento (LMPF ou MWPL, de maximum working pressure limit). O modelo 2002 também tem um ajuste fino do fluxo inspiratório (ver Figura 3.75). A razão da fase de período inspiratório e expiratório é pré-ajustada em 1:2, porém esse ventilador está disponível com uma razão I:E opcional que pode ser ajustada na variação de 1:1,5 a 1:4, o que possibilita aos usuários maior flexibilidade na escolha dos parâmetros ventilatórios. O controle do fluxo inspiratório é uma válvula de orifício milimetrado variável que regula o fluxo do gás. O controle do fluxo inspiratório é usado para ajustar o volume corrente. Ele regula diretamente a taxa de fluxo inspiratório, e uma taxa mais alta de fluxo inspiratório com qualquer frequência respiratória produzirá um volume corrente maior. A tecla para manutenção inspiratória interrompe o ciclo do ventilador e impede a descarga de gás do compartimento do fole até que a tecla seja liberada ou o LMPF alcançado. Mede-se o LMPF no circuito do paciente com uma junção colocada no circuito do paciente que se estende para um transformador de pressão no ventilador. O LPMF pode ser ajustado entre 10 e 60 cmH2O. Se for alcançado em qualquer momento, a fase inspiratória da ventilação termina, soa um alarme e a exalação é permitida. Será detectado um sistema de respiração com baixa pressão, se a pressão no fim da inspiração for inferior a 5 cmH2O; uma luz vermelha vai acender e um alarme soar, indicando a possibilidade de desconexão do circuito do paciente do ventilador.

Figura 3.75 O ventilador Hallowell 2002 tem um dial para ajuste fino do fluxo inspiratório, que melhora sua capacidade de liberar volumes correntes mais precisos. Ele também está disponível com ou sem uma razão I:E ajustável. Fonte: Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA. Reproduzida, com autorização, de Hallowell EMC.

Existem três tamanhos de foles e compartimentos para a ventilação efetiva de pacientes de vários tamanhos (Figura 3.76). Com o fole apropriado, o fabricante indica que podem ser liberados volumes correntes tão pequenos como de 20 mℓ e tão grandes como de 3 ℓ, e

o paciente pode respirar espontaneamente com efetividade a partir de foles, quando o ventilador não está em funcionamento. A válvula de escape do ventilador compensa a entrada contínua de gás fresco no sistema de respiração, e a resistência da válvula cria uma PEEP de 2 a 3 cmH2O. Antes de usar o ventilador, deve-se conectar o suprimento de gás ao sistema de eliminação e seguir os procedimentos apropriados de verificação prévia. Desde que o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estejam funcionando a contento, a abordagem operacional descrita a seguir é razoável para este ventilador com um sistema de respiração circular: •



O seletor de LPMF é ajustado para a pressão máxima pretendida (limite de segurança) e o acoplador de pressão é conectado ao sistema de respiração de acordo com as recomendações do fabricante O tubo corrugado do ventilador do sistema de respiração é conectado à bolsa reservatório do sistema circular, e o ventilador ao sistema de eliminação

Figura 3.76 Há muitos ventiladores com foles intercambiáveis de tamanhos diferentes. Esta característica é conveniente quando ventilamos pacientes com volumes correntes muito diferentes, mas o fole não costuma mudar a função geral do ventilador (i.e., um fole pequeno não significa que volumes correntes menores possam ser alcançados com o ventilador, ele simplesmente dá mais precisão na estimativa do volume corrente a partir de seu movimento; o volume corrente mínimo será determinado pela taxa de fluxo inspiratório e pelo período inspiratório). Fonte: Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA. Reproduzida, com autorização, de Hallowell EMC.



A válvula de escape (LPA) do sistema circular é fechada

• • •

O controle do volume do ventilador é ajustado no mínimo O interruptor que liga o ventilador é acionado, e a frequência pretendida de ventilação é ajustada O botão de controle (fluxo inspiratório no Modelo 2002) é ajustado para produzir um fluxo de gás durante a inspiração que resulte no volume corrente pretendido e/ou na pressão inspiratória máxima.

Ventilador para anestesia Mallard Medical Model 2400V Este ventilador foi projetado originalmente para permitir a ventilação mecânica contínua de pacientes humanos pediátricos e adultos anestesiados. É vendido para veterinários como uma única unidade fixa para uso com um sistema de respiração e aparelho de anestesia (Figura 3.77). Classificado como um ventilador de circuito duplo, ele é acionado por eletricidade e funciona pneumaticamente, sendo controlado por um microprocessador, e o fabricante o descreve como tendo o ciclo determinado eletronicamente pelo tempo e limitado pelo fluxo. O volume corrente é selecionado limitando-se a expansão para cima do fole, mediante o uso de um dispositivo que limita a expansão do fole. O volume corrente é ajustado movendo-se um cilindro e placa dentro do compartimento do fole para coincidir com o ajuste pretendido em milímetros. O cilindro dentro do compartimento do fole é fixado por um controle localizado no alto da parte central do compartimento. Esse ventilador tem um fole ascendente (fixo) de funcionamento pneumático e opera com gás a uma pressão de 50 ± 10 psi. Os controles são posicionados em um console, localizado abaixo do compartimento do fole. Há um interruptor principal que fica desligado ou em modo de espera (stand by) no canto inferior direito do painel frontal do console; o modo de espera possibilita a seleção prévia da frequência respiratória e o período inspiratório (Figura 3.77). A razão I:E é computada a partir desses ajustes e exibida digitalmente em monitores de LED (do inglês light-emitting diode, ou seja, diodo emissor de luz) antes que a ventilação mecânica seja iniciada. A frequência respiratória e o período inspiratório são controlados por potenciômetros de 10 turnos, que permitem a seleção de 2 a 80 respirações/min (frequência respiratória) e 0,1 a 3 s (período inspiratório), respectivamente. A exibição da razão I:E mostra a relação do período inspiratório com o período expiratório, conferindo ao primeiro um valor de 1. Um botão preto de controle localizado na parte inferior esquerda do painel frontal permite o ajuste da taxa de fluxo inspiratório (10 a 100 mℓ/min), e um calibre do mostrador perto do botão de controle indica se o fluxo usado é baixo, médio ou alto. Normalmente, a taxa de fluxo é ajustada para assegurar a compressão completa do fole no fim da inspiração. Se a taxa de fluxo for ajustada acima do necessário, produzirá um tempo rápido para o volume inspiratório atingir o auge e manter o período inspiratório. Um botão

verde está localizado na parte frontal central do console de controle e ativa a inspiração assim que é acionado, podendo ser usado para manter a ventilação mecânica na vigência de falta de energia e para o paciente suspirar.

Figura 3.77 Ventilador para anestesia Mallard 2400V. Ele pode ser limitado pelo volume, mediante o uso de um dispositivo ajustável limitante do fole, ou, alternativamente, por alterações na taxa de fluxo de gás direcional. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary

Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá).

Há foles de dois tamanhos para adultos, que proporcionam volumes correntes na faixa de 200 a 2.200 mℓ, e os foles pediátricos de 50 a 300 mℓ. Uma válvula de exalação está localizada na parte posterior do console de controle e é fechada pneumaticamente durante a fase inspiratória da ventilação, abrindo-se automaticamente durante a fase expiratória. O excesso de gás do circuito do paciente também sai por essa válvula, para evitar acúmulo de pressão. O adaptador (de 19 mm) dessa válvula deve ser conectado ao sistema de eliminação para eliminação dos resíduos de gases do ambiente de trabalho. Com um fole ascendente, haverá PEEP (em geral de 2 a 3 cmH2O). Além disso, pode-se acrescentar uma PEEP de 20 cmH2O ao sistema com o botão de controle da válvula opcional da PEEP. Uma válvula de escape ajustável de excesso de pressão dentro do console é pré-ajustada em 80 cmH2O e isso limita a pressão máxima que pode surgir no circuito de respiração do paciente. Externamente, essa pressão pode ser ajustada de 20 para 100 cmH2O. Esse ventilador tem alarmes audíveis que são acionados se o ciclo falhar ou houver uma falha elétrica. Além disso, o monitor de LED indicará a seleção em uma razão I:E inversa, falha no ciclo do ventilador e baixa pressão no suprimento de gás (< 30 psi). Antes de usar o ventilador, as conexões apropriadas do suprimento de gás e do sistema de eliminação devem ser feitas, bem como os procedimentos cabíveis de verificação antes do uso. Se o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estiverem funcionando como devem, segue-se a abordagem operacional razoável para este ventilador com um sistema de respiração circular: • • •

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Antes das aplicações clínicas, veja as instruções no manual de operação e faça os procedimentos de verificação Selecione os ajustes de controle apropriados para o volume corrente, limitando a expansão ascendente do fole Coloque o interruptor principal no modo de espera e o dial nos ajustes pretendidos para a frequência respiratória e o período inspiratório, com base nas necessidades do paciente Ajuste o controle de fluxo inspiratório para a taxa pretendida de fluxo, se baixa, média ou alta, dependendo das necessidades do paciente. Conecte a tubulação corrugada do fole do ventilador à bolsa reservatório do sistema circular, e o ventilador ao sistema de eliminação Feche a válvula LPA do sistema circular Coloque o interruptor principal em posição O ventilador deve seguir o ciclo de acordo com os ajustes selecionados, sendo

necessários apenas ajustes pequenos (p. ex., alterações leves no período inspiratório). Ventilador Ohio V5A Este ventilador é mostrado na Figura 3.73A. Tal unidade era produzida para uso humano e é capaz de liberar volumes correntes na faixa de 20 a 1.400 mℓ. Ele não é mais produzido, mas ainda está disponível. O Metomatic, um modelo específico para pequenos animais, fabricado pela Ohio Medical Products, também não é mais produzido, mas ainda pode ser encontrado em algumas clínicas veterinárias e é descrito em outro texto.66 Como o V5A, o Metomatic tem um projeto geral muito semelhante, embora tenha um modo assistido de ventilação e possa ter um limite ajustado do volume corrente com base na pressão. Há o argumento de que o Metomatic oferecia mais características para o controle preciso da ventilação, mas talvez seja menos fácil de operar por quem não esteja familiarizado com a VPPI. O V5A é classificado como um ventilador de circuito duplo cujo ciclo temporal depende do circuito fluídico e com fole descendente (suspenso). Funciona com eletricidade e pneumaticamente, de maneira apropriada, com uma pressão de 40 a 75 psi no suprimento de oxigênio. Os controles deste ventilador são um interruptor elétrico (para ligar e desligar), controle da taxa de fluxo inspiratório, controle do período expiratório e um botão manual para a inspiração. Tem ainda um dial no lado do compartimento, que controla o volume corrente, limitando a descida do fole (Figura 3.78). O interruptor elétrico controla uma válvula que fornece energia pneumática para o ventilador. O dial de controle do volume corrente ajusta o fole de 0 a 1.400 mℓ (20 a 300 mℓ nos foles pediátricos). O controle da taxa de fluxo inspiratório regula a taxa de liberação de gás para o compartimento do ventilador, comprimindo o fole durante a inspiração, e é ajustável de 6 a 100 ℓ/min, devendo ser ajustado para liberar o volume corrente completo do fole em um tempo razoável, normalmente de 1 a 2 s. O controle do período expiratório ajusta o tempo entre o fim de uma fase inspiratória da respiração e o começo da próxima, podendo variar de 1 a 10 s; na prática, é um ajuste da frequência respiratória, embora, até certo ponto, a frequência seja influenciada por outros controles (p. ex., o período inspiratório). Ao se acionar o botão de inspiração manual, a inspiração tem início em qualquer ponto durante o ciclo respiratório, desde que se aperte e libere imediatamente o botão. Se o apertarmos sem soltá-lo em seguida, a inspiração será iniciada e o fole permanecerá na posição expiratória final até que o botão seja liberado. O ventilador também está equipado com um alarme para pressão baixa na via respiratória, característica útil pois não é fácil detectar vazamentos apenas observando-se o fole do ventilador em uma configuração descendente/suspensa. O ventilador tem ainda uma válvula de escape para que o excesso de gases liberados para o circuito do paciente escape. Em geral, quando se emprega um fole descendente, a pressão

no circuito do paciente retorna a zero no final da expiração.

Figura 3.78 O volume corrente liberado para um paciente quando se usa um ventilador com fole ‘suspenso’ costuma ser controlado por meio de um dial ajustável que limita a descida do fole. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário,

Canadá.

Antes de usar o ventilador, é preciso conectá-lo ao suprimento de gás e ao sistema de eliminação, bem como seguir os procedimentos de verificação prévios apropriados. Se o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estiverem funcionando como devem, segue-se a abordagem operacional razoável para este ventilador com um sistema de respiração circular: • •



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Selecione o volume corrente desejado Ajuste o controle da taxa de fluxo respiratório em um nível médio. Assim que o ventilador estiver em uso, esse controle deve ser reajustado para liberar o volume corrente em aproximadamente 1 a 2 s Ajuste o controle de período expiratório também em um nível médio. Este controle deve ser reajustado para a frequência apropriada da ventilação e a razão I:E desejada depois que o ventilador estiver em uso Conecte o tubo corrugado do fole do ventilador à abertura da bolsa reservatório do sistema circular Feche a válvula LPA de escape do sistema de respiração Acionar o botão para ligar o ventilador Observe a característica e a frequência da ventilação, fazendo os ajustes finos dos vários controles. Em geral, primeiro ajusta-se a taxa de fluxo inspiratório e, em seguida, a frequência ou o período expiratório.

Ventiladores eletrônicos para anestesia da série Ohmeda 7000 e 7800 Essa série consiste em ventiladores de circuito duplo para anestesia em pacientes humanos, com foles pneumáticos ascendentes/fixos (Figura 3.79). O ventilador 7000 tem controles eletrônicos com pré-ajuste do volume corrente, que pode ser uma vantagem específica (conforme comentado adiante). Ambos os ventiladores podem ser adaptados a um fole pediátrico ou para adultos e têm sido bastante usados na anestesia humana.1,75 Estão disponíveis usados e são perfeitamente aplicáveis para anestesia em pequenos animais. A escala no compartimento do fole vai de 100 a 1.600 mℓ no caso de foles para adultos e de 0 a 300 mℓ para os pediátricos. A abertura para exaustão do fole montado tem diâmetro externo de 19 mm, a conexão ao aparelho de anestesia mede 22 mm e há um índice de diâmetro do sistema de segurança (IDSS ou DISS, de diameter index safety system) de alta pressão (50 psi) para uma linha de oxigênio destinada ao circuito de gás. O gás fornecido é oxigênio a 50 psi, pressão essa reduzida para 38 psi por um regulador de precisão dentro do ventilador. Durante a fase

expiratória, o gás do circuito do paciente (que flui do aparelho de anestesia) entra no fole. O escape do ventilador se abre quando o fole estiver completamente distendido e uma pressão de 25 cmH2O for ultrapassada; o excesso de gás do circuito do paciente vai para o sistema de eliminação. Os controles e detalhes específicos de cada série de modelos são discutidos separadamente a seguir. O módulo de controle da série 7000 (Figura 3.79A) tem seis controles, que são o dial de volume minuto (2 a 30 ℓ/min com o fole adulto e 2 a 12 ℓ/min com o pediátrico), o dial da frequência respiratória (6 a 40 respirações/min), o dial da razão I:E (1:1 a 1:3), o interruptor para ligar e desligar, o interruptor de suspiro (para um ‘suspiro’ igual a 150% do volume corrente, uma vez a cada 64 respirações) e um botão manual do ciclo (usado para iniciar a inspiração manualmente, apenas durante a fase expiratória). Os controles para ventilação (volume minuto, frequência respiratória e razão I:E) não são interativos. Se o volume minuto aumentar e a frequência permanecer constante, o volume corrente aumentará. Por essa razão, normalmente se usa a alteração no volume minuto para alterar o volume corrente do paciente, embora seja importante reconhecer que a alteração da frequência respiratória também pode mudar o volume corrente. Se a frequência respiratória diminuir enquanto o volume minuto permanecer constante, o volume corrente aumentará. O uso impróprio de qualquer ventilador sem se considerar como alterações em um parâmetro podem afetar variáveis subordinadas (ou auxiliares) pode ser perigoso (i.e., causar volutrauma ou barotrauma) para o paciente.

Figura 3.79 Ventilador da série Ohmeda 7000 isolado (A) e um Ohmeda 7800 (mostrado o Modelo 7810) (B) mostrando o painel de controle. O Ohmeda 7800 tem mais funcionalidade com alarme embutido ajustável para os parâmetros. Ambos são projetados para uso em seres humanos, mas funcionam bem na maioria dos animais. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

A série 7800 representa uma evolução da série 7000 com mais funcionalidade, alarmes embutidos e controle mais fácil (Figura 3.79B). Os parâmetros respiratórios e a concentração de oxigênio inspirado são exibidos em uma tela de cristal líquido. Há um interruptor para ligar e desligar a ventilação, um botão de alarme silencioso (alarmes silenciosos de 30 s), dial para o volume corrente (50 a 1.500 mℓ), dial para a frequência respiratória (2 a 100 respirações/min), um dial para o fluxo inspiratório (10 a 100 ℓ/min), um dial para limite da pressão inspiratória (20 a 100 cmH2O; o alarme mantido corresponde a 50% do limite de ajuste), um interruptor para pausa inspiratória (25% do período inspiratório) e um interruptor principal para ligar e desligar o ventilador. Também há tomadas para um sensor de oxigênio (que mede a porcentagem de oxigênio inspirado) e um espirômetro (que mede o volume real exalado). Há três conjuntos de rodas com pinos de madeira para ajustes de alarme: ventilação por minuto baixa, concentração baixa de oxigênio e concentração alta de oxigênio. Os controles para ventilação (volume corrente, frequência respiratória e taxa de fluxo inspiratório) não são interativos. Contudo, ao contrário da série 7000, apenas alterações no dial do volume corrente resultarão em alterações no volume corrente liberado para o paciente, ocorrência menos provável que a liberação inadvertida de um volume corrente grande. Alterações em cada controle do ventilador (volume corrente, frequência respiratória e taxa de fluxo inspiratório) vão modificar sua variável associada ao ventilador, mas acarretam mudanças apenas subordinadas na razão I:E, mais que no volume corrente liberado. Normalmente, o ventilador é ajustado selecionando-se o volume corrente e a frequência respiratória pretendidos, com a taxa de fluxo inspiratório sendo usada para selecionar uma razão I:E apropriada. O fabricante recomenda um teste no fole para que se verifique se há vazamento. Com o ventilador ligado ao sistema circular de respiração e a válvula de escape fechada, a peça em Y ocluída, todo o fluxo de gás fresco desligado e o fole preenchido a partir da válvula de fluxo de oxigênio do aparelho de anestesia, o fole não deve cair mais de 10 mℓ/min. Se houver um vazamento importante, não se deve usar o ventilador até que o vazamento seja vedado. Se o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estiverem funcionando bem, conforme indicado pelos procedimentos de verificação antes do uso, as seguintes diretrizes são apropriadas para o uso do ventilador:

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Conecte a parte elétrica e a pneumática às fontes apropriadas para ligar o ventilador Ajuste os valores desejados nos ventiladores da série 7000 para volume minuto, frequência respiratória e razão I:E. Idem nos da série 7800, sendo que o ajuste da razão I:E normalmente é feito quando se ajusta a taxa de fluxo inspiratório. Os ajustes de alarmes também devem ser feitos Faça as conexões apropriadas do fole de ventilação para a entrada da bolsa reservatório do sistema circular e o sistema de eliminação Feche a válvula de escape (LPA) do sistema circular Certifique-se de que o fole esteja completamente preenchido com a mistura de oxigênio e anestésico Ligue o ventilador Faça os ajustes finais para volume minuto e frequência respiratória de modo a satisfazer as necessidades do paciente.

Surgivet SAV 2500 Este ventilador (Figura 3.80) foi projetado para uso com aparelhos de anestesia e sistemas de respiração (circuitos circulares e sem retorno respiratório) considerados o padrão para pequenos animais, sendo classificado como de circuito duplo e ciclo temporal, com um fole ascendente (fixo), funcionamento pneumático e a energia elétrica. A pressão do suprimento de gás (oxigênio, nitrogênio ou ar comprimido condicionado) deve ser regulada entre 50 e 55 psi. O módulo de controle do ventilador SAV 2500 tem os seguintes componentes ajustáveis localizados na frente da unidade de controle do ventilador: interruptor para ligar e desligar, dial para o período inspiratório, respirações por minuto e fluxo inspiratório. Um botão de transporte respiratório (pneumático manual) e uma válvula ajustável de alívio da pressão estão localizados na parte posterior da base ou unidade de controle. O interruptor inicia a VPPI, o dial de período inspiratório serve para ajustes no tempo permitido de inspiração, e o de respirações por minuto é usado para ajustar o número de ciclos respiratórios que o ventilador irá liberar com o tempo. Obtém-se uma razão I:E apropriada ajustando-se o período inspiratório com relação ao número de respirações por minuto. O fluxo inspiratório determina a taxa com que o gás é liberado para o compartimento do fole durante o período inspiratório e, portanto, a compressão do fole; na prática, é usado para o ajuste do volume corrente. No entanto, como em muitos outros ventiladores, estes diais são independentes uns dos outros e as alterações em um deles afetarão de maneira também independente vários parâmetros respiratórios. Por exemplo, o aumento do período inspiratório ou da taxa de fluxo inspiratório aumenta o volume corrente. O ajuste das respirações por minuto não altera o volume corrente, mas afeta a razão I:E. Em todos os

ventiladores, as alterações devem ser feitas com cuidado, fazendo-se uma reavaliação imediata dos parâmetros do ventilador (volume corrente, pressões máximas na via respiratória, razão I:E) após todos os ajustes.

Figura 3.80 Surgivet SAV 2500 mostrando os vários diais de controle usados para ajustar os parâmetros respiratórios. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services,

Rockwood, Ontário, Canadá.

O botão de transporte é operado pneumaticamente e pode ser usado para ventilar um paciente se houver interrupção no fornecimento de energia elétrica ou ela não estiver disponível por algum tempo. Quando o botão é acionado, libera gás para o compartimento do fole, comprimindo-o até que seja liberado ou quando exceder os limites de pressão da válvula de alívio. Esse botão pode ser ativado em qualquer momento durante o ciclo do ventilador, possibilitando a liberação de respirações ‘amontoadas’ (o que pode ocasionar a liberação de uma respiração muito grande). A válvula ajustável de alívio de pressão adaptada entre a abertura para o gás da unidade de controle e o compartimento do fole limita a pressão máxima que pode ser gerada pelo gás e ajuda a eliminar a possibilidade de barotrauma no paciente. Se estiver fechada, a válvula abre-se com uma pressão de 60 cmH2O (± 5 cmH2O), mas pode ser ajustada para abrir com pressões cada vez mais baixas, quase abaixo de 0 cmH2O. Existem foles intercambiáveis de três tamanhos (300, 1.500 e 3.000 ℓ) para facilitar a ventilação em pacientes de vários tamanhos. A válvula de escape do ventilador compensa a entrada contínua de gás fresco no sistema de respiração, e a resistência dela cria uma PEEP de 2 a 3 cmH2O. Também há um modelo de ventilador compatível com MRI (SAV 2550), mas ele difere bastante do SAV 2500 e não será comentado aqui. Antes de usar o ventilador, deve-se conectar o suprimento de gás e o sistema de eliminação, bem como seguir os procedimentos apropriados de verificação prévia. Desde que o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estejam funcionando normalmente, a abordagem por etapas descrita a seguir é razoável para a operação deste ventilador com um sistema de respiração circular: •

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A válvula ajustável de alívio da pressão pode ser ajustada para abrir-se em um nível desejado. Embora isso não seja absolutamente necessário, ajustá-la em uma pressão de abertura razoável (30 a 40 cmH2O) pode ajudar a minimizar o risco de barotrauma acidental induzido pelo ventilador Conecte o tubo corrugado do sistema de respiração do ventilador à bolsa reservatório montada no sistema circular e o ventilador ao sistema de eliminação Feche a válvula de escape (LPA) do sistema circular Ajuste as respirações por minuto na frequência desejada Ajuste o período inspiratório do ventilador. Quando se coloca o dial na posição de 12 h (assinalada por um asterisco), o período inspiratório será de aproximadamente 1 s Deve-se ajustar o dial de fluxo inspiratório em um nível baixo de início, para evitar a liberação de um volume corrente inadvertidamente grande para o paciente, e ligar o



ventilador. O dial de controle do fluxo inspiratório é ajustado para produzir um fluxo de gás durante a inspiração que resulte no volume corrente e/ou na pressão inspiratória máxima pretendidos Faça os ajustes finais para a taxa de fluxo inspiratório, o período inspiratório e as respirações por minuto para satisfazer as necessidades do paciente.

Ventilador Vetronics Merlin para pequenos animais O Merlin é um ventilador controlado por computador, destinado especificamente à prática com pequenos animais (Figura 3.81). Ele é capaz de liberar volumes correntes de 1 a 800 mℓ e difere da maioria dos outros ventiladores veterinários de uso comum por funcionar a pistão e poder ser controlado por computador. É classificado como de circuito único e ciclo determinado eletronicamente pelo tempo, pela pressão ou pelo volume, com o mecanismo do pistão usando uma câmara do ventilador; é movido a energia elétrica e sob controle computadorizado. O sistema real de liberação da ventilação funciona de maneira semelhante a uma grande seringa controlada com precisão por um computador ou microprocessador. O ventilador é capaz de fornecer modos de ventilação tanto controlada como assistida e pode ser configurado para uso com sistemas que tenham ou não retorno respiratório, não sendo necessário um fornecimento separado de gás, pois ele usa o do circuito do paciente e o pistão sob controle eletrônico para produzir ventilação. Para que funcione bem, quando usado com um circuito sem retorno respiratório, é necessário assegurar que as taxas de fluxo de gás fresco no aparelho de anestesia ultrapassem um pouco a ventilação minuto liberada pelo ventilador.

Figura 3.81 Frente do ventilador Merlin para pequenos animais mostrando os vários diais de controle e pontos de conexão para o circuito de respiração. É importante notar que, para o

funcionamento adequado, uma válvula de via única deve estar sempre no lugar na entrada ‘Para o Paciente’. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

O painel do controle do ventilador inclui (Figura 3.81) controle da taxa de fluxo e do volume (0,1 a 25 ℓ/min ou 1 a 800 mℓ), controle do período inspiratório (0,1 a 9,1 s), controle do período expiratório (0,1 a 9,1 s), pressão máxima na via respiratória (1 a 60 cmH2O), limiar assistido (−1 a −10 cmH2O), um interruptor para o modo de ventilação (liga e desliga) e outro para o ajuste do volume corrente (taxa de volume ou fluxo). Mediante o uso dos vários controles, o ventilador pode ser ajustado para liberar um volume corrente limitado por alguma variável, como o volume, o tempo ou a pressão. O modo de controle limitado pelo tempo, em geral, é o mais fácil e simples para a maioria dos anestesistas. Entretanto, a capacidade de usar um ventilador limitado pela pressão e em modo assistido pode ser útil em circunstâncias específicas. O painel frontal também contém uma tela de cristal líquido que mostra o seguinte: volume corrente, volume minuto, razão I:E, frequência respiratória, medida da pressão na via respiratória, estimativa da complacência do sistema e causas de condições no alarme. Também há dois monitores de pressão que mostram as pressões na via respiratória nas alças inspiratória e expiratória do circuito anestésico. Há quatro encaixes padrões de aço inoxidável e 22 mm de diâmetro para a conexão do sistema de respiração ao ventilador, com as respectivas marcações de entrada e saída de gás, liberação de gás para o paciente e exaustão de gás do paciente. Também se deve colocar uma válvula de uma via para impedir o retorno na alça inspiratória e assegurar o fluxo unidirecional de gás. É importante conhecer bem o modo de operação e as limitações de qualquer peça do equipamento de anestesia antes de usá-lo em um paciente. Se o aparelho de anestesia, o sistema de respiração e o ventilador estiverem funcionando normalmente, conforme indicado pelos procedimentos prévios de verificação, e o ventilador estiver sendo usado no modo limitado pelo volume, as seguintes diretrizes são apropriadas para uso do ventilador: • • •



Conecte o ventilador na fonte de energia Assegure-se de que o ventilador esteja parado, o volume corrente encontre-se no modo de volume e o ajuste auxiliar esteja desligado Ajuste o volume corrente desejado (10 a 20 mℓ/kg), o período inspiratório (1 a 2 s), o período expiratório (1 a 4 s) e a pressão máxima na via respiratória (20 a 30 cmH2O). Não é necessário ajustar o limiar assistente, a menos que este modo esteja sendo usado Faça as conexões apropriadas do ventilador com o aparelho de anestesia e o paciente, conforme descrito pelo fabricante. Isto inclui a colocação de uma válvula de via única na alça inspiratória do paciente que impeça o retorno de gás. A bolsa reservatório deve

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permanecer no lugar, e a válvula ajustável limitante de pressão (escape) NÃO deve ser fechada Acione o interruptor do ventilador para o modo ligado Faça os ajustes finais de volume corrente, período inspiratório e expiratório para satisfazer as necessidades do paciente.

Ventilador Dräger para anestesia de grandes animais Esse ventilador é incluído como parte do aparelho Narkovet-E para anestesia de grandes animais; o sistema inteiro denomina-se Narkovet-E Large Animal Anesthesia Control Center (Centro de Controle Eletrônico Narkovet para Anestesia de Grandes Animais). O ventilador não era comercializado como uma unidade fixa para anestesia de grandes animais. Embora não sejam mais fabricados, algumas dessas combinações de ventilador com aparelho de anestesia continuam em uso em hospitais veterinários. O ventilador funciona pneumaticamente, em geral a uma pressão de 50 psi, e é classificado como de circuito duplo, com volume corrente pré-ajustado, ciclo temporal e de funcionamento pneumático, com fole descendente/suspenso, e usa circuito fluídico. Os controles incluem um interruptor para ligar e desligar o dispositivo, um controle do volume corrente com escala de 4 a 15 ℓ no compartimento do fole, um controle de frequência (6 a 18 respirações/min) e um controle de fluxo que determina o fluxo inspiratório (uma combinação de fluxo e pressão máxima liberados para o compartimento do fole); o fabricante recomenda que o fluxo seja ajustado de modo que o fole sempre alcance a parte mais alta do topo. A razão I:E de 1:2 é pré-ajustada. Antes de usar o ventilador, o suprimento de gás e o sistema de eliminação devem ser conectados, bem como realizados os procedimentos prévios de verificação. O manual de instrução inclui uma verificação padrão antes do uso do ventilador. Segue-se uma abordagem lógica para a operação do ventilador com um sistema de respiração circular: • •

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Conecte a mangueira do suprimento de gás comprimido ao ventilador Ajuste o controle do volume corrente no valor apropriado para o paciente e assegure que o mecanismo de trava automática seja ativado para evitar movimentação inadvertida da placa de parada do fole durante o uso Conecte a mangueira corrugada de respiração do fole à entrada da bolsa reservatório do sistema circular Feche a válvula de escape (LPA) no sistema circular Acione o interruptor que liga o ventilador Ajuste a frequência respiratória pretendida no botão de controle Ajuste o controle do fluxo de modo que o fole alcance o nível mais alto ao fim da

inspiração. Se o fole não retornar à sua posição original durante a expiração (em geral um indício de vazamento no circuito do paciente), ele pode ser preenchido usando-se um fluxo mais alto de oxigênio com o fluxômetro, e o vazamento deve ser corrigido. Centro de Controle Narkovet-E Electronic para Grandes Animais É uma combinação do Narkovet E-2 Large Animal Anesthesia System da Dräger (aparelho de anestesia e sistema de respiração circular) com o ventilador Dräger AV-E (Figura 3.82). O ventilador não está disponível como unidade isolada para grandes animais e não é mais fabricado, porém ainda há aparelhos em uso. É classificado como de circuito duplo, volume corrente pré-ajustado e ciclo temporal, com fole descendente. O controle do ventilador é eletrônico e seu comando é pneumático (40 a 60 psi com oxigênio, mas o ar é uma opção). Os controles incluem um interruptor para ligar e desligar, uma trava automática localizada abaixo do fole montada para controlar o volume corrente (4 a 15 ℓ), um controladorindicador giratório para ajustar a frequência respiratória (com controle de 1 a 30 respirações/min), um ajuste de controle do fluxo para determinar a taxa de fluxo inspiratório e o controle da I:E (um controlador-indicador giratório para ajustar a razão I:E em incrementos de 0,5 desde 1:1 para 1:4,5). O fabricante recomenda que o controle do fluxo seja ajustado de modo que o fole sempre alcance o máximo da inspiração. O ventilador fornece ventilação controlada e não tem opção para ventilação assistida. Antes de usar o ventilador, o suprimento de gás e o sistema de eliminação devem ser conectados, bem como realizados os procedimentos apropriados de verificação prévia. O manual de instrução do ventilador inclui uma lista de verificação padrão antes do uso. Segue-se uma abordagem por etapas para a operação do ventilador com um sistema de respiração circular:

Figura 3.82 Centro de Controle Eletrônico Narkovet-E Dräger para Grandes Animais: o fole e seu compartimento com marcações para o volume corrente (4 a 15 ℓ), a mangueira corrugada para respiração do fole para o sistema circular (atrás do compartimento do fole) e o botão fixo ou giratório de trava automática (no do centro) para seleção do volume corrente. Os controles estão localizados acima do fole à esquerda. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

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Conecte o suprimento de gás (a mangueira de oxigênio) ao aparelho de anestesia e ao ventilador Ajuste o controle do volume corrente no valor apropriado para o paciente e assegure-se de que o mecanismo de trava automática seja ativado para evitar movimentação inadvertida da placa no alto do fole Selecione a frequência pretendida de ventilação Selecione a razão I:E pretendida Conecte a mangueira corrugada de respiração do fole à entrada da bolsa reservatório do sistema circular Feche a válvula de escape (LPA) no sistema circular Acione o interruptor que liga o ventilador Ajuste o controle do fluxo, de modo que o fole alcance o nível mais alto no final da inspiração. Se o fole não retornar à sua localização original durante a expiração, pode ser preenchido aumentando-se o fluxo de acordo com o fluxômetro de oxigênio.

Ventilador para anestesia da série Mallard Medical Rachel Model 2800 Este ventilador (Figura 3.83) é um sistema com microprocessador e controle eletrônico, usado para controlar a ventilação em grandes animais mantidos em sistemas de respiração circulares. A série 2800 foi aprimorada desde sua criação. Os primeiros modelos da série, o 2800A e o 2800B, ainda são bastante usados na prática veterinária; o modelo mais recente, o 2800C, é eletrônico, tem mostrador, um fluxômetro adicional para o controle da FIO2 e o fole é reduzido de 21 para 18 ℓ, mas retém todo o desempenho dos modelos anteriores e o funcionamento é muito semelhante. Atualmente, o ventilador está disponível como parte de um aparelho de anestesia completo para grandes animais e circuito circular de sistema de respiração. A bancada para o ventilador e o fole é projetada para ser conectada a um sistema de respiração circular e dois vaporizadores para anestésicos inalatórios, tendo prateleiras para acomodar dispositivos de monitoramento fisiológico. O ventilador é classificado como sendo de circuito duplo, com ciclo temporal, acionamento pneumático, controle eletrônico e fole ascendente (fixo) na configuração. A maioria das considerações funcionais relativas ao modelo 2800C é similar às do modelo 2400V usado para pequenos animais. O console de controle do 2800C fica acima do compartimento do fole, não abaixo como no 2400V, e, como o último, tem um monitor de LED. O ventilador é controlado por um microprocessador, mas a parte pneumática foi modificada para gerar taxas de fluxo inspiratório maiores, que são ajustáveis de 10 a 600 ℓ/min. Os diais de controle incluem o da taxa de fluxo (10 a 660 ℓ/min), período inspiratório, frequência respiratória (2 a 15 respirações/min), um interruptor de força (liga-

desliga-standby) e um botão manual. O volume corrente é controlado ajustando-se o dial da taxa de fluxo até se obter o volume pretendido (leitura do compartimento do fole) e a razão I:E é calculada com base no período inspiratório e na frequência respiratória selecionados. O botão de ventilação manual libera a taxa de fluxo selecionada para comprimir o fole enquanto é apertado e opera mesmo sem energia. O fole (18 ou 21 ℓ) é fixo e ascende durante a expiração. Como outros ventiladores com fole fixo, o modelo 2800C produz PEEP, como resultado da pressão atmosférica acima da necessária para ativar (abrir) a(s) válvula(s) de escapamento, de modo a anular o efeito da gravidade decorrente do peso do fole. As válvulas de escapamento do 2800C são exclusivas dele por serem um par de válvulas ativadas por mola no alto do fole e ativadas para abrir apenas quando o fole atinge o máximo de ascensão e o pino no topo delas é deprimido, abrindo-as (Figura 3.84).O gás que sai pelas válvulas de escapamento vai então para um cilindro oco localizado no alto do compartimento do fole e é removido. A pressão para ativar as válvulas de escapamento, resultando em PEEP, fica entre 4 e 6 cmH2O. A quantidade de PEEP também pode ser controlada por uma bomba de vácuo pneumática no modelo 2800C, a qual cria pressão negativa entre o fole e seu compartimento durante a fase expiratória da ventilação e funciona reduzindo a PEEP de acordo com os ajustes feitos pelo operador. Pode-se conseguir um ambiente com pressão expiratória final, embora a ativação dessa função raramente seja necessária, e, na verdade, a PEEP fornecida pelo ventilador pode até ser benéfica. Em geral, permite-se que o paciente respire espontaneamente através do fole, mesmo que o ventilador esteja desligado ou no modo de espera, pois o trabalho da respiração não aumenta de maneira significativa; isso evita a necessidade do uso de uma bolsa reservatório e deve ser preciso desconectar e reconectar a ventilação. A mangueira do fole para o sistema circular pode ser retirada, facilitando a drenagem da umidade do aparelho. Também há uma montagem ‘de manutenção’ localizada no topo do fole, que pode ser usada para mantê-lo completamente inflado, quando não está em uso, e, assim, facilitar sua secagem. Existe ainda um modelo compatível com MRI.

Figura 3.83 Aparelho de anestesia Mallard 2800 para grandes animais e ventilador, disponíveis com um circuito e ventilador opcionais para pequenos animais, montado à esquerda do aparelho em (A). O ventilador usa o mesmo sistema de controle daquele para grandes animais. O Mallard 2800 também está disponível em muitas configurações adaptadas, conforme mostrado em (B). Fontes: A. Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá. B. Ron E. Mandsager, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Veterinary Teaching Hospital, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Ron E. Mandsager.

Figura 3.84 As válvulas de escapamento do Mallard Model 2800 estão situadas na parte superior do fole (instalações de aço inoxidável em forma de fuso na parte superior do fole), dentro do compartimento do ventilador. Quando o fole alcança a ascensão completa, um pino no alto da válvula é deprimido, permitindo que o excesso do fluxo de gás escape. Notar o cilindro de aço inoxidável (acima das válvulas de escapamento) na parte superior do compartimento do fole, para o qual o excesso de gás é evacuado. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Antes de usar o ventilador, devem ser feitas as conexões para o fornecimento de gás, a energia elétrica e o sistema de eliminação, além dos procedimentos de verificação prévia de todo o equipamento. A seguir, uma abordagem operacional razoável para o modelo 2800C de ventilador com um sistema de respiração circular: •

Coloque o interruptor principal em modo de espera e faça os ajustes desejados da





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frequência respiratória e do período inspiratório, de acordo com as necessidades do paciente Ajuste o controle do fluxo inspiratório para o nível pretendido – baixo, médio ou alto –, dependendo das necessidades do paciente; em geral, é melhor começar no nível baixo ou médio, para assegurar que não haverá administração excessiva inadvertida de volumes correntes excessivos Conecte o tubo corrugado do fole do ventilador à bolsa reservatório do sistema circular e à entrada da exalação do ventilador para o sistema de eliminação. Feche a válvula de escape (LPA) do sistema circular. Assegure de que o fole esteja completamente inflado e posicionado em zero. Em circunstâncias normais, por uma questão de conveniência, o ventilador costuma ficar conectado continuamente ao circuito de respiração durante um caso, à medida que o paciente respira através do fole nesta configuração fixa (ascendente), sem qualquer esforço adicional Acione o interruptor principal e a inspiração deve começar Se o fole não voltar a ficar zerado, pode ser que haja um vazamento no sistema; o fole pode ser preenchido ligando-se o fluxômetro, ou, como alternativa, usando-se uma válvula de irrigação, e, então, o vazamento deve ser identificado e corrigido. Caso se use a válvula de irrigação para encher o fole, a concentração de anestésico no circuito respiratório será reduzida A taxa de fluxo, o período inspiratório e a frequência respiratória podem então ser ajustados para produzir os parâmetros apropriados de ventilação ao paciente. Por fim, se houver interesse, pode-se ajustar o controle da PEEP para a pressão expiratória final pretendida.

Hallowell Tafonius e Tafonius Junior O ventilador Tafonius é controlado por microprocessador/computador e destina-se especificamente a grandes animais (Figura 3.85). Ele difere da maioria dos outros ventiladores veterinários de uso comum por ser movido a pistão e pode ser controlado por computador, o que lhe confere um controle preciso e passível de ter os padrões e modos de ventilação customizados. É classificado como sendo de circuito único e cronometrado eletronicamente, seu ciclo é determinado pelo volume, tem mecanismo a pistão e uma câmara; é acionado por energia elétrica e controlado por um microprocessador/computador. Encontra-se disponível em várias configurações; o Tafonius é uma estação de trabalho completa para anestesia (incluindo um sistema anestésico circular, módulo para monitoramento completo do paciente, ventilador e controlador computadorizado integrado) e a versão Tafonius Junior é um ventilador separado, controlado por microprocessador/computador, ou pode ser adquirido com o sistema de respiração

Hallowell projetado; ambas as últimas versões não têm o controlador computadorizado integrado e o módulo de monitoramento do paciente encontrados no Tafonius. O sistema de liberação real da ventilação funciona como uma seringa grande, controlado com precisão por um computador ou microprocessador. Já fizemos uma descrição mais detalhada do mecanismo a pistão em parágrafos anteriores. É importante notar que, similar ao que ocorre com outros ventiladores, o paciente pode respirar espontaneamente enquanto estiver conectado ao ventilador. O pistão no ventilador irá se mover instantaneamente, conforme necessário para manter uma pressão na via respiratória próxima de 0 cmH2O na peça em Y do circuito do paciente. Embora se providencie a inserção de uma bolsa reservatório, não é necessário usá-la caso se queira que o paciente tenha ventilação espontânea. Como o funcionamento do ventilador depende de circuitos eletrônicos, tem uma bateria e um sistema de monitoramento da mesma integrados, para o caso de haver alguma falha no fornecimento de energia. O ventilador é capaz de proporcionar modos de ventilação controlada e assistida. Tanto no Tafonius como no Tafonius Junior, o controle do ventilador é feito via auxílio de um computador/microprocessador ou, no caso do primeiro, por um software integrado ao sistema, encontrado na estação de trabalho completa padrão para anestesia do modelo em questão. Com a programação apropriada, o computador e o software integrados podem ser usados para customizar o controle do ventilador, de modo a produzir padrões respiratórios quase ilimitados. O controle primário do ventilador é alcançado alterando-se os seguintes parâmetros: volume corrente (0,1 a 20 mℓ), frequência respiratória (1 a 20 respirações/min), período inspiratório (0,5 a 4 s) e o limite máximo de pressão de trabalho (10 a 80 cmH2O). O microprocessador vai determinar automaticamente o período expiratório e a taxa de fluxo inspiratório, com base nesses parâmetros preestabelecidos dentro dos limites do equipamento (taxa máxima de fluxo inspiratório de 900 ℓ/min e período expiratório mínimo de 0,5 s). Outros controles de ventilação incluem o modo de assistência definido pelo usuário e a CPAP/PEEP. Também há um botão para uma válvula de esvaziamento que funciona como uma válvula eletrônica de escape ou de escapamento, encontrada nos ventiladores convencionais, e um botão de volume tampão usado para determinar o tamanho da bolsa reservatório ‘virtual’. Uma descrição operacional detalhada desse ventilador está além do âmbito desta discussão, pois depende da configuração específica do ventilador em uso (Tafonius ou Tafonius Junior) e se o ventilador está sendo controlado de acordo com o seu painel de controle auxiliar ou por um sistema informatizado integrado que tenha o software do Tafonius. No entanto, a facilidade de uso do ventilador é muito comparável à de outros ventiladores.

Figura 3.85 O Tafonius (A) e o Tafonius Junior (B) são ventiladores movidos a pistão, controlados por microprocessador/computador, destinados a grandes animais. O ventilador está disponível em uma configuração única fixa (Tafonius Junior) ou com um aparelho de anestesia para grandes animais e sistema de monitoramento do paciente integrados (Tafonius). Fonte: Hallowell EMC, Pittsfield, MA, EUA. Reproduzida, com autorização, de Hallowell EMC.

Antes de usar o ventilador, devem ser feitas as conexões apropriadas para o gás, a energia elétrica e o sistema de eliminação. É preciso fazer um procedimento que inicie a verificação automática dos ventiladores Tafonius, o qual calibra os transdutores de pressão, inicializa o pistão e testa se há vazamentos no aparelho. Os resultados desse autoteste são exibidos na tela de controle auxiliar e/ou no monitor do computador integrado. Ventilador Surgivet DHV 1000 para grandes animais Este ventilador específico para grandes animais pode ser adquirido sozinho, compatível para uso com qualquer aparelho de anestesia padrão para grandes animais, ou como parte de uma estação de trabalho completa para anestesia (LDS 3000 Large Animal Anesthesia Machine) (Figura 3.86). O ventilador é classificado como de circuito duplo, com volume corrente pré-ajustado/limitado, ciclo temporal, movimentado pneumaticamente e sob controle eletrônico, com configuração do fole descendente/suspensa. Os controles do módulo incluem um interruptor de força (energia, para ligar e desligar), um dial para a frequência respiratória, outro para o período inspiratório, outro para o fluxo (inspiratório de gás) e um botão manual para ativar a ventilação. Também há um botão giratório localizado na parte lateral do módulo de controle para ajustar a descida máxima do fole.

Figura 3.86 O ventilador Surgivet DHV 1000 para grandes animais pode ser adquirido sozinho ou como parte de uma estação de trabalho completa para anestesia, conforme mostrado aqui. Nesta configuração, a unidade do ventilador é montada no aparelho, abaixo do círculo de grande animal. Fonte: Smith Medical, Norwell, MA, EUA. Reproduzida, com autorização, de Smith Medical.

Antes de usar o ventilador, as conexões apropriadas para o suprimento de gás e o sistema de eliminação devem ser feitas, bem como os procedimentos apropriados de verificação antes do uso. O manual de instruções do ventilador inclui uma lista de verificação padrão para ser seguida antes do uso. Segue-se uma abordagem por etapas para a operação do ventilador com um sistema circular de respiração: •

Conecte o suprimento de gás (mangueira de oxigênio) ao aparelho de anestesia e ao

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ventilador Ajuste o dial giratório de controle do volume no valor apropriado para o paciente Selecione a frequência respiratória pretendida Selecione o período inspiratório pretendido Adapte a mangueira de respiração corrugada do fole à bolsa reservatório do sistema circular Feche a válvula de escape (LPA) no sistema circular Ligue o ventilador na tomada da parede do recinto Ajuste a tecla de controle de fluxo, de modo que o fole alcance a parte mais alta no final da inspiração A taxa de fluxo, o período inspiratório e a frequência respiratória podem, então, ser ajustados novamente para satisfazer os parâmetros apropriados do ventilador para o paciente.

Ventiladores acionados pelo respirador Bird Mark O respirador Bird Mark 7 foi um dos primeiros sistemas usados para comandar e controlar ventiladores tanto para pequenos como grandes animais (os chamados ventiladores de ‘bolsa em um barril’) e ainda estão em uso atualmente (Figura 3.87). O Bird Mark 7 foi desenvolvido originalmente como um respirador de circuito único para seres humanos e não destinado principalmente como ventilador anestésico, mas, aplicando-se a função de respirador a uma bolsa ou fole em uma ‘caixa ou barril’, cria-se um ventilador de circuito duplo.

Figura 3.87 Exemplo de um respirador Bird Mark 7 sendo usado como controlador de um ventilador para anestesia de grandes animais. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

De maneira excepcional, os ventiladores comandados pelo respirador Bird podem ser usados nos modos de controle, assistência ou ambos e têm a capacidade de limitar o volume corrente a partir da pressão na via respiratória. Isso difere da maioria dos ventiladores contemporâneos, que só oferecem modos de controle da ventilação e tendem a limitar o volume corrente com base na liberação de gás. Os respiradores Bird Mark são usados para controlar e comandar os ventiladores para grandes animais das séries LAV2000 e 3000 da Medical. Embora outros ventiladores comandados pelo respirador Bird não

sejam discutidos aqui, os princípios gerais de operação são semelhantes, mas detalhes do projeto podem ter uma variação significativa. O JD Medical LAV-3000 é um ventilador separado, que pode ser usado com qualquer aparelho de anestesia para grandes animais, e o LAV-2000 é um ventilador integrado com aparelho de anestesia, disponível em várias configurações projetadas e customizadas. Os sistemas LAVC-2000 e 3000 podem ser convertidos em um sistema de 5 ℓ para uso em potros, acrescentando-se um fole de 5.000 mℓ e um recipiente (compartimento do fole) inserido. Um respirador Mark 7 modificado comanda o fole no sistema do ventilador. Quando o sistema está em funcionamento, o ventilador Bird fornece gás para pressurizar o espaço entre o fole e seu compartimento (recipiente), para forçar o fole em um movimento para cima, liberando gases do fole, através da interface da mangueira, para o sistema de respiração. O LAVC-2000 e o 3000 são classificados como de circuito duplo, limitados pela pressão, ciclo temporal, controle e acionamento pneumáticos, com configuração descendente/suspensa do fole. Os controles em um Bird Mark (Figura 3.88) incluem a pressão inspiratória, a taxa de fluxo inspiratório, o período expiratório (controle de apneia) e a sensibilidade inspiratória. Além disso, o ventilador tem um manômetro e um cronômetro manual (com mecanismo para empurrar e puxar), usados para iniciar e terminar manualmente a respiração, bem como um conector de SSID para a fonte de energia pneumática. No Bird Mark 7 modificado, pode-se variar a pressão inspiratória de 5 a 65 cmH2O, a sensibilidade inspiratória de −0,5 a −5 cmH2O, o período expiratório de 5 a 15 s e o fluxo inspiratório de 0 a mais de 450 ℓ/min. A fonte de energia pneumática deve ser liberada na entrada do ventilador em 50 psi. O fole pode liberar um volume corrente até de 20 ℓ. A inspiração pode ser iniciada ou interrompida usando-se um cronômetro manual. O Bird Mark 7 é um ventilador com ciclo à base da pressão, a menos que o bastão manual para comandar o ciclo seja puxado para fora, o que faz com que o ventilador siga um ciclo temporal.

Figura 3.88 Respirador Bird Mark 7 mostrando os vários controles usados para controlar um ventilador. Fonte: Thomas Riebold, College of Veterinary Medicine, Oregon State University, Corvallis, Oregon, EUA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Riebold.

Antes de usar o ventilador Model LAV-3000 para controlar a ventilação durante anestesia, devem ser conectados o suprimento de gás e o sistema de eliminação, bem como fazer os procedimentos apropriados de verificação de todo o equipamento antes do uso. Segue-se uma abordagem operacional razoável do ventilador com um sistema de respiração circular no modo de controle: • • • •

Ajuste o controle da sensibilidade inspiratória em um nível alto, para minimizar a possibilidade de ventilação iniciada pelo paciente Ajuste o controle da pressão inspiratória na variação de 20 a 30 cmH2O e reajuste para chegar ao volume corrente pretendido após completar a 5a e a 6a etapa Conecte a mangueira corrugada (da interface) do fole à entrada da bolsa reservatório do sistema circular Feche a válvula de escape (LPA) do sistema circular. Em seguida, pode ser necessário encher o fole aumentando o fluxo de oxigênio para o circuito do paciente (de acordo com o fluxômetro de oxigênio no aparelho de anestesia)

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Acione o controle de fluxo inspiratório para iniciar o funcionamento do ventilador e ajustar o controle de fluxo para liberar um volume corrente em aproximadamente 1,5 a 3s Ajuste o controle de período expiratório, para estabelecer uma frequência respiratória apropriada para o paciente, em geral de 7 a 10 respirações/min Para fazer os ajustes finais, o operador deve entender que há interações dos controles em um ventilador Bird (p. ex., alterações no fluxo inspiratório podem afetar a frequência respiratória e vice-versa).

Dispositivos de assistência respiratória Existem dispositivos de assistência respiratória de vários tipos e marcas. A operação de alguns é completamente manual (bolsas de reanimação com válvulas de via única) e, em alguns, usa-se gás comprimido (oxigênio) para ajudar a ventilação (válvulas de demanda). A mecânica desses dispositivos já foi revista.2

■ Reanimadores manuais Um reanimador manual é apropriado para aplicação de VPPI em animais pequenos. Há várias marcas de reanimadores. Os componentes básicos de um reanimador manual são uma bolsa compressível capaz de autoexpansão, uma válvula para encher de novo a bolsa e uma válvula para impedir o retorno respiratório. Alguns reanimadores podem ser conectados a uma fonte de oxigênio para enriquecer esse gás nos gases inspirados (Figura 3.89). Os reanimadores manuais podem ser conectados a um reservatório, para servir como uma fonte de oxigênio quando o fluxo desse gás para o reanimador não satisfaz as demandas de preenchimento do reanimador.

Figura 3.89 Exemplo de bolsa de reanimação adequada para uso em medicina veterinária. Essa bolsa também tem um reservatório expansível (à esquerda na imagem), que serve para armazenar gás enriquecido, se estiver sendo usado com oxigênio suplementar. Contudo, é

importante notar que o uso das bolsas de reanimação não requer a liberação de gás suplementar. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

■ Válvulas de demanda Pode-se usar uma válvula de demanda para liberar ventilação com pressão positiva intermitente (Figura 3.90). A válvula de demanda é ajustada para liberar oxigênio quando o paciente começa a inspirar (criando uma pressão negativa leve que ativa a liberação de gás) até a exalação iniciar ou ser alcançada certa pressão pré-ajustada. A expiração é passiva através da saída da válvula. A saída pode ser restritiva à expiração em pacientes de grande porte. O dispositivo pode ser desconectado do tubo endotraqueal após a inspiração para diminuir a resistência à exalação. É possível disparar manualmente uma válvula de demanda para liberar oxigênio para o paciente, desde que o botão de ativação seja mantido pressionado ou até o limite pré-ajustado de pressão ser alcançado. Como alternativa, a compressão e a liberação do botão de controle permite a aplicação de VPPI. Uma válvula de demanda com a capacidade de alta taxa de fluxo inspiratório é melhor para o uso em grandes animais; válvulas de demanda que geram fluxos inspiratórios baixos causarão um período inspiratório excessivamente longo em pacientes que requerem um volume corrente maior. Há válvulas de demanda de vários fabricantes. A maioria libera uma taxa máxima de fluxo de aproximadamente 160 ℓ/min a 50 psi e costuma estar disponível como um modelo de baixo fluxo (40 ℓ/min). Os modelos de alto fluxo são mais adequados para aplicações veterinárias em grandes animais. O uso da válvula de demanda Hudson foi descrito em equinos, mas ela não se encontra mais disponível.76 Ela libera cerca de 200 ℓ/min, se a pressão do suprimento de oxigênio for de 50 psi, e mais de 275 ℓ/min, se a pressão do suprimento for de 80 psi. Normalmente, as válvulas de demanda são projetadas para aceitar uma conexão padrão para tubo endotraqueal (com 15 mm de diâmetro externo) e uma máscara facial também padrão (com diâmetro externo de 22 mm), embora se disponha de vários adaptadores para tubos endotraqueais de grandes animais em medicina veterinária (do tipo funil e de aço inoxidável com diâmetro externo de 22 mm) (Figura 3.91).

Agradecimentos O autor e os editores querem agradecer ao Dr. Sandee Hartsfield por permitir o uso de parte de seu material de edições prévias deste texto na preparação deste capítulo.

Figura 3.90 Uma válvula de demanda é um sistema de liberação de oxigênio que pode ser usado para se fazer ventilação manual com pressão positiva intermitente. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

Figura 3.91 Normalmente, as válvulas de demanda são projetadas para se encaixar em adaptadores de tubo endotraqueal. Costumam ser necessários adaptadores específicos para grandes animais para uso com um tipo de funil (mostrado) ou de aço inoxidável com 22 mm de diâmetro externo, em geral associados a tubos endotraqueais para grandes animais. Fonte: Craig Mosley, Mosley Veterinary Anesthesia Services, Rockwood, Ontário, Canadá.

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Introdução Monitoramento da profundidade anestésica Sinais físicos da profundidade anestésica Monitoramento eletroencefalográfico da profundidade anestésica Sistema cardiovascular Frequência e ritmo cardíacos Pressão arterial Pré-carga cardíaca Volume sistólico Débito cardíaco Conteúdo, liberação e consumo de oxigênio Contratilidade miocárdica Resistência vascular sistêmica e perfusão tecidual Marcadores metabólicos da perfusão tecidual Sistema pulmonar Frequência, ritmo e esforço respiratórios Ventilometria, espaço morto e complacência Pressão parcial de dióxido de carbono (PCO2) Oxigênio Temperatura Hipotermia Hipertermia Referências bibliográficas

Introdução O foco primário do monitoramento de pacientes anestesiados é a avaliação (1) da profundidade da anestesia, (2) das consequências cardiovasculares e pulmonares do estágio anestesiado e (3) da temperatura. Um nível anestésico muito leve não consegue atingir todas as metas básicas da anestesia. Uma anestesia muito profunda em animais pode ter consequências cardiopulmonares adversas e levá-los à morte. A anestesia geral predispõe à hipotermia, que por sua vez predispõe a uma anestesia excessivamente profunda e vários problemas cardiopulmonares. Hipertermia não é comum, mas, se for grave, pode causar dano tecidual disseminado. Há muitos aspectos da função cardiovascular e pulmonar que podem ser monitorados. Qualquer medida simples define apenas o problema em si e não pode ser usada para definir o estado geral do sistema. É importante avaliar todos os parâmetros individuais disponíveis de função cardiovascular e pulmonar, e, então, elaborar uma estimativa composta da função global (Figura 4.1). O sistema cardiovascular é subdividido nos parâmetros précarga (“o funcionamento da bomba é suficiente?”), cardíacos (“o coração está bombeando sangue?”) e de fluxo anterógrado (“os tecidos estão sendo perfundidos?”). A frequência e o ritmo cardíacos são satisfatórios e a contratilidade é suficiente? Dentre os parâmetros “de fluxo anterógrado”, o volume sistólico e o débito cardíaco, a pressão arterial, o tônus vasomotor e a perfusão tecidual são adequados? Como o animal está ventilando? Como está sendo oxigenado?

Monitoramento da profundidade anestésica O objetivo de assegurar um nível apropriado de anestesia é garantir a ausência de consciência por parte do paciente, recordação, dor e movimento, evitando níveis excessivos de anestesia e seus problemas (hipoventilação e hipoxemia, redução do débito cardíaco, hipotensão, perfusão tecidual inadequada e recuperação prolongada). A profundidade anestésica é determinada (1) pela quantidade de fármaco(s) anestésico(s) no cérebro, (2) pela magnitude da estimulação cirúrgica (ou ambiental) e (3) por condições subjacentes que exerçam efeitos sinérgicos, como depressores do SNC (i.e., hipotermia, hipotensão). A profundidade anestésica pode ser razoavelmente volátil se houver alterações abruptas em qualquer dos determinantes. Os anestésicos específicos usados são importantes; alguns são bons depressores do SNC, mas analgésicos fracos, enquanto outros são exatamente o contrário. Embora as taxas de infusão do anestésico, no caso dos intravenosos, e as concentrações correntes finais dos gasosos sejam dois dos fatores usados para ajudar a estimar a profundidade anestésica, eles não a definem.

■ Sinais físicos da profundidade anestésica Tradicionalmente, a profundidade anestésica é dividida em dois estágios e planos. O estágio I é o desperto de consciência, incluindo todos os níveis de obnubilação até a perda da consciência, que assinala o início do estágio II, o de excitação anunciada pelo movimento muscular espontâneo; a cessação desse movimento e o início de um padrão respiratório regular assinalam o término do estágio II e o começo do III (o estágio cirúrgico da anestesia). O estágio III é dividido em quatro planos, que podem caracterizar-se por alterações nos sinais físicos prontamente disponíveis e perda progressiva de reflexos (Tabela 4.1). O estágio IV caracteriza-se por depressão extrema do SNC e parada respiratória. Se a depressão do SNC não for revertida, podem sobrevir a parada cardíaca e a morte. Infelizmente, raras vezes os animais comportam-se de acordo com o que dizem os livros e podem exibir, simultaneamente, sinais consistentes com dois ou mais planos anestésicos. O anestesista avalia cada sinal e, então, os interpreta para fazer uma estimativa da profundidade da anestesia. Quando os sinais da profundidade anestésica são incertos ou contraditórios, deve-se diminuir um pouco a administração do anestésico até que fique claro que o animal está em um nível apropriado de anestesia. O objetivo da profundidade intra-anestésica é o plano 2. O plano 1 pode ser muito responsivo e o plano 4 está muito perto da morte. O plano 3 é aceitável, porém mais profundo do que costuma ser necessário, em particular perto do término do procedimento operatório. Uma resposta fisiológica à estimulação cirúrgica define o paciente como estando em um nível leve, mas não necessariamente muito leve (Tabela 4.1). Os animais perdem a consciência muito antes de perderem os movimentos espontâneos e as respostas fisiológicas. A concentração alveolar mínima (CAM) para evitar resposta a comandos verbais (CAM desperto/consciente) em 50% dos pacientes anestesiados com halotano é de aproximadamente 0,4%.1 A CAM para evitar movimento muscular em resposta a um estímulo cirúrgico forte (CAM para incisão) é de cerca de 0,9% e a CAM para bloqueio autônomo da resposta (CAMBAR) à incisão cutânea é de cerca de 1,1%. A CAM de consciência e a CAM de incisão relatadas do isofluorano e do sevofluorano foram, respectivamente, de 0,39% e 1,3% e 0,61% e 2%.2 Se um animal exibe uma alteração fisiológica ou mesmo se move levemente em resposta à estimulação cirúrgica (desde que não se mova o suficiente para interferir no procedimento cirúrgico), isso pode ser um bom sinal: prova que o nível anestésico é leve, não profundo, e a consciência altamente improvável.

Figura 4.1 Visão geral da função cardiopulmonar. A pré-carga e a contratilidade miocárdica geram um volume sistólico. A frequência cardíaca (que pode sofrer um impacto negativo por causa de arritmias) e o volume sistólico determinam o débito cardíaco. A impedância da póscarga ao débito cardíaco não está representada no diagrama porque raramente é um problema em anestesia. O débito cardíaco e o tônus vasomotor periférico determinam a pressão arterial. O tônus vasomotor periférico é o determinante importante da perfusão tecidual periférica. A pressão arterial é o determinante importante da perfusão cerebral e da cardíaca. As veias conduzem o sangue de volta para o coração (pré-carga). A concentração de hemoglobina e a oxigenação determinam o conteúdo de oxigênio, o qual, com o débito cardíaco, determina a liberação de oxigênio. A quantidade de oxigênio sanguíneo captada pelos tecidos (ou o dióxido de carbono produzido pelos tecidos) determina o oxigênio venoso (ou dióxido de carbono). Tabela 4.1 Sinais físicos de profundidade anestésica no estágio III.

Posição do Plano

globo

Reflexo palpebral

Tônus

Tamanho das

RPLa

Umidade da

do

córnea

músculo

Resposta Tônus do

de

músculo

movimento

Resposta fisiológica à

ocular

pupilas

ciliar

mandibular

reflexo à

nocicepção

nocicepção

1. Leve

2. Leve a médio

Central

Virado para a parte

Virado para

Profundo

a parte

a médio

mesocentral

Profundo

0

mesocentral

3.

4.

+

Central

0

0

Médio a grande

Pequeno a médio

Médio a grande

Grande

+

Úmida

Alto

Alto

Talvez

Não

+

Úmida

Algum

Algum

Não

Talvez

0

Intermediária

Pouco

Pouco

Não

Não

0

Seca

Nenhum

Nenhum

Não

Não

a

RPL = resposta pupilar à luz.

b

As respostas fisiológicas à nocicepção incluem aumento na frequência cardíaca, na pressão arterial ou na frequência

respiratória. A história recente da dose anestésica é um componente importante da avaliação da sua profundidade; doses grandes devem ser associadas a um nível profundo de anestesia e viceversa. A dose típica para administração de um fármaco anestésico não é garantia de que o animal não tenha uma anestesia excessiva ou um plano anestésico típico. Também não há correlação obrigatória entre o nível da anestesia e sua consequência fisiológica; os animais podem estar levemente anestesiados e, ainda assim, ter apneia, hipoxemia ou hipotensão. O movimento espontâneo é um sinal confiável de um nível leve de anestesia com a maioria dos anestésicos. A torção focal de um músculo facial ou do pescoço é uma característica de alguns fármacos (p. ex., etomidato e propofol) e não deve ser interpretada, em si, como indicativa de um nível leve de anestesia. O movimento reflexo em resposta à estimulação cirúrgica é um sinal mais confiável de um nível leve de anestesia. Um aumento abrupto na frequência cardíaca, na pressão arterial ou na frequência respiratória em resposta à estimulação cirúrgica é um sinal confiável de um nível leve ou medianamente leve de anestesia. Em geral, parâmetros fisiológicos, como a frequência cardíaca, a pressão arterial, a frequência respiratória e a ventilação por minuto, devem tender para baixo quando um animal fica anestesiado mais profundamente e vice-versa. A

respiração torna-se mais superficial e o componente abdominal (diafragma) fica mais predominante em níveis anestésicos mais profundos. No entanto, aumentos nesses parâmetros não devem ser considerados sinais premonitórios confiáveis da profundidade da anestesia; em geral, acontece que esses parâmetros não mudam até após o nível anestésico do animal tornar-se muito leve. O uso dos parâmetros fisiológicos é mais importante para caracterizar o estado fisiológico do paciente. Com tendências de aumento ou queda em qualquer parâmetro fisiológico, outros sinais da profundidade anestésica devem ser avaliados antes que se faça qualquer alteração na frequência da administração do fármaco. O tônus muscular mastigatório e o palpebral diminuem gradualmente à medida que a profundidade da anestesia aumenta. O tônus dos músculos da mastigação tem de ser indexado de acordo com a espécie e o tamanho do paciente. Animais jovens, como filhotes caninos, nunca exibem muito tônus muscular, enquanto animais grandes sempre exibem bastante. Ruminantes e suínos podem exibir mastigação espontânea enquanto estão sob anestesia leve.3 Em pequenos animais, com anestésicos tradicionais, a posição do globo ocular é central com relação à luz e, durante os níveis mais profundos de anestesia (em geral), ele fica virado ventromedialmente nos planos 2 e 3. O globo ocular não fica rotacionado com cetamina. Em equinos, o globo ocular pode fazer rotação (virar), mas não muito, e pode ocorrer nistagmo espontâneo. Um globo ocular muito lento (‘vagueando’) pode representar um nível médio de anestesia, enquanto um nistagmo rápido representa um nível alto de anestesia. Também pode ocorrer nistagmo com níveis leves de anestesia em ruminantes e suínos, mas desaparece nos níveis mais profundos, à medida que o globo ocular rotaciona em direção ventral. Normalmente, não ocorre nistagmo em pequenos animais anestesiados para procedimentos cirúrgicos. A presença do reflexo palpebral é um indicador confiável de um nível leve de anestesia e sua ausência sugere um nível médio ou profundo. Alguns indivíduos nunca exibem um reflexo palpebral ou ele se esgotou com a repetição do teste. Com a cetamina, o reflexo palpebral está sempre presente e as pálpebras permanecem abertas. O reflexo pupilar à luz (RPL) (constrição da pupila em resposta a uma luz brilhante) e o reflexo da piscadela (que também ocorre em resposta a uma luz brilhante) são indicadores confiáveis de um nível leve a médio leve de anestesia. O RPL pode ser minimizado pela administração de parassimpaticolíticos. A lacrimação (produção de lágrimas) diminui e cessa nos níveis mais profundos de anestesia. Em equinos, é um sinal de um nível anestésico leve. A ocorrência de engasgo e reflexos de deglutição indica um nível anestésico leve em quase todas as espécies.

■ Monitoramento eletroencefalográfico da profundidade

anestésica A maioria dos sinais físicos de profundidade anestésica é facial e depende da função muscular, que é problemática quando o acesso do anestesista à cabeça do paciente é limitado ou se forem usados bloqueadores neuromusculares. Além disso, como os sinais físicos de profundidade anestésica são notoriamente imprecisos, há um grande interesse em ‘ver o que acontece do lado de dentro’. O eletroencefalograma (EEG) e seus índices derivados da atividade cerebral oferecem justamente tal oportunidade. As alterações do EEG de padrão de onda de baixa amplitude e alta frequência durante o estado de alerta (desperto, consciente) para um padrão de alta amplitude e baixa frequência durante a anestesia impedem a supressão (períodos intermitentes de atividade elétrica) e, por fim, o silêncio elétrico persistente com níveis profundos de anestesia. O EEG em si requer um volume considerável de registros e também treinamento especializado e habilidade para sua interpretação. A análise e o processamento do EEG facilitam a interpretação dos sinais do EEG. A voltagem (potência) eletroencefalográfica muda em função do tempo (domínio temporal) e gera índices como a força do EEG (TOTPOW), a frequência mediana da potência e a supressão de descargas. Os algoritmos para interpretação (pela transformação rápida de Fourier) também examinam a atividade do sinal como uma função da frequência (domínio da frequência) e geram índices como a frequência da margem espectral (FME95, ou SEF95, de spectral edge frequency) (a frequência abaixo da qual ficam 95% dos resíduos de potência total do EEG), a frequência mediana (FM) (a potência mediana do EEG) e a potência relativa das frequências delta (0,5 a 3,5 Hz), teta (3,5 a 7 Hz), alfa (7 a 13 Hz) e beta (13 a 30 Hz), comparadas com a potência total do EEG.4 Tais índices foram usados para caracterizar a profundidade anestésica em pessoas5–8 e animais.9–12 O Bispectral IndexTM (índice biespectral), um índice do estado cerebral, e o NarcotrendTM podem representar uma abordagem mais integrada e fácil para o usuário à análise do EEG, em comparação com os índices clássicos. O Bispectral IndexTM (BISTM) (Aspect Medical Systems) é um eletroencefalograma processado que codifica o grau de depressão cortical induzida pelo anestésico e representa um valor de peso variável, derivado de quatro subparâmetros: (1) supressão da frequência de descarga (domínio de tempo); (2) um valor QUAZI (domínio de tempo); (3) frequência da potência beta2 na faixa de 30 a 47 Hz, em comparação com a de 11 a 20 Hz (domínio de frequência); e (4) frequência da biocoerência biespectral de picos na faixa de 0,5 a 47 Hz, em comparação com a faixa de 40 a 47 Hz (domínio de frequência).13 O monitor BIS não requer calibração e exibe um gráfico de colunas denotando a qualidade do sinal e a quantidade de artefato muscular. A movimentação muscular excessiva pode interferir na computação BIS.14 Tem-se usado o BIS para ajudar a assegurar que os pacientes estejam bem anestesiados, sem dor e inconscientes.13,15 O monitor exibe um número entre 0 e 100:

valores > 90 em pacientes são compatíveis com o estado desperto e alerta; de 80 a 90, com ansiólise; entre 60 e 80, obnubilação moderada; < 60, perda da memória; < 50, ausência de resposta a estímulos verbais; < 40, perda de movimento muscular em resposta a um estímulo nocivo; < 20, supressão de descarga (anestesia profunda), e 0 está associado a atividade isoelétrica. Em cães, um índice BIS de 60 a 70 foi relatado como sendo compatível com o término do procedimento cirúrgico.16 O BIS foi extensamente estudado em seres humanos, primariamente como um índice de sedação17,18 ou da profundidade da anestesia.8,12,19–23 Também foi usado como um índice da função cerebral em pacientes neurológicos.24,25 Em gatos, foram relatadas CAMBAR e CAMBIS (a CAM em que um estímulo nociceptivo causa um aumento no BIS para 60).19 Um estudo com cães em que se usou o sistema de monitoramento BIS, com eletrodos colocados longitudinal ou lateralmente no alto da cabeça, revelou que o índice BIS era altamente variável e não acompanhava muito bem as concentrações correntes finais de isofluorano.26 Nem todos os anestésicos afetam o BIS na mesma proporção; o propofol, o midazolam e o tiopental o deprimem fortemente, os inalatórios têm um efeito intermediário, os opioides exercem pouco efeito e o óxido nitroso e a cetamina tendem a aumentá-lo.13 Foi relatado um índice do estado cerebral (IEC, ou CSI, de cerebral state index) que utiliza um monitor do estado cerebral (MEC, ou CSM, de cerebral state monitor) (Danmeter, Odense, Dinamarca).27 Há três inserções para clipe de eletrodos: na fronte (+), no occipital (−) e no parietal (de referência). O IEC é calculado a partir de um algoritmo em que se consideram duas faixas de energia (β e α), a razão β:α e a supressão de descarga (SD, ou BS, de burst supression), um quociente que leva em conta a quantidade de tempo de atividade zero do EEG. O monitor exibe o EEG, o IEC, o SD, a EMG e o índice de qualidade do sinal (IQS, ou SQI, de signal quality index). Valores do IEC > 90 representam o estado desperto; de 80 a 90, sedação, e < 80, inconsciência. O IEC diminuiu progressivamente com o aumento da infusão de propofol, mas não se correlacionou bem com os sinais físicos de profundidade anestésica avaliados nesse estudo.28 Em um estudo definitivo, os autores concluíram que, embora o IEC pudesse predizer os níveis de anestesia, não foi tão discriminativo no sentido de diferenciar os níveis anestésicos usados clinicamente.29 O monitor NarcotrendTM (Monitor Technik, Brad Bramstedt, Alemanha) analisa o EEG bruto e, então, categoriza os níveis de sedação como desperto (A0), subvigilante (A1/A2), sedação (B0/B1/B2), anestesia (C0/C1/C2), anestesia moderada (D0/D1/D2), anestesia profunda/supressão de descarga (E) e coma/silêncio elétrico (F).30 As respostas auditivas evocadas no EEG (ou potenciais auditivos evocados, PAE) foram usadas primariamente para avaliar a função neurológica nas doenças do SNC, mas também têm sido usadas para avaliar a profundidade anestésica e o estado de vigília (desperto)/memória.31 Muitos

estudos usaram o EEG sensorial evocado (a um estímulo nocivo) ou BIS, alterações hemodinâmicas e respostas de movimento para avaliar a nocicepção. Todos os índices do EEG estão sujeitos a grandes variações de acordo com o anestésico. Dependendo da magnitude da estimulação e da profundidade da anestesia, as alterações do EEG induzidas por um estímulo poderiam representar um padrão desperto ou um padrão que sugere um nível mais profundo de anestesia (a resposta paradoxal).9,32 O EEG não reflete as propriedades analgésicas de um anestésico, apenas suas propriedades hipnóticas. Os índices do EEG podem ajudar na avaliação de anestesia profunda, mas nenhum deles substitui nem pode ser mais acurado que a avaliação física da profundidade anestésica.

Sistema cardiovascular ■ Frequência e ritmo cardíacos A frequência cardíaca é um determinante importante do débito cardíaco. As frequências cardíacas em animais são altamente variáveis: 60 a 120 em cães de grande porte, 80 a 160 nos menores, 120 a 220 em gatos, 35 a 45 em equinos e 70 a 90 em pequenos ruminantes. Uma alteração na frequência cardíaca é um índice sensível de alteração no estado fisiológico do paciente. A bradicardia excessiva diminui o débito cardíaco, mesmo que o volume sistólico possa aumentar em decorrência de tempos diastólicos mais longos. A taquicardia excessiva pode diminuir o débito cardíaco devido ao tempo diastólico encurtado e ao volume sistólico reduzido. As causas de bradicardia e taquicardia estão relacionadas nas Tabelas 4.2 e 4.3, respectivamente. Não há consenso sobre em que casos a bradicardia deve ser tratada, mas uma indicação para tratamento conservador seria algo como < 50 (estimado em cerca de 20 a 30% abaixo do normal) em cães de grande porte, < 60 em cães menores, < 90 em gatos, < 25 em equinos e < 55 em pequenos ruminantes. Sem dúvida, deve-se tratar a bradicardia quando associada a qualquer evidência de inadequação do débito cardíaco, da pressão arterial ou da perfusão tecidual. Em cães, frequências cardíacas de 51 ± 5 e 54 ± 8 foram associadas a índices cardíacos de 130 ± 19 mℓ/min/kg (cerca de 79% do normal)33 e 2,24 ± 0,64 ℓ/min/kg (cerca de 50% do normal),34 respectivamente. A pressão arterial média foi mantida melhorando-se a resistência vascular sistêmica. Em ambos os relatos, houve evidência de aumento da extração tecidual de oxigênio, mas em nenhum relato houve evidência de hipoxia tecidual. Causas comuns de bradicardia que não respondem ao tratamento farmacológico são hipotermia grave, anormalidades da condução cardíaca e hipoxemia miocárdica grave. Na maioria dos casos, o tratamento envolve a administração de um anticolinérgico e/ou um simpaticomimético, embora se deva procurar uma causa subjacente.

Tabela 4.2 Causas potenciais de taquicardia. Agentes anestésicos

Agonistas do receptor adrenérgico α2, agonistas opioides, sobredose de qualquer anestésico

Aumento do tônus vagal

Tubo endotraqueal, nocicepção abdominal, tração sobre músculos oculares, pressão arterial alta

Metabólicas

Hipotermia, hipoxemia em estágio terminal, hiperpotassemia

Cardiopatia

Síndrome do seio sinusal, distúrbio da condução A-V

Tabela 4.3 Causas potenciais de bradicardia. Nível leve de anestesia

Resposta nociceptiva durante a cirurgia, despertar ante impulso sensorial

Fármacos

Cetamina, parassimpaticolíticos, simpatomiméticos

Metabólicas

Hipovolemia, hipoxemia, hipercapnia, hipertermia, dor pós-operatória

Cardiopatia

Feocromocitoma, hipertireoidismo, taquicardia supraventricular, taquicardia ventricular

Em pessoas, a taquicardia sinusal é muito temida por causa de cononariopatia, porque o aumento do consumo miocárdico de oxigênio pode exceder uma capacidade limitada de liberar oxigênio. Em animais, a principal preocupação é como a taquicardia pode impactar o preenchimento diastólico e se está associada a arritmias ventriculares. Como no caso da bradicardia, não se sabe exatamente quando tratar a taquicardia. Em cães, tem-se usado uma frequência aproximada de 240 batimentos (por 2 a 3 semanas) como modelo para induzir insuficiência cardíaca, mas isso dificilmente serve como guia para a taquicardia durante a anestesia. A intervenção conservadora leva a níveis (estimados como cerca de 20% acima do parâmetro normal alto) que podem ser > 150 em cães de grande porte, > 190 em cães menores, > 260 em gatos, > 55 em equinos e > 110 em pequenos ruminantes. Certamente, a taquicardia deve ser tratada quando associada a qualquer evidência de débito cardíaco, pressão arterial ou perfusão tecidual insuficientes. É preciso cuidado para determinar se a taquicardia é a causa primária de problemas hemodinâmicos ou compensação de algum outro subjacente (p. ex., elevação da frequência cardíaca para compensar perda sanguínea aguda). O tratamento da taquicardia para normalizar a frequência cardíaca pode causar descompensação cardiovascular rápida se a taquicardia for, de fato, compensatória. O tratamento tem de envolver a identificação e a correção do distúrbio subjacente; β-bloqueadores raramente estão indicados. As causas de taquicardias supraventricular e ventricular estão relacionadas na Tabela

4.4. As preocupações e os níveis que levam ao tratamento da taquicardia supraventricular são semelhantes aos relativos à taquicardia sinusal. As arritmias ventriculares são diferentes, pelo fato de que o tratamento cai em duas categorias: (1) se houver alguma evidência de comprometimento do fluxo sanguíneo (débito cardíaco, pressão arterial ou perfusão tecidual) ou (2) se houver alguma preocupação de que possa ocorrer prosseguimento para fibrilação ventricular. Os critérios para a última incluem: (1) uma frequência instantânea > 180 a 200 bpm (se houver períodos de taquicardia paroxística, calcula-se a frequência cardíaca instantânea como se o paroxismo perdurasse 1 minuto inteiro), (2) agravamento de uma arritmia (aumento do número de batimentos ou multiformidade) ou (3) R sobre T (o complexo ectópico sobrepõe-se à onda T da despolarização precedente; um tempo vulnerável para estimular a fibrilação ventricular). Se houver um período isoelétrico entre os dois complexos QRST, não haverá R sobre T; se a última onda seguir para a próxima sem um período isoelétrico (até mesmo um), pode haver R sobre T e a condição requer tratamento. Tabela 4.4 Causas potenciais de arritmias. Supraventriculares

Ver taquicardia

Dilatação atrial, miocardite

Cardiopatias Ventriculares

Ver taquicardia Cardiopatias

MCD,a MCH,a miocardite

Iatrogênicas

Cateteres intracardíacos, tubos torácicos

Metabólicas

Anestésicos

Outras

Traumatismo torácico e não torácico, doença visceral (DVGa), hiperpotassemia, hipopotassemia Tiopental, halotano, agonistas do receptor adrenérgico α2 Elevação da pressão intracraniana, hipoxia cerebral, toxicidade digitálica

a

MCD, miocardiopatia dilatada; MCH, miocardiopatia hipertrófica; DVG, dilatação/vólvulo gástrico.

■ Pressão arterial A pressão arterial é hidrostática, em comparação com a atmosférica, e determinada pelo

volume sanguíneo e pelo tônus da parede do compartimento arterial. O volume de sangue intra-arterial é o equilíbrio entre o influxo (débito cardíaco) e o efluxo (ejeção diastólica). O débito cardíaco é o produto do volume sistólico e da frequência cardíaca, enquanto a ejeção diastólica é determinada pelo tônus vasomotor. A pressão sistólica é a pressão arterial mais alta de cada ciclo cardíaco, sendo determinada primariamente pelo volume sistólico e pela complacência do sistema arterial. A pressão diastólica é a mais baixa antes do próximo batimento cardíaco e é determinada primariamente pela frequência da ejeção diastólica (tônus vasomotor) e pela frequência cardíaca. A pressão média corresponde à média da área sob a onda de pressão de pulso, não a média aritmética das pressões sistólica e diastólica medidas. As medidas das pressões sistólica, diastólica e média em cães e gatos normais são variáveis, dependendo do nível de estresse, da posição do corpo e da técnica de medida, mas são aproximadamente de 100 a 160, 60 a 100 e 80 a 120 mmHg, respectivamente.35–39 Equinos, caprinos e ovinos têm valores um pouco menores: 90 a 130, 60 a 90 e 70 a 110, respectivamente. Quando a pressão arterial cai muito, a perfusão cerebral e a coronariana ficam comprometidas. Em geral, é motivo de preocupação em relação à hipotensão excessiva quando a pressão arterial média cai abaixo de 60 mmHg ou a sistólica cai para menos de cerca de 80 mmHg, em qualquer espécie. Em situações ideais, a pressão arterial média deve ser mantida acima de 80 mmHg e a sistólica acima de 100 mmHg. A hipotensão pode ser causada por hipovolemia, baixo débito cardíaco ou vasodilatação (Tabela 4.5). A hipertensão aguda grave, mesmo que possa ser transitória, pode causar edema e hemorragia em qualquer local do corpo, mas o cérebro e os pulmões são os órgãos que mais preocupam nesse sentido. A hipertensão mantida pode gerar situações de alta póscarga cardíaca, retinopatia ocular ou coroidopatia e descolamento da retina, além de eventualmente doença renal. A hipertensão aguda persistente costuma ser preocupante quando a pressão arterial média ultrapassa 140 mmHg ou a sistólica excede 180 mmHg, ou, no caso de hipertensão crônica, quando a média excede 120 mmHg e a sistólica, 160 mmHg.39 Esses valores são meramente sugestivos; as decisões acerca do tratamento baseiam-se em uma variedade de fatores: (1) a confiabilidade e a possibilidade de se repetir a medida, (2) o estágio do procedimento operatório (em geral, os pacientes têm hipotensão transitória imediatamente após a indução anestésica, mas isso costuma se resolver sem tratamento específico; a hipotensão no final do procedimento se corrige sozinha, à medida que os efeitos de anestésicos inalatórios terminam), (3) a natureza persistente e a magnitude da hipotensão e (4) as consequências adversas potenciais do tratamento proposto. Deve-se ter toda a cautela com o fato de o tratamento desencadear valores de pressão relacionados com processos mórbidos (fisiopatológicos) concomitantes. Em geral, a hipertensão é atribuída à vasoconstrição (Tabela 4.6).

Tabela 4.5 Causas potenciais de hipotensão. Baixo retorno venoso

Má função diastólica

Má função sistólica

Ineficiência sistólica

Hipovolemia secundária a desidratação preexistente, perda sanguínea, exsudação de plasma no local cirúrgico, VPP,a síndrome do compartimento abdominal MCH,a tamponamento pericárdico, taquicardia excessiva MCD,a efeito inotrópico negativo de anestésicos, bloqueadores do receptor β, bloqueadores do canal de cálcio, antiarrítmicos Arritmias ventriculares, insuficiência da válvula atrioventricular, obstrução do trato de saída (efluxo)

Bradicardia

Tabela 4.2

Baixa RVSa

Vasodilatação secundária a anestésicos, persistência do canal arterial, sepse

a

VPP, ventilação com pressão positiva; MCH, micardiopatia hipertrófica; MCD, miocardiopatia dilatada; RVS, resistência

vascular sistêmica. Pode-se medir a pressão arterial indiretamente com um esfigmomanômetro ou diretamente via cateter arterial. Algumas metodologias medem/registram todas as três pressões arteriais (sistólica, diastólica e média), enquanto outras medem apenas a sistólica. Das três pressões, a média é fisiologicamente a mais importante para o anestesista, pois representa a pressão média da corrente acima para a perfusão tecidual e a pós-carga média do coração. Quando um dispositivo mede todas as três pressões, o clínico deve focar em primeiro lugar a pressão média. Às vezes, por exemplo, especialmente durante medidas diretas da pressão arterial, as sistólicas serão altas, enquanto a média estará dentro da variação normal (ver a discussão sobre frequência de resposta na seção intitulada Medida direta da pressão arterial). Deve-se definir um paciente assim como normotenso por causa da pressão média, apesar da leitura alta da pressão sistólica. Medida indireta da pressão arterial Pode-se medir indiretamente a pressão arterial com um esfigmomanômetro, o que envolve a aplicação de um manguito oclusivo sobre uma artéria em um apêndice corporal cilíndrico. Em animais, é comum usar um membro anterior ou um posterior ou a cauda. A largura do manguito deve corresponder a 30 a 40% da circunferência do apêndice. Isso proporciona alguma consistência quanto à aplicação de pressão do manguito no tecido subjacente. Manguitos muito estreitos tendem a hiperestimar a pressão, enquanto os muito

largos tendem a subestimá-la.40 O manguito deve ser colocado justo, mas não apertado, em torno de uma perna, por exemplo. Se ficar muito apertado, a medida da pressão será erroneamente baixa, porque o próprio manguito, agindo como um torniquete, irá ocluir parcialmente a artéria subjacente. Se o manguito ficar muito frouxo, a medida da pressão será erroneamente alta, porque será necessária uma compressão excessiva do manguito para ocluir a artéria subjacente. As sutilezas quanto à largura do manguito com relação ao tamanho do apêndice, à aplicação do manguito, à maneira como ele exerce pressão nos tecidos subjacentes e à localização das artérias inevitavelmente levam a variação e inexatidão de medidas com o esfigmomanômetro. Durante a medida, a insuflação do manguito exerce pressão sobre os tecidos subjacentes e oclui totalmente o fluxo sanguíneo quando a pressão do manguito excede a pressão sistólica. À medida que a pressão do manguito diminui gradualmente, o sangue começa a fluir de modo intermitente quando a pressão do manguito cai abaixo da sistólica. Deve-se reduzir a pressão do manguito lentamente, em especial quando as frequências cardíacas são lentas, para não se perder o evento sistólico mais alto. À medida que se desinfla o manguito, podem ser observadas deflexões positivas da pressão do manguito a cada vez que a onda de pulso se choca com o manguito. A marca no manômetro de pressão em que essa oscilação positiva começa a ocorrer corresponde aproximadamente à pressão sistólica. As oscilações serão máximas na pressão arterial média e vão diminuir subitamente até a pressão diastólica estar próxima. Tabela 4.6 Causas potenciais de hipertensão. Nível leve de anestesia, fármacos simpatomiméticos, insuficiência renal, doença de Cushing, Vasoconstrição

hipertireoidismo, feocromocitoma Elevação da pressão intracraniana

À medida que a pressão no manguito diminui abaixo da sistólica, o sangue começa a fluir intermitentemente após o manguito. O fluxo distal ao manguito pode ser palpado com os dedos ou, se o vaso for muito grande, auscultado (sons de Korotkoff). A pressão do manguito em que o primeiro pulso é palpável ou o som auscultado ocorre é próxima da pressão sistólica. A diminuição súbita de sons é próxima da pressão diastólica. Podem ser usados estetoscópios com amplificador nas artérias menores de animais. A instrumentação com o ultrassom Doppler envolve a aplicação de um par de pequenos cristais piezoelétricos de ultrassom sobre uma artéria distal ao manguito. Um dos cristais piezoelétricos transmite a energia do ultrassom para o tecido. O sinal ultrassônico sofre um desvio de fase pelo movimento dos tecidos subjacentes (desvio Doppler) e é transmitido de

volta para o cristal receptor. A alteração na frequência entre o sinal transmitido e o recebido é detectada e transformada eletronicamente em um sinal audível. A pressão do manguito em que os primeiros sons fluidos audíveis são ouvidos é próxima da pressão sistólica. Esse instrumento não pode medir a pressão diastólica. Às vezes, um som secundário seguirá de perto o som primário conforme a pressão do manguito diminuir ainda mais (um som de fluxo sanguíneo duplo associado a cada batimento cardíaco). Isso ocorre quando a pressão do manguito está na incisura dicrótica da onda da pressão de pulso. A elevação transitória subsequente na pressão arterial excede a pressão do manguito e o fluxo retorna transitoriamente. A pressão do manguito em que isso ocorre não é a diastólica e não deve ser registrada como tal. Outros instrumentos Doppler geram sinais do movimento da parede arterial e podem ser usados para medir tanto a pressão sistólica como a diastólica. A oscilometria é um método popular de medida indireta da pressão arterial por ser fácil de usar, pois requer apenas a colocação do manguito de oclusão. O instrumento insufla e desinfla automaticamente o manguito (o momento das medidas é ajustado pelo operador). O oscilômetro analisa a flutuação da pressão dentro do manguito à medida que ele é desinflado lentamente. As pressões sistólica e diastólica são medidas no primeiro e no último pulso associados a flutuações na pressão do manguito e a pressão média é lida como a pressão no manguito em que ocorrem as oscilações máximas de pressão. As pressões arteriais sistólica, diastólica e média mais a frequência cardíaca são, então, exibidas. O tamanho pequeno de vasos (devido ao próprio tamanho ou à vasoconstrição) e o movimento podem interferir nas medidas. Há múltiplas diretrizes para validar a acurácia e a possibilidade de repetição (precisão) da instrumentação para medir a pressão arterial;41 as últimas são da European Society for Hipertension International Protocol Version 2 (ESH-IP2).42 Os protocolos, em sua totalidade, contêm um número razoável de exigências para testes e análise, mas em seu conteúdo requerem um certo nível de acurácia, em comparação com algum padrão de excelência (geralmente a medida direta da pressão arterial). O protocolo ESH-IP2, na parte da fase 1, requer que o instrumento em teste meça dentro de 5 mmHg 73% do período, com 10 mmHg 87% do período e dentro de 15 mmHg 96% do período (quaisquer dois dos três) ou dentro de 5 mmHg 65% do período, 10 mmHg 81% do período e 15 mmHg 93% do período (todos os três), com um espectro cruzado de indivíduos normotensos, hipertensos e hipotensos. Os padrões veterinários publicados sugerem que o instrumento em teste deva medir dentro de 10 mmHg do instrumento de referência > 50% do período e dentro de 20 mmHg > 80% do período.39 As técnicas de medida indireta da pressão arterial exibem precisão e acurácia variáveis, mas fornecem um marcador razoavelmente substituto das medidas diretas de pressão média

em seres humanos,43–45 cães,38,46–50 gatos,51–53 coelhos54 e potros.55 As técnicas não invasivas tendem a subestimar a pressão sistólica,43,45–48,52,56,57 hiperestimar a pressão arterial em pacientes hipotensos43,45,48,49,57 e exibir maior variabilidade em comparação com a medida direta da pressão arterial.48,52,53,58–61 Alguns estudos relatam uma correlação fraca entre as medidas indireta e direta da pressão arterial.48,50,52,59 Ensaios comparativos testam tanto os instrumentos como os aspectos técnicos associados ao uso daquele sistema medido. Quando os resultados não estão de acordo (ou quando estão), não é possível saber se a falha é do instrumento do teste ou do instrumento de referência, com questões metodológicas como a colocação do manguito para métodos não invasivos,55 frequência/amortecimento com métodos invasivos ou a pressão específica comparada (sistólica, diastólica ou média). Medida direta da pressão arterial A medida direta da pressão arterial por meio de um cateter arterial é mais contínua e menos variável que com os métodos indiretos. As artérias comumente usadas são a dorsal do metatarso, a radial ou a do carpo, a coccígea, a lingual, a femoral e a auricular em cães e gatos, a facial e a do metatarso em equinos, e as auriculares em ruminantes e suínos. Os tecidos subcutâneos em torno de artérias periféricas são relativamente apertados e a formação de hematoma no momento da remoção do cateter raramente é um problema (em comparação com a artéria femoral, a lingual ou a carótida). Gatos têm alguns problemas exclusivos da espécie: (1) suas artérias são pequenas para o cateterismo percutâneo, exigindo alguma habilidade; (2) as artérias logo entram em constrição com o corte abaixo delas e a manipulação; e (3) a circulação colateral é esparsa; a colocação de cateteres na artéria femoral ou na do metatarso pode estar associada à isquemia podálica se a circulação colateral adequada não estiver disponível (deve-se remover o cateter ao primeiro sinal de resfriamento). A permeabilidade do cateter é preservada por sua irrigação intermitente e frequente ou contínua com solução fisiológica heparinizada em baixo fluxo e sob alta pressão (1.000 U por 500 mℓ). Normalmente, a pressão arterial oscila e, durante uma fase relativamente mais alta, o sangue irá empurrar o coágulo na direção da ponta do cateter, caso não se tome cuidado para evitar isso. Há dispositivos improvisados que podem ser usados para medir a pressão arterial média, porém a maioria das pessoas prefere os medidores comerciais disponíveis porque são mais fáceis de usar. O dispositivo de medida deve simplesmente ser um conjunto longo para administração de líquido, suspenso em algum local alto (uma pressão arterial média de 140 mmHg equivale a uma coluna de água de 186 cm) (Figura 4.2). O dispositivo de medição também pode ser um sistema de manômetro aneroide (Figura 4.3). O cateter arterial também pode ser acoplado a um transdutor comercial e fisiógrafo.

O transdutor deve ser zerado periodicamente conforme a pressão atmosférica. Fecha-se a saída de uma torneira (em geral a que fica mais próxima do transdutor) para o paciente e abre-se aquela entre o transdutor e a atmosfera, enquanto se pressiona a opção ‘zero’ no monitor. A torneira que é aberta para o processo de zeragem tem de estar no nível de referência do coração para que a acurácia seja mantida. Embora seja uma prática comum posicionar o transdutor também no nível do coração, isso não é absolutamente necessário com os monitores modernos, se a torneira estiver localizada afastada do transdutor. Os monitores compensam internamente diferenças verticais entre o paciente e o transdutor com a ‘pressão equilibrada’. Uma vez zerado, a altura relativa do transdutor não pode ser mudada sem zerá-lo novamente. Nos monitores antigos, sem essa característica de equilíbrio (balanceamento), o transdutor e a torneira de zeragem têm de ser colocados no nível do coração. Pode-se verificar a acurácia do transdutor com um manômetro de mercúrio, embora normalmente não seja necessário nos sistemas usados para monitoramento clínico.

Figura 4.2 Manômetro de coluna para medir a pressão venosa central ou arterial. O procedimento para medir a pressão é o seguinte: (1) fechar a parte da torneira de três vias que vai para paciente; (2) injetar líquido no tubo até um nível bem acima daquele em que está o paciente; (3) abrir a torneira de três vias entre o paciente e a coluna de líquido, permitindo que o líquido desça por ação da gravidade para o paciente (nunca deixar a pressão arterial do paciente encher a coluna de líquido, porque isso formaria um coágulo no cateter); (4) medir a altura média equilibrada da coluna de líquido; (5) ajustar as unidades

para mmHg (mmHg = 0,736 × cmH2O). Oscilações da pressão arterial formam coágulos no cateter entre as mensurações. Há três maneiras para evitar esse problema: fechar a torneira na via que vai para o paciente, irrigar com frequência o cateter ou inserir um dispositivo de infusão contínua em baixo volume.

Figura 4.3 Sistema de manômetro aneroide para medida da pressão arterial. A tubulação cheia de líquido é sempre carregada com líquido estéril. O tubo cheio de ar nunca contém líquido (manômetros aneroides não toleram bem muita umidade; se surgir líquido no tubo, deve-se substituí-lo). O meio do tubo conterá ar ou líquido alternadamente. Para medir a pressão: (1) fechar a saída para o paciente da torneira no 1 e aquela para o manômetro aneroide da torneira no 2; (2) expelir todo o líquido da mistura de ar e líquido, na parte média do tubo, que ficou da medida prévia, injetando ar com a seringa no 2 através da torneira no 1 (não injetar ar no paciente); (3) fechar a saída da torneira no 2 que vai para a seringa e injetar solução fisiológica com a seringa no 1 no tubo, na direção do manômetro aneroide, até a pressão registrada estar bem acima da pressão arterial média do paciente; (4) fechar a saída da torneira no 1 para a seringa, permitindo que a solução fisiológica flua para o paciente a partir da alta pressão dentro do tubo; (5) a pressão equilibrada representa a pressão arterial média do paciente. O manômetro aneroide pode estar em qualquer nível com relação ao paciente, desde que o menisco do líquido no tubo esteja em um nível de referência fixo (como o coração). A agulha pode oscilar a cada batimento cardíaco, mas isso não representa a pressão sistólica ou diastólica, porque há muita inércia no sistema. A agulha também pode oscilar com a ventilação, razão pela qual se faz a medida entre respirações. Todas as manobras têm de ser realizadas de maneira estéril.

A extensão do tubo entre o cateter e o transdutor deve ser a mais curta possível, para ter praticidade, e ser constituída por um tubo de plástico não expansível (de baixa complacência, ao contrário dos conjuntos regulares para líquidos intravenosos) para

minimizar os sinais de amortecimento. A fidelidade da reprodução da onda da pressão de pulso por um sistema de medição cheio de líquido é o resultado de uma interação complexa entre a frequência de resposta do cateter e o sistema de medição, bem como de fatores do paciente, como a frequência cardíaca e o vigor sistólico. A frequência de resposta do sistema de medição é determinada por dois parâmetros importantes: sua frequência de ressonância (a frequência de oscilação do sistema em resposta a uma alteração na pressão) e seu coeficiente de amortecimento (a frequência em que as oscilações ficam em repouso após a alteração na pressão).43,62 Em geral, cateteres menores, tubos mais longos e complacentes e coágulos sanguíneos ou bolhas de ar amortecem um sinal. Um sinal superamortecido resulta em um traçado plano ou achatado (as pressões sistólicas são mais baixas que na realidade e as diastólicas são mais altas) (Figura 4.4). Se isso ocorre, deve-se verificar se há vazamentos no sistema de medição, dobras, coágulos ou bolhas de ar. Se isso não fixar o amortecimento, deve-se substituir o tubo por um mais curto ou menos complacente. Um cateter menor diminuiria o superamortecimento, mas, em geral, o tamanho do cateter é limitado pelo do paciente. Ocorre subamortecimento quando a frequência de resposta do sistema de medição é similar à da fonte da onda da pressão de pulso. A onda registrada será exagerada – a pressão sistólica será mais alta que na realidade e exibirá um aspecto ‘espiculado’ (Figura 4.4). A pressão sistólica exibida pode parecer não razoavelmente mais alta que a média. A diastólica também será erroneamente baixa e oscilações agudas na pressão podem sobrepujar a descida normalmente suave da onda da pressão de pulso (Figura 4.4). Se ocorrer subamortecimento, deve-se alterar alguma coisa no sistema de medição: eliminar dobras, remover coágulos ou bolhas de ar, acrescentar uma bolha de ar, trocar o tubo por um mais longo ou mais curto, mais ou menos complacente. A maioria dos transdutores e sistemas comerciais de monitoramento causa amortecimento. É possível alterar a pressão sistólica modificando-se as características do sistema de medição. Com finalidades clínicas, isso em geral não preocupa muito, pois o monitoramento e as decisões terapêuticas enfatizam a pressão média. Isso pode ser problemático em estudos que comparam as técnicas de medição indireta da pressão arterial (geralmente considerada o padrão de excelência). Pode-se avaliar a resposta de frequência do sistema de medição pelo teste de resposta dinâmica à pressão (Figura 4.5). Isso envolve a liberação súbita de pressão no sistema de medição, tal como é feito irrigando-se o cateter com um dispositivo de irrigação contínua e observando-se o padrão de oscilação à medida que a pressão retorna ao nível basal. Durante o procedimento de irrigação, a pressão registrada iguala-se à da bolsa (em geral > 300 mmHg). Quando o procedimento de irrigação termina abruptamente, a pressão deve retornar ao nível basal após cerca de 1 a 2 oscilações negativas e 1 a 2 oscilações positivas (Figura 4.5).43,62 A propriedade da resposta de frequência do sistema de medição de

determinando paciente é determinada por uma combinação da frequência ressonante e do amortecimento (Figura 4.6).

Figura 4.4 Ondas da pressão arterial do pulso normal, superamortecida e subamortecida.

■ Pré-carga cardíaca Define-se pré-carga in vitro como um estiramento muscular antes da contração do músculo. In vivo é definida pela seguinte fórmula: estiramento = (pressão ventricular × espessura da parede ventricular)/diâmetro ventricular. Tais parâmetros podem ser medidos clinicamente (ver discussão adiante sobre métodos para avaliar a contratilidade fundamentados no ultrassom Doppler), mas, em geral, não são. Presume-se que a pré-carga seria proporcional ao volume ventricular telediastólico (outro parâmetro que não costuma ser medido clinicamente). Por isso, a primeira aproximação da pré-carga que é medida rotineiramente em pacientes clínicos é o diâmetro telediastólico pela ecocardiografia. Em cães normais, esse diâmetro relatado é de 1,44 × kg0,32 e, em gatos, de 1,5 ± 0,2 cm.63 Se houver possibilidade de fazer uma radiografia de tórax, o diâmetro da veia cava posterior (normalmente de cerca de 2,5 × a largura das costelas adjacentes) pode dar alguma ideia do volume sanguíneo venoso central. Em termos clínicos, a facilidade de distensão da veia jugular pode ser informativa; é provável que uma veia jugular que não ressalta muito à pressão digital na entrada torácica esteja associada a um volume venoso baixo, pressão venosa também baixa e hipovolemia; vice-versa na vigência de hipervolemia ou insuficiência cardíaca.64 A pressão venosa central é um marcador substituto distante e, muitas vezes, impreciso de pré-carga ventricular esquerda. Pressão venosa central A pressão venosa central (PVC) é a pressão luminal da veia cava intratorácica. A pressão venosa periférica é variavelmente mais alta que a PVC, está sujeita a influências estranhas e não é um indicador confiável da PVC.65,66 A última é determinada pela relação entre o volume sanguíneo central e o tônus venoso. Determina-se o volume sanguíneo central pelo

retorno venoso e pelo débito cardíaco. É possível averiguar se um cateter está bem colocado e sem obstrução observando-se pequenas flutuações no menisco do líquido na coluna do manômetro (Figura 4.2) ou mostrado no fisiógrafo, em sincronia com o batimento cardíaco e excursões sincrônicas maiores com a ventilação. Grandes flutuações sincrônicas com cada batimento esquerdo podem indicar que a extremidade do cateter está dentro do ventrículo direito. A observação direta da onda da PVC pode ajudar a identificar que a ponta do cateter está na localização apropriada (Figura 4.7). As medidas devem ser feitas durante a pausa da fase expiratória do ciclo respiratório (durante cada ventilação espontânea ou com pressão positiva), pois alterações na pressão pleural afetam a pressão luminal dentro da veia cava anterior. As medidas da PVC serão erroneamente altas se a ponta do cateter estiver posicionada no ventrículo direito ou houver insuficiência tricúspide significativa.

Figura 4.5 Resposta ao teste da pressão dinâmica para determinar a razão entre a frequência ressonante e a redução da amplitude de um sistema de medição. Aplica-se alta pressão ao sistema de medição conectado ao paciente (em geral com o dispositivo de

irrigação). Libera-se subitamente a pressão, observando-se oscilações na pressão à medida que ela retorna ao nível basal. Se o amortecimento do sistema for o ideal, a onda deve oscilar 1 a 2 deflexões negativas e 1 a 2 deflexões positivas antes de voltar ao nível basal. Com um sistema superamortecido, o retorno da onda ao nível basal é suave, porém lento. Já com um sistema subamortecido, a onda oscila mais que dois ciclos completos antes de retornar ao ní vel basal. Calcula-se a frequência ressonante como a duração de um ciclo completo (de um pico a outro ou de uma deflexão a outra). As frequências de ressonância típicas dos sistemas comuns de medição ficam entre 10 e 25 Hz (um ciclo completo em 0,04 a 0,1 s).43,62 A frequência ideal de ressonância de um sistema de medição depende da frequência cardíaca e do vigor sistólico. Recomenda-se que a frequência ressonante seja 6 a 10 vezes a cardíaca (6 a 10 Hz para uma frequência cardíaca de 60 bpm, 12 a 20 Hz para uma frequência cardíaca de 120 bpm, 18 a 30 Hz para uma frequência cardíaca de 180 bpm e 24 a 40 Hz para uma frequência cardíaca de 240 bpm).43 A razão da redução da amplitude é a altura de qualquer meio ciclo completo (de um pico a outro ou de uma deflexão a outra) dividida pela altura do meio ciclo prévio. Os valores típicos são de 0,2 a 0,6.43,62 O ideal é que o sistema de medição tenha uma frequência ressonante alta e uma razão baixa de redução da amplitude (0,1 a 0,4).

Figura 4.6 Razão de redução da frequência de ressonância em sistemas de monitoramento. As combinações de taxas de frequência ressonante e redução da amplitude abaixo da linha ‘aceitável’ (tracejada) no quadrante inferior esquerdo do gráfico representam

subamortecimento, enquanto combinações acima da linha ‘aceitável’ (tracejada) no canto superior esquerdo representam superamortecimento. A maioria dos sistemas de monitoramento é subamortecida. Redesenhada a partir dos gráficos publicados do coeficiente da razão entre a frequência ressonante e a redução da amplitude com relação ao amortecimento.43,62

A PVC normal em cães e gatos é de aproximadamente 0 a 10 cmH2O. Em equinos em decúbito lateral, há relatos de 15 a 25 cmH2O67,68 e, naqueles em decúbito dorsal ou em estação, de 5 a 10 cmH2O.67,69 Quando não se dispõe de um cateter para pressão venosa central em equinos, é possível usar as pressões venosas jugulares como marcador substituto da PVC.68 Em geral, a PVC é usada como marcador do volume sanguíneo circulante, ainda que, em si, não seja uma medida do volume da pré-carga (é uma medida de pressão da précarga). Valores de pressão abaixo dos parâmetros normais sugerem hipovolemia absoluta ou relativa e que o paciente pode beneficiar-se de uma dose de ataque rápida de líquidos. Valores acima dos parâmetros indicam hipervolemia absoluta ou relativa e que, talvez, seja melhor interromper o tratamento com líquidos. Usa-se a pressão venosa central como uma medida da relação entre o volume sanguíneo, enquanto a capacidade volumétrica é utilizada para ajudar a determinar o ponto terminal de uma reanimação aguda com grande volume de líquido. As medidas da PVC também podem servir para rastrear a eliminação aguda de volume, como no caso de perda sanguínea aguda ou vasodilatação induzida por anestésico. A PVC não é adequada para o monitoramento diário do equilíbrio hídrico, por ser uma medida da relação entre volume sanguíneo central e tônus venoso, além de não se poder ‘ver’ se o compartimento de líquido intersticial está sub ou sobrecarregado. Em termos gerais, ela é um previsor fraco do volume sistólico ou do débito cardíaco.70 As medidas iniciais da PVC, em geral, não são profundamente baixas nem altas, sendo difícil interpretá-las isoladas da anamnese e de outras variáveis cardiovasculares.71 No entanto, a resposta ao tratamento geralmente pode ser muito informativa. A medida de uma PVC decrescente em resposta à terapia hídrica sugere venodilatação e é a maneira do sistema cardiovascular de dizer ‘obrigado pelos líquidos e, por favor, pode infundir mais algum’; então, continua-se com a administração de líquido até que a PVC siga todo o caminho para baixo e de volta mais uma vez para um valor normal alto. Uma PVC em ascensão rápida em resposta à terapia hídrica sugere intolerância cardíaca à carga de líquido e que a administração deve cessar. A pressão venosa central é uma medida da capacidade do coração de bombear o volume do retorno venoso e deve ser medida sempre que houver possibilidade de insuficiência cardíaca. Pressão média de preenchimento sistêmico Como a pressão venosa central é fortemente influenciada pelo tônus venomotor e pela

pressão pleural, é notoriamente um previsor fraco das condições de volume.72 Contudo, como o retorno venoso é crítico para o débito cardíaco,73 há um esforço contínuo para encontrar meios para caracterizar o volume circulante funcional, a relação entre o volume sanguíneo e a capacidade volumétrica, no intuito de ajudar a tomar as decisões relativas à terapia hídrica. A medida do volume sanguíneo deve dar alguma informação, mas é insuficiente para caracterizar o estado funcional da relação, pois o tônus vascular e a capacidade volumétrica podem ser consideravelmente variáveis. A pressão média de preenchimento sistêmico (Pmes), literalmente, é a pressão equilibrada em todo o sistema após uma parada cardíaca (em geral, cerca de 10 a 15 mmHg) e também é muito semelhante à pressão venosa pós-capilar em um animal com batimentos cardíacos.73 Na equação, é P1.

Figura 4.7 Traçado da pressão venosa central. A onda A representa a contração atrial e ocorre após a onda P no ECG, antes do começo do complexo QRS. A descida X é a queda da pressão associada ao relaxamento atrial. A onda C, que pode ser observada ou não, é a onda refletida e protrusa da subida da válvula A-V no átrio, associada à contração ventricular.

A ascensão na pressão após a descida X e antes da onda V é a elevação na pressão atrial associada ao retorno venoso durante o tempo de contração ventricular (com a válvula A-V fechada). A onda V não é um evento cardíaco, e sim o platô do preenchimento atrial. A descida Y assinala o relaxamento ventricular e a queda na pressão atrial à medida que as válvulas A-V se abrem e o sangue flui para o ventrículo. A elevação da pressão entre a descida Y e a próxima onda A corresponde ao preenchimento atrial e ventricular antes da próxima contração atrial. A regurgitação mitral irá obliterar a descida X – a onda C para a onda V vai tornar-se uma onda positiva. Se o cateter tiver sido colocado inadvertidamente no ventrículo, o traçado será aquele típico de pressão ventricular.

Fluxo = (P1 − P2)/R em que R é a resistência ao fluxo, que pode ser reescrita como Retorno venoso = (Pmes − PVC)/resistência venosa Um venoconstritor como a norepinefrina ou a fenilefrina, por exemplo, pode aumentar o retorno venoso ao aumentar a Pmes, ou diminuir o retorno venoso ao aumentar a resistência venosa. Estudos relataram tanto aumento74–77 como diminuição77,78 do débito cardíaco com a administração de norepinefrina. Logo após uma parada cardíaca, a determinação da Pmes é crítica ou pode haver complicações nos pacientes anestesiados. Um método envolve uma série de manobras inspiratórias mantidas em pressões das vias respiratórias de 5, 15, 25 e 35 cmH2O, junto com medidas simultâneas da PVC e do débito cardíaco.79,80 Os dados apontados pela PVC e pelo débito cardíaco são colocados em um gráfico e extrapolados de volta para um débito cardíaco de zero para extrapolar a Pmes. Um segundo método envolve modelagem matemática e dados derivados de seres humanos.80 O terceiro, que seria fácil em contextos veterinários rotineiros, baseia-se na suposição de que o sistema venoso apendicular comporta-se de maneira similar à observada no sistema venoso sistêmico.80 Nessa técnica, aplica-se um torniquete de insuflação rápida (para interromper o fluxo) em um dos membros no qual tenha sido colocado antes um cateter arterial ou venoso, que é conectado a um dispositivo medidor da pressão. Após cerca de 20 a 30 s, as pressões arterial e venosa serão equilibradas e essa pressão é medida para representar a Pmes.80–82 Relatos iniciais sugerem que as estimativas da Pmes por essa abordagem geram valores que não são diferentes dos gerados pelo primeiro procedimento, mais complicado.80 A pressão média de preenchimento sistêmico tem sido usada para caracterizar o estado funcional do volume sanguíneo circulante e identificar pacientes hipovolêmicos que se beneficiariam da terapia hídrica.79 Também poderia ser usada para apontar quais pacientes seriam propensos a um aumento no débito cardíaco com a administração de norepinefrina

(indivíduos com a Pmes mais alta).77 A partir de uma perspectiva de pesquisa, é possível usar as medições do retorno venoso (supondo-se que seja igual ao débito cardíaco), da Pmes e da PVC para calcular a resistência venosa; a complacência sistêmica pode ser calculada a partir de uma carga de volume conhecida e de medidas antes e após a Pmes. Avaliação de comprometimento do fluxo sanguíneo torácico Uma estimativa funcional da Pmes e do volume sanguíneo circulante pode ser derivada do fato de que a ventilação com pressão positiva impede o retorno venoso intratorácico, o preenchimento diastólico do coração e o volume sistólico. Pode-se usar a magnitude do decréscimo no volume sistólico causado pela insuflação pulmonar com pressão positiva como um índice do volume sanguíneo central.83–90 A magnitude da queda no volume sistólico pode ser avaliada pela diminuição (1) na pressão arterial sistólica, (2) na pressão arterial média, (3) na pressão de pulso (sistólica e diastólica), (4) pela avaliação digital da qualidade do pulso (a área sob a onda da pressão de pulso), ou (5) pelo monitoramento pletismográfica da área sob a onda da pressão de pulso, causada pela insuflação pulmonar. A variação no volume sistólico conforme medido pelo sistema VigileoTM/FloTracTM (Edwards Lifesciences, Irvine, CA, EUA) foi capaz de predizer com confiabilidade a ocorrência de hipovolemia e resposta ao tratamento com líquido,91 enquanto o dispositivo PRAM/MostCare™ (Vytech Health, Pádua, Itália) não foi.92 Evidentemente, a magnitude do comprometimento do fluxo sanguíneo torácico depende da pressão máxima na via respiratória, do período inspiratório e da frequência do ciclo,93 e isso teria de ser consistente e padronizado para que essa manobra tivesse algum significado com referência ao volume sanguíneo circulante. Esse procedimento também só se presta no caso de pacientes com pulmões normais e o tórax fechado. A doença pulmonar difusa diminui a complacência pulmonar, que diminui a transferência de pressão das vias respiratórias para o espaço pleural, que diminui a magnitude do comprometimento do fluxo sanguíneo torácico para um determinado contexto de pressão do ventilador. Há relatos de que decrementos de mais de 10 a 13% (com contextos ‘razoáveis’ do ventilador em indivíduos com pulmões normais) na área sob a onda de pressão de pulso serviram para prever hipovolemia e resposta ao bolus de líquido.92,94

■ Volume sistólico Pode-se estimar o volume sistólico pela ultrassonografia Doppler por vários métodos. (1) São calculados o diâmetro ventricular telediastólico (DTD), o diâmetro ventricular telessistólico (DTS) e os volumes telediastólico (VTD) e telessistólico (VTS). (2) O volume sistólico pode ser calculado medindo-se a velocidade do fluxo através de uma estrutura (em geral a válvula aórtica) de diâmetro conhecido. (3) O volume sistólico

também pode ser determinado pela tomografia computadorizada (TC)98 e pela ressonância magnética (RM), mas estes recursos são primariamente de pesquisa em pacientes anestesiados. A área sob a onda da pressão de pulso tem alguma correlação com volume sistólico.94,100 Pode-se caracterizar qualitativamente a onda da pressão de pulso mediante compressão digital de uma artéria (em comparação com a normal); é provável que um pulso alto e largo (‘saltado’) esteja associado a um grande volume sistólico, enquanto um pulso curto e estreito (‘filiforme’) provavelmente está associado a um pequeno volume sistólico. A onda da pressão de pulso também pode ser integrada digitalmente em tempo real.101 Em determinada complacência arterial, há uma associação entre a alteração sob a onda da pressão de pulso e o volume sistólico, e isso é a base de várias medições comerciais do débito cardíaco (ver métodos do contorno do pulso na seção seguinte, Débito cardíaco). Quando a complacência ou a impedância muda, a relação quantitativa entre a onda da pressão de pulso e o volume sistólico muda. Dispositivos comerciais que medem e avaliam continuamente a onda da pressão de pulso subsequente, computando então o débito cardíaco, em geral requerem o reajuste intermitente da constante de computação (via o acréscimo de medidas independentes do débito cardíaco) para que haja alterações na complacência e na impedância de fluxo (em decorrência das ondas de pressão retrógradas refletidas) com o tempo.

■ Débito cardíaco Muitos parâmetros monitorados, como a pressão arterial, embora importantes por si mesmos, podem ter pouco a contribuir com relação ao fluxo anterógrado e à perfusão tecidual. Durante algum tempo, presumiu-se que a estimativa minimamente invasiva do débito cardíaco seria um acréscimo útil ao monitoramento anestésico. É válido notar que uma das deficiências dos indicadores globais de perfusão, inclusive o débito cardíaco e indicadores superficiais (MM colorido e CRT), é o fato de não refletirem necessariamente a realidade do fluxo sanguíneo orgânico. Há alterações normais e necessárias na distribuição regional do fluxo sanguíneo com a utilização local de oxigênio durante a anestesia e a sedação. Um exemplo é ante a administração do agonista do receptor adrenérgico α2, quando o débito cardíaco pode cair mais de 50%, mas o fluxo sanguíneo regional diminui muito mais na musculatura esquelética e no tecido adiposo que nos rins e no cérebro. O significado clínico de alterações no débito cardíaco deve sempre ser interpretado dentro do contexto (p. ex., paciente desperto com controle vasomotor normal versus cão sedado ou anestesiado com vasodilatação e constrição modificadas farmacologicamente). Há muitas maneiras de estimar o débito cardíaco, inclusive as técnicas de diluição indicadoras (termodiluição e diluição de lítio), as baseadas no princípio de Fick, as de análise do

contorno do pulso, a bioimpedância transtorácica e as ecocardiográficas.

■ Conteúdo, liberação e consumo de oxigênio O débito cardíaco é importante, mas é apenas metade dos determinantes da liberação global de oxigênio (DO2); a outra metade é o conteúdo de oxigênio, que pode ser medido, mas em geral é calculado como (1,34 × Hb × SO2) + (0,003 × PO2) em que Hb é a concentração de hemoglobina (g/dℓ), SO2 é a saturação de hemoglobina e PO2 é a pressão parcial de oxigênio no sangue (o conteúdo pode ser calculado no sangue arterial ou venoso). A DO2 é calculada como o débito cardíaco × o conteúdo de oxigênio, e é importante porque satisfaz a demanda tecidual de oxigênio. Os valores do débito cardíaco, da DO2 e do consumo de oxigênio (VO2) em cães normais foram relatados.102 Os valores representativos para outras espécies domésticas estão incluídos na Tabela 23.1. É comum (mas nem sempre) a anestesia diminuir o débito cardíaco e a DO2,103–107 da mesma forma que o consumo metabólico de oxigênio,103–105,107,108 mediante depressão direta e indireta (via hipotermia) da taxa metabólica, o que, em parte, anula o problema da diminuição da DO2. Além disso, quando a DO2 começa a diminuir, a extração de oxigênio aumenta e as necessidades teciduais de oxigênio continuam a ser satisfeitas (consumo de oxigênio independente da liberação). A extração de oxigênio costuma aumentar durante a anestesia geral.103–105 Por fim, é alcançado um ponto em que quedas adicionais na DO2 são associadas a reduções no VO2 e ao início de hipoxia tecidual (consumo de oxigênio dependente da liberação). O ponto em que há transição do consumo de oxigênio independente da liberação para dependente denomina-se ponto de liberação crítica de oxigênio. Alguém poderia pensar que a liberação crítica de oxigênio deve diminuir durante anestesia geral, como um resultado direto da diminuição no consumo metabólico de oxigênio, mas a liberação crítica de oxigênio aumenta com todos os anestésicos, de maneira relacionada com a dose, e ocorre em uma razão de extração mais baixa de oxigênio, sugerindo comprometimento da extração tecidual de oxigênio.104,105 Esse efeito sobre a liberação crítica de oxigênio foi atribuído à maneira pela qual os anestésicos alteram o fluxo sanguíneo periférico. A DO2 relatada em cães despertos normais foi de 29,5 ± 8,8 mℓ/min/kg (790 ± 259 mℓ/min/m2).102 Já em cães sob anestesia leve com pentobarbital, a liberação crítica de oxigênio relatada foi de 6,9 mℓ/min/kg, aumentando para 9 a 14 mℓ/min/kg com enfluorano, isofluorano, halotano, alfentanila, propofol, etomidato e doses mais altas de pentobarbital.104,105 A cetamina foi a exceção, por não ter aumentado significativamente a liberação crítica de oxigênio.

A partir da equação supracitada sobre o conteúdo de oxigênio, fica evidente que a concentração de hemoglobina desempenha um papel importante na determinação do conteúdo de oxigênio. Estejam anêmicos ou não os animais antes da indução de anestesia geral, as concentrações de hemoglobina invariavelmente diminuem no intraoperatório, em decorrência da dilatação dos vasos e esplênica induzida pelos anestésicos, pela administração de líquidos que não contêm hemoglobina e pela perda sanguínea intraoperatória. Antigamente, em seres humanos, o fator desencadeante de uma transfusão de hemoglobina era uma concentração de Hb de cerca de 10 g/dℓ [um hematócrito (Htc) de 30%].109 Estudos subsequentes em seres humanos sugeriram que um nível mais leve, de 7 g/dℓ (Htc de 21%), está associado a estatísticas pelo menos tão boas, e talvez melhores, de morbidade e mortalidade.109 Na medicina veterinária, os anestesiologistas antigamente usavam valores de hemoglobina de 7 a 8 g/dℓ (Htc de 20 a 25%) como desencadeantes para transfusão sanguínea. Em animais com anemia hemolítica imunomediada, é bem aceito adiar a transfusão até que a concentração de hemoglobina tenha caído para níveis muito baixos, aproximadamente 5 g/dℓ (Htc de 15%). Essa ideia é reforçada pela chance muito real de uma reação à transfusão e por suas consequências negativas. Na medicina humana, em indivíduos que relutam em fazer transfusões de sangue, a taxa de mortalidade não aumenta estatisticamente até que a concentração de hemoglobina caia abaixo de cerca de 5 g/dℓ(Htc de 15%).109 Há muitos exemplos de pacientes humanos e veterinários que sobrevivem a níveis muito maiores de anemia, em especial se ela for crônica. A concentração de hemoglobina e o conteúdo de oxigênio são apenas metade dos determinantes da DO2, e variações na capacidade do indivíduo de aumentar o débito cardíaco para compensar a anemia podem ser responsáveis por grande parte da variação na liberação crítica de oxigênio entre os pacientes. Animais com doenças anêmicas, mas sem comprometimento cardíaco (p. ex., anemia imunomediada), podem ser capazes de tolerar níveis de hemoglobina mais baixos aumentando o débito cardíaco, e aqueles com comprometimento da função cardíaca (p. ex., sepse) ou sob anestesia geral110,111 provavelmente se beneficiam de níveis desencadeadores mais altos para transfusão (Hb de 8 a 9 g/dℓ; Htc de 24 a 27%). Os níveis críticos relatados de hemoglobina em cães anestesiados ficam na variação de 3 a 4 g/dℓ;111 no entanto, isso não é uma diretriz, só um valor que se deve evitar.

■ Contratilidade miocárdica Anestesiologistas, intensivistas e fisiologistas estão preocupados com os efeitos de fármacos e doenças sobre a contratilidade inerente do miocárdio. Em geral, a contratilidade não é medida, mas suspeita-se que seja insatisfatória quando os parâmetros pré-carga (história de carga hídrica recente, facilidade de distensão da veia jugular, pressão venosa

central, diâmetro da veia cava posterior, volume ventricular telediastólico) sugerem que ela é alta e os parâmetros de fluxo anterógrado [pressão arterial, qualidade do pulso, parâmetros do pulso vasomotor (período de reperfusão capilar), mais os parâmetros da perfusão tecidual (temperatura dos membros, acidose metabólica, lactato, PO2 venosa central)] sugerem baixo débito cardíaco em animais sem cardiopatia conhecida (miocardiopatias, insuficiência mitral, estenose aórtica, tamponamento pericárdico ou fibrose pericárdica). A contratilidade é a taxa intrínseca e a força de encurtamento da fibra muscular em uma situação sem carga. Em um animal vivo, o coração nunca está sem carga, de modo que a contratilidade miocárdica, além de sua força inerente de contração, é influenciada pelo aumento da pré-carga e pela impedância da pós-carga. O aumento da précarga pela terapia hídrica ou pela venoconstrição aumenta o estiramento muscular présistólico e a contratilidade medida pela maioria dos índices de contratilidade. A pós-carga é a impedância à contração muscular e a geração de um volume sistólico. In vitro, a póscarga corresponde ao peso que o músculo deve levantar e, in vivo, é o estiramento sistólico da parede (pressão ventricular × raio)/espessura muscular. A contratilidade inerente também é dependente da frequência cardíaca;112,113 um aumento na frequência cardíaca aumenta o cálcio sarcoplasmático transitório e a contratilidade do miocárdio. Métodos para avaliar a contratilidade fundamentados na pressão Pode-se caracterizar a contratilidade pela taxa de desenvolvimento de pressão em um ventrículo durante o processo contrátil. Um cateter com transdutor de pressão na ponta inserido no ventrículo (em geral o que preocupa é o esquerdo) mede a alteração nas pressões por todo o ciclo cardíaco. A taxa máxima de alteração da pressão ventricular durante a fase de contração volumétrica (Figura 4.8A) é denominada pico dP/dt.114, 115 A desvantagem clínica desta técnica é a necessidade de um cateter ventricular. A combinação de medidas da pressão ventricular com a avaliação seriada de alterações no volume ventricular (em geral realizada pelo ultrassom Doppler) permite a construção de uma alça de pressão e volume ventriculares (Figura 4.8A). Alterações agudas na pré-carga (administração de líquido) ou na pós-carga (administração de vasoconstritor) mudam o ponto de pressão e volume telessistólico em direção ascendente (Figura 4.8C). A inclinação da linha traçada através de vários pontos telessistólicos de pressão e volume (Emáx) caracteriza a contratilidade miocárdica independente da pré e da pós-carga.116 No entanto, em termos técnicos, a geração de várias curvas de pressão e volume ou pontos telessistólicos de pressão e volume consome tempo. A definição da alça inteira requer cateterismo ventricular; contudo, a determinação dos pontos de pressão (definida como a arterial sistólica) e volume [definido pelo cálculo dos pontos de volume telessistólico (VTS) a partir do diâmetro telessistólico (DTS) obtido pelo Doppler)] telessistólicos é um

método não invasivo de estimar a Emáx.117 O dP/dt do ventrículo determina o dP/dt da ascensão da onda de pressão de pulso. Esta última consiste em um meio indireto de estimar a contratilidade ventricular sem o uso de um cateter ventricular. Alguns analisadores comerciais da onda de pressão de pulso (PiCCO2TM e Most CareTM) têm a capacidade de gerar uma medida da contratilidade com base na taxa de alteração da onda de pressão de pulso.118 Métodos para avaliar a contratilidade fundamentados no ultrassom Doppler A tecnologia do ultrassom Doppler revolucionou a capacidade de avaliação não invasiva dos índices de contratilidade miocárdica em situações clínicas. As avaliações cardíacas pelo Doppler, acuradas e passíveis de repetição, requerem treinamento e prática. Os anestesiologistas e intensivistas que possam não ter desenvolvido a habilidade para fazer tais medições de maneira confiável119,120 devem familiarizar-se ao menos com a maneira de interpretá-las. É possível fazer uma avaliação qualitativa da função cardíaca pela observação visual do ecocardiograma, pois um coração com baixa contratilidade será visto contraindo-se lenta e incompletamente, em comparação com um coração normal. Os exames ultrassonográficos padrão comumente revelam alguns indícios que se correlacionam com a contratilidade. São medidos o diâmetro menor do eixo telediastólico (DTD) e o diâmetro telessistólico (DTS) (Tabela 4.7). O encurtamento fracional (EF) é calculado como (DTD − DTS/DTD) e seus valores típicos são de 25 a 45% em cães e 30 a 55% em gatos;63 uma diminuição na contratilidade estaria associada a uma diminuição no encurtamento fracional. Um lembrete de cautela ao se interpretar o EF é que o aumento compensatório no DTD que ocorre em animais com insuficiência cardíaca congestiva pode fazer com que os valores do EF voltem ao normal, mesmo que a própria contratilidade esteja diminuída. Os volumes telediastólico (VTD) e telessistólico (VTS) podem ser calculados a partir do DTD e do DTS, respectivamente.95–97 O volume sistólico (VS) é calculado a partir da diferença entre ambos os referidos volumes, enquanto a fração de ejeção (FE) é calculada como VS/VTD. É comum a FE ultrapassar 50%. Quando um coração se contrai com menos vigor, o VTS, o VS e a FE diminuem. O EF, o VS e a FE são dependentes da pré-carga, da pós-carga e da frequência cardíaca, respectivamente. A regurgitação mitral representa um problema especial com esses parâmetros, porque uma parte variável da redução no DTS, no EF, no VTS e na FE que ocorre durante a sístole constitui fluxo sanguíneo retrógrado para o átrio esquerdo. Entretanto, em tais situações, o formato subjetivo do jato regurgitante pode ser informativo; uma velocidade de pico baixa e uma frequência lenta de alteração na mesma podem sugerir contratilidade fraca.97,121 Na presença de regurgitação mitral, é possível obter um dP/dt a partir do Doppler, mediante a taxa inicial de alteração do jato regurgitante;97,121,122 o dP/dt em cães normais, geralmente,

ultrapassa 1.800 mmHg/s121 e pode chegar a 3.000 a 4.000 mmHg/s.112

Figura 4.8 Alças de pressão e volume (A) e de estiramento e volume (B). A a B = preenchimento ventricular; C a D = ejeção ventricular; D a A = relaxamento isovolumétrico. Uma série de alças de pressão e volume (C) e de estiramento e volume (D) após vasoconstrição ou administração de líquido. Uma linha traçada através dos pontos telessistólicos das alças é Emáx e a inclinação desta linha é um marcador independente da pré-carga e da pós-carga da contratilidade cardíaca. Tabela 4.7 Variáveis derivadas do Doppler e intervalos de tempo sistólico em cães e gatos normais.63,96,121,125 Parâmetroa

Cão 1,44 × kg0,32; 2 a 5,5 (pequeno a

Gato

DTDVE (cm)

DTSVE (cm)

grande)

0,69 × kg0,41; 1 a 4 (pequeno a grande)

1,2 a 1,8

0,5 a 1

VTDVE (mℓ/kg)

2,4 a 4,8 (pequeno a grande)

1,5 a 2

VTSVE (mℓ/kg)

0,81 a 0,97 (pequeno a grande)

0,14 a 0,43

VS (mℓ/kg)

1,4 a 4 (pequeno a grande)

1,4 a 1,6

FE (%)

60 a 80

70 a 90

EF (%)

25 a 50

25 a 60

Vfc (circunferências/s)

2 a 3,5

2,8 a 4,8

PEP (ms)

50 a 75

40 a 50

TEVE (ms)

150 a 270

110 a 160

TEVEi (ms)

210 a 310

200 a 220

PEP + TEVE (ms)

200 a 330

140 a 180

PEP/TEVE

0,15 a 0,40

0,35 a 0,45

a

DTDVE, diâmetro telediastólico ventricular esquerdo; DTSVE, diâmetro telessistólico ventricular esquerdo; VTDVE,

volume telediastólico ventricular esquerdo, calculado pela fórmula de Teichholz (7 × D3)/(2,4 + D); VTSVE, volume telessistólico ventricular esquerdo, também calculado pela fórmula de Teichholz citada; VS, volume sistólico; FE, fração de ejeção; EF = encurtamento fracional; Vfc, velocidade de encurtamento fracional circunferencial; PEP, período préejeção; TEVE, tempo de ejeção ventricular esquerdo; TEVEi, tempo de ejeção ventricular esquerdo indexado à frequência cardíaca. A velocidade do encurtamento fracional circunferencial (Vfc) é calculada como EF/TE, em que TE é o tempo de ejeção, correspondendo ao tempo desde a abertura inicial da válvula aórtica até seu fechamento. Um marcador substituto do TE poderia ser a partir da subida inicial da onda de pressão do pulso arterial à profundidade da incisura dicrótica. A

Vfc é relativamente independente da pré-carga, mas depende da frequência cardíaca e da pós-carga. Uma Vfc corrigida para a frequência cardíaca pode ser calculada da seguinte maneira:123,124 EF/{TE × [R − intervalo R (ms)]1/2} Estiramento miocárdico é a ideia de que a pós-carga é mais que a mera pressão; consiste em estresse miocárdico (pressão ventricular × raio/espessura da parede). A forma da alça de estresse e volume é diferente daquela de pressão e volume, porque o alto da primeira é angulado para baixo (Figura 4.8B); o estresse miocárdico diminui no decorrer da sístole. A imagem Doppler é capaz de definir o raio ventricular e a espessura da parede. Pode-se medir direta ou indiretamente a pressão ventricular a partir da pressão arterial (pressão sistólica = pressão ventricular telessistólica) e, então, é possível calcular o estresse da parede ventricular. A Emáx pode ser determinada a partir de um conjunto de pontos de estresse telessistólicos da parede (Figura 4.8D) e a inclinação da linha caracteriza a contratilidade de maneira independente da carga. Em si, o estresse telessistólico da parede tem sido relatado como um marcador de contratilidade não dependente da carga.124 O estiramento miocárdico e a taxa de desenvolvimento desse estiramento são índices de contratilidade relativamente independentes da pré e da pós-carga.97,115,123,125 Atualmente, a imagem Doppler tridimensional é a melhor técnica para medir os volumes ventriculares.97 As medições, os volumes calculados e a FE podem ser obtidos em tempo real e correlacionam-se bem com a TC e a RM.1126 A imagem Doppler tecidual utiliza filtros de alta velocidade para isolar a aceleração da parede miocárdica (daquela do sangue) durante a sístole e pode ser usada para calcular o dP/dt.97 As velocidades endocárdicas ventriculares radial e longitudinal foram relatadas durante a sístole, bem como no início e no fim da diástole, tanto em cães não anestesiados como anestesiados,127,128 gatos normais despertos129,130 e gatos com miocardiopatia.131 Velocidades de contração diminuídas durante a sístole sugerem pouca contratilidade; velocidades de relaxamento diminuídas durante a diástole refletem disfunção diastólica.97 Um índice de desempenho miocárdico (IDM ou Tei) é calculado como o tempo de contração isovolumétrica mais o tempo de relaxamento isovolumétrico divididos pelo tempo de ejeção e proporciona uma avaliação geral da função ventricular. O aumento da contratilidade diminui ambos os valores no numerador mais que no denominador e o IDM diminui, enquanto a inibição da contratilidade faz o oposto.132 O aumento da contratilidade induzido pela dobutamina acarretou aumento de todas as medidas da contratilidade (elevação da pressão sistólica, do dP/dt e diminuição do tempo de contração isovolêmico) e do relaxamento (diminuiu o dP/dt e o tempo de relaxamento isovolêmico); a inibição pelo esmolol dos receptores miocárdicos β1 diminuiu todas as medidas da contratilidade e do

relaxamento.132 Intervalos de tempo sistólico Também constituem uma medida da contratilidade miocárdica e podem ser determinados com ou sem a ajuda do ultrassom Doppler.133–135 Período pré-ejeção (PEP) é o tempo decorrido desde o começo da onda QRS no ECG até a abertura da válvula aórtica, a qual pode ser determinada observando-se a válvula aórtica ao ultrassom Doppler ou considerando-se como o início da ascensão da onda de pressão aórtica. O tempo de ejeção ventricular esquerdo (TEVE) é o decorrido a partir da abertura até o fechamento da válvula aórtica; o fechamento da válvula aórtica pode ser determinado pela observação visual da válvula com o ultrassom Doppler, a profundidade da incisura dicrótica da onda da pressão do pulso ou o começo da segunda bulha cardíaca em um fonocardiograma. Sístole eletromecânica total = PEP + TEVE. Os índices PEP e TEVE são de pré e pós-carga, respectivamente, e dependentes da frequência cardíaca. O índice PEP/TEVE minimiza os efeitos da pré e da pós-carga. A diminuição na contratilidade prolonga o PEP e o TEVE e aumenta o índice PEP/TEVE.

■ Resistência vascular sistêmica e perfusão tecidual Sinais físicos A perfusão periférica e a visceral são reguladas primariamente pelo tônus vasomotor; no nível microvascular, a vasoconstrição prejudica isso, enquanto a vasodilatação melhora. A vasoconstrição aumenta a pressão arterial, enquanto a vasodilatação a diminui. Pode-se avaliar o tônus vasomotor pela coloração das mucosas (mais pálidas que o normal = vasoconstrição; mais avermelhadas que o normal = vasodilatação), pelo tempo de preenchimento capilar (< 1 s = vasodilatação; > 2 s = vasoconstrição) ou pelo gradiente de temperatura no artelho/central (> 4°C = vasoconstrição; < 2°C = vasodilatação).136,137 A vasoconstrição pode ser causada por hipovolemia, insuficiência cardíaca, hipotermia ou pela administração de fármacos vasoconstritores. A vasodilatação pode ser causada pela resposta inflamatória sistêmica, por hipertermia ou pela administração de fármacos vasodilatadores. Cálculo da resistência vascular sistêmica Calcula-se a resistência vascular sistêmica (RVS) como a pressão arterial média (PAm − PVC) (em mmHg)/débito cardíaco indexado pelo peso corporal (mℓ/kg/m2). A RVS é comumente relatada como dyn · s · cm−5/m2: [PAm – PVC (mmHg) × 79,92]/IC/(ℓ/min/m2)

A resistência vascular sistêmica relatada em cães normais tem sido entre cerca de 1.800 e 2.100 dyn · s · cm−5/m2,102 aumentando para 2.500 a 3.000 dyn · s · cm−5/m2 com hipovolemia moderada.138 O efeito de anestésicos sobre a RVS varia conforme o fármaco, a dosagem e a RVS basal.

■ Marcadores metabólicos da perfusão tecidual Diferenças arteriovenosas de oxigênio Como já foi dito, um meio de medir o débito cardíaco é usando a equação de Fick: DC = consumo de oxigênio/(CaO2 − CmvO2) em que CaO2 = conteúdo de oxigênio do sangue arterial e CmvO2 = conteúdo de oxigênio do sangue venoso misto. Todavia, o consumo de oxigênio não costuma ser medido. Supondo que ele não muda muito, pelo menos durante um procedimento de curta duração, pode ser eliminado da equação de Fick, deixando-se o débito cardíaco inversamente proporcional a CaO2 − CmvO2. Em dois estudos realizados com cães, foi relatado aumento em CaO2 − CmvO2, de 3,8 ± 1,2 para 7,1 ± 1,9 mℓ/dℓ com hipovolemia moderada138 e de 4 ± 0,8 para 8,9 ± 2,1 mℓ/dℓ na liberação crítica de oxigênio durante hipovolemia grave e, por fim, para 13,1 ± 2 mℓ/dℓ logo antes do colapso da pressão arterial.139 O gradiente CaO2 − CmvO2 pode ser usado como um marcador global do aumento da extração de oxigênio que ocorre quando a liberação de oxigênio diminui por qualquer razão. A extração de oxigênio expressa como porcentagem [(CaO2 − CmvO2)/CaO2] é um marcador global semelhante. Em dois estudos feitos com cães, a extração de oxigênio relatada aumentou de 20,9 ± 6,2 para 42,3 ± 29,6% com hipovolemia moderada,138 de 22,4 ± 4,5 para 53,5 ± 10,4% com liberação crítica de oxigênio na hipovolemia grave e, por fim, para 84,2 ± 9,5% logo antes do colapso da pressão arterial.139 Uma abreviação adicional da equação de Fick consiste em tirar o CaO2 e simplesmente acrescentá-lo à lista de anormalidades que podem causar diminuição do CmvO2 (liberação de oxigênio = oxigênio venoso). Como o conteúdo de oxigênio, a saturação de hemoglobina e a PO2 têm uma relação direcional, qualquer expressão da quantidade de oxigênio no sangue venoso misto será suficiente para esse propósito. A PO2 é a de mais fácil de obtenção. No entanto, o sangue venoso periférico não será suficiente,140 porque representa apenas a extração tecidual local; para uma medição global, o sangue tem de ser obtido de um local o mais próximo possível da artéria pulmonar. A PO2 do sangue venoso misto, a saturação e o conteúdo de oxigênio comprovadamente diminuem de 49 ± 6 mmHg, 78 ± 6% e 13,8 ± 2,2 mℓ/dℓ para 35 ± 5 mmHg, 56 ± 9% e 9,6 ± 2,5 mℓ/dℓ, respectivamente, na vigência de hipovolemia moderada.138 Em outro modelo canino de

hemorragia aguda, a SVO2 diminuiu de 73 ± 4 para 42 ± 9% com a liberação crítica de oxigênio na hipovolemia grave e, por fim, para 17 ± 9% logo antes do colapso da pressão arterial.139 O oxigênio venoso também pode ser usado para assinalar a melhor liberação de oxigênio com o tratamento. Em uma coorte de pessoas criticamente enfermas, o aumento do débito cardíaco induzido pela dobutamina reduziu a extração de oxigênio de 48 para 36% e aumentou a saturação de oxigênio venoso misto de 49 para 61%.141 Outros estudos revelaram correlações fracas entre a saturação de oxigênio venoso e o débito cardíaco em pacientes humanos na UTI142 e em modelos de leitões com hemorragia, anemia e hipoxia.143 Gradiente venoso-arterial da PCO2 O débito cardíaco também pode ser determinado pela equação de Fick para o dióxido de carbono: DC = produção de dióxido de carbono/(CmvCO2 − CaCO2) em que CmvCO2 = conteúdo de dióxido de carbono do sangue venoso misto e CaCO2 = conteúdo de dióxido de carbono do sangue arterial. Um dos métodos de medir o débito cardíaco (PiCCO2) usa esse princípio. Entretanto, a produção de dióxido de carbono, em geral, não é medida e, supondo-se que não tenha havido muita alteração, pode ser retirada da equação anterior: débito cardíaco ≈ CmvCO2 − CaCO2 Pode-se calcular o conteúdo de dióxido de carbono, mas, como o dióxido de carbono é solúvel (a curva do conteúdo PCO2 − CO2 é quase linear dentro da ampla variação de valores da PCO2 vistos clinicamente),144 a medida do PmvCO2 e da PaCO2 pode ser usada diretamente sem conversão do conteúdo. Quando o débito cardíaco e a perfusão tecidual diminuem, mas a produção de dióxido de carbono continua em seu nível prévio, haverá um aumento no dióxido de carbono venoso. Em três modelos caninos de hemorragia aguda, foi relatado aumento da PCO2 venosa − arterial de 4,2 ± 1,5 para 10,7 ± 3,9 mmHg,138 de 5,2 para 12,9 mmHg na hipovolemia moderada, de 4,3 ± 1,3 para 12,9 ± 5,2 mmHg com liberação crítica de oxigênio na hipovolemia grave e, por fim, para 32,9 ± 10 mmHg logo antes do colapso da pressão arterial.139 Em um modelo suíno de choque hipovolêmico grave, o CmvCO2 − CaCO2 aumentou de 2 ± 6 para 26 ± 5 mmHg após a pressão arterial ter sido mantida em 50 mmHg por 2 h.145 Também se pode usar o CmvCO2 − CaCO2 para acompanhar a resposta ao tratamento; ela diminui de 9 para 5 mmHg com o aumento do débito cardíaco induzido pela dobutamina em pessoas.141

Lactato e acidose metabólica O nível de lactato no sangue é uma medida de má oxigenação tecidual que costuma ser obtida em pacientes clínicos. Contudo, o lactato sanguíneo é uma medida global que sobrecarrega desproporcionalmente grandes massas teciduais e pode não ser uma medida aguda sensível da deficiência de oxigênio em tecidos com pouca massa muscular, mas alta demanda de oxigênio (p. ex., cérebro ou rins). Portanto, pode não representar com acurácia o estado de um órgão vital durante anestesia, porém pode ter um uso melhor para prever a mortalidade em pacientes de UTI que podem sobreviver por tempo suficiente para que ocorra um acúmulo significativo e que podem ter maior demanda metabólica de músculo e outras massas teciduais grandes do que pacientes hipotérmicos anestesiados. Em um modelo suíno de choque hipovolêmico grave, o lactato aumentou de cerca de 1,5 para cerca de 14 mmol/ℓ após a pressão arterial ter sido mantida em 50 mmHg por 2 h.145 Em um modelo canino de hemorragia aguda, o lactato aumentou de 2,4 ± 0,9 para 3,5 ± 1,4 mmol/ ℓ com a liberação crítica de oxigênio na hipovolemia grave e, por fim, para 8,9 ± 3,8 mmol/ ℓ logo antes do colapso da pressão arterial.139 O déficit de base agravou-se de −2,2 ± 2,4 para −6,3 ± 2,9 mEq/ℓ na hipovolemia moderada138 e de −2,4 ± 4 para −16,1 ± 3,9 mEq/ℓ na hipovolemia grave em cães.146 Em três modelos caninos de hipovolemia, o gradiente arteriovenoso do pH aumentou de 0,02 ± 0,01 para 0,06 ± 0,03 unidade138 e de 0,03 ± 0,05 para 0,09 ± 0,11 unidade146 durante hipovolemia moderada, de 0,03 ± 0,01 para 0,06 ± 0,03 unidade na liberação crítica de oxigênio com hipovolemia grave e, por fim, para 0,14 ± 0,04 unidade logo antes do colapso da pressão arterial.139 PO2, PCO2 e pH arteriais A má perfusão tecidual resulta em queda da PO2 e do pH e aumento da PCO2 nos tecidos. Tais estimativas poderiam servir como um alerta de má perfusão tecidual mais precoce e específica do órgão que as do sangue venoso que flui desses tecidos. Há uma variedade de maneiras de medir a PO2, a PCO2 e o pH teciduais: eletrodos com cateter na ponta para esses três parâmetros, capnometria gástrica e sublingual. Pode-se medir a PO2 tecidual (PtO2) por meio de eletrodos com cateter na ponta146–148 ou sensores transcutâneos.149,150 Uma PtO2 baixa é um índice sensível de má perfusão periférica146,147 e aumenta bastante o risco de mortalidade em pacientes criticamente enfermos.150 Podem ser usados eletrodos transcutâneos com cateter na ponta para medir o pH tecidual,146,148 que é um marcador sensível de má perfusão tecidual.146,147 Um cateter de fibra óptica multiparâmetros (para medir a PO2, a PCO2 e o pH; Diametrics Medical) que seria colocado em qualquer tecido foi submetido a testes,146,148 mas durante a elaboração

deste livro ainda não se encontrava disponível. A tonometria gástrica é uma técnica que se baseia no fato de que, como a PCO2 tecidual aumenta nos estados de má perfusão, o dióxido de carbono difunde-se no lúmen do estômago em proporção direta com seu acúmulo nos tecidos gástricos. Pode-se medir a PCO2 do lúmen gástrico (PgCO2) via um cateter com sensor151,152 ou balão na ponta.153–155 O dióxido de carbono difunde-se no lúmen do balão que, após um período de equilíbrio adequado, é aspirado e mede-se a PCO2. Existem sistemas que insuflam automaticamente o balão e, em seguida, retiram e analisam a amostra de gás 10 min após (Tonometrics). A PCO2 gástrica deve ser < 50 mmHg ou menos de 10 mmHg acima dos valores da PaCO2; valores > 60 mmHg ou > 20 mmHg acima da PaCO2 sugerem má perfusão gástrica.154–156 Em um modelo suíno de hipovolemia grave, a PgCO2 aumentou de cerca de 60 para cerca de 110 mmHg após a pressão arterial ter sido mantida em 50 mmHg por 2 h.145 O gradiente PgCO2−PaCO2 aumenta com qualquer coisa que comprometa a oxigenação tecidual: isquemia,146,153,157 hipoxemia157 e anemia grave (Htc de 15%).155 Tanto a PgCO2 como o gradiente PgCO2−PaCO2 devem ser avaliados.158 Os valores brutos do gradiente PgCO2 podem aumentar com hipercapnia sistêmica sem má perfusão visceral (o gradiente PgCO2−PaCO2 deve ser normal). Nos estados de transição, o gradiente PgCO2−PaCO2 pode ser enganoso, porque são necessários cerca de 20 min para a PCO2 equilibrar-se com a PaCO2. Uma persistente elevação da PgCO2 após a terapia está associada com aumento da mortalidade.151,154 A capnometria sublingual (PslCO2) (Optical Sensors) compara-se muito bem com a PgCO2 como medida da perfusão tecidual periférica.145 O sensor não é tão invasivo como o cateter gástrico, porém, devido à sua localização, é mais propenso a erros técnicos. Em modelos suínos de hipovolemia grave, a PslCO2 aumentou de cerca de 60 para cerca de 120 mmHg após a pressão arterial ter sido mantida em 50 a 55 mmHg por 2 h.145,159 Há relatos de que a capnometria sublingual (tanto a PslCO2 bruta como o gradiente PgCO2−PaCO2) é um índice muito sensível de má perfusão tecidual; os pacientes que não sobrevivem apresentam valores persistentemente altos.160,161 Imagem microvascular Há muitas maneiras de visualizar a microcirculação em pacientes clínicos:161–168 laser com fluxometria Doppler (PerimFluxTM, Perimed), imagem a laser contrastada, espectroscopia polarizada, imagem espectral com polarização ortogonal (EPO) (CytoscanTM, Cytometrics), imagem de corrente lateral em campo escuro (MicroscanTM, Microvision Medical), videomicroscopia óptica, videomicroscopia de fluorescência, microscopia em campo escuro e ultrassom Doppler. É possível determinar o tamanho, a forma, a densidade e a heterogeneidade dos capilares, bem como o fluxo sanguíneo e sua velocidade. Muitos

sistemas empregam um videomicroscópio manual para uso à beira do leito. Foram usadas imagens microvasculares para avaliação do fluxo sanguíneo periférico e regional,75 além da reatividade vascular169 em vários estados mórbidos.

Sistema pulmonar ■ Frequência, ritmo e esforço respiratórios A frequência respiratória pode variar bastante e, exceto no caso de valores extremos, tem valor limitado como um parâmetro respiratório. Entretanto, uma alteração na frequência respiratória é um indicador sensível de alguma alteração no estado subjacente do paciente. Bradipneia pode ser um sinal de anestesia profunda ou hipotermia. Apneia é comum após indução de anestesia e pode ocorrer mesmo em animais sob anestesia muito leve. Padrões respiratórios arrítmicos são indicativos de um problema no padrão gerador central na medula. Em equinos, é possível observar um padrão respiratório de Cheyne-Stokes (em ciclos entre a hiperventilação e a hipoventilação) e, em cães e gatos sadios nos demais aspectos anestesiados com cetamina, pode-se ver um padrão respiratório apnêustico (interrupção inspiratória). Há muitas causas de taquipneia e esforço respiratório exagerado durante anestesia (Boxe 4.1). Boxe 4.1 Causas de taquipneia e esforço respiratório exagerado.

Nível leve de anestesia Nível profundo de anestesia Hipoxemia, hipercapnia, hipertermia Hipotensão Atelectasia Obstrução de via respiratória, distúrbio do preenchimento do espaço pleural, doença pulmonar parenquimatosa Estágio de excitação da recuperação Dor pós-operatória Delírio pós-operatório (qualquer fármaco, mas em particular opioides e benzodiazepínicos) Distensão pós-operatória da bexiga

■ Ventilometria, espaço morto e complacência Pode-se estimar o volume da ventilação pela observação visual do tórax ou por meio de uma bolsa respiratória ou medi-lo por ventilometria. O volume corrente normal varia entre 6 e 15 mℓ/kg. Um volume corrente pequeno pode ser aceitável se a frequência respiratória for rápida o suficiente para manter a ventilação por minuto alveolar normal. A ventilação por minuto total normal varia entre 150 e 250 mℓ/kg/min em pacientes despertos. A ventilometria pode medir a ventilação total, mas não a proporção de sua distribuição para o espaço morto versus para os alvéolos funcionais. O espaço morto fisiológico (anatômico e alveolar) varia entre 30 e 50% do volume corrente e da ventilação por minuto em um paciente normal respirando um volume corrente normal; o equilíbrio restante denomina-se ventilação alveolar funcional.170−174 O espaço morto fisiológico (%) será mais alto com uma respiração rápida e superficial, e mais baixo com uma respiração lenta e profunda. O espaço morto fisiológico é calculado de acordo com a seguinte fórmula: Vd/Vt = (PaCO2 − PmeCO2)/(PaCO2 − PICO2) em que Vd = volume do espaço morto, Vt = volume corrente, Vd/Vt =razão do espaço morto para o volume corrente total, PaCO2 = pressão arterial parcial de dióxido de carbono, PmeCO2 = PCO2 mista expirada, e PICO2 = PCO2 inspirada. O espaço morto (%) multiplicado pelo volume corrente ou pela ventilação por minuto serve para calcular os valores absolutos (mℓ/kg) do espaço morto. Vt − Vd = Valv, em que o último termo (Valv) corresponde à ventilação alveolar. A ventilação alveolar efetiva por minuto costuma ser definida pela PaCO2. Uma ventilação por minuto total alta em combinação com uma PaCO2 normal é indicativa de aumento da ventilação no espaço morto. A complacência é calculada como o volume corrente expirado dividido pela alteração na pressão que é necessária para gerar o volume corrente. A alteração na pressão da via respiratória durante ventilação com pressão positiva é calculada como o pico ou pausa na pressão menos a pressão expiratória final. Durante ventilação espontânea, a alteração na pressão transpulmonar requer a medida da pressão pleural (em geral feita via cateter com balão na ponta colocado na parte inferior do esôfago). Se, por exemplo, 10 cmH2O de pressão gerou um volume corrente de 10 mℓ/kg, a complacência calculada seria de 1 mℓ/kg/cmH2O. Se as medições forem feitas durante o processo respiratório cíclico (usando-se o pico de pressão), o valor calculado é denominado complacência dinâmica. Se as medições forem feitas após uma pausa inspiratória (pressão de pausa) curta (ou longa), o valor é denominado complacência estática. Com a ventilação com pressão positiva, durante pressurização de vias respiratórias, parte do volume que deixa o ventilador é capturada pela compressão de gases dentro do

circuito anestésico e pela expansão do circuito respiratório. Esse volume nunca alcança o paciente, mas será medido como parte do volume corrente expirado. Muitos ventiladores anestésicos não compensam esse efeito e assim tem-se uma medida mais alta do volume corrente, levando a uma suposição errônea sobre o paciente e a cálculos incorretos da complacência. Isso pode ter importância particular em animais muito pequenos, nos quais o volume do circuito de compressão e expansão representa uma porcentagem maior do volume corrente total medido. O volume de compressão e expansão em determinado circuito anestésico e a técnica de ventilação podem ser determinados desconectando-se o paciente e registrando-se o volume corrente medido (no mesmo pico de pressão inspiratória observado enquanto se ventila o paciente) enquanto a saída da peça em Y para o paciente está conectada. Esse volume de compressão e expansão deve, então, ser subtraído do volume corrente medido, antes que se calcule a complacência, a qual diminui na vigência de doença pulmonar restritiva, pleural ou da parede torácica.

■ Pressão parcial de dióxido de carbono (PCO2) A medição da PCO2 com eletrodo de um analisador de gases sanguíneos consiste em um íon hidrogênio sensível, cloreto de prata-prata que mede meia célula e uma meia célula de referência. O dióxido de carbono difunde-se a partir da solução de teste, em proporção com sua pressão parcial, através de uma membrana de silicone semipermeável. O dióxido de carbono combina-se com água e aumenta a concentração de íon hidrogênio (equilíbrio do ácido carbônico) na solução interna. O íon hidrogênio causa uma diferença de potencial elétrico entre as meias células, que é proporcional à alteração na concentração de íon hidrogênio, a qual, por sua vez, é proporcional à alteração na PCO2. A PCO2 arterial (PaCO2) é uma medida da ventilação por minuto alveolar efetiva e normalmente varia entre 35 e 45 mmHg. Os valores aceitáveis da PaCO2 podem ser mais altos em pequenos animais anestesiados e consideravelmente maiores (60 a 80 mmHg) em equinos175 e bovinos3 anestesiados. Uma PaCO2 acima de 60 mmHg pode estar associada a acidose respiratória excessiva e, em geral, é considerada representativa de hipoventilação suficiente para garantir ventilação com pressão positiva em pequenos animais. Valores de PaCO2 abaixo de 20 mmHg estão associados a alcalose respiratória e um fluxo sanguíneo cerebral diminuído, que pode comprometer a oxigenação do cérebro. Nos pacientes com doença do sistema nervoso central, anormalidades metabólicas acidobásicas preexistentes ou hiperpotassemia significativa, os valores aceitáveis devem ser mantidos mais próximos daqueles encontrados em pacientes despertos. As causas de hipercapnia e hipocapnia estão relacionadas na Tabela 4.8. Em geral, a PCO2 venosa é de 3 a 6 mmHg mais alta que a PCO2 arterial em condições estáveis102 e pode ser usada como um marcador substituto da PCO2. A PvCO2 é

variavelmente mais alta em estados de transição e durante hipovolemia,138 baixo débito cardíaco ou anemia. Um aumento no gradiente arteriovenoso da PCO2 sugere redução da perfusão tecidual. Também se pode usar a PCO2 em uma amostra de gás obtida no final de uma exalação (PetCO2) como um marcador substituto da PaCO2. A PetCO2 geralmente é 3 a 6 mmHg mais baixa que a PaCO2 em cães e 10 a 15 mmHg mais baixa em equinos.176 A capnometria é a medida do dióxido de carbono nos gases respiratórios. O método mais comum de medir o dióxido de carbono nos gases é por absorção de luz infravermelha, com a absorção sendo proporcional à pressão parcial do gás em questão. O dióxido de carbono também pode ser medido pela espectroscopia de Raman, em que um feixe luminoso monocromático de argônio é passado através de uma amostra de gás. A luz é absorvida e, então, emitida de volta em um comprimento de onda diferente, específico da molécula de gás que a absorveu. Para medir o dióxido de carbono, também se pode usar a espectrometria de massa, com base na separação dos vários tipos de gás por um feixe de elétrons em um campo magnético, mas esses analisadores são caros, volumosos e não costumam ser utilizados na prática clínica. Com capnômetros de corrente principal, o paciente respira através de uma célula ou cubeta circundada por um transmissor infravermelho e sistema fotossensível. A cubeta é aquecida para ajudar a minimizar a condensação em suas janelas. O sinal do CO2 é transmitido imediatamente para um dispositivo mostrador, de modo que as ondas exibidas o são quase em tempo real. As cubetas são um tanto volumosas e acrescentam espaço morto e resistência ao circuito respiratório. Os capnômetros de corrente lateral aspiram uma amostra de gás da via respiratória (em geral a uma taxa de fluxo entre 50 e 200 mℓ/min) e a medida do CO2 ocorre fora da via respiratória no analisador. Há uma demora de cerca de 3 s entre o momento em que a amostra é aspirada e aquele em que ela é medida e exibida no dispositivo (o tempo decorrido é determinado pelo comprimento e pelo diâmetro do tubo de aspiração e pela taxa de fluxo da aspiração). A amostra de saídas da corrente lateral deve ser colocada dorsalmente na via respiratória para se minimizar a oclusão com secreções respiratórias. A amostra aspirada deve ser levada de volta para o circuito anestésico para minimizar a depleção de volume do circuito com técnicas de baixo fluxo ou para o sistema de limpeza, minimizando-se, assim, a poluição do ambiente. O tubo de aspiração de capnômetros de corrente lateral também pode ser colocado no nariz ou adaptado a um cateter traqueal para monitoramento do CO2.177 Tabela 4.8 Causas potenciais de hipocapnia e hipercapnia. Nível leve de anestesia, hipoxemia, hipertermia, hipotensão, ajustes impróprios do ventilador, Hipocapnia – hiperventilação

doença pulmonar parenquimatosa em estágio inicial Estágio de excitação pós-operatória da

recuperação, delírio, dor, distensão da bexiga, sepse Anestesia muito profunda, doença neuromuscular, obstrução de via respiratória, distúrbio do Hipercapnia – hipoventilação

preenchimento do espaço pleural, doença pulmonar parenquimatosa em estágio tardio, ajustes impróprios do ventilador, mau funcionamento do aparelho de anestesia (válvulas unidirecionais entupidas, esgotamento da cal de soda), fluxo baixo de gás fresco com circuitos não respiratórios

Há dois tipos de capnografia: a que relaciona o tempo com a PCO2 e a que relaciona o volume com a PCO2. A capnografia de tempo é representada pelo analisador conhecido e utilizado na prática clínica;178 a PCO2 é expressa como uma função do tempo durante todo o ciclo respiratório (Figura 4.9). A presença de um sinal típico pode ser usada para verificar se o tubo endotraqueal está colocado adequadamente na traqueia no começo do procedimento. Uma cessação súbita do capnograma, como a que parece ‘estacionada’ na fase de platô, representa bradipneia ou apneia grave ou obstrução do tubo de aspiração. Um desaparecimento súbito do capnograma (como o que parece estar ‘estacionado’ em zero) poderia ser causado por apneia, extubação acidental ou desconexão/obstrução do sistema respiratório ou do tubo de aspiração. Se o animal estiver sendo ventilado, um capnograma ‘parado em zero’ também poderia representar parada cardíaca. Outras aberrações no capnograma estão ilustradas na Figura 4.10. O volume da capnografia registra o CO2 expirado contra o volume expirado (Figura 4.11). É possível determinar o volume corrente, o espaço morto anatômico e o alveolar, o fisiológico, o volume corrente alveolar efetivo, a PCO2 corrente final, a PCO2 alveolar, o volume de CO2 eliminado e o CO2 expirado misto. Um achatamento da curva (menos etapa da fase II acoplada a uma fase III de ‘platô’ menor) sugere aumento do espaço morto fisiológico por causa de doença obstrutiva de via respiratória inferior179,180 ou de aumento da ventilação do espaço morto alveolar decorrente de hipovolemia ou tromboembolismo pulmonar.181 Como ocorre com a capnografia de tempo, a extubação acidental ou parada cardíaca causam achatamento do capnograma volumétrico para zero. A ventilação com pressão positiva pode achatar a curva (devido a aumento da ventilação no espaço morto alveolar) ou normalizá-la (pelo recrutamento de unidades pulmonares colapsadas).

Figura 4.9 Capnografia de tempo. A exalação começa nos pontos pretos; o primeiro gás exalado é do espaço morto anatômico e não tem CO2. A linha da PCO2 então inclina-se para cima e isso representa uma mistura de gases do espaço morto e alveolares. Uma inclinação superficial dessa linha, acoplada a uma inclinação escalonada até a parte do platô, sugere comprometimento do esvaziamento alveolar, conforme ocorreria com o estreitamento de via respiratória inferior. O platô, que representa os gases alveolares, pode (ou não) inclinar-se um pouco para cima, em decorrência da liberação contínua de dióxido de carbono venoso para os alvéolos durante a exalação. O CO2 corrente final é a PCO2 mais alta antes da próxima inspiração. Os gases inspirados não devem conter dióxido de carbono algum; o capnograma deve ir para zero durante a inspiração.

Figura 4.10 Capnogramas anormais. A. O capnograma oscila com a ventilação, mas não retorna a zero com a inspiração e não se aproxima da PaCO2. Taquipneia sem boa separação do espaço morto anatômico e gases alveolares. Os valores da PCO2 corrente final exibidos não são representativos da PaCO2. B. Oscilações cardíacas em decorrência da apresentação na via respiratória. C. O capnograma sobe com a exalação, mas não chega ao platô, e retorna ao nível basal antes que o animal inspire. Obtém-se uma amostra de gás fresco bem próxima do influxo. D. Um pequeno divot negativo no capnograma representa um esforço inspiratório espontâneo antes de uma inspiração adequada. E. A forma do capnograma não é anormal, porém o platô é muito baixo, em comparação com a PaCO2. Espaço morto alveolar excessivo (hipovolemia; tromboembolismo). F. A forma do capnograma não é anormal, mas o nível basal não retorna a zero com a inspiração. Respiração de novo no espaço morto.

Figura 4.11 Capnografia volumétrica. O capnograma exibe apenas o CO2 expirado como uma função do volume; o analisador reajusta-se sozinho a cada inspiração; a PCO2 inspiratória não é visível. A expiração começa no ponto preto no canto inferior esquerdo da figura (A) e o primeiro gás exalado é o do espaço morto da via respiratória (fase I). A inclinação da linha da fase II (Linha 1) representa uma mistura de gases do espaço morto e alveolares. O platô da fase III (Linha 1) representa gases alveolares e, em geral, continua a ascender até o final da respiração. A PCO2 corrente final é a mais alta no final da respiração (D). A PaCO2 (medida separadamente) em geral é 3 a 6 mmHg mais alta que a PCO2 corrente final. A linha tracejada horizontal (Linha 2) no nível da PaCO2 é a PCO2 expirada teórica (E) se não houver via respiratória ou espaço morto alveolar. Pode-se estimar o espaço morto da via respiratória como o volume expirado em que a PCO2 está a meio caminho entre zero (no começo da fase II) e o ombro do platô (no final da fase II) (B). A área sob a curva da Linha 1 representa o volume de dióxido de carbono expelido durante a respiração (VCO2). O volume total de CO2 exalado (VCO2) é derivado do volume integrante e do CO2 com o tempo. A área acima da curva da Linha 1, para a esquerda do meio da linha vertical da fase II (B), e abaixo da Linha 2 é o espaço morto alveolar (alto V/Q) e atelectasia (0 V/Q) por ineficiência. A PCO2 expirada mista (PmeCO2) é calculada como VCO2/volume corrente. A PCO2 alveolar média (PavealveCO2) é a PCO2 no eixo horizontal da Linha 1, a meio caminho entre a linha vertical da fase II e o ponto final da respiração (C). O espaço morto fisiológico (%) é calculado pela equação de Bohr, (PaCO2 − PmeCO2)/(PaCO2 − PICO2), em que PICO2 = PCO2 inspirada. O espaço morto da via respiratória (%) pode ser calculado como (PavealveCO2 − PmeCO2)/(PavealveCO2 − PICO2) ou (PetCO2 − PmeCO2)/(PetCO2 − PICO2). O espaço morto alveolar (%) é calculado como espaço morto fisiológico − espaço morto da via respiratória. O espaço morto fisiológico, o da via respiratória e o alveolar (mℓ) são calculados como espaço morto fisiológico, da via respiratória ou alveolar

(%) × volume corrente. Um achatamento da curva (menor ascensão na fase II acoplada a menos ‘platô’ na fase III) (Linha 3) é compatível com estreitamento na via respiratória inferior ou aumento da ventilação do espaço morto alveolar. A fase I da exalação é o gás inspirado daquela respiração, e uma PCO2 acima de zero representa um aumento na PCO2 inspirada (espaço morto excessivo no aparelho ou gasto da cal de soda).

■ Oxigênio Pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (PaO2) A PaO2 é a pressão parcial (a pressão do vapor) do oxigênio dissolvido em solução no plasma do sangue arterial e é medida com um analisador de gases sanguíneos. Em geral, o eletrodo para o oxigênio é um sistema de ânodo de prata e catodo de platina em uma solução eletrolítica separada da solução desconhecida por uma membrana semipermeável. A reação química da ligação do oxigênio ao catodo leva à oxidação (liberação de elétron) do ânodo de prata adjacente, que muda a corrente entre os dois eletrodos em proporção direta à PO2. Normalmente, o oxigênio atmosférico é ventilado nos alvéolos e, em seguida, difundese através da membrana respiratória ao longo de gradientes de pressão parcial no plasma. A PaO2 é uma medida da capacidade pulmonar de mover o oxigênio da atmosfera para o sangue. Qualquer coisa que interfira nesses processos diminuirá a PO2 plasmática. A PaO2 normal ao nível do mar (respiração de 21% de oxigênio) varia entre 80 e 110 mmHg. Em geral, define-se hipoxemia como uma PaO2 < 80 mmHg e hipoxemia potencialmente fatal como uma PaO2 < 60 mmHg. Define-se hiperoxemia como uma PaO2 > 110 mmHg e é a norma quando o paciente respira misturas de gases enriquecidos com oxigênio durante a anestesia. O oxigênio sanguíneo também pode ser expresso como uma concentração ou um conteúdo (mℓ/dℓ de sangue total), mas esse parâmetro é determinado primariamente pela concentração de hemoglobina e, em si, não é considerado um marcador de hipoxemia ou hiperoxemia. O conteúdo de oxigênio tem muito a ver com a liberação de oxigênio e é discutido na seção que trata do assunto. Para a avaliação da função pulmonar, é preciso usar amostras de sangue arterial. O sangue venoso vem dos tecidos e é mais um reflexo da função tecidual que da pulmonar, sendo discutido na seção sobre perfusão tecidual. Os detalhes da amostragem e do armazenamento de sangue antes da análise foram analisados em outros textos.65,182,183 A amostra de sangue deve ser obtida o mais anaerobicamente possível (a exposição ao ar altera as pressões parciais do oxigênio e do dióxido de carbono) e analisada o mais cedo possível (o metabolismo in vitro e a difusão de gases no plástico da seringa e através dele também modificam as pressões parciais do oxigênio e do dióxido de carbono).184 A

diluição excessiva com anticoagulante deve ser evitada.185 Os gases sanguíneos são medidos à temperatura da água (em geral 37°C) que banha o analisador dos gases sanguíneos. O ideal é que a temperatura do animal seja idêntica à daquela água, mas isso raramente ocorre com espécies veterinárias. Quando a temperatura do corpo do animal é diferente daquela da água citada, há alterações in vitro nas medidas do pH e dos gases sanguíneos, associadas à da temperatura. As variações normais em um paciente hipo ou hipertérmico são diferentes das observadas em um paciente normotérmico, mas esses valores de referência não foram estabelecidos. Há algum debate sobre corrigir ou não a temperatura do paciente para os valores medidos. Caso se queira saber o que realmente está acontecendo no paciente e comparar as medidas ante uma variação de temperaturas corporais, devem ser usados os valores corrigidos (estado alfa). Se o clínico estiver pensando em instituir tratamento para corrigir uma anormalidade, usando pontos de referência normotérmicos, então deve usar os valores não corrigidos (estado do pH). Em uma metanálise recente, reviu-se a controvérsia a respeito de qual abordagem resultou em melhor desfecho neurológico após hipotermia profunda e concluiuse que a abordagem do estado alfa foi melhor para adultos e a do pH foi melhor para filhotes. Várias publicações consultadas não registraram diferenças.186 Saturação da hemoglobina com oxigênio (SO2) O oxigênio difunde-se do plasma para as hemácias e liga-se à hemoglobina. Há uma correlação direcional entre a PO2 e a SO2, mas a associação não é linear (Figura 4.12). Os mesmos processos pulmonares que determinam a PaO2 também determinam a SaO2, a qual, em geral, é usada como um marcador substituto da PaO2; a SpO2 é um marcador substituto da SaO2. A saturação de hemoglobina é medida pela absorção do vermelho na luz infravermelha em um oxímetro conectado (usando-se sangue arterial) (SaO2), ou de maneira não invasiva com um oxímetro de pulso (SpO2). A variação normal da SaO2 ou da SpO2 é de cerca de 98 a 99%. Define-se hipoxemia como uma SaO2 ou SpO2 inferior a 95% e hipoxemia grave como uma SaO2 ou SpO2 inferior a cerca de 90% em pessoas; tais valores são um pouco mais altos em equinos e mais baixos em cães e gatos (Figura 4.12). Pode-se medir a saturação de oxigênio da hemoglobina (SaO2) com um oxímetro acoplado, usando-se muitos comprimentos de onda de luz vermelha a infravermelha. Tipos diferentes de hemoglobina (reduzida, oxi-hemoglobina, meta-hemoglobina e carbóxihemoglobina) absorvem a luz de maneiras diferentes. O oxímetro acoplado então calcula a concentração relativa de cada um desses tipos de hemoglobina a partir do padrão de absorção luminosa. Os oxímetros de pulso utilizam apenas dois comprimentos de onda luminosa (660 e 940 nm) e destinam-se a medir somente a hemoglobina oxigenada. Os oxímetros de pulso podem operar de acordo com o princípio de luz absorvida (em que o

sinal luminoso é transmitido através de um leito tecidual para um fotodetector no lado oposto do diodo emissor de luz) ou conforme o princípio da luz absorvida (em que o sinal luminoso é refletido dos tecidos de volta para um sensor óptico no mesmo lado do diodo emissor de luz). Lamentavelmente, a pele, os tecidos e o sangue venoso também absorvem a luz vermelha à infravermelha e o oxímetro de pulso tem de ter algum caminho para subtrair essa absorção da luz de fundo daquela do tecido de interesse – sangue arterial; essa é a parte ‘pulso’ do oxímetro de pulso. Em geral, os oxímetros de pulso não exibem um valor de oxi-hemoglobina, muito menos um valor acurado, se não puderem detectar um pulso. Quanto a isso, os oxímetros de pulso também funcionam como um monitor da qualidade do pulso periférico. A SpO2 é, então, calculada a partir da razão da absorvância da luz acrescida do pulso no comprimento de onda de 600 nm ao de 940 nm.187

Figura 4.12 Curvas de dissociação da oxi-hemoglobina em equinos,260 seres humanos,261 cães205 e gatos.262 Há relatos de que bovinos têm uma P50 de cerca de 25 mmHg263 e uma curva de oxi-hemoglobina entre a dos equinos e a dos seres humanos. A P50 relatada de caprinos é de 29 mmHg264 e a curva de dissociação da oxi-hemoglobina fica um pouco acima daquela de cães.

A relação SO2–PO2 é razoavelmente linear, fica abaixo de uma PO2 de cerca de 40 mmHg e fica plana acima de uma PO2 de cerca de 80 mmHg (Figura 4.12). Há várias implicações clínicas importantes dessa relação SO2–PO2. O mais importante é que a diferença entre normoxemia e hipoxemia consiste apenas em poucos pontos percentuais de saturação mais abaixo da curva. Pequenas alterações na SpO2 representam grandes alterações na PaO2 nessa região de curva de dissociação da oxi-hemoglobina. Em segundo lugar, define-se hipoxemia grave em um nível quando a hemoglobina ainda está com 90% de saturação. O que determina a difusão do oxigênio para os tecidos é a pressão parcial do oxigênio, não a saturação com hemoglobina. A PO2 é a força direcionadora; a SO2 (mais especificamente o conteúdo de oxigênio) é o reservatório que impede a queda rápida na PO2 capilar que, do contrário, ocorreria quando o oxigênio se difundisse para fora do sangue. Em terceiro lugar, as medições da saturação não podem detectar a diferença entre a PaO2 de 100 e 500 mmHg. Essa diferença é importante quando se monitora e rastreia o progresso de animais que estejam respirando uma mistura enriquecida de oxigênio. Com esses e outros embargos, os oxímetros de pulso monitoram a hipoxemia de maneira não invasiva e automática. Em condições ideais de laboratório, os oxímetros de pulso fazem uma estimativa acurada das medições in vitro da SaO2. A acurácia de um oxímetro de pulso é maior dentro da variação de 80 a 95%, sendo determinada pela acurácia do algoritmo empírico programado no instrumento. Em condições clínicas, as medições do oxímetro de pulso podem variar bastante.188 Artefato de movimento e baixa razão entre sinal e ruído são os problemas mais frequentes que causam inexatidão na oximetria de pulso.187 A pele e a pigmentação cutânea, tecidos e o sangue venoso e capilar também absorvem a luz infravermelha. Diferenças na absorção ou na dispersão da luz no tecido, na espessura do tecido, padrões menores de fluxo pulsátil e interferência elétrica ou óptica podem ser responsáveis por algumas das inexatidões associadas à oximetria de pulso. Com finalidades clínicas, a maioria dos oxímetros de pulso faz uma estimativa suficiente da saturação da hemoglobina,189−195 exceto em situações graves como dessaturação grave da hemoglobina (< 70%),189,193,195,196 anemia grave (Htc < 10%)197 e vasoconstrição grave.187 Na prática clínica, as leituras do oxímetro de pulso podem ser acuradas ou erroneamente baixas (quase nunca são lidas erroneamente altas). Sendo assim, como decidir se uma medida baixa é real? É mais provável que uma medição seja acurada se a frequência de pulso exibida for a mesma do paciente e o número exibido aumentar em direção ao normal com a suplementação de oxigênio e voltar a diminuir com a respiração de ar ambiente. Uma das razões mais comuns de mau desempenho do instrumento é sua incapacidade de detectar um pulso periférico, seja porque o animal está com hipovolemia ou vasoconstrição, seja porque a sonda foi deixada em um lugar muito longo, causando

compressão dos tecidos subjacentes. Se a sonda for movida para várias localizações diferentes, é provável que a leitura mais alta seja a estimativa mais acurada da SaO2. A suspeita de hipoxemia deve ser confirmada com outros sinais clínicos e uma gasometria arterial, se necessário. Os oxímetros de pulso usam apenas dois comprimentos de onda (660 e 940 nm) e são designados para medir exclusivamente hemoglobina oxigenada. Se houver metahemoglobina ou carbóxi-hemoglobina, o analisador irá se confundir. Devido à absorção bifásica da meta-hemoglobina nos comprimentos de onda de 660 e 940 nm, acúmulos anormais desse tipo de hemoglobina tendem a empurrar a leitura do oxímetro de pulso na direção de 85%.199,200 A carbóxi-hemoglobina absorve luz como a oxi-hemoglobina em 660 nm, mas dificilmente em 940 nm, o que um oxímetro de pulso interpreta como oxihemoglobina, aumentando o valor aparente da oxi-hemoglobina.201 A hemoglobina fetal e hemoderivados substitutos da hemoglobina têm muito pouco efeito sobre a medição da saturação de hemoglobina.187,202 Os corantes verde de indocianina e azul de metileno absorvem luz e acabam gerando medidas baixas falsas da saturação.187 Muitos analisadores de gases sanguíneos listam a saturação de oxi-hemoglobina no seu material impresso. Essa última em geral é calculada além de um valor medido. O cálculo costuma basear-se na curva de dissociação da oxi-hemoglobina humana normal. As curvas variam de acordo com a espécie (Figura 4.12),203,204 mas também podem variar entre raças de uma mesma espécie, bem como com a idade e em indivíduos da mesma raça.205−211 A P50 é a PaO2 em que saturação da hemoglobina é de 50%, sendo usada comumente para definir a posição da curva da oxi-hemoglobina, com um valor mais alto indicando desvio da curva para a direita e um valor mais baixo, desvio para a esquerda.212 Os valores da P50 para raças caninas variam entre 25,8 e 35,8 mmHg205 e, para gatos, entre 31211 e 36 mmHg,213,214 dependendo de sua concentração relativa de hemoglobina A versus hemoglobina B.209 A P50 bovina varia comprovadamente entre 25 e 31 mmHg205,215,216 e a ovina, entre 30 e 40 mmHg.205,215,217 A curva também muda na vigência de diferentes condições mórbidas (anemia) e com alterações no pH, no CO2 e na temperatura. O ponto importante é que o uso da relação da oxi-hemoglobina humana para analisar o sangue de várias raças caninas provavelmente é aceitável, por estar dentro do espectro de variação das relações da oxi-hemoglobina canina. O uso de curvas caninas para sangue canino não é mais acurado. As relações da oxi-hemoglobina em equinos e gatos sofrem maior desvio para a esquerda e a direita, respectivamente, e os cálculos da SO2 a partir da relação da oxihemoglobina humana com as medidas da PO2 serão menos acurados. Se for necessária grande acurácia, deve-se medir a própria oxi-hemoglobina.218,219 O espectro de absorvância da oxi-hemoglobina de cães, gatos, equinos, bovinos e suínos é semelhante o suficiente ao dos analisadores da hemoglobina humana, que, com base em algoritmos para seres

humanos da absorvância leve, têm acurácia satisfatória para animais.220,221 Cianose Uma coloração acinzentada a azulada das mucosas sinaliza a presença de hemoglobina não oxigenada nos tecidos observados. A observação de cianose depende da concentração de hemoglobina desoxigenada presente, da acuidade visual do observador (alguns indivíduos podem vê-la mais cedo que outros), da iluminação (é mais fácil detectá-la e um ambiente bem iluminado que na sombra de uma gaiola/jaula) e do tipo de iluminação usada (é mais fácil detectá-la com luz incandescente que com a fluorescente).222 Em geral, é necessária uma concentração absoluta de hemoglobina não oxigenada de 5 g/dℓ para que a cianose se manifeste o suficiente para que possa ser observada visualmente.223 Isso é importante por duas razões. Primeiro, se um animal tiver uma concentração de hemoglobina de 15 g/dℓ, manifestará cianose quando a saturação do sangue arterial diminuir para 67% (o equivalente a uma PaO2 de cerca de 37 mmHg) (Figura 4.12). Quando a cianose se manifesta como um sinal de hipoxemia (cianose central, como na pneumonia), é sempre um sinal tardio de hipoxemia grave. Em segundo lugar, a cianose não é um sinal confiável de hipoxemia em um paciente anêmico, porque a PO2 que direciona as pressões terá caído para níveis letais muito antes que a hemoglobina fique dessaturada o suficiente para que a cianose se manifeste. A meta-hemoglobina é a hemoglobina oxidada e não pode ligar-se ao oxigênio de maneira reversível. A meta-hemoglobinemia resulta em uma coloração acastanhada a azulada das mucosas e reduz proporcionalmente a concentração de oxi-hemoglobina. A PaO2 mantém-se normal porque a função pulmonar está normal. O problema é a impossibilidade da hemoglobina de ligar-se ao oxigênio. É provável que os oxímetros de pulso exibam um valor na direção de 85%. Outra causa de cianose é a estagnação do fluxo sanguíneo periférico, cujo exemplo extremo é a vasoconstrição periférica mediada por um agonista do receptor adrenérgico α2 (cianose periférica). Quando o fluxo sanguíneo periférico é lento, há mais tempo para uma quantidade maior de oxigênio difundir-se para os tecidos, o que gera mais hemoglobina não oxigenada nos capilares. A cianose periférica pode não sinalizar uma falta de liberação de oxigênio para outros tecidos, como o cérebro, os rins ou o coração. A vasoconstrição diminui o fluxo sanguíneo capilar, as membranas ficam pálidas ou esbranquiçadas porque há muito pouco sangue nos leitos capilares e a cianose pode não se manifestar mesmo que o animal esteja hipoxêmico. A vasodilatação (uma grande quantidade de sangue nos leitos capilares), junto com a hipoxemia, ou um fluxo sanguíneo lento (uma grande quantidade de sangue não oxigenado) gera a coloração ‘arroxeada’ comum no estágio terminal do choque séptico.

Hipoxemia Existem três causas categóricas de hipoxemia: baixa concentração de oxigênio inspirado, hipoventilação ou mistura venosa (Tabela 4.9). Uma quarta causa de hipoxemia pode ser uma redução no conteúdo de oxigênio venoso,224−227 secundária a baixo débito cardíaco ou fluxo sanguíneo periférico lento (choque) ou alta extração de oxigênio pelos tecidos (convulsões). Normalmente, o sangue venoso é completamente arterializado (reoxigenado) em cerca de um terço do tempo de trânsito pulmonar normal.144 Quando o conteúdo venoso de oxigênio está muito baixo, há maior consumo de oxigênio e tempo para o sangue capilar arterializar-se. Isso baixa a PO2 alveolar (PAO2) e, portanto, a PaO2. A última cairá ainda mais se o tempo de equilíbrio ultrapassar o de trânsito. Na prática, o impacto de um baixo teor de oxigênio venoso e do fluxo sanguíneo em geral é superado por uma queda na fração de desvio, que diminui a queda na PaO2.144,227 Verifica-se um oxigênio venoso baixo medindo-se o oxigênio venoso central. Um baixo oxigênio inspirado secundário a falha mecânica ou liberação acidental de uma mistura de gases hipóxica deve ser considerado o tempo todo durante o qual um animal estiver conectado a algum aparelho mecânico como uma máscara facial, um circuito de anestesia ou um ventilador, ou estiver em um ambiente fechado como uma tenda de oxigênio. Pode-se medir a concentração de oxigênio inspirado ou do ambiente utilizando-se uma variedade de dispositivos comercializados. O efeito da altitude sobre a PO2 inspirado é apenas uma das preocupações para indivíduos que trabalham em altitudes elevadas (Tabela 4.10). Tabela 4.9 Causas categóricas de hipoxemia. Causa

Oxigênio inspirado baixo

Exemplos Funcionamento impróprio do aparelho ao qual o animal está conectado; depleção do suprimento de oxigênio; altitude Comprometimento neuromuscular (doença intracraniana ou anestesia geral, doença da medula espinal ou algum distúrbio neuromuscular periférico), obstrução de via respiratória superior ou

Hipoventilação

inferior, distensão abdominal causando deslocamento anterior do diafragma, segmentos grandes da parede torácica ‘agitados’ ou pneumotórax aberto, ou distúrbios do preenchimento do espaço pleural

Mistura venosa Regiões de V/Q baixaa

Doença pulmonar difusa Doença pulmonar difusa moderada a grave

Atelectasia

Doença pulmonar difusa grave a muito grave

Defeitos da difusão

Doença pulmonar difusa moderada a grave

Desvios da direita para a esquerda

PCAb da direita para a esquerda e DSV,b desvios A-V intrapulmonares anatômicos

a

V = ventilação; Q = perfusão; baixa razão V/Q = ventilação baixa em comparação com o fluxo sanguíneo, em

decorrência da baixa ventilação regional ou alta perfusão regional. b

PCA = persistência do canal arterial; DSV = defeito do septo ventricular.

A hipoventilação pode ser causada por uma variedade de distúrbios neuromusculares ou respiratórios (Tabelas 4.9 e 4.11) e é definida por uma PaCO2 elevada ou pela elevação de um de seus marcadores substitutos (PetCO2 ou PvCO2). Uma queda na ventilação alveolar por minuto diminui a liberação de oxigênio para os alvéolos. Aumentar a concentração de oxigénio inspirado aumenta a eficácia na prevenção/tratamento de hipoxemia secundária da hipoventilação. A mistura venosa é a única maneira pela qual o sangue venoso pode ir do lado direito da circulação para o esquerdo sem ser apropriadamente oxigenado. Há quatro causas para que ocorra mistura venosa (Tabela 4.9): (a) baixa razão entre ventilação e perfusão (V/Q); (b) pequeno colapso de via respiratória e alveolar [atelectasia; unidades pulmonares com ventilação zero, mas com perfusão (0 V/Q)]; (c) defeitos da difusão; e (d) desvios anatômicos da direita para a esquerda. Uma alta razão V/Q não causa hipoxemia. Uma doença pulmonar mais difusa resultará em uma combinação de vários dos mecanismos supracitados. O sangue venoso que flui pelos pulmões sem estar oxigenado (desvios anatômicos da direita para a esquerda e atelectasia) mistura-se com o sangue otimamente arterializado, reduzindo o conteúdo de sangue não oxigenado e a PaO2. Em geral, há uma pequena quantidade de mistura venosa no pulmão normal (< 5%).102 Um aumento na mistura venosa representa eficiência reduzida de oxigenação e doença pulmonar parenquimatosa. Ocorre baixa V/Q secundária a estreitamento de pequena via respiratória (broncospasmo, acúmulo de líquido ao longo das paredes das vias respiratórias inferiores, ou edema epitelial), que compromete a ventilação (V) para os alvéolos associados. Também pode ocorrer baixa V/Q com aumento do fluxo sanguíneo (Q) (tromboembolismo pulmonar). O mecanismo de hipoxemia na V/Q baixa é comum e, como a hipoventilação global, responde bem à oxigenoterapia. Ocorre colapso de pequenas vias respiratórias e alveolar quando o acúmulo de líquidos (transudato, exsudato ou sangue) nas vias respiratórias atinge uma tensão superficial crítica, momento em que a via respiratória e o

alvéolo colapsam. O colapso de pequenas vias respiratórias e alveolar nas regiões pulmonares inferiores também é causado comumente por atelectasia posicional (p. ex., anestesia geral ou coma), sendo um mecanismo comum de hipoxemia, e não responde à oxigenoterapia, mas é muito responsivo a aumentos na pressão da via respiratória ou transpulmonar. O comprometimento da difusão, devido a espessamento da membrana respiratória, é uma causa incomum de hipoxemia. O líquido transcapilar que extravasa não se acumula dentro do espaço intersticial no nível da membrana respiratória.228 Para que ocorra um defeito na difusão, os pneumócitos achatados do tipo I têm de ser danificados por inalação ou lesão inflamatória. No processo de cicatrização, os pneumócitos cuboides espessos do tipo II proliferam através da superfície da membrana respiratória.229 Isso representa um defeito substancial da difusão até o momento em que os pneumócitos do tipo II amadureçam em pneumócitos do tipo I. os defeitos da difusão respondem em parte à oxigenoterapia. Desvios anatômicos da direita para a esquerda (p. ex., persistência do canal arterial ou defeito do septo ventricular com hipertensão pulmonar ou tetralogia de Fallot) não são comuns nem respondem ao oxigênio ou à ventilação com pressão positiva; alguns podem ser amenizados mediante intervenção cirúrgica. Tabela 4.10 Efeito da altitude sobre a pressão barométrica, o oxigênio inspirado e a PaO2. Altitude (pés/m)

PB

b

a

(mmHg/mbar)

PIO2 (mmHg)

PaO2 @ PaCO2 40c

PaO2 @ (PaCO2 d

Regra do valor

(mmHg)

compensada)

adicionadoe

Nível do mar

760/1.013

149

95

95 @ 40

120

1.000/305

733/976

143

89

90 @ 39

115

2.000/610

707/942

138

84

86 @ 38

110

3.000/915

682/909

133

79

82@ 37

106

4.000/1.220

659/878

128

74

78 @ 36

101

5.000/1.525

634/844

123

69

75 @ 35

98

6.000/1.830

609/811

118

64

71 @ 34

93

7.000/2.135

586/781

113

59

67 @ 33

89

8.000/2.440

564/751

108

54

63 @ 32

84

9.000/2.745

543/723

104

50

60 @ 31

81

10.000/3.050

523/697

99

45

56 @ 30

76

12.000/3.355

483/643

91

37

50 @ 28

69

15.000/4.575

429/571

80

26

44 @ 24

60

a

PB = pressão barométrica.

b

PIO2 = pressão parcial de oxigênio inspirado. A concentração atmosférica de oxigênio é de 21% em qualquer altitude;

porém, à medida que a altitude aumenta, a pressão barométrica diminui e PatmO2 representada por 21% diminui. c

Supor um gradiente de PA–aO2 de 10 mmHg e um QR de 0,9.

d

Indivíduos em altitude tendem a hiperventilar para compensar a baixa PO2 atmosférica.

e

Ver discussão sobre a regra do valor adicionado a PaCO2 + PaO2.

Tabela 4.11 Razão P/% O2, razão O2/PaO2, razão arterial/alveolar (calculada) e PA–aO2/% de oxigênio inspirado de pulmões normais em concentrações diferentes de oxigênio inspirado. Oxigênio

PaO2 mínima

PaO2/% de O2

inspirado (%)

esperada

inspirado

21

80

40

PA–aO2/%

PA–aO2/PaO2

Gradiente a/A

4

0,31

0,76

1,20

200

5

0,20

0,83

1

60

300

5

0,27

0,79

1,37

80

400

5

0,31

0,76

1,55

100

500

5

0,33

0,75

1,66

inspirado

Estimativa da magnitude da mistura venosa Na doença do parênquima pulmonar, os pulmões em geral falham em sua capacidade de oxigenar o sangue antes de perderem a sua capacidade de remover o dióxido de carbono (hipoxemia e hipocapnia são apresentações comuns em animais com doença pulmonar). Embora seja comum atribuir isso ao fato de que o dióxido de carbono é mais solúvel que o

oxigênio, os defeitos da difusão de oxigênio desempenham um papel mínimo na hipoxemia da doença pulmonar aguda. Além disso, as unidades alveolocapilares que estiverem funcionando relativamente bem podem compensar com facilidade as que estiverem funcionando relativamente mal quanto à eliminação de dióxido de carbono, mas não à captação de oxigênio, por causa da localização de suas respectivas curvas de dissociação onde a ação ocorre. A relação do conteúdo de PCO2:PO2 é um tanto linear em uma ampla faixa de valores clinicamente relevantes de PCO2.144 Os alvéolos que estiverem funcionando mais razoavelmente podem muito efetivamente diminuir o conteúdo capilar de CO2 e, assim, compensar e, na verdade, supercompensar os alvéolos que estiverem funcionando mal. No entanto, a parte da relação do conteúdo de PO2:O2 acima de uma PO2 de cerca de 80 mmHg é um tanto plana (Figura 4.12). Os alvéolos que estiverem funcionando normalmente podem hiperventilar e aumentar a PAO2, mas eles não conseguem aumentar o conteúdo de oxigênio sanguíneo o suficiente para compensar os alvéolos que estiverem funcionando mal de qualquer maneira significativa. Portanto, a PaCO2 pode ser usada para definir a ventilação alveolar por minuto enquanto a PaO2 não pode. A última simplesmente define a oxigenação do sangue enquanto alguma combinação de PaCO2 e PaO2 define a mistura venosa. Há muitas maneiras de quantificar a mistura venosa. Em geral, recomenda-se estimar a mistura venosa com as condições prevalecentes de tratamento, não sob alguma condição arbitrária (como ‘sempre que o paciente respirar ar ambiente’ ou ‘sempre que respirar oxigênio a 100%’ ou ‘sempre que estiver sem suporte ventilatório’ ou ‘sempre com certos ajustes do ventilador’). Embora a última abordagem possa proporcionar uma avaliação mais consistente da fisiopatologia subjacente, a primeira abordagem indexa melhor a efetividade terapêutica e orienta a retirada de tal suporte. O aumento do oxigênio inspirado (PIO2) quase sempre aumenta a PaO2, mas também pode melhorar simultaneamente (ao melhorar a oxigenação de regiões com baixo V/Q) ou agravar (ao aumentar as regiões de 0 V/Q via absorção da atelectasia) os índices de mistura venosa.230−232 O aumento da pressão média na via respiratória com ventilação com pressão positiva (incluindo a PEEP e a CPAP) vão reabrir as pequenas vias respiratórias colapsadas e, assim, melhorar os índices de função pulmonar quando a 0 V/Q é um mecanismo predominante da hipoxemia basal.233 Com a respiração de oxigênio a 21%, o cálculo recíproco da PaCO2:PaO2 dará ao clínico alguma ideia acerca da função pulmonar. Nos alvéolos, o vapor d’água é fixado em cerca de 50 mmHg em virtude da saturação dos gases alveolares em 100% à temperatura corporal e o nitrogênio é fixado em cerca de 560 mmHg em virtude de ser um equilíbrio com a atmosfera terrestre. O oxigênio e o dióxido de carbono têm uma relação recíproca. A ventilação libera oxigênio e remove dióxido de carbono, enquanto o sangue venoso libera dióxido de carbono e remove oxigênio dos alvéolos. A ‘troca’ de O2 e CO2 ocorre a uma

razão aproximada de 1:1 [determinada pelo metabolismo; há uma produção um pouco menor de CO2 do que o oxigênio consumido (quociente respiratório)]. A PaCO2 normal é de 40 mmHg e a PaO2 mínima compatível com com ‘normoxemia’ é de 80 mmHg. Se a PaCO2 diminuir 20 mmHg por hiperventilação, a PaO2 deve aumentar cerca de 20 mmHg. Um valor de PaO2 inferior a 100 mmHg, quando a PaCO2 for de 20 mmHg, sugere mistura venosa e vive-versa. Se a PaCO2 aumentar 20 mmHg, a PaO2 deve diminuir aproximadamente a mesma quantidade. Outra versão da relação recíproca entre PaCO2 e PaO2 é o valor adicionado de PaCO2 + PaO2. Ao respirar 21% de oxigênio ao nível do mar, a soma da PaCO2 com a PaO2 normalmente resulta em, pelo menos, 120 mmHg. Um valor adicionado inferior a esse de 120 mmHg sugere a presença de mistura venosa e, quanto maior a discrepância, pior a função pulmonar. Com a respiração de oxigênio, ou em altitude, essa regra do valor adicionado ou ‘regra 120’ não pode ser usada. Em altitude, a PO2 atmosférica e a alveolar e a arterial diminuem, e a ‘regra do valor adicionado’ diminui proporcionalmente (Tabela 4.10). O gradiente de PO2 alveolar-arterial (PA–aO2) é um índice comum da eficiência da oxigenação pulmonar. A PO2 alveolar (PAO2) é calculada pela equação do ar alveolar: PAO2 = [(PB − PH2O) × % de oxigênio inspirado] − PaCO2 (1/QR) em que PB = pressão barométrica, PH2O = pressão do vapor dágua saturado à temperatura corporal e QR = quociente respiratório. Pode-se medir a pressão barométrica ou obtê-la consultando uma estação climática local. Por questão de simplicidade, pode-se presumir que seja um valor médio para a altitude da área (Tabela 4.10), 760 mmHg ao nível do mar. A pressão do vapor dágua saturado em 38,1°C é de 50 mmHg. Ao nível do mar, respirando 21% de oxigênio, calcula-se o oxigênio inspirado (PIO2) como (760 − 50) × 0,21 = 149 mmHg (que, por questão de simplicidade, pode ser arredondado para 150 mmHg na fórmula encurtada): PAO2 = 150 − PaCO2(1,1); presume-se que o QR seja de 0,9 (1/0,9 = 1,1). Em pessoas e cães em estado crítico, o QR varia de maneira considerável, dependendo de circunstâncias metabólicas. Nas pessoas criticamente enfermas, há relatos de que o QR variou 0,85 e 0,95.234−235 Em cães com uma variedade de doenças, o QR varia entre uma faixa estreita de 0,8 a 0,9236−239 e uma faixa ampla de 0,7 a 1.240,241 A média de todos os 54 valores relatados de QR a partir das referências citadas é de 0,86 ± 0,06. O valor foi arredondado para 0,9 para os cálculos propostos aqui porque representa um valor de QR próximo da média daquela relatado e por permitir o cálculo fácil ao lado da jaula (1/0,9 = 1,1). Ao se usar uma planilha eletrônica, 0,86 pode ser uma média mais representativa, supondo-se que os valores individuais do QR variem bastante. Calcula-se a PA–aO2 como a

diferença entre a PAO2 e a PaO2 medida. O gradiente da PA–aO2 relatado foi inferior a 10 mmHg em cães normais;102 valores acima de 20 mmHg são considerados representantes de menor eficiência da oxigenação (alguma mistura venosa). A equação completa do ar alveolar PA–aO2 pode ser usada em qualquer altitude [com a alteração apropriada na pressão barométrica (Tabela 4.10)] e com qualquer concentração de oxigênio inspirado. Lamentavelmente, o gradiente normal PA–aO2 aumenta com concentrações mais altas de oxigênio inspirado e pode chegar a 100 a 150 mmHg com uma concentração de oxigênio inspirado de 100%. Não foram determinados valores interinos, mas uma hipótese é a de que o gradiente PA–aO2 deva ficar entre um valor igual ao da concentração de oxigênio inspirado e um valor igual a uma vez e meia a concentração de oxigênio inspirado (i.e., com 80% inspirado, a PA–aO2 deve ser de 80 a 120 mmHg: valores maiores do que 120 mmHg indicariam mistura venosa). Foram usadas muitas abordagens para compensar a variação no PA–aO2 associada a variações no oxigênio inspirado (Tabela 4.11): (1) PaO2/oxigênio inspirado (razão P/F) (ver discussão a seguir) [valores < 5 (ou 500) sugerem mistura venosa]; (2) o índice respiratório (IR): IR = PA–aO2/PaO2 (os valores normais calculados variam entre 0,2 e 0,33; valores > 0,4 sugerem mistura venosa); (3) índice de PO2 arterial/alveolar230,240 (os valores normais calculados variam entre 0,75 e 0,83; valores < 0,70 sugerem mistura venosa); e (4) PA–aO2/% de oxigênio inspirado (os valores normais calculados variam entre 1 e 1,7; valores > 1,8 sugerem mistura venosa). Das quatro, é mais fácil calcular PO2 inspirado/oxigênio inspirado (razão P/F), enquanto as demais, apesar da matemática extra, não aumentam a acurácia da avaliação. Ao respirar 21% de oxigênio, as alterações na PACO2 têm um impacto importante na PAO2 e, portanto, na PaO2. Ao respirar 21% de oxigênio, a PACO2 tem de ser considerada, como nas abordagens mencionadas no parágrafo anterior. Com concentrações de oxigênio progressivamente mais altas, alterações na PaCO2 têm efeitos quantitativamente menos importantes sobre a PACO2 e, por conveniência, têm sido ignorados nesse método de estimar a mistura venosa. Quando um animal está respirando uma concentração conhecida alta de oxigênio, conforme é comum durante anestesia, simplesmente divide-se a PaO2 medida pela concentração de oxigênio inspirado, que pode ser expressa como 21 a 100% (razão PaO2/%) ou 0,21 a 1 (razão PaO2/FIO2). Quanto mais baixo esse dividendo, pior a função pulmonar (Tabela 4.12). As vantagens dessa abordagem P/F são a simplicidade e o fato de possibilitar comparações sobre o desempenho pulmonar em concentrações diferentes de oxigênio inspirado com o animal na jaula. Infelizmente, a razão P/F não é tão linear como se esperaria.230,231 Embora razoavelmente linear entre concentrações de oxigênio inspirado de 40 e 80% com desvios verdadeiros inferiores a 30% e entre 40 e 100% com desvios verdadeiros > 30%,230 o formato real da curva pode variar bastante, de maneira bifásica em concentrações diferentes de oxigênio inspirado e com magnitudes

diferentes de desvio e diferenças variadas no conteúdo arteriovenoso de oxigênio.231 Tendências ascendentes do P/F nas respostas à terapia fornecem ao clínico uma guia na efetividade terapêutica, ao passo que tendências à descida podem ser usadas para orientar no sentido da retirada de tal suporte. O índice da razão P/F fornece uma avaliação funcional da eficiência da oxigenação pulmonar no contexto do oxigênio inspirado e dos ajustes do ventilador vigentes, ante a fisiopatologia pulmonar em questão. O índice de oxigenação [(pressão média na via respiratória × % de oxigênio inspirado)/PaO2] foi sugerido como um meio de se caracterizar melhor a fisiopatologia pulmonar subjacente e minimizar variações no índice da razão P/F decorrentes de variações na FIO2 e na pressão média da via respiratória.242,243 Os valores da PaCO2 têm sido ignorados nesse cálculo, mas isso não significa que não tenham influência. Caso variem muito entre duas comparações, pode-se admitir que valores comparáveis de P/F provavelmente tenham que variar mais de 20% para representar uma alteração verdadeira na eficiência da oxigenação. É possível conseguir consistência entre medições acrescentando-se a PaCO2 medida à razão P/F calculada (ou PaCO2 × 0,01 à razão P/%) (dois cálculos precisam variar apenas cerca de 10% para representar uma diferença verdadeira quando a PaCO2 é incorporada no cálculo). Não se deve usar o cálculo da P/F quando o animal estiver respirando (oxigênio a 21%). Ao respirar ar ambiente, os cálculos podem ser enganadores, em particular quando os valores da PaCO2 sãoelevados. Tabela 4.12 Razões de PaO2/% de oxigênio inspirado e PaO2/FIO2 associadas a piora da mistura venosa. Concentração de PaO2/O2 inspirado (21 a 100%) (razão

PaO2/FIO2 (0,21 a 1) (razão P/F)

P/%) Normal

>5

> 500

Mistura venosa leve

3a5

300 a 500

Mistura venosa moderada

2a3

200 a 300

Mistura venosa grave

4 min). É importante que o profissional que esteja realizando a RCP entenda que a compressão deve ser retomada imediatamente após o choque da desfibrilação, sem interrupção até se concluir um ciclo completo de RCP. Ao escolher um desfibrilador, deve-se dar preferência aos de onda bifásica, tidos como tão ou mais efetivos que os monofásicos. Os desfibriladores bifásicos requerem menos energia para a desfibrilação bem-sucedida, acarretam menos traumatismo tecidual e menos danos cardíacos.65 A desfibrilação elétrica deve começar com 2 a 5 J/kg e 50% de aumento na energia a cada tentativa subsequente. RCP e anestesia Poucos estudos visaram à incidência de PCP na prática veterinária. Um estudo recente revelou 204 eventos de PCP (161 cães e 43 gatos) em um hospital de ensino durante um período de 5 anos. Destes, apenas 19 (0,1%) ocorreram em pacientes anestesiados.49,53 Apesar da rara ocorrência de PCP em pacientes durante anestesia, tais casos requerem atenção especial. Animais que apresentam PCP durante anestesia têm uma chance bem maior de reanimação bem-sucedida do que aqueles que não estão anestesiados quando sobrevém a parada.63 Em geral, os pacientes anestesiados têm um acesso venoso estabelecido e estão intubados, respirando oxigênio. Além disso, a PCP tende a ser

reconhecida mais rapidamente, porque o paciente está sendo monitorado adequadamente. Se a PCP relacionada com anestesia for causada por superdosagem medicamentosa, devem ser administrados agentes reversores, se apropriado. Aqueles como naloxona, flumazenil e atipamezol devem ser administrados no caso de superdosagem de opioide, benzodiazepínico ou um agonista do receptor adrenérgico α2, respectivamente. Todos os anestésicos inalatórios causam depressão miocárdica e seu uso deve ser interrompido durante a RCP. O resgate de lipídio (discutido adiante neste capítulo) pode ser considerado em animais com PCP causada por superdosagem de anestésico local. Se a PCP ocorrer durante uma cirurgia abdominal, deve-se considerar a RCP com o tórax aberto, por alcançar o coração através do diafragma. Durante essa abordagem, é preciso cuidado para evitar lacerar a veia cava e a aorta. Cuidados pós-reanimação Síndrome da parada pós-cardíaca é uma designação (cunhada pelo ILCOR em 2008) que se refere a eventos fisiopatológicos após RCE e inclui lesão cerebral, doença renal aguda, dano miocárdico, vasodilatação grave e coagulopatia, secundárias ao fluxo sanguíneo lento e à lesão subsequente causada por isquemia e reperfusão.65 Podem sobrevir a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SRIS) e a síndrome da dificuldade respiratória aguda (SDRA). A mortalidade (da segunda parada) é muito comum nas primeiras 24 h após a reanimação. Os cuidados com a parada pós-cardíaca devem ser agressivos e o paciente deve ser monitorado de maneira intensiva. Os objetivos do tratamento estão relacionados na Tabela 5.2. Os protocolos terapêuticos baseiam-se na otimização hemodinâmica direcionada para a meta, na proteção do cérebro e na hipotermia terapêutica.65 Otimização hemodinâmica Para evitar morbidade adicional, a perfusão adequada dos órgãos deve ser restabelecida durante a fase de parada pós-cardíaca. As metas respiratórias são manter uma PaO2 de 80 a 100 mmHg ou uma saturação de 94 a 98%. A hiperoxemia (PaO2 > 100 mmHg) pode causar aumento nos radicais livres e lesão neurológica. Hipoventilação é comum após RCP. É importante assegurar ventilação espontânea ou mecânica que mantenha uma PaCO2 aproximada de 32 a 43 mmHg. A principal meta cardiovascular é manter a pressão sanguínea sistólica em 100 a 200 mmHg (pressão sanguínea média de 80 a 100 mmHg). Hipotensão pode ser indicativa de hipovolemia ou diminuição da resistência vascular. Em tais casos, está indicado o uso de terapia com líquido, agentes inotrópicos e vasopressores. Tabela 5.2 Objetivos pós-RCP. Objetivo

Intervenção possível

Otimizar a função pulmonar

Suplementação com oxigênio

Manter a saturação em 94 a 98%

Ventilação com pressão positiva (VPP)

Manter a PaO2 em 80 a 100 mmHg Manter a PaCO2 em cerca de 32 a 43 mmHg Otimizar a perfusão de órgãos vitais:

Inotrópicos

Pressão sanguínea sistólica de 100 a 200 mmHg

Terapia com líquido

Pressão sanguínea média de 80 a 100 mmHg

Vasopressores

Lactato < 2,5 mml/ℓ Hipotermia terapêutica Proteção cerebral

Solução fisiológica hipertônica Evitar convulsões Anestesia intravenosa total (AIVT)

Prevenir a recorrência da parada

Transfusão sanguínea

Verificar novamente os eletrólitos Monitorar ECG e pressão sanguínea invasiva

Hipotermia terapêutica Há pouca informação sobre a hipotermia terapêutica (HT) para a síndrome de parada póscardíaca na medicina veterinária. Suas vantagens incluem reduções na necessidade de oxigenação cerebral, na demanda metabólica do cérebro, nos neurotransmissores excitatórios, nas citocinas inflamatórias e nos radicais livres, junto com a inibição de apoptose das células neuronais.65 A hipotermia leve (36°C) parece ser uma meta segura, embora a temperatura visada ideal e a velocidade de reaquecimento ainda não tenham sido estabelecidas na medicina veterinária. Em seres humanos, a hipotermia pós-parada reduziu em 20% a mortalidade hospitalar após parada cardíaca resultante de VF, mas esse benefício não foi observado em pacientes com APE ou assistolia.65 Portanto, é possível que a hipotermia terapêutica seja benéfica em um subgrupo de pacientes, como após fibrilação

ventricular. As complicações da HT incluem desconforto, demora na cicatrização tecidual e coagulopatia. Dispositivos adjuvantes para RCP Um dispositivo de impedância limiar (DIL) é aquele conectado ao tubo endotraqueal, para controlar a entrada de ar nos pulmões. Ele contém válvulas sensíveis à pressão, que requerem que seja alcançado certo limiar inspiratório (ou ‘pressão de abertura’) antes do influxo de gás inspiratório. A pressão de abertura é ajustada no momento da fabricação. Durante a fase de descompressão da RCP, a pressão da via respiratória superior do paciente diminui e causa o fechamento da válvula. Ao acentuar a PItt negativa durante o recolhimento do tórax, o DIL pode aumentar o retorno venoso e o débito cardíaco.54 O DIL mostrou-se benéfico para melhorar a PPCE e a pressão aórtica. Foi usado um modelo suíno de parada cardíaca para investigar os efeitos de um DIL sobre a perfusão de órgãos vitais durante a RCP. Usou-se um DIL completamente funcional para o grupo experimental e, para o grupo de controle, foi usado um DIL simulado, que não oclui a via respiratória durante a fase de descompressão da RCP. As pressões intratorácicas foram mais baixas no grupo do DIL funcional (−5,2 ± 0,5 mmHg), em comparação com o grupo não funcional (−1,1 ± 0,2 mmHg). No grupo do DIL funcional, o fluxo sanguíneo de órgãos vitais aumentou com um dobro da PPCE. Em comparação com o grupo de controle, o do DIL mostrou melhoras na PItt, na PPC, na pressão arterial média e na taxa de sobrevivência (54,5% versus 18,1% nos controles).66 O Resuscitation Outcomes Consortium (ROC) PRIMED (Prehospital Resuscitation using an IMpedance valve and Early versus Delayed analysis) foi o maior estudo clínico multicêntrico humano duplo-cego destinado a investigar o efeito do DIL na sobrevivência até a alta em casos de parada cardíaca extra-hospitalar.67 Este estudo revelou que o uso de um DIL melhorou a sobrevivência a curto prazo, mas não a longo prazo.67 Devido aos seus efeitos sobre a dinâmica cardiovascular intratorácica, há uma preocupação de que o DIL possivelmente cause patologia pulmonar. Pode ocorrer edema pulmonar, porque o aumento das diferenças de pressão transtorácica (entre a intratorácica e a alveolar) pode favorecer o extravasamento capilar. No entanto, nenhuma evidência de dano de órgão ou edema pulmonar foi encontrada em suínos após o uso de um DIL.59 Em um nível microscópico, não havia evidência de atelectasia, hemorragia pulmonar ou edema neste estudo.59 Um DIL não deve ser recomendado para cães pequenos (< 5 kg) ou gatos. Contraindicações para o DIL ResQPod® (Advanced Circulatory, Roseville, MN, EUA) incluem insuficiência cardíaca congestiva, cardiomiopatia dilatada, hipertensão pulmonar, estenose aórtica, contusão torácica, dor torácica e falta de ar. O uso clínico de DIL em pacientes veterinários ainda está sendo avaliado.

Sistema respiratório Os problemas respiratórios estão implicados em até 50% dos óbitos caninos e 66% dos óbitos de felinos relacionados com anestesia.1,2,5 Ocorre hipoventilação grave em até dois terços dos cães anestesiados e são poucos os sinais clínicos associados,9 de modo que ela passará despercebida, a menos que o volume corrente ou os níveis de dióxido de carbono sejam medidos. O suporte respiratório tem importância vital para um bom desfecho da anestesia.

■ Depressão respiratória Define-se depressão respiratória como uma condição em que a depuração pulmonar de dióxido de carbono é insuficiente, sendo detectada como um aumento no dióxido de carbono arterial ou do volume corrente, não como uma diminuição da frequência respiratória. Todos os agentes anestésicos causam alguma depressão respiratória. A hipercapnia não será detectada, a menos que o dióxido de carbono esteja sendo medido. Embora uma ligeira elevação acima do normal possa ser benéfica para a maioria dos pacientes (hipercapnia permissiva), caso se queira uma queda significativa da concentração de dióxido de carbono no volume corrente, deve-se diminuir o nível anestésico ou pode ser necessário instituir-se a ventilação manual ou controlada mecanicamente desse paciente. Apneia é a manifestação extrema de depressão respiratória, que deve ser tratada imediatamente por intubação endotraqueal e ventilação com oxigênio. Deixada sem tratamento, a apneia levará rapidamente à hipóxia, resultando em acidose respiratória grave e parada cardíaca. É comum ocorrer apneia durante anestesia e algumas das causas incluem a injeção rápida dos fármacos de indução anestésica ou de analgésicos opioides e a profundidade excessiva da anestesia inalatória. Embora rara, a apneia é um dos primeiros sinais de herniação do tronco cerebral e parada cardíaca.

■ Hipóxia A ocorrência de hipóxia (PaCO2 < 60 mmHg) é relatada em 0,5% dos cães anestesiados enquanto respiram misturas enriquecidas com oxigênio, mais comumente nos submetidos a toracotomia, endoscopia e broncoscopia.1 Em geral, a hipóxia ocorre sem cianose e só será detectada quando leve pela oximetria de pulso ou pela gasometria arterial. Isto é um endosso sólido para o uso rotineiro da oximetria de pulso em todo paciente durante a anestesia e a recuperação. A hipoxemia está associada a acidose láctica, arritmias malignas e dano cardíaco, muscular, renal e neurológico, culminando em parada cardíaca. Embora haja algumas condições e procedimentos associados à hipóxia, ela é mais ameaçadora para um paciente quando grave e não detectada. Algumas condições

encontradas durante a prática clínica rotineira e associadas à hipoxemia inesperada incluem intubação endobrônquica (iatrogênica), um tubo endotraqueal ocluído com muco, oclusão causada por dobra ou pelo manguito e a presença de líquido na pleura não diagnosticado (Figura 5.1) ou pneumotórax não diagnosticado. Outra causa de hipoxemia é a obstrução da via respiratória secundária a laringospasmo, que ocorre mais comumente em gatos e em especial após a administração de tiobarbitúricos ou em resposta à estimulação direta da área glótica. Se ocorrer laringospasmo, a aplicação IV ou direta (mais comumente) de lidocaína a 2% nas cartilagens aritenoides em geral relaxa o espasmo e permite a passagem do tubo endotraqueal através da laringe. A aplicação profilática de lidocaína nas cartilagens aritenoides é o procedimento padrão para alguns anestesistas quando intubam gatos e suínos. Raças caninas braquicefálicas são particularmente propensas à obstrução da via respiratória durante o período perianestésico. Elas são propensas à obstrução e à morte se não forem atendidas após receberem sedativos ou anestésicos. Agentes de ação curta que deixam pouco efeito residual devem permitir que esses cães despertem rapidamente e recuperem o controle da via respiratória. Estes casos são de alto risco e devem ser tratados de maneira intensiva para assegurar um bom desfecho. Há relatos da ocorrência ocasional de edema pulmonar associado à hipóxia em equinos durante a recuperação da anestesia e é provável que esteja associado a obstrução da via respiratória. Tais casos manifestam-se por taquipneia, agitação e secreção nasal.68 O tratamento é de suporte: deve-se assegurar a desobstrução da via respiratória e administrar oxigênio e furosemida. O tratamento da hipóxia deve progredir, conforme necessário, da administração de oxigênio (nasal, por máscara ou câmara) para a intubação endotraqueal e a ventilação controlada, incorporando elevação da pressão máxima de via respiratória e níveis apropriados de pressão expiratória final positiva. O monitoramento da oxigenação arterial com a gasometria sanguínea ou a oximetria de pulso será útil para orientar o tratamento.

Figura 5.1 Radiografia torácica lateral de um cão com líquido na pleura não detectado clinicamente, que desenvolveu dessaturação da hemoglobina e hipoxemia arterial durante anestesia para TC de massa no pescoço.

■ Pneumotórax agudo Pode-se categorizar o pneumotórax pela etiologia como espontâneo, traumático ou iatrogênico.69 O pneumotórax é raro como complicação da anestesia. Sua ocorrência tem sido observada como uma complicação de cirurgias, inclusive biopsia hepática laparoscópica, cirurgia abdominal cranial e reparo de hérnia diafragmática. Um dos autores (D.V.W.) também observou que o lavado brônquico acarreta pneumotórax fatal. Em pacientes com contusões pulmonares ou bolhas pulmonares, o desenvolvimento de pneumotórax é um risco esperado. Lacerações traqueais secundárias à intubação de gatos podem manifestar-se como pneumotórax logo após a intubação, embora geralmente se note primeiro a crepitação subcutânea. Em cães com pneumotórax, o tórax expande-se progressivamente, permitindo que o paciente tolere um volume pleural de ar equivalente a 2,5 a 3,5 vezes a capacidade

funcional residual (CRF de aproximadamente 45 mℓ/kg).70,71 À expansão máxima do tórax, os músculos inspiratórios (incluindo o diafragma) não podem funcionar e a respiração fica gravemente comprometida, podendo cessar.72,73 Se houver pneumotórax de tensão, não apenas haverá colapso pulmonar, como o ar intratorácico se acumulará e a PItt aumentará, com o colapso da veia cava e até a da aorta, levando rapidamente ao colapso cardiovascular e à morte. O quadro clínico do pneumotórax pode simular o do broncospasmo grave. Outras exclusões potenciais de acordo com os sinais clínicos incluem obstrução de via respiratória e intubação endobrônquica. A manifestação é um padrão respiratório rápido e superficial, com ativação dos músculos acessórios da respiração, à medida que a hipoxemia progride, levando a uma inspiração anormal, do tipo ofegante, que pode parecer (e é) um padrão respiratório pré-terminal (agônico). A parede torácica pode ser hiper-ressonante à percussão e agudamente timpânica se houver pneumotórax de tensão.69 Sons respiratórios diminuídos, taquicardia e hipotensão serão observados. Há também elevação da pressão na via respiratória (durante ventilação mecânica) e redução da complacência torácica. Se não houver intervenção, seguem-se cianose e parada cardíaca. O monitoramento com oximetria de pulso, a complacência da parede torácica durante ventilação manual intermitente, o dióxido de carbono no volume corrente e a pressão arterial, em geral, fornecerão uma indicação relativamente precoce de que algo mudou dentro da cavidade torácica, devendose suspeitar de um pneumotórax de tensão. Na vigência de um defeito na parede torácica (pneumotórax aberto), ou durante reparo de hérnia diafragmática, o início da ventilação com pressão positiva estabilizará o paciente até que o defeito possa ser localizado e reparado. No caso de um pneumotórax fechado, o início da ventilação com pressão positiva pode causar progressão rápida para pneumotórax de tensão. Ao se comprimir a bolsa respiratória, é possível sentir como se estivesse tentando ventilar um tijolo – nenhum ar se move para dentro nem para fora. O pneumotórax pode progredir rapidamente para parada cardíaca, de modo que o diagnóstico e o tratamento a tempo são críticos e uma resposta à situação pode salvar a vida do paciente. O tratamento começa com atenção para o ABC, como em todos os pacientes com colapso. Uma radiografia torácica revela facilmente a condição, mas, com o início agudo típico e a progressão rápida deste problema, em geral a toracocentese diagnóstica deve ser a intervenção inicial.69 A confirmação do problema e o tratamento definitivo envolvem a drenagem do ar pleural. Pode ser necessário toracostomia com tubo se houver extravasamento de ar em andamento, evidenciado pela recorrência do sintoma e pela necessidade de se repetir a drenagem torácica.

■ Broncospasmo

Qualquer paciente pode desenvolver broncospasmo fulminante sob anestesia, como resultado de uma reação medicamentosa ou intervenção física na via respiratória. Em espécies com as vias respiratórias particularmente reativas, como gatos e ovinos, a intubação endotraqueal ocasionalmente pode precipitar broncospasmo profundo. A instilação de líquido durante lavagem broncoalveolar pode iniciar broncospasmo e, em geral, está associada a uma hipóxia responsiva ao oxigênio.74 Também pode ocorrer broncospasmo como uma resposta à aspiração de conteúdo do rúmen ou gástrico. Felizmente, é um evento raro. A anamnese, os sinais clínicos, o momento de ocorrência dos eventos e a resposta ao tratamento devem levar ao diagnóstico. Os sinais clínicos encontrados em um paciente com broncospasmo incluem dificuldade de manter uma saturação aceitável de hemoglobina, taquipneia, taquicardia e aumento de pressão nas vias respiratórias. Se estiver sendo ventilado, uma onda característica é observada no capnógrafo e podem ser auscultados sibilos. Nos casos extremos, o ar pode mover-se para o tórax, e os sons respiratórios não serão audíveis. Pacientes com vias respiratórias inflamadas ou reativas em geral toleram bem a anestesia inalatória, pois o halotano, o isofluorano e o sevofluorano, mas não o desfluorano, causam relaxamento dos brônquios,75 assim como a cetamina.76 Pode ocorrer broncospasmo como um evento novo durante a recuperação da anestesia. Com manifestações como sibilos e taquipneia, isso foi observado em três equinos que estavam se recuperando de anestesia inalatória (D. V. Wilson, observação inédita). Levantou-se a hipótese de que tais equinos tiveram uma broncoconstrição de rebote. Em todos os três foram observadas resposta rápida à atropina IV (dois equinos) ou à inalação de albuterol (um equino) e recuperação normal subsequente da anestesia. Também se mostrou que ocorrem bronco e laringospasmo em crianças após anestesia com isofluorano.77 Em geral, o tratamento do broncospasmo é iniciado com um broncodilatador, como o albuterol, por meio de máscara ou no circuito respiratório, perto do tubo endotraqueal. Quando a ventilação dos pulmões não é possível ou a nebulização é impraticável, a administração subcutânea ou intravenosa de terbutalina ou atropina deve resultar em broncodilatação rápida e efetiva. Se a parada cardíaca for iminente, então poderá haver necessidade de epinefrina ou RCP. Caso haja suspeita ou esperada aspiração de conteúdo ruminal ou gástrico, deve-se considerar a lavagem pulmonar. Em não ruminantes, essa lavagem é mais controversa.

■ Volutrauma e barotrauma Mesmo períodos breves de hiperinsuflação pulmonar podem resultar em extravasamento e

acúmulo extra-alveolar de ar.78,79 Em um gato, foram relatados barotrauma e pneumotórax após o fechamento de uma válvula limitante de pressão ajustável (LPA).80 O mais importante é que mesmo períodos breves de hiperexpansão pulmonar causam aumentos na permeabilidade endotelial e epitelial, o que resulta em edema e dano ultraestrutural grave78,79 e pode ocasionar edema pulmonar fulminante, com transbordamento traqueal, hipoxemia grave e morte.81 Embora a hiperinsuflação pulmonar geralmente acompanhe o fechamento prolongado inadvertido ou o mau funcionamento da valva LPA, a obstrução da via respiratória superior também foi implicada no desenvolvimento de edema pulmonar fulminante em equinos que estavam se recuperando de anestesia.68 O uso de um monitor de pressão da via respiratória permite a detecção precoce da maioria dos casos de fechamento acidental da valva LPA.

■ Lacerações traqueais Ocorrem lacerações traqueais iatrogênicas após aproximadamente 1 em 20.000 intubações em pessoas, com as mulheres sendo mais afetadas.82 A pequena via respiratória do gato doméstico também o coloca em risco.83 As lacerações traqueais associadas à intubação endotraqueal são lesões localizadas e iatrogênicas do músculo traqueal dorsal, longitudinal, mais comumente relatadas em gatos (Figura 5.2) e, em alguns casos, em cães de pequeno porte.84 Dois estudos retrospectivos revelaram os dados de 36 gatos com lacerações traqueais.85,86 Elas tinham 2 a 5 cm de comprimento e foram mais comuns no nível da entrada torácica, menos frequentes na parte torácica da traqueia ou estendendo-se para a carina.83,85,86 O intervalo entre a anestesia e o diagnóstico da laceração variou de 4 h a 14 dias. Os fatores de risco incluem procedimentos dentários (83% dos casos), uso de um estilete e múltiplas trocas de posição, embora nenhum fator estivesse associado a todos os casos. É possível que a insuflação excessiva do manguito seja a causa de algumas lacerações traqueais. Verificou-se que, em 19 gatos, bastou uma média de 1,6 mℓ de ar no manguito do tubo endotraqueal para que se obtivesse uma boa vedação do ar.85 No entanto, ao forçarmos até 10 mℓde ar em um manguito tanto sob alta pressão e baixo volume como sob baixa pressão e alto volume, mostrou-se que isso causa ruptura traqueal na maioria dos gatos de ambos os grupos (3 de 5 e 4 de 5 gatos, respectivamente).85 O sinal clínico predominante associado a lacerações traqueais é enfisema subcutâneo impressivo da região cervical, que se dissemina rapidamente, com subsequente dificuldade respiratória (Figura 5.3). Os pacientes radiografados em geral têm pneumomediastino, com disseminação para o pneumotórax e o espaço retroperitoneal também tendo sido relatada.85−87 A broncoscopia nem sempre revela a laceração86 e, em alguns casos, a TC tem sido usada para identificar o local da ruptura.88 Aproximadamente metade dos gatos com lacerações traqueais após a intubação

melhora com tratamento conservador, oxigenoterapia e repouso em confinamento.85,86 Dispneia progressiva é uma indicação para intervenção cirúrgica.85,87 O plano anestésico para reparo cirúrgico de uma laceração traqueal deve começar com a indução intravenosa suave e a intubação endotraqueal com um tubo menor do que o esperado, que seja longo o suficiente para passar para a carina, esperando-se que o faça abaixo da laceração. Gatos com uma laceração que se estenda para a carina serão um desafio anestésico maior, e a mortalidade durante a cirurgia é alta.85,89

Figura 5.2 Laceração traqueal em um gato exposta durante o reparo cirúrgico da lesão. Fonte: Dr. Bryden J. Stanley, Department of Small Animal Clinical Sciences, Michigan State University, East Lansing, MI, EUA. Reproduzida, com autorização, do Dr. Bryden J. Stanley. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 5.3 Radiografia torácica lateral de um gato com uma laceração traqueal mostrando edema subcutâneo extenso e o trajeto de ar também extenso no mediastino e no espaço retroperitoneal.

■ Aspiração pulmonar A pneumonia por aspiração tornou-se uma sequela bem reconhecida da anestesia em cães, com relatos de que a anestesia precede 13 a 16% de todos os casos de AP.90−92 Com base em um grande estudo retrospectivo multicêntrico, a prevalência estimada de AP pósanestésica em cães é de 0,17%, ou 1,7 de cada 1.000 eventos anestésicos.93 Na maioria dos cães, o evento de aspiração não é presenciado, razão pela qual é uma meta importante desenvolver estratégias de proteção para os pacientes em risco.93 Os procedimentos associados a alto risco subsequente de AP incluem cirurgia da via respiratória, neurocirurgia, laparotomia, toracotomia e endoscopia.93 É interessante a baixa probabilidade de que cães submetidos a cirurgia ortopédica desenvolvam AP. Os fatores significativamente associados ao desenvolvimento de AP pós-anestésica incluem regurgitação durante a anestesia ou a recuperação, bem como a administração de opioides (especificamente hidromorfona) na indução. Fatores de risco combinados, como a regurgitação em um cão durante um procedimento de alto risco, aumentam muito a probabilidade de AP.93 Material ácido aspirado induz a dano alveolar grave e hiper-responsividade da via respiratória,94 que se manifesta como broncospasmo e hipóxia. O diagnóstico de AP em cães baseou-se em uma combinação de anamnese, sinais clínicos, dessaturação arterial da hemoglobina, radiografias torácicas, lavado transtraqueal com culturas bacterianas ou

necropsia.90−92,95,97 A prevenção seria ideal e mostrou-se que inibidores da bomba de prótons e procinéticos reduzem a probabilidade de refluxo gastresofágico (RGE) e, portanto, devem ajudar pacientes em risco.98,99 Outras classes de antieméticos também podem oferecer proteção durante a recuperação. Tendo ocorrido AP, o tratamento deve ser sintomático, incluindo antibióticos, oxigênio e, talvez, broncodilatadores, se forem observados sibilos.

Fatores medicamentosos Embora sem comprovação, erros na manipulação de fármacos em medicina veterinária são comuns, ainda que não haja dados publicados sobre sua prevalência. Trocas de fármacos, em seringas etiquetadas ou não, parecem mais comuns e, muitas vezes, podem causar uma breve agitação, mas não consequências significativas (uma ‘quase perda’). O cloreto de potássio pode causar um acidente letal quando administrado por via intravenosa, embora um problema encontrado mais comumente seja com anestésicos locais, em especial a bupivacaína administrada inadvertidamente por via intravenosa. Sem dúvida, etiquetar as seringas e conferir com atenção o nome do fármaco são hábitos importantes que devem ser adquiridos. Foi feita alguma estimativa destes erros de manipulação de fármacos na anestesia humana. Um estudo com 8.000 anestésicos em dois hospitais da Nova Zelândia usou um sistema anônimo e de autorrelatos (conclusão da pesquisa) para determinar que a taxa de erros na administração de fármacos relacionada com anestésico foi de 0,75%, com uma taxa de ‘quase perda’ de 0,37%. Este estudo determinou que os erros mais frequentes foram na dose (20%) e substituição de fármacos (20%). A maioria dos erros (63%) envolveu doses intravenosas de ataque, 20% envolveram infusões e 15%, agentes inalatórios.100,101 As estratégias que mostraram reduzir a chance destes erros incluem sempre ler os rótulos e etiquetas com cuidado, o uso de etiquetas e rótulos legíveis em ampolas e seringas de acordo com padrões estabelecidos, etiquetar as seringas e conferir se estão corretas com outra pessoa ou algum dispositivo antes de administrar os fármacos.102 A superdosagem de fármacos é citada como uma causa de mortalidade associada à anestesia.2 Na medicina veterinária, não há medida da frequência deste tipo de evento. O reconhecimento de uma superdosagem de fármaco pode ser difícil, mas tal evento pode manifestar-se como hipotensão, colapso cardiovascular, arritmias cardíacas ou recuperação prolongada da anestesia. Um relato descreveu um cão que recebeu uma superdosagem de meperidina equivalente a 10 vezes a dose normal e o desfecho foi bom.103 Outro cão recebeu uma superdosagem de 26 vezes a de morfina intratecal e precisou de cuidados intensivos por 60 h, acabando por recuperar-se.104

O tratamento de uma superdosagem começa com cuidados de suporte e a administração do antagonista se o agente for reversível, como no caso de agonistas do receptor de opioide, benzodiazepínicos e agonistas do receptor adrenérgico α2. A emulsão intravenosa de lipídio (EIL) é uma terapia emergente para a superdosagem de agentes lipofílicos, denominada LipidRescueTM (resgate de lipídio).105 Considera-se que a EIL cria um ‘afundamento’ de lipídio, removendo o fármaco ativo da circulação.106 Embora derivado especificamente para tratar toxicidade de anestésico local, o resgate de lipídio deve ser considerado em qualquer superdosagem de um fármaco com afinidade por lipídio, em particular a bupivacaína, a ropivacaína, a lidocaína, o carprofeno, a clorpromazina, o diazepam, o cetoprofeno, o propofol, o tiopental ou a trazodona.107−112

Equipamento ■ Fechamento da válvula limitante de pressão ajustável A valva pop-off ou limitante de pressão ajustável (LPA) é um componente de todo circuito de anestesia e de alguns sistemas sem retorno da respiração. Esta válvula exerce uma função essencial na prevenção do acúmulo de pressão excessiva no circuito respiratório, enquanto permite o fechamento intermitente para a ventilação. Ela deve permanecer aberta em todas as situações, exceto quando o paciente está em um ventilador mecânico que contenha uma LPA automática. O fechamento inadvertido e persistente da LPA ocorre frequentemente durante anestesia. Embora a frequência deste evento não tenha sido publicada, um relato de 148 fatalidades caninas incluiu duas por uma válvula LPA fechada.4 Com base em observações na prática clínica, há uma taxa de ‘quase perda’ muito maior. Com uma válvula LPA fechada e oxigênio fluindo, a pressão no circuito respiratório sobe rapidamente e atinge um platô em torno do limite elástico da bolsa de retorno respiratório. Podem ocorrer volutrauma, pneumotórax ou retorno venoso insuficiente e parada cardíaca subsequente, ou tudo isto.80 É importante elaborar um padrão de comportamentos para prevenir este evento. Primeiro, é indispensável avaliar o funcionamento normal da válvula LPA durante todas as verificações do aparelho, antes de cada uso. Alarmes comerciais de pressão alta do paciente (Smith Medical PM, Waukesha, WI, EUA) podem ser comprados para permitir o ajuste de limites variáveis de alarme (Figura 5.5A). Um método mais barato é colocar uma válvula comercial de PEFP de 20 cmH2O no circuito respiratório, para agir como aliviadora de pressão (Figura 5.4). Esta abordagem tem as desvantagens de ter uma pressão de alívio fixa, que pode ser problemática durante ventilação com pressão positiva intermitente, e não eliminar o fluxo excessivo de gases. Há no comércio vários modelos de válvula de oclusão

do desperdício de gás com molas, que podem ser colocadas corrente abaixo da LPA primária, para permitir o fechamento intermitente da via de desperdício de gás, sem o fechamento permanente da LPA (Figura 5.5B).

■ Vaporizador na ponta Muitos aparelhos de anestesia são amplos no alto e têm uma base estreita, e, durante algum movimento, sua inversão acidental é possível. Se houver um vaporizador de precisão nas pontas, ou mesmo se ele se mover além de 45° a partir do plano vertical, deve ser imediatamente removido e avaliado quanto ao funcionamento apropriado. Pode ocorrer uma situação perigosa em que o débito do vaporizador possa ser muito mais alto que o ajuste do vaporizador, o que pode rapidamente ser letal. Se o vaporizador cair de uma altura significativa, é melhor solicitar um profissional capacitado para verificar seu funcionamento.

Figura 5.4 Modificação do circuito respiratório, com uma válvula de PEFP inserida para agir

como uma válvula de alívio quando necessário. Fonte: Dr. Tom Evans, Veterinary Clinical Center, Michigan State University, East Lansing, MI, EUA. Reproduzida, com autorização, do Dr. Tom Evans.

Figura 5.5 A. Alarme ajustável de pressão alta do paciente inserido no circuito respiratório e (B) válvula pop-off de oclusão. Fonte: Kurt Grimm, Veterinary Specialist Services, Conifer, CO, EUA. Reproduzida, com autorização, de Kurt Grimm.

Anestesia regional Bloqueios de nervos periféricos e regionais estão se tornando comuns na prática. Estas técnicas podem proporcionar analgesia muito efetiva em pacientes com dor de muitas causas.

■ Toxicidade Colapso cardiovascular e parada cardíaca induzidos por anestesia local são uma sequela rara, porém catastrófica, da anestesia regional. A atenção cuidadosa com a dose e a técnica de injeção ajuda a prevenir este problema. Em cães anestesiados, a toxicidade pode se manifestar como hipotensão e colapso cardiovascular. Convulsões e taquicardia ventricular de complexo largo podem ser vistas em alguns animais.113 A reanimação da intoxicação grave por bupivacaína com agentes inotrópicos, epinefrina e/ou RCP será bem-sucedida em cerca de metade dos casos e a recuperação pode ser rápida (80% dos pacientes estarão normotensos 20 minutos após a reanimação).113 Uma estratégia terapêutica relativamente nova é a emulsão intravenosa de lipídio (EIL), que se mostrou efetiva no tratamento de alguns casos de colapso e parada cardíaca induzidos por anestésico local.106,109−112,114−117 O uso de EIL não consta da bula do produto, e a dosagem apropriada é relativamente isenta de efeitos colaterais.108,109 Foram publicadas diretrizes clínicas para seu uso em pessoas, a partir das quais foram extrapoladas as diretrizes para uso em animais.108 Embora a EIL para o tratamento da toxicose por anestésico local em pessoas só seja recomendada após o tratamento da parada cardíaca ter falhado em estabelecer o RCE (depois de pelo menos 20 min), evidência acumulada confirma o uso precoce da infusão de lipídio assim que os sinais de toxicidade do anestésico local se manifestem, para atenuar a progressão da síndrome tóxica por anestésico local.105,108 As diretrizes publicadas recomendam a titulação da toxicidade do anestésico local com EIL mediante uma dose de ataque intravenosa de 1,5 mℓ/kg (massa corporal magra) por 1 min, seguida pela infusão contínua de 0,25 mℓ/kg/min, que prossegue por pelo menos 10 min após se conseguir a estabilidade circulatória.A administração da dose de ataque pode ser repetida uma ou duas vezes no caso de colapso cardiovascular persistente, podendo ser benéfico duplicar a taxa de infusão de lipídio se a pressão sanguínea continuar baixa.105,108 A dose máxima recomendada de lipídio é de 10 a 12 mℓ/kg/24 h.

■ Complicações Os relatos de complicações após bloqueio nervoso regional incluem disfunção nervosa prolongada e disseminação bilateral após bloqueio nervoso unilateral (migração epidural provável).118 Nos casos em que o bloqueio persistir inesperadamente, é provável que tenha ocorrido injeção intraneural, embora o uso de eletroestimulação e orientação por ultrassom não tenha eliminado estes problemas. Mostrou-se que injeções intraneurais com alta pressão causam dano nervoso persistente, enquanto os efeitos de injeções intraneurais sob baixa pressão se resolvem rapidamente.109 As complicações da injeção epidural são encontradas mais comumente. Até 50% dos cães que recebem um opioide epidural terão retenção urinária.120 Se ficar sem tratamento, a

retenção urinária pode acarretar ruptura da bexiga ou disfunção vesical urinária crônica. Ocasionalmente, mioclonia, neurite e prurido podem seguir-se à injeção epidural ou intratecal de morfina (solução sem conservante), o que requer manejo com sedação prolongada ou anestesia até que os sinais desapareçam.121 Novo crescimento tardio de pelos é uma complicação epidural relativamente comum, sem tratamento efetivo até o momento.

Outros fatores Muitos outros desajustes na homeostasia estão associados à anestesia. Alguns de ocorrência comum serão discutidos aqui.

■ Regurgitação A regurgitação é um processo passivo, que ocorre quando um volume suficiente de conteúdo gástrico se move de volta até o esôfago e passa pelo esfíncter esofágico superior, sendo eliminado pela boca ou pelo nariz. Às vezes, o material regurgitado é um líquido transparente, em geral marrom ou amarelo, e costuma ser ácido. A regurgitação é indicativa de refluxo gastresofágico e ocorre em aproximadamente 12% dos casos de RGE, significando que a maioria dos casos desse distúrbio é clinicamente silenciosa.122,123 O material regurgitado pode causar problemas para os pacientes de três maneiras. Primeiro, a regurgitação está associada à pneumonia por aspiração;92,93,97 segundo, podem seguir-se esofagite ulcerativa e formação de estenose, com uma estimativa de 1 em 1.000 procedimentos anestésicos,124 e, terceiro, o conteúdo gástrico induz a irritação nasal e faríngea, que pode contribuir para o desconforto do paciente após a anestesia. É melhor prevenir do que tratar a regurgitação. Antiácidos, em particular o esomeprazol, não impedem o RGE durante anestesia, mas tornam o refluxo menos ácido.98 A administração de cisaprida e metoclopramida reduz o risco, mas não impede todos os casos de RGE.98,99 O tratamento local cuidadoso com lavagem do esôfago e instilação de bicarbonato diluído normaliza o pH luminal, mas não foi avaliado quanto à prevenção da esofagite.125

■ Hipotermia Ocorre hipotermia associada à anestesia por causa de uma combinação do ambiente hospitalar frio e alteração na termorregulação do paciente. Com a manipulação normal, mostrou-se que os cães apresentam uma queda média de 1,9°C na temperatura na primeira hora de anestesia, embora isto pareça variar consideravelmente de acordo com o tamanho do paciente e o tipo de procedimento cirúrgico.126 Apesar de tentativas cada vez maiores de se preservar o calor corporal, mantendo os pacientes aquecidos, a hipotermia é muito

comum, com metade dos cães em um estudo recente tendo apresentado hipotermia moderada a grave durante anestesia e cirurgia.9 Muitos anestésicos contribuem para a hipotermia pós-operatória prolongada, incluindo opioides, anestésicos inalatórios e agonistas do receptor adrenérgico α2, embora tais agonistas de início possam tornar mais lenta a perda do calor corporal por meio da vasoconstrição periférica.127−129 Ainda que a hipotermia seja uma proteção substancial contra a isquemia e a hipóxia,130 a redução da temperatura central está associada a alguns efeitos potencialmente deletérios. À medida que a temperatura cai no período peroperatório, ocorrem vasoconstrição periférica, redução da perfusão cutânea, acidose láctica, diminuição de metabolismo de fármacos, coagulação mais lenta130 e supressão da reatividade imune.131−133 A hipotermia pode ser limitada pelo aumento da temperatura ambiente, mas raramente isto é viável. Mostrou-se que compressas de água quente em áreas corporais de circulação, em especial nas pernas, ajudam a preservar o calor corporal em cães.134 Sistemas que forçam ar quente são o meio mais eficiente e efetivo de conservar e aumentar o calor corporal no paciente anestesiado. Mostrou-se que esta técnica de aquecimento retarda ou reduz a taxa de perda de calor em equinos, pessoas, cães e papagaios.135−137 A eficácia do método está bem estabelecida, sendo uma técnica de baixo custo e extremamente segura.136,137 Outro sistema de aquecimento disponível atualmente é o cobertor de aquecimento resistente Hot Dog® (Augustine Temperature Management, Eden Prairie, MN, EUA), particularmente efetivo em pacientes menores. Há poucas comparações dos dois sistemas, mas, em pessoas submetidas a uma cirurgia facial de grande porte, embora o sistema de ar quente forçado e o cobertor de aquecimento Hot Dog® tenham sido efetivos, o primeiro reaqueceu o paciente duas vezes mais rápido que o segundo.137 Mesmo que nenhuma fonte suplementar de calor seja usada, o simples ato de aumentar a superfície corporal de contato e minimizar a exposição ao ambiente limita a perda de calor. Mostrou-se que a umidificação e o aquecimento do gás inalado foram inefetivos como únicos meios de manter a temperatura central em cães ou gatos.126,138−140 Fontes de calor suplementar que não sejam designadas especialmente para pacientes anestesiados não devem ser usadas nos que estejam anestesiados ou sedados. Tais pacientes não podem sentir a lesão térmica iminente e, além do risco de alteração na distribuição do fluxo sanguíneo periférico, há o de queimaduras térmicas. O uso de compressas elétricas ou bolsas de água quente sem proteção é desestimulado, por causa do potencial de lesão térmica.141,142

■ Hipertermia Embora a hipertermia seja o desajuste de temperatura mais comum associado à anestesia,

um animal a apresentará ocasionalmente. Ela resulta do excesso de calor (iatrogênico) ou como uma resposta possível a vários fármacos. A hipertermia acidental é mais provável com uma temperatura ambiente quente, em animais com pelagem abundante e em decorrência do uso de aquecimento ativo. Para evitar o aquecimento excessivo dos pacientes, é importante monitorar a temperatura corporal no peroperatório. Há duas causas de hipertermia induzida por fármacos específicos em animais domésticos, aquela induzida por opioide em gatos e a hipertermia maligna (HM). Todos os opioides usados em gatos estão implicados como causadores de hipertermia.143−145 A hidromorfona está associada à maioria dos relatos de elevações da temperatura em gatos, mas mostrou-se que a administração de agonistas µ completos ou parciais e agonistas κ causa aumentos discretos a moderados da temperatura corporal. A hipertermia associada ao opioide ocorre em cerca de 50% dos gatos e está nitidamente associada a uma alteração na termorregulação central.143,144 Costumam ocorrer aumentos da temperatura nas primeiras 5 h após a administração do fármaco.143,145−147 Também há relatos de que a cetamina cause um aumento discreto na temperatura central por 1 h145 e pode ainda ter um efeito aditivo fraco com a hidromorfona.143,148 A maioria dos casos de hipertermia induzida por opioide é autolimitante, mas temperaturas acima de 40°C requerem atenção, bem como a remoção da fonte de calor, o fornecimento de um ambiente mais frio ou simplesmente o uso de um ventilador. Quando uma elevação extrema da temperatura persiste após a administração de um opioide a um gato, a naloxona intravenosa deve trazer rapidamente a temperatura de volta ao normal, embora a analgesia também seja perdida.143 Hipertermia maligna (HM) é uma anormalidade hereditária ligada à membrana (mutação no gene do receptor da rianodina, RYR1), que foi descrita em muitas espécies, inclusive suínos, cães, gatos e equinos.149−152 A prevalência da HM é muito baixa, ocorrendo em pessoas 9,6 vezes por milhão de pacientes anestesiados, e, em geral, associada à administração de acetilcolina.153 Os agentes desencadeantes conhecidos incluem todos os inalatórios potentes, a succinilcolina e o estresse.154 Os pacientes acometidos, em geral, apresentam respiração ofegante, taquipneia, taquicardia, hipercarbia e vasodilatação, com uma acidose metabólica progressiva. A elevação da temperatura é tardia na síndrome e pode subir rapidamente (1°C/5 min). O tratamento deve incluir a remoção de qualquer agente desencadeador, ventilação com oxigênio a 100%, administração de dantroleno (2,5 mg/kg IV ou 10 mg/kg por sonda gástrica) e resfriamento agressivo. As taxas aproximadas de mortalidade por HM foram de 80% em pacientes humanos, até a implementação de programas enfatizando sua detecção precoce, anestésicos seguros que não a desencadeiem e dantroleno, o que reduziu as taxas para aproximadamente 5%.

■ Anormalidades eletrolíticas Dentre os distúrbios que podem ocorrer durante anestesia, a hiperpotassemia é o mais potencialmente fatal de imediato.155,156 As arritmias resultantes da hiperpotassemia podem não responder aos antiarrítmicos convencionais, ocasionar parada cardíaca e não responder também ao tratamento da hiperpotassemia.155−161 As causas comuns de hiperpotassemia incluem transfusão de sangue armazenado há muito tempo, tratamento crônico com heparina (cães), uroperitônio (especialmente em potros e gatos), iatrogênicas (penicilina potássica ou KCl), paralisia periódica hiperpotassêmica e crise aguda de hipoadrenocorticismo (doença de Addison).156−160 Equinos portadores do gene para a paralisia periódica hiperpotassêmica (PPHI) correm maior risco anestésico e devem ser estritamente monitorados.156,161 Eles também costumam ser grandes e musculosos, o que os torna propensos à miopatia pós-anestésica. Alterações dietéticas, o estresse do jejum, a própria anestesia e a dor podem desencadear uma crise no período perianestésico. Os sinais de uma crise de PPHI são aparentes mesmo em equinos anestesiados e incluem tremores musculares, sudorese e alterações ECG características.156,157,161 Se um equino tiver um episódio de PPHI durante anestesia, desde que a condição seja reconhecida e tratada da maneira apropriada, o animal pode ter uma recuperação sem problemas.161 O rebaixamento agressivo do potássio sérico usando-se glicose com ou sem insulina, bicarbonato de sódio e cálcio pode levar à resolução de um episódio de PPHI sob anestesia.157−161

■ Lesões Vários eventos não letais contribuem para a morbidade associada à anestesia. Não há medida atual da prevalência destas lesões, que incluem úlceras de córnea, traumatismo de tecido mole, queimaduras causadas por dispositivos de aquecimento, necrose tecidual induzida por fármacos, cegueira, neuropatia facial, mioneuropatia e fraturas de ossos longos. As três últimas condições são relevantes em equinos e serão discutidas em outras partes deste texto. Foi relatada lesão térmica após anestesia e ela pode ser devastadora. Atualmente, existem vários sistemas de aquecimento muito efetivos e destinados especificamente a pacientes anestesiados. O uso de luvas contendo água quente ou da maioria dos dispositivos elétricos de aquecimento não é recomendado.141,142 Há relatos de cegueira pós-anestésica em gatos. Uma coletânea recente de 20 casos revelou que 13 ocorreram após procedimentos dentários (12 com um abre-boca de mola), quatro após endoscopia (todos com abre-boca) e três após parada cardíaca.162 A maioria (17 dos 20) destes gatos apresentou outras anormalidades neurológicas além da cegueira, como marcha em círculo, ataxia, inclinação da cabeça, fraqueza, opistótono, diminuição da

propriocepção consciente e mentalização anormal. Houve recuperação da visão em 14 dos 20 gatos e o tempo desde a lesão até o retorno da visão variou de 1 dia a 6 semanas. Foram encontrados sinais de isquemia cortical em gatos com cegueira pós-anestésica submetidos à necropsia.162−165 Embora a hipertensão e a hipóxia tenham sido atribuídas de maneira variável como fatores causais primários deste evento catastrófico, o papel do abre-boca com mola é cada vez maior. O suprimento sanguíneo para o cérebro dos felinos vem quase inteiramente da artéria maxilar e demonstrou-se que um abre-boca muito aberto induz hipoperfusão da artéria maxilar em gatos.165

■ Recuperação prolongada Há relatos da ocorrência de recuperação prolongada da anestesia em 0,15% (12 de 8.087) dos cães e 0,18% dos gatos (16 de 8.702).3 O período após a anestesia é interrompido e, embora o paciente esteja se recuperando dos efeitos dela e da cirurgia, ele é tão crítico para o paciente como o período da anestesia. Mais de 60% da mortalidade associada à anestesia em gatos e coelhos, e quase 50% em cães, ocorrem após o término da anestesia.4 Há várias causas comuns de demora na recuperação, inclusive hipotermia e efeito medicamentoso profundo (a narcotização excessiva secundária ao manejo agressivo da dor é cada vez mais comum). Distúrbios metabólicos como o hipotireoidismo, a insuficiência adrenal e a hipoglicemia podem não ser reconhecidos antes da cirurgia e têm sido associados à recuperação demorada da anestesia.166 As causas potenciais de hipoglicemia são inanição prolongada, pacientes em más condições corporais (caquéticos), sepse, insuficiência hepática, hipoadrenocorticismo, insulinoma, neoplasia de célula não ilhota e doença do armazenamento de glicogênio. A hipoglicemia pode ser clinicamente silenciosa em pacientes anestesiados e os sinais de hiperatividade simpática ou arritmias ventriculares podem ser as únicas evidências detectáveis de uma hipoglicemia potencialmente fatal.166,167 Ocasionalmente, um paciente com elevação da pressão intracraniana não diagnosticada (em decorrência de um tumor cerebral ou de hidrocefalia) tem sua condição ainda mais comprometida pela anestesia, e isso só se torna evidente quando para de respirar ou não se recupera da anestesia. O monitoramento cuidadoso do dióxido de carbono no volume corrente, da pressão arterial e da profundidade anestésica pode ajudar no manejo intraoperatório destes casos e prevenir a descompensação.

Evento crítico questionável A expressão manejo de risco foi desenvolvida pelas seguradoras de saúde e adotada pelos serviços médicos para descrever os processos usados para evitar lesões, litígios judiciais e

perda financeira.168,169 O objetivo principal deste processo consiste em usar a análise dos diversos eventos para evitar a ocorrência de lesões similares em pacientes subsequentes, o que será discutido em maiores detalhes em outros capítulos deste livro. A análise de eventos adversos deve começar com uma revisão sem desvios nem préjulgamentos de todos os eventos que levaram ao acidente. Assim que se tenha um quadro claro do que aconteceu, a próxima etapa deve ser a formação ou modificação de procedimentos operacionais que possam tornar menos provável a repetição do evento adverso. Sempre há coisas que poderiam ter sido feitas de maneira diferente, mas o tempo e o esforço devem ter como foco o que teria feito diferença no desfecho. Um desfecho adverso é devastador para todos os envolvidos, mas é melhor que aconteça em um contexto no qual possa ser percebido, para que se aprenda algo a respeito e assim se aprimore o nível dos cuidados. Há semelhanças significativas entre a aviação e a anestesia, as mais notáveis sendo que os equipamentos para ambas são sofisticados e um evento crítico ou algo que funcione mal pode ser rapidamente fatal. Na aviação, há processos bem definidos para a investigação e a avaliação dos eventos que resultaram em um acidente. Um departamento independente, como o National Transportation Safety Board (NTSB), que analisa e publica os achados, lidera o processo de investigação de um acidente. Também há um sistema anônimo de registro, como o Aviation Safety Reporting System (ASRS), que permite a coleta, a análise e a publicação de eventos considerados perigosos pelos participantes e possam ter causado uma quase perda, mas não chegaram a provocar um acidente. Gostaríamos de propor uma abordagem similar na anestesia veterinária.

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Introdução Terminologia Dor e consciência Mecanismos de ação Avaliação de distresse animal Escolha do método de abate com relação ao início da inconsciência Senciência e eutanásia fetais Atordoamento por baixa pressão atmosférica Despopulação com espuma Pureza do agente e eutanásia Eutanásia no contexto clínico Referências bibliográficas

Introdução À primeira vista, a anestesiologia e o abate intencional de animais parecem ter metas diametralmente opostas. A primeira visa manter a vida, enquanto a última põe fim a mesma; na verdade, a eutanásia pode ser difícil em termos físicos e emocionais para quem trabalha com animais, cuidadores e veterinários, por causa do conflito inerente.1,2 No entanto, o tratamento humanitário de animais tem sido cada vez mais objeto de debate e discussão públicos. Uma abordagem conservadora e humanitária para o abate intencional de qualquer criatura é justificada, desde que seja recomendado, justificável e esperado pela sociedade. Como veterinários, fazemos um juramento à graduação, que inclui “…usar meu conhecimento científico e minhas habilidades para o benefício da sociedade, por meio da proteção da saúde e do bem-estar dos animais, a prevenção e o alívio de seu sofrimento, a conservação de rebanhos…”;3 além disso, lembramos que nossa obrigação moral é o bem-

estar dos animais sob nossos cuidados.4,5 Portanto, seja por questões de bem-estar, produção de alimentos e fibras ou em resposta a desastres naturais ou humanos, nossa obrigação como veterinários solidários é minimizar ou eliminar a dor, a ansiedade e o distresse dos animais. De acordo com esse contexto, os anestesistas e anestesiologistas veterinários estão em uma posição única para contribuir de maneira significativa no que diz respeito ao trato humanitário com relação à vida animal. Pode ser difícil determinar as condições humanitárias dos métodos de eutanásia, abate ou despopulação, porque os seres humanos talvez nunca saibam ou entendam completamente as experiências subjetivas de animais durante a perda da consciência. O problema incomoda os médicos-veterinários desde 1847, quando, ao administrar o então recém-descrito anestésico éter a cães e gatos, o eminente veterinário britânico Edward Mayhew concluiu:6 Os resultados desses ensaios não são calculados para inspirar esperanças otimistas. Não podemos dizer se os gemidos emitidos são evidências de dor ou não; mas são sugestivos de agonia para quem ouve e, sem testemunho em contrário, têm de ser considerados evidência de sofrimento. Portanto, o processo não é calculado para atingir o objetivo com o qual geralmente seria empregado na prática veterinária, ou seja, aliviar o proprietário da impressão de que seu animal está sendo submetido à tortura. Sob outro enfoque, não é provável que tenha muita utilidade prática. Uma das características que definem a anestesia em seres humanos é a sensação de ‘experiência fora do corpo’, sugerindo uma desconexão entre a percepção de si mesmo e a conscientização de tempo e espaço.7 Embora não possamos saber exatamente as experiências subjetivas dos animais, pode-se especular que sensações similares de desorientação contribuem para os sinais aparentes de distresse observados neles durante a anestesia. Felizmente, a evolução de métodos anestésicos para animais continua, apesar dos receios iniciais do Dr. Mayhew. Determinar se os métodos de abate são humanitários depende de nossa capacidade para avaliar a dor e a consciência nos contextos de método e aplicação. Eventos como: vocalização, agitação das patas ou convulsões em geral são interpretados como evidências inequívocas de sofrimento animal. Embora seja desagradável observá-los, tais eventos têm muito menos efeito sobre o bem-estar do animal quando ocorrem após a perda da consciência. O objetivo deste capítulo é revisar os mecanismos e métodos usados para pôr fim intencionalmente à vida de um animal, inclusive durante o estágio fetal, nos contextos de percepção da dor e consciência. Métodos novos recém-descritos de atordoamento com baixa pressão atmosférica e espuma para abater aves domésticas são descritos, além das

considerações sobre as exigências de pureza do agente para o abate humanitário. Para uma descrição mais detalhada de eutanásia, inclusive as recomendações e procedimentos para espécies específicas, recomenda-se que o leitor consulte as diretrizes mais recentes da American Veterinary Medical Association (AVMA),8 do Canadian Council on Animal Care (CCAC)9 e da World Organization for Animal Health (OIE).10

Terminologia Eutanásia (termo derivado do grego eu + tanatos, ou ‘boa morte’) geralmente refere-se à meta de terminar a vida de um animal de tal modo que a dor e o distresse sejam minimizados ou eliminados. Atualmente, o termo aplica-se a situações em que a morte é induzida (a) de acordo com os interesses de um animal e/ou por uma questão de bem-estar (abate humanitário) e (b) quando técnicas humanitárias são aplicadas para induzir a morte do modo mais rápida, indolor e sem distresse possível. Portanto, para que um ato de abate intencional seja considerado eutanásia, tanto o abate humanitário como técnicas humanitárias têm de ser considerados em conjunto.8 A eutanásia não é um substituto para cuidados veterinários insatisfatórios e nunca deve ser considerada a ‘saída mais fácil’ ou um meio de justificar decisões terapêuticas questionáveis. Em vez disso, a eutanásia é uma solução humanitária e responsável para promover o bem-estar animal, aliviando seu sofrimento. Há controvérsias quanto ao termo eutanásia descrever de maneira apropriada a morte de alguns animais após o término de experimentos biológicos e de animais indesejáveis em abrigos; uma discussão substancial dessas questões pode ser encontrada nos textos de McMillan11 e Pavlovik et al.12 Para uma revisão mais meticulosa das considerações morais e éticas da eutanásia, inclusive os processos decisórios, recomendamos ao leitor a publicação 2013 AVMA Guidelines on Euthanasia (Diretrizes da AVMA para Eutanásia de 2013).8 Abate humanitário refere-se aos processos e métodos empregados para matar intencionalmente animais criados para servirem como fonte de alimento, couro e produção de fibras. A expressão aplica-se tanto a indivíduos animais abatidos em fazendas como aos processos produtivos comerciais. A partir de uma perspectiva de bem-estar, a expressão inclui o transporte e a manipulação de um animal, os métodos empregados para induzir a inconsciência, o período até ela ser verificada e o tempo decorrido a partir da morte para que o animal esteja pronto para entrar na cadeia alimentar. Isso significa que são necessários esforços para minimizar e, se possível, eliminar o distresse, a dor, o sofrimento ou a ansiedade, associados ao processo de levar um animal para abate. Embora alguns métodos humanitários de abate utilizem técnicas de eutanásia, nem todos satisfazem os

critérios necessários para serem considerados eutanásia. Além das preocupações com o bem-estar animal, considerações importantes relativas aos processos de abate humanitário incluem a saúde e a segurança públicas, a segurança e a qualidade do alimento, a sustentabilidade ambiental e econômica, a adequação e a sustentabilidade da produção, a saúde ocupacional e o impacto sobre a força de trabalho, os padrões internacionais de bem-estar animal e comércio, bem como aspectos religiosos e culturais. Nos EUA, os métodos para abate humanitário são codificados em nível federal para bovinos, bezerros, equinos, asininos, ovinos e suínos, de acordo com o 1958 Humane Slaughter (HS) Act e o 1978 Humane Methods of Livestock Slaughter Act (Pub. L. 85-765; 7 USC 1901 et seq.) (Pub. L. 85-765, Sec. 1, Aug. 27, 1958, 72 Stat 862; Pub. L.85-765, §2, Aug. 27, 1958, 72 Stat 862; Pub. L. 95-445, §5(a), Oct. 10, 1978, 92 Stat 1069).13 Embora alguns métodos para o abate humanitário de aves, peixes e coelhos não estejam incluídos especificamente nos Acts de 1958 e 1978, devem ser aplicadas considerações similares a essas espécies. Define-se despopulação como a destruição rápida de um grande número de animais em resposta a emergências, como o controle de doenças infecciosas catastróficas, ou situações de urgência ou emergência causadas por desastres naturais ou humanos. Conforme definido pela AVMA, o termo aplica-se aos métodos pelos quais muitos animais precisam ser destruídos de modo rápido e eficiente, levando em conta tanto quanto possível o bem-estar dos animais, mas as circunstâncias e tarefas dos encarregados que realizam a despopulação sejam consideradas justificáveis.14 A despopulação é especialmente problemática do ponto de vista do bem-estar devido a vários fatores, incluindo o número total de animais potencialmente envolvidos, a necessidade de respostas rápidas e decisivas para limitar a disseminação de alguma doença ou dano econômico e o potencial de circunstâncias atenuantes que limitam a disponibilidade ou o desenvolvimento de suprimentos, equipamento e pessoal. Essa combinação de fatores pode levar em consideração soluções fáceis e rápidas, em vez de humanitárias. Por exemplo, em grandes instalações de criação em confinamento, a perda do sistema de ventilação, intencional ou acidental, acaba resultando na morte de animais. Embora a aplicação de métodos de despopulação em massa resultem no mesmo desfecho final, é nossa obrigação, como veterinários solidários, desenvolver e empregar métodos que minimizem o sofrimento animal em tais circunstâncias adversas. Como nos métodos de abate humanitário, podem ser empregadas técnicas de eutanásia para a despopulação, mas nem todos os métodos de despopulação atendem aos critérios considerados para eutanásia. Nas 2013 AVMA Guidelines on Euthanasia, os métodos são classificados como aceitáveis, aceitáveis com condições e inaceitáveis, terminologia similar à aplicada em todo este capítulo:

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Métodos aceitáveis são aqueles que causam consistentementemor te humanitária, quando usados sozinhos ou como único meio de provocar a morte Métodos aceitáveis com condições correspondem às técnicas que exigem determinadas condições para causar morte humanitária de maneira consistente, têm maior potencial de erro do operador ou impõem risco à segurança e não estão bem documentadas na literatura científica ou podem exigir um método secundário para assegurar a morte. Os métodos ‘aceitáveis com condições’ são equivalentes aos ‘métodos aceitáveis’ quando todos os critérios para sua aplicação podem ser satisfeitos Métodos e técnicas inaceitáveis são aqueles que sempre demandam procedimentos desumanos ou implicam risco potencial ao executor. Os exemplos incluem os seguintes, mas não necessariamente limitam-se a eles: • Certos agentes anestésicos e adjuntos, como hidrato de cloral, clorofórmio, dietil éter, bloqueadores neuromusculares em animais vertebrados conscientes (inclui a nicotina; também MgSO4, KCl e todos os agentes curariformes despolarizantes e não despolarizantes) • Certas substâncias químicas, como cianeto, formaldeído, produtos caseiros e solventes, produtos de limpeza e desinfetantes, pesticidas e estricnina • Certos métodos físicos, como embolia gasosa, queimadura, descompressão rápida, afogamento, exsanguinação, hipotermia, traumatismo craniano não penetrante aplicado manualmente (há exceções), pistola com dardo não penetrante (há exceções), congelamento rápido (também há exceções), sufocação e compressão torácica Métodos adjuntos são procedimentos e práticas que não devem ser usados como método único ou primário, mas que podem ser associados com métodos aceitáveis para morte humanitária após a perda inicial da consciência. Os exemplos incluem, mas não se restringem a: • Exsanguinação, transecção da medula espinal, MgSO4 ou KCl intravenosos ou indução de pneumotórax.

Os seguintes critérios foram usados nas 2013 AVMA Guidelines on Euthanasia para avaliar os métodos usados para tirar intencionalmente a vida de animais: • Capacidade para induzir perda da consciência e morte com um mínimo de dor e sofrimento • Período necessário para induzir perda da consciência • Confiabilidade • Segurança das pessoas envolvidas no procedimento

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Irreversibilidade Compatibilidade com o uso do animal e o objetivo pretendidos Efeito emocional documentado sobre observadores ou operadores Compatibilidade com a avaliação, o exame ou o uso subsequente de tecidos Disponibilidade de fármacos e potencial uso humano abusivo Compatibilidade com a espécie, a idade e as condições de saúde Capacidade para manter o equipamento em condições adequadas de funcionamento Segurança para evitar que predadores ou comedores de carniça consumam a carcaça Exigências legais Impactos ambientais do método de abate ou do descarte da carcaça.

Além disso, a aplicação de métodos de abate humanitários tem de ser feita de acordo com a legislação nacional, regional ou local que regulamenta a aquisição e o armazenamento de fármacos, a segurança ocupacional e os métodos usados para eutanásia e o descarte de animais, com atenção especial quanto às exigências relativas a cada espécie, sempre que possível. Se forem utilizados fármacos, deve-se considerar com cuidado o descarte apropriado da carcaça e providências têm de ser tomadas para evitar contaminação ambiental ou prejudicar outros animais.8 A escolha do método de abate mais apropriado em determinada situação depende de vários fatores, incluindo a espécie e o número de animais envolvidos, os meios disponíveis para manipulação e contenção do animal, a habilidade e a proficiência do pessoal e os métodos e equipamentos disponíveis. As informações existentes na literatura científica e disponíveis a partir da experiência prática enfocam primariamente animais domesticados, mas as mesmas considerações gerais podem ser aplicadas a todas as espécies. Haverá situações menos que perfeitas, em que os métodos considerados ‘aceitáveis’ ou ‘aceitáveis com condições’ não serão possíveis, como um método ou agente que é o melhor nas circunstâncias em questão. Deve-se notar que qualquer método de abate útil e potencialmente humanitário pode tornar-se desumano se a técnica empregada for inadequada, a aplicação for imprópria ou não forem seguidas estritamente as instruções referentes às situações ou eventualidades específicas.

Dor e consciência Os métodos de eutanásia, abate humanitário e despopulação induzem inicialmente inconsciência por meio de três mecanismos básicos: (1) depressão direta dos neurônios necessários para as funções vitais, (2) hipóxia e (3) interferência física na atividade cerebral. A morte é consequente a falência dos centros circulatório e respiratório, ou

conforme a hipóxia ou o pH reduzido tornam os processos intracelulares não funcionais. No entanto, a perda da consciência ocorre em velocidades diferentes, de modo que a conveniência de qualquer agente ou método específico depende de o animal sentir dor ou distresse antes da perda da consciência. A dor é definida como uma percepção consciente. A dor é subjetiva, no sentido de que a percepção de sua intensidade pelos indivíduos pode diferir, bem como suas respostas físicas e comportamentais. A International Association for the Study of Pain (IASP) descreve a dor como:15 Uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a dano tecidual real ou potencial, ou descrita em termos de tal dano. A atividade induzida por um estímulo nocivo no nociceptor e nas vias nociceptivas não é dor, que sempre é um estado psicológico, embora devamos mencionar que a dor mais frequentemente tem uma causa física próxima. Com base em modelos mamíferos, a percepção de dor exige que impulsos nervosos de nociceptores periféricos atinjam um córtex cerebral desperto e funcional, bem como estruturas cerebrais subcorticais associadas. Os impulsos provenientes de nociceptores periféricos são conduzidos por fibras aferentes primárias para a medula espinal ou o tronco cerebral e dois conjuntos gerais de redes neurais. O reflexo de retirada e flexão em resposta a um impulso nociceptivo é mediado no nível espinal, enquanto as vias ascendentes nociceptivas levam impulsos para a formação reticular, o hipotálamo, o tálamo e o córtex cerebral (córtex somatossensorial e sistema límbico) para processamento sensorial consciente e localização espacial. Tal distinção é importante, porque os movimentos observados em resposta à nocicepção podem ser devidos a atividade reflexa mediada em nível espinal (inconsciente), a processamento cerebral cortical e subcortical (consciente) ou uma combinação de ambos. Em consequência, a escolha de um agente ou método letal específico é menos crítica se for para ser usado em um animal que já esteja anestesiado ou inconsciente, desde que ele não recupere a consciência antes da morte. Embora a percepção de dor seja uma experiência consciente, é difícil definir a consciência em muitas espécies e, portanto, a capacidade de elas perceberem dor. A amnésia, definida como a perda da função da memória em que lembranças antigas não podem ser percebidas ou não há formação de novas memórias, é uma característica que define a anestesia porque, em doses suficientes, todos os anestésicos conseguem induzir um estado de amnésia em que novas memórias não podem se formar.7 A inconsciência, definida como perda da percepção individual, ocorre quando a capacidade do cérebro de integrar informações é bloqueada ou interrompida. Os anestésicos induzem inconsciência impedindo essa integração (bloqueio de interações de regiões especializadas do cérebro) ou

reduzindo as informações (redução do número de padrões de atividade disponíveis para as redes corticais) recebidas pelo córtex cerebral ou por estrutura(s) equivalente(s). Além disso, a perda abrupta da consciência que ocorre em uma concentração crítica de anestésico implica que o funcionamento integrado dos estados neurais interconectados subjacentes à consciência possam entrar em colapso não linear.16,17 Nos seres humanos, o início da inconsciência induzida por anestésico foi definido em termos funcionais pela perda da resposta apropriada a comandos verbais; em animais, a perda da consciência é definida no âmbito funcional pela perda do reflexo ou do tônus postural.18−20 Tal definição, lançada com a descoberta da anestesia geral há mais de 160 anos, ainda é útil, por ser uma resposta integrada de todo o animal e fácil de se observar, aplicável a uma ampla variedade de espécies. Embora medidas substitutas da atividade cerebral, como eletroencefalograma (EEG) ou RM funcional, geralmente se apliquem nesse contexto, tais métodos podem não dar as respostas definitivas quanto ao início da inconsciência em seres humanos ou animais; as limitações desses métodos para tal finalidade serão revistas adiante, na seção intitulada Avaliação de distresse animal. A utilidade dos reflexos posturais como confirmação da perda da consciência em animais foi reforçada recentemente, quando se detectou uma redução na proporção de ondas cerebrais alfa e delta coincidindo com a perda do tônus postural em galinhas.21,22 A vocalização ou o movimento físico que se observa durante a aplicação de métodos humanitários de abate é, com frequência, interpretada como evidência inequívoca de consciência. Embora comportamentos de fuga propositais não devam ser observados durante a transição para a inconsciência, estudos em seres humanos e animais confirmam que há indução de amnésia e bloqueio da consciência com menos da metade da concentração anestésica necessária para abolir os movimentos físicos.19 Assim que ocorre perda da consciência, atividades subsequentes, como convulsões, vocalização, reflexo de luta, apneia e taquipneia, podem ser atribuídas à fase de ‘excitação” ou estágio 2 da anestesia, que, por definição, vai desde a perda da consciência até o aparecimento de um padrão respiratório regular.23,24 Por isso, a vocalização e movimentos não intencionais observados após perda do tônus postural não são necessariamente sinais de percepção consciente do animal. Antigamente, pensava-se que peixes verdadeiros, anfíbios, répteis e invertebrados não tivessem as estruturas anatômicas necessárias para perceber a dor como a entendemos em aves e mamíferos. Contudo, a maioria dos invertebrados responde a estímulos nocivos e muitos têm opioides endógenos,25 havendo cada vez mais evidências táxon-específicas de eficácia de analgésicos para minimizar o impacto de estímulos nocivos em anfíbios e répteis.26,27 As sugestões de que as respostas de peixes à dor representam meramente simples reflexos28 foram refutadas por estudos que demonstraram atividade elétrica

diferente no prosencéfalo e no mesencéfalo, em resposta à estimulação nociceptora;29,30 além disso, os peixes verdadeiros exibem aprendizado e consolidação da memória quando ensinados a evitar estímulos nocivos.31 Com base nas considerações citadas, métodos de abate que ‘resulta em perda rápida da consciência’ e ‘minimizem a dor e o distresse’ devem ser tentados, mesmo naquelas espécies em que é difícil determinar se tais critérios foram preenchidos.

Mecanismos de ação Os métodos físicos (p. ex., arma de fogo, pistola com dardo não penetrante, eletrocussão cerebral, traumatismo não penetrante, maceração) acarretam inconsciência instantânea, porque destroem, ou tornam não funcionais, regiões do cérebro responsáveis pela integração cortical; a morte sobrevém rapidamente quando os centros mesencefálicos que controlam a respiração e a atividade cardíaca falham. Os sinais de atordoamento efetivo e início da inconsciência em bovinos incluem colapso imediato (perda do tônus postural) e um período de vários segundos de espasmo tetânico, seguido por queda lenta dos movimentos dos membros posteriores de frequência crescente;32−34 entretanto, há variabilidade entre as espécies nessa resposta. Não há reflexo corneano.35 Sinais de eletrocussão efetiva são a perda do reflexo postural, da piscadela ocular e de acompanhamento de um objeto com o olhar, extensão dos membros, opistótono, rotação para baixo dos globos oculares e espasmo tônico (rígido) alterando para clônico (pateamento), com eventual flacidez muscular.33,36,37 Não há reflexo corneano.35 Embora convulsões generalizadas possam ser observadas após a aplicação efetiva de métodos físicos, é mais comum elas seguirem-se à perda da consciência. Os métodos físicos são baratos, humanitários e indolores se executados da maneira apropriada, e não deixam resíduos de fármacos na carcaça. Além disso, presume-se que os animais sintam menos medo e ansiedade com métodos que requerem pouca manipulação preparatória. Todavia, como notado na seção intitulada Escolha do método de abate com relação ao início da inconsciência, em geral os métodos físicos requerem proximidade física mais direta com os animais a serem submetidos à eutanásia, o que pode ser constrangedor e incômodo para quem vai realizar a tarefa. Os métodos físicos costumam ser acompanhados por métodos adjuvantes, como exsanguinação ou transecção da medula espinal para assegurar a morte do animal. A decapitação e o deslocamento cervical como métodos físicos de abate humanitário requerem comentários à parte. A atividade elétrica no cérebro pode persistir até 30 s após o emprego desses métodos;38−41 a interpretação do significado dessa atividade é controversa.42 Como discutido na seção intitulada Avaliação de distresse animal, a

atividade elétrica do cérebro ainda não pode dar as respostas definitivas quanto ao início exato da inconsciência. Outros estudos43−47 indicam que tal atividade não implica a capacidade de perceber dor e concluem que a perda da consciência se desenvolve rapidamente. A inalação de anestésicos e dióxido de carbono (CO2) inicialmente acarreta perda da consciência pela depressão direta do sistema neural cortical; a morte ocorre subsequentemente, por causa da falência respiratória ou cardiovascular associada à sobredose de um agente. A hipercapneia aguda (definida como CO2 atmosférico > 5%) reduz rapidamente o pH intracelular, acarretando inconsciência e um estado anestésico reversível, que se caracteriza pela redução da atividade neural, tanto basal como evocada,48−51 e inibe os receptores centrais de N-metil-D-aspartato (NMDA).52 Em contraste com os métodos de abate por gás inerte, a exposição ao CO2 não se baseia na indução de hipóxia para causar inconsciência e pode matar em uma ampla faixa de concentrações.53 A hipóxia comumente é alcançada pelo deslocamento do oxigênio; isso pode ser conseguido mediante a exposição a altas concentrações de gases inertes, como nitrogênio ou argônio. Para ser efetivo, precisam ser atingidos e mantidos níveis de O2 < 2%, pois o restabelecimento de uma concentração de O2 de 6% ou maior antes da morte possibilitará a recuperação imediata.53−56 O monóxido de carbono liga-se com avidez à hemoglobina e causa hipoxemia ao bloquear a captação de oxigênio nos eritrócitos. A exsanguinação é outro método para induzir hipoxemia indiretamente e, assim, assegurar a morte em animais já inconscientes ou moribundos. Em frangos, o atordoamento por baixa pressão atmosférica (ABPA) representa um aprimoramento recente na indução de hipóxia (ver a seção intitulada Atordoamento por baixa pressão atmosférica). Um método fundamentado na hipóxia será classificado como de atordoamento ou abate, dependendo de quanto tempo o animal permanecer na atmosfera modificada; os métodos de abate eliminam a possibilidade de que os animais possam recobrar a consciência. Os métodos com base na hipóxia não são apropriados para espécies ou estágios de desenvolvimento tolerantes a períodos prolongados de hipoxemia. O óxido nitroso (N2O) não é um anestésico potente em animais. A dose efetiva de N2O é superior a 100 vol.%; portanto, não pode ser usado sozinho em qualquer espécie a uma pressão atmosférica normal, sem provocar hipóxia antes de parada respiratória ou cardíaca. Em seres humanos, a concentração alveolar mínima (CAM) (definida como a dose média efetiva que impede movimentos intencionais; ver Capítulo 16) de N2O é de 104 vol.%; sua potência em outras espécies é inferior à metade da observada em seres humanos (i. e., aproximadamente 200 vol.%). Em termos de comparação, a CAM de isofluorano é de aproximadamente 1,4 vol.%. Até 70 vol.% de N2O podem ser acrescentados a um vapor de oxigênio inalado com o anestésico fluorocabono para acelerar o início da inconsciência

mediante o ‘efeito do segundo gás’. Entretanto, devido à sua potência reduzida em animais, o N2O irá apenas reduzir 20 a 30% a CAM do anestésico fluorocarbono, ou cerca da metade da esperada para seres humanos.57 A associação de CO2 com N2O administrada a uma taxa de deslocamento de 20 e 60% do volume da câmara por minuto resultou em perda do tônus postural em camundongos C57B1/6 e CD1 10,3% mais rápida que o CO2 sozinho (N2O–CO2, 96,7 ± 7,9 s; CO2, 108,7 ± 9,4 s) e pode representar um refinamento do uso de CO2 sozinho.58 Uma taxa de deslocamento gradual entre 10 e 30% do volume do recipiente por minuto é recomendada atualmente para a administração de CO2 para eutanásia.8 O acúmulo ou a lavagem de gases em espaços fechados é um processo exponencial dependente do volume da câmara e da taxa de deslocamento do gás, de modo que o tempo para perder a consciência e, por fim, ocorrer a morte, será uma função da constante de tempo do recipiente,59 que pode ser calculada como o volume da câmara dividido pela taxa de deslocamento do gás.59 Começando com uma concentração de gás perto de zero, é necessária uma constante de tempo para alcançar uma concentração de gás lavado de 63 vol.%, de modo que uma taxa de deslocamento de volume de gás de 20%/min representa uma constante de tempo de 5 min (1 dividido por 0,2). Assim, a aplicação de qualquer vapor ou gás a uma taxa de deslocamento de 20% do volume do recipiente por minuto resultará em um aumento exponencial para 63vol.% da concentração de gás lavado em 5 min em um recipiente de qualquer tamanho.59,60 A aplicação de gases inalados em espaços fechados pode ser ainda mais aprimorada para satisfazer taxas de influxo específicas, pontos de liberação e perfis ótimos de concentração de gás, mediante o uso de modelagem dinâmica de líquido computacional (DLC). A distribuição e a temperatura do gás nos recipientes podem ser modeladas em três dimensões, usando-se um software de DLC em sistemas de computador com CAD (computer-aided design). A estimulação DLC provou ser um recurso muito potente para modelar as concentrações transitórias de gás que entra e sai do sistema. Ela também diminuiu a necessidade de testes experimentais intensivos trabalhosos e demorados para muitos métodos alternativos de despopulação em uma propriedade rural, sem a necessidade de testes experimentais extensivos.61 A perda da consciência, como perda do tônus postural, sempre deve preceder a perda do movimento muscular. No entanto, como nos métodos físicos de abate, alguns animais podem exibir atividade motora ou convulsões após a perda da consciência com anestésicos ou métodos com base na hipóxia. Na verdade, a anestesia, o coma e convulsões generalizadas representam, todos, uma perda da consciência em que tanto a possibilidade de despertar como de recobrar a consciência em seres humanos são baixas ou ausentes.62 Os sinais característicos de depressão neural efetiva são similares aos observados com

métodos físicos ou níveis profundos de anestesia, incluindo perda do tônus postural, perda dos reflexos da piscadela e da córnea e flacidez muscular. Métodos inalatórios e com base na hipóxia requerem várias condições e contingências para seu uso apropriado e adequado, de maneira que possam ser classificados como ‘aceitáveis com condições’, de acordo com as diretrizes da AVMA de 2013.8 Agentes e métodos para evitar o movimento mediante paralisia muscular sem inibir ou causar ruptura do córtex cerebral ou de estruturas equivalentes (p. ex., succinilcolina, estricnina, curare, nicotina e sais de potássio e magnésio) não são aceitáveis como agentes únicos para o abate humanitário de vertebrados, porque resultam em percepção consciente de distresse e dor antes da morte. Em contraste, os sais de magnésio são considerados aceitáveis como agente único para eutanásia em muitos invertebrados, devido à ausência de evidência de atividade cerebral em alguns membros desse grupo taxonômico;63,64 além disso, há evidência de que o íon magnésio atue centralmente para suprimir a atividade neural de cefalópodes.65 Em suma, o córtex cerebral ou estruturas equivalentes e subcorticais associadas devem estar funcionais para que haja percepção consciente da dor. Se o córtex cerebral não estiver funcional por causa de depressão neuronal, hipóxia ou ruptura física, o indivíduo não sentirá dor. Embora seja desconfortável para observadores, a atividade motora reflexa ou sinais físicos que ocorrem após a perda da consciência, como perda do tônus postural, não é percebida pelo animal como dor ou distresse. Como estamos limitados à aplicação de métodos de abate humanitário com base nesses três mecanismos básicos, os esforços devem ser voltados para o ensino das pessoas envolvidas, no sentido de atingir a proficiência técnica e o aprimoramento na aplicação dos muitos atualmente aprovados.66

Avaliação de distresse animal O estresse e as respostas resultantes foram divididos em três fases.67 Eustresse resulta quando estímulos prejudiciais iniciam respostas adaptativas benéficas para o animal. Estresse neutro resulta quando a resposta do animal a estímulos tem efeitos prejudiciais, não benéficos, ao animal. Distresse resulta quando a resposta de um animal aos estímulos interfere no bem-estar e no conforto dele.68 O distresse pode ser criado pelas condições antes da aplicação dos métodos de atordoamento ou abate (p. ex., condições de transporte, ambiente ou contenção), ou aquelas em que os métodos são aplicados (p. ex., deslocamento gradual do gás ou vapor ou imersão).69 A simples colocação de ratos Sprague-Dawley em uma câmara de exposição não familiar contendo ar ambiente provoca excitação, se não distresse.70 Suínos são animais sociais e preferem não ficar isolados dos demais; portanto, levá-los em grupos para uma câmara de atordoamento com CO2 em vez de enfileirá-los

para que vá um de cada vez para o atordoamento elétrico melhora o movimento voluntário anterógrado, reduz o estresse da manipulação e diminui a estimulação elétrica necessária.71 Os métodos inalatórios de enchimento gradual podem ser menos estressantes que deslocamentos mais rápidos.72 O distresse pode manifestar-se de modo comportamental [p. ex., tentativas de fuga, preferência por evitar abordagem (aversão)] ou fisiológico [p. ex., alterações da frequência cardíaca, da atividade do sistema nervoso simpático (SNS) e do eixo hipotalâmico-hipofisário (EHH)], de tal maneira que uma abordagem “universal” não pode ser empregada com facilidade para se avaliarem métodos de abate ou determinar aplicações específicas da espécie. A ativação do sistema nervoso simpático (SNS) e a ativação do eixo hipotalâmicohipofisário-adrenal (EHHA) são marcadores de resposta ao estresse bem aceitos. Entretanto, sugeriu-se a probabilidade de que as respostas a fatores estressantes sistêmicos associadas à sobrevivência imediata, como hipóxia e hipercapnia, sejam retransmitidas diretamente pelos núcleos do tronco cerebral e não estejam associadas a um processamento em áreas mais nobres do SNC nem a experiências conscientes.73 Já foram relatados aumentos acentuados dos níveis circulantes de catecolaminas, glucagon, insulina, lactato e ácidos graxos livres em modelos experimentais porcinos nos quais a morte cerebral foi induzida após indução de anestesia geral.74−76 Forslid e Augustinsson revelaram que as concentrações de norepinefrina e lactato aumentaram 1 min após a exposição de suínos ao CO2.77 Borovsky et al. encontraram um aumento em ratos após 30 s de exposição a 100% de CO2.78 Similarmente, Reed et al. expuseram ratos ao CO2 por 20 a 25 s, o que foi suficiente para que caíssem em decúbito inconscientes e sem respostas, tendo observado aumentos de 10 vezes nas concentrações de vasopressina e ocitocina.79 Neurônios hipotalâmicos contendo vasopressina são ativados de maneira semelhante em resposta à exposição ao CO2 em ratos, tanto despertos como anestesiados.80 Em suínos submetidos à eutanásia por métodos físicos que resultam na inconsciência imediata (p. ex., dardo paralisante, eletrocussão em dois pontos) ou por métodos inalatórios em que o início da inconsciência é demorado (CO2; 70% de N2 + 30% de CO2), foram observados níveis de cortisol similares, enquanto a norepinefrina e o lactato plasmáticos tiveram aumentos semelhantes em todos os grupos;81 embora todos os gases e misturas tenham induzido respiração com a boca aberta antes da perda do reflexo de estiramento, a latência média para o início desse tipo de respiração e a perda subsequente do reflexo de estiramento foi substancialmente mais lenta com 70% de N2 + 30% de CO2 que com CO2.82 O fato de que os níveis dos hormônios do estresse observados tenham sido similares tanto com os métodos físicos como com os inalatórios ilustra a dificuldade para se diferenciar o distresse consciente do inconsciente quando a interpretação é complicada pela exposição contínua durante o período entre a perda da consciência e a morte.

Avaliação do comportamento (p. ex., fuga proposital, respiração com a boca aberta) e testes de aversão foram usados para uma avaliação subjetiva dos métodos de abate inalatórios em várias espécies, que foram revistos recentemente.8 A aversão, definida como um desejo de evitar ou se afastar de um estímulo, em geral é determinada usando-se estudos desse comportamento, em que o impulso de evitar uma situação ou condição particular é determinado pela escolha do animal no sentido de buscar uma recompensa desejável. Essa característica quantitativa torna a aversão um recurso poderoso para estudos do comportamento. Contudo, é importante notar que, embora a aversão seja uma medida de preferência e possa implicar desagrado, não indica necessariamente em si dor ou distresse; além disso, os testes que abordam o comportamento de evitar algo não distinguem adequadamente aversão de distresse, que é a incapacidade de responder de maneira apropriada (por meio de algum comportamento ou pela fisiologia) a um fator estressante.69 Além disso, agentes identificados como menos aversivos (p. ex., misturas gasosas de argônio [Ar] ou N2) podem causar ainda sinais francos e extensos de distresse comportamental (p. ex., respiração com a boca aberta) antes da perda da consciência em certas condições de administração (p. ex., aplicação por deslocamento gradual).82,83 Estimativas da função elétrica cerebral, como o eletroencefalograma (EEG), a análise biespectral (BIS) e os potenciais visuais e auditivos evocados (PVE, PAE), foram usadas para quantificar o estado inconsciente. Em seres humanos, a questão é a segurança intraoperatória sob anestesia; em animais, o problema é um procedimento humanitário com relação ao início da inconsciência. Isso é ainda mais complexo em animais, porque não podemos questioná-los diretamente e temos de interferir a partir de suas ações e respostas. Sabe-se que a atividade elétrica cerebral é limitada em seu propósito, em especial quando tentamos relacioná-la com um processo complexo como a consciência. O EEG não é medida direta da consciência − ele mede a atividade elétrica cerebral e, embora essa mude de acordo com os níveis de consciência, o EEG não pode dar respostas definitivas quanto ao início da inconsciência de acordo com nosso conhecimento atual. Embora a consciência possa diminuir até certo ponto entre a ausência de resposta comportamental e a indução de um EEG plano (indicando a cessação de atividade elétrica cerebral), os monitores atuais da função cerebral com base no EEG têm uma capacidade limitada de indicar diretamente a presença ou ausência de inconsciência, em especial no que diz respeito ao ponto de transição;16,84 também nem sempre fica claro que padrões do EEG são indicadores de ativação por estresse ou dor.85 Um editorial recente resume essas questões:86 O eletroencefalograma foi o Santo Gral do monitoramento anestésico por mais de meio século, mas deixou de ser nos últimos tempos, em grande parte porque o foco do

diálogo mudou do eletroencefalograma como um monitor da ‘profundidade’ para o da segurança… a consciência e a segurança intraoperatória são fenômenos neurobiológicos bastante complexos. Isso dificulta captar ou avaliar esses estados com a eletroencefalografia, não importando o parâmetro ou a sofisticação do algoritmo de processamento. Estudos recentes sobre a eficácia do índice biespectral de eletroencefalografia, para minimizar o risco para a segurança intraoperatória confirmaram tal fato. Embora a perda dos potenciais visuais evocados (PVE) esteja associada a morte cerebral, os neurônios do córtex visual permanecem responsivos à estimulação momentânea (flash) na anestesia com desfluorano,87 e a redução nas oscilações gama induzidas momentaneamente no córtex visual de ratos não é um correlato unitário da inconsciência induzida por anestésico.88 Grandes variações interindividuais nos potenciais auditivos evocados (PAV) e na análise BIS impossibilitam a discriminação de alterações sutis do estado de consciência em tempo real durante anestesia com propofol.89 Similarmente, a RM dependente do nível sanguíneo de oxigênio (DNSO ou BOLD, de blood oxigen level-dependent) é um substituto multifatorial do fluxo sanguíneo cerebral ou do volume sanguíneo cerebral, sendo ambos medidas reais da atividade neural. Embora uma resposta da RM DNSO/BOLD em geral seja uma boa medida substituta da atividade neuronal, baseia-se em alterações hemodinâmicas que podem não refletir os padrões reais de atividade neural, especialmente durante anestesia ou sob desafio farmacológico; em vez disso, os efeitos observados podem ser devidos diretamente a efeitos medicamentosos, ou indiretamente, mediante alterações na atividade autonômica, na pressão sanguínea, no débito cardíaco ou na respiração.90,91 Em contraste, foram utilizadas imagens do fluxo sanguíneo cerebral obtidas pela tomografia com emissão de pósitrons (PET) em voluntários humanos com resposta ao comando verbal;17 a aplicação desse método para explorar a transição do estado de consciência para o de inconsciência em animais pode ser difícil.

Escolha do método de abate com relação ao início da inconsciência A conveniência de qualquer agente ou método de abate humanitário depende em grande parte da possibilidade de distresse e/ou dor antes de o animal perder a consciência. Embora geralmente seja preferível uma morte ‘suave’ que demore um pouco mais a uma morte rápida mas angustiante,85 em algumas espécies e determinadas circunstâncias, a opção mais humanitária e pragmática pode requerer o uso de agentes ou condições aquém do ideal, que resultam em inconsciência rápida, com poucos sinais externos de distresse ou até mesmo nenhum.8 Qualquer distresse ou desconforto percebido em associação a um método

específico de abate que ocorra antes da perda da consciência precisa, portanto, ser levado em consideração contra o bem-estar adverso que pode ocorrer por causa dos procedimentos de manipulação ou contenção.53 As pessoas ficam menos perturbadas pelo processo de eutanásia quando se sentem distanciadas do ato físico ou os animais exibem pouco ou nenhum movimento. Conforme dito antes, atividades motoras reflexas e convulsivas podem ser particularmente inquietantes, de modo que a escolha do método de atordoamento ou abate é bastante influenciada pelas percepções e preferências dos indivíduos encarregados de executar o processo. Por exemplo, técnicos de laboratório relataram que se sentiram mais confortáveis usando os métodos inalatórios, por se sentirem mais dissociados da morte do animal, que com o abate direto por meio de deslocamento cervical.92 Grupos de tratadores de suínos em fazendas da Carolina do Norte preferiam métodos ‘em que se dá um tiro e o animal adormece’ até quando tais métodos prolongavam a morte, em comparação com pistola de dardo cativo e traumatismo craniano não penetrante.93 Os métodos de abate injetáveis e inalatórios possibilitam esse distanciamento, o que em parte pode explicar seu uso disseminado com tal finalidade. Os métodos de abate em que a inconsciência demora a acontecer têm o potencial de afetar adversamente o bem-estar do animal. Com os métodos inalatórios, o início da inconsciência depende de uma concentração crítica de gases ou vapores nos alvéolos e no sangue para que façam efeito; similarmente, o início da inconsciência após a administração de agentes injetáveis depende de ser alcançada uma concentração efetiva no local de ação. Isso depende das propriedades do agente e da via de administração; a perda da consciência pode ser relativamente rápida após a injeção direta no sistema circulatório, enquanto a administração de agentes injetáveis por vias não intravenosas pode retardar o processo. De acordo com isso, tanto os métodos inalatórios como a administração não intravenosa de barbitúrico ou seus derivados atualmente são classificados como ‘aceitáveis com condições’.8 É interessante que mais de 40% das crianças com 2 a 10 anos de idade exibam comportamentos de distresse durante a indução com sevofluorano, com 17% mostrando distresse significativo e mais de 30%, resistência física durante a indução.94 O medo em crianças submetidas a anestesia pode ser por causa do odor, da sensação provocada pela máscara ou de uma fobia verdadeira à máscara.95 O fato de os agentes anestésicos poderem causar distresse e aversão em seres humanos gera preocupação em relação ao seu uso em animais, de modo que os US Government Principles for the Utilization and Care of Vertebrate Animals Used in Testing, Research and Training estabelece: ‘A menos que seja estabelecido o contrário, os pesquisadores devem considerar que procedimentos que causem dor ou distresse em seres humanos podem ter o mesmo efeito em animais’.96

Apesar das evidências de distresse e aversão, a anestesia continua a ser administrada clinicamente tanto a seres humanos como a animais, porque os benefícios associados ao seu uso superam muito qualquer distresse e/ou aversão que os próprios agentes possam causar. Atualmente, recomenda-se uma sobredose intravenosa (IV) de um derivado ácido de barbitúrico, como o pentobarbital ou o secobarbital, para a eutanásia de animais de estimação. Esses agentes não são mais anestésicos veterinários de uso comum e hoje há poucos profissionais dessa categoria que tiveram experiência clínica com eles fora do contexto de eutanásia. O início da inconsciência com a administração por via intravenosa de pentobarbital ou secobarbital em geral ocorre em 30 a 60 s,97 mas a profundidade anestésica máxima pode não ser alcançada por 1 min ou mais.98 É importante entender que sobredoses desses agentes são utilizadas para assegurar a morte e não resultam em tempos de indução mais rápidos. As induções com pentobarbital são calmas na maioria dos casos, contudo em alguns casos observa-se o animal debater-se, mostrar excitação e/ou vocalização, recomendando-se contê-lo com firmeza à medida que a cabeça cai, para ajudar a evitar provocar uma fase de excitação durante a indução.99 A administração não intravenosa de barbitúricos atualmente é categorizada como ‘aceitável com condições’ quando o acesso intravenoso seria angustiante, perigoso ou impraticável por causa do tamanho ou do comportamento do animal.8 Nota-se que a administração pela via intraperitoneal (IP) causa uma indução lenta da anestesia, com excitação e vocalização, níveis imprevisíveis de anestesia e dano a vísceras, tanto em cães como em gatos.99 No rato-macho adulto Crl:CD(BR), a administração via intraperitoneal de 40 e 50 mg/kg de pentobarbital causou perda do estiramento em 4,7 ± 1,4 e 3,5 ± 1,4 min, respectivamente;100 foram relatados achados similares em ratos-machos e fêmeas Wistar U:WU(Cbp).101 Gatos de um abrigo de animais que receberam 346,6 mg de pentobarbital/kg e 17,7 mg de lidocaína/kg por via intra-hepática enquanto estavam conscientes mostraram incoordenação em 0,45 min (27 s) e decúbito em 1,11 min (67 s).102 Embora o período para a perda da consciência em gatos que receberam pentobarbital por via intraperitoneal não tenha sido relatado, a incoordenação e o decúbito foram considerados ‘significativamente demorados’, com 25% dos gatos no grupo IP e 9% no grupo intra-hepático mostrando pelo menos 30 s do que foi caracterizado como excitação dos estágios 1 e 2 da anestesia.102 Como tanto o pentobarbital quanto o secobarbital são altamente alcalinos, tendo pH de ~10, a administração por via intraperitoneal está associada a irritação peritoneal significativa e dor, evidenciadas como suprarregulação na expressão espinal de c-fos após a administração de pentobarbital, mesmo com o acréscimo do anestésico local lidocaína.103 Quando um gás ou vapor é introduzido pela primeira vez em um grande espaço fechado

cheio de ar usando-se métodos de deslocamento gradual, os animais não são expostos imediatamente às condições conhecidas como aversivas ou dolorosas. O período de tempo entre o início dos sinais de distresse e perda do tônus postural com métodos inalatórios depende do agente e da taxa de deslocamento. Em geral, a perda da consciência será mais rápida se os animais forem expostos inicialmente a uma alta concentração de um agente inalatório. Por exemplo, o tempo de indução para suínos recém-nascidos é de 90 s quando expostos a 5vol.% de isofluorano104 e 120 s para 5vol.% de halotano.105 No caso de muitos agentes e espécies, entretanto, a exposição forçada a altas concentrações de inalatórios pode ser aversiva e gerar distresse, de modo que a exposição gradual é a opção mais pragmática e humanitária. Segundo relato de Flecknell et al., coelhos aos quais foram administrados isofluorano, halotano e sevofluorano por máscara ou câmara de indução debateram-se violentamente, apresentando em seguida apneia e bradicardia, o que levou à conclusão de que esses agentes eram aversivos e devem ser evitados sempre que possível.106 Leach et al. descobriram que os vapores inalados de anestésicos se associavam a alguma aversão em roedores de laboratório, maior em concentrações mais elevadas; o halotano foi o menos aversivo para ratos e ele e o enfluorano, os menos aversivos para camundongos.107−109 Makowska e Weary também relataram que o halotano e o isofluorano eram aversivos para ratos Wistar, porém menos que o CO2.110 Há relatos de que o monóxido de carbono seja aversivo para ratos de laboratório, mas não tanto como o CO2.111 O monóxido de carbono acarreta perda do tônus postural na concentração aproximada de 5vol.% em ratos Wistar, mas o tempo para a perda do tônus postural varia com a taxa de deslocamento do CO (104 s a uma taxa de deslocamento do volume de 3%, 64 s a uma taxa de 6% e 53 s a uma taxa de 7%);111 para comparação, uma atmosfera com 10% de CO2 poderia ser alcançada em 30 s com a administração de 100% de CO a uma taxa de deslocamento de volume equivalente a 20% do volume da câmara por minuto. A aversão aos gases inertes argônio (Ar) e nitrogênio (N2) depende em grande parte da espécie e das condições de administração.8 A hipóxia resultante da exposição a esses gases é aversiva para ratos, camundongos e visões (mink). Em contraste, parecem não ser diretamente aversivos para aves de granja, e a hipóxia resultante parece não ser aversiva ou apenas muito pouco. Similarmente, misturas do gás Ar ou N2 não parecem ser diretamente aversivas para suínos e parece que reduzem, mas não eliminam, as respostas comportamentais à hipóxia.56 No entanto, com base nas funções exponenciais de entrada e saída da mistura de gases, a administração com deslocamento gradual de gases inertes resulta em exposição prolongada a condições hipóxicas e pode desencadear sinais francos de distresse comportamental, como respiração com a boca aberta, por um longo período

antes da perda da consciência em roedores de laboratório,70,72 suínos82 e aves de granja.83 O distresse durante a exposição ao CO2 foi examinado mediante avaliação comportamental e teste de aversão.8 Foi relatada variabilidade nas respostas comportamentais ao CO2 em ratos e camundongos,69,72,112−118 suínos54,56,119−122 e aves de granja.123−132 Embora tenham sido relatados sinais de distresse em animais em alguns estudos, outros pesquisadores não observaram esses efeitos de maneira consistente. É possível que isso se deva a variações na administração do gás e nos métodos de exposição, tipos de comportamento avaliados e animais testados. Com o uso dos testes de preferência e abordagens evitadas, ratos e camundongos exibem aversão a concentrações de CO2 suficientes para induzir inconsciência108,109 e chegam a recusar um alimento saboroso como recompensa, preferindo evitar a exposição a concentrações de CO2 de aproximadamente 15% e maiores,110,133 inclusive até após 24 h de privação de comida.134 Visões evitam uma câmara contendo um objeto novo desejável quando ela contém CO2 a 100%.135 Em contraste com outras espécies, uma grande proporção de frangos e perus entrará em uma câmara contendo concentrações moderadas de CO2 (60%) para ter acesso a alimento ou contato social.128,130,132 Após incapacitação e antes da perda da consciência, as aves desse estudo mostraram comportamentos como respiração com a boca aberta e sacudir a cabeça; entretanto, tais comportamentos não podem ser associados a distresse, porque as aves não se afastam do CO2 quando esses comportamentos ocorrem.126 A exposição a níveis de CO2 até de 30vol% não parece ser aversiva para suínos, pois os das raças Duroc e Large White, quando podem escolher, toleram 30vol% de CO2 para ter acesso a uma recompensa alimentar.54,120 Portanto, parece que aves e suínos são mais tolerantes que roedores e visões ao CO2 em concentrações suficientes para induzir perda do tônus postural. É menos provável que a exposição ao dióxido de carbono por métodos de enchimento gradual cause dor em decorrência da ativação nociceptora pelo ácido carbônico antes do início da inconsciência, de modo que atualmente se recomenda uma taxa de deslocamento de CO2 entre 10 e 30% do volume da câmara por minuto para eutanásia.8,9 Com a administração nessas taxas, a inconsciência ocorre antes da exposição a níveis de CO2 conhecidos como causadores de estimulação nociceptora.69,72 Em seres humanos, ratos e gatos, os nociceptores começam a responder a concentrações de CO2 de aproximadamente 40 vol%.136−139 Os seres humanos relatam que o desconforto começa entre 30 e 50 vol% de CO2 e se intensifica até superar a dor em concentrações maiores.140−142 Em roedores, o distresse começa com uma concentração de aproximadamente 15 vol% de CO2 e dura até o início da inconsciência, cerca de 30 s depois. A inconsciência ocorre em 106 s com uma concentração de aproximadamente 30 vol% e uma taxa de deslocamento de CO2 equivalente a 17 a 20% do volume da câmara.118,133,142,143 Um deslocamento mais lento, de

10%/min, aumenta o tempo para o início da inconsciência para 156 s com uma concentração de CO2 de 21%.72 Quando se administra CO2 a leitões recém-nascidos a 20% do volume da câmara por minuto, a inconsciência (perda do reflexo postural) ocorre em 80 ± 15 s com uma concentração aproximada de 22 vol%.82 As concentrações de CO2 necessárias para causar perda do tônus postural em frangos de corte, galinhas poedeiras, perus e patos são de 19, 19,9, 19,3 e 23,8 vol.%, respectivamente.124 A genética pode influenciar a variabilidade da resposta ao CO2. O distúrbio do pânico em pessoas está ligado geneticamente a maior sensibilidade ao CO2.144 A rede do medo, que compreende o hipocampo, o córtex pré-frontal medial e a amígdala e suas projeções no tronco cerebral, parece ser anormalmente sensível ao CO2 nesses pacientes.145 A base genética de alguns suínos, em especial linhagens excitáveis como Hampshire e German Landrace, foi associada a animais que reagem mal ao atordoamento por CO2, enquanto linhagens genéticas mais calmas que combinam as conformações de Yorkshire ou Dutch Landrace exibem reações muito mais discretas.146 Diante de uma escolha, suínos Duroc e Larage White toleram 30% de CO2 para terem acesso a uma recompensa alimentar, mas rejeitam a recompensa para evitar a exposição a 90% de CO2, mesmo após um período de 24 h de privação de alimento.54,120 Contudo, um choque com um estímulo elétrico é mais aversivo para suínos mestiços de Landrace com Large White que a inalação de 60 ou 90% de CO2, com os suínos inalando 60% de CO2 querendo voltar para o espaço que contém CO2.119 Até que haja mais pesquisa, é possível concluir que a exposição a altos níveis de CO2 pode ser humanitária para certas linhagens genéticas de porcos e estressante para outras.146 Estudos recentes envolvendo camundongos revelaram que regiões da amígdala associadas a comportamento de medo continham canais iônicos sensíveis a ácido (CISA) e a níveis elevados de CO2.147 Os comportamentos de medo e aversão em resposta à exposição ao CO2 foram reduzidos em camundongos nos quais os receptores de CISA foram eliminados ou inibidos, sugerindo que as respostas aversivas ao CO2 em roedores, e potencialmente em outras espécies, são mediadas em parte por uma resposta inata de medo. São necessários outros estudos que definam a presença de CISA e seu papel no medo induzido pelo CO2 em outros roedores e também outras espécies de animais. A prática da imersão em um recipiente preenchido com 100% de CO2 é agora considerada ‘inaceitável’ para eutanásia.8,9 Todavia, é preciso fazer uma distinção entre imersão, em que animais conscientes são colocados diretamente em um ambiente fechado com alta concentração de gás ou vapor, e os processos comerciais de atordoamento em atmosfera controlada (AAC, ou CAS, de controlled atmosphere stunning), como os utilizados para o atordoamento de aves de granja e suínos. Ao contrário da imersão, os animais são colocados para AAC gradualmente, o que pode ser feito mediante o transporte

físico em uma taxa controlada para um gradiente atmosférico contido de atordoamento, por meio da introdução controlada de gases atordoantes em um espaço fechado, ou pela redução controlada da pressão atmosférica, para causar hipóxia. Combinações sequenciais (os processos chamados ‘em duas etapas’ ou ‘multifásicos’) podem utilizar um gás ou mistura de gases para induzir a inconsciência antes da exposição a uma mistura diferente de gases ou uma concentração maior de gás. A velocidade de transporte ou introdução de animais pode ser lenta ou relativamente rápida, dependendo do processo, dos gases utilizados e da espécie em questão. Além disso, gases mais densos que o ar como o CO2 se espalham em camadas segundo gradientes definidos em um espaço fechado.148 Portanto, os animais não são expostos imediatamente a condições conhecidas como aversivas ou dolorosas com o AAC. O projeto dos sistemas comerciais de AAC foi revisto por Grandin.146 Há incerteza quanto à utilidade e à viabilidade de substituir agentes anestésicos inalatórios por CO2 no tocante ao bem-estar animal e à saúde e à segurança humana.8,85 Os anestésicos inalatórios halocarbonados foram propostos como alternativas para o CO2 para a eutanásia de roedores85,110,111,149 e o Canadian Council on Animal Care (CCAC) recentemente adotou essa posição, desde que seja viável.9 No entanto, os anestésicos inalatórios são conhecidos como causadores de graus variáveis de aversão em roedores,107−110,149 e também causam aversão, distresse e comportamentos de fuga durante a indução anestésica em outras espécies de animais106 e seres humanos.94,95 A anestesia com isofluorano administrada antes da eutanásia com CO2 exacerbou os sinais de comportamento adverso de distresse e a expressão do íon c-fos no cérebro de fêmeas de camundongo CD1.69 Consistente com os princípios que determinam a entrada e a saída de gases em recipientes fechados, cinco de 10 camundongos anestesiados com isofluorano mostraram sinais de recuperação da consciência quando foi acrescentado CO2 ao recipiente.69 A medicação com acepromazina ou midazolam antes da exposição ao CO2 administrado a uma taxa de deslocamento de 20%/min não alterou de maneira significativa os comportamentos observados, mas induziu uma expressão bem maior de c-fos.69 Grandes quantidades de anestésicos inalatórios são absorvidas e quantidades significativas permanecem no corpo por dias, mesmo após recuperação aparente,150 o que torna esses agentes inadequados para a eutanásia de animais que servem para consumo.

Senciência e eutanásia fetais A senciência fetal de animais durante a eutanásia de fêmeas prenhes e a histerossalpingectomia de cadelas e gatas nesse estado foi substancialmente revisada por Mellor et al.151−154 e White.155 As preocupações acerca do sofrimento fetal durante o abate

humanitário de fêmeas prenhes ou a ovário-histerectomia de cadelas e gatas nesse estado podem surgir, pelo menos em parte, devido à observação do corpo e dos movimentos respiratórios dos fetos. Entretanto, esses movimentos fazem parte da fisiologia fetal in utero e não devem ser motivo de preocupação com o bem-estar fetal. Embora a expressão ‘ sofrimento fetal’ tenha sido usada no passado, não significa indício nem implica distresse emocional consciente, conscientização ou sofrimento percebido, atualmente sendo considerada imprecisa e inespecífica nesse contexto.155 Em uma revisão extensa da fisiologia fetal e da percepção da dor, Mellor e Diesch151 afirmaram que ‘um animal precisa ser senciente e consciente para que ocorra sofrimento’; em outras palavras, o animal precisa ter um desenvolvimento neural adequado para que haja percepção sensorial ou senciência e também precisa estar consciente e desperto. Todos os embriões ou fetos de mamíferos estudados até o momento permanecem em um estado de inconsciência durante toda a prenhez e o parto.152 Isso ocorre em algumas espécies devido à imaturidade neurológica excepcional (p. ex., determinados marsupiais) ou moderada (p. ex., gatos, cães, coelhos, ratos e camundongos). Em outras espécies neurologicamente maduras ao nascimento (p. ex., bovinos, cervídeos, caprinos, ovinos, equinos e cobaias), a imaturidade neurológica inicial é combinada com neuroinibidores in utero, os quais são exclusivos da vida pré-natal e incluem a adenosina (um promotor potente de sono e/ou inconsciência), a alopregnanolona e a pregnanolona (esteroides neuroativos com efeitos anestésicos, sedativos/hipnóticos e analgésicos bem estabelecidos, que são sintetizados pelo cérebro fetal) e prostaglandina D2 (um agente indutor potente do sono, também sintetizado pelo cérebro fetal). A consciência ocorre minutos ou horas após o nascimento nessas espécies, em grande parte devido ao efeito combinado da queda da neuroinibição com o início da neuroativação. Além disso, um EEG isoelétrico, que é incompatível com a consciência, aparece rapidamente após a interrupção do aporte placentário de oxigênio. Portanto, embriões e fetos não conseguem perceber, de modo consciente, sensações e sentimentos como falta de ar ou dor, nem podem sofrer enquanto estão in utero após a morte da mãe, qualquer que seja a causa da morte dela. Uma conclusão semelhante, mas qualificada, foi tirada quanto à possibilidade de que possa não ocorrer consciência até após a eclosão em pintos domésticos.156

Atordoamento por baixa pressão atmosférica O atordoamento por baixa pressão atmosférica (ABPA) é um método recém-descrito para o atordoamento de aves de granja antes do abate humanitário. A inconsciência ocorre após redução controlada e gradual da pressão barométrica devido a hipóxia.157,158 Uma vantagem significativa do ABPA sobre o atordoamento elétrico e aquele com atmosfera controlada

(AAC) ‘ao vivo’ mediante o uso de gás é a eliminação de questões de bem-estar com a colocação de aves vivas na esteira de transporte e da necessidade de manipulá-las manualmente. A União Europeia permite o uso de câmara de vácuo para o abate de codornas, perdizes e faisões criados em fazendas159 e, atualmente, o método está sendo submetido a testes comerciais para o atordoamento de frangos nos EUA, sob a chancela do USDA Office of New Technology Testing Approval. A descompressão rápida é agora considerada ‘inaceitável’ para eutanásia.8 O ABPA não consiste em descompressão rápida, mas sim na aplicação gradual com o tempo de pressão atmosférica negativa, em geral 1 min para frangos, o que resulta em um estado hipóxico semelhante ao de uma aeronave não pressurizada em altitude. A pressão negativa máxima observada durante o ABPA comercial de frangos corresponde a uma pressão atmosférica estimada de 156 mmHg e PO2 inspirada de 33 mmHg (R. E. Meyer, observação pessoal em OK Foods, Fort Smith, AR, EUA, 8 de março de 2012). Portanto, a PO2 do ABPA à pressão negativa máxima é equivalente a uma atmosfera de 4% ao nível do mar (33 mmHg/760 mmHg). Para comparação, a pressão atmosférica (PB) no alto do Monte Everest (altitude aproximada de 8.700 m) é de 225 mmHg e a PO2 é de 47 mmHg; a 12.000 m, a PB é de 141 mmHg e a PO2 é de 30 mmHg. A descompressão rápida pode causar dor e distresse, por causa da expansão dos gases presentes em espaços fechados.160 Entretanto, no caso de aves, é improvável que os gases fiquem retidos nos pulmões ou no abdome durante o ABPA e, portanto, também é improvável que se tornem uma fonte de distensão abdominal, graças à estrutura anatômica única do sistema respiratório das aves. Os pulmões das aves são abertos em ambas as extremidades, rígidos, aderidos às costelas e não mudam de tamanho durante a ventilação. Há nove sacos aéreos inseridos nos pulmões, preenchendo os espaços nas cavidades torácica e abdominal. Como as aves não têm diafragma, o ar se move para dentro e para fora durante o movimento esternal, em que são usados os músculos intercostais e abdominais; o movimento do ar é simultâneo e contínuo com o período não passivo ou relaxado. Por isso, é improvável que quantidades significativas de gás possam ficar aprisionadas nos pulmões ou no abdome das aves, a menos que a traqueia esteja bloqueada por alguma razão.161 Em contraste com relatos de lesões hemorrágicas nos pulmões, cérebro e coração de animais submetidos à descompressão rápida,162 tais lesões não foram observadas em aves submetidas ao ABPA.158 As concentrações de corticosterona em aves submetidas ao ABPA foram quase a metade dos níveis observados em aves atordoadas por descarga elétrica.158 Durante operação comercial, as aves submetidas ao ABPA permanecem em gaiolas de transporte engradadas. Após o ciclo de ABPA, as gaiolas contendo as aves inconscientes são levadas para a estação de abate e movidas pela esteira transportadora para a área de

despejo, antes de entrarem na linha de processamento. As pressões visadas pelo ABPA para frangos são atingidas em 1 min a partir do início do ciclo do ABPA e mantidas por 4 min 40 s, para assegurar que não ocorra recuperação da consciência antes da exsanguinação. O tempo para o primeiro movimento coordenado do animal foi de 58,7 ± 3 s, com ‘cabeçadas leves’ (definidas como o tempo para o primeiro movimento da cabeça até o primeiro bater de asas) notadas em 69,3 ± 6,4 s; ocorreu perda do tônus postural em 64,9 ± 6,1 s. O bater de asas e pernas foi infrequente, durando 15,1 ± 1,1 s após a perda do tônus postural. Não se observaram: mandibulação (movimentos do bico como se a ave respondesse a sensações na boca) nem respiração com o bico aberto em aves submetidas ao ABPA, ambas comuns durante atordoamento com atmosfera controlada com várias misturas de gases.163 Com base em estudos do EEG, ocorre atividade crescente de onda lenta (delta), compatível com perda gradual da consciência 10 s após o início do ciclo de ABPA, atingindo o máximo entre 30 e 40 s e coincidente com a perda do tônus postural e os primeiros movimentos breves.164 O mesmo grupo também determinou que a frequência cardíaca diminui com o tempo durante o ABPA, o que implica estimulação adicional mínima do sistema nervoso simpático, concluindo-se que o ABPA é uma abordagem humanitária que pode melhorar o bem-estar de aves de granja durante o abate, por induzir inconsciência sem distresse, impedindo que o animal se debata ainda vivo e assegurando que cada ave seja adequadamente atordoada antes da exsanguinação.164

Despopulação com espuma Os métodos de despopulação com espuma foram desenvolvidos inicialmente como uma alternativa aos métodos de despopulação por modificação atmosférica para aves de granja criadas no solo.165 As vantagens da espuma sobre outros métodos de despopulação incluem redução do tempo total necessário para despopular fazendas e do número de trabalhadores, bem como a exposição potencial dos mesmos a doenças zoonóticas, menos atividade física com as pessoas usando equipamento de proteção individual (EPI), supressão de partículas espalhadas pelo ar, facilidade para o descarte das carcaças usando a compostagem doméstica e maior flexibilidade de uso em vários estilos de instalações para aves de granja, incluindo aquelas com a estrutura danificada.166 Na despopulação com espuma, usa-se um equipamento formador de espuma de expansão média ou alta para criar um cobertor de espuma à base de água para cobrir os animais. O equipamento mais atual para despopulação com espuma usa ar comprimido ou ar ambiente para criar as bolhas. A imersão na espuma acarreta bloqueio rápido e oclusão das vias respiratórias, resultando na morte por sufocação. A espuma à base de água requer menos tempo que a morte pelo gás CO2, com níveis de corticosterona semelhantes pré-

tratamento e após a morte.165 Com base na interrupção da atividade EEG, a espuma à base em água foi tão consistente quanto o gás CO2 e mais que a mistura de 70% de argônio com 30% de CO2;167 não houve diferença estatística entre o tempo de interrupção do EEG com a espuma de ar ambiente e a espuma preenchida com CO2.165 A espuma também é um recurso efetivo para a despopulação de perdizes, codornas, patos e perus.168 A despopulação com espuma à base de água para aves de granja foi aprovada excepcionalmente em 2006 pelo United States Department of Agriculture Animal and Plant Health Service (USDA APHIS). O uso de espuma não é um método de eutanásia aprovado pela AVMA, porém essa instituição tem normas indicando que ‘confirma o uso de espuma à base de água como um método de despopulação em massa, de acordo com as condições e padrões de desempenho delineados pelo USDA APHIS’.14 O uso de espuma é aprovado excepcionalmente para situações em que os animais estão (1) infectados com uma doença potencialmente zoonótica, (2) tendo um surto de uma doença infecciosa que se dissemina rapidamente e não pode ser contida com facilidade ou (3) abrigados em instalações estruturalmente insalubres ou deterioradas. Raj et al.169 questionaram o bem-estar animal porque a espuma à base de água preenchida com ar ambiente provoca oclusão das vias respiratórias, uma forma de sufocação; eles propuseram aumentar o tamanho da bolha como um meio de reduzir a oclusão das vias respiratórias, além de se incorporar um gás inerte à espuma, para induzir inconsciência antes da morte. Gerritzen et al. avaliaram as respostas de frangos, patos e perus às espumas preenchidas com CO2 e com N2.170 A exposição de aves de granja à espuma preenchida com CO2 resultou na indução mais rápida de um estado de transição do EEG que a exposição à espuma preenchida com N2; o efeito do CO2 sobre a consciência começou antes que as aves ficassem submersas. Após a submersão, não houve diferença na redução do estado de consciência entre a espuma preenchida com CO2 e aquela com N2, não se concluindo que os efeitos anóxicos de ambos os gases sejam comparáveis e aceitáveis, com a possibilidade de que as aves submersas na margem da espuma, que tem menos de 80 cm de altura, fiquem propensas ao risco de ter seu bem-estar comprometido no evento de falha técnica do sistema de espuma. Atualmente, a espuma preenchida com nitrogênio de alta expansão está sendo investigada na União Europeia como um meio para o abate seletivo de suínos, mantendo seu bem-estar, sob o número 1099/2009 do European Council Regulation.171

Pureza do agente e eutanásia O Office for Laboratory Animal Welfare (OLAW) e o USDA dão orientações sobre o uso de substâncias não farmacêuticas. Ambas as instituições concordam que as substâncias

farmacêuticas e outras, quando disponíveis, devem ser usadas para se evitarem toxicidade ou efeitos colaterais que possam ameaçar a saúde e o bem-estar de animais vertebrados ou interferir na interpretação dos resultados de pesquisas. Entretanto, a decisão de usar substâncias não farmacêuticas baseia-se no Institutional Animal Care Committee.172 O OLAW, junto com o USDA e a International Association for the Assessment and Accreditation of Laboratory Animal Care (AAALAC), oferece orientações sobre essa questão.173 Basicamente, deve-se usar o reagente químico de grau mais alto equivalente, se não houver um fármaco veterinário ou humano equivalente disponível para uso experimental. No caso de gases inalatórios, graus industriais ou alimentares podem ter pureza similar ou maior do que os medicinais. As especificações técnicas do governo federal dos EUA e USP para o CO2 estão detalhadas no BB-C-101D,174 de acordo com o qual o CO2 de grau A é definido como aquele que satisfaz as exigências do US Pharmacopeia/National Formulary (USP/NF), enquanto o de grau B é definido como o que tem pureza não inferior a 99,5 vol%. Os gases de grau A são fabricados sob o certificado de Good Manufacturing Practices (cGMP), conforme definido pelo estatuto federal 21 CFR 211.84, e satisfazem as especificações aplicáveis do USP/NF, que incluem um certificado de análise, procedimentos analíticos validados, número do lote, rastreabilidade e procedimentos de retorno.175 Os gases de grau industrial geralmente não têm esses atributos do cGMP. Os usuários que queiram substituir gases de grau B ou industriais terão que confirmar com seu fornecedor de gás que o produto correspondente seja medicinal ou de grau A.

Eutanásia no contexto clínico Os barbitúricos e seus derivados ácidos (p. ex., pentobarbital sódico, secobarbital, produtos combinados de pentobarbital), desde que administrados por via intravenosa, são aceitáveis para a eutanásia de animais conscientes.8 Esses agentes podem ser administrados isoladamente ou em uma segunda etapa, após sedação ou anestesia geral. Com exceção da administração por via intramuscular de certos anestésicos injetáveis (p. ex., um agonista α2 combinado com cetamina), as vias de administração subcutânea, intramuscular, intrapulmonar e intratecal são inaceitáveis para eutanásia com agentes injetáveis, por causa das informações limitadas disponíveis sobre sua efetividade e da alta probabilidade de dor associada à injeção em animais despertos.8 Quando o acesso intravenoso seria angustiante, perigoso ou impraticável (p. ex., paciente pequeno, como filhotes caninos e felinos, cães e gatos de pequeno porte, roedores, espécies não domésticas ou considerações comportamentais no caso de alguns pequenos mamíferos exóticos e animais domésticos irascíveis), barbitúricos podem ser administrados

excepcionalmente por via intraperitoneal (p. ex., pentobarbital sódico, secobarbital, produtos combinados de pentobarbital, embora tenham sido aprovados apenas para administração por via intravenosa e intracardíaca). A administração por via intraperitoneal tem o potencial de causar irritação peritoneal e dor, bem como, conforme observado previamente, resultar na perda tardia da consciência, razão pela qual essa via é considerada ‘aceitável com condições’ pela AVMA.8 Em animais inconscientes ou anestesiados, injeções intraórgãos (p. ex., intraósseas, intracardíacas, intra-hepáticas, intraesplênicas, intrarrenais) podem ser usadas como uma alternativa. As injeções intraórgãos aceleram a captação do barbitúrico com relação às injeções via intraperitoneal e, quando o proprietário está presente, essa abordagem pode ser preferível à via intraperitoneal.8 O descarte apropriado das carcaças é importante, pois os animais submetidos à eutanásia com barbitúricos implicam riscos para comedores de carniça e outros animais que possam consumir partes contaminadas com resíduos de barbitúricos. A sobredose de anestésicos injetáveis (p. ex., associação de cetamina e um agonista α2 IV, IP ou IM, ou de propofol IV) é aceitável para eutanásia quando o tamanho do animal, as necessidades de contenção ou outras circunstâncias indicam que esses fármacos sejam a melhor opção. É imprescindível assegurar a morte, o que pode requerer uma segunda etapa (p. ex., um barbitúrico, ou doses adicionais do anestésico) ou o uso de um método adjuvante aceitável (p. ex., cloreto de potássio, 1 a 2 mmol/kg, 75 a 150 mg/kg ou 1 a 2 mEq de K+/kg, administrados por via intravenosa ou IC).8 Pode-se usar cloreto de potássio ou uma solução saturada de sulfato de magnésio apenas como adjuvante para a eutanásia de animais inconscientes (definidos como irresponsivos a estímulos nocivos) ou sob anestesia geral.8 As alternativas aos barbitúricos para eutanásia incluem T-61® (embutramida + mebezônio + tetracaína) e Tributame® (embutramida + fosfato de cloroquina + lidocaína). O T-61® é aceitável para fins de eutanásia, desde que seja administrado da maneira apropriada por indivíduos treinados. A injeção intravenosa lenta é necessária para evitar paralisia muscular antes da inconsciência. A administração de T-61® por outras vias além da intravenosa é inaceitável.8 Atualmente, o T-61® não é mais fabricado nos EUA, mas pode ser obtido no Canadá. Tributame®, embora não esteja mais sendo produzido nos EUA, também é um fármaco aceitável para eutanásia em cães, desde que seja administrado por via intravenosa e por indivíduos bem treinados, nas dosagens recomendadas e às velocidades apropriadas. Caso não haja barbitúricos disponíveis, seu uso extra-label em gatos pode ser considerado, porém foram relatadas reações adversas, como respiração agônica, e a bula atual do Tributame® aprovada pela FDA alerta contra seu uso em gatos. Tributame® só pode ser administrado por via intravenosa.

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7 Farmacologia Geral dos Agentes Anestésicos e Analgésicos 8 Anticolinérgicos 9 Agentes Adrenérgicos 10 Sedativos e Tranquilizantes 11 Opioides 12 Anti-inflamatórios Não Esteroides 13 Anestésicos e Analgésicos Adjuvantes 14 Relaxantes Musculares e Bloqueio Neuromuscular 15 Anestésicos Injetáveis 16 Anestésicos Inalatórios 17 Anestésicos Locais

Introdução Teoria clássica dos receptores Afinidade e atividade do ligante Seletividade e especificidade do ligante Avaliação da interação ligante-receptor Agonistas e antagonistas dos receptores | Definições e exemplos Teoria do estado do receptor Estrutura dos receptores Canal de íons sódio Receptores de GABA Receptores AMPA e NMDA Receptores associados às proteínas G | Segundos mensageiros Avaliação clínica dos efeitos farmacológicos Eficácia, potência e relação concentração-resposta Dose efetiva, dose letal, dose tóxica e índice terapêutico Farmacocinética e farmacodinâmica Fundamentos de farmacodinâmica Fundamentos de farmacocinética Meia-vida de eliminação Volume aparente de distribuição Depuração corporal total Depuração hepática Depuração renal

Absorção Biodisponibilidade Farmacocinética dos agentes anestésicos inalatórios Farmacocinética linear e não linear Experimentos em farmacocinética Preparação para o estudo Projeto de condução do experimento Análise de dados | Modelos compartimentais Análise de dados | Modelos não compartimentais Análise de dados em modelos mais complexos Terapia com velocidade constante Bolos intermitentes Infusão de velocidade contínua Interações medicamentosas Interações físico-químicas Interações farmacocinéticas Interações farmacodinâmicas Reações adversas a medicamentos Metabolismo dos fármacos Biotransformação de fase I Biotransformação de fase II ou conjugação Transporte dos metabólitos (biotransformação de fase III) Isômeros e estereoisômeros Efeitos da formulação Referências bibliográficas

Introdução A anestesia e o manejo da dor são dois ramos da medicina clínica veterinária que estão indiscutivelmente interligados de modo inextricável com a farmacologia clínica. É fundamental adquirir uma compreensão detalhada, profunda e funcional dos princípios de

farmacologia clínica para uma prática clínica bem-sucedida nessas disciplinas. O principal objetivo deste capítulo é introduzir esses conceitos farmacológicos fundamentais, na medida em que estão relacionados com a prática da anestesia, e fazê-lo com detalhes suficientes de modo a fornecer a base para a tomada de decisões clínicas corretas, até mesmo quando evidências específicas para sustentar a decisão não estiverem disponíveis ou não forem conhecidas. Este capítulo também pretende fornecer ao anestesista cientista principiante uma compreensão elementar de alguns dos métodos e instrumentos de pesquisa comumente utilizados na pesquisa farmacocinética da farmacologia clínica veterinária.

Teoria clássica dos receptores Para possibilitar a comunicação entre órgãos e células, o corpo recorre a mensageiros ou sinais. O papel dos receptores biológicos consiste em converter sinais em diferentes formas de estímulos, que irão induzir uma reação em uma célula ou órgão. O cientista francês Claude Bernard (1813-1878) foi o primeiro a demonstrar a existência de mensageiros circulantes, que possibilitam a comunicação entre diferentes partes do corpo.1 Essa descoberta foi o prelúdio para a teoria dos receptores. O receptor é um componente da célula, habitualmente uma proteína ou glicoproteína, que interage com a substância mensageira sinalizadora. Classicamente, a substância mensageira de sinalização é denominada ligante. Por exemplo, os ligantes podem ser hormônios ou fármacos. A associação de um fármaco ligante ao seu receptor induz efeitos farmacológicos; o efeito inicial é denominado “ação” do fármaco, enquanto os efeitos subsequentes são denominados “efeitos” do fármaco.2 A relação entre um ligante e o seu receptor obedece à lei de ação das massas:

em que:

em que: Ka é a constante de associação do ligante com o receptor, Kd é a constante de dissociação do ligante com o receptor, [L] é a concentração do ligante não ligado, [R] é a concentração do receptor não ligado, e [LR] é a concentração de receptores ligados.

■ Afinidade e atividade do ligante

A afinidade descreve a relação entre determinado receptor e seu ligante: a partir da Equação (7.1), se a quantidade de ligante administrada for exatamente suficiente para ocupar 50% dos receptores, teremos:

Um valor elevado da Ka (e um baixo valor da Kd) significa que, em equilíbrio, o número de moléculas de ligante não ligadas é baixo, mostrando alta afinidade do ligante pelo receptor. Por outro lado, um baixo valor de Ka (e um valor elevado de Kd) indica baixa afinidade do ligante pelo receptor. Entretanto, um ligante pode exibir uma forte afinidade pelo receptor, sem produzir qualquer efeito. A atividade irá descrever a capacidade de um ligante de produzir uma ação. Por exemplo, os receptores (µ) e (κ) constituem os principais receptores opioides envolvidos na modulação da dor pelos opioides. A buprenorfina é classificada como agonista opioide µ parcial. Apresenta alta afinidade pelo receptor de opioides µ, e, em consequência, é difícil antagonizar seus efeitos, apesar de serem moderados.3 O butorfanol é classificado como opioide agonista-antagonista.2 Produz seus efeitos ao ativar os receptores opioides κ e liga-se também aos receptores opioides µ. Entretanto, embora o butorfanol tenha forte afinidade pelos receptores opioides µ, ele é incapaz de ativá-los e não irá produzir nenhuma ação quando associado a esses receptores.

■ Seletividade e especificidade do ligante A seletividade de um ligante determina sua capacidade de produzir um efeito específico. Um fármaco altamente seletivo só irá produzir um efeito por meio de sua atividade em apenas uma classe ou subclasse de receptor. A dopamina é uma catecolamina que produz diferentes efeitos cardiovasculares em diferentes doses; quando administrada em uma dose relativamente baixa, ela aumenta a contratilidade miocárdica (mediada por receptores betaadrenérgicos); entretanto, quando se aumenta a dose, a dopamina provoca alguma vasoconstrição periférica (mediada por receptores alfa-adrenérgicos). Essa falta de seletividade deve-se ao fato de que a dopamina atua como ligante em diferentes subclasses de receptores adrenérgicos com afinidade variável. Em contrapartida, a dobutamina é uma catecolamina mais seletiva (mediada apenas por receptores beta-adrenérgicos), e o seu principal efeito consiste em aumentar a contratilidade miocárdica, sem induzir vasoconstrição periférica significativa.4 A especificidade de um ligante descreve a sua capacidade de se associar a apenas um tipo específico de receptor. Os efeitos de um ligante altamente específico podem ser numerosos, porém são devidos a apenas um tipo de interação de receptor e ligante. Por exemplo, a atropina associa-se a um tipo específico de receptor, embora esses receptores

sejam encontrados em diferentes tecidos, e os efeitos sejam diversos.5 Em comparação, os anestésicos inalatórios interagem com vários receptores diferentes para induzir o seu efeito amplo, a inconsciência.6

■ Avaliação da interação ligante-receptor Pode ser difícil avaliar diretamente a interação de um receptor com seu ligante pela observação do número de receptores ligados ou não ligados ou até mesmo pela observação da ação do fármaco. Em consequência, os pesquisadores frequentemente medem os efeitos dos fármacos com o intuito de quantificar a ocupação dos receptores. O efeito do fármaco é proporcional à concentração de moléculas ligantes disponíveis para ligação, a qual é uma função da dose e do método de administração do ligante, das propriedades físico-químicas e farmacocinéticas do ligante e da localização do receptor. É comum haver um intervalo de tempo entre a administração da dose e o início dos efeitos farmacológicos, que é frequentemente designado como período de latência. Esse atraso pode ser devido à dificuldade relativa do ligante em alcançar o receptor (farmacocinética), ou pode ser devido a um retardo pós-transdução (farmacodinâmica). Por exemplo, os receptores glicocorticoides são receptores nucleares que, quando não estão ligados a um ligante como o cortisol ou outro glicocorticoide, estão localizados no citosol. Uma vez ativado pela ligação do ligante, o complexo receptor de glicocorticoide-fármaco é ativamente transportado para dentro do núcleo, onde induz a transcrição de genes que codificam proteínas anti-inflamatórias, enquanto inibe a transcrição de genes habitualmente suprarregulados por mediadores inflamatórios.7 Nesse caso, o início da atividade ocorre após a transdução, e o longo período de latência explica o motivo pelo qual os glicocorticoides são incapazes de produzir bons resultados como fármacos de emergência.

■ Agonistas e antagonistas dos receptores | Definições e exemplos O termo agonista origina-se do grego agōnistēs, que significa concorrente ou campeão. Um ligante agonista é um ligante que se liga ao receptor e habitualmente o ativa da mesma maneira que as moléculas endógenas. Um ligante agonista pode ser um agonista completo, que ativa totalmente o receptor, ou um agonista parcial, que não ativa totalmente o receptor e que, portanto, produz um efeito máximo menos intenso (ver adiante). Não se sabe porque algumas moléculas atuam como agonistas totais, enquanto outras atuam como agonistas parciais; todavia, o início da explicação envolve o conceito de estado do receptor (ver adiante). Por exemplo, a morfina e a buprenorfina são, respectivamente, um agonista opioide µ completo e um agonista opioide µ parcial. Por conseguinte, a morfina pode produzir efeitos analgésicos melhores do que a buprenorfina, embora a afinidade da

buprenorfina pelos receptores opioides µ seja maior que a da morfina. Um ligante também pode ser classificado como antagonista neutro. Neste caso, o ligante liga-se ao receptor, porém é incapaz de ativá-lo. Não se observa nenhuma ação após a associação do ligante ao receptor. Essa associação é habitualmente competitiva, mas também pode ser não competitiva. A inibição competitiva do receptor pode ser superada pela administração de uma quantidade grande o suficiente de um ligante agonista, enquanto a mesma ação não terá nenhum efeito se a inibição for não competitiva. Os agonistas reversos são ligantes que irão ativar o receptor, porém irão induzir efeitos opostos aos ligantes agonistas. Outra forma de interpretação é considerar o fato de que um receptor exerce um efeito agonista basal que não é nulo, e a administração do agonista inverso irá diminuir o efeito basal. A explicação desse fenômeno baseia-se na teoria do estado do receptor discutida adiante. Se o efeito agonista consiste em proporcionar analgesia, o efeito do agonista inverso consiste em aumentar a sensação de dor. O glumazenil e o Ro 19-4603 são exemplos de antagonista neutro competitivo e agonista inverso, respectivamente. Mandema et al. estudaram as relações de concentração média-efeito EEG de todos os ratos individualmente aos quais foi administrado um bolo intravenoso de midazolam, flumazenil ou Ro 19-4603. O midazolam foi seguido de um efeito positivo, enquanto o flumazenil e o Ro 19-4603 foram seguidos de efeitos neutros e negativos, respectivamente.8 Pode surgir alguma confusão entre antagonista neutro e agonista inverso quando o efeito agonista basal é mínimo. Além disso, a classificação em agonista, agonista parcial, antagonista neutro e agonista inverso aplica-se a um ligante em relação a um determinado receptor, e o efeito geral de um fármaco pode ser diferente do efeito esperado com base em sua ação em determinado receptor. Embora a naloxona seja um antagonista bem conhecido dos opioides, a sua administração em baixas doses pode induzir efeitos analgésicos. O mecanismo pelo qual um antagonista opioide pode intensificar o efeito agonista opioide não é conhecido, embora possa ser explicado pelos seus efeitos de: aumento da liberação de ligantes endógenos, suprarregulação de receptores pós-sinápticos, inibição da ação contrária por proteínas Gs, desacoplamento do filamento A e atenuação do aumento na expressão de GFAP.9

Teoria do estado do receptor A teoria clássica do receptor implica que o receptor se encontra, por ausência, em uma forma não ativada e necessita da presença de um ligante agonista para a sua ativação. Embora a forma não ativada do receptor represente a maioria dos receptores presentes, experimentos mostraram que, sem a presença de um ligante agonista, alguns receptores

ainda podem existir em sua forma ativada. O papel do ligante não seria, portanto, ativar o receptor, porém estabilizar a sua forma ativada. As duas implicações importantes dessa teoria são a existência de um efeito agonista basal do receptor e a diferenciação entre fármacos antagonistas e fármacos agonistas inversos.

Estrutura dos receptores Os receptores são principalmente entidades multiproteicas e, portanto, apresentam quatro níveis de estrutura. A estrutura primária é uma sequência linear de aminoácidos, a estrutura secundária é uma subestrutura local regular (hélice α ou lâminas β), a estrutura terciária é a estrutura tridimensional de uma única molécula peptídica e a estrutura quaternária é a combinação de múltiplas estruturas terciárias de diferentes proteínas ligadas entre si. Todos esses níveis de estrutura são de importância particular, visto que o ligante terá que ser compatível com esses quatro níveis de estrutura para ser capaz de associar-se ao receptor e ativá-lo. Esta seção tem por objetivo ilustrar o estudo das estruturas dos receptores utilizando alguns exemplos de receptores que têm importância particular no campo da anestesia. A discussão irá se limitar a alguns receptores de membrana, canais iônicos e receptores associados a proteínas G.

■ Canal de íons sódio Um dos papéis essenciais do canal de sódio é possibilitar a geração de potenciais de ação.10 De fato, os canais de sódio são canais iônicos controlados por voltagem, que conduzem o cátion sódio para dentro da célula, gerando um potencial de ação. Quando o potencial de membrana se torna igual ao potencial de repouso da célula, ocorre fechamento dos canais. Entretanto, à medida que o potencial de membrana aumenta, a conformação do poro central do canal se modifica, aumentando a permeabilidade ao sódio e possibilitando o influxo de íons sódio e, consequentemente, o início ou a propagação de um potencial de ação. Essa mudança de conformação é possível em virtude da presença de segmentos particulares transmembrana (hélices α), denominados sensores de voltagem. O canal de sódio é constituído por três subunidades peptídicas: uma subunidade de α glicoproteínas e duas subunidades β acessórias (Figura 7.1).10 A subunidade α é composta de domínios homólogos, e cada domínio contém seis segmentos transmembrana. A estrutura primária de um desses segmentos inclui um número elevado de aminoácidos de carga positiva; quando o potencial de membrana aumenta, os segmentos com carga positiva deslocam-se para o lado extracelular da membrana, modificando a conformação do canal. Embora o seu mecanismo de ação não esteja totalmente elucidado, os anestésicos locais

atuam ao bloquear esses canais, impedindo, assim, a formação de potenciais de ação.

■ Receptores de GABA Ativados pelo neurotransmissor ligante, o ácido γ-aminobutírico (GABA), os receptores de GABA neuroinibitórios (GABAA e GABAB) são encontrados principalmente no sistema nervoso central dos mamíferos. Os receptores GABAA (resposta rápida) são canais aniônicos, enquanto os receptores GABAB (resposta lenta) são receptores acoplados à proteína G. Desses tipos de receptores, apenas o receptor GABAA será considerado aqui. Receptores GABAA Os receptores GABAA são canais aniônicos controlados por ligantes, que possibilitam a passagem de ânions cloreto para dentro da célula. A hiperpolarização do neurônio após a ativação do receptor inibe a sua despolarização subsequente, reduzindo a atividade do sistema nervoso central. O ácido γ-aminobutírico é o principal agonista desse receptor. A maioria dos fármacos usados emanestesia que se ligam ao receptor de GABAA não ativa diretamente o receptor, porém induz uma alteração alostérica (i. e., uma modificação da estrutura quaternária) da conformação do receptor, de modo que esses fármacos são denominados moduladores alostéricos. Os barbitúricos, os benzodiazepínicos, o propofol, o etomidato, a alfaxalona, os anestésicos inalatórios e o etanol são exemplos de ligantes que aumentam a eficiência do receptor, possibilitando maior hiperpolarização do neurônio, e são, portanto, denominados moduladores alostéricos positivos.11 O agente de reversão dos benzodiazepínicos, o flumazenil, diminui a eficiência do receptor e, portanto, atua como modulador alostérico negativo.

Figura 7.1 Estrutura do canal de sódio. A. Representação esquemática de um canal de sódio composto de uma subunidade α e duas subunidades β acessórias. B. Representação esquemática da subunidade de glicoproteína α, mostrando os quatro domínios homólogos (DI-DIV) contendo seis segmentos transmembrana, numerados de 1 a 6. A estrutura primária do segmento 4 inclui aminoácidos de carga positiva colocados em cada quarta posição. Quando o potencial de membrana aumenta, os segmentos com carga positiva deslocam-se para o lado extracelular da membrana, modificando a conformação do canal e possibilitando a entrada de mais cátions sódio para dentro da célula.

O receptor GABAA é um heteropentâmero (cinco subunidades) constituído por subunidades α, β e γ, com possibilidade de muitas combinações dessas subunidades.11 Os ligantes agonistas e antagonistas e os moduladores alostéricos ligam-se a sítios específicos dessas subunidades, conforme ilustrado na Figura 7.2A. Além disso, cada subunidade apresenta quatro segmentos transmembrana (hélice α) que criam um canal de cloreto (Figura 7.2B).

■ Receptores AMPA e NMDA Os receptores de ácido α-amino-hidroximetilisoxazol propiônico (AMPA) e N-metil-Daspartato (NMDA) são canais catiônicos. O agonista endógeno é o glutamato12 e eles habitualmente coexistem na mesma membrana pós-sináptica. Acredita-se que a sua interação seja um elemento-chave da sensibilização central. Receptor AMPA O receptor AMPA é um receptor ionotrópico controlado por ligante. Esse canal catiônico possibilita a entrada de Na+ para dentro da célula e a saída de K+ da célula. O receptor AMPA é composto de quatro subunidades, e cada uma delas apresenta quatro segmentos que se estendem através da membrana, criando o canal catiônico.12 À semelhança do receptor GABAA, a associação a um ligante agonista induz uma mudança de conformação que possibilita a abertura do canal. A quantidade de glutamato liberada na sinapse irá determinar a quantidade de transferência e cátions e, consequentemente, o grau de despolarização do neurônio pós-sináptico induzido pela interação receptor AMPA-ligante. Receptor NMDA O receptor NMDA é um receptor ionotrópico controlado por ligante e também controlado por voltagem12 (Figura 7.3). Esse canal catiônico possibilita a entrada de Na+ e Ca2+ dentro da célula e a saída de K+ da célula. Diferentemente do receptor AMPA, uma molécula de Mg2+ mantém o canal fechado até a ocorrência de uma despolarização da membrana póssináptica forte o suficiente. Embora a ativação fraca do receptor AMPA não seja suficiente

para ativar o receptor NMDA, a ativação múltipla ou mais forte do receptor AMPA irá induzir uma despolarização suficiente da membrana pós-sináptica para liberar o Mg2+ do interior do canal do receptor NMDA. O glutamato e o aspartato constituem os principais agonistas endógenos do receptor NMDA, enquanto a glicina é um coagonista necessário para a abertura eficiente do canal. O NMDA é um agonista parcial, e a amantadina, a gabapentina, a cetamina e os derivados da fenciclidina, o etanol, o xenônio, o óxido nitroso e alguns opioides (metadona e tramadol) são antagonistas do receptor NMDA. O magnésio, o sódio, o cálcio, o potássio, o zinco e o cobre são moduladores do receptor NMDA.

■ Receptores associados às proteínas G | Segundos mensageiros Para transduzir sinais extracelulares, alguns receptores transmembrana utilizam intermediários, como proteínas de ligação ao nucleotídio de guanina (proteínas G). Diversos eventos bioquímicos intracelulares (ou segundos mensageiros) são iniciados pela interação receptor-ligante e, por fim, levam à observação do efeito clínico. O trifosfato de guanosina (GTP) fornece a energia necessária por meio desses receptores de proteína G complexos. Esses receptores são alguns dos receptores mais comuns e importantes. O receptor beta-adrenérgico será discutido como exemplo de receptor acoplado à proteína G. Receptores beta-adrenérgicos Existem três tipos de receptores beta-adrenérgicos: o β1 encontrado no sarcolema cardíaco, o β2 presente no músculo liso brônquico e vascular, e o β3 encontrado no tecido adiposo. Os receptores beta-adrenérgicos estão ligados ao sistema enzimático da adenilciclase (AC) por meio das proteínas G e são ativados pelos agonistas beta-adrenérgicos endógenos, a epinefrina e a norepinefrina. A proteína G estimuladora (Gs ou Gαs), ligada ao receptor beta-adrenérgico, é composta de subunidades α, β e γ e localiza-se no lado intracelular da membrana celular. Por definição, a subunidade α está associada ao difosfato de guanosina (GDP), e a proteína é considerada “desligada”. Entretanto, a interação do receptor betaadrenérgico com norepinefrina ou epinefrina modifica a sua conformação, possibilitando a substituição do GDP pelo trifosfato de guanosina (GTP) na subunidade α, com consequente ativação da proteína. A AC associada é estimulada, induzindo a produção de AMP cíclico (cAMP) que, por sua vez, ativa a proteinoquinase A (PKA) e numerosas enzimas distais (Figura 7.4). A AC também pode ser inibida pelas proteínas G inibitórias (Gi ou Gαi), que possuem um mecanismo de ativação semelhante ao da Gs. Com efeito, a Gi está ligada a um receptor β2 adrenérgico e constitui provavelmente um mecanismo de modulação.

Figura 7.2 Estrutura dos receptores GABAA. A. Representação esquemática do receptor GABAA composto de duas subunidades α, duas subunidades β e uma subunidade γ, mostrando o sítio de ligação do agonista GABA e dos moduladores alostéricos benzodiazepínicos, anestésicos inalatórios, etanol, propofol e alfaxalona. B. Representação esquemática de uma subunidade de glicoproteína, mostrando os quatro segmentos que atravessam a membrana, numerados de 1 a 4.

Figura 7.3 Estrutura dos receptores NMDA. A. Representação esquemática de um receptor NMDA composto de quatro subunidades (duas subunidades NR1 e duas subunidades NR2), mostrando o sítio de ligação do agonista glutamato, coagonista glicina e antagonista cetamina, bem como os moduladores zinco e cobre. Foram também descritas outras subunidades auxiliares. B. Representação esquemática de uma subunidade glicoproteína, mostrando os quatro segmentos que atravessam a membrana, numerados de 1 a 4. Deve-se

assinalar que o segmento número 2 não atravessa a membrana, porém dobra-se e retorna para o lado intracelular da membrana.

Avaliação clínica dos efeitos farmacológicos Para estudar a farmacodinâmica ou os efeitos de um fármaco sobre o corpo, podem-se avaliar a eficácia, a potência a relação concentração-resposta, a dose efetiva, a dose letal e o índice terapêutico. Embora um princípio farmacológico geral permaneça − quanto mais fármaco, mais efeitos (sendo os efeitos medidos em umindivíduo ou em uma população) −, a ocorrência de curvas de dose-resposta em formato de U (ou em formato de U invertido) constitui um fenômeno ampla e independentemente observado.13 A “hormese” define as relações de dose-resposta caracterizadas por efeitos estimuladores em baixas doses e efeitos inibidores em doses mais altas, resultando em uma curva de dose-resposta em formato de U invertido. Considerando-se a naloxona como um exemplo dessa resposta “hormética” (ver o parágrafo anterior sobre agonistas e antagonistas dos receptores), todos os receptores avaliados até o momento exibem relações de dose-resposta com mecanismos identificáveis regulados pelo gradiente de concentração dos agonistas.13

Figura 7.4 Ilustração da associação entre o receptor beta-adrenérgico (βAR), as proteínas G (GP) e a adenilato ciclase (AC). As glicoproteínas do βAR e a da AC apresentam, respectivamente, 7 e 12 segmentos que atravessam a membrana. A GP é composta das subunidades α, β e γ e está localizada no lado intracelular da membrana celular. A conformação do βAR e a da GP estão estreitamente ligadas. Quando um ligante agonista liga-se ao βAR e modifica a sua conformação, a subunidade α da GP também tem a sua conformação modificada, possibilitando a ligação de GTP (trifosfato de guanosina) em lugar do GDP (difosfato de guanosina). A subunidade α da GP é ativada e irá estimular a AC,

induzindo a produção de cAMP (AMP cíclico) a partir do ATP (trifosfato de adenosina).

■ Eficácia, potência e relação concentração-resposta Anteriormente, foi descrito o modo pelo qual a associação de um ligante a um receptor obedece à lei da ação das massas [Equação (7.1)]. A concentração total de receptores, [RT], é igual à soma de [LR] mais [R]; se [R] for substituída por [RT] − [LR] na Equação (7.1), a relação torna-se:

que pode ser reorganizada da seguinte maneira:

Além disso, sabendo que a eficácia máxima (Emáx.) representa o efeito farmacológico máximo de um fármaco ou ligante, e que o efeito (E) farmacológico do fármaco é diretamente proporcional à porcentagem de receptores ativados,14 a Equação 7.4 torna-se:

Essa equação indica uma relação sigmoide entre o logaritmo da concentração do ligante e o efeito (relação concentração-resposta) e que, na ausência de ligante, o efeito aproxima-se de zero. Entretanto, a teoria do estado do receptor implica a existência de um efeito agonista basal (E0) do receptor, e esse efeito basal é levado em consideração na equação de Hill:

A relação concentração-resposta é habitualmente ilustrada mostrando o efeito como função da concentração do ligante (ou outra medida de exposição). O termo potência caracteriza a concentração do fármaco necessária para obter um efeito farmacológico igual a 50% do Emáx., isto é, a EC50. Quanto menor a EC50, menos fármaco é necessário para alcançar o efeito desejado, e maior a potência do fármaco (Figura 7.5).

■ Dose efetiva, dose letal, dose tóxica e índice terapêutico

A dose efetiva (ED50) corresponde à dose do fármaco necessária para induzir o efeito desejado em 50% dos animais aos quais é administrada. De modo semelhante, a dose letal (LD50) corresponde à dose do fármaco necessária para provocar morte em 50% dos animais aos quais o fármaco é administrado. Na maioria dos ensaios clínicos humanos, a dose letal não é estabelecida e substituída pela dose tóxica (TD50). A TD50 corresponde à dose do fármaco necessária para produzir efeitos tóxicos em 50% dos pacientes aos quais o fármaco é administrado. O índice terapêutico é a razão LD50:ED50 ou TD50:ED50. Quanto mais alto o índice terapêutico, mais seguro se considera o fármaco. Entretanto, o índice terapêutico não leva em consideração a inclinação da curva concentração-resposta. Dois fármacos, A e B, com o mesmo índice terapêutico e administrados na ED90 (dose efetiva em 90% da população) podem induzir uma prevalência significativamente diferente dos efeitos colaterais, de modo que o índice terapêutico não é útil como medida da segurança clínica de um fármaco (Figura 7.6). É fundamental reconhecer que a variabilidade entre a sensibilidade dos indivíduos aos efeitos dos fármacos resulta em uma variedade de doses que podem ser efetivas ou tóxicas para alguns indivíduos, mas não para outros. É menos evidente, porém igualmente importante reconhecer que existe uma variabilidade entre ocasiões na resposta de um indivíduo a uma dose fixa. A soma da variabilidade entre os indivíduos e entre ocasiões leva a incertezas na correlação dose-resposta, exigindo uma atenção para resposta individual em cada ocasião em que se administra um fármaco.

Figura 7.5 Ilustração das relações concentração-resposta dos dois opioides, a morfina e buprenorfina, cujo efeito considerado medido é a analgesia. A. O efeito analgésico máximo da buprenorfina (Emáx. B) é menor que o da morfina (Emáx. M). Com efeito, a morfina é um agonista µ opioide completo, enquanto a buprenorfina é um agonista opioide µ parcial. B. A concentração do fármaco necessária para obter um efeito farmacológico igual a 50% do

efeito máximo é menor para a buprenorfina (EC50 B) do que para a morfina (EC50 M). Em consequência, a buprenorfina é considerada mais potente do que a morfina.

Figura 7.6 Ilustração da limitação do índice terapêutico para estabelecer o perfil de segurança de um fármaco. Os fármacos A e B apresentam o mesmo índice terapêutico (ED50/TD50, a razão entre a dose efetiva em 50% da população e a dose tóxica em 50% da população), porém diferentes inclinações da curva de dose-resposta. A. A EC90 (dose efetiva em 90% da população) do fármaco A difere significativamente da TD50, o que significa que a maior parte da população irá se beneficiar do fármaco A, sem apresentar efeitos colaterais. B. A EC90 do fármaco B assemelha-se à TD50, o que indica que grande parte da população que se beneficia do fármaco B irá apresentar efeitos tóxicos.

Farmacocinética e farmacodinâmica

Quando se administram fármacos a animais, são observadas duas interações. Em primeiro lugar, o corpo do animal exerce suas ações sobre o fármaco: absorção, distribuição, metabolismo e eliminação (ADME). Esses processos são descritos na disciplina denominada farmacocinética. Ao mesmo tempo, o fármaco exerce suas ações sobre o corpo, e esse processo é descrito pela disciplina denominada farmacodinâmica.

■ Fundamentos de farmacodinâmica Conforme discutido anteriormente, a interação do fármaco livre com o seu receptor estimula a resposta do organismo ao efeito. A associação entre a concentração receptorfármaco e a resposta pode diferir entre fármacos, entre sistemas de receptores e ocasiões. Conforme já assinalado, a resposta ao efeito é considerada diretamente proporcional à razão entre a concentração de receptor-fármaco e a concentração total de receptores.14 A descrição experimental da resposta ao efeito nos ajuda a ilustrar e entender a natureza e a extensão das respostas aos fármacos. Um dos propósitos do modelo de resposta aos efeitos dos fármacos é possibilitar a previsão do resultado do uso clínico do fármaco. Em consequência, um bom modelo farmacodinâmico é aquele que descreve rigorosamente os dados e permite a elaboração e avaliação de hipóteses sobre a resposta ao efeito do fármaco em doses não diretamente testadas. Existem várias abordagens de rotina para descrever matematicamente dados sobre a resposta aos efeitos farmacodinâmicos. Quando a resposta ao efeito que está sendo medida é induzida por um complexo fármaco-receptor entre 20 e 80% da capacidade máxima de ligação em uma única classe de receptores, a resposta ao efeito é, com frequência, aproximadamente log-linear em relação à concentração do fármaco. Por conseguinte, na ausência de um efeito máximo alcançado, em que E é a medida da resposta ao efeito, C é a concentração do fármaco e E0 é uma constante que representa a atividade basal, a medição da resposta ao efeito pode ser calculada por uma linha reta.

Em sistemas de receptores simples, porém, em que uma resposta máxima é medida, de modo que a medição da resposta ao efeito aproxima-se de uma assíntota, a forma da curva de resposta pode ser descrita da mesma forma que a ligação ao receptor [Equação 7.5]. Se Emáx. for a resposta máxima passível de ser alcançada, e EC50 é a concentração em que se obtém uma resposta igual a 50% da Emáx., a resposta ao efeito pode ser algumas vezes descrita da seguinte maneira:

Algumas vezes, a relação entre a concentração do fármaco e a resposta ao efeito reflete alterações na sensibilidade da via de sinalização à presença do fármaco. Isso pode constituir uma função dos processos biológicos, como taquifilaxia dos receptores, ou pode não estar relacionado a processos conhecidos. Esses casos não são bem calculados pelo modelo Emáx. mostrado anteriormente; todavia, com frequência, podem ser mais bem descritos pela seguinte equação relacionada, em que h (o coeficiente de Hill) modifica a inclinação da curva de resposta ao efeito:

quando h = 1, essa equação é reduzida ao modelo Emáx. padrão da Equação 7.8. Por exemplo, as curvas de dose-resposta ilustradas na Figura 7.6A versus Figura 7.6B são exemplos de curvas com as mesmas Emáx. e EC50, porém com inclinações diferentes, de modo que devem ter valores diferentes para h. São necessários modelos mais complexos para fármacos que alcançam a resposta ao efeito medida por meio de múltiplas vias de sinalização, bem como para respostas ao efeito que não são objetivamente medidas em distribuições contínuas. Durante a década de 1950, Robins e Rall formularam a “hipótese do hormônio livre”, que hoje é geralmente aceita tanto para hormônios quanto para fármacos.15 Robins e Rall apresentaram um argumento convincente segundo o qual, quando um hormônio (ou fármaco) está presente em formas ligadas às proteínas e não ligada (ou livre) em equilíbrio, a atividade do fármaco ou do hormônio em seu local de ação é proporcional à concentração plasmática do fármaco livre ou do hormônio livre, independentemente da concentração total do fármaco ou do hormônio. Com base na pressuposição de que os fármacos livres podem sofrer rápida difusão para seus locais de ação, ou de que existem processos alternativos facilitados ou ativos que ajudam os fármacos a alcançar o seu local de ação, a hipótese do hormônio livre possibilita a ligação da concentração plasmática com a resposta ao efeito do fármaco. Em consequência, a farmacocinética plasmática de um fármaco está habitualmente associada ao grau, extensão e duração do efeito do fármaco.

■ Fundamentos de farmacocinética A maioria dos processos farmacocinéticos no corpo dos mamíferos ocorre na forma de processos saturáveis (cinética de Michaelis-Menten): a velocidade em que ocorre um processo tem um limite superior que pode ser alcançado, pelo menos teoricamente.

Entretanto, podemos simplificar a matemática da farmacocinética pressupondo que os processos ocorrem em velocidades constantes (de ordem zero) ou em velocidades constantes proporcionalmente à concentração do fármaco administrado (de primeira ordem). Em geral, essa simplificação é aceitável, visto que habitualmente a faixa de concentração dos fármacos usados é estreita. Os processos de ordem zero são aqueles em que a mudança da concentração do fármaco em um líquido corporal, como o plasma ou a urina, ocorre em uma velocidade constante, independente da concentração do fármaco presente no líquido corporal. Como esse processo é constante, pode-se utilizar a equação para uma linha reta. Em consequência, a equação para uma eliminação de ordem zero tem a seguinte forma:

Em que: C(t) é a concentração do fármaco na amostra em qualquer momento t, e a taxa de eliminação de ordem zero (k0) é a inclinação da curva quando a concentração é representada graficamente em função do tempo, sendo denominada “equação de ordem zero”. Esta é a equação para uma linha reta, isto é, y = b + mx, em que y é a concentração da amostra, C(0) é a intercepção y quando x = 0, e x é o tempo. Algumas vezes, as formas de administração ou formulações dos fármacos são planejadas propositadamente para alcançar uma administração de ordem zero (administração de velocidade constante) para manter um efeito constante do fármaco por um período prolongado. A administração da velocidade constante é discutida mais adiante, neste capítulo. Diferentemente dos processos de ordem zero, no processo de primeira ordem, a velocidade de mudança na concentração de um fármaco em um líquido corporal é proporcional à concentração do fármaco nesse líquido, nesse momento. Trata-se de uma função exponencial que está de acordo com uma linha reta em um gráfico semilogarítmico:

em que ln C(t) é o logaritmo natural da concentração do fármaco na amostra, em qualquer momento t, e a constante de eliminação de primeira ordem (kel) é a inclinação. Isso é expresso da seguinte maneira:

que é denominada “equação de primeira ordem”. Muitos fármacos usados em anestesia e analgesia obedecem à farmacocinética de primeira ordem em relação à sua eliminação do corpo, e existem vários fármacos que são absorvidos e eliminados por processos de ordem zero (Figura 7.7).

■ Meia-vida de eliminação A meia-vida de eliminação de um fármaco é um intervalo de tempo necessário para que a concentração plasmática seja reduzida a 50% (metade) de seu valor inicial.16 Os fármacos eliminados pela cinética de ordem zero apresentam meias-vidas que são uma função da concentração plasmática do fármaco no início do intervalo de tempo. Por conseguinte, esse parâmetro não é constante para esses fármacos. Por outro lado, os fármacos eliminados pela cinética de primeira ordem apresentam meias-vidas de eliminação que permanecem fixas em uma taxa constante por unidade de tempo. A meia-vida é inversamente proporcional à velocidade de eliminação (kel):

Figura 7.7 Para a maioria dos fármacos, os processos de eliminação obedecem a uma cinética saturável; entretanto, nas concentrações usadas clinicamente, a maioria dos fármacos aproxima-se da cinética “de primeira ordem” linear, visto que os processos de eliminação não se aproximam da saturação.

Superficialmente, parece fácil compreender o conceito de meia-vida de eliminação. Entretanto, trata-se de um parâmetro híbrido, que é influenciado por muitos fatores. Tanto o metabolismo quanto a eliminação afetam comumente a meia-vida de eliminação de um fármaco. Alguns fatores que afetam a taxa de metabolismo de um fármaco incluem a espécie, a idade, o sexo, o peso corporal, a presença de doenças (particularmente doenças renais e hepáticas) e as interações medicamentosas. O tempo durante o qual se deve esperar, após a administração de um fármaco ou a mudança na frequência das doses, para alcançar uma nova concentração plasmática em estado de equilíbrio dinâmico ou para alcançar a eliminação completa de um fármaco é uma função exclusivamente da meia-vida do fármaco. Se a fração do fármaco que é eliminada for FE, pode-se deduzir, a partir da equação de primeira ordem:

Em medicina veterinária, são necessárias aproximadamente 4 a 5 meias-vidas para que a mudança em uma dose alcance uma nova concentração plasmática no estado de equilíbrio dinâmico (em cerca de 97% do total). De modo semelhante, são necessárias cerca de 4 a 5 meias-vidas após a cessação da administração para que todo o fármaco seja efetivamente eliminado.

■ Volume aparente de distribuição A massa de fármaco presente no corpo, a qualquer momento, é proporcional à concentração medida no espaço da amostra (frequentemente o plasma) em qualquer momento, e pode ser expressa pela seguinte equação:

em que XB é a massa do fármaco no corpo, e Vd é a constante de proporcionalidade. Essa constante de proporcionalidade Vd é conhecida como volume aparente de distribuição.17 A razão pela qual se utiliza o termo “aparente” para descrever o parâmetro é que, embora seja expresso em unidades de volume, ele não representa, na realidade, qualquer espaço fisiológico ou anatômico particular e não pode ser atribuído a qualquer desses espaços a partir de qualquer análise fisiológica ou farmacocinética simples. É evidente que cada espaço terá seu próprio parâmetro de volume, de modo que, em modelos complexos, cada “compartimento” terá um volume individual; por exemplo, o volume da circulação é frequentemente designado como volume do “compartimento central” (Vc). A soma de todos os volumes, isto é, centrais e periféricos, é frequentemente designada como “volume de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico” (Vdss). A compreensão e a obtenção de uma estimativa dos parâmetros de volume facilitam os cálculos das doses. Por exemplo:

Assim como existem vários parâmetros diferentes de volume, dispõe-se também de diferentes métodos para calculá-los.É importante entender que as estimativas de determinado parâmetro de volume podem ser obtidas de modo diferente e, portanto, podem apresentar valores absolutos diferentes. Parâmetros dos volumes particulares são mais bem apropriados para usos específicos; por exemplo, o volume aparente do compartimento central (Vc) é habitualmente usado para calcular doses de ataque de fármacos de ação rápida ou tóxicos, como doses de indução do anestésico, enquanto o volume aparente de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico (Vdss) é frequentemente utilizado para calcular infusões de velocidade constante ou esquemas de doses repetidas do analgésicos (ver discussão adiante, na seção Terapia com velocidade constante). Em uma espécie, o volume aparente de distribuição varia de um indivíduo para outro. Os fatores individuais que afetam o volume de distribuição incluem: o estado de hidratação, a idade e o sexo do animal, o peso corporal e a composição corporal (proporções de gordura, músculo e água), o conteúdo de proteína do soro, em particular para os fármacos ligados às proteínas, a presença de expansores do plasma, como lipídios após uma refeição, e as interações medicamentosas (particularmente devido à competição pelos sítios de ligação).

■ Depuração corporal total A depuração (Cl) corporal total é definida como o volume de sangue a partir do qual um fármaco é totalmente removido por unidade de tempo. A depuração corporal total é, com

frequência, designada simplesmente como “depuração”, e a unidade usada para a depuração consiste em volume por unidade de tempo (p. ex., mℓ/min ou ℓ/h), frequentemente normalizada pelo peso corporal (p. ex., mℓ/min/kg). A depuração é uma medida da eficiência de eliminação de um fármaco e, com frequência, é diretamente comparada com o débito cardíaco da espécie examinada. A depuração corporal total descreve a relação entre a taxa de excreção de um fármaco e a sua concentração plasmática. Se XE for a massa do fármaco eliminada do corpo e for igual a −XB se nenhuma dose adicional for administrada, a depuração corporal total pode ser descrita algebricamente da seguinte maneira:

Entretanto, já verificamos que XB = CVd [(Equação 7.20)]. Por conseguinte, nesse exemplo simplificado:

Por conseguinte, a depuração pode ser compreendida como função tanto do volume de distribuição quanto da concentração de fármaco presente no espaço da amostra. Embora se tenha demonstrado que isso é verdadeiro para a depuração corporal total, é útil antever que ela pode ser extrapolada para a depuração de compartimentos individuais em sistemas multicompartimentais complicados. A depuração corporal total é a soma da depuração alcançada por todos os mecanismos. Embora alguns agentes anestésicos sejam depurados pelos pulmões, os dois componentes mais importantes são habitualmente atribuídos às depurações hepática e renal. A depuração corporal total pode ser definida da seguinte maneira:

em que ClH e ClR são as depurações obtidas por mecanismos hepático e renal, respectivamente. A depuração corporal total (ClT) é um parâmetro farmacocinético muito importante, que precisa ser compreendido de forma abrangente.18

■ Depuração hepática Considere o fluxograma da Figura 7.8, em que QH é a velocidade de fluxo sanguíneo através do fígado, CA é a concentração do fármaco no sangue arterial, CV a concentração do

fármaco no sangue venoso e QH(CA – CV) é a velocidade de eliminação pelo fígado. Portanto, como

Agora, como a fração de fármaco removida do sangue em cada passagem do sangue pelo fígado é a razão de extração (ER), pode-se verificar que:

e, portanto, por substituição:

Como os sistemas corporais e processos são, em sua maioria, saturáveis, o fígado de cada animal tem uma capacidade máxima de remover um fármaco do sangue quando não há nenhuma constrição do fluxo sanguíneo. Essa capacidade de eliminação dos fármacos pela combinação de biotransformação e excreção na bile é uma função da massa hepática e da quantidade e atividade das enzimas envolvidas no metabolismo dos fármacos, que estão presentes nos hepatócitos do indivíduo. Essa capacidade máxima de remoção dos fármacos do sangue é a capacidade intrínseca do fígado de remoção dos fármacos; a capacidade inata do fígado em depurar um fármaco é conhecida como depuração intrínseca (ClI). A compreensão do conceito de depuração intrínseca permite redefinir a razão de extração em termos de depuração intrínseca:

Por conseguinte, por meio de substituição:

Um corolário da hipótese do hormônio livre é o de que a disponibilidade de um hormônio ou fármaco para ligação a receptores ou a enzimas de biotransformação é proporcional à concentração livre. Se fu for a fração do fármaco não ligada às proteínas plasmáticas (i. e., fração livre), e for a depuração intrínseca para o fármaco livre apenas, pode-se verificar que:

Figura 7.8 A depuração hepática dos fármacos é estimada a partir do fluxo sanguíneo hepático (QH) e a diferença de concentração do fármaco entre o influxo (CA) e o efluxo (CV) sanguíneo hepático.

Para cada fármaco em cada indivíduo, existe uma relação entre a depuração hepática intrínseca e o fluxo sanguíneo hepático do animal. Essa relação entre fármacos provavelmente é um continuum de um extremo, em que a depuração intrínseca é muito menor do que o fluxo sanguíneo hepático, ao outro extremo, em que a depuração intrínseca hepática é muito maior do que o fluxo sanguíneo hepático. Se a depuração intrínseca for muito menor do que o fluxo sanguíneo hepático, então a depuração intrínseca não é um fator contribuinte significativo para o denominador da seguinte equação:

e, portanto, nesse caso especial, em que a depuração intrínseca é muito menor do que o fluxo sanguíneo hepático, pela sua anulação, pode-se verificar que:

Como a depuração hepática intrínseca é o produto da fração não ligada pela depuração intrínseca do fármaco livre apenas, é evidente que, nesse caso especial, a depuração hepática é proporcional à fração do fármaco não ligado.19 É com fármacos para os quais esse conjunto particular de condições é válido que alterações na ligação do fármaco às

proteínas plasmáticas podem afetar significativamente a velocidade de sua excreção. De maneira semelhante, para esses fármacos, a indução das enzimas hepáticas para biotransformação pode ter grande efeito em sua velocidade de eliminação, conforme discutido de modo mais detalhado adiante. Consideremos agora o caso alternativo, em que a depuração hepática intrínseca é muito maior do que o fluxo sanguíneo hepático. Neste caso, a contribuição do fluxo sanguíneo hepático para o denominador da Equação 7.34 é insignificante. Em consequência, nesse caso especial alternativo:

Para fármacos que se conformam a esse conjunto de condições especiais, é evidente que a ocorrência de alterações no fluxo sanguíneo hepático irá influenciar profundamente a taxa de depuração hepática. A eliminação desses fármacos irá depender de vários fatores, como débito cardíaco e estrutura e função normais dos vasos sanguíneos hepáticos. Os anestesiologistas compreendem que muitos dos fármacos usados afetam acentuadamente o débito cardíaco e o fluxo sanguíneo regional, e que os procedimentos cirúrgicos e a presença de patologia também podem levar a alterações acentuadas do fluxo sanguíneo hepático. Por conseguinte, a velocidade de eliminação de muitos agentes anestésicos comuns pode ser acentuadamente diferente do esperado, visto que a fisiopatologia do animal ou o procedimento realizado provocam um desvio do fluxo sanguíneo hepático normal. No Exemplo 1 do Boxe 7.1, pode-se observar que a duplicação da depuração hepática intrínseca para um fármaco com alta depuração intrínseca resultou em aumento da taxa de depuração hepática por um fator de apenas 1,09, ao passo que, no Exemplo 2 do Boxe 7.2, a duplicação da depuração hepática intrínseca para um fármaco de baixa depuração hepática intrínseca resultou em duplicação de sua depuração hepática. Como a depuração intrínseca (ClI) é o produto da fração não ligada (fu) pela depuração intrínseca da fração não ligada ( ), um aumento da pode ser produzido ao aumentar o deslocamento do fármaco dos sítios de ligação, com consequente aumento da fu, ou ao induzir a atividade ou expressão das enzimas do metabolismo por meio de indução enzimática. No primeiro caso, a alteração na ligação às proteínas plasmáticas resultaria em mudança do volume de distribuição do fármaco, ao passo que, no segundo caso, uma alteração na expressão das enzimas envolvidas no metabolismo resultaria em mudança na constante de velocidade de excreção do fármaco. Boxe 7.1 Exemplo 1: fármacos com alta depuração hepática.

Este exemplo ilustra qual seria o efeito de duplicar a depuração hepática intrínseca de um fármaco cuja depuração hepática é muito maior do que o fluxo sanguíneo hepático. ClI >> QH, por exemplo, propranolol ClI = 7,0 ℓ/min QH = 1,5 ℓ/min ER = 7/(7 + 1,5) = 0,82 ClH = QH × ER = 1,5 × 0,82 = 1,23 ℓ/min Após indução enzimática: ClI = 14,0 ℓ/min QH = 1,5 ℓ/min ER = 14/(14 + 1,5) = 0,9 ClH = QH × ER = 1,5 × 0,9 = 1,35 ℓ/min Boxe 7.2 Exemplo 2: fármacos com baixa depuração hepática.

Este exemplo ilustra qual seria o efeito de duplicar a depuração hepática intrínseca de um fármaco cuja depuração hepática é muito menor do que o fluxo sanguíneo hepático. ClI 80 dias

Cães: 24,0 ± 26,2 h (IV), 23,7 ± 30,0% Derivado do ácido enólico (oxicam)

h (oral) Gatos: 26 a 37 h (dependendo O meloxicam é

do estudo)

considerado

Cavalos: 8,54

Meloxicam

preferencial para a

+/– 3,02 h,

COX-2, visto que,

5,15 h (média

em altas doses, a

da faixa de

sua especificidade

doses) e 10,2

pela COX-2

+/– 3,0 h em

diminui

cavalos alimentados Bovinos: 20 a 30 h, dependendo do estudo (vacas: 14,6 h)

Pirazolona (pirazolidinediona)

Cavalos: 5,4 +/– 0,5 h Bezerros: 53,4 +/– 5,1 h Fenilbutazona

Não seletiva para

Touros: 62 h

COX-2

Vacas: 36 a 55 h (dependendo do estudo) Cães: 4 a 6 h

Ácido antranílico (ácido piridinocarboxílico)

Cavalos: 1,7 a 3,4 h (dependendo Flunixina

Não seletivo para COX-2

do estudo) Vacas: 3 a 8 h (dependendo do estudo) Cães: 3,7 h Gatos: 6,6 h

*Dados para cães, salvo outra indicação: VD, volume aparente de distribuição (para a maior parte dos fármacos, no estado de equilíbrio dinâmico); F%, fração da dose oral absorvida. T½, meia-vida; VD, volume de distribuição aparente; CL, depuração (clearance) sistêmica; F%, biodisponibilidade percentual após administração oral. As partes da estrutura em cores representam os grupos reativos. Farmacocinética das referências 26, 27, 29, 30, 41-43, 45, 48-50, 57, 67, 105, 115 e 145-155. (As estruturas químicas em cores encontram-se reproduzidas no Encarte.) Boxe 12.1 AINEs usados em várias espécies veterinárias.

AINEs usados em cães Ácido acetilsalicílicoa Fenilbutazonab Carprofenof Etodolacoe Meloxicamc,f Cetoprofenod

Deracoxibe Firocoxibe Ácido meclofenâmicoe Robenacoxibeg Tepoxalinag Ácido tolfenâmicod,f Mavacoxibeg Cimicoxibeg Piroxicam AINEs usados em gatos Ácido acetilsalicílico Meloxicamc,g Carprofenog Robenacoxibeg Cetoprofenod,g Ácido tolfenâmicod AINEs usados em cavalos Ácido acetilsalicílicoa Fenilbutazona Cetoprofeno Meloxicamg Firocoxibe Flunixino meglumina Ácido meclofenâmicoe

a

O ácido acetilsalicílico não é registrado pela FDA para cães, gatos ou cavalos, porém algumas formas são

comercializadas para cães como se fossem aprovadas pela FDA. Existe uma combinação aprovada com metilprednisolona (Cortaba® comprimidos, 0,5 mg de metilprednisolona e 300 mg de ácido acetilsalicílico). b

Registrada para cães, mas não ativamente comercializada.

c

Registrado para gatos em dose única nos EUA.

d

Registrado no Canadá.

e

Registrado, porém não comercializado

f

Também disponível em forma injetável e oral; todos os outros estão disponíveis em formas orais.

g

Registrado em outros países, mas não nos EUA. (O robenacoxibe está aprovado nos EUA para gatos.)

Figura 12.1 Os fosfolipídios da membrana constituem a fonte do ácido araquidônico, o principal eicosanoide nos animais. O ácido araquidônico é ainda metabolizado pelas enzimas ciclo-oxigenase (COX) a várias prostaglandinas (PG), prostaciclina e tromboxano, desempenhando funções clínicas, imunológicas e fisiológicas. As enzimas COX constituem

os alvos dos anti-inflamatórios não esteroides (AINEs).

Figura 12.2 Metabolismo dos produtos do ácido araquidônico. A membrana celular produz ácido araquidônico por meio de desesterificação pela enzima fosfolipase A2. O ácido araquidônico é ainda metabolizado pelas enzimas ciclo-oxigenases (COX-1 e COX-2) às várias prostaglandinas (PG), prostaciclina e tromboxano, desempenhando funções clínicas, imunológicas e fisiológicas. Uma via alternativa é a da enzima lipoxigenase (LOX), que produz os leucotrienos (LOX) inflamatórios. As enzimas COX constituem os alvos dos antiinflamatórios não esteroides (AINEs), porém habitualmente não afetam as enzimas LOX.

Existem fármacos que inibem a lipoxigenase e a formação de leucotrienos, embora sejam usados principalmente na terapia da doença broncoconstritiva, e as pesquisas sobre o seu como analgésicos foram decepcionantes. Convém assinalar que, quando são administrados AINEs inibidores da COX a animais, há evidências de que possa ocorrer algum desvio do substrato para a via da LOX, e este é o motivo pelo qual se inclui habitualmente uma advertência a pacientes com asma para AINEs aprovados para uso em pacientes humanos.13,14 A ação dos AINEs consiste em inibir as enzimas COX e alterar a formação dos prostanoides.15 Os avanços significativos que ampliaram a compreensão do mecanismo de ação dos AINEs ocorreram no início da década de 1990, quando surgiram novos detalhes acerca dos alvos desses fármacos.16,17 Foi identificada a existência de duas isoenzimas (isoformas) da ciclo-oxigenase (também conhecida como prostaglandina sintase), que são responsáveis pela síntese de prostaglandinas. A prostaglandina sintase-1 (COX-1) é

habitualmente descrita de modo simplista como uma enzima constitutiva expressa nos tecidos.16,17 As prostaglandinas, a prostaciclina e o tromboxano sintetizados por essa enzima são responsáveis pelas funções fisiológicas normais. Por outro lado, a prostaglandina sintase-2 (COX-2) é induzível (suprarregulada) e sintetizada por macrófagos e células inflamatórias após estimulação por citocinas e por outros mediadores da inflamação. Em 2002, foi descrita uma terceira isozima da COX.18,19 A enzima COX-3 é uma variante de junção do gene da COX-1, que até o momento só foi identificada no cérebro canino e humano e no coração.19 Foi formulada a hipótese de que o mecanismo de ação do paracetamol consiste em inibição da COX-3, embora essa hipótese anteceda a descoberta da variante splicing COX-3.18,19 Essa explicação da função da ciclo-oxigenase é evidentemente simplista. Ambas as enzimas podem participar na função de regulação e homeostasia, e ambas podem produzir dor e inflamação. A enzima predominante constitui um reflexo do tecido ou do tipo de célula onde ela é produzida. Por exemplo, a COX-1 é a enzima predominante nas plaquetas, enquanto a COX-2 é a enzima dominante nas células inflamatórias. No osso, ocorre expressão da COX-1 em condições normais, porém a COX-2 é expressa durante o estresse mecânico. Alguns produtos da COX-2 são importantes para a função homeostática, enquanto os produtos da COX-1 estão envolvidos na dor e na inflamação. A síntese de prostaglandinas é inerentemente maior na mucosa gástrica do cão do que na mucosa duodenal,20,21 porém a produção de prostaglandinas pela COX-2 pode ser suprarregulada nesses tecidos, respondendo a estímulos inflamatórios para desempenhar uma função de proteção e cura.22 Os produtos da COX-2 também são importantes na função renal normal. A COX-2 pode ser suprarregulada em condições estressantes para o rim, como hipovolemia ou hipotensão grave.23 Por conseguinte, a percepção da COX-2 como uma enzima “ruim”, e a da COX-1 como uma enzima “boa” é demasiado simplista, visto que entendemos agora que existe alguma sobreposição nas funções dessas isoformas nos órgãos.24 Os fármacos que inibem essas enzimas (p. ex., os AINE) podem ser efetivos e/ou prejudiciais, independentemente de serem ou não seletivos ou não seletivos em suas ações sobre essas enzimas. Todavia, alguns dos AINEs mais recentemente desenvolvidos foram direcionados para a inibição da COX-2, de modo que a COX-1 é poupada o máximo possível, com o objetivo de produzir analgesia e suprimir a inflamação, sem inibir os prostanoides fisiologicamente importantes em vários órgãos e tecidos.

■ Outros mecanismos possíveis de ação Embora se acredite que a inibição das prostaglandinas tanto nos tecidos periféricos quanto no sistema nervoso (medula espinal e cérebro) constitua o mecanismo de ação mais

importante da maioria dos AINEs, podem existir outros mecanismos para explicar alguns de seus efeitos. Essas propriedades não foram tão universalmente aceitas como mecanismo quanto a inibição das prostaglandinas, porém merecem alguma análise. Alguns AINEs, incluindo os salicilatos, inibem o fator nuclear kappa-B (NF-κB) que promove a síntese de outros mediadores inflamatórios. Não há acordo universal sobre o mecanismo de ação do carprofeno, que é um dos AINEs mais usado em cães. Algumas evidências indicam que ele inibe as prostaglandinas in vitro,25 porém o carprofeno não mostrou efeito antiprostaglandina in vivo em cães.26,27 Em outro estudo, os pesquisadores não foram capazes de mostrar que o carprofeno inibiu a COX-1 ou a COX-2,28 sugerindo um mecanismo central de ação ou uma atividade em outras vias. Dados mais recentes apresentados pelos autores (dados não publicados) mostram que o carprofeno inibe significativamente a PGE2 (um biomarcador da COX-2) diretamente nos locais de inflamação em cães, fornecendo uma evidencia de que esse fármaco de fato atue sobre a COX-2. Nos cavalos, surgiram questões semelhantes. Lees et al.29 concluíram que os efeitos anti-inflamatórios do carprofeno em cavalos não eram produzidos pela inibição da ciclooxigenase. Em outro estudo realizado no mesmo laboratório,30 concluíram que as doses recomendadas de carprofeno provocam inibição mínima da COX e tendem a produzir seus efeitos terapêuticos, pelo menos em parte, por meio de outras vias, incluindo possivelmente uma inibição fraca a moderada da 5-lipoxigenase e liberação da enzima. Little et al.31 também concluíram que podem existir mecanismos independentes da COX para alguns AINE no intestino equino.

■ Inibição da COX-1 versus COX-2 A seletividade da COX-2 versus COX-1 é frequentemente expressa como a razão inibitória COX-1:COX-2. Essa razão deriva de estudos nos quais o efeito inibitório, habitualmente expresso como a concentração inibitória capaz de inibir 50% da atividade (IC50), é medido com base na estimulação de células que são capazes de expressar produtos dessas enzimas. No ensaio de sangue total, a fonte de produtos da COX-1 (tromboxano ou TXA2) é constituída pelas plaquetas, enquanto os leucócitos representam a fonte de produtos da COX-2 (PGE2). A razão é expressa como COX-1 [IC50]:COX-2 [IC50] ou, simplesmente COX-1:COX-2. Quanto maior for o valor acima de 1,0, maior a ação inibitória do fármaco sobre a COX-2, em comparação com a COX-1. Há um valor subjetivo aplicado à magnitude da razão quando se considera o fármaco como “poupador de COX-1”, “específico de COX-2”, “preferencial de COX-2” ou “seletivo para COX-2”. Esses termos têm sido empregados por muitos autores,32 porém não houve aceitação da magnitude das relações que definem esses critérios.

Os fármacos com maior razão inibitória são os inibidores seletivos da COX-2 (com base em ensaios in vitro para a enzima COX-2), frequentemente denominados “coxibes” ou AINEs da classe coxibe. Esses fármacos incluem os produtos veterinários firocoxibe, deracoxibe, robenacoxibe e mavacoxibe e o produto humano celecoxibe (outros coxibes, como o rofecoxibe, foram retirados do mercado para uso humano, em virtude dos efeitos adversos sobre o sistema cardiovascular em pacientes humanos). O carprofeno e o meloxicam podem ser considerados ligeiramente preferenciais para a COX-2. O cetoprofeno não é seletivo, enquanto o etodolaco foi classificado como algo preferencial a não seletivo, dependendo do estudo. Embora a razão IC50 seja a convenção normal utilizada para determinação da seletividade pela COX,4,5 alguns pesquisadores sugeriram que o uso de uma razão de concentração inibitória mais alta (p. ex., IC80) poderia ser melhor para prever a eficácia clínica, visto que esse elevado grau de inibição pode ser necessário para a analgesia ou os efeitos anti-inflamatórios.33 As comparações da inibição da COX-1 versus COX-2 pelos AINEs de uso veterinário variam entre os diferentes fármacos, as espécies de animais e a técnica do estudo empregada. Essas variações na literatura foram previamente listadas.11,34 Por exemplo, o deracoxibe é considerado um inibidor altamente seletivo da COX-2, com base em um ensaio realizado em enzimas purificadas.35 Nesse estudo, a razão COX-1:COX-2 foi de 1.275, ou seja, muito mais alta que a de outros fármacos testados. Entretanto, quando testado no sangue total de cães e comparado com outros AINE, o deracoxibe teve uma razão de apenas 12. No mesmo estudo, o carprofeno exibiu uma razão de 6 a 7, enquanto o firocoxibe teve uma razão de 384 a 427.36 A razão para o etodolaco foi relatada em 8,1 em seres humanos, porém em 0,52 a 0,53 em cães. Outro estudo com o etodolaco mostrou que a seletividade para COX-2 foi dez vezes maior em seres humanos que em cães.35,37 Em um estudo que utilizou sistemas enzimáticos caninos, o carprofeno teve uma razão COX-1:COX-2 de 129;25 todavia, em outro estudo, no qual foram usadas linhagens celulares de outras espécies (ovelha e roedor), a razão foi de 1,0,15 e, em um estudo que utilizou macrófagos caninos, foi de 1,75.38 Outro estudo ainda sobre o carprofeno mostrou uma razão de 5,3, que foi 1.000 vezes mais potente no sangue total do que em cultura celular.39 Lees et al.5,30 assinalaram as diferenças entre espécies e concluíram que, nas células humanas, o carprofeno é relativamente seletivo para COX-1; nas células caninas e felinas, o carprofeno demonstra atividade preferencial contra a COX-1; e, nas células equinas, é não seletivo ou ligeiramente preferencial para COX-2. Tendo em vista as discrepâncias entre estudos e técnicas, a opinião geral atual é a de que o ensaio com sangue total deve constituir o padrão de referência para determinar a especificidade COX-1/COX-2, visto que ela simula mais rigorosamente as condições fisiológicas apropriadas.4,5,32,33 Essa técnica foi usada pela primeira vez em 199240 e,

atualmente, é empregada na maioria dos estudos de fármacos de uso veterinário. A vantagem do ensaio em sangue total é que ele incorpora os componentes no ensaio que normalmente são encontrados no sangue circulante: proteínas, células, plaquetas e enzimas. Esses componentes não são encontrados em células isoladas ou em sistemas enzimáticos empregados em alguns ensaios anteriores. Em virtude da alta ligação dos AINEs às proteínas, isso é particularmente importante, visto que apenas uma pequena fração, isto é, a fração não ligada, é biologicamente ativa no sangue. O ensaio em sangue total mede os produtos da COX-2 (PGE2) a partir dos leucócitos estimulados, bem como os produtos da COX-1 (TXA2) das plaquetas estimuladas.

Propriedades farmacocinéticas As estimativas dos parâmetros farmacocinéticos dos AINEs podem ser examinadas usando os dados disponíveis de relatos de pesquisa e das bulas dos fármacos. Alguns valores selecionados são apresentados na Tabela 12.1 e foram obtidos de uma variedade de fontes. Existem algumas características comuns compartilhadas pelos AINEs usados em animais. Todos apresentam alta ligação às proteínas (> 90%). Em geral, todos eles são bem absorvidos após administração oral e são ácidos fracos, que exibem alta lipofilicidade em pH tecidual fisiológico. Os coeficientes de partição lipídio/água, expressos como logaritmo do coeficiente de partição ou LogP, para esses fármacos é superior ou próximo a 2,0. Se o LogP de um medicamento estiver próximo ou acima de 2,0, a difusão através das membranas biológicas é favorecida (a não ser que seja restrita pela ligação às proteínas), e a absorção oral é favorecida pela alta lipoficilidade. Por serem ácidos fracos, a lipofilicidade (LogD) é maior no pH baixo do estômago e menor, porém ainda acima de 0,0, no pH fisiológico de 7,0. O meloxicam constitui uma exceção, visto que a LogD é de −0,75 em pH de 7,0. O mavacoxibe é outra exceção, visto que é uma base fraca. Tanto a lipofilicidade quanto a ligação às proteínas afetam o volume de distribuição de um fármaco. O volume de distribuição varia de modo considerável entre os AINEs (ver Tabela 12.1). Para muitos fármacos, a alta ligação às proteínas está associada a um pequeno volume de distribuição, visto que a ligação às proteínas diminui a difusão para fora do compartimento extracelular (p. ex., plasma e líquido extracelular), porém esta não é uma característica consistente dos AINEs. O carprofeno e a fenilbutazona apresentam o menor volume de distribuição de 0,14 ℓ/kg (abaixo do volume da água extracelular), e a maioria dos AINEs tem volumes de distribuição inferiores a 1,0 ℓ/kg. Entretanto, o firocoxibe, o deracoxibe e o etodolaco apresentam volumes de distribuição superiores a 1,0 ℓ/kg.O firocoxibe é o que apresenta o maior volume de distribuição (aproximadamente 4,6 ℓ/kg em cães),41 enquanto exibe a menor lipofilicidade (LogP de 1,96). É interessante assinalar

que o carprofeno apresenta um dos valores mais altos de lipoficilidade entre os AINEs (LogP de 3,79), porém também exibe o menor volume de distribuição. A meia-vida plasmática estimada varia de modo considerável entre os AINEs e entre as espécies (ver Tabela 12.1). Por exemplo, em cães, a meia-vida plasmática é de < 1 h para o robenacoxibe, de 1,6 h para o cetoprofeno, de 3 h para o deracoxibe e de até 24 h para o meloxicam. A meia-vida plasmática da fenilbutazona varia de 5 a 6 h em cães e cavalos até mais de 50 h em bovinos. O firocoxibe tem meia-vida de 7,8 h em cães, porém de 30 h ou mais em cavalos. O mavacoxibe, um AINE aprovado para cães na Europa, mas não nos EUA, é incomum, visto que apresenta depuração sistêmica muito baixa, resultando em meia-vida de 15,5 a 19,3 dias em cães da raça Beagle de laboratório. Entretanto, em cães de outras raças com osteoartrite, a meia-vida mostrou-se altamente variável, com média de 44 dias, porém ultrapassando 80 dias em alguns cães.42,43 Apesar dessas diferenças, a meia-vida não parece influenciar os intervalos entre as doses. Em outras palavras, os rótulos desses fármacos aprovados para cães geralmente indicam uma administração oral uma vez ao dia para o osteoartrite ou a inflamação de tecidos moles, apesar das meias-vidas diferentes. O mavacoxibe representa uma exceção notável, com posologia inicial a intervalos de 14 dias, com doses subsequentes administradas a cada 30 dias.43 A ocorrência de um período de latência entre as concentrações teciduais e as concentrações sanguíneas é um dos motivos pelos quais os parâmetros farmacocinéticos do fármaco no plasma (p. ex., meia-vida) podem não prever o intervalo entre as doses. Até mesmo os fármacos com meias-vidas curtas podem ser administrados uma vez ao dia, visto que as concentrações teciduais e os efeitos inibitórios persistem por muito mais tempo. Historicamente, a ligação às proteínas tem sido usada para explicar a longa persistência dos fármacos nos tecidos, porém dados recentes lançam um desafio sobre essa pressuposição. A alta lipofilicidade desses fármacos também pode explicar as meias-vidas teciduais longas, visto que alta lipofilicidade favorece a distribuição intracelular, que pode servir de reservatório para níveis teciduais prolongados. Os AINEs sofrem biotransformação por mecanismos hepáticos, o que caracteriza os compostos lipofílicos e pouco hidrossolúveis, e apresentam depuração sistêmica relativamente baixa. Os valores de depuração não estão listados na Tabela 12.1, porém todos os AINEs apresentam valores de depuração de aproximadamente 0,4 ℓ/kg/h (6,67 mℓ/kg/min) ou menos. Com um fluxo sanguíneo hepático de aproximadamente 30 mℓ/kg/min em cães,44 esse baixo valor dos AINEs os qualificaria como compostos de baixa depuração. O mavacoxibe é um exemplo extremo com depuração sistêmica de apenas 0,0027 ℓ/kg/h em cães da raça Beagle.42 Foram observadas propriedades semelhantes para os AINEs em outras espécies nas quais a depuração sistêmica é muito mais baixa do que o

fluxo sanguíneo hepático. Existem algumas exceções: a depuração sistêmica do meloxicam em cavalos é cerca de 3 a 5 vezes maior que a dos seres humanos e três vezes maior que a dos cães.45,46 O robenacoxibe é um dos AINEs mais recentes usados em cães e gatos na Europa (aprovado apenas para gatos nos EUA). O robenacoxibe apresenta depuração de aproximadamente 9 a 12 mℓ/kg/min em gatos47 e de 13 mℓ/kg/min em cães,48 que é muito mais alta que a dos outros AINEs. Além disso, tem meia-vida correspondentemente curta em cada uma dessas espécies. Em geral, a absorção gastrintestinal é alta para as formulações aprovadas para animais (perto de 100%), porém existem exceções. O firocoxibe e o mavacoxibe são incomuns, com biodisponibilidade oral de apenas 38 e 46% em cães, respectivamente. O robenacoxibe apresenta biodisponibilidade inusitadamente baixa em gatos, que é afetada de modo significativo pela alimentação (ver adiante). São também observados valores mais baixos para a absorção oral de alguns fármacos em cavalos e bovinos (ver Tabela 12.1). A alimentação pode aumentar, inibir ou retardar a absorção de AINEs administrados concomitantemente. Por exemplo, em cavalos alimentados aos quais se administra concomitantemente fenilbutazona oral, a absorção do fármaco não diminui, porém é significativamente retardada, presumivelmente devido à sua ligação a materiais no alimento e liberação na parte distal do intestino.49 O robenacoxibe é altamente afetado pela ingestão de alimento, com absorção oral de 10% em gatos alimentados versus 49% em gatos em jejum50 e de 62% em cães alimentados versus 84% em cães em jejum.48 O mavacoxibe (singular por ser uma base fraca em lugar de ácido fraco) é afetado na direção oposta, com aumento de sua absorção oral de 46 para 87% com a ingestão de alimento.42 A absorção oral do meloxicam é apenas ligeiramente afetada pela ingestão de alimento em cavalos (ver Tabela 12.1).

■ Estereoisomerismo Os derivados do ácido propiônico (carprofeno e cetoprofeno) existem como enantiômeros quirais R-(–) e S-(+). A quiralidade é importante, visto que cada isômero exibe comportamento farmacocinético e farmacodinâmico diferente. Por exemplo, o enantiômero S-(+) (eutômero) é mais ativo (IC50 mais baixo) para a inibição das prostaglandinas no caso desses dois AINE. O etodolaco também existe como enantiômero quiral, em que o isômero S-(+) é mais ativo. Nenhum dos outros fármacos listados na Tabela 12.1 apresenta enantiômeros quirais.

Propriedades farmacocinéticas e farmacodinâmicas (FC-FD)

Tem havido enorme interesse em comparar os estudos farmacodinâmicos que medem as concentrações inibitórias de COX-1 e COX-2 ou as observações das respostas clínicas com os parâmetros farmacocinéticos estimados do fármaco para obter uma posologia ideal e segura nos animais. Essas abordagens foram descritas em uma revisão realizada por Lees et al.4,5 e demonstrada para fármacos específicos em estudos conduzidos por Giraudel et al.5153 Essa abordagem foi usada para caracterizar a dose do AINE mais recente em cães e gatos, o robenacoxibe,47,51-55 bem como para avaliar os AINEs em cavalos.45,46 A abordagem desses pesquisadores consistiu em usar uma concentração sanguínea correspondente a 80% de inibição da COX-2 (IC80) para produzir um efeito terapêutico e uma inibição de 20% da COX-1 (IC20) para evitar efeitos adversos. Conforme analisado por Hinz e Brune56 e por Warner et al.,33 o uso de uma inibição de 80% da COX-2 para prever efeitos clínicos foi selecionado, visto que uma concentração do fármaco que inibe a enzima em apenas 50% pode não ser suficiente para produzir um efeito terapêutico. Utilizando esses valores de concentração inibitória como alvos, pode-se empregar o modelo FC-FD para estabelecer doses capazes de alcançar concentrações sanguíneas ideais. As doses derivadas pretendem ser pontos iniciais a partir dos quais podem ser planejados outros estudos investigando a segurança e eficiência clínicas do fármaco. Por exemplo, utilizando a abordagem do modelo FC-FD, os pesquisadores estabeleceram uma dose de meloxicam de 0,17 mg/kg a cada 24 h em gatos.52 Essa dose de meloxicam afasta-se das doses deduzidas de estudos clínicos, visto que está abaixo da dose única aprovada pela US Food and Drug Administration (0,3 mg/kg) para gatos,57 porém mais alta do que a dose crônica registrada em outros países, incluindo a Europa.58 Por outro lado, essa abordagem identificou corretamente a dose ideal de 2 mg/kg de robenacoxibe para gatos47,53,55,59 e cães.60

■ Avaliação in vivo de modelos FC-FD Em vez de usar um ensaio in vitro, como o ensaio em sangue total, para medir a inibição da ciclo-oxigenase como marcador substituto farmacodinâmico (FD) de eficácia, outra abordagem consiste em utilizar uma medida in vivo. Uma medida in vivo tem mais probabilidade de refletir as condições fisiológicas e patológicas e prever um resultado clínico. Foram empregados vários modelos in vivo para testar os AINEs em animais, que são descritos de modo mais detalhados por Lees et al.4 Um modelo in vivo típico envolve induzir inflamação em uma área delimitada de tecido e medir a inibição da resposta inflamatória em relação à concentração do fármaco. Uma alternativa consiste em utilizar a injeção de um irritante em uma articulação, seguida observação da resposta pela determinação do grau de claudicação produzida, calor e/ou dor.47 Valores como 50% da concentração inibitória (IC50) podem ser estimados a partir do modelo in vivo, à

semelhança do modelo in vitro, e usados para estabelecer uma dose efetiva. Um exemplo dessa abordagem foi usado para definir uma dose de meloxicam em gatos. A inflamação foi induzida em gatos experimentais, e a resposta foi comparada com parâmetros farmacocinéticos do modelo FC-FD.51 Esses pesquisadores calcularam uma dose única de 0,25 a 0,3 mg/kg de meloxicam para produzir efeitos analgésicos, anti-inflamatórios e antipiréticos ótimos. Essa dose estaria de acordo com a dose deduzida de ensaios clínicos, que levou à dose atual registrada pela FDA para gatos nos EUA,57 porém é mais alta do que a dose clinicamente usada por muitos veterinários.

Efeitos adversos dos AINEs ■ Lesão gastrintestinal Entre as reações adversas causadas pelos AINEs, os problemas gastrintestinais constituem o motivo mais frequente para interromper a terapia com AINEs ou considerar um tratamento alternativo. Os efeitos adversos gastrintestinais, incluindo vômito, diarreia, inapetência e ulceração, foram documentados na literatura veterinária, principalmente em cães e cavalos, mas também em outras espécies. A toxicidade gastrintestinal tende a ser causada por pelo menos dois mecanismos: a irritação direta do fármaco sobre a mucosa gastrintestinal e o resultado da inibição das prostaglandinas.22,51-64 A irritação direta da mucosa ocorre porque os AINEs ácidos tornamse mais lipofílicos no ambiente ácido do estômago e difundem-se para dentro das células da mucosa gástrica, onde provocam lesão. Ocorrem também efeitos diretos no intestino, onde os AINEs no lúmen podem causar lesão direta às vilosidades intestinais. As técnicas diagnósticas concentraram-se previamente na lesão do estômago, entretanto, atualmente, tornou-se aparente que o intestino também constitui um local importante de lesão direta.63,64 Os fármacos que entram no lúmen por meio da bile talvez representem maior risco de lesão, o que constitui maior problema para os AINEs que sofrem reciclagem êntero-hepática e produzem altas concentrações biliares. Esses efeitos podem não resultar em perfuração, mas podem constituir uma importante causa de náuseas, vômitos e diarreia observados em animais após a administração de AINEs. As prostaglandinas (juntamente com outros produtos eicosanoides, como as lipoxinas) exercem um efeito citoprotetor na mucosa gastrintestinal. A inibição das prostaglandinas pelos AINEs resulta em diminuição da citoproteção, do fluxo sanguíneo e da síntese de mucoprotetor e inibição da renovação e reparo das células da mucosa. Isso pode levar ao desenvolvimento de gastrite, enterite, erosões, úlceras e perfuração. Como os AINEs também podem inibir a função plaquetária, a lesão do trato gastrintestinal que provoca sangramento pode ser exacerbada e resultar em perda significativa de sangue. Foram

observadas complicações graves com o uso de AINEs em praticamente todas as espécies de animais, e essas complicações são discutidas adiante, com exemplos específicos. Exemplos de lesão gastrintestinal em cães Os efeitos gastrintestinais de qualquer AINE podem incluir desde gastrite leve e vômitos até ulceração gastrintestinal grave, sangramento e morte. Os vômitos, a anorexia, a náuseas e a diarreia são, sem dúvida alguma, os eventos mais documentados.34 A ulceração e perfuração gastrintestinais são raras, mas podem ser catastróficas. Um exame dos relatos publicados de lesão gastrintestinal relacionada com a administração de AINEs a animais indica que os problemas mais graves (mas nem todos) são causados por doses mais altas do que as recomendadas.65,66 Isso resulta habitualmente de ingestão acidental, administração da dose incorreta ou uso do peso corporal inexato. A sobredose é estudada antes da aprovação regulamentar por meio da administração de doses exageradas (p. ex., 5× ou 10×) em estudos de segurança em animais conduzidos por patrocinadores farmacêuticos, e os resultados ficam disponíveis em documentos de Freedom of Information (FOI). Alguns fármacos podem perder a sua seletividade para a COX-2 em altas doses.62 Foi demonstrada toxicidade dependente de dose para o etodolaco; na dose fornecida no rótulo, o fármaco foi seguro; entretanto, em doses mais altas (dose de 2,7×), provocou lesões gastrintestinais e, na dose mais alta (dose de 5,3×), causou morte.67 Em altas doses, o meloxicam também provocou lesão gastrintestinal em cães.66,68,69 Como acontece com a maioria dos AINEs, os pacientes podem apresentar efeitos adversos em doses mais baixas, e, de acordo com um relato, os patrocinadores do meloxicam na Europa recomendaram reduzir a dose original aprovada de 0,2 mg/kg para 0,1 mg/kg, devido a alguns problemas gastrintestinais iniciais.70 Os fatores que podem aumentar o risco de lesão gastrintestinal incluem a administração concomitante de corticosteroides e/ou presença concomitante de doença ou lesão gastrintestinal. Nos seres humanos há evidências atuais de que a variação genética determine a suscetibilidade do indivíduo aos AINEs. Ainda não foi determinado se isso representa ou não um fator nos animais, porém presume-se que seja provavelmente devido à diversidade genética.71 No trato gastrintestinal de cães saudáveis, a COX-1 é a principal enzima que produz prostaglandinas (principalmente PGE2).39 A COX-2 normalmente está presente, porém é suprarregulada após exposição a um irritante.20 No estômago do cão, existe um nível relativamente alto de prostaglandinas sintetizadas pela COX-1, devido à necessidade de proteger o estômago das altas forças de cisalhamento e do ácido gástrico e de produzir bicarbonato da mucosa. Por conseguinte, é lógico que a inibição da COX-1 no estômago deve aumentar o risco de erosões e úlceras gástricas. Por outro lado, no duodeno, a

necessidade de prostaglandinas é menor, visto que há menos ácido, menos necessidade de bicarbonato da mucosa (o bicarbonato é secretado pelo pâncreas) e menos força de cisalhamento, visto que já ocorreu a trituração do alimento no estômago. Entretanto, as observações clínicas sugerem que a parte proximal do duodeno constitui o local de muitas úlceras perfurantes catastróficas associadas ao uso de AINEs em cães. A lesão ou agressão do duodeno induz à produção de prostaglandinas protetoras e cicatrizantes pela COX-2. Se as prostaglandinas mediadas pela COX-2 forem inibidas pelos AINE, pode aumentar o risco de ulceração duodenal. Esse evento adverso tem sido observado após tratamento com deracoxibe, um dos inibidores mais seletivos da COX-2 em cães.65 Embora a maioria dos cães nesse relato tivesse predisposição à lesão, devido a outros fatores, parece que a administração desse inibidor seletivo da COX-2 foi o fator desencadeante na lesão duodenal. Embora se disponha de vários fármacos para uso em cães (ver Boxe 12.1), não há evidências na literatura publicada de ensaios clínicos controlados mostrando que um AINE é visivelmente mais seguro do que outro para o trato gastrintestinal.34 Por exemplo, em um estudo em que o carprofeno, meloxicam e o cetoprofeno foram comparados em cães utilizando uma avaliação endoscópica depois de 7 e 28 dias de administração, não foi constatada nenhuma diferença estatística entre os fármacos no que concerne ao desenvolvimento de lesões gastroduodenais.70 Em outro estudo que comparou os efeitos gastrintestinais de doses recomendadas de carprofeno, etodolaco e ácido acetilsalicílico sobre o estômago e duodeno de cães durante 28 dias, o etodolaco e o carprofeno produziram significativamente menos lesões do que o ácido acetilsalicílico.72 Os escores de lesões nos grupos do carprofeno e do etodolaco não foram diferentes daqueles no grupo de administração de placebo. Exemplos de lesão gastrintestinal em cavalos Os AINEs constituem os fármacos mais usados no tratamento de dor e inflamação em cavalos. À semelhança de outros animais, a ulceração gástrica e a lesão intestinal têm representado uma importante limitação para o seu uso. As úlceras gástricas e síndromes relacionadas constituem um importante problema de saúde em cavalos, particularmente em cavalos de esporte e potros com doença clínica estressante. A lesão gástrica e intestinal em cavalos constitui um problema multifatorial, e os AINEs representam apenas um dos fatores que contribuem para o problema.73 A lesão do trato gastrintestinal induzida pela fenilbutazona em cavalos tem sido documentada na literatura há pelo menos 30 anos, e detalhes desses achados podem ser encontrados em outras publicações.1,74 Conforme descrito anteriormente, a fisiopatologia está relacionada com a inibição das prostaglandinas protetoras no estômago, somada ao elevado estresse, exercício e dieta. As úlceras mais

graves em cavalos ocorrem na mucosa glandular, visto que esta é a região onde a inibição das prostaglandinas desempenha o papel mais importante. Os efeitos sobre o intestino equino também foram extensamente estudados. Esses efeitos foram analisados por Marshall e Blikslager75 e por Tomlinson e Blikslager,76 e foram examinados agentes específicos.31,77 Embora os AINEs sejam comumente usados no controle da dor e da endotoxemia associadas à cólica no cavalo,78 os efeitos precisam ser confrontados com a associação a efeitos gastrintestinais adversos, incluindo colite dorsal direita, e inibição da cicatrização da barreira mucosa. A flunixina meglumina, um dos agentes mais administrados para essa indicação, diminui a função da barreira do intestino delgado. Quando o intestino equino é exposto à fluxinina, há inibição da recuperação após isquemia intestinal e aumento da permeabilidade ao lipopolissacarídio (LPS). Em contrapartida, evidências experimentais sugerem que os AINEs com efeitos antiinflamatórios independentes da inibição da ciclo-oxigenase ou um modo de ação seletivo para COX-2 podem oferecer uma vantagem significativa em relação aos AINEs tradicionais.31,77 Os agentes anti-inflamatórios não esteroides, particularmente a fenilbutazona, também podem afetar o cólon dos cavalos, produzindo a síndrome de colite dorsal direita.79 A fisiopatologia não está totalmente elucidada, porém sabe-se que a administração de fenilbutazona a cavalos pode provocar hipoalbuminemia, neutropenia, alterações do fluxo sanguíneo para o cólon dorsal direito e alterações nas concentrações luminais de ácidos graxos voláteis (AGV).79

■ Adaptação gastrintestinal e administração crônica de AINE Uma das características consistentes em estudos clínicos e de pesquisa básica dos AINEs é que os animais podem exibir uma reação adversa inicial a esses agentes, porém frequentemente desenvolvem tolerância com a administração continuada. De fato, existem relatos de cães, gatos, cavalos e seres humanos que sobreviveram com a administração diária de AINEs durante a maior parte de suas vidas. O que explica essa tolerância? O processo de adaptação gastrintestinal envolve muitos fatores. Estudos realizados por Brzozowski et al.80 mostraram atenuação da lesão da mucosa gástrica após exposição repetida ao ácido acetilsalicílico. A adaptação gástrica pode ser atribuída à produção aumentada de fatores de crescimento, aumento da proliferação celular e regeneração da mucosa. Esses autores também argumentaram que a adaptação gástrica era um efeito de longa duração, que produz aumento da resistência da mucosa adaptada à lesão subsequente por agentes ulcerogênicos. A maior parte das informações e os artigos sobre esse tópico lidam principalmente com roedores de laboratório, porém os estudos realizados em cães há muitos anos81-88

demonstraram uma adaptação à administração de ácido acetilsalicílico. Esses relatos mostraram a observação inicial de lesões gástricas após tratamento com ácido acetilsalicílico (AAS); entretanto, depois de 1 a 2 semanas de tratamento com esse fármaco, as lesões regrediram com a sua administração continuada. A adaptação do AAS nos cães foi acompanhada de elevação do fluxo sanguíneo gástrico, redução da infiltração por células inflamatórias e aumento na regeneração das células da mucosa e conteúdo do fator de crescimento da epiderme da mucosa.83-88 Essas observações são compatíveis com a estimulação de um fator protetor, conhecido como lipoxina desencadeada pelo ácido acetilsalicílico (ATL).86-88 Esse fator é produzido pela COX-2 acetilada e inibido por inibidores da COX-2. Evidências adicionais da suprarregulação da COX-2 após lesão da mucosa foram demonstradas por Wooten et al.20 A COX-2 aumentou no duodeno de cães após 3 dias de administração de ácido acetilsalicílico.20 O fenômeno da adaptação relacionado com a administração crônica não está livre de controvérsia, visto que outros estudos não conseguiram demonstrar uma adaptação gástrica após a administração de ácido acetilsalicílico a cães. Quando cães receberam ácido acetilsalicílico em uma dose extremamente alta de 25 mg/kg a cada 8 h, não houve evidência de adaptação, e as lesões foram tão graves ou mais graves no dia 28 em comparação com dias anteriores no estudo.89

Lesão renal relacionada com a administração de AINEs No rim, as prostaglandinas são importantes na modulação do tônus dos vasos sanguíneos e na regulação do equilíbrio do sal e da água. Foi descrita a ocorrência de lesão renal causada por AINEs em seres humanos e cavalos, porém isso não está bem documentado em pequenos animais, embora a experiência clínica indique a sua ocorrência com frequência suficiente para constituir um problema para o veterinário. Casos relatados de toxicidade frequentemente ocorreram quando foram usadas altas doses ou quando havia outros fatores de risco.90 Ocorre lesão renal em consequência da inibição da síntese renal de prostaglandinas. Animais com diminuição da perfusão renal causada por desidratação, anestesia, choque ou doença renal preexistente correm maior risco de isquemia renal induzida por AINE.90-92 Nos animais saudáveis, os rins habitualmente têm a capacidade de compensar os efeitos associados aos AINEs. Como esses agentes não são inerentemente nefrotóxicos, a lesão renal está habitualmente associada a um comprometimento renal clínico ou oculto coexistente.93 Na presença de fatores que causam comprometimento renal (p. ex., desidratação, disfunção tubular, depleção de eletrólitos e alterações hemodinâmicas associadas à anestesia), o rim depende da COX-1 e da COX-2 para a síntese de

prostaglandinas, a fim de regular a homeostasia da água, a função tubular e o fluxo sanguíneo renal.94 A lesão renal aguda associada ao uso de AINEs caracteriza-se por diminuição da perfusão renal, retenção de sódio e de líquido, diminuição da função tubular e azotemia. Nos seres humanos, foi relatada a ocorrência de dor na área do rim. Não se deve pressupor que os AINEs que são mais específicos para a enzima COX-2 sejam mais seguros para os rins. Ambas as enzimas COX-1 e COX-2 estão envolvidas na regulação do fluxo sanguíneo renal e na função tubular. Algumas das prostaglandinas que desempenham um importante papel na regulação do sal e da água e na hemodinâmica do rim são sintetizadas por enzimas COX-2.23,95 A administração de um inibidor específico da COX-2 a pessoas com depleção de sal diminuiu o fluxo sanguíneo renal, a taxa de filtração glomerular e a excreção de eletrólitos.95 Os corticosteroides também podem aumentar o risco de lesão, visto que foi demonstrado que a administração de prednisolona a cães em associação com meloxicam ou cetoprofeno tem o potencial de produzir efeitos adversos graves nos rins, bem como no trato gastrintestinal.96 Existe outra forma de nefrite por analgésicos, que é habitualmente causada pelo uso crônico de paracetamol em seres humanos.97 Essa síndrome não foi descrita em animais domésticos.

■ Exemplos em cães Entre os AINEs atualmente disponíveis para uso em cães, os efeitos do carprofeno e do meloxicam sobre a função renal foram mais estudados. Como esses fármacos são usados no peroperatório, foram realizadas pesquisas para determinar a existência de qualquer evidência de lesão renal aguda, particularmente em associação com anestesia. Com base nesses estudos, o risco de lesão renal em consequência do uso desses medicamentos parece ser baixo. Em um estudo, o carprofeno, o cetorolaco e o cetoprofeno foram examinados em cães saudáveis submetidos a cirurgia, porém sem administração de líquidos intravenosos. Foi constatado um aumento mínimo das células epiteliais tubulares renais no sedimento urinário, e o carprofeno não teve efeito adverso sobre a função renal.93 Alguns cães tratados com cetorolaco e cetoprofeno apresentaram azotemia transitória. Em outros estudos, a administração de carprofeno a cães saudáveis anestesiados não teve efeito adverso sobre a função renal.98-100 O meloxicam não produziu efeitos adversos renais em cães saudáveis após administração a curto prazo, com e sem o inodilatador pimobendana.103 Em cães saudáveis anestesiados e aos quais foi administrada acepromazina para produzir hipotensão, a administração pré-anestésica de meloxicam não provocou qualquer alteração na função renal, embora seja difícil fazer uma generalização dos resultados desse modelo para outros

protocolos anestésicos.104 Cães saudáveis aos quais foi administrado meloxicam antes da anestesia e um estímulo nociceptivo elétrico não apresentaram diminuição da função renal associada ao tratamento.102 Já foram relatados efeitos renais após a administração de deracoxibe a cães pelo fabricante do produto.105 Em altas doses, observa-se um efeito dependente da dose sobre os túbulos renais. O deracoxibe é bem tolerado na maioria dos cães saudáveis até 10 mg/kg por 6 meses; entretanto, existe um potencial de degeneração/regeneração tubular renal dependente da dose com o uso de doses de 6 mg/kg ou mais altas (a dose clinicamente aprovada para tratamento a longo prazo é de 1 a 2 mg/kg/dia). A administração a longo prazo de carprofeno, etodolaco, fluxinina, cetoprofeno ou meloxicam a cães não induziu evidências de lesão renal, com base no exame de urina e na bioquímica do soro.106 O tema comum em muitos dos estudos anteriormente citados era o de que os cães eram saudáveis, geralmente jovens, e os AINEs foram administrados em uma dose uma vez ao dia, dentro da faixa recomendada. Desvios desse plano de estudos, uso de doses mais altas, tratamento de maior duração ou administração a pacientes clínicos com comorbidades poderiam provocar resultados diferentes.

■ Exemplos em gatos Devido à frequência com que gatos mais velhos são tratados com AINEs para doença articular degenerativa (DAD) e cirurgia, os veterinários e proprietários de animais de estimação estão preocupados com os efeitos que esses fármacos podem ter sobre a função renal. Os efeitos do uso tanto a curto prazo quanto a longo prazo têm atraído a atenção. Um dos motivos dessa preocupação é a denominada advertência de tarja preta publicada pela United States Food and Drug Administration, em 2010, declarando que “O uso repetido do meloxicam em gatos esteve associado a insuficiência renal aguda e morte. Não administrar meloxicam injetável ou oral adicional a gatos.” Isso levou à realização de vários estudos, visto que a doença renal crônica (DRC) manifesta e subclínica é comum na população de gatos mais frequentemente trados com AINEs a longo prazo. Estudos de acompanhamento ajudaram a diminuir essa preocupação. O estudo conduzido por Surdyk et al.107 mostrou que, em gatos com redução da função renal, porém euvolêmicos, os AINEs não alteraram a função renal. Em seu estudo, nem o meloxicam nem o ácido acetilsalicílico tiveram efeito mensurável sobre a depuração urinária da creatinina administrada de forma exógena, da concentração sérica de creatinina ou da razão proteína: creatinina. Concluíram que a função renal dos gatos euvolêmicos com função renal normal ou reduzida não depende da função da ciclo-oxigenase e, portanto, não é provavelmente influenciada pela administração de AINE. O meloxicam é licenciado para uso crônico em gatos em vários países (mas não nos

EUA) e constitui o fármaco recomendado para administração a longo prazo por consenso de um grupo de especialistas em medicina felina.8 Três estudos importantes concluíram que a administração crônica de meloxicam a gatos pode ser tanto segura quanto efetiva. O meloxicam oral foi seguro e palatável no tratamento a longo prazo da DAD em gatos quando administrado com alimento, em uma dose de 0,01 a 0,03 mg/kg/dia.108 Gowan et al.109 concluíram, em um estudo com gatos idosos portadores de DRC, que a terapia a longo prazo com meloxicam (0,02 mg/kg/dia) pode ser administrada com segurança. Esses gatos demonstraram tolerância ao meloxicam com administração diária, apesar da doença renal. Por fim, em um estudo de acompanhamento, os mesmos pesquisadores110 concluíram que a administração a longo prazo de meloxicam oral em gatos não reduziu o tempo de vida de gatos com DRC estável preexistente. Na verdade, muitos gatos tiveram um melhor resultado associado ao tratamento com meloxicam. Esses estudos resolveram alguns problemas relacionados ao uso de AINEs, pelo menos do meloxicam quando administrados em gatos idosos e em gatos com DRC. É preciso assinalar que as doses prescritas nesses estudos foram inferiores à dose do rótulo aprovada57,58 e, de fato, inferiores à dose recomendada na revisão feita por Sparkes et al.8 Estudos também foram conduzidos com o mais novo AINE aprovado para gatos, o robenacoxibe. Em estudos de segurança utilizando gatos saudáveis, os dados mostraram que o robenacoxibe é bem tolerado, mesmo quando o tratamento é mais longo, e em doses mais altas do que aquelas aprovadas.111 Quando se prescrevem AINEs para uso a longo prazo em qualquer animal, a orientação do cliente e o consentimento informado são importantes. Avaliações de acompanhamento do paciente marcadas a intervalos regulares são úteis para avaliar o benefício da terapia e reconhecer quaisquer efeitos adversos.

■ Segurança hepática Qualquer AINE tem o potencial de causar lesão hepática.112 Conforme assinalado anteriormente, tratam-se de fármacos lipofílicos, que sofrem extenso metabolismo hepático. O fígado fica exposto a altas concentrações do fármaco original e seus metabólitos. A lesão causada por AINEs pode ser idiossincrática (imprevisível, não relacionada com a dose) ou intrínseca (previsível e relacionada com a dose).113,114 A toxicidade causada por altas doses de paracetamol e ácido acetilsalicílico é intrínseca; as reações a outros fármacos tendem a ser idiossincráticas e imprevisíveis. A prescrição de AINEs a animais com doença hepática tem sido questionada, devido ao papel do fígado no metabolismo desses fármacos; entretanto, não há evidências de que a doença hepática prévia possa predispor um paciente à lesão hepática induzida por AINE quando se administra uma dose apropriada. Os sistemas enzimáticos para fármacos estão notavelmente preservados na doença hepática, e uma doença hepática preexistente não

constitui necessariamente uma contraindicação para a administração de um AINE. Os pacientes com doença hepática podem ter maior propensão à ulceração gastrintestinal, e existe a preocupação de que a administração de AINEs possa aumentar o risco dessa complicação. O carprofeno tem recebido a maior atenção relacionada com lesão hepática induzida por fármacos na medicina de pequenos animais, porém o potencial existe para todos os AINEs. O carprofeno foi aprovado pela United States Food and Drug Administration em outubro de 1996 para alívio da dor e da inflamação em cães.115 Antes dessa aprovação, foi registrado para o tratamento de cães na Europa e avaliado em ensaios clínicos.116 Em estudos de cães com artrite, o carprofeno foi efetivo e apresentou baixa incidência de efeitos adversos.116 Em estudos a longo prazo, em que o carprofeno foi administrado de 2 semanas até 5 anos, a incidência de reações adversas foi de apenas 1,3%.115 As reações adversas mais comuns que foram documentadas consistiram em vômitos, diarreia, anorexia e letargia. A atenção foi concentrada na toxicidade hepática do carprofeno, devido a um relato publicado que documentou a ocorrência de lesão hepática em uma série de cães encaminhados a um hospital de referência.117 No relato citado,117 foram descritos 21 cães nos quais a administração de carprofeno foi associada a hepatotoxicose idiossincrásica aguda. Os cães afetados apresentaram diminuição do apetite, vômitos e icterícia, com elevações das enzimas hepáticas e da bilirrubina. Os cães receberam a dose recomendada e desenvolveram sinais dentro de 19 dias, em média, após o início da terapia. Não foi identificada nenhuma condição predisponente, e a maioria dos cães recuperou-se sem consequências adicionais após a interrupção do fármaco e cuidados clínicos de suporte. Muitos dos cães nesse relato eram Labradores Retrievers, porém não houve evidências adicionais mostrando que essa raça corra risco aumentado de hepatotoxicidade pelo carprofeno.118 Entre outros fármacos, o firocoxibe causou alterações de esteatose hepática em cães jovens quando administrado em altas doses (dados do fabricante Merial).41 Os sinais de lesão hepática estão entre os exemplos adversos mais comuns relatados com o uso do carprofeno no site de notificação de eventos adversos do Food and Drug Administration’s Center for Veterinary Medicine (www.fda.gov). Apesar da recomendação comum feita por veterinários, não há evidências de que suplementos dietéticos, como silimarina (cardo-mariano, silibina, Marin®), S – adenosilmetionina (SAMe, Denosyl®) ou combinações de ambas (Denamarin®, NutraMax®), sejam benéficos na prevenção da lesão hepática causada por AINE. As reações idiossincráticas são raras (1 em 1.000 a 1 em 10.000 pacientes). Todavia, deve-se investigar qualquer elevação inexplicada das enzimas hepáticas ou da bilirrubina 7 a 90 dias após iniciar a administração de AINE. Felizmente, a lesão hepática é, em geral, reversível com cuidados de suporte e evitando outras causas desencadeantes.

■ Lesão da cartilagem Com uso crônico, foi demonstrado que alguns AINEs aceleram as lesões da cartilagem articular nas articulações artríticas. Esse efeito foi demonstrado experimentalmente quando foram administrados AINEs em altas doses a modelos de artrite canina; entretanto, a sua importância clínica é incerta. Não foi constatado que a maior parte dos fármacos atualmente usados acelera a degradação da cartilagem articular in vivo.119

Efeitos sobre a coagulação sanguínea | Inibição das plaquetas e anormalidades trombóticas Os anti-inflamatórios não esteroides que inibem a COX-1 podem reduzir a síntese de tromboxano (TXA2) nas plaquetas e diminuir a função plaquetária. Em alguns casos, isso pode levar a episódios clínicos de aumento do sangramento peroperatório. O AAS, em baixas doses, constitui o inibidor da COX-1 mais específico, visto que o grupo acetila (ácido acetilsalicílico) inibe de modo irreversível a ciclo-oxigenase nas plaquetas. Os AINEs não acetilados só inibem as plaquetas quando suas concentrações no sangue são mantidas em níveis inibitórios. Por conseguinte, os efeitos dos AINEs diferentes do ácido acetilsalicílico são de curta duração e raramente levam a complicações clínicas. Foi relatado que o cetoprofeno, um inibidor não seletivo da COX, altera a hemostasia.120 Um ensaio clínico conduzido por Lemke et al.121 em cadelas submetidas a salpingohisterectomia constatou que a administração pré-operatória de cetoprofeno resultou em inibição da agregação plaquetária, porém não foram observados efeitos sobre o tempo de sangramento da mucosa bucal. Os autores concluíram que, contanto que os cães sejam saudáveis nos demais aspectos, sem outro problema hemorrágico conhecido, o cetoprofeno pode ser usado com segurança como analgésico e anti-inflamatório no pré-operatório.121 Os fármacos que são inibidores específicos da COX-2 ou que poupam a COX-1 exercem pouco efeito clínico sobre as plaquetas, embora testes in vitro possam demonstrar a ocorrência de efeitos.

■ Riscos em seres humanos em comparação com animais Na literatura humana, tem havido uma preocupação de que os inibidores específicos da COX-2 possam aumentar o risco de eventos cardiovasculares, particularmente infarto do miocárdio, trombose, acidente vascular encefálico e morte súbita.122,123 Foram identificados problemas similares em animais. A segurança cardiovascular é uma preocupação em seres humanos que utilizam fármacos seletivos para a COX-2, visto que esses agentes preservam a COX-1, que pode promover agregação plaquetária e vasoconstrição.122 Este é o motivo pelo qual o fármaco outrora popular, o rofecoxibe, foi voluntariamente retirado do mercado

pelo fabricante,123 que foi logo seguido da retirada do valdecoxibe. Alguns especialistas acreditam que a alta seletividade desse fármaco para a COX-2 tenha levado a esse risco aumentado.124-126

Seleção do fármaco Os veterinários dispõem de várias escolhas entre os AINEs (ver Boxe 12.1). Nesses últimos anos, a profissão adquiriu algumas informações importantes acerca desses fármacos, que podem ajudar a orientar o tratamento. Uma das lições mais significativas é a de que nós realmente não sabemos qual dos AINEs é o mais eficaz e mais seguro em determinado indivíduo. Cada um deles tem vantagens e desvantagens. Existem formas posológicas, incluindo injetável, soluções orais via transmucosa oral, comprimidos convencionais, comprimidos mastigáveis, pastas para cavalos e formulações transdérmicas. A dose inicial para pacientes saudáveis está bem estabelecida (Tabela 12.2). A escolha do produto irá depender da situação clínica, da preferência do proprietário, da eficácia anterior observada e da adesão ao tratamento. Existem formulações genéricas para uso veterinário de fármacos populares e dispõe-se de alguns fármacos rotulados para os homens, que são usados sem indicação na bula (p. ex., AAS, naproxeno e piroxicam).

■ Inibição da COX-2 como critério de seleção Após a descoberta das duas isoenzimas COX-1 e COX-2, houve um foco no desenvolvimento de fármacos como inibidores altamente seletivos da COX-2. Os fármacos que surgiram a partir desse trabalho incluem o celecoxibe, o valdecoxibe (atualmente retirado do mercado) e o rofecoxibe (atualmente retirado do mercado).127 Há algum tempo, esses coxibes estavam entre os fármacos mais prescritos entre qualquer categoria farmacológica em medicina humana. O deracoxibe foi o primeiro fármaco veterinário desse grupo, seguido do firocoxibe e do robenacoxibe. O mavacoxibe e o cimicoxibe foram licenciados para uso em cães na Europa. Embora esses fármacos tenham maior razão inibitória COX-1/COX-2 do que os AINEs mais antigos, a sua superioridade clínica não foi demonstrada em grandes populações de pacientes. De fato, um dos fármacos veterinários com ação inibitória seletiva para a COX-2, o deracoxibe, demonstrou ser seguro em estudos conduzidos por Bergh e Budsberg;10 entretanto, conforme discutido anteriormente, foi relatada a ocorrência de perfuração e sangramento gastrintestinais em associação ao uso do deracoxibe em cães.65 Em estudos de eficácia canina, o firocoxibe foi comparado com o etodolaco e o carprofeno e demonstrou, em certa medida, ter melhor posição nos escores de claudicação. Estudos de avaliação de segurança entre vários fármacos têm sido escassos e de baixo poder

estatístico. Os resultados disponíveis indicam que o firocoxibe, o carprofeno e o etodolaco assemelham-se quanto à incidência de vômitos e anorexia em cães. Entretanto, no tocante à diarreia, houve menor incidência com o firocoxibe, em comparação com o carprofeno e o etodolaco, e menos melena em comparação com o etodolaco.41 Os estudos conduzidos com o robenacoxibe em gatos demonstraram boa segurança e eficácia. O robenacoxibe foi superior ao meloxicam em um estudo clínico,128 porém não inferior a AINE mais antigos, como o cetoprofeno, em termos de segurança e eficácia.54,129 As avaliações dos coxibes em seres humanos mostram que eles não são necessariamente mais efetivos do que fármacos mais antigos, porém podem ser mais seguros para o trato gastrintestinal130 durante avaliações a curto prazo. Não há evidências de que os inibidores seletivos da COX-2 sejam superiores para terapia a longo prazo aos fármacos mais antigos estabelecidos, incluindo os com inibição mista da COX-1/COX-2, em termos de segurança gastrintestinal e eficácia.131,132 Com a exceção da ocorrência de lesão intestinal em cavalos, que é discutida em outra parte deste capítulo, existem poucas evidências, em outros estudos de espécies veterinárias, de que os fármacos com razões COX-1/COX-2 mais alta produzam menos efeitos adversos gastrintestinais ou renais do que os fármacos com baixa razão.

■ Seleção de AINEs para cães Para a dor aguda (p. ex., dor pós-operatória), há boas evidências de eficácia das formulações orais e injetáveis, e isso já foi publicado em relatos e revisões anteriores. Os fármacos anteriormente discutidos e listados nas Tabelas 12.1 e 12.2 foram usados nessas circunstâncias. Esses fármacos têm sido usados a curto prazo para diminuir a febre e aliviar a dor da cirurgia ou de traumatismo. As injeções pré-operatórias de carprofeno em cadelas demonstraram ser benéficas para reduzir a dor pós-operatória após ovário-histerectomia.133 Foi relatada a eficácia do meloxicam em cães para uso peroperatório,134,135 e o fármaco demonstrou ser superior ao butorfanol em algumas avaliações de dor. Os AINEs orais podem ser usados para o tratamento agudo da miosite, artrite e dor pósoperatória, ou podem ser administrados de modo crônico para alívio da dor relacionada com a osteoartrite. Os fármacos que têm sido administrados a pequenos animais nos EUA estão listados no Boxe 12.1, e alguns veterinários também fazem uso de fármacos humanos, como ácido acetilsalicílico, piroxicam e naproxeno. Se forem considerados fármacos para uso humano, devem-se consultar referências apropriadas para posologia acurada, visto que as doses podem diferir dos esquemas posológicos humanos (ver Tabela 12.2). Os fármacos veterinários aprovados que são utilizados com mais frequência em cães incluem o carprofeno, o etodolaco, o meloxicam, o firocoxibe e o deracoxibe. A tepoxalina foi retirada do mercado pelo patrocinador. Em países fora dos EUA, outros AINEs

aprovados para cães incluem o cetoprofeno, o mavacoxibe, o cimicoxibe e o ácido tolfenâmico. Tabela 12.2 Doses de AINEs em animais relatadas ou aprovadas por órgãos reguladores.a41,57,67,105,115,156 Fármaco

Ácido acetilsalicílico

Gatos

Cães

Cavalos

Bovinos

10 mg/kg a cada 48 h,

10 a 20 mg/kg a cada 8

25 a 50 mg/kg a cada 8

100 mg/kg a cada 12

VO

a 12 h, VO

h, VO

h, VO

4,4 mg/kg a cada 24 h, Carprofeno

1 a 4 mg/kg, dose

ou

0,7 mg/kg a cada 24 h,

1,4 mg/kg, em dose

única, por injeção

2,2 mg/kg a cada 12 h,

VO ou IV

única, SC ou IV

h, oral, por até 7 dias;

Nenhuma dose

Nenhuma dose

em seguida 1 a 2

estabelecida

estabelecida

VO 3 a 4 mg/kg a cada 24 Deracoxibe

1 mg/kg, VO, uma vez

mg/kg a cada 24 h, VO

Etodolaco

Nenhuma dose

10 a 15 mg/kg a cada

23 mg/kg, VO a cada

Nenhuma dose

estabelecida

24 h, VO

24 h

estabelecida

0,1 mg/kg a cada 24 h, Firocoxibe

1,5 mg/kg, VO, uma

5 mg/kg a cada 24 h,

VO, por até 14 dias, ou

vez

VO

0,09 mg/kg a cada 24

Não recomendado

h, IV, por até 5 dias 1 mg/kg a cada 24 h, Fluxinina

1 mg/kg uma vez, IV,

1 mg/kg, oral, IV ou IM,

por até 5 dias, IM ou IV,

1 a 2 mg/kg, a cada 24

SC ou IM

uma vez

ou 1 mg/kg, VO, a cada

h, IV, por até 3 dias

24 h 0,1 mg/kg inicialmente; em seguida, 0,05 Meloxicam

mg/kg/dia e, então, reduzir a dose para dias

Dose inicial de 0,2 mg/kg, VO, SC ou IV; em seguida, 0,1

0,6 mg/kg, a cada 24 h,

0,5 mg/kg, a cada 24

IV ou VO

h, IM, IV ou SC

alternados ou 0,02

mg/kg, a cada 24 h, VO

mg/kg/dia

Dose inicial de 5 Naproxeno

Não recomendado

mg/kg; em seguida, 2 mg/kg, a cada 47 h, VO

Fenilbutazona

6 a 8 mg/kg a cada 12

15 a 22 mg/kg a cada

h, VO

12 h, VO

10 mg/kg a cada 12 h, VO

Não recomendado

4,4 a 8,8 mg/kg/dia, VO (limitar a dose mais alta a 2 a 4 dias)

Dose inicial de 17 a 25 2,2 a 4,4 mg/kg IV ao dia, durante 2 a 4 dias

mg/kg; em seguida, 2,5 a 5 mg/kg a cada 24 h ou 10 a 14 mg/kg a cada 48 h, VO 0,3 mg/kg a cada 24 h,

Piroxicam

VO, ou 1 mg por gato, a cada 24 h, VO

Robenacoxibe

1 a 2,4 mg/kg/dia, VO

0,3 mg/kg, a cada 24 h,

Nenhuma dose

ou a cada 48 h, VO

estabelecida

1 a 2 mg/kg a cada 24

Nenhuma dose

h, VO

estabelecida

Não recomendado

Não recomendado

2 mg/kg VO, uma vez, repetir em 14 dias e, Mavacoxibe

Não recomendado

em seguida, repetir a

Não recomendado

Não recomendado

cada 30 dias até 6,5 meses a

As informações posológicas e de rótulo, incluindo espécies, usos indicados e advertências variam de acordo com a

jurisdição reguladora. A adequação do uso dentro de um ambiente regulador local deve ser verificada pelo veterinário que prescreve. IV = intravenosa; IM = intramuscular; VO = via oral; SC = subcutânea. Para uso a longo prazo, não existem estudos controlados que indiquem qual o fármaco mais efetivo, e provavelmente existe uma variação individual na resposta ao tratamento.

Quando os fármacos são comparados entre si, é difícil, utilizando medidas subjetivas, demonstrar diferenças entre eles para reduzir a dor em animais. Faltam medidas objetivas bem definidas e validadas da dor em medicina veterinária. Os ensaios clínicos usados para aprovação reguladora algumas vezes empregam critérios “não inferior” para comparação com outro fármaco aprovado. Na ausência de um número muito grande de pacientes, é difícil obter o poder estatístico para detectar diferenças entre fármacos nos estudos de veterinária clínica. Diante de várias escolhas de AINEs para o tratamento de cães com osteoartrite, a seleção pode ser frustrante para médicos-veterinários. À semelhança dos seres humanos, pode haver maiores diferenças interindividual na sua resposta do que diferenças entre os fármacos. A resposta ao tratamento também pode variar ao longo do tempo e com a evolução da doença, complicando ainda mais o manejo farmacológico dessa doença. Historicamente, os veterinários com frequência selecionam o ácido acetilsalicílico ou a fenilbutazona como fármaco inicial e, em seguida, utilizam fármacos humanos sem indicação na bula (p. ex., piroxicam) ou outros agentes como alternativa. Com a disponibilidade de vários AINEs aprovados para uso veterinário, para os quais existem excelentes estudos publicados e aprovação pela FDA ou aprovação em outros países para orientar o uso clínico e doses seguras, é difícil justificar o uso de fármacos não aprovados para os quais não se dispõe de dados de segurança e eficácia. Entre os fármacos disponíveis (ver Boxe 12.1), pode haver variações entre animais no que diz respeito à tolerância aos efeitos adversos e à resposta clínica. Uma abordagem racional consiste em manter pelo menos dois ou mais AINEs em inventário clínico, de modo que os médicos tenham oportunidade de descobrir o AINE mais bem tolerado, mais efetivo e mais fácil de administrar a cada paciente.

■ Seleção de AINEs para gatos Dispõe-se de excelentes revisões detalhadas para orientação sobre o uso de AINEs em gatos. Os leitores são incentivados a consultar publicações de Lascelles et al.,7 Sparkes et al.8 e Bennett e Johnston.136 O tratamento da doença articular degenerativa e de outras causas de dor prolongada em gatos não foi adequadamente abordado no passado, e esses artigos ajudam a ampliar o reconhecimento dessas condições. Os veterinários têm sido relutantes em prescrever AINEs a gatos, devido ao medo de efeitos adversos. Os efeitos adversos dos salicilatos (ácido acetilsalicílico) em gatos estão bem documentados. Os gatos são suscetíveis, em virtude da depuração lenta e eliminação dependente da dose. Os gatos afetados podem apresentar hipertermia, alcalose respiratória, acidose metabólica, metemoglobinemia, gastrite hemorrágica e lesão renal e hepática. Os gatos também estão propensos à toxicose pelo paracetamol, devido à deficiência da enzima

envolvida no metabolismo de fármacos, a UDP-glicuronil transferase.137 Apesar da sensibilidade aparente dos gatos a alguns efeitos adversos dos AINEs, o AAS tem sido usado em doses de 10 mg/kg, em dias alternados. Há também relatos sobre o uso seguro de cetoprofeno (registrado no Canadá e em países da Europa para uso em gatos), em uma dose de 1 mg/kg/dia durante 4 dias, e de flunixina meglumina (1 mg/kg, uma vez) em gatos para tratamento a curto prazo. Nos EUA, o meloxicam injetável foi aprovado pela FDA apenas para dose única em gatos, de 0,3 mg/kg. O meloxicam (formulação oral) é licenciado para uso a longo prazo em gatos na Europa, na Austrália e na Nova Zelândia, e, por consenso, foi o fármaco recomendado por um grupo de especialistas em medicina felina para administração repetida.8 O uso de fármaco extralabel (ELDU, extra-label drug use), em animais não de produção é legal nos EUA. Após a publicação das diretrizes de consenso da ISFM e da AAFP,8 o robenacoxibe tornou-se disponível para gatos nos EUA e na Europa. O robenacoxibe apresenta propriedades farmacocinéticas e de segurança favoráveis, que o tornam aceitável como escolha para administração repetida. Quando foram administradas altas doses (dose de 5×) de meloxicam a gatos, foi relatada a ocorrência de vômitos e outros problemas gastrintestinais. Com a administração de doses repetidas (9 dias) de 0,3 mg/kg/dia a gatos, foi observada a ocorrência de inflamação da mucosa gastrintestinal e ulceração.57 Entretanto, muitos veterinários têm administrado meloxicam a gatos várias vezes em doses muito mais baixas. Conforme discutido na seção sobre efeitos adversos renais, o meloxicam tem sido administrado com segurança a longo prazo, em uma dose de 0,01 a 0,03 mg/kg108 e, em gatos idosos com doença renal, em uma dose de 0,02 mg/kg/dia.109,110 Alguns esquemas recomendam uma dose inicial de 0,1 mg/kg de meloxicam em gatos, seguida de doses decrescentes. Um desses esquemas recomenda que, se for observada uma resposta favorável nos primeiros dias, deve-se aumentar o intervalo entre as doses para uma dose a cada 48 a 72 h; em seguida, a dose é reduzida para 0,05 mg/kg ou menos (0,025 mg/kg) enquanto a eficácia persistir. Na Europa e em outros países, a dose aprovada para gatos é de 0,05 mg/kg/dia para uso crônico, com dados de segurança do patrocinador para sustentá-la. O robenacoxibe é o mais novo AINE aprovado para uso em gatos (mas não em cães) nos EUA. A dose recomendada foi otimizada por meio de estudos FC-FD e de segurança.47,51-54,111 Nos EUA, a dose aprovada pela FDA é de 1 mg/kg/dia VO, com faixa de 1 a 2,4 mg/kg/dia durante um período máximo de 3 dias, ao passo que, em alguns países da Europa, a dose aprovada para gatos é de 1 mg/kg de peso corporal ao dia, por até 6 dias. A disponibilidade de formulações do fármaco difere entre países. Nos EUA, dispõe-se de um comprimido de 6 mg não sulcado para uso apenas em gatos. Na Europa e em outros países, o robenacoxibe também está disponível em comprimidos de 5, 10, 20 e 40 mg para

cães e em uma solução injetável de 20 mg/mℓ. O carprofeno (solução injetável) está aprovado para administração em dose única a gatos na Europa. Doses repetidas de carprofeno para gatos têm sido desencorajadas, devido a relatos de toxicose gastroduodenal e a uma variação individual na meia-vida do fármaco quando administrado em doses caninas. Existe um relato de administração do firocoxibe a gatos.138 O firocoxibe é comprovadamente efetivo na atenuação de febre induzida experimentalmente em gatos, nas doses de 0,75 a 3 mg/kg (dose única).

■ Seleção de AINEs para cavalos Nos cavalos, a fenilbutazona tem sido usada mais frequentemente do que qualquer outro AINE, e muitos especialistas ainda acreditam que a fenilbutazona seja o tratamento mais custo-efetivo, particularmente para o tratamento oral de inflamação e dor musculoesqueléticas. A flunixina meglumina é o AINE injetável mais usado para lesão aguda de tecidos moles, endotoxemia e dor abdominal.139 Outros AINEs estão listados nos artigos de Valverde e Gunkel140 e Marshall e Blikslager.75 Nessas listas estão incluídos o cetoprofeno injetável e a pasta oral equina ou a formulação injetável de firocoxibe. O tratamento oral com meloxicam é aprovado em alguns países e, em certas ocasiões, o ácido meclofenâmico tem sido usado. Em alguns países (mas não nos EUA), o carprofeno é licenciado para uso em cavalos, na dose intravenosa de 0,7 mg/kg, que pode ser repetida uma vez depois de 24 h. A flunixina é usada há muito tempo para dor aguda e inflamação associada a cólicas em cavalos. A justificativa para esse tratamento concentra-se na inibição dos prostanoides, que são responsáveis pelas alterações hemodinâmicas durante a endotoxemia.78,139 Entretanto, trabalhos recentes31,75-77,141 indicaram que os AINEs não seletivos, como a flunixina, aumentam o risco de lesão intestinal. Esses estudos indicam que AINEs seletivos, como o firocoxibe, têm uma vantagem em termos de segurança.

■ Seleção de AINEs para animais de produção Nos EUA, a flunixina meglumina foi aprovada pela FDA para o tratamento da inflamação e da febre em animais de produção. Todos os outros AINEs são considerados off-label e o intervalo de segurança para abate deve ser determinado a partir de uma fonte segura, como Food Animal Residue Avoidance Databank (FARAD).142 Os AINEs usados off-label para animais de produção incluem o ácido acetilsalicílico, a fenilbutazona (de uso proibido no gado leiteiro), a dipirona (proibida pela FDA), o carprofeno, o cetoprofeno e o meloxicam (aprovado para uso na Europa em bovinos e suínos). As doses empregadas em animais de produção estão listadas no artigo de Valverde e Gunkel140 e na Tabela 12.2. Há algumas evidências de que os AINEs proporcionem analgesia e reduzam o estresse

em animais de produção após cirurgia. O meloxicam, que foi aprovado na Europa para uso em bovinos e suínos, tem sido administrado a porcas para o tratamento da síndrome de mastite-metrite-agalactia (MMA),143,144 em uma dose de 0,4 mg/kg IM.

Resumo Em resumo, a farmacocinética dos AINEs em espécies domésticas comuns está incluída em tabelas específicas, assim como suas posologias clínicas. Para uso de AINEs em situações clínicas e patologias específicas, o leitor deve consultar outros capítulos específicos de espécies e de síndrome de dor nesta edição.

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Introdução Adjuvantes não analgésicos Dantroleno Doxapram Famotidina e omeprazol Guaifenesina (GG, éter gliceril guaiacolato) Maropitant Metocarbamol Metoclopramida Ondansetrona e dolasetrona Procainamida Nitroprussiato de sódio Vasopressina (hormônio antidiurético, arginina vasopressina, AVP) e desmopressina (DDAVP) Analgésicos adjuvantes Amantadina e memantina Amitriptilina e nortriptilina Gabapentina e pregabalina Tramadol Tapentadol Referências bibliográficas

Introdução Os fármacos adjuvantes podem ser amplamente descritos como fármacos que não estão

dentro da categoria de uso clínico comum, mas que proporcionam um benefício além daquele proporcionado por fármacos mais comumente usados, ou como fármacos que não são tão facilmente caracterizados, visto que desempenham um papel de suporte na produção de anestesia e analgesia. Alguns dos fármacos descritos neste capítulo poderão ocupar um lugar de destaque, à medida que aumentam as evidências que sustentam o seu uso, enquanto outros podem continuar sendo não convencionais, restritos à terapia de segunda ou de terceira linha ou serem abandonados com a identificação de fármacos alternativos. Este capítulo é dividido em adjuvantes não analgésicos e analgésicos adjuvantes.

Adjuvantes não analgésicos ■ Dantroleno O dantroleno é um relaxante muscular de ação periférica, que produz relaxamento da musculatura esquelética por meio de antagonismo do receptor de rianodina.1,2 Existem três isoformas de receptores de rianodina, e acredita-se que RYR1 seja predominante no músculo esquelético. Os receptores localizam-se nas membranas das organelas (i. e., mitocondrial, retículos endoplasmático e sarcoplasmático e nuclear). O mecanismo de ação do dantroleno não está totalmente elucidado, porém o seu principal efeito consiste em reduzir a liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático para dentro do citoplasma, dissociando, assim, o acoplamento excitação-contração. Suas propriedades como relaxante muscular limitam-se ao músculo esquelético, embora se tenha relatado a ocorrência de depressão cardíaca em cães quando o fármaco foi administrado em altas doses (superiores a 5 mg/kg) ou em associação com verapamil.3 Em doses intravenosas (IV) (1 a 5 mg/kg) terapêuticas administradas a cães e a gatos, a ventilação minuto durante a anestesia geral é reduzida por meio de diminuição da frequência respiratória e do volume corrente.4,5 A dantroleno está principalmente indicado para o tratamento e a prevenção de hipertermia maligna (HM)6-12 e rabdomiólise,13-17 e surgiu um interesse recente pelo seu possível papel na citoproteção.1,2 Pouco depois dos primeiros relatos de HM em seres humanos18,19 e suínos,20,21 o uso bem-sucedido do dantroleno para a prevenção e tratamento da HM foi publicado com os experimentos realizados em suínos.12 Desde então, foi usado no tratamento da HM em cães7 e equinos.10 O dantroleno é usado na prevenção e no tratamento da rabdomiólise por esforço em equinos,14,16 embora se tenha também relatado o seu uso na rabdomiólise em um cão13 e no tétano em gatos.17 Nos equinos, a administração de aproximadamente 2 a 4 mg/kg por via oral (VO), 60 a 90 min antes do exercício, tem sido efetiva na prevenção da rabdomiólise

por esforço em cavalos propensos ao distúrbio.14,16 O dantroleno sofre metabolismo hepático, principalmente hidroxilação, no cão e no cavalo. Os metabólitos e até 1% do fármaco inalterado são excretados na urina e na bile.2224

As doses em equinos são as seguintes: dose de ataque de 1,9 mg/kg IV, seguida de dose oral de 2,5 mg/kg, a cada 60 min,23 ou 4 mg/kg VO.10,24 As doses em cães e gatos são as seguintes: 1 a 3 mg/kg IV (extremidade inferior da faixa posológica para relaxamento muscular e extremidade superior para tratamento da hipertermia maligna); 5 a 6 mg/kg VO 1 vez/dia como profilaxia. As doses em suínos são as seguintes: 1 a 3 mg/kg IV para tratamento da hipertermia maligna; 5 mg/kg VO para profilaxia. O dantroleno está disponível em solução de 0,33 mg/mℓ para injeção e em cápsulas de 100 mg. As soluções de dantroleno reconstituído são sensíveis à luz e permanecem estáveis por 6 h.2

■ Doxapram O agente analéptico (estimulante do sistema nervoso central) doxapram tem uma longa história de uso em medicina veterinária e tem sido aplicado em uma ampla variedade de situações, incluindo despertar da sedação/anestesia,25-27 reanimação cardiopulmonar,28-30 estimulação da respiração em recém-nascidos e após depressão respiratória induzida por fármacos31-39 e avaliação da função laríngea.40-42 O mecanismo de ação que leva à estimulação respiratória provavelmente consiste em uma combinação de efeitos centrais e periféricos.43-45 Estudos eletrofisiológicos realizados em cães e gatos mostraram um aumento da atividade dos núcleos respiratórios do bulbo quando são administradas doses terapêuticas de doxapram.43 À medida que a dose foi aumentada, ocorreu estimulação cortical, seguida de convulsões. Foi citada margem de segurança de 20 a 60:1 antes do início da estimulação central e das convulsões. Evidências experimentais sugerem que a estimulação da respiração é dependente da dose, ocorrendo ativação dos receptores aórticos e carotídeos periféricos com doses (0,05 a 0,25 mg/kg IV) abaixo daquelas usadas clinicamente.44 Com o aumento da dose (0,5 a 5 mg/kg IV), ocorre estimulação dos neurônios do tronco encefálico respiratórios e não respiratórios.44 Há evidências limitadas de uma variabilidade entre espécies na dose efetiva de doxapram para estimulação respiratória versus reatividade do SNC. O doxapram em baixas doses é bemsucedido na produção de estimulação respiratória em gatos antes da ocorrência de estimulação cardiovascular ou do SNC;43-45 entretanto, doses mais altas podem ser necessárias em outras espécies. Não se sabe ao certo até que ponto essa dependência da dose ocorre em cães e equinos, e são observadas evidências de reatividade do SNC em

doses efetivas para estimulação respiratória.31,32,46,47 Os mecanismos moleculares subjacentes ao controle periférico e central da respiração constituem uma área de pesquisa ativa. Evidências recentes sugerem a participação de canais de potássio com domínios e dois poros, e esses canais também podem estar envolvidos no mecanismo da anestesia inalatória.48-50 Consultar Yost (2006) para uma revisão completa.51 O doxapram tem a capacidade de aumentar significativamente o volume minuto por meio do aumento da frequência respiratória e do volume corrente, levando ao termo descritivo de “ventilador farmacológico”.52 Todavia, seus efeitos são de curta duração, refletindo o rápido declínio dos níveis plasmáticos após a administração de bolus intravenoso.53 O doxapram sofre metabolismo hepático em cães, com excreção renal dos metabólitos. Observa-se um perfil farmacocinético semelhante em equinos, com rápido declínio dos níveis plasmáticos após a administração de bolus IV, extenso metabolismo hepático e excreção renal dos metabólitos.54 A administração de doxapram também resulta em discreta elevação da pressão arterial e da frequência cardíaca em seres humanos.52 Embora as alterações cardiovasculares sejam de curta duração em animais saudáveis (i. e., de vários minutos), um relato de seu uso em cães com hipovolemia induzida por hemorragia controlada mostrou elevações duradouras do débito cardíaco e da pressão arterial por até 1 h.47 O doxapram não induz arritmias cardíacas em cães anestesiados com halotano ou cicloproprano, mesmo na presença de epinefrina e hipercapnia.55 Em cavalos adultos saudáveis e naqueles com doença respiratória experimentalmente induzida, a administração de uma dose de 0,3 mg/kg (IV) resultou em aumento de cerca de 50% na frequência respiratória e volume corrente.56 A duração da ação não foi descrita. Durante a anestesia com halotano, precedida de acepromazina e tiopental em pôneis, a adição de doxapram (0,05 mg/kg/min) resultou em retorno da pressão de dióxido de carbono arterial (PaCO2) e do pH para níveis quase normais, com elevação da frequência respiratória (o volume corrente não foi medido).31 Durante a infusão de doxapram, foi observada uma elevação da pressão arterial média de aproximadamente 20%, sem aumento associado na frequência cardíaca. É interessante assinalar que a infusão de doxapram foi associada a uma redução no plano de anestesia, exigindo um aumento na inalação de halotano. Em gatos anestesiados com uma preparação de alfaxalona/alfadolona, a administração de doxapram (7,5 mg/kg IV) resultou em um aumento de 181% do volume minuto, que durou vários minutos.33 Foi observado um padrão semelhante em gatos anestesiados com tiopental.33 Nessa dose, as frequências cardíacas aumentaram por vários minutos durante a anestesia com tiopental e Saffan® até cerca de 15 a 20% acima do período pré-doxapram. A

recuperação foi mais rápida no grupo do Saffan® com a adição de doxapram, enquanto não foi observada nenhuma alteração no grupo do tiopental. O uso do doxapram em pacientes com história de convulsões é controverso.51 Embora se tenha estabelecido que a atividade cortical aumenta de maneira dependente da dose, não se sabe ao certo se isso constitui uma atividade facilitatória da convulsão. É preciso ter cuidado quando se administra doxapram em pacientes com história de convulsões. Como sempre, o uso de uma dose apropriada (i. e., para produzir o efeito desejado) é de importância crítica. A medicina neonatal de potros e bezerros e a avaliação da função laríngea em cães constituem duas áreas de uso ativo do doxapram. Dados retrospectivos de uma coorte de potros com encefalopatia hipóxico-isquêmica (síndrome de mal ajustamento neonatal) revelaram que o doxapram 0,02 a 0,05 mg/kg/min IV é mais efetivo do que a cafeína (dose de ataque de 7,5 a 12 mg/kg, seguida de 2,5 a 5 mg/kg/dia VO por sonda nasogástrica) para reduzir a PaCO2 durante pelo menos 12 h.35 Entretanto, os potros permaneceram com acidemia, sem elevação significativa do pH. A redução da PaCO2 foi obtida com um aumento do volume corrente, visto que a frequência respiratória não aumentou. Não foi observado nenhum efeito sobre a frequência cardíaca, e não houve nenhuma diferença nas taxas de mortalidade. Esses dados estão de acordo com um estudo retrospectivo anterior realizado em potros saudáveis, mostrando que a cafeína não tem nenhuma vantagem em relação ao soro fisiológico na correção da acidose respiratória provocada pela anestesia com isofluorano.34 Além disso, um esquema de doxapram de uma dose de 0,5 mg/kg seguida de 0,03 mg/kg/min foi tão efetivo quanto uma dose de 0,5 mg/kg seguida de 0,08 mg/kg/min. Giguere et al., também relataram melhora da pressão de oxigênio arterial (PaO2) após a administração de doxapram, em comparação com controle de soro fisiológico ou cafeína.34 Diferentemente dos cavalos adultos, os efeitos do doxapram sobre a função cardiovascular foram diferentes, e foi observado um pequeno aumento, porém significativo da frequência cardíaca em potros saudáveis, independentemente da dose de doxapram. O mecanismo de aumento da ventilação também foi diferente; houve aumento do volume minuto em potros saudáveis em consequência do aumento da frequência respiratória, e não do volume corrente. O doxapram também resultou em elevação modesta da pressão arterial média de aproximadamente 10 mmHg. Nos bezerros, uma comparação do doxapram (2 mg/kg IV) com a teofilina (7 mg/kg IV) mostrou elevação acentuada da frequência respiratória com o doxapram, mas não com a teofilina, resultando em duplicação da frequência respiratória em 10 min após a administração do fármaco, seguida de declínio contínuo nas próximas 2 h (que foi o término do período de registro). O efeito sobre a PaCO2 (diminuição máxima de aproximadamente 20 mmHg) e a PaO2 (elevação máxima de aproximadamente 15 mmHg)

alcançou um pico em 30 s após administração, seguido de retorno uniforme para valores basais no decorrer do período de registro. Pequenas elevações na frequência cardíaca (120 a 155 bpm) e na pressão arterial sistólica sistêmica (105 a 112 mmHg) também foram observadas sem alteração significativa do débito cardíaco. Foi observada uma alteração maior (aumento de 20 mmHg) na pressão arterial pulmonar sistólica. Os autores concluíram que a estimulação respiratória transitória após a administração de doxapram pode ser benéfica em bezerros recém-nascidos, quando não é possível a ventilação com pressão positiva. É interessante assinalar que uma revisão sistemática do uso do doxapram em lactentes humanos não identificou uma vantagem clara associada ao doxapram em comparação com o soro fisiológico,57 e há evidências de que o doxapram possa causar dano cortical, devido a uma redução do fluxo sanguíneo cerebral.58-60 Uma comparação dos efeitos do doxapram sobre a função laríngea em cães normais e em cães com paralisia laríngea verificou que o doxapram era útil para diferenciar as duas populações.41 Após a medicação pré-anestésica com acepromazina (0,022 mg/kg IM em cães doentes e 0,2 mg/kg IM em cães normais), com butorfanol (0,44 mg/kg IM), os animais foram pré-oxigenados durante 5 min, e a anestesia geral foi induzida com isofluorano administrado com máscara. O doxapram foi administrado em uma dose de 1,1 mg/kg IV após indução e registro de vídeo em condições basais. Em condições basais, a área da fenda glótica normalizada foi significativamente maior em cães com paralisia da laringe durante a inspiração e a expiração. Após a administração de doxapram, a área da fenda glótica normalizada na inspiração foi reduzida significativamente em cães com paralisia laríngea, em comparação com cães normais, e a área durante a expiração foi significativamente maior em cães com paralisia laríngea. Esses resultados refletem o movimento paradoxal das cartilagens aritenóideas em cães doentes, com colapso interno das cartilagens aritenóideas à medida que é produzida uma pressão torácica subatmosférica. As alterações notáveis observadas possibilitaram o diagnóstico, mas também levaram os autores a assinalar a necessidade de intubar potencialmente a via respiratória para fornecer oxigênio. Outro grupo de pesquisadores utilizou um protocolo anestésico diferente, que consistiu na seguinte medicação pré-anestésica: butorfanol, 0,22 mg/kg IV, acepromazina 0,05 mg/kg SC e glicopirrolato, 0,005 mg/kg SC. A anestesia foi induzida com propofol para obter o efeito desejado, e o doxapram foi administrado na dose de 2,2 mg/kg IV. Os resultados foram diferentes, visto que a administração de doxapram resultou em movimento significativo das cartilagens aritenóideas, que não foi observado por Tobias et al.41 Infelizmente, como nenhum grupo de animais doentes foi usado como comparação no estudo de Miller et al. (2002),40 não é possível determinar possíveis diferenças entre as populações doentes e saudáveis.

Nos equinos, a função laríngea tem sido avaliada por meio das seguintes técnicas comparadas com animais em estação em repouso com contração muscular: repouso sem contração muscular, oclusão manual das narinas, após exercício (conduzindo a meio galope), deglutição, doxapram (40 mg/kg IV) e xilazina (0,5 mg/kg IV).42 Subjetivamente, o doxapram resultou em aumento da frequência respiratória em cerca da metade dos cavalos examinados (n total = 7), porém a técnica mais bem-sucedida para a estimulação de respirações profundas foi a oclusão manual das narinas. Um levantamento de 600 veterinários na internet em clínicas de pequenos animais, com ou sem certificado em cuidados críticos e medicina de emergência ou anestesia, mostrou que, enquanto o doxapram era frequentemente disponível tanto para especialistas quanto para clínicos gerais (74 e 81%, respectivamente), uma porcentagem significativamente maior de clínicos gerais tinha usado o fármaco durante a reanimação cardiopulmonar (RCP) e cerebral (29 e 70%, respectivamente).30 Isso contrasta acentuadamente com as diretrizes atuais de RCP baseadas em evidências, nas quais o doxapram não é mencionado.28 Evidências experimentais em lactentes humanos e animais indicam que o doxapram pode reduzir o fluxo de oxigênio cerebral, comprometendo o aporte de oxigênio cortical e podendo resultar em dano cerebral a longo prazo.58-61 O uso do doxapram, na dose de 0,1 a 0,2 mg/kg IV, também foi sugerido para facilitar a recuperação da anestesia geral em equinos, quando apropriado, aumentando o nível de despertar e estimulando a respiração, acelerando, assim, a redução das concentrações alveolares dos agentes inalatórios.62 Outras espécies nas quais foi registrado o uso do doxapram incluem bovinos (uma dose de 1 mg/kg IV foi efetiva para acelerar a recuperação de xilazina), camelos (uma dose de 0,05 a 0,13 mg/kg IV foi efetiva para acelerar a recuperação da xilazina em camelos bactrianos), lhamas (a dose de 2,2 mg/kg IV não foi efetiva para reverter a xilazina) e elefantes-marinhos do sul (nos quais causou aparentemente estimulação do SNC em uma dose de 5 mg/kg quando usada para ajudar na recuperação de uma variedade de associações de fármacos; por conseguinte, os autores recomendam uma dose de 2 mg/kg).63-66

■ Famotidina e omeprazol A secreção ácida do estômago é iniciada nas células parietais pela gastrina, receptores de histamina tipo 2 (H2) e muscarínicos (M3). A ativação dos receptores resulta em aumento da atividade da bomba de prótons no lado luminal da célula por meio de vias dependentes de cálcio ou de cAMP. Vários antagonistas dos receptores H2 (famotidina, ranitidina e cimetidina) têm sido usados clinicamente. A famotidina e a ranitidina são 20 a 50 e 4 a 10 vezes mais potentes do que a cimetidina, respectivamente. Em geral, o uso peroperatório contrabalança o risco de ulceração gastrintestinal, e as indicações comuns consistem em

úlceras gástricas e do abomaso relacionadas com estresse ou AINE em bezerros, potros e cavalos e após regurgitação durante a anestesia em cães. Em um estudo cruzado de pequeno porte envolvendo cinco cavalos saudáveis, uma comparação da famotidina com ranitidina verificou um alto grau de variação individual no pH do líquido gástrico após a administração de um dos fármacos em uma faixa posológica.67 Cada cavalo recebeu famotidina (0,5 mg/kg, 1 mg/kg e 2 mg/kg) e ranitidina (4,4 mg/kg e 6,6 mg/kg) por sonda nasogástrica. No caso da famotidina, o pH do líquido gástrico aumentou acima de 6 em três dos cinco cavalos que receberam a dose de 0,5 mg/kg, em todos os cinco cavalos que receberam 1 mg/kg e em três dos cinco cavalos aos quais foi administrada a dose de 2 mg/kg. Quanto à ranitidina, o pH do líquido gástrico aumentou acima de 6 em quatro de cinco cavalos que receberam 4,4 mg/kg e em todos os cinco cavalos aos quais foi administrada a dose de 6,6 mg/kg. A ranitidina demonstrou tendência a produzir elevação mais longa do pH do líquido gástrico (166 ± 106 min versus 98 ± 110 min; média ± DP). A resposta aos fármacos variou de modo considerável entre os cavalos, levando os autores a sugerir uma dose de 6,6 mg/kg de ranitidina. Estudos semelhantes em potros de 2 a 6 dias de idade e em bezerros alimentados com leite resultaram em doses recomendadas de ranitidina de 6,6 mg/kg VO, 3 vezes/dia, e 50 mg/kg VO, 3 vezes/dia,respectivamente.68,69 Entretanto, evidências mais recentes ressaltam o risco de extrapolar a necessidade de antagonistas de H2 em potros em estado crítico, sem determinar o pH gástrico.70 Esse estudo constatou que quase 50% dos potros hospitalizados apresentaram pH gástrico basal que estava alcalino. Não se dispõe de dados para sustentar o uso da famotidina em bezerros e potros. O omeprazol é um inibidor da bomba de prótons, que atua sobre a bomba de prótons localizada na superfície luminal das células parietais gástricas. Evidências clínicas (descritas adiante) sugerem que o omeprazol é mais efetivo para elevar o pH gástrico acima de 3, um nível que está correlacionado com a cicatrização de úlceras gástricas e duodenais em seres humanos.71 A dose em cães e em gatos é de 1 a 2,5 mg/kg VO, 1 vez/dia,72,73 e de 1 a 4 mg/kg VO,1 vez/dia, em cavalos e potros, sendo a extremidade inferior da faixa posológica para prevenção de úlceras, e a extremidade superior, para tratamento.74-76 O uso peroperatório da famotidina em cães e gatos é comum em casos de suspeita de ulceração gastrintestinal ou em pacientes com risco de ulceração. As doses recomendadas de famotidina em cães e gatos variam amplamente, devido aos dados clínicos limitados. Nos cães, foram recomendadas doses de 0,1 a 0,5 mg/kg, 2 vezes/dia, ou 1 mg/kg, 1 vez/dia (VO, SC, IM). Nos gatos, foi sugerida uma dose de 0,2 a 0,25 mg/kg, 1 ou 2 vezes/dia (IM, SC, VO, IM). A administração por via intravenosa lenta é recomendada em gatos, com base em evidências empíricas de que a injeção rápida (i. e., menos de 5 min) esteja associada à hemólise, em consequência do álcool benzílico, componente da

formulação injetável. Entretanto, um estudo retrospectivo, em que a política do hospital consistia na administração de famotidina IV durante 5 min, não identificou qualquer efeito sobre o volume globular (VG).77 O mesmo estudo não mostrou nenhuma alteração do VG quando gatos receberam famotidina SC. Existem dados clínicos limitados que demonstraram a eficácia da famotidina em cães, e o omeprazol pode ser superior para a elevação do pH gástrico por um período de tempo útil.72,78 Um estudo recente conduzido em cães com gastrite induzida por exercício e úlceras gástricas clinicamente relevantes demonstrou ser a famotidina (cerca de 1 mg/kg VO, 1 vez/dia) superior à ausência de tratamento da prevenção de úlceras gástricas, porém inferior ao omeprazol (cerca de 0,85 mg/kg VO, 1 vez/dia).78 Em cães adultos saudáveis, a famotidina (0,5 mg/kg IV, 2 vezes/dia) resultou em elevação significativa do pH gástrico acima daquela obtida em controles com soro fisiológico e com a ranitidina, porém não produziu uma elevação tão alta do pH nem tão prolongada quanto o omeprazol (1 mg/kg VO, 1 vez/dia). O aumento da frequência de doses de famotidina para 3 vezes/dia não resultou em qualquer melhora.72 O uso pré-operatório do omeprazol (ou de seu enantiômero S, o esomeprazol) demonstrou resultados variáveis.79,80 Em um estudo, a administração de esomeprazol (duas doses a intervalo de 12 h, 1 mg/kg IV antes da indução da anestesia geral) resultou em refluxo menos ácido, porém não diminuiu a incidência de refluxo.79 Por outro lado, outro estudo relatando o uso pré-operatório do omeprazol (dose única de 1 mg/kg VO, pelo menos 4 h antes da indução da anestesia geral) mostrou uma redução no número de episódios de refluxo gastresofágico e regurgitação.80 É difícil fazer uma comparação direta entre esses achados, devido às diferenças no planejamento dos estudos. Zacuto et al. também tiveram outro grupo de tratamento, o esomeprazol (1 mg/kg IV) com cisaprida (1 mg/kg IV), que resultou em refluxo menos ácido e também em redução significativa do número de episódios de refluxo, em comparação com o grupo de controle e o grupo do omeprazol.79 Por conseguinte, não existe nenhuma resposta bem definida sobre a melhor escolha de terapia preventiva, porém é importante reconhecer que, embora a incidência do refluxo gastresofágico seja relativamente alta (até aproximadamente 50%),81,82 a incidência das complicações, como formação de estenoses esofágicas, é extremamente baixa.83 Existe uma preocupação teórica quanto à possibilidade de a terapia crônica com omeprazol resultar em alteração da fauna gástrica e em proliferação bacteriana excessiva, aumentando potencialmente o risco de pneumonia em pacientes com predisposição à regurgitação, como aqueles com megaesôfago. Outra preocupação potencial é o efeito do omeprazol na inibição do sistema do citocromo (CYP) P450, especificamente CYP2C19, responsável pelo metabolismo do diazepam.84,85 Atualmente, não existe nenhuma evidência de que isso tenha importância clínica em medicina veterinária, e a grande margem terapêutica do diazepam pode reduzir o risco de eventos adversos.

A famotidina está disponível em comprimidos de 10 mg (podem existir outras concentrações), suspensão de 8 mg/mℓ e solução de 10 mg/mℓ para injeção. O omeprazol está disponível em cápsulas de 20 e 40 mg e está aprovado na forma de pasta oral para equinos (370 mg/g de pasta).

■ Guaifenesina (GG, éter gliceril guaiacolato) A guaifenesina, originalmente derivada de árvores do gênero Guaiacum, é um relaxante musculoesquelético de ação central, com propriedades sedativas, que é principalmente coadministrada por via intravenosa com agentes anestésicos injetáveis para a indução e a manutenção da anestesia geral em equinos e ruminantes. Historicamente, era usada para essa indicação em seres humanos, além de seu papel no manejo do tétano. Tem sido usada na anestesia veterinária desde a década de 1960.86,87 Nos seres humanos, é atualmente usada de modo exclusivo como expectorante.88 O mecanismo ou mecanismos de ação da guaifenesina são, em grande parte, desconhecidos, porém as evidências obtidas na década de 1950 sugerem locais de ação tanto no cérebro (tronco encefálico e regiões subcorticais) quanto na medula espinal (inibição dos reflexos polissinápticos) afetados pela depressão dos interneurônios, resultando em sedação e relaxamento muscular.87,89 Há evidências extremamente limitadas sugerindo que a guaifenesina tenha propriedades analgésicas, porém nenhuma foi tipicamente atribuída ao fármaco.87 Apresenta ampla margem terapêutica, e as doses que resultam em efeitos colaterais cardiopulmonares, como hipotensão, depressão respiratória e padrão de respiração apnêustica, são aproximadamente 70 a 80% mais altas do que aquelas necessárias para induzir decúbito em equinos (75 a 150 mg/kg).86-90 Os efeitos cardiovasculares são leves quando a guaifenesina é administrada em doses terapêuticas, sem nenhuma alteração da frequência cardíaca, débito cardíaco, pressão venosa central ou frequência cardíaca, e observa-se uma redução de cerca de 20% na pressão arterial média.91,92 De modo semelhante, os efeitos respiratórios são mínimos, e as alterações fisiológicas associadas ao decúbito parecem ter maior efeito do que qualquer depressão respiratória produzida pela guaifenesina.93 O volume minuto é mantido em consequência de aumento da frequência respiratória que compensa redução do volume corrente, indicando um efeito poupador sobre os músculos respiratórios.91 Um estudo sofisticado realizado por Schatzmann et al. demonstrou alterações mínimas da PaO2 quando foi administrada guaifenesina (100 mg/kg, IV) a cavalos que permaneceram em posição quadrupedal.93 A sobredose em equinos resulta em um período de espasmo muscular transitório e midríase à medida que a dose se aproxima de 180 mg/kg (IV), seguidos de perda do reflexo palpebral, com morte em consequência de parada respiratória ou cardíaca com uma dose de

aproximadamente 460 mg/kg.86 A guaifenesina sofre metabolismo hepático, com glicuronidação seguida de excreção renal. Foi identificada uma diferença sexual na eliminação do fármaco em pôneis, com eliminação mais rápida nas fêmeas.94 A guaifenesina é comumente preparada na forma de solução a 5 a 15% com soro fisiológico a 0,9% ou solução de dextrose a 5%, embora também possa ser solubilizada em água estéril. Existe um risco de hemólise dependente da concentração, que parece não estar relacionado com a velocidade da administração.87,93,95 Foi documentada a ocorrência de hemólise em equinos quando a concentração excede uma solução a 15%, bem como em bovinos quando excede 5%.87,93,96 A formação de trombos intravasculares também está relacionada com a dose, e concentrações acima de 7% estão associadas a um risco aumentado de trombose.93,97,98 Esse efeito está relacionado à concentração da solução, e não à velocidade de sua administração, e foram relatadas alterações histológicas, incluindo perda endotelial com formação de coágulo de fibrina.97 Com uma solução a 10%, o trombo não é oclusivo.97 O fármaco tem tendência a precipitar da solução quando conservado abaixo da temperatura ambiente (22°C), porém essa precipitação é reversível com aquecimento suave, como imersão em banho-maria.86 A injeção perivascular foi associada à necrose tecidual,86 e recomenda-se a administração do fármaco por cateter IV. Foi também relatada a ocorrência de urticária atribuída à guaifenesina.99 No caso relatado, o cavalo também tinha recebido xilazina, cetamina, butorfanol, bupivacaína e isofluorano, porém o momento de aparecimento da urticária e a ausência de recidiva durante dois episódios subsequentes de anestesia sem guaifenesina aumentaram o índice de suspeita.

■ Maropitant O maropitant é um agonista do receptor de neurocinina (NK1), licenciado como antiemético para cães e gatos. Liga-se altamente às proteínas e sofre extenso metabolismo hepático por enzimas CYP3A.100 A biodisponibilidade oral é de cerca de 20% em cães e de 50% em gatos.101 A ação de antagonismo do maropitant sobre os receptores de neurocinina diminui a ligação do neurotransmissor neuropeptídico, a substância P. A substância P está estreitamente envolvida nos núcleos do tronco encefálico (área postrema, núcleo do trato solitário e núcleo posterior do nervo vago), que facilitam o vômito.102 O efeito adverso mais frequentemente observado e relatado consiste em dor no local da injeção.103 A preparação comercial de maropitant é formulada com β-ciclodextrina para aumentar a solubilidade, e a relação de ligação é dependente da temperatura. Como há suspeita de que o maropitant não ligado provoque dor durante a injeção, a refrigeração da solução foi investigada como meio de reduzir essa reação. Uma injeção na temperatura de

4°C foi associada a uma resposta leve (“contração da pele, lambendo o pelo ou escavando no local de injeção”) em um entre 17 cães; os outros 16 cães não tiveram reação à injeção. Por outro lado, injeções na temperatura de 25°C foram associadas a uma resposta dolorosa em 9 de 17 cães, quatro dos quais tiveram reação moderada a grave (“vocalização de curta duração, saltos, estremecimento, latido prolongado ou agressão”).103 Esse padrão de respostas refletiu-se em pontuação concomitante na escala visual analógica (EVA), mostrando que uma temperatura de 25°C na injeção resultou em pontuação maior da EVA do que o maropitant a 4°C (ou soro fisiológico a 4°C e 25°C).103 Como antiemético, foi constatado ser o maropitant efetivo em cães e gatos em uma variedade de situações, incluindo cinetose, quimioterapia e gastrite inespecífica.101,104-109 A sua eficácia foi comparada de modo favorável com a metoclopramida, a clorpromazina e a ondansetrona com uma variedade de emetogênicos e condições clínicas.104,110 O maropitant, como fármaco específico para anestesia e analgesia, tem sido investigado pelas suas propriedades potenciais analgésicas 111-113 e pela sua eficácia na redução dos vômitos após medicação pré-anestésica com hidromorfona.114 Foi mostrado um efeito poupador de CAM, variando de 16 a 30%, em dois modelos nociceptivos: o clampeamento da cauda e a estimulação do ovário e ligamento ovárico.111113 A faixa de efeito poupador de CAM pode refletir-se nos diferentes modelos de estudo ou de doses usados em cada estudo, ou ambos. Uma dose de ataque de 5 mg/kg IV, seguida de 150 µg/kg/h, resultou em diminuição de 16% na CAM após estímulo com clampeamento da cauda durante a anestesia com sevofluorano em comparação com os controles.111 A administração de maropitant por via epidural não reduziu a CAM no mesmo modelo, e os autores sugeriram que os fatores que podem ter contribuído consistiram em dose inadequada, incapacidade de atravessar a dura-máter ou local restrito de ação.111 Em contrapartida, no modelo de estimulação do ovário e ligamento ovárico, uma dose intravenosa mais baixa de maropitant (1 mg/kg IV seguida de 30 µg/kg/h) resultou em diminuição de 24% na CAM do sevofluorano.112 O aumento da dose de maropitant para 5 mg/kg IV, seguida de infusão de 150 µg/kg/h, resultou em uma pequena redução adicional (não significativa) de 30% na CAM.112 Um estudo semelhante em gatos (com o mesmo modelo nociceptivo e agente anestésico), porém com um bolus IV único de maropitant (1 mg/kg) resultou em uma redução de 15% da CAM.113 O aumento da dose de maropitant não levou a uma redução adicional na CAM. Os supostos locais de ação antinociceptiva do maropitant são os receptores NK1 dos sistemas nervoso central e periférico, onde foram identificados receptores NK1 em nervos aferentes sensitivos,115 na medula espinal116 e no cérebro e vísceras.117 Evidências experimentais atuais com modelos nociceptivos viscerais e somáticos sugerem um papel potencial do maropitant como agente analgésico.

O efeito antiemético do maropitant foi documentado em cães e gatos aos quais foram administradas hidromorfona114 ou xilazina.101 Nos gatos, a administração de 1 mg/kg de maropitant 2 h antes da xilazina (0,44 mg/kg IM) reduziu significativamente os vômitos em 76%, 90% e 100% para as vias de administração por via subcutânea, via oral e intravenosa, respectivamente.101 Além disso, a administração oral de 1 mg/kg de maropitant 24 h antes da administração de xilazina resultou em uma redução de 66% nos eventos eméticos.111-113 Quando foi administrado 1 mg/kg de maropitant por via subcutânea 1 h antes da hidromorfona (0,1 mg/kg IM) a cães saudáveis, não ocorreram vômitos, ânsia de vômito e náuseas.114 Essa situação foi comparada com incidências de vômito, ânsia de vômito e náuseas de 66, 11 e 22%, respectivamente, no grupo de controle com soro fisiológico. Em comparação com o uso da acepromazina como estratégia para reduzir os vômitos o maropitant parece ser mais efetivo após a administração de hidromorfona.118 A eficácia antiemética do maropitant em uma ampla variedade de situações emetogênicas provavelmente reflete o seu local de ação central na via comum que rege o vômito. A formulação injetável (10 mg/mℓ) é efetiva em uma dose de 1 mg/kg SC em cães e gatos.

■ Metocarbamol O metocarbamol é um relaxante muscular de ação central, que inibe seletivamente os reflexos polissinápticos espinais e supraespinais por meio de sua ação sobre interneurônios, sem efeitos diretos sobre o músculo esquelético.119,120 É comumente usado em medicina humana para a dor lombar com componente muscular.121 Historicamente, o seu uso em medicina veterinária tem sido associado ao tétano,122-124 à toxicidade do metaldeído e piretrina/permetrina125-127 e à rabdomiólise por esforço.128,129 Mais recentemente, tem sido usado com sucesso no manejo do estiramento muscular agudo em associação com repouso, fisioterapia e anti-inflamatórios não esteroides (AINEs).130 A administração de doses mais altas pode resultar em sedação, e esse efeito deve ser considerado quando o fármaco é utilizado em associação com sedativos e agentes anestésicos. A farmacocinética foi estudada em cães131 e equinos.128,129,132 Concentrações séricas terapêuticas são obtidas rapidamente por via oral em cães e equinos.131,132 O metabolismo hepático extenso (desalquilação e hidroxilação seguidas de conjugação) é seguido da excreção principalmente urinária dos metabólitos.131 A guaifenesina é um metabólito do metocarbamol produzido em baixas concentrações em equinos.128,129 A dose recomendada de metacarbamol em gatos e cães é de 40 a 60 mg/kg (VO, IV), 3 vezes/dia durante um dia, seguida de 20 a 40 mg/kg (VO, IV), 3 vezes/dia, até obter a resolução dos sintomas.130 Doses mais altas podem resultar em toxicidade, e devem-se

considerar os efeitos potenciais da coadministração de fármacos com efeitos depressores no SNC.122,124,133 Uma série de casos relatou o uso de doses de 55 a 100 mg/kg IV, a cada 30 a 60 min, em cães com tétano, embora a sua eficácia seja questionada, quando comparada com a de outros relaxantes musculares/sedativos empregados.124 Foi relatada a administração retal do metocarbamol (55 a 200 mg/kg, até 330 mg/kg/dia VR, a cada 6 a 8 h) quando não se dispõe de formulação IV.133 Seu uso está associado a poucos efeitos colaterais, e, em um estudo conduzido em seres humanos, a incidência de eventos adversos foi semelhante àquela do placebo.121 A administração de metocarbamol em doses terapêuticas não resulta em alterações cardiopulmonares. A sobredose pode resultar em sedação e fraqueza muscular excessiva, porém qualquer efeito é de curta duração. O metocarbamol está disponível em comprimidos de 500 e 750 mg e como solução de 100 mg/mℓ para injeção.

■ Metoclopramida A metoclopramida está principalmente indicada como antiemético em pequenos animais. É menos efetiva do que o maropitant, que atua para bloquear a via final de controle do vômito.110 A metoclopramida também foi investigada para uso na promoção do esvaziamento gástrico e redução do refluxo gastresofágico.134,135 A metoclopramida aumenta o tônus do esfíncter gastresofágico136,137 e promove o peristaltismo do duodeno, juntamente com melhora na coordenação antropiloroduodenal; em seu conjunto, esses efeitos promovem o esvaziamento gástrico em cães saudáveis.138 As evidências que sustentam o seu uso na promoção do esvaziamento gástrico em casos clínicos são limitadas.134 Após uma dose de 0,3 mg/kg em cães, 1 semana após gastropexia para correção da síndrome de dilatação volvulogástrica, a metoclopramida não promoveu o esvaziamento gástrico.134 Em uma comparação de duas doses de metoclopramida (dose de ataque de 1 mg/kg; seguida de 1 mg/hg/h IV, ou 0,4 mg/kg, seguida de 0,3 mg/kg/h IV) em cães submetidos à cirurgia ortopédica, as doses baixas e altas de metoclopramida resultaram em diminuição do risco de refluxo gastresofágico de 34 e 54%, respectivamente.135 Tendo em vista o baixo risco de sequelas clínicas após refluxo gastresofágico, o uso para terapia preventiva não está bem definido. O fármaco tem múltiplos locais de ação, incluindo antagonismo dos receptores de serotonina no SNC e antagonismo do receptor de dopamina (D2) no SNC e no trato gastrintestinal.102 O metabolismo é principalmente hepático, com elevado efeito de primeira passagem.139 As doses recomendadas para cães e gatos são de 0,25 a 0,5 mg/kg IV, IM ou VO, a cada 8 a 12 h (podem ser necessárias doses mais altas nos casos refratários). Para uma infusão de velocidade contínua (IVC), recomendam-se uma dose de

ataque de 0,4 mg/kg e, em seguida, 0,3 a 1 mg/kg/h. A administração de metoclopramida a cavalos e pôneis demonstrou ter eficácia limitada.140 Doses de 0,06 a 0,25 mg/kg causaram inquietação, sedação e, em certas ocasiões, cólica. Devido à falta de evidências que sustentem um efeito benéfico no intestino grosso, a metoclopramida não está indicada para uso nas cólicas.141 O uso da metoclopramida em bovinos é limitado, visto que a dose efetiva para aumentar a motilidade do retículo (0,3 mg/kg IM) em animais saudáveis foi associada a sinais neurológicos (inquietação) e, em seguida, depressão.142 Os efeitos da dose efetiva relatada foram de curta duração e não ultrapassaram 20 min. De modo semelhante, nos bezerros, a metoclopramida (0,1 mg/kg IM) não foi superior a uma solução salina para aumentar a motilidade ou a velocidade de esvaziamento do abomaso.143 As formulações disponíveis incluem comprimidos de 5 e 10 mg, solução oral de 1 mg/mℓ e solução injetável de 5 mg/mℓ.

■ Ondansetrona e dolasetrona A ondansetrona e a dolasetrona são antagonistas dos receptores de serotonina (5-HT3) que são frequentemente administrados como antieméticos antes da quimioterapia.144 Foi constatado ser a ondansetrona altamente efetiva para os vômitos induzidos pela cisplatina em cães e induzidos pela doxorrubicina em furões.145 A cisplatina induz vômitos por meio de sua atividade periférica sobre a mucosa gástrica, ativando os receptores 5-HT nos aferentes vagais e simpáticos para o centro emético do tronco encefálico,146,147 e essa via é bloqueada pela ondansetrona e dolasetrona em nível do centro emético. Evidências empíricas sugerem um tratamento bem-sucedido da náuseas e dos vômitos associados às doenças renal e hepática, bem como à gastrenterite.148 Diferentemente do maropitant, que atua na via comum final que controla os vômitos, a ondansetrona é menos efetiva contra uma ampla variedade de emetogênicos. Por exemplo, foi demonstrado ser menos efetiva do que o maropitant na prevenção dos vômitos resultantes da administração de apomorfina a cães.110 Evidências da literatura clínica humana não sugerem uma diferença de eficácia entre a dolasetrona e a ondansetrona.149 Uma comparação semelhante não foi estudada em veterinária clínica. Embora não se tenha relatado a ocorrência de efeitos adversos em cães e gatos, a United States Food and Drug Administration, em 2010, publicou uma comunicação de segurança, contraindicando o uso da dolasetrona injetável para a prevenção da náuseas e dos vômitos associados à quimioterapia em seres humanos.150 Essa contraindicação resultou de evidências de prolongamento do QT eletrocardiográfico e torsade de pointes associados à administração por via intravenosa do fármaco. A advertência não incluiu a

terapia oral. No cão, a dolasetrona sofre metabolismo hepático, produzindo o metabólito ativo, a dolasetrona reduzida. Tanto esse metabólito quanto o fármaco inalterado são excretados na urina e nas fezes.151 O metabolismo da ondansetrona é mediado pela CYP3A4 no fígado, com excreção dos metabólitos na urina e nas fezes.152 A dose de ondansetrona em gatos e cães é de 0,5 a 1 mg/kg (IV ou VO),2 vezes/dia ou 30 min antes da quimioterapia. Uma dose menor pode ser efetiva para reduzir os vômitos associados a outros emetogênicos. Por exemplo, a administração de 0,22 mg/kg IV reduziu a incidência de vômitos quando o fármaco foi coadministrado com dexmedetomidina em gatos.153 A dose de dolasetrona em cães e gatos é de 0,6 a 1 mg/kg 1 vez/dia (IV ou VO). As formulações disponíveis de ondansetrona incluem comprimidos de 4 e 8 mg, solução oral de 4 mg/5 mℓ e solução injetável de 2 mg/mℓ. A dolasetrona está disponível em comprimidos de 50 e 100 mg e solução de 20 mg/mℓ.

■ Procainamida A procainamida é um agente antiarrítmico de Classe 1a (classificações de Singh-Vaughan Williams e Keefe), com eficácia para o tratamento das taquiarritmias ventriculares (TV) e supraventriculares. Trata-se de um derivado do anestésico local procaína (ligação éster substituída por amida). Por meio do bloqueio dos canais de sódio, a procainamida reduz a taxa de elevação da fase 0 do potencial de ação cardíaco, eleva o potencial limiar e prolonga o período refratário. Além disso, exerce alguns efeitos anticolinérgicos. Com frequência, é usada como terapia de segunda linha para a TV resistente à lidocaína. Uma comparação entre a procainamida e a lidocaína no manejo das arritmias ventriculares pós-operatórias (i. e., contrações ventriculares prematuras (CVPs), taquicardia ventricular, fenômeno R sobre T e CVPs multiformes) em uma população mista de cães de raça de porte médio a grande mostrou que cada fármaco é igualmente efetivo na restauração do ritmo sinusal.154 A procainamida foi administrada em uma dose de ataque de 10 mg/kg IV durante 5 min e, em seguida, infusão de 20 µg/kg/min IV. Nenhum efeito colateral foi associado à administração de procainamida. A eficácia no tratamento da fibrilação atrial provém principalmente de modelos experimentais de estudos de arritmia induzida em cães, com um relato de caso recente.155,156 O relato de caso clínico descreve o uso bem-sucedido da procainamida (14,3 mg/kg IV durante 15 min) no tratamento da fibrilação atrial associada a pericardiocentese e que não respondeu a uma dose única de lidocaína (1,2 mg/kg IV). A administração de procainamida resultou em cardioversão para um ritmo sinusal.155 Em cães da raça Boxer, dois estudos relataram a eficácia dos agentes antiarrítmicos em relação ao tempo mediano de sobrevida157 e resposta das arritmias ventriculares.158 Caro-Vadillo et al. não observaram

um efeito significativo sobre o tempo mediano de sobrevida (a idade e a presença de síncope foram previsões mais adequadas) entre os seguintes tratamentos: sotalol, mexiletina-atenolol ou procainamida (20 a 26 mg/kg VO, a cada 8 h).157 Meurs et al., em uma comparação entre procainamida (20 a 26 mg/kg VO, a cada 8 h), atenolol, sotalol ou mexiletina-atenolol, verificaram que apenas o sotalol ou a mexiletina-atenolol foram efetivos para reduzir o número e a gravidade de CVP e frequência cardíaca.158 Entretanto, nenhum dos tratamentos resultou em melhora na incidência de síncope, embora seja possível que o estudo não tenha tido poder suficiente para esse desfecho. Há evidências limitadas de seu uso em equinos ou outras espécies, e existe um relato de fracasso terapêutico para extrassístoles ventriculares e TV com uma dose total de 20 mg/kg, em duas doses fracionadas administradas a intervalo de 2 h.159 A farmacocinética da procainamida foi descrita em equinos, nos quais, diferentemente daquilo observado em cães,160 o metabólito ativo NAPA (N-acetilprocainamida) é produzido e exerce atividade antiarrítmica de classe III (i. e., prolonga o potencial de ação cardíaco).161 Em cães uma dose efetiva é de 10 mg/kg IV durante 10 min, seguida de infusão de 20 µg/kg/min.154 Uma injeção em bolus única ou repetida de 1 a 2 mg/kg IV por ser efetiva em cães para o manejo da atividade ectópica ventricular de curta duração associada a manipulação cirúrgica ou liberação de catecolaminas. A dose recomendada em gatos é uma dose de ataque de 1 a 2 mg/kg lentamente por via IV, seguida de infusão de 10 a 20 µg/kg/min. A toxicidade manifesta-se na forma de alargamento do complexo QRS, arritmias adicionais e hipotensão.158 A procainamida está disponível em comprimidos de 250, 375 e 500 mg e em solução de 100 mg/mℓ para injeção.

■ Nitroprussiato de sódio O nitroprussiato de sódio (SNP) produz dilatação arterial e venosa por meio da liberação do potente vasodilatador endógeno, óxido nítrico (NO). Há também produção de íons cianeto como subproduto. Para uma análise aprofundada da fisiologia do óxido nítrico, o leitor deve consultar Forstermann e Sessa.162 Após a administração de SNP, os efeitos vasculares são mediados localmente no endotélio vascular e músculo liso subjacente. O SNP produz NO (a partir da reação com oxi-hemoglobina, gerando também metemoglobina), que, por sua vez, ativa a guanilil ciclase solúvel, com consequente aumento dos níveis de GMP cíclico na musculatura vascular. O GMP cíclico inibe a entrada de cálcio nas células musculares lisas e aumenta a captação de cálcio celular pelo retículo endoplasmático liso, com o consequente efeito de vasodilatação. Quando administrado por infusão intravenosa, o SNP tem rápido início e término da

ação, possibilitando a titulação para produzir seu efeito. Foi relatada a administração de doses de 1 a 5 µg/kg/min em cães e gatos.163 O monitoramento rigoroso da pressão arterial sistêmica e da frequência e ritmo cardíacos é essencial, devido ao risco de hipotensão inadvertida ou taquicardia reflexa. A rápida duração do SNP é devida à meia-vida curta do NO, que é rapidamente oxidado a nitrito.164 Os íons cianeto, produzidos com NO a partir do SNP, são metabolizados pelo fígado a tiocianato, que é então excretado pelos rins.165 Nos casos de sobredose ou insuficiência hepática ou renal, existe um risco de toxicidade do cianeto e tiocianato. A toxicidade manifesta-se na forma de taquicardia, hiperventilação, acidose metabólica (visto que o cianeto se liga à citocromo oxidase, inibindo, assim, o metabolismo aeróbico) e convulsões. A toxicidade pode ser tratada com tiossulfato (6 mg/kg/h IV em cães).166-168 As soluções de SNP são sensíveis à luz, e a solução de cor laranja-claro/amarelo-palha quando fresca (reconstituída com soro glicosado a 5%) adquire uma cor castanho-escuro/azul com exposição à luz. A solução deve ser descartada quando isso ocorre. O nitroprussiato está disponível em solução de 10 e 25 mg/mℓ para injeção após diluição.

■ Vasopressina (hormônio antidiurético, arginina vasopressina, AVP) e desmopressina (DDAVP) A reanimação cardiopulmonar e a hipotensão refratária constituem as principais indicações peroperatórias para o uso da vasopressina.28,169-175 Trata-se de um potente vasoconstritor, que atua nos receptores V1a do músculo liso vascular, embora também exerça atividade nos receptores V1b (da adeno-hipófise) e V2 (dos ductos coletores renais).176 Seu análogo, a desmopressina (DDAVP), é usado no tratamento do diabetes insípido central177-179 e no manejo da coagulopatia.180-182 A vasopressina é um vasopressor alternativo da epinefrina para uso durante a RCP, embora não se tenha nenhuma evidência clara para sustentar o seu papel como substituto da epinefrina. As diretrizes recentes para RCP veterinária28,173 e humana171 sugerem o seu uso (0,8 U/kg IV) em ciclos alternados de RCP, em lugar da epinefrina. Devido à falta de atividade nos receptores β1-adrenérgicos, pode reduzir o risco de isquemia cardíaca, em comparação com a epinefrina, embora ainda provoque vasoconstrição coronária. Outra vantagem potencial em relação à epinefrina é que os receptores V1, diferentemente dos receptores α1-adrenérgicos, permanecem responsivos em um ambiente ácido.183 Os relatos de seu uso clínico na literatura veterinária são mistos,170,174 e a vasopressina não demonstrou ter nenhum benefício em comparação com a epinefrina em uma comparação randomizada que utilizou uma técnica padronizada de RCP,174 porém foi associada a melhor taxa de retorno para a circulação espontânea em um estudo em ambiente

hospitalar.170 Metanálise demonstrou melhora potencial no retorno da circulação espontânea com o seu uso, embora os estudos que contribuíram tenham sido realizados predominantemente em modelos suínos de fibrilação ventricular.175 Uma revisão sistemática de três ensaios clínicos humanos não demonstrou nenhum benefício claro da vasopressina em comparação com a epinefrina.169 A vasopressina pode ser administrada por via endotraqueal, se necessário, e um estudo realizado em animais sugeriu que a mesma dose daquela recomendada para uso IV é efetiva.184 A partir da iniciativa da Reassessment Campaign on Veterinary Resuscitation (RECOVER),185 ficou evidente que existe uma ampla variabilidade nos projetos de estudos e relato de modelos animais de RCP, o que torna difícil estabelecer conclusões sólidas com base nas evidências experimentais atualmente disponíveis. Relatos informais sugerem o uso da vasopressina em casos de hipotensão refratária, embora a literatura veterinária disponível seja escassa, e os estudos realizados em seres humanos sejam contraditórios.172,186-188 Isso provavelmente é um reflexo da heterogeneidade dos estudos clínicos e experimentais.188 Foram sugeridas velocidades de infusão de 1 a 4 mU/kg/min e 0,1 a 2,5 mU/kg/min em cães e potros, respectivamente.172,186 Os usuários do fármaco devem estar atentos para o potencial de hipoperfusão prejudicial dos leitos vasculares que resulta da consequente vasoconstrição.189 O acetato de desmopressina, um análogo sintético da vasopressina com efeitos vasculares reduzidos, é utilizado no manejo peroperatório de pacientes com doença de von Willebrand181,190 e no manejo do diabetes insípido central.177179

A doença de von Willebrand, que é o defeito hereditário da hemostasia mais comum em cães, é classificada de acordo com três subtipos, sendo o tipo 1 o menos grave e o mais comum, particularmente em Doberman Pinschers.191 O manejo consiste em terapia não transfusional e transfusional, com base na gravidade da doença e na apresentação clínica. A terapia não transfusional consiste em manejo apropriado do paciente (i. e., boa técnica cirúrgica, minimizando o uso de fármacos com atividade antiplaquetária, manipulação cuidadosa) e DDAVP. A administração de 1 µg/kg SC ou IV190 30 min antes da cirurgia pode sustentar a hemostasia, porém a resposta é mais variável nos cães do que nos seres humanos.181,190 A administração de DDAVP por via intranasal ou no saco conjuntival é comumente usada, porém há evidências limitadas que sustentam a sua eficácia por essa via no tratamento da doença de von Willebrand. Outros usos relatados da DDAVP incluem suporte da hemostasia após administração de ácido acetilsalicílico antes da cirurgia192,193 e como medida profilática no manejo pósoperatório do diabetes insípido após hipofisectomia.182 A vasopressina injetável está disponível em solução de 20 U/mℓ. A DDAVP está

disponível em solução injetável de 4 µg/mℓ, em comprimidos de 0,1 e 0,2 mg, spray de 100 µg/mℓ e solução a 0,01% para administração intranasal.

Analgésicos adjuvantes ■ Amantadina e memantina A amantadina, um agonista da dopamina e antagonista do receptor N-metil-D-aspartato (NMDA), foi originalmente usada como agente antiviral,194,195 porém passou a ser usada clinicamente em medicina humana para doenças e apresentações tão variadas quanto a doença de Parkinson,196 a lesão cerebral traumática e a dor. Seu uso continuado no tratamento da doença de Parkinson surgiu fortuitamente de um paciente com doença de Parkinson que percebeu melhora da função motora enquanto estava tomando amantadina para influenza.197 Metanálise recente e revisões sistemáticas indicaram que a amantadina desempenha um papel potencial na lesão cerebral traumática (LCT), embora sejam necessários estudos adicionais para confirmar os achados iniciais promissores.198,199 Estudos realizados em seres humanos demonstraram melhora da reatividade quando a amantadina foi administrada entre 3 dias e 4 semanas após LCT, e os mecanismos alegados consistem em estimulação do SNC mediada pela atividade dopaminérgica da amantadina e neurotoxicidade reduzida por meio de seu antagonismo no receptor NMDA.200,201 Seu uso em animais está atualmente limitado a um modelo experimental de LCT em ratos, nos quais foi obtida melhora do aprendizado e da sobrevida dos neurônios do hipocampo com administração de amantadina em 1 h após LCT.202 A amantadina e a memantina também foram estudadas pelas suas propriedades analgésicas potenciais, mediadas por antagonismo dos receptores NMDA.203 A eficácia analgésica da amantadina parece estar limitada a casos de dor crônica, particularmente quando a sensibilização central pode desempenhar um papel, como na artrite crônica204 e na amputação de membros.205-207 Em uma população de cães com claudicação dos membros posteriores e dor refratária ao uso de AINE, Lascelles et al. mostraram que a atividade aumentou depois de 3 semanas de terapia de combinação com meloxicam (0,1 mg/kg VO, 1 vez/dia) e amantadina (3 a 5 mg/kg VO, 1 vez/dia).204 Foi sugerido um esquema posológico alternativo de 2 a 10 mg/kg VO, 2 a 3 vezes/dia, embora seja sensato monitorar quanto ao aparecimento de excitação do SNC na extremidade superior da faixa posológica.208 São necessários mais estudos para esclarecer o papel potencial da amantadina e da memantina na dor crônica, e metanálise recente identificou falta de evidências sólidas para o seu uso em seres humanos com uma variedade de etiologias para a dor neuropática.207 Seu uso foi sugerido em gatos, em uma dose de 3 a 5 mg/kg VO, 1 ou 2 vezes/dia, para

o controle da dor artrítica crônica, embora as evidências publicadas sobre a sua eficácia sejam escassas.203,208 Existem dados farmacocinéticos limitados disponíveis para o seu uso em animais de companhia. O fármaco sofre excreção principalmente renal em cães,209 e existem dados limitados de dose-resposta obtidos em ratos.210 Em consequência de suas propriedades dopaminérgicas, a estimulação do SNC constitui um efeito colateral previsto da sobredose, e é preciso ter cautela em pacientes que recebem outros agonistas da dopamina (p. ex., selegilina, um inibidor da monoamina oxidase) ou agentes que inibem a recaptação de serotonina (p. ex., antidepressivos tricíclicos, como amitriptilina, e inibidores seletivos da recaptação de serotonina, como fluoxetina). Essas combinações levam ao risco de ocorrência da síndrome serotoninérgica, uma síndrome potencialmente fatal, caracterizada por sinais de estimulação do SNC, tremores musculares e estimulação autônoma, incluindo taquicardia, taquipneia e hipertensão.211,212 O risco provavelmente aumenta na presença de insuficiência hepática, visto que os inibidores da monoamina oxidase e os inibidores seletivos da recaptação de serotonina são metabolizados pela via CYP 450. Quanto à anestesia, especificamente, há evidências, em medicina humana, de que todos os opioides da fenilpiperidina (meperidina, fentanila e seus congêneres, tramadol e metadona) aumentam em graus variáveis a concentração de serotonina do SNC e, em alguns casos, contribuíram para a síndrome serotoninérgica, embora o risco para pacientes veterinários permaneça desconhecido.213,214 Uma aplicação menos estudada da amantadina e de seu derivado memantina é como anestésico local. A anestesia local parece ser mediada pelas propriedades de bloqueio dos canais de sódio, além do antagonismo dos receptores NMDA.210,215 É preciso verificar ainda se existem vantagens significativas em relação aos anestésicos locais tradicionais, como a lidocaína e a bupivacaína. A amantadina está disponível em comprimidos e cápsulas de 100 mg e como xarope de 10 mg/mℓ. A memantina está disponível em comprimidos de 5 e 10 mg e em formulação oral de 2 mg/mℓ.

■ Amitriptilina e nortriptilina O antidepressivo tricíclico amitriptilina está indicado para transtornos comportamentais (p. ex., transtorno obsessivo-compulsivo),216 doença do trato urinário inferior felina idiopática (DTUIFI)217,218 e, mais recentemente, para estados de dor neuropática.219 Os antidepressivos tricíclicos são inibidores seletivos da recaptação de serotonina, aumentando os níveis sinápticos de serotonina e norepinefrina. Isso parece ser o principal mecanismo que medeia seus efeitos úteis na modificação do comportamento. Entretanto, outros mecanismos de ação que não estão tão bem elucidados também podem contribuir para o

seu potencial clínico como analgésicos.219 Esses mecanismos incluem bloqueio dos canais de sódio,220 antagonismo dos receptores NMDA221 e atividade anti-histamínica,222 porém sem atividade nos receptores opioides.223 A amitriptilina, na dose de 1 a 2 mg/kg/dia, é comumente prescrita para o manejo da DTUIFI, embora o mecanismo de ação que leva à resolução dos sinais clínicos ainda seja objeto de especulação, incluindo inibição da recaptação de serotonina, ação antihistamínica e atividade anticolinérgica.217 Estudos prospectivos indicam que são necessários períodos de tratamento de mais de 7 dias para observar melhora dos sinais clínicos.217,218,224 Seu uso para o tratamento da dor neuropática nos casos clínicos é, em grande parte, sem base científica, com poucos relatos de casos.219,225 A série de casos relatada por Cashmore et al. descreve três casos de dor neuropática em cães, dos quais dois responderam de modo satisfatório à amitriptilina (1,1 a 1,3 mg/kg VO, 2 vezes/dia).219 Um caso apresentou alodinia mecânica e disestesia no dermátomo facial inervado pelo ramo infraorbital do nervo trigêmeo direito. O cão não respondeu à gabapentina (12,5 mg/kg VO, 2 vezes/dia), porém respondeu rapidamente à amitriptilina (1,3 mg/kg VO, 2 vezes/dia), com resolução dos sinais clínicos no decorrer de 6 semanas. A interrupção da terapia feita pelo proprietário do animal resultou em retorno dos sinais clínicos em 3 dias, e o cão foi mantido, depois disso, com amitriptilina a longo prazo. O segundo caso bem-sucedido consistiu em dor lombar intermitente, com alodinia mecânica difusa. A amitriptilina (1,1 mg/kg VO, 2 vezes/dia) resultou em melhora dos sinais clínicos em 1 semana e em sua resolução em 1 mês. A suspensão do tratamento levou ao retorno da dor em 2 dias, e o cão foi então mantido com amitriptilina a longo prazo. O último caso relatado envolveu a ocorrência de alodinia mecânica associada a lesões dos nervos ulnar e mediano, que não respondeu à amitriptilina (1,4 mg/kg VO, 2 vezes/dia), mas que respondeu à gabapentina (14,3 mg/kg VO, 2 vezes/dia). A sedação foi um efeito colateral da amitriptilina também relatada comumente pelos proprietários dos animais. Todos esses casos não responderam a ensaios clínicos iniciais com AINEs, esteroides e opioides. Um caso felino de dor neuropática após reparo de fratura de fêmur, traumatismo de nervo isquiático iatrogênico e amputação subsequente apresentou dor neuropática suspeita (dor do membro fantasma) aproximadamente 1 mês após a amputação.225 O gato agitava frequentemente o coto da amputação, embora nenhuma resposta fosse observada à palpação da área. Após uma infusão intravenosa de morfina, cetamina e lidocaína 37 h após a administração de buprenorfina transmucosa (cerca de 0,03 mg/kg, 2 vezes/dia) e amitriptilina oral (cerca de 2 mg/kg, 2 vezes/dia), o gato já estava deambulando normalmente por ocasião da alta. No acompanhamento de 10 meses depois, a deambulação estava normal, sem agitação do coto da amputação. A dor neuropática também foi

implicada na siringomielia226 e em alguns casos de agitação da cabeça em equinos.227 O metabolismo hepático da amitriptilina resulta na produção do metabólito ativo, a nortriptilina, em cães e seres humanos.228 Tanto a amitriptilina quanto a nortriptilina também são excretadas de modo inalterado na urina, e, portanto, é preciso ter cautela em animais com insuficiência renal. A nortriptilina é utilizada clinicamente como tratamento para a dor neuropática em seres humanos,229 porém o seu uso não foi relatado em animais. A via de administração recomendada é a oral;230 a aplicação transdérmica não é efetiva para elevar os níveis plasmáticos do fármaco, e a administração intratecal resultou em acentuada patologia da medula espinal.221 Os efeitos adversos sobre o coração consistem em taquicardia mediada por um efeito anticolinérgico e em taquiarritmias ventriculares potenciais fatais em consequência de sobredose (dose ultrapassando cerca de 15 mg/kg IV).231,232 As taquiarritmias ventriculares são precedidas de prolongamento do complexo QRS. Não foi detectada nenhuma anormalidade do ECG em cães aos quais foram administradas doses adequadas de amitriptilina (0,74 a 2,5 mg/kg VO, a cada 12 h) para transtornos do comportamento.233 Outros sinais de toxicidade em cães conscientes incluem hipersalivação e vômitos. Os efeitos colaterais comuns com doses terapêuticas consistem em ganho de peso e sedação.234 Apesar do risco teórico de desencadear uma síndrome serotoninérgica com o uso concomitante de antidepressivos tricíclicos e inibidores da monoamina oxidase, acredita-se que esse risco (pelo menos nos seres humanos) seja baixo com a amitriptilina.214 As formulações disponíveis de amitriptilina incluem comprimidos de 10, 25, 50, 75, 100 e 150 mg. As formulações disponíveis de nortriptilina incluem comprimidos de 10, 25, 50 e 75 mg e solução oral de 10 mg/5 mℓ.

■ Gabapentina e pregabalina A gabapentina e a pregabalina são análogos estruturais do ácido γ-aminobutírico (GABA), porém esses fármacos não interagem com os receptores de GABA para produzir analgesia. Historicamente, a gabapentina tem sido prescrita como anticonvulsivante em seres humanos e espécies veterinárias, porém está sendo usada cada vez mais para alívio da dor neuropática e peroperatória nos homens. Análises sistemáticas recentes e metanálises identificaram alguns resultados promissores, porém é necessário mais trabalho para confirmar a sua eficácia e suas funções.235-238 Existem artigos cada vez mais numerosos na literatura veterinária descrevendo o seu uso em cães,219,239-243 gatos,244-247 equinos248-251 e bovinos,252-254 embora continue havendo dúvidas quanto a sua eficácia e esquemas posológicos adequados. O mecanismo de ação da gabapentina e da pregabalina não está totalmente elucidado. Esses fármacos não parecem interagir com os receptores de GABA, NMDA ou dopamina,

e as evidências sugerem a inibição dos canais de cálcio neuronais dependentes de voltagem do tipo N, um alvo farmacológico previamente não identificado para analgésicos.255,256 A inibição leva a uma redução do influxo de cálcio nos neurônios, o que diminui, por sua vez, a liberação de uma variedade de neurotransmissores excitatórios e inibitórios, alterando o tráfego nos canais e estimulando o movimento dos canais para longe das membranas celulares neuronais.255 Dispõe-se de dados farmacocinéticos para cães,243,257 gatos,244 equinos248,249 e bovinos.252,254 Nos cães, a meia-vida terminal curta sugere a necessidade de doses frequentes, o que é sustentado por evidências clínicas limitadas, indicando que a dose terapêutica se situa na faixa de 10 a 20 mg/kg VO, 2 a 3 vezes/dia.219,239,241,242 A gabapentina tem sido usada com sucesso para aliviar os sinais clínicos em uma série de casos de Cavalier King Charles Spaniels com malformação de Chiari e siringomielia.241 Um ensaio clínico prospectivo que comparou a gabapentina com um placebo de cápsula de gelatina em cães submetidos a amputação de membro torácico não identificou nenhuma vantagem da gabapentina no alívio da dor pós-operatória.242 Entretanto, os autores admitiram que o estudo pode não ter tido poder suficiente, e é possível que a dose empregada (dose diária total de 10 mg/kg) tenha sido subterapêutica. De modo semelhante, um ensaio clínico prospectivo utilizando a gabapentina (10 mg/kg VO, 2 vezes/dia) como agente analgésico adjuvante resultou em redução insignificante nas pontuações de dor em comparação com placebo para cirurgia de hemilaminectomia.239 Além das limitações potenciais de poder insuficiente, a analgesia potente proporcionada pela administração concomitante de opioide e a complexidade do modelo de dor levaram os autores a sugerir que a dose de gabapentina seja individualizada para a resposta de cada animal, como no caso dos homens, em lugar de aderir a esquemas posológicos rígidos. Uma série de três casos de dor neuropática (avulsão parcial das raízes nervosas espinais ulnares e medianas, neuropatia trigeminal sensorial e suposta neuropatia da medula espinal) relatou um controle bem-sucedido da dor com a administração de gabapentina (14 mg/kg VO, 2 vezes/dia) ou amitriptilina.219 É interessante observar que, quando um dos fármacos não conseguiu melhorar os sintomas clínicos, a sua substituição pelo outro foi frequentemente bemsucedida. Dados farmacocinéticos em gatos sugerem um esquema posológico de 8 mg/kg VO, a cada 8 h, ou 3 mg/kg VO, a cada 6 h, para obter concentrações plasmáticas associadas a analgesia em seres humanos.244 Entretanto, não ocorreu um aumento no limiar térmico quando a gabapentina foi administrada por via oral, nas doses de 5, 10 ou 30 mg/kg.245 Essas doses resultaram em concentrações plasmáticas do fármaco acima daquelas associadas à analgesia em seres humanos, levando os autores a questionar a utilidade da gabapentina em gatos saudáveis e a adequação do modelo de dor. Nesse estudo, a sedação

não foi associada à gabapentina em qualquer dose, embora constitua um efeito adverso comum em cães.258 Os mesmos pesquisadores não foram capazes de demonstrar um efeito poupador da CAM da gabapentina sobre o isofluorano, apesar de alcançar concentrações plasmáticas quase duas vezes mais altas do que aquelas relatadas como efetivas em humanos, porém isso não descarta a possibilidade de um efeito analgésico.246 Um relato de dois casos de politraumatismo em consequência de acidentes de trânsito descreve o uso bem-sucedido da gabapentina em resposta a sinais clínicos indicando alodinia mecânica.247 Em ambos os casos, a gabapentina (10 mg/kg VO, a cada 8 h) foi administrada após o desenvolvimento de alodinia mecânica, 24 a 48 h após um procedimento cirúrgico. Em ambos os casos, houve resolução dos sinais clínicos em 24 h, possibilitando redução gradual de todos os analgésicos. Apesar de promissores, esses casos refletem o manejo multimodal (i. e., os gatos também receberam opioides, AINEs e analgesia locorregional) do politraumatismo, dificultando a interpretação da contribuição isolada da gabapentina. Em um estudo relatando os dados farmacocinéticos e comportamentais em equinos após a administração de 20 mg/kg VO ou IV, não foram observadas quaisquer alterações significativas na frequência cardíaca ou pressão arterial média.249 Ocorreu sedação, avaliada de leve a moderada, em todos os cavalos em 1 h após a administração de gabapentina IV. A frequência de ingestão de água e estação em repouso aumentou e diminuiu, respectivamente, durante o período de observação de 11 h. A dose oral de gabapentina apresentou menor biodisponibilidade nos cavalos (16%) em comparação com os cães (80%), o que provavelmente influencia as necessidades posológicas. Não foi detectado nenhum metabólito no plasma equino, indicando que o metabolismo pode ser semelhante ao relatado nos seres humanos, e, com excreção da maior parte do fármaco inalterado na urina. Esses dados farmacocinéticos concordam amplamente com aqueles previamente relatados nessa espécie.248 Os relatos do uso clínico da gabapentina em equinos são escassos.250,251 Após desbridamento da seromas subsolares, infecção subsequente e laminite e tendinite crônicas continuadas, a gabapentina (2 a 3,3 mg/kg VO, a cada 8 a 12 h) foi incluída em um complexo plano analgésico multimodal, que também consistia em opioides, AINEs, analgesia locorregional, agonistas dos receptores α2-adrenérgicos e cetaminas em várias vezes.250 Embora seja impossível avaliar a contribuição da gabapentina nesse caso, não foi observado nenhum efeito adverso, e melhora no escore da dor coincidiu com o início da administração de gabapentina (juntamente com administração perineural concomitante de bupivacaína). Em um cavalo demonstrando sinais de dor atribuída a neuropatia femoral e paresia associada do membro pélvico esquerdo após cirurgia para cólica, foi iniciada a administração de gabapentina (2,5 mg/kg VO, a cada 8 h, durante 24 h; em seguida, a cada 12 h) após ausência de resposta a xilazina, butorfanol, flunixina e IVC de lidocaína e

efeitos adversos (i. e., sedação pronunciada) de uma IVC de detomidina. Duas horas após a administração de gabapentina, durante as quais a IVC de detomidina (3 µg/kg/h IV) e acepromazina (0,03 mg/kg IV, a cada 6 h) foram mantidas, a égua ficou menos agitada, e foi observada melhora dos sinais clínicos (i. e., fazendo círculos e dando patada com o casco afetado) durante as 36 h seguintes. Dispõe-se de dados farmacocinéticos e alguns dados farmacodinâmicos em vacas adultas254 e bezerros.252,254 Uma comparação da gabapentina (15 mg/kg VO em uma dose 1 h antes da descorna cirúrgica) com flunixina, meloxicam e meloxicam com gabapentina não revelou diferenças significativas entre os grupos, nem com placebo nas concentrações plasmáticas de cortisol ou temperatura ocular. Os resultados para limiar nociceptivo mecânico foram equívocos. O ganho de peso foi o único parâmetro que mostrou diferença entre os tratamentos com analgésicos e o placebo. O ganho médio diário de peso foi maior em bezerros tratados com meloxicam e gabapentina do que com placebo, gabapentina isoladamente ou meloxicam isoladamente. Uma associação de gabapentina (15 mg/kg VO) e meloxicam (0,5 mg/kg VO) resultou em níveis plasmáticos de gabapentina acima de 2 µg/mℓ (que é o limiar associado à analgesia em seres humanos) durante 15 h.252 Em comparação com equinos e cães, nos quais foram obtidas concentrações plasmáticas máximas em 2 h, as concentrações máximas em bezerros só foram alcançadas em 7 h após a administração. Em vacas Holstein-Friesian adultas, o período levado para alcançar concentrações plasmáticas máximas de gabapentina (dose de 10 a 20 mg/kg VO, coadministrada com meloxicam, 1 mg/kg VO) também foi lento, exigindo mais de 8 h.254 As concentrações de gabapentina e de meloxicam no leite levaram 3 dias para cair abaixo do nível de detecção. Nos cães, cerca de 30 a 35% de uma dose administrada de gabapentina sofrem metabolismo hepático, enquanto o fármaco inalterado é excretado pelos rins.257 O metabolismo da gabapentina não foi descrito no gato. Foi relatada a ocorrência de sedação como efeito adverso em cães e equinos aos quais foi administrada gabapentina,249,258 mas não em gatos ou em bovinos. Enquanto os dados farmacocinéticos para uso da pregabalina para analgesia em cães sugerem que as concentrações plasmáticas associadas com analgesia em seres humanos são alcançadas com 4 mg/kg VO,259 seu uso clínico como analgésico nessa espécie continua informal. Os efeitos adversos potenciais consistem em sedação e ataxia com a administração de doses mais altas. De modo semelhante, em equinos, foi sugerido uma dose de 4 mg/kg VO, a cada 8 h, com base nos dados farmacocinéticos. São necessários estudos farmacodinâmicos e/ou clínicos para validar esses dados. A gabapentina está disponível em comprimidos e cápsulas (100, 300, 400, 600, 800 mg) e em formulação oral de 50 mg/mℓ. A pregabalina está disponível em cápsulas (25, 50,

75, 100, 150, 200, 225, 300 mg) e em solução oral (20 mg/mℓ).

■ Tramadol O tramadol, que é uma mistura racêmica, foi descrito como opioide “atípico”, devido à produção potencial de analgesia por mecanismos opioides e não opioides (i. e., inibição da captação de monoaminas.260 É interessante observar que ambos os enantiômeros do composto original e o metabólito M1 (O-desmetiltramadol) contribuem para a analgesia. A inibição da recaptação de norepinefrina resulta da atividade do enantiômero (−) do tramadol, a inibição da recaptação de serotonina (5-HT) resulta da atividade de seu enantiômero (+), e o agonismo dos receptores opioides µ, da atividade do enantiômero (+) do metabólito M1 e do enantiômero (+) do tramadol.260-262 Por conseguinte, é evidente que existe a possibilidade de variação tanto entre indivíduos quanto entre espécies e dentro de uma mesma espécie na potência analgésica, em consequência de variações no metabolismo do fármaco. As vias metabólicas do tramadol foram descritas no cão,263-266 no gato,267 no cavalo,268270 na alpaca271 e no lhama.272 Nos seres humanos, o metabolismo do tramadol ao metabólito M1 ativo é mediado pela CYP2D6. Em espécies veterinárias, a enzima CYP P450 responsável pelo metabolismo do tramadol não foi identificada. No cão, parece haver produção limitada do metabólito M1, indicando que a analgesia depende, em grande parte, da atividade do composto original.262266 Embora a concentração plasmática terapêutica de M1 não seja conhecida no cão, os níveis medidos são substancialmente abaixo daqueles associados à analgesia nos seres humanos. Isso pode explicar a variabilidade na eficácia observada em clínica, com um padrão similar observado em um subgrupo de seres humanos classificados como “metabolizadores fracos” (i. e., indivíduos que carecem da isozima CYP2D6) e, consequentemente, que obtêm analgesia substancialmente menor com o tramadol.273 Como o tramadol é excretado em grande parte na sua forma inalterada na urina, não se deve esperar que a presença de disfunção hepática resulte em complicações com a administração de doses terapêuticas. Nos gatos, o metabolismo do tramadol é significativo, resultando em concentrações do metabólito M1 associadas a analgesia nos seres humanos.274 A depuração foi mais baixa do que aquela relatada em cães, indicando que a administração de doses menos frequentes pode ser efetiva. Há suspeita de que a excreção do fármaco original e seus metabólitos seja renal. Nos cavalos, a maior parte dos estudos mostra que o tramadol é metabolizado ao metabólito M1 em concentrações que podem contribuir para a analgesia.268-270 Entretanto, a baixa biodisponibilidade (menos de 10%) e a rápida depuração podem limitar a utilidade da

administração oral. À semelhança dos cães e dos gatos, a depuração ocorre por excreção renal. O tramadol pode demonstrar ser mais efetivo em lhamas, visto que foram detectadas concentrações significativas do metabólito M1 após administração por via intravenosa e intramuscular, porém a depuração foi semelhante àquela relatada em equinos, o que pode tornar necessário o uso de doses frequentes.272 Nas alpacas, em um estudo realizado em seis animais adultos, foi constatada ampla variação interindividual na absorção oral (que variou de 6 a 20%) e depuração rápida, com detecção variável do metabólito M1.271 Em doses de 3,4 a 4 mg/kg IV, foram observados os seguintes efeitos adversos: tremor da cabeça, ataxia e olhar para as estrelas. Uma velocidade menor de infusão (i. e., a mesma dose, porém administrada durante 10 min) ou a administração de uma dose oral não foram associadas a efeitos colaterais. É necessária a realização de mais pesquisa para identificar uma dose efetiva nas alpacas. O perfil farmacocinético do tramadol nos cães pode explicar o seu desempenho variável nos estudos clínicos realizados.275-278 Foi observado um efeito de redução de 26 a 36% na CAM do sevofluorano.279 Em uma população de cães com osteoartrite, o tramadol por via oral (4 mg/kg a cada 8 h) resultou em analgesia efetiva, conforme avaliação por meio de avaliação por questionário do proprietário (inventário breve de dor canina), porém sem monitoramento da atividade, análise da marcha e necessidade de medicação de resgate.280 Uma combinação de pequeno tamanho das amostras e efeitos do tratamento reduziu substancialmente o poder do estudo, contribuindo para a falta de significado observado. Além disso, os níveis plasmáticos de tramadol estavam abaixo do limiar associado com analgesia em apenas 3 h após a sua administração. Dois estudos realizados em cães para comparar o tramadol extradural e intravenoso (2 mg/kg) e extradural e intramuscular (2 mg/kg) para osteotomia de nivelamento do platô tibial (TPLO) ou ovário-histerectomia não conseguiram demonstrar uma vantagem da administração extradural; ambas as vias de administração proporcionaram analgesia adequada.276,277 Os dados clínicos em equinos são limitados, e a grande variabilidade nos esquemas posológicos do tramadol impedem a interpretação dos dados. São necessárias mais pesquisas, de preferência estudos farmacocinéticos e farmacodinâmicos combinados, embora a incidência de efeitos adversos dependentes da dose e a depuração rápida do fármaco possam limitar o seu uso nessas espécies.281,282 A administração extradural (0,5 a 1 mg/kg) é promissora e pode constituir uma via alternativa útil, proporcionando analgesia e limitando a estimulação do SNC.283,284 Foi também relatada a administração extradural do tramadol em bovinos e cordeiros.285,286 Foi observada a ocorrência de sedação com doses de tramadol acima de 2 mg/kg IV em cães.266,287 Nos gatos, uma dose de 1 mg/kg SC teve efeitos comportamentais variáveis, e seis dos oito gatos apresentaram sinais de euforia, enquanto dois tiveram disforia.288 A

excreção renal do fármaco original e do metabólito M1 ativo implica que a presença de disfunção renal pode resultar em efeitos adversos,289 embora nenhum tenha sido relatado em espécies veterinárias. Doses de tramadol acima de 3,1 mg/kg IV em equinos foram associadas a aumento significativo (i. e., aproximadamente 100%) na frequência respiratória, redução de 50% nos borborigmos e tremores.290 Em doses mais baixas (0,3 mg/kg IV), foram observados sinais associados à estimulação do SNC (i. e., cabecear). Em cães, a administração oral de 10 mg/kg foi associada à analgesia, utilizando um modelo de dor por pressão em 5 a 6 h após a administração, e foram recomendadas doses de 5 a 10 mg/kg, a cada 6 a 8 h.264 A administração oral de tramadol depois de 1 semana pode resultar em diminuição das concentrações plasmáticas do fármaco por meio de um mecanismo desconhecido.291 A administração por via intravenosa e intramuscular préoperatória, em uma dose de 2 mg/kg, foi efetiva para ovário-histerectomia e TPLO.276-278 Em gatos, a administração oral de 8,6 a 11,6 mg/kg foi efetiva para reduzir a CAM do sevofluorano.292 Uma dose de 2 mg/kg SC não foi mais efetiva do que o placebo após ovário-histerectomia quando avaliada com EVA interativa e escore de dor composta, embora tenha tido uma necessidade menor de analgesia de resgate em comparação com o placebo.293 De modo semelhante, a administração de uma dose de 1 mg/kg SC não aumentou substancialmente as respostas de limiar de pressão ou térmico em gatos.288 Doses entre 2 e 4 mg/kg VO foram efetivas para aumentar o limiar térmico em gatos, e os autores calcularam que uma dose de 4 mg/kg VO, a cada 6 h, pode proporcionar analgesia apropriada.274 A administração extradural de tramadol, na dose de 1 mg/kg, a gatos que receberam estimulação mecânica resultou em analgesia efetiva em comparação com controles que receberam soro fisiológico, porém não teve tanta duração quanto aquela produzida por morfina extradural.294 Em equinos, uma dose de 2 mg/kg IV não produziu redução significativa na latência do espasmo cutâneo ou no reflexo de retirada do casco durante a exposição à estimulação térmica.290 Embora doses mais altas possam ter produzido analgesia, foi selecionada a dose de 2 mg/kg, visto que foram observados efeitos adversos com doses mais altas.

■ Tapentadol O agente analgésico tapentadol foi projetado com o objetivo de combinar o antagonismo dos receptores opioides µ com a inibição da recaptação de norepinefrina, sem produzir metabólitos ativos, como no caso do tramadol.295,296 O tapentadol apresenta maior afinidade (aproximadamente 50 vezes) pelo receptor opioide µ em comparação com o tramadol, porém menor afinidade em comparação com o metabólito M1 do tramadol. Quando comparado com o tramadol, o tapentadol apresenta potência semelhante para a inibição da recaptação de norepinefrina e menor potência (cerca de cinco vezes) na inibição da

recaptação de serotonina.295 Essas atividades, sem a dependência do metabolismo de um metabólito ativo, fazem do tapentadol uma opção analgésica atraente, embora as evidências para o seu uso em espécies veterinárias sejam limitadas. A farmacocinética foi descrita em cães,297 e o fármaco parece ser promissor, particularmente nas espécies que não produzem quantidades significativas do metabólito M1 ativo. Nos cães, o tapentadol apresenta baixa biodisponibilidade oral e espera-se, como nos seres humanos, que sofra extenso metabolismo hepático (glicuronidação) para gerar um metabólito inativo.297 Não se dispõe atualmente de uma dose recomendada.

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Histórico dos relaxantes musculares Fisiologia da junção neuromuscular Farmacologia Interações de ligante e receptor Agentes despolarizantes e não despolarizantes Agentes bloqueadores neuromusculares Succinilcolina Pancurônio Atracúrio Cisatracúrio Vecurônio Rocurônio Pipecurônio Doxacúrio Mivacúrio Gantacúrio Efeitos não neuromusculares dos ABNMs Efeitos cardiovasculares Liberação de histamina Transferência placentária Efeitos sobre o sistema nervoso central Ligação às proteínas Efeitos não neuromusculares da succinilcolina

Relaxantes musculares em animais anestesiados Indicações Precauções Seleção Fatores que afetam o bloqueio neuromuscular Comprometimento do metabolismo e da excreção Fármacos anestésicos Distúrbios acidobásicos Distúrbios eletrolíticos Hipotermia Idade Distúrbios neuromusculares Interações com agentes antimicrobianos e outras interações medicamentosas Monitoramento do bloqueio neuromuscular Locais de estimulação Características da estimulação elétrica Padrão de estimulação Quantificação das respostas evocadas Reversão do bloqueio neuromuscular Bloqueio não despolarizante Bloqueio despolarizante Relaxantes musculares de ação central Guaifenesina Dantroleno Referências bibliográficas

Histórico dos relaxantes musculares Os relaxantes musculares formam um grupo de anestésicos adjuvantes, que são administrados para melhorar o relaxamento da musculatura esquelética durante

procedimentos cirúrgicos ou diagnósticos. O termo agentes bloqueadores neuromusculares (ABNMs) é um nome complicado, porém descritivo, que se refere ao fato de que os fármacos dessa classe produzem seus efeitos pela sua ação na junção neuromuscular. O termo mais geral, relaxante muscular, refere-se a qualquer fármaco que apresente propriedades relaxantes, incluindo agentes de ação central, como os benzodiazepínicos, agonistas dos receptores α2-adrenérgicos e guaifenesina. Os efeitos benéficos da administração dos ABNMs durante a anestesia geral consistem em: facilitação da intubação traqueal, redução do tônus musculoesquelético em planos superficiais da anestesia inalatória ou injetável e prevenção da movimentação do paciente durante uma cirurgia ocular, neurológica ou cardiotorácica delicada. Apesar do seu uso frequente na anestesia humana e em algumas especialidades veterinárias, como oftalmologia, o emprego dos ABNMs na prática veterinária geral é limitado. Os anestésicos inalatórios, como o isofluorano, são anestésicos completos que preenchem a “tríade da anestesia”, isto é, produzem inconsciência, analgesia e relaxamento muscular. Todas essas três propriedades são necessárias para a realização da maioria dos procedimentos cirúrgicos invasivos. Entre as três propriedades da tríade, os anestésicos inalatórios são mais adequados para produzir perda da consciência em planos relativamente superficiais da anestesia, enquanto são necessários planos substancialmente mais profundos para produzir analgesia e relaxamento muscular. Com efeito, essas duas últimas propriedades são induzidas por anestésicos inalatórios potentes apenas em virtude da depressão geral do SNC. Infelizmente, os planos mais profundos dos anestésicos inalatórios estão associados a uma redução da função cardiovascular; por conseguinte, as propriedades de relaxamento muscular e analgesia são acompanhadas do efeito adverso de declínio do desempenho cardiovascular. Animais jovens e saudáveis que apresentam uma boa reserva cardiovascular podem tolerar esse efeito; todavia, em pacientes com comprometimento da função cardiovascular, podem ocorrer morbidade e mortalidade significativas. Em lugar de usar um anestésico inalatório para proporcionar todos os três componentes da tríade, uma técnica anestésica mais segura e mais suave, particularmente em pacientes com comprometimento cardiovascular, consiste na utilização de baixas concentrações de anestésico inalatório para proporcionar inconsciência, administração de opioides para produzir analgesia e um ABNM para obter relaxamento muscular. Esse tipo de técnica designa-se como anestesia balanceada, na qual se utiliza uma associação de agentes em doses menores, com base na ação que eles exercem razoavelmente bem. Com frequência, são escolhidas técnicas de anestesia balanceada pelo fato de fornecerem condições ideais tanto para o cirurgião quanto para o paciente. A introdução dos ABNMs na anestesiologia é um acontecimento relativamente recente na prática médica, que ocorreu em 1942. Os nativos sul-americanos usavam, há séculos,

um veneno derivado da planta tropical Chondodendron tomentosum nas pontas das flechas de caça. Esse veneno tinha a propriedade de causar paralisia e morte da vítima. Esse veneno tinha uma vantagem óbvia, visto que os animais que sofriam apenas um pequeno ferimento acabavam sucumbindo e eram recolhidos pelo caçador. A existência desse veneno, conhecido como curare, foi reconhecida fora da América do Sul, porém que uso possível poderia ter um veneno de flecha em medicina? A ligação foi feita quando o explorador Richard Gill retornou da selva do Equador e foi diagnosticado com esclerose múltipla. A sugestão de que a paralisia espástica poderia ser aliviada pela administração do veneno da flecha levou Gill a superar a sua incapacidade e retornar às florestas da América do Sul. Regressou aos EUA no final da década de 1930, levando com ele uma quantidade de curare que vendeu a uma empresa farmacêutica, a qual purificou a mistura bruta e a comercializou com o nome de Intocostrin. No início, o Intocostrin era apenas usado em medicina psiquiátrica para controlar as convulsões associadas aos tratamentos dos estados psicóticos. Um médico da empresa percebeu o potencial que a substância poderia ter no campo da anestesiologia e convenceu um anestesista a realizar estudos em seres humanos. Esta foi uma tarefa monumental, visto que a comunidade dos anestesistas na época não se mostrava compreensiva e receptiva à administração de um veneno de flecha paralisante a pacientes cirúrgicos. Com efeito, a mera sugestão da administração de uma substância que intencionalmente causaria parada respiratória era impensável para uma geração de médicos que havia crescido seguindo o lema de “onde há respiração, há esperança”. Os estudos que sugeriram que a d-tubocurarina, um alcaloide quaternário com estrutura de benzilisoquinolínio isolada do curare bruto, era segura e útil para produzir relaxamento dos músculos abdominais durante anestesia geral começaram a emergir, e o uso dessa substância espalhou-se para a Grã-Bretanha, em 1945.1 Outra substância com propriedades paralíticas semelhantes às da d-tubocurarina, porém com a vantagem de início rápido e curta duração, a succinilcolina, foi introduzida na prática humana no início da década de 1950.1 Os relatos do uso veterinário dos ABNMs em cães também começaram a aparecer no início da década de 1950,2 e a administração de succinilcolina a equinos foi descrita na década de 1960.3 Tanto a d-tubocurarina4 quanto a succinilcolina apresentam vários efeitos cardiovasculares indesejáveis. Ambos os agentes podem afetar os gânglios autônomos e os receptores muscarínicos cardíacos e induzir a liberação de histamina. Embora a succinilcolina tenha a vantagem de um rápido início e curta duração, em comparação com a d-tubocurarina, haveria outras desvantagens, como possível hiperpotassemia, arritmias, mialgia pós-anestésica e a natureza inconsistente de seu bloqueio em relação a outros ABNMs. Os relaxantes sintéticos desenvolvidos nos anos subsequentes incluíram a galamina, o

decametônio, o alcurônio e, por fim, o pancurônio derivado de esteroide. Hoje em dia, a maioria tem apenas interesse histórico, embora o alcurônio ainda seja usado com frequência em muitas partes do mundo, enquanto a molécula esteroide do pancurônio serve como principal molécula de vários ABNMs atuais. O atracúrio e o vecurônio, que foram introduzidos na década de 1980, têm a vantagem de não causar efeitos cardiovasculares ou apenas produzir efeitos cardiovasculares mínimos, liberação mínima de histamina e duração de ação controlável e previsível. Ambos os fármacos são amplamente usados na prática anestésica humana. Os ABNMs recém-desenvolvidos incluem o doxacúrio, o pipecurônio e o cisatracúrio. Todos esses fármacos representam esforços contínuos para produzir bloqueio neuromuscular, com menos efeitos colaterais cardiovasculares e hemodinâmicos. A intubação traqueal durante a indução da anestesia constitui a principal indicação para o uso do ABNM na prática humana. Apesar de seus efeitos indesejáveis, a succinilcolina continua sendo o padrão de referência para facilitar a intubação traqueal nos seres humanos, principalmente em virtude de seu início rápido e curta duração de ação. A pesquisa de um agente alternativo não despolarizante para a succinilcolina resultou no desenvolvimento do mivacúrio, análogo do atracúrio, e do rocurônio, um fármaco esteroide derivado do pancurônio. Apesar da melhora no período hábil, nem o mivacúrio nem o rocurônio são capazes de facilitar a intubação traqueal humana tão rapidamente quanto a succinilcolina. O ABNM mais recente desenvolvido, o gantacúrio, apresenta um período hábil ultracurto e período de latência que se aproxima ao da succinilcolina. O gantacúrio, que é estruturalmente distinto de qualquer ABNM já aprovado, está sendo atualmente submetido a ensaios clínicos humanos e poderá substituir a succinilcolina como adjuvante na intubação traqueal humana.

Fisiologia da junção neuromuscular Todos os ABNMs exercem seus efeitos na junção neuromuscular ou placa motora. A junção neuromuscular forma uma interface entre o grande nervo motor mielinizado e o músculo que é inervado por ele. A própria junção neuromuscular pode ser dividida em terminação nervosa motora pré-juncional, fenda sináptica e membrana pós-juncional da fibra muscular esquelética. Nas áreas pré e pós-juncionais da junção neuromuscular, existem receptores nicotínicos que se ligam e respondem à acetilcolina (ACh) ou a outro ligante apropriado. Acredita-se que o receptor pré-juncional seja importante na síntese e na mobilização das reservas de ACh, mas não na sua liberação.5 Parece haver dois tipos de receptores pós-juncionais: o receptor juncional e o receptor extrajuncional.6 O receptor juncional é encontrado nas placas motoras terminais de animais adultos normais e é

responsável pela ligação à ACh liberada e produção de contração muscular. Por conseguinte, os receptores juncionais são responsáveis pelo efeito relaxante observado quando se administra um ABNM. Os receptores extrajuncionais normalmente não estão presentes nos músculos de adultos típicos, porém têm importância, visto que são sintetizados pelos músculos que estão recebendo um menor grau de estimulação nervosa motora do que o normal.7 Por conseguinte, são produzidos pelos músculos após lesão da medula espinal ou de nervos periféricos, ou após um período de desuso, como no caso de imobilização de um membro. Estão também presentes em recém-nascidos. A localização dos receptores extrajuncionais não é restrita à placa motora, e eles podem ser encontrados em toda a superfície da célula muscular.8,9 Os receptores extrajuncionais parecem ser mais sensíveis aos ABNM despolarizantes, como a succinilcolina, e menos sensíveis aos ABNM não despolarizantes, como o atracúrio.10 Se o grau de déficit neural for grave, os receptores extrajuncionais podem ser numerosos e podem estar amplamente distribuídos ao longo da membrana muscular. Esses pacientes podem apresentar respostas muito diferentes às ações dos ABNM despolarizantes, e, por conseguinte, pode ocorrer liberação acentuada de K+ intracelular, com efeitos cardíacos adversos concomitantes, se a succinilcolina for administrada a esses pacientes.11 A terminação nervosa pré-juncional sintetiza e armazena uma certa quantidade de ACh em vesículas sinápticas, e essa ACh atua como neurotransmissor, acoplando, assim, o impulso nervoso com uma contração muscular resultante. Durante a transmissão neuromuscular normal, um potencial de ação chega à terminação pré-juncional do nervo motor, causando despolarização do terminal nervoso, resultando em liberação de ACh. A liberação de conjuntos ou quanta de ACh em resposta à despolarização da membrana é um processo dependente de Ca++. A despolarização da membrana nervosa resulta em ativação da adenil ciclase, que converte o trifosfato de adenosina em monofosfato de adenosina cíclico. A consequente conversão resulta na entrada de Ca++ dentro do terminal neuronal e na liberação subsequente de ACh dentro da fenda sináptica. Conforme assinalado anteriormente, a ACh é o neurotransmissor que acopla efetivamente o potencial de ação do nervo em uma contração muscular. Esse acoplamento é realizado pela interação da ACh com o receptor nicotínico pós-juncional. A interação da ACh com o receptor nicotínico está associada ao desenvolvimento de um potencial de placa terminal (um potencial de ação da célula muscular) e, por fim, à produção de contração muscular. A ACh liberada da célula nervosa pré-juncional é de vida curta, visto que é rapidamente hidrolisada em colina e acetato pela enzima acetilcolinesterase. Por conseguinte, a célula muscular pós-juncional é despolarizada pelo potencial de placa terminal criado pela ligação da ACh ou receptor e, em seguida, é

repolarizada, à medida que a ACh é removida do receptor e hidrolisada. Os receptores pós-juncionais estão concentrados na placa motora imediatamente em oposição aos locais de liberação da ACh na membrana pré-juncional.12 A microscopia eletrônica desses receptores mostra que eles apresentam uma cavidade central circundada por uma área circular elevada,13,14 de modo que eles se assemelham a um carretel de linha visto de cima. A área circular elevada é a boca de um cilindro de uma proteína receptora que se projeta através da membrana e contém os sítios de ligação aos quais se ligam a ACh e outros ligantes. A cavidade é a abertura de um canal iônico que está contido dentro do cilindro e percorre toda a sua extensão. A proteína do receptor é composta de cinco subunidades, constituídas de duas subunidades α e uma subunidade β, γ e δ. Estão dispostas dentro de um cilindro que tem um espaço potencial, o canal iônico, nele contido.15 A abertura do canal é controlada pelos sítios de ligação da ACh presentes nas duas subunidades α. Quando moléculas de ACh estão ligadas aos sítios de ligação em cada uma das duas subunidades α, a proteína sofre rotação em uma nova configuração e, ao fazê-lo, abre o canal iônico e possibilita o fluxo de íons.16 O canal permite o fluxo de pequenos cátions, mas não de grandes cátions ou ânions. Por conseguinte, durante a transmissão neuromuscular normal, a ligação de duas moléculas de ACh às subunidades α abre o canal e possibilita o fluxo de Na+ e Ca++ para dentro do canal e o fluxo de K+ para fora. Dessa maneira, o fluxo de corrente elétrica ocorre com consequente despolarização da membrana pós-juncional.17 Conforme as moléculas de ACh deixam o receptor e são hidrolisadas pela acetilcolinesterase, o canal iônico se fecha, o fluxo decorrente é interrompido, e ocorre repolarização da membrana. A ligação de ligantes ao receptor é um processo competitivo. Qualquer ligante apropriado que esteja presente em maior concentração na vizinhança do receptor irá vencer a competição e afetar o resultado. Como são necessárias duas moléculas de ACh para a ligação a cada uma das subunidades α no receptor,18 os antagonistas têm uma vantagem distinta, visto que só precisam se ligar a uma das subunidades para impedir a transmissão neuromuscular normal. Não ocorre contração do músculo em resposta à despolarização do nervo motor, resultando em paralisia. A interação da ACh e do ABNM nos receptores pós-juncionais é um processo dinâmico de ligação e liberação, e, juntamente com o número absoluto de receptores presentes (10 a 20.000/µm2), o sucesso ou a falha da transmissão neuromuscular na presença de um ABNM são determinados pela concentração do ABNM versus a concentração de ACh. Uma alta porcentagem de ligação da ACh aos receptores favorece a contração muscular, enquanto uma alta porcentagem de ligação de ABNM aos receptores favorece a paralisia. Isso sugere um método para reverter a paralisia induzida por um ABNM. O aumento da concentração de ACh em comparação com a concentração de ABNM irá elevar a

probabilidade da ACh de vencer a competição pelo receptor e restaurar a transmissão neuromuscular normal. Clinicamente, isso é obtido pela administração de inibidores da acetilcolinesterase. Quando se administra um agente anticolinesterásico, como a neostigmina, a ACh disponível não é degradada imediatamente, porém persiste na sinapse e é capaz de interagir repetidamente com os receptores. Isso inclina o equilíbrio competitivo a favor da ACh; maior número de receptores participa no fluxo decorrente, e a força muscular global aumenta. Essa interação também é observada à medida que a atividade de um ABNM diminui, devido à eliminação do fármaco.

Farmacologia ■ Interações de ligante e receptor A interação clássica de um ABNM, como a d-tubocurarina ou o atracúrio, e o receptor colinérgico envolve uma ligação competitiva do fármaco ao receptor, inibindo, assim, o acoplamento da transmissão do potencial de ação do nervo com a contração muscular. Existem pelo menos dois outros mecanismos menos compreendidos: a dessensibilização e o bloqueio dos canais, em que os fármacos podem interagir com os receptores de ACh e interromper a transmissão neuromuscular. Anteriormente, foi declarado que o receptor colinérgico se encontra em um estado inativo com seu canal iônico potencial em colapso quando duas moléculas de ACh não estão ligadas aos sítios de ligação das subunidades α. A ligação da ACh a cada uma das duas subunidades α do receptor provoca uma mudança de conformação e possibilita a abertura do canal iônico em seu estado ativo; ocorre despolarização, com consequente contração muscular. Existe uma terceira possibilidade, denominada estado dessensibilizado. Os receptores que estão no estado dessensibilizado ligam-se à ACh por meio das subunidades α, porém não ocorre mudança de conformação nem abertura dos canais, de modo que o receptor é considerado dessensibilizado. Vários fármacos, incluindo agonistas, antagonistas e anestésicos inalatórios, parecem ser capazes de deslocar o receptor colinérgico para o estado dessensibilizado. A hipótese do estado dessensibilizado explica a ação sinérgica que os anestésicos inalatórios têm com os ABNMs, visto que, clinicamente, sabe-se que os ABNMs em baixa dose produzem um grau aceitável de relaxamento quando o paciente é anestesiado com um anestésico volátil. Numerosas substâncias podem causar ou promover a dessensibilização, como succinilcolina, tiopental, bloqueadores dos canais de Ca++, anestésicos locais, fenotiazinas, cicloexaminas, anestésicos inalatórios e alguns antibióticos.19-22 Pode ocorrer bloqueio do canal quando o receptor colinérgico liga-se a um agonista por meio de cada uma das subunidades α; o canal iônico se abre, e uma molécula fica presa dentro do canal.

Isso é possível pelo fato de que a entrada do canal iônico é muito mais larga do que a região transmembrana, de modo que as moléculas podem entrar no canal, mas não atravessá-lo. As moléculas retidas atuam como tampões em um funil e interferem na passagem normal de íons em resposta à ligação da ACh. Por conseguinte, o bloqueio dos canais bloqueia a transmissão neuromuscular normal, não por meio da competição pelos sítios de ligação no receptor nicotínico, mas pela interferência no processo de despolarização em resposta à ligação de um agonista.23,24 Esta é uma distinção importante, visto que a paralisia induzida pelo bloqueio dos canais pode não ser antagonizada pela administração de um anticolinesterásico. De fato, a inibição da enzima colinesterase pode tornar o bloqueio mais intenso, visto que a abertura de maior número de canais iônicos em resposta à maior concentração de ACh pode proporcionar maior oportunidade de retenção das moléculas agressoras no canal. Sabe-se que muitos fármacos podem provocar bloqueio dos canais, porém o fato de que os próprios ABNMs possam causar bloqueio dos canais dos receptores neuromusculares pode fornecer uma explicação parcial sobre o motivo pelo qual a administração de um anticolinesterásico em um esforço de antagonizar um bloqueio neuromuscular profundo pode, na verdade, intensificar a paralisia, em lugar de diminuí-la.25,26

■ Agentes despolarizantes e não despolarizantes Anteriormente, foi feita uma distinção entre duas categorias principais de ABNM: os não despolarizantes, representados por fármacos como a d-tubocurarina e o atracúrio, e os despolarizantes, representados pela succinilcolina. Ambos os grupos apresentam afinidade pelo receptor de ACh e, portanto, atuam como competidores da ACh. Entretanto, a sua atividade intrínseca após a sua ligação ao sítio receptor é muito diferente. Os agentes não despolarizantes ligam-se ao receptor, porém não o ativam. Isto é, não ocorre abertura dos canais iônicos em resposta à sua ligação. Esses agentes não despolarizantes podem ser considerados como substâncias que competem pelo receptor, impedindo, assim, a ligação do ligante endógeno, a ACh, causando um fluxo de corrente. O início de ação desses fármacos caracteriza-se por um enfraquecimento progressivo da contração muscular e, por fim, paralisia flácida. Os agentes despolarizantes ligam-se também ao receptor e, à semelhança das ações da ACh, o receptor é estimulado, sofre uma mudança de conformação e resulta em fluxo de corrente e despolarização da membrana pós-juncional. Entretanto, diferentemente da ACh, a succinilcolina e outros ABNMs despolarizantes não são suscetíveis à degradação pela acetilcolinesterase, de modo que o canal iônico permanece aberto, e não ocorre repolarização. O estado persistente de despolarização associado à administração de um ABNM despolarizante resulta em perda da excitabilidade da placa motora terminal e, como

no caso de um ABNM não despolarizante, em paralisia flácida. Além do mecanismo de ação diferente dos agentes despolarizantes, várias outras diferenças são clinicamente evidentes quando se comparam os ABNMs despolarizantes e não despolarizantes. A despolarização inicial da placa motora terminal associada à ligação da succinilcolina aos receptores de ACh pós-juncionais e ativação desses receptores resulta nas contrações iniciais descoordenadas observadas clinicamente como fasciculações. A succinilcolina, a sua administração repetida ou a administração na forma de infusão resultam em uma mudança da característica do bloqueio produzido pela ação despolarizante clássica descrita anteriormente, para um bloqueio conhecido como bloqueio de Fase II, que se assemelha àquele dos agentes não despolarizantes, como a dtubocurarina. Apesar de anos de pesquisa sobre a gênese do bloqueio de Fase II, o seu mecanismo ainda não está claramente definido. A exposição prolongada dos receptores colinérgicos ao agonista succinilcolina tende a resultar em dessensibilização dos receptores, bloqueio dos canais ou uma combinação de ambos. Tanto a dessensibilização do receptor quanto o bloqueio dos canais têm propriedades que imitam as dos ABNMs não despolarizantes e que, portanto, poderiam modificar a natureza do bloqueio induzido pela succinilcolina.

Agentes bloqueadores neuromusculares Os ABNMs são compostos de amônio quaternário, projetados para simular o átomo de hidrogênio quaternário da ACh. Ligam-se aos receptores colinérgicos na placa motora terminal, bem como aos receptores colinérgicos localizados nos gânglios autônomos. Os ABNMs são, em sua maior parte, compostos hidrossolúveis de carga positiva, que apresentam um volume de distribuição limitado e, em alguns casos, um metabolismo hepático também limitado. A natureza hidrossolúvel desses compostos determina a sua acentuada diferença farmacocinética em relação à maioria dos anestésicos com os quais os médicos estão familiarizados, como tiopental, propofol e cetamina. Uma característica essencial desses agentes anestésicos lipossolúveis é o seu rápido início de ação, com término rápido do efeito após administração por via intravenosa (ver Tabela 14.1). Em virtude da lipossolubilidade desses agentes, os fármacos de indução têm acesso ao local de ação no cérebro ao atravessar rapidamente as membranas celulares, como a barreira hematoencefálica. O término do efeito anestésico ocorre por meio de rápido metabolismo e redistribuição para os músculos esqueléticos e, em última análise para o tecido adiposo. A baixa lipossolubilidade dos ABNMs deve-se principalmente às cargas positivas presentes na forma do amônio quaternário das moléculas.27 A baixa lipossolubilidade exibida pelos ABNMs determina a farmacocinética e a farmacodinâmica desses fármacos.

A sua passagem através de estruturas das membranas, incluindo a placenta e a barreira hematoencefálica, é precária, resultando em distribuição diminuída, em comparação com os anestésicos lipossolúveis. O metabolismo hepático e a redistribuição para outros locais além do músculo esquelético não constituem habitualmente mecanismos importantes para o término da ação dos ABNMs. A exceção é o vecurônio, cuja excreção biliar é importante na sua eliminação do corpo.28 Em virtude de sua solubilidade em água, os ABNMs são, em sua maioria, facilmente excretados por filtração glomerular na urina e, em geral, não são reabsorvidos pelos túbulos renais. A natureza hidrossolúvel desses fármacos também pode contribuir para a observação de que os recém-nascidos necessitam de doses relativas mais altas de ABNMs, visto que os recém-nascidos apresentam maior percentual de água corporal e, portanto, maior volume de distribuição dos fármacos hidrossolúveis, em comparação com os adultos. Algumas doses recomendadas de ABNMs em cães, gatos e equinos estão listadas na Tabela 14.2.

■ Succinilcolina A succinilcolina é, hoje em dia, o único ABNM despolarizante usado clinicamente em medicina veterinária. Do ponto de vista estrutural, a molécula de succinilcolina consiste em duas moléculas de acetilcolina unidas entre si ou diacetilcolina. O fármaco é hidrolisado tão rapidamente no plasma pela enzima pseudocolinesterase (colinesterase plasmática) que apenas uma pequena fração da dose injetada original escapa à degradação no plasma e alcança o seu local de ação na junção neuromuscular. Existe uma quantidade muito pequena de pseudocolinesterase na fenda sináptica, de modo que o término da paralisia induzida pela succinilcolina decorre da difusão do fármaco da junção neuromuscular para dentro do líquido extracelular. Paradoxalmente, a degradação rápida da succinilcolina no plasma é responsável pelo início rápido do efeito produzido pelo fármaco. Em virtude de sua rápida degradação pela pseudocolinesterase plasmática, doses comparativamente grandes de succinilcolina podem ser administradas sem medo de um aumento na duração do efeito. Quanto mais alta a dose inicial de um ABNM, mais rápido o início da paralisia; entretanto, no caso de todos os ABNMs atualmente disponíveis, com exceção da succinilcolina e, talvez, do gantacúrio, observa-se também um aumento significativo na duração da ação. Devido ao início rápido do efeito e à curta duração de ação, a succinilcolina é frequentemente designada como relaxante de escolha para facilitar a intubação endotraqueal humana. O uso de ABNM para facilitar a colocação de tubo endotraqueal não é comum na prática veterinária, visto que, com a exceção discutível do gato e dos suínos, a atividade laríngea raramente constitui um impedimento para intubação traqueal.

Tabela 14.1 Doses aproximadas e duração de ação dos relaxantes musculares administrados por via intravenosa a cães. Recuperação da contração muscular Relaxante muscular

Dose aproximada

Duração aproximada

significando o

(µg/kg)

(min)

término da duração

Referências

(porcentagem da contração basal) Atracúrio

200 a 400

17 a 28,9

50%

38

Doxacúrio

3,5

108

75%

56

Gantacúrio

60

3a6

95%

63

Mivacúrio

10

35,1

100%

58

Pancurônio

22 a 100

31 a 108

50 a 100%

68

Pipecurônio

3,7 a 50

16 a 80,7

50%

55

Rocurônio

122

6,7

90%

50, 51

Succinilcolina

300 a 400

22 a 29

10 a 50%

33

d-tubocurarina

130

100

50%

4

Vecurônio

14 a 200

15 a 42

50%

4, 47

Nota: A recuperação da contração muscular aplica-se a estudos experimentais em que foram medidas as contrações musculares evocadas após estimulação nervosa. Tabela 14.2 Doses intravenosas de agentes bloqueadores da junção neuromuscular selecionados, usadas no cão, gato e cavalo. Fármaco (mg/kg)

Cão

Gato

Cavalo

Succinilcolina

0,3 a 0,4

0,2

0,12 a 0,15

Pancurônio

0,07 a 0,1

0,06 a 0,1

0,12

Atracúrio

0,1 a 0,2

0,1 a 0,25

0,07 a 0,15

Vecurônio

0,1

0,025 a 0,1

0,1

Pipecurônio

0,05

0,003

Cisatracúrio

0,075 a 0,3

0,05 a 0,3

Mivacúrio

0,01 a 0,05

0,08

Gantacúrio (GW280430A)

0,06

0,06

Rocurônio

0,1 a 0,6

0,1 a 0,6

Doxacúrio

0,002 a 0,005

0,3 a 0,6

Com frequência, doses equipotentes dos agentes bloqueadores da junção neuromuscular são relatados na ED95. A paralisia clínica pode exigir uma dose maior ou menor do fármaco, dependendo dos agentes anestésicos concomitantes usados, da velocidade de início necessária, da duração desejada do bloqueio e da área corporal em que há necessidade de relaxamento muscular. Em geral, são administradas doses repetidas correspondendo a aproximadamente metade da dose original necessária para provocar paralisia. A pseudocolinesterase é sintetizada no fígado, e a sua produção é diminuída por: doença hepática, anemia crônica, desnutrição, queimaduras, prenhez, agentes citotóxicos, metoclopramida e inibidores da colinesterase.29-32 Pode-se esperar que uma redução na atividade da colinesterase plasmática resulte em prolongamento da duração de ação da succinilcolina.33 Foi constatado que a administração de inseticidas organofosforados, como diclorvós e triclorfon, em equinos diminui a atividade da pseudocolinesterase e prolonga a duração do bloqueio neuromuscular induzido pela succinilcolina.34 Por outro lado, gatos que usaram um colar antipulgas com diclorvós não tiveram nenhum aumento na duração do efeito da succinilcolina.35

■ Pancurônio O pancurônio foi o primeiro de uma série de ABNMs não despolarizantes com uma estrutura à base de esteroide. O fármaco apresenta início dependente da dose de cerca de 5 min e duração da ação que varia de 40 a 60 min em cães.36 Doses repetidas exercem efeito cumulativo, de modo que a administração por infusão não é comum. Uma grande fração do fármaco é excretada pelos rins, enquanto o restante é metabolizado pelo fígado. Conforme

o esperado, o período hábil apresenta-se aumentado em pacientes com insuficiência renal. Além de exibir afinidade pelos receptores colinérgicos na junção neuromuscular, o pancurônio também parece bloquear os receptores muscarínicos cardíacos, resultando em aumento da frequência cardíaca. Esse efeito parece variar entre espécies habitualmente não representa um problema clínico. O efeito bloqueador dos receptores muscarínicos e a taquicardia associada parecem ser causados pela presença de uma segunda carga positiva ligada ao anel esteroide. A remoção de um único grupo metila e, portanto, da carga positiva dá origem ao vecurônio, um ABNM essencialmente desprovido de efeitos cardiovasculares.

■ Atracúrio O atracúrio é um ABNM não despolarizante de ação curta, que apresenta uma estrutura benzilisoquinolina semelhante à da d-tubocurarina. O fármaco tem início de ação dependente da dose de cerca de 5 min e duração de ação dependente de aproximadamente 30 min em cães.37 A repetitividade de doses não tende a efeitos cumulativos, de modo que a manutenção a longo prazo do bloqueio neuromuscular por meio de infusão é viável. A atracúrio é singular, visto que quase metade sofre degradação por eliminação de Hofmann e hidrólise inespecífica do éster. A fração remanescente do fármaco é degradada por vias que ainda não estão bem definidas, embora existam evidências de que a duração de sua ação não seja prolongada em seres humanos com insuficiência hepática ou renal.38,39 Por conseguinte, o metabolismo hepático e a excreção renal não são estritamente necessários para o término do efeito paralítico, e, por conseguinte, o atracúrio pode ser administrado a pacientes com insuficiência hepática ou renal, sem aumentar o período hábil. O fármaco deve ser refrigerado e fornecido em pH de 3,25 a 3,65 para retardar a degradação. A eliminação de Hofmann não é um processo biológico e não exige atividade enzimática. Quando injetado por via intravenosa em pH fisiológico e temperatura normal, o atracúrio sofre decomposição espontânea em laudanosina e monoacrilato quaternário. A laudanosina é um estimulante do SNC conhecido e tem o potencial de provocar convulsões. Diferentemente do atracúrio, a laudanosina depende da depuração hepática, de modo que as suas concentrações plasmáticas podem estar elevadas em pacientes com insuficiência hepática. Apesar das preocupações teóricas, a estimulação do SNC induzida pela laudanosina e as convulsões resultantes têm pouca probabilidade de ocorrer em pacientes clínicos, a não ser que o fármaco seja administrado por períodos prolongados, como pode ocorrer em unidades de terapia intensiva. Como a eliminação de Hofmann é um processo dependente do pH e da temperatura, a hipotermia irá aumentar a duração do bloqueio neuromuscular do atracúrio e diminuir a velocidade de infusão necessária para manter o bloqueio neuromuscular.40 A hidrólise do

éster do atracúrio é realizada por várias esterases plasmáticas, que não estão relacionadas com a colinesterase plasmática. Diferentemente do relaxante despolarizante succinilcolina, a duração de ação do atracúrio não é prolongada na presença de inibidores da colinesterase. Muitos ABNMs com estrutura de benzilisoquinolina estão associados à liberação de histamina e a um grau variável de hipotensão resultante. A d-tubocurarina, o protótipo do ABNM de benzilisoquinolina, está entre os ABNMs mais potentes que provocam liberação de histamina; entretanto, fármacos mais recentes com a estrutura benzilisoquinolina, como o atracúrio e o mivacúrio, exigem uma dose várias vezes a ED95 necessária para produzir bloqueio neuromuscular para que ocorra liberação de quantidades apreciáveis de histamina.41,42 Embora o atracúrio tenha o potencial de resultar em liberação de histamina, problemas como hipotensão e taquicardia habitualmente não são observados nos casos clínicos.

■ Cisatracúrio O atracúrio é uma mistura racêmica de dez isômeros ópticos. O isômero 1R-cis, 1R'-cis, ou cisatracúrio compreende cerca de 15% do atracúrio racêmico e tem aproximadamente quatro vezes a sua potência, com potencial reduzido de liberação de histamina. Com efeito, em um estudo de gatos, as concentrações plasmáticas de histamina permaneceram inalteradas quando foi administrada uma dose de cisatracúrio de até 60 vezes a ED95.43 O cisatracúrio apresenta início e duração de ação semelhantes aos do atracúrio. A eliminação de Hofmann é responsável por mais da metade da dose administrada de cisatracúrio; todavia, diferentemente do atracúrio, não ocorre hidrólise de éster. À semelhança do atracúrio, o processo de eliminação de Hofmann resulta na produção de laudanosina. Como o cisatracúrio é aproximadamente quatro vezes mais potente do que o atracúrio, a dose administrada é correspondentemente menor, assim como a produção resultante de laudanosina.44

■ Vecurônio Introduzido na década de 1980, o vecurônio foi um dos primeiros ABNM desprovidos de efeitos cardiovasculares. A descoberta de que as propriedades vagolíticas observadas com a administração de pancurônio eram devidas à presença de duas cargas positivas na molécula esteroide levou os pesquisadores a remover um grupo metila da molécula original de pancurônio. O vecurônio, a substância produzida a partir dessa modificação, não induz taquicardia nem promove a liberação de histamina.45 Com efeito, nos cães, o vecurônio não altera a pressão arterial.46 Esse fármaco tem início de ação dependente da dose de cerca de 5 min e duração de ação intermediária de 30 min, semelhante àquela do atracúrio. À semelhança do atracúrio, um efeito cumulativo com doses subsequentes não constitui uma

característica proeminente desse fármaco. O vecurônio é instável quando preparado em solução e, portanto, é fornecido na forma de pó liofilizado, que é reconstituído com água estéril antes da injeção. O pó não precisa de refrigeração e, uma vez reconstituída, a solução é estável por 24 h. Pouco mais da metade do fármaco é metabolizada por microssomos hepáticos e excretada na bile, enquanto uma fração significativa sofre eliminação renal.47 Nos seres humanos, a duração de ação do vecurônio é ligeiramente prolongada ou inalterada em pacientes que apresentam insuficiência renal. Em pacientes com insuficiência hepática, a duração da ação só é prolongada se forem administradas doses elevadas.48

■ Rocurônio O rocurônio é um derivado do vecurônio, com aproximadamente um oitavo da potência do composto original. Tendo em vista que o vecurônio e o rocurônio têm pesos moleculares semelhantes, e o rocurônio tem menor potência, uma dose mais alta de rocurônio injetada faz com que maior número de moléculas esteja próximo da junção neuromuscular, resultando em início mais rápido do bloqueio neuromuscular. Apesar de um início mais rápido em comparação com o atracúrio e o vecurônio, o rocurônio não pode proporcionar condições ideais tão rapidamente quanto a succinilcolina para intubação traqueal humana. A duração de ação em cães assemelha-se àquela do vecurônio e do atracúrio.49,50 À semelhança do vecurônio, o rocurônio parece estar praticamente desprovido de efeitos adversos cardiovasculares e não provoca liberação de histamina.51 A principal via de eliminação é constituída pelo sistema hepático, enquanto uma pequena fração é eliminada pelos rins.42 Os efeitos de bloqueio neuromuscular do rocurônio e do vecurônio podem ser revertidos pela administração de sugamadex, um agente quelante que se liga preferencialmente ao ABNM e o remove fisicamente da placa motora.52-54

■ Pipecurônio O pipecurônio é outro relaxante esteroide derivado do pancurônio. A manipulação da estrutura esteroide resultou em um agente relaxante, que apresenta efeitos antimuscarínicos acentuadamente reduzidos, de modo que o pipecurônio não provoca taquicardia, enquanto continua apresentando uma longa duração de ação. A sua administração resultou em hipotensão em cães.55 À semelhança do pancurônio, o pipecurônio é eliminado principalmente por via renal, enquanto uma fração menor sofre excreção biliar.

■ Doxacúrio O doxacúrio é um ABNM da benzilisoquinolina muito potente, com longa duração de ação.56 De modo semelhante a outros ABNM de benzilisoquinolina, como o atracúrio, o

fármaco não apresenta propriedades vagolíticas nem resulta em bloqueio ganglionar. À semelhança do cisatracúrio, a administração de doses clinicamente úteis de doxacúrio não provoca liberação apreciável de histamina. O doxacúrio parece sofrer metabolismo mínimo e é excretado de modo inalterado na bile e na urina.

■ Mivacúrio O mivacúrio é um ABNM de ação rápida e duração curta, que é comercializado para uso em seres humanos na intubação traqueal. À semelhança do atracúrio, uma benzilisoquinolina relacionada, o mivacúrio tem o potencial de induzir a liberação de histamina, particularmente quando são administradas altas doses, como ocorre com frequência quando se deseja um início rápido dos efeitos. O mivacúrio sofre degradação pela pseudocolinesterase plasmática, e os metabólitos não exibem atividade apreciável de bloqueio neuromuscular. As doses típicas administradas no homem têm um período hábil de aproximadamente 25 min, que é metade a um terço mais curta que a do atracúrio. O mivacúrio exibe diferenças marcantes na sua potência e duração de ação entre espécies, sendo muito mais potente em cães do que nos seres humanos. Com efeito, nos cães, a administração de um terço da dose típica usada em seres humanos está associada a uma duração de bloqueio cinco vezes mais longa do que nos seres humanos.57 As diferenças nestes período hábeis entre espécies podem refletir, em parte, a quantidade circulante de pseudocolinesterase presente, visto que os níveis plasmáticos normais de colinesterase em cães são de 19 a 76% dos valores encontrados em seres humanos.58 Além disso, é possível que a pseudocolinesterase canina tenha uma afinidade diferente pelos três isômeros primários do mivacúrio encontrados na formulação comercial.49 As observações clínicas realizadas em gatos indicam que o mivacúrio apresenta uma duração de ação muito mais curta nessa espécie, em comparação com cães (observação pessoal de RDK).

■ Gantacúrio O gantacúrio é um ABNM não despolarizante de ação rápida e duração ultracurta, que atualmente está sendo submetido a ensaios clínicos humanos. Do ponto de vista estrutural, é distinto dos compostos esteroides e de benzilisoquinolina tradicionais e é classificado como clorofumarato mixed-onium assimétrico. O gantacúrio não é estável em solução aquosa, e, à semelhança do vecurônio, o fármaco é fornecido em pó liofilizado, que é reconstituído antes da administração. Nos seres humanos, a dose necessária para produzir um bloqueio de 95% (ED95) é de 0,19 mg/kg.59 Após administração do bolus IV de 0,45 a 0,54 mg/kg (2,5 a 3× ED95), foram obtidas condições ideais para intubação em 90 s.57,60 Além de seu período de latência rápido de ação nos seres humanos, o gantacúrio apresenta um período hábil de curta duração, aproximadamente 14 min, com uma dose de 0,4 mg/kg;

à semelhança da succinilcolina, o aumento da dose administrada em um esforço de aumentar o início não prolonga acentuadamente a duração.61 Em cães anestesiados com tiopental, óxido nitroso e isofluorano, a ED95 foi de 0,06 mg/kg, o período de início foi de 107 s, e o período hábil foi de 5,2 min.62 Em seres humanos, o gantacúrio tem o potencial de liberar histamina em doses acima de 2,5× ED95. A liberação de histamina foi acompanhada de redução clinicamente significativa da pressão arterial, elevação da frequência cardíaca e rubor facial.57 Por outro lado, não foi observada a ocorrência de liberação clinicamente significativa de histamina em cães nos quais foram administradas doses de bolus IV de até 25× ED95.60 O gantacúrio apresenta duas vias de degradação, que são responsáveis pela sua duração de ação previsivelmente ultracurta. A primeira via consiste em hidrólise sensível ao pH no plasma, enquanto a segunda envolve a ligação do aminoácido não essencial cisteína à estrutura em anel do gantacúrio. A cisteína endógena ou de administração exógena substitui o átomo de cloro e satura a dupla ligação do fumarato.63 Por conseguinte, o gantacúrio torna-se inativo, com retorno da transmissão neuromuscular.

Efeitos não neuromusculares dos ABNMs Os ABNMs exercem a sua principal ação nos receptores colinérgicos nicotínicos da placa motora, porém também desempenham efeitos em outros receptores colinérgicos distribuídos por todo o corpo. Os receptores colinérgicos que podem ser afetados pelos ABNMs incluem receptores muscarínicos cardíacos e gânglios do sistema nervoso autônomo. Muitos desses efeitos indesejáveis envolvem o bloqueio do receptor ou uma simulação da ação da ACh. Além disso, muitos ABNMs promovem a liberação de histamina e de outras substâncias vasoativas dos mastócitos. Outros efeitos indesejáveis ainda podem resultar da fasciculação muscular inicial associada à administração de ABNMs despolarizantes, como a succinilcolina.

■ Efeitos cardiovasculares A acetilcolina é o principal neurotransmissor não apenas dos receptores nicotínicos na placa motora do músculo esquelético, mas também dos receptores muscarínicos do sistema nervoso parassimpático e gânglios simpáticos. A ACh é o principal neurotransmissor dos neurônios pré e pós-ganglionares no sistema nervoso parassimpático, enquanto o sistema nervoso simpático utiliza a ACh como neurotransmissor pré-ganglionar. A presença ubíqua da ACh e as semelhanças estruturais entre a ACh e os ABNMs fornecem a oportunidade para que os ABNMs exerçam outros efeitos além da ação paralítica. A estimulação ou o bloqueio dos receptores muscarínicos cardíacos ou dos gânglios simpáticos resultam em

elevações ou reduções da frequência cardíaca e no desenvolvimento de arritmias cardíacas. A succinilcolina imita o efeito da ACh nos receptores muscarínicos cardíacos, resultando em bradicardia sinusal, ritmos juncionais e até mesmo parada sinusal.64,65 Por outro lado, em virtude de seus efeitos semelhantes aos da ACh nos gânglios simpáticos, a succinilcolina administrada pode resultar em elevação da frequência cardíaca e da pressão arterial.66 Os agentes não despolarizantes, em particular os mais antigos, também podem influenciar o estado cardiovascular do paciente. A injeção rápida intravenosa de uma dose paralisante de d-tubocurarina pode resultar em diminuição significativa da pressão arterial. Um possível mecanismo envolvido é o bloqueio da ação da ACh nos gânglios simpáticos pela d-tubocurarina injetada, resultando, assim, em diminuição efetiva do tônus simpático, com consequente hipotensão. Como alternativa, a liberação de histamina associada à administração por via intravenosa rápida de d-tubocurarina provavelmente é responsável pela maior parte da hipotensão observada, visto que a administração por via intravenosa lenta ou a administração prévia de um anti-histamínico atenuam a redução da pressão arterial observada após a administração.67 A administração por via intravenosa rápida de pancurônio está associada a elevação da frequência cardíaca e aumento correspondente da pressão arterial e do débito cardíaco.68,69 Foi constatado que esse efeito de taquicardia é causado pelo bloqueio dos receptores muscarínicos cardíacos e consequente diminuição da atividade do sistema nervoso parassimpático.70 Além disso, há evidências de que o pancurônio possa estimular a liberação de norepinefrina dos nervos simpáticos.71 A elevação moderada da frequência cardíaca nem sempre é desvantajosa, particularmente quando outros fármacos que causam bradicardia, como os opioides, são administrados concomitantemente a um paciente que está recebendo pancurônio. A capacidade do pancurônio de induzir um aumento da frequência cardíaca é inconsistente entre as espécies. Em cães, o pancurônio aumenta a frequência cardíaca, a pressão arterial e o débito cardíaco.55,56 A frequência cardíaca não é alterada em equinos anestesiados com halotano aos quais se administra pancurônio,72 porém foi observado uma elevação tanto da frequência cardíaca quanto da pressão arterial em pôneis.73 De modo semelhante ao efeito observado em equinos, o pancurônio não alterou a frequência cardíaca ou a pressão arterial de bezerros anestesiados,74 porém resultou em elevação da frequência cardíaca e da pressão arterial em suínos.75 Os agentes mais recentes e de duração intermediária, como atracúrio e vecurônio, são praticamente desprovidos de efeitos cardiovasculares. O atracúrio e o mivacúrio têm o potencial de induzir a liberação de histamina; entretanto, observa-se raramente a ocorrência de redução da pressão arterial quando os fármacos não são administrados em bolus intravenoso rápido. Os fármacos mais novos, o pipecurônio, o doxacúrio e o rocurônio,

foram projetados tendo em mente a manutenção de estabilidade cardiovascular, e é improvável que estejam associados a alterações profundas da função cardiovascular.

■ Liberação de histamina A estrutura de amônio quaternário inerente aos ABNMs é responsável pela propensão de muitos desses compostos a induzir a liberação de histamina após injeção intravenosa. A liberação de histamina em animais provoca vasodilatação, diminuição da pressão arterial e, possivelmente, aumento compensatório da frequência cardíaca. A liberação de histamina está habitualmente associada à administração de ABNM da classe da benzilisoquinolina, porém também foi relatada com relaxantes esteroides de baixa potência.76 O relaxante dtubocurarina é um potente indutor da liberação de histamina nas doses necessárias para produzir bloqueio neuromuscular, e, portanto, é comum observar a ocorrência de liberação de histamina, vasodilatação e aumento da frequência cardíaca.54 Quanto aos ABNMs mais recentes, a dose necessária para induzir uma liberação clinicamente significativa de histamina é muito maior do que a dose necessária para produzir relaxamento. Por exemplo, nos homens, é necessária uma dose aproximadamente 2,5 vezes a ED95 do atracúrio para causar liberação clinicamente significativa de histamina.77 O pré-tratamento de pacientes com antagonistas dos receptores H1 e H2 mostra-se efetivo na prevenção dos efeitos associados à liberação de histamina.78 Em pacientes clínicos, a preocupação quanto à liberação de histamina com o uso dos ABNMs mais recentes pode ser evitada simplesmente pela administração dos relaxantes por injeção intravenosa lenta, evitando a administração de doses mais altas do que as recomendadas.

■ Transferência placentária Todos os ABNMs usados clinicamente consistem em grandes moléculas polares hidrofílicas, e, em consequência, a sua transferência através das membranas celulares, incluindo a placenta, é limitada. Em doses clínicas, a transferência placentária de relaxantes é mínima, e os efeitos sobre o recém-nascido são improváveis. Atualmente, o uso de ABNMs é disseminado nas cesarianas em seres humanos, e o atracúrio e a succinilcolina têm sido usados clinicamente em pequenos e grandes animais domésticos, sem detecção de efeitos sobre os recém-nascidos. A administração de ABNMs, como pancurônio, succinilcolina, galamina e d-tubocurarina, a furões e gatas prenhes não comprometeu a força da contração muscular nos recém-nascidos.79

■ Efeitos sobre o sistema nervoso central Por serem grandes moléculas hidrofílicas e polares, os ABNMs não atravessam rapidamente as membranas celulares. Entretanto, existem evidências de que esses agentes

tenham a capacidade, em sua maioria, de entrar no LCS, podendo estar associados a efeitos resultantes no SNC. Em um estudo, foi relatado que o pancurônio diminui a CAM do halotano em seres humanos.80 Entretanto, um estudo subsequente nos homens constatou que o pancurônio, o atracúrio ou o vecurônio não tinham nenhum efeito sobre a CAM do halotano.81 A administração acidental de ABNM no LCS resultou em miotonia, efeitos autônomos e crises convulsivas.82,83 A laudanosina é um produto de degradação do atracúrio, que atravessa facilmente a barreira hematoencefálica em cães84 e, em grandes doses, pode resultar em estimulação do SNC. Entretanto, doses clinicamente usadas de atracúrio não têm probabilidade de resultar na formação de laudanosina em quantidades suficientes para causar estimulação do SNC.

■ Ligação às proteínas Todos os ABNM não despolarizantes ligam-se às proteínas, porém a importância clínica dessa ligação não está bem esclarecida. Presumivelmente, apenas a fração não ligada do fármaco está disponível para interagir com receptores de ACh e induzir paralisia. Além disso, deve-se esperar que a ligação às proteínas reduza a eliminação renal, visto que apenas o fármaco livre não ligado às proteínas é filtrado no glomérulo. Em estudos de pacientes humanos portadores de cirrose hepática com concentrações plasmáticas diminuídas de proteínas, a proporção de d-tubocurarina, pancurônio e vecurônio ligada às proteínas plasmáticas não foi diferente, em comparação com pacientes saudáveis apresentando concentrações plasmáticas normais de proteínas.85,86 Por conseguinte, apesar das preocupações teóricas sobre um aumento da proporção do fármaco livre ativo em consequência de baixos níveis de proteínas plasmáticas, a quantidade de ABNM ligada às proteínas parece permanecer inalterada nos estados de hipoproteinemia.

■ Efeitos não neuromusculares da succinilcolina Vários efeitos colaterais não neuromusculares indesejáveis estão associados à administração de doses clinicamente úteis do ABNM não despolarizante, a succinilcolina. Esses efeitos consistem em hiperpotassemia, elevação das pressões intraocular, intracraniana e intragástrica e dores musculares. Hiperpotassemia A administração de succinilcolina está associada a um aumento transitório nos níveis séricos de potássio. A succinilcolina liga-se aos receptores nicotínicos da placa motora terminal e os ativa; entretanto, diferentemente da ACh, ela não é imediatamente degradada pela enzima acetilcolinesterase. Por conseguinte, observa-se a persistência de um estado de despolarização, que se caracteriza pela abertura dos canais iônicos. Quando esses canais

estão abertos, os íons potássio são capazes de sair da fibra muscular para dentro do espaço de líquido extracelular. Em consequência, ocorre elevação transitória das concentrações séricas de potássio após a administração de succinilcolina. Todavia, em pacientes saudáveis, esse aumento transitório não produz efeitos adversos, contanto que não exista doença cardiovascular, e os níveis de potássio estejam normais antes da administração. Em pacientes que apresentam queimaduras, traumatismo muscular grave, denervação muscular, dano nervoso ou doença neuromuscular, os receptores de ACh extrajuncionais proliferam na superfície da membrana da fibra muscular. Esse aumento na densidade de receptores está associado a um aumento da sensibilidade aos relaxantes musculares despolarizantes e também a um aumento na quantidade de potássio intracelular liberada em resposta à administração de succinilcolina. O aumento na densidade de receptores de ACh só ocorre em cerca de 2 dias após a lesão e parece persistir por 2 a 3 meses.87 À semelhança do efeito observado nas queimaduras e lesões por denervação, a imobilização prolongada de um membro também está associada a aumento na densidade de receptores de ACh. Como no caso de pacientes com queimaduras, pode-se esperar aumento nos níveis séricos de potássio se for administrada succinilcolina a esses pacientes. Pressão intraocular A administração de succinilcolina está associada a elevação da pressão intraocular. Nos seres humanos, o pico de pressão intraocular ocorre em 2 a 4 min, e a pressão permanece elevada durante pelo menos 6 min após a administração.88 O mecanismo responsável pela elevação da pressão intraocular permanece desconhecido, porém envolve provavelmente a circulação ocular, visto que a administração de nifedipino, um bloqueador dos canais de cálcio, atenua esse aumento.89 A administração de succinilcolina a pacientes que sofreram lesões oculares penetrantes tem o potencial de resultar em perda do conteúdo ocular. Nos seres humanos, existe controvérsia quanto ao fato de a administração de um ABNM não despolarizante antes da succinilcolina impedir a elevação da pressão intraocular. Entretanto, como a maioria dos animais domésticos é facilmente intubada sem a ajuda de um ABNM, é provavelmente prudente evitar o uso de succinilcolina em pacientes veterinários que apresentam lesões oculares perfurantes. É importante perceber que qualquer técnica de indução capaz de provocar ânsia ou tosse forte também irá elevar as pressões intraocular e intracraniana, de modo que o seu uso deve ser evitado em pacientes com bulbo do olho aberto. Por conseguinte, a indução com um anestésico injetável de ação rápida e suave é crucial, assegurando que seja alcançada uma profundidade anestésica adequada antes de tentar a intubação traqueal. Pressão intragástrica

A administração de succinilcolina provoca despolarização inicial da placa motora terminal, que se manifesta clinicamente na forma de fasciculações musculoesqueléticas. As fasciculações musculares causam compressão abdominal e consequente elevação da pressão intragástrica. Teoricamente, o aumento da pressão intragástrica pode aumentar a incidência de regurgitação e pode agravar o prognóstico em cães que apresentam dilatação volvulogástrica. Pressão intracraniana A fasciculação muscular transitória induzida pela succinilcolina pode ser responsável pela elevação da pressão intracraniana observada após a sua administração. Nos seres humanos, pode-se evitar o aumento da pressão intracraniana pela administração prévia do ABNM não despolarizante, a d-tubocurarina. Nesse caso também, como a maioria dos animais domésticos em geral pode ser facilmente intubada, sem o uso de um ABNM de ação rápida, recomenda-se que a succinilcolina seja evitada em pacientes que apresentam hipertensão intracraniana. À semelhança das lesões oculares penetrantes, é desejável uma indução rápida e suave da anestesia, sem tosse e sem o animal se debater, para evitar elevações desnecessárias da pressão intracraniana. Resposta muscular A administração de succinilcolina frequentemente está associada a dores musculares pósanestésicas. Foi sugerido que essa mialgia pós-anestésica resulta de fasciculações musculares que ocorrem durante a despolarização inicial da placa motora terminal.90 Além disso, parece existir uma boa correlação entre a intensidade das fasciculações e a intensidade da dor muscular.91 Embora as enzimas musculoesqueléticas, como a creatinoquinase, aumentem tanto em seres humanos92,93 quanto em animais94 após a administração de succinilcolina, não se sabe atualmente se os animais sofrem dor muscular semelhante àquela dos seres humanos.

Relaxantes musculares em animais anestesiados A maioria dos animais pode ser intubada com relativa facilidade sem paralisia, e o relaxamento muscular produzido por agentes anestésicos inalatórios é adequado para a maioria dos procedimentos. Embora relaxantes musculares sejam frequentemente administrados a pacientes humanos para facilitar a intubação endotraqueal e o acesso cirúrgico, o emprego de relaxantes musculares na prática veterinária não é tão comum. Quando se considera o uso de ABNMs, os veterinários precisam inicialmente se familiarizar com a farmacologia e a implementação clínica da ventilação mecânica, além de desenvolver habilidades no monitoramento da profundidade da anestesia em pacientes

paralisados.

■ Indicações Os relaxantes musculares podem ser administrados por vários motivos. Tipicamente, são administrados com hipnóticos para eliminar o espasmo laríngeo e facilitar o rápido controle da via respiratória. A necessidade de um olho imóvel em posição central durante a cirurgia intraocular ou de córnea frequentemente exige o uso de um relaxante muscular. Outras indicações incluem a prevenção do movimento espontâneo inconsciente, a redução da resistência à ventilação controlada e a facilitação do acesso cirúrgico durante a cirurgia.

■ Precauções Como os músculos da respiração estão paralisados, a ventilação precisa ser controlada, seja por ventilação mecânica ou por um membro da equipe que possa efetuar ventilação manual do paciente até a restauração da força muscular. Os relaxantes musculares não têm propriedades sedativas, anestésicas ou analgésicas, de modo que é de importância crítica que o animal seja adequadamente anestesiado para que alcance um estado de inconsciência completa. A avaliação do nível de anestesia em um paciente paralisado é mais difícil do que no paciente não paralisado, visto que alguns indicadores de profundidade (p. ex., movimento intencional em resposta a um estímulo nocivo, reflexo palpebral e tônus da mandíbula) estão abolidos. Quando se inclui um ABNM em um protocolo de anestesia, os anestesistas precisam estar seguros de que podem manter de modo seguro um plano adequado de anestesia cirúrgica e nível de ventilação. Historicamente, os relaxantes musculares eram administrados isoladamente a animais para captura ou contenção, incluindo o uso de um único agente para procedimentos cirúrgicos breves (p. ex., castração de equinos). No momento atual, o uso dessas práticas desumanas não se justifica, devido à disponibilidade disseminada de anestésicos seguros e efetivos. A administração de um ABNM isoladamente a um paciente desperto para fins de imobilização também é considerada desumana.

■ Seleção Ao escolher um relaxante muscular, é preciso considerar muitos fatores, incluindo a espécie, a razão para a paralisia, a duração, o estado de saúde do paciente e a administração concomitante de fármacos. Os relaxantes diferem quanto a início e duração da ação, efeitos cardiovasculares e via de eliminação. Se houver necessidade de início rápido e curta duração de ação, a escolha pode incluir o rocurônio ou o mivacúrio, enquanto o doxacúrio pode ser selecionado para uma ação mais longa, sem efeitos cardiovasculares significativos. O atracúrio é metabolizado por meio de eliminação de Hofmann e pode

constituir uma boa escolha na presença de doença hepática ou renal.38,39 Como muitos fatores irão afetar a intensidade e a duração da paralisia muscular, o monitoramento do bloqueio neuromuscular é útil para titular a dose necessária para alcançar o efeito desejado. É importante lembrar que os grupos musculares individuais respondem diferentemente aos relaxantes musculares. O diafragma é menos sensível aos efeitos dos relaxantes musculares, em comparação com os músculos dos membros.95 Por conseguinte, pode ser necessária uma dose mais alta para suprimir a ventilação espontânea, em comparação com a dose usada para facilitar a redução de uma fratura. Em equinos, quando se administra uma dose de relaxante muscular necessária para suprimir a contração dos cascos, a contração muscular facial frequentemente permanece, embora em menor intensidade.96,97 Quando não se monitora a tensão da contração nos cascos, deve-se reconhecer que a contração muscular facial pode estar presente até mesmo quando foi obtido um relaxamento adequado no membro para a realização do procedimento cirúrgico.

Fatores que afetam o bloqueio neuromuscular Diversos fatores podem influenciar a duração da ação, a intensidade e a recuperação do bloqueio neuromuscular. Sempre que um relaxante muscular for administrado, pode-se monitorar a função neuromuscular durante a anestesia, bem como os períodos de recuperação para reduzir ao máximo a sobredose e a paralisia residual.

■ Comprometimento do metabolismo e da excreção A insuficiência hepática pode alterar o efeito inicial de relaxantes musculares não despolarizantes, devido a um aumento no volume de distribuição. Entretanto, seu efeito pode ser aumentado em consequência de uma eliminação diminuída, particularmente quando são administrados fármacos que dependem da biotransformação hepática (p. ex., vecurônio).98-100 O comprometimento da função hepática também pode prolongar o bloqueio neuromuscular ou causar bloqueio residual.101 Em geral, os relaxantes musculares não apresentam alta ligação à albumina, que tipicamente é inferior a 50%.102-105 Por conseguinte, o efeito final de uma baixa concentração de albumina pode não ser clinicamente significativo. A diminuição da atividade da esterase pode reduzir a velocidade de biotransformação do mivacúrio e do atracúrio. Pacientes com obstrução biliar podem apresentar redução na depuração hepática dos relaxantes musculares.106 O impacto clínico da insuficiência hepática depende do ABNM específico e da dose administrada. Em pacientes com insuficiência renal, a paralisia pode ser prolongada quando são administrados relaxantes musculares que dependem predominantemente da eliminação renal (galamina, pancurônio ou doxacúrio).107-110 A recuperação após a administração de

mivacúrio também pode ser prolongada, possivelmente em consequência da atividade diminuída da pseudocolinesterase.111 A farmacocinética do atracúrio geralmente não é afetada; entretanto, se for administrada uma infusão de velocidade constante a um paciente com insuficiência renal, os níveis de laudanosina podem estar aumentados.112 É melhor evitar o uso de altas doses, doses repetidas ou infusões contínuas de relaxantes musculares que dependem principalmente da eliminação renal em pacientes com doença renal significativa.

■ Fármacos anestésicos Os agentes anestésicos inalatórios provocam aumento dependente de tempo e da dose na intensidade e duração do bloqueio produzido pelos relaxantes musculares.113 A explicação dessa interação é complexa, visto que os agentes inalatórios suprimem os potenciais motores evocados em resposta à estimulação da medula espinal e transcraniana. A contratilidade muscular é alterada, e a variação no fluxo sanguíneo muscular regional faz com que maior fração do relaxante alcance o local de ação.114 Os efeitos são maiores após a administração de um relaxante de ação longa ou durante uma infusão contínua. A ordem de potência de alguns dos anestésicos inalatórios na intensificação dos efeitos relaxantes musculares é a seguinte: éter dietílico > enfluorano > isofluorano > desfluorano > halotano.114 Além disso, o antagonismo do bloqueio pode ser retardado, particularmente se a anestesia inalatória for mantida após a administração do agente de reversão. O monitoramento da função neuromuscular facilita a dose apropriada dos relaxantes musculares durante a anestesia inalatória. A maioria dos agentes anestésicos injetáveis tem apenas efeitos mínimos sobre as propriedades de relaxantes musculares dos agentes bloqueadores neuromusculares. Os agentes de indução, como o tiopental, a cetamina e o propofol podem aumentar ligeiramente o bloqueio neuromuscular.114

■ Distúrbios acidobásicos Em geral, a acidose respiratória aumenta a intensidade do bloqueio muscular, enquanto a alcalose respiratória a diminui.115-118 Tanto a acidose metabólica quanto a alcalose metabólica podem potencializar os efeitos dos relaxantes musculares e dificultar ainda mais o antagonismo da paralisia muscular induzida por relaxantes.115,116,118,119

■ Distúrbios eletrolíticos As alterações nas concentrações séricas de potássio, magnésio e cálcio influenciam o bloqueio neuromuscular. A diminuição do potássio extracelular resulta em hiperpolarização da placa motora e resistência à despolarização induzida pela ACh.120 Um aumento relativo do potássio extracelular diminui o potencial de repouso da membrana, opondo-se ao efeito

do relaxante muscular.120 As concentrações séricas elevadas de magnésio competem com o cálcio ionizado, diminuindo a liberação de ACh. Por conseguinte, em pacientes aos quais se administra sulfato de magnésio, a duração de ação dos relaxantes musculares pode aumentar.121 A hipocalcemia diminui a liberação de ACh, o potencial de ação muscular e a força da contração muscular, aumentando, assim, o efeito do bloqueio neuromuscular.120,122 Tipicamente, a hipercalcemia diminui o efeito da d-tubocurarina, do pancurônio e, possivelmente, de outros ABNM, resultando em necessidade de doses mais altas para obter uma paralisia.120

■ Hipotermia Em geral, a hipotermia retarda a eliminação do fármaco e diminui a condução nervosa e a contração muscular. O efeito clínico global irá variar de acordo com o grau de hipotermia e o ABNM administrado.

■ Idade A juventude está associada a mudanças nas doses de relaxantes musculares. A imaturidade dos receptores e a diminuição da depuração parecem aumentar a potência dos relaxantes musculares em jovens.123-125 Por outro lado, animais muito jovens podem necessitar de doses mais altas de relaxantes musculares, devido ao aumento do líquido extracelular e a um maior volume de distribuição, em comparação com adultos. Além disso, nos animais mais jovens, o período de latência do fármaco é mais rápido, enquanto a função neuromuscular, ou seja, a reversão é mais rápida, de modo que menor dose de antagonista é habitualmente necessária na finalização do procedimento.126 Embora os dados de estudos publicados nem sempre sejam bem definidos, a idade avançada pode estar associada a um aumento do efeito dos relaxantes musculares, talvez em virtude de menor volume de distribuição e taxa diminuída de depuração. Em pacientes idosos humanos, um atraso na reversão e a necessidade de doses mais altas de agentes para reversão são comuns e, provavelmente, atribuíveis a uma recuperação espontânea mais lenta.127,128

■ Distúrbios neuromusculares Os animais com distúrbios neuromusculares podem exibir respostas imprevisíveis aos relaxantes musculares tanto despolarizantes quanto não despolarizantes. É preciso ter cuidado quando se administram relaxantes musculares a pacientes com distúrbios neuromusculares ou com história de fraqueza muscular ou perda da massa muscular. As neuropatias periféricas podem ser classificadas em idiopáticas, familiares, metabólicas ou imunomediadas. Em pacientes humanos, a neuropatia periférica pode aumentar o efeito dos

relaxantes musculares não despolarizantes, devido à lesão neural e à possibilidade de suprarregulação induzida por denervação.129 Esses pacientes também podem estar predispostos à hiperpotassemia induzida pela succinilcolina.130 Patologias como a “doença do carrapato” e o botulismo comprometem a liberação pré-sináptica de ACh. Os pacientes com distúrbios neuromusculares pré-sinápticos exibem maior sensibilidade aos relaxantes musculares não despolarizantes. A miastenia gravis é uma doença autoimune, que provoca fraqueza muscular generalizada em consequência da diminuição do número de receptores de ACh na placa motora terminal da membrana muscular. A ACh é liberada normalmente, porém o seu efeito sobre a membrana pós-sináptica é reduzido. Os pacientes com miastenia gravis podem ser resistentes à paralisia induzida pela succinilcolina, porém são extremamente sensíveis aos relaxantes não despolarizantes e apresentam sensibilidade aumentada ao bloqueio de Fase II induzido pela succinilcolina.131,132 Esses pacientes não parecem ser mais sensíveis à hiperpotassemia induzida pela succinilcolina ou à hipertermia maligna.133 A partir de relatos publicados de cães com miastenia gravis, as recomendações para a dose inicial de atracúrio e de vecurônio são de 0,1 mg/kg e 0,02 mg/kg, respectivamente.134,135

■ Interações com agentes antimicrobianos e outras interações medicamentosas Os efeitos mais notáveis do bloqueio neuromuscular ocorrem com a administração de polimixina e antimicrobianos aminoglicosídios, mas também podem ser observados com a tetraciclina, a lincomicina e a clindamicina. As polimixinas podem deprimir a sensibilidade pós-sináptica à ACh e intensificar o bloqueio dos canais.136,137 O antagonismo com neostigmina ou cálcio pode ser difícil e não confiável.137 Os aminoglicosídios, como a gentamicina, a canamicina, a neomicina, a estreptomicina e a tobramicina, apresentam um local de ação pré-sináptico, conforme evidenciado pela liberação deprimida de ACh. A capacidade de antagonizar o bloqueio com cálcio sustenta esse mecanismo e local de ação.137 Estudos realizados em gatos e cavalos anestesiados aos quais foi administrado atracúrio demonstraram uma redução significativa na força de contração após a administração de gentamicina (2 mg/kg IV), porém o tempo de recuperação não foi significativamente alterado.138,139 Gatos tratados com gentamicina (10 mg/kg IV) durante o bloqueio neuromuscular mostraram diminuição significativa na resposta de contração muscular tibial cranial.140 Além disso, cães aos quais foi administrada uma dose diária única de gentamicina (6 mg/kg IV em bolus) apresentaram redução significativa na força de contração, enquanto o tempo de recuperação não foi diferente daquele de controles.141 A administração de tetraciclina presumivelmente diminui a liberação de ACh por meio de quelação do cálcio. O bloqueio aumentado é habitualmente reversível com a

administração de cálcio, mas não com neostigmina.137 O principal local de ação inibitória da lincomicina pode consistir diretamente no músculo. Além disso, pode ter uma discreta atividade pré-sináptica e pós-sináptica. Esse efeito é pouco revertido com a administração de neostigmina ou de cálcio, porém sofre reversão parcial com 4-aminopiridina.137 A clindamicina tem maior efeito de bloqueio neuromuscular do que a lincomicina. O mecanismo envolvido consiste em inibição direta do músculo, e a reversão é difícil com a administração de cálcio ou de neostigmina.137 As penicilinas e as cefalosporinas parecem ter efeito negligenciável sobre a função neuromuscular em geral.137 Entretanto, sempre que o antibiótico é administrado a um paciente ao qual se administra também um relaxante muscular, deve-se considerar a possibilidade de aumento do bloqueio e/ou paralisia residual. Recomenda-se um monitoramento rigoroso do paciente ao longo do período de recuperação. A administração de lítio também pode aumentar ou prolongar o bloqueio neuromuscular ao competir com o sódio e ao diminuir a liberação de ACh. Os efeitos dos relaxantes musculares têm sido potencializados por numerosas classes de fármacos, incluindoβ-bloqueadores, doxapram, anticonvulsivantes, esteroides e antagonistas dos receptores H2.114

Monitoramento do bloqueio neuromuscular A função neuromuscular pode ser monitorada sempre que se administrar um relaxante muscular. O monitoramento adequado irá facilitar o estabelecimento da dose correta do relaxante muscular e de seu antagonista. Para evitar a ocorrência de paralisia residual e de fraqueza muscular no período de recuperação, é importante que o monitoramento seja mantido até recuperação completa da função. As respostas motoras evocadas à estimulação de nervos periféricos são usadas para avaliar o grau de bloqueio neuromuscular. Dispõe-se de muitos estimuladores portáteis de nervos periféricos (Figura 14.1).

■ Locais de estimulação Os locais para a estimulação de nervos motores periféricos em cães e gatos incluem os nervos fibular e ulnar (Figuras 14.2 e 14.3). Nos equinos, o nervo facial e o nervo fibular superficial são os mais comumente utilizados (Figuras 14.4 e 14.5). São colocados eletrodos de contato sobre o nervo a ser estimulado, e a resposta motora resultante é comparada com a resposta antes da administração do relaxante.

■ Características da estimulação elétrica Quando se monitora a função neuromuscular em pacientes veterinários, existem métodos

padronizados para a estimulação de nervos periféricos. A potência do estimulador de nervo periférico deve ser um estímulo de onda quadrada de 0,2 a 0,3 ms de duração. Idealmente, a corrente do estimulador de nervo deve ser ajustável, possibilitando um impulso supramáximo (i. e., uma corrente ligeiramente maior do que aquela necessária para desencadear a resposta motora máxima) para aplicação ao nervo. O estímulo supramáximo garante a despolarização de todas as fibras do feixe nervoso. Como as fibras musculares sofrem contração de acordo com um padrão tudo ou nada, quaisquer alterações subsequentes na resposta motora evocada durante a estimulação supramáxima do nervo periférico são causadas por mudanças na junção neuromuscular ou no nível muscular, e não pela perda de influxo das fibras nervosas.

Figura 14.1 Estimulador de nervo periférico.

Figura 14.2 Estimulação do nervo fibular superficial em cão.

Figura 14.3 Estimulação do nervo ulnar em cão.

Figura 14.4 Estimulação do nervo facial em cavalo.

Figura 14.5 Estimulação do nervo fibular em cavalo.

■ Padrão de estimulação Idealmente, o estimulador de nervo periférico deve ter uma potência variável e ser capaz de fornecer padrões de estimulação para contração isolada, sequência de quatro estímulos,

estimulação tetânica e estimulação de surto duplo (double-burst). Os exemplos de resposta muscular evocada à estimulação supramáxima antes e depois da administração de um relaxante muscular são apresentados na Figura 14.6. O bloqueio neuromuscular parcial com relaxantes despolarizantes e não despolarizantes modifica as respostas registradas a esses padrões de estimulação. Essas respostas modificadas estão resumidas na Tabela 14.3. Contração isolada Quando se utiliza a contração isolada, que é a forma mais simples de estimulação do nervo, calcula-se o grau de relaxamento dividindo-se a resposta produzida pela resposta antes da administração do relaxante. A resposta pré-relaxante é a resposta de contração medida imediatamente antes da administração do relaxante muscular. Como a liberação de ACh é reduzida pelos efeitos pré-juncionais do relaxante, a frequência da estimulação de contração isolada não deve ser superior a cerca de uma contração muscular a cada 7 a 10 s.142 Se o estímulo for aplicado com demasiada frequência, a resposta de contração resultante estará artificialmente baixa, levando a uma falta de acurácia na determinação do grau de relaxamento. A resposta de contração muscular não é deprimida até que 75 a 80% dos receptores estejam bloqueados e será suprimida quando houver bloqueio de aproximadamente 90 a 95% dos receptores.143

Figura 14.6 Diferentes padrões de estimulação de nervo periférico para o monitoramento da função neuromuscular (painel superior). Abaixo de cada padrão, são mostradas as características das respostas musculares evocadas medidas mecanicamente antes (painel central) e durante (painel inferior) o bloqueio parcial. Tabela 14.3 Respostas durante o bloqueio neuromuscular parcial.a Critérios Fasciculações antes do início

Bloqueio despolarizante

Bloqueio não despolarizante

Sim

Não

Tempo para o início

Curto

Mais longo

Contração isolada

Deprimido

Deprimido

do bloqueio

Bloqueio de fase II



Deprimido

Pico tetânico

Deprimido

Deprimido

Deprimido

Desaparecimento tetânico

Mínimo ou ausente

Presente e acentuado

Presente e acentuado

Mínimo ou ausente

Presente e acentuado

Presente e acentuado

Mínimo ou ausente

Presente

Presente

O bloqueio é prolongado

O bloqueio é antagonizado

O bloqueio é antagonizado

Desaparecimento da sequência de quatro Facilitação pós-tetânica Resposta aos anticolinesterásicos a

Características diferenciais do bloqueio de Fase II induzido por despolarizantes, não despolarizantes e succinilcolina. A

coluna da esquerda lista os diferentes padrões de estimulação do nervo ou outras características, enquanto a segunda, terceira e quarta colunas listam as respectivas respostas na presença de bloqueio neuromuscular parcial. Sequência de quatro O padrão de sequência de quatro estímulos (SQE) consiste na aplicação de quatro impulsos supramáximos durante 2 s (2 Hz). A SQE pode ser repetida a cada 10 a 20 s, sem efeitos temporais significativos. O nível de relaxamento é determinado pela comparação da razão entre a intensidade da quarta contração muscular e a da primeira (razão T4:T1). Como a SQE serve como seu próprio controle, não é necessário determinar os valores basais antes da administração dos relaxantes, embora se deva verificar a função do estimulador antes da paralisia. Na ausência de bloqueio neuromuscular, a razão T4:T1 será de 1,0. Depois da administração de um relaxante muscular não despolarizante, quando cerca de 70% dos receptores estão ocupados, as contrações musculares desaparecem, começando com a quarta, seguida da terceira, segunda e primeira contrações musculares.144 A dose de relaxante administrada irá determinar o grau de desaparecimento, a força de qualquer contração remanescente e a duração em que as contrações estarão ausentes. Durante a recuperação, as contrações musculares irão reaparecer na ordem inversa. Uma razão T4:T1 de 0,7 ou mais está associada a sinais clínicos adequados de recuperação do relaxante muscular.145 Durante o bloqueio de Fase I de um relaxante despolarizante, não haverá desaparecimento da SQE. Todavia, a administração repetida ou a infusão contínua do agente despolarizante podem causar um bloqueio de Fase II. Quando isso ocorre, pode-se observar o desaparecimento após uma SQE (ver Tabela 14.3).146 Estimulação tetânica

Uma contração muscular sustentada é obtida pela aplicação contínua de estímulo supramáximo de alta frequência (50 Hz) durante 5 s.146 O bloqueio neuromuscular parcial com a administração de um relaxante não despolarizante irá reduzir o pico tetânico e causar desaparecimento.147 Embora esse padrão de estimulação seja útil para a detecção de bloqueio neuromuscular residual durante o período de recuperação da anestesia, é importante lembrar que a estimulação tetânica pode ser dolorosa para pacientes com plano leve de anestesia ou conscientes.148 Facilitação pós-tetânica A facilitação pós-tetânica refere-se a um aumento da resposta evocada com um estímulo aplicado logo após a estimulação tetânica. Acredita-se que isso seja causado pela liberação aumentada de ACh do terminal nervoso, porém existem outras teorias.143 Caracteriza-se por um aumento da força de contração muscular ou por uma diminuição no grau de desaparecimento em resposta a um padrão de estimulação de contração isolada, SQE ou duplo surto. Com frequência, a facilitação pós-tetânica constitui o primeiro indicador clínico de recuperação do bloqueio neuromuscular.149,150 Estimulação double-burst A estimulação de surto duplo (double-burst) (DBS) refere-se à aplicação de dois minissurtos tetânicos, dois a quatro impulsos de cada um, aplicados em uma taxa de 50 Hz, com intervalo de 750 ms. Quando se utiliza a DBS, calcula-se uma razão entre a resposta e o segundo surto em comparação com a resposta ao primeiro surto (D2:D1). A DBS pode ser superior à SQE, visto que não apenas a DBS exibe uma alta correlação com a SQE quando avaliada por mecanomiografia, mas também o desaparecimento é observado mais prontamente com a DBS quando são utilizados meios visuais e táteis.143 Uma vantagem adicional da DBS é que D1 pode ser detectado em um nível mais profundo de bloqueio neuromuscular do que T1.151

■ Quantificação das respostas evocadas Toda vez que se administra um relaxante muscular, deve-se monitorar o paciente até obter a restauração da função neuromuscular normal. O bloqueio residual durante o período de recuperação pode causar graves complicações. O monitoramento adequado fornece informações sobre o grau e a duração do bloqueio neuromuscular e garante ao observador que não haja nenhum bloqueio residual antes da recuperação da anestesia. Em pacientes veterinários, o método mais comumente empregado para avaliar o grau de bloqueio neuromuscular é a observação visual da resposta evocada à estimulação de nervo periférico. Com observadores experientes, a observação visual é adequada na maioria das

situações clínicas. Entretanto, obtém-se uma avaliação mais acurada da profundidade e da duração do bloqueio quando a resposta muscular é registrada e medida. Os dois métodos para quantificação acurada da resposta evocada são mecanicamente registrados, em que a tensão de contração do músculo é medida utilizando um transdutor de deslocamento de força, e registradas por eletromiografia, em que o potencial de massa muscular é medido. Mecanomiografia A mecanomiografia (MMG) mede a resposta evocada do músculo estimulado pela conversão da força. O uso desse método foi descrito em gatos, cães, equinos, pôneis, vacas e lhamas.49,138,139,152-154 Com o membro imobilizado, eletrodos de estimulação são colocados sobre um nervo periférico (nervo fibular ou ulnar). O transdutor de força é ligado a uma pata ou casco em ângulo reto à direção da contração muscular. Para a tensão de contração muscular máxima evocada, deve-se aplicar uma tensão de repouso de 100 a 300 g. Aplica-se um estímulo supramáximo ao nervo utilizando um padrão de contração isolada, SQE ou estimulação double-burst. A tensão de contração resultante pode ser então quantificada. Com o uso da MMG, tanto a profundidade quanto a duração do bloqueio neuromuscular podem ser determinadas de modo acurado. Entretanto, existem limitações que tornam o seu uso impraticável em muitas situações clínicas. Para evitar alterações na tensão de repouso e no ângulo de contração, o membro precisa ser imobilizado, e não deve ocorrer nenhum movimento durante o período de registro.155 Eletromiografia A eletromiografia (EMG) mede o potencial de ação composto de fibras musculares que se contraem durante uma estimulação supramáxima de um nervo motor periférico. Com os eletrodos de estimulação colocados sobre um nervo periférico, o eletrodo de registro é colocado sobre a zona de inervação do músculo, a meio caminho entre a sua origem e inserção. Além disso, são necessários um eletrodo de referência, colocado sobre o local de inserção, e um eletrodo terra, colocado entre os outros dois eletrodos. A EMG tem a vantagem de exigir menos imobilização dos membros (ou nenhuma), nem tensão de repouso, e dispõe-se de mais opções quanto aos músculos que podem ser utilizados.155 Em um estudo de cães que receberam atracúrio, não houve nenhuma diferença estatística entre a MMG e a EMG durante a SQE para T1 ou T4:T1.156 A desvantagem da EMG é que pode ser difícil obter uma colocação adequada dos eletrodos para obter resultados acurados, particularmente em pacientes de menor porte. Até que um método padrão seja desenvolvido e validado para várias espécies e locais de monitoramento, a MMG continua sendo o padrão de referência para quantificar as respostas evocadas.

Reversão do bloqueio neuromuscular ■ Bloqueio não despolarizante Conforme anteriormente assinalado, a acetilcolinesterase é encontrada em altas concentrações na junção neuromuscular. A enzima hidrolisa a ACh em colina e ácido acético, com término dos efeitos da ACh. Os efeitos dos relaxantes musculares não despolarizantes são antagonizados pela administração de um anticolinesterásico (também conhecido como inibidor da acetilcolinesterase). Essa classe de fármacos inibe a enzima acetilcolinesterase, aumentando a concentração de moléculas de ACh na junção neuromuscular. Como os relaxantes musculares não despolarizantes e a ACh competem pelos mesmos sítios de ligação pós-sinápticos, o aumento da ACh pode inclinar a balança da competição a favor da ACh, com restauração da transmissão neuromuscular. Os anticolinesterásicos utilizados para antagonizar o bloqueio neuromuscular incluem o edrofônio, a neostigmina e a piridostigmina. Diferem no modo pelo qual inibem a atividade da acetilcolinesterase. O edrofônio produz inibição reversível por meio de ligação eletrostática ao sítio aniônico e ligação de hidrogênio ao sítio esterático da acetilcolinesterase. A ação do edrofônio é relativamente breve, visto que não há formação de ligação covalente, e a ACh pode facilmente competir com o edrofônio pelo acesso à enzima. A neostigmina e a piridostigmina inibem a acetilcolinesterase, formando um complexo carbamil-éster no sítio esterásico da acetilcolinesterase. Essa ligação é de maior duração em comparação com a ligação da enzima à ACh, impedindo, assim, que a acetilcolinesterase tenha acesso à ACh. Os agentes de reversão variam quanto ao início de ação. Por ordem de início mais rápido para o mais longo, esses agentes consistem em: edrofônio < neostigmina < piridostigmina. Nos pacientes humanos, a neostigmina é 4,4 vezes mais potente do que a piridostigmina e 5,7 vezes mais potente do que o edrofônio para a reversão do bloqueio neuromuscular não despolarizante.157 A duração da ação é semelhante para a neostigmina e o edrofônio, ao passo que é aproximadamente 40% mais longa para a piridostigmina.157,158 Nos gatos, a neostigmina é 12 vezes mais potente do que o edrofônio.159 Os agentes antiacetilcolinesterase são principalmente metabolizados pelo fígado, e a biotransformação hepática elimina 50% de uma dose de neostigmina, 30% de uma dose de edrofônio e 25% de uma dose de piridostigmina. A excreção renal elimina o restante do fármaco. Os pacientes com insuficiência renal apresentam eliminação prolongada do agente anticolinesterásico. O acúmulo de ACh após a administração de um fármaco anticolinesterásico não é específico da junção neuromuscular. Enquanto ocorrem efeitos nicotínicos na junção

neuromuscular e nos gânglios autônomos, são observados efeitos colinérgicos muscarínicos, devido à inibição da acetilcolinesterase no nó sinusal, músculo liso e glândulas. Os efeitos clínicos do aumento das concentrações de ACh nesses locais consistem em bradicardia, parada sinusal, broncospasmo, miose, hiperperistaltismo intestinal e salivação. Por esse motivo, aconselha-se a administração imediata de um agente anticolinérgico, atropina ou glicopirrolato, antes da reversão do bloqueio neuromuscular com um agente anticolinesterásico. Quando se escolhe entre atropina e glicopirrolato, devese considerar que a atropina apresenta início mais rápido de ação, tem mais tendência a causar taquicardia inicial e atravessa as barreiras hematoencefálica e hematoplacentária. Em comparação com a neostigmina e a piridostigmina, os efeitos muscarínicos do edrofônio são leves, de modo que ele pode ser escolhido para reversão quando se deseja evitar o uso de um anticolinérgico. Por exemplo, o edrofônio é frequentemente escolhido em pacientes equinos, visto que a administração de agentes anticolinérgicos tem sido associada ao desenvolvimento de íleo e cólicas.

■ Bloqueio despolarizante A recuperação após a administração de succinilcolina (bloqueio de Fase I) é rápida e espontânea, devido à hidrólise da succinilcolina pelas colinesterases plasmáticas. A recuperação pode ser tardia em pacientes com diminuição da atividade da colinesterase plasmática. A administração de um anticolinesterásico irá, na verdade, prolongar o bloqueio despolarizante.160 Por outro lado, o bloqueio de Fase II da succinilcolina pode ser antagonizado de modo semelhante aos relaxantes musculares não despolarizantes, ressaltando a necessidade de determinar o tipo de bloqueio (Fase I ou Fase II) presente quando se utiliza a succinilcolina (ver Tabela 14.3).161,162

Relaxantes musculares de ação central ■ Guaifenesina A guaifenesina é usada rotineiramente como relaxante muscular em animais de grande porte. Seu mecanismo de ação consiste em interromper a transmissão do impulso nervoso nos neurônios internunciais da medula espinal, do tronco encefálico e de áreas subcorticais do cérebro. Em doses terapêuticas, a guaifenesina relaxa o músculo esquelético, porém observa-se pouco efeito sobre os músculos respiratórios ou o diafragma. A guaifenesina não proporciona analgesia nem produz inconsciência. Por conseguinte, não deve ser usada isoladamente para qualquer procedimento cirúrgico ou diagnóstico doloroso. Não se dispõe de nenhum antagonista para reverter os efeitos relaxantes musculares da guaifenesina.

A guaifenesina está disponível no comércio como pó, que é reconstituído na concentração desejada com água estéril, ou como solução pronta. Foram utilizadas concentrações de 5, 10 e 15%, sendo a solução a 5% em glicose a 5% a mais comum. A guaifenesina administrada por via intravenosa em altas concentrações (> 10%) pode causar hemólise, hemoglobinúria e trombose venosa.163 Pode ocorrer dano tecidual se a guaifenesina for administrada por via perivascular de modo inadvertido.163 Os efeitos cardiopulmonares da guaifenesina, administrada isoladamente ou em associação com xilazina, cetamina ou tiobarbitúricos, foram estudados em equinos. Quando a guaifenesina é administrada isoladamente, a frequência cardíaca, a frequência respiratória, a pressão atrial direita, a pressão arterial pulmonar e o débito cardíaco permanecem inalterados. Ocorre diminuição das pressões arteriais sistólica, diastólica e média. A xilazina (1,1 mg/kg IV), administrada antes da guaifenesina, reduziu a dose necessária para obter um decúbito lateral (88 ± 10 mg/kg) com a guaifenesina isoladamente (134 ± 34 mg/kg). A adição de xilazina tipicamente diminui a frequência cardíaca, a frequência respiratória, o débito cardíaco e a pressão parcial de oxigênio arterial (PaO2). A pressão venosa central aumenta, enquanto as pressões arteriais sistólica, diastólica e média costumam diminuir.164,165 A guaifenesina pode ser associada com tiopental para indução e manutenção da anestesia em equinos. Após pré-medicação com xilazina ou acepromazina administra-se uma associação de guaifenesina e tiopental (2 a 3 g de tiopental em 1 ℓ de guaifenesina a 5%) para indução, ou, como alternativa, a guaifenesina é administrada até que o cavalo fique cambaleante e dobre os joelhos; em seguida, administra-se um bolus de tiopental (4 mg/kg). Períodos curtos de anestesia (< 1 h) podem ser mantidos pela infusão contínua da associação guaifenesina-tiopental. Uma quantidade significativa de guaifenesina atravessa a barreira placentária em éguas prenhes.165 Nos garanhões, o fármaco pode ter uma razão 1,5 vez mais longa em comparação com éguas. O tempo de recuperação mais longo nos machos é atribuído à eliminação mais lenta do fármaco do plasma.166 A guaifenesina também tem sido associada a tiobarbitúricos ou à cetamina para uso em bovinos, pequenos ruminantes e suínos.167,168 Embora a guaifenesina tenha sido usada em cães, a necessidade de um grande volume torna inviável o uso rotineiro nessa espécie.169 Entretanto, quando associada a um tiobarbitúrico ou à cetamina combinada com xilazina, a guaifenesina demonstrou ser um componente efetivo na imobilização de cães.170

■ Dantroleno O dantroleno é um derivado da hidantoína, que interfere no acoplamento excitaçãocontração, relaxando, assim, o músculo esquelético por meio de diminuição na quantidade

de cálcio liberado do retículo sarcoplasmático. Em doses terapêuticas, o dantroleno não afeta adversamente o músculo cardíaco ou liso e tampouco deprime a respiração.171 Tratase do fármaco de escolha para o tratamento da hipertermia maligna. Nos suínos, a dose recomendada é de 1 a 3 mg/kg IV para o tratamento de uma crise de hipertermia maligna e de 5 mg/kg VO para profilaxia.172 O dantroleno é fornecido em frascos de 20 mg em pó com 3 g de manitol para melhorar a solubilidade. É reconstituído com 60 mℓ de água estéril para obter uma concentração de 0,33 mg/mℓ. A preparação oral está disponível em cápsulas de vários tamanhos. O uso profilático do dantroleno em pacientes animais propensos à hipertermia maligna não é mais rotineiramente recomendado. O pré-tratamento com dantroleno antes da anestesia não garante níveis sanguíneos efetivos e, nos equinos, pode provocar fraqueza musculoesquelética indesejável durante o período de recuperação. Em pacientes suscetíveis, deve-se utilizar um esquema anestésico que não seja desencadeante, e o dantroleno deve estar disponível para uso imediato. Todavia, a preparação intravenosa de dantroleno pode ser de custo proibitivo e não ser economicamente viável para estoque em muitas clínicas veterinárias. A maioria das farmácias hospitalares para seres humanos tem a formulação intravenosa e pode vender a quantidade necessária para clínica veterinária, quando solicitado. Foi descrita a manipulação da preparação oral para uso intravenoso. O processo é complexo e demorado, mas o dantroleno em pó pode ser conservado para rápida reconstituição durante uma crise de hipertermia maligna.173,174 O metabolismo do dantroleno ocorre no fígado pelas vias oxidativa e de redução. Os metabólitos e o fármaco inalterado são excretados na urina. O dantroleno pode causar fraqueza muscular, náuseas e diarreia. Foi relatada a ocorrência de hepatite fatal em pacientes humanos após tratamento crônico com dantroleno.175 A ocorrência de depressão miocárdica grave foi relatada quando o dantroleno foi administrado concomitantemente com verapamil ou outros bloqueadores dos canais de cálcio.176,177 Foi observado um sinergismo, com a coadministração de dantroleno e vecurônio, resultando em recuperação tardia da função neuromuscular.178

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Introdução Barbitúricos Estrutura química Mecanismo de ação Farmacocinética Farmacodinâmica Efeitos sobre espécies específicas Uso clínico Propofol Estrutura química Mecanismo de ação Farmacocinética Farmacodinâmica Efeitos sobre espécies específicas Uso clínico Anestésicos dissociativos Estrutura química Mecanismo de ação Farmacocinética Farmacodinâmica Efeitos sobre espécies específicas Uso clínico Etomidato

Estrutura química Mecanismo de ação Farmacocinética Farmacodinâmica Efeitos sobre espécies específicas Uso clínico Alfaxalona Estrutura química Mecanismo de ação Farmacocinética Farmacodinâmica Efeitos sobre espécies específicas Uso clínico Outros fármacos Metomidato Hidrato de cloral Sulfato de magnésio Cloralose Referências bibliográficas

Introdução Os anestésicos injetáveis produzem sedação e anestesia confiáveis em animais. Frequentemente, esses agentes são administrados por via intravenosa para induzir um estado de inconsciência apropriado para intubação e aplicação de um anestésico inalatório. Entretanto, quando administrados por infusão de velocidade constante, bolus intermitente ou por via intramuscular, os anestésicos injetáveis também podem ser usados para manter a anestesia por curtos períodos de tempo. Um anestésico injetável, para ser ideal, deve ser hidrossolúvel, ter um prazo longo de validade e permanecer estável quando exposto ao calor e à luz. Apenas um pequeno volume do fármaco deve ser necessário para produzir anestesia, e esses agentes devem ter uma grande margem de segurança. Seu período hábil anestésico deve ser curto, sem efeitos cumulativos, e deve ser prontamente metabolizado a metabólitos atóxicos e/ou excretados

do corpo. A sua meia-vida deve ser bem caracterizada, assim como seus limites residuais máximos, de modo que se possa estabelecer um intervalo de segurança para abate nos animais destinados a consumo humano. Um anestésico injetável ideal também deve produzir analgesia adequada para o procedimento, bem como certo grau de relaxamento muscular. Talvez o mais importante é que o anestésico injetável ideal não produza alterações imprevisíveis e potencialmente fatais na função cardiovascular e respiratória. Ainda não foi produzido um anestésico injetável que reúna todas essas características. Quando se seleciona um anestésico injetável, o médico deve considerar a sua farmacocinética e farmacodinâmica, bem como o estado físico do paciente, a fim de escolher o agente e a dose mais apropriados para o paciente em particular.

Barbitúricos ■ Estrutura química Os barbitúricos vêm sendo usados em medicina veterinária há décadas como anestésicos injetáveis e anticonvulsivantes. Todos os fármacos incluídos nessa categoria são derivados do ácido barbitúrico, uma associação de ureia e ácido malônico (Figura 15.1). Embora o ácido barbitúrico não tenha propriedades sedativas ou hipnóticas, a adição de cadeias laterais na posição 5 do núcleo de pirimidina confere atividade hipnótica. O comprimento da cadeia lateral na posição 5 influencia a potência e a duração de ação desses fármacos, ocorrendo maior potência com cadeias laterais mais longas. Se o átomo de oxigênio na posição 2 for substituído por um átomo de enxofre, obtém-se um barbitúrico ativo com início de ação mais rápido e duração mais curta. Em geral, qualquer modificação do barbitúrico capaz de aumentar a lipofilicidade da molécula irá aumentar a sua potência e reduzir o tempo de início e a duração da ação. Muitos barbitúricos (tiopental, tiamilal, metoexital) possuem átomos de carbono assimétricos em uma das cadeias laterais ligadas ao anel barbitúrico na posição 5, resultando em estereoisômeros. Apesar de diferenças na potência dos estereoisômeros (os isômeros L são quase duas vezes mais potentes do que os isômeros D), os barbitúricos são fornecidos em misturas racêmicas.

Figura 15.1 Fórmula geral dos barbitúricos.

Em geral, os barbitúricos são classificados com base na sua duração de ação (ação longa, intermediária, curta e ultracurta) ou na sua estrutura química. Os tiobarbitúricos (tiopental e tiamilal) são barbitúricos com um átomo de enxofre na posição 2, enquanto os oxibarbitúricos (pentobarbital, fenobarbital e metoexital) possuem um átomo de oxigênio na posição 2. Os tiobarbitúricos de ação ultracurta são comumente usados para indução anestésica. Historicamente, o tiopental foi o barbitúrico de ação ultracurta mais comumente usado em medicina veterinária. Trata-se de um pó cristalino amarelo tamponado com bicarbonato de sódio, que é habitualmente reconstituído com água estéril ou soro fisiológico para produzir soluções a 2,5, 5 ou 10%. A solução resultante é alcalina (pH de 10 a 11) e pode causar necrose tecidual se for injetada por via perivascular. A solução reconstituída é estável em temperatura ambiente por até 1 semana.1 Com o envelhecimento da solução, ocorre precipitação de cristais, resultando em perda progressiva da potência; em consequência, podem ser necessárias doses mais altas para induzir anestesia. O tiamilal é um tiobarbitúrico de ação ultracurta, que difere do tiopental pela substituição do radical etila no tiopental por um radical alil. Embora o tiamilal tenha sido comumente usado em medicina veterinária por algum tempo, não está mais disponível no comércio. O metoexital é um oxibarbitúrico de ação ultracurta, que possui um grupo metila na posição N-1. Isso resulta em um fármaco duas vezes mais potente do que o tiopental, mas que também apresenta uma incidência aumentada de efeitos colaterais excitatórios. O metoexital sódico é apresentado na forma de pó, que é reconstituído com água estéril ou soro fisiológico para produzir uma solução a 2,5% que permanece estável por até 6 semanas quando refrigerada.2 O pentobarbital é classificado como oxibarbitúrico de ação curta, que é idêntico ao metoexital, mas que carece de um grupo metila na posição N-1. Sofre extenso metabolismo hepático e depende totalmente do fígado para sua biotransformação e eliminação. A

duração de ação do pentobarbital é tipicamente 4 a 8 vezes maior que a do tiopental na maioria das espécies. Entretanto, os ovinos e caprinos são metabolizadores rápidos do fármaco e necessitam de doses suplementares se houver necessidade de manter a anestesia por mais de 20 a 30 min. A maior duração de ação, combinada com um baixo índice terapêutico, levou à substituição do pentobarbital como anestésico geral na maioria das espécies domésticas. O pentobarbital ainda é usado como anestésico injetável em roedores de laboratório, particularmente para procedimentos sem recuperação, e continua sendo o principal ingrediente na maioria das soluções comercialmente disponíveis para eutanásia.

■ Mecanismo de ação Os barbitúricos produzem depressão do sistema nervoso central (SNC) pela ativação do subtipo inotrópico do receptor de ácido γ-aminobutírico (GABA), conhecido como GABAA.3 A ativação do receptor GABAA aumenta a condução transmembrana de cloreto, resultando em hiperpolarização da membrana celular pós-sináptica. Parece que os barbitúricos reduzem a velocidade de dissociação do GABA de seu receptor, o que aumenta a duração de abertura dos canais de cloreto. Com concentrações crescentes, os barbitúricos podem simular a ação do GABA e ativar diretamente os canais de cloreto.3,4 Por fim, a inibição do neurônio pós-sináptico resulta em depressão do sistema nervoso central e perda da consciência.

■ Farmacocinética Após a sua administração intravenosa, o tiopental mistura-se com o sangue e é transportado até os tecidos corporais de acordo com a velocidade de perfusão, a afinidade do tecido pelo fármaco e a concentração relativa do tiopental no sangue nos tecidos. Os tecidos bem perfundidos e de pequeno volume, como o cérebro, equilibram-se rapidamente com as concentrações de tiopental no sangue, induzindo à anestesia. A concentração de tiopental no sangue e no cérebro cai rapidamente à medida que o fármaco sofre redistribuição para os tecidos musculares menos perfundidos, permitindo que o animal readquira a consciência. O principal fator que limita a duração da anestesia após uma dose única de tiopental é a sua redistribuição do cérebro para outros tecidos.5 Por conseguinte, quando o tiopental é administrado em grandes doses, na forma de doses repetidas ou em infusão de velocidade constante, a recuperação da anestesia será prolongada, visto que os tecidos (p. ex., o músculo) aproximam-se do equilíbrio com a concentração do fármaco no sangue. Esse equilíbrio diminui progressivamente a capacidade dos tecidos de remover o fármaco do sangue.6,7 Além disso, a obesidade aumenta o período residual médio para eliminação do tiopental, e isso está associado a um prolongamento da meia-vida terminal, embora a massa adiposa aumentada sirva para remover maior quantidade do fármaco do sangue e

acelerar a recuperação clínica de um único bolus.8 A distribuição dos barbitúricos no corpo é determinada por diversos fatores, como tempo, ligação às proteínas, grau de ionização e lipossolubilidade. A lipossolubilidade aumenta com a substituição de uma molécula de enxofre na posição 2 do anel barbitúrico. Conforme assinalado anteriormente, o aumento da lipossolubilidade aumenta a potência e reduz o período de latência. A ligação às proteínas correlaciona-se com a lipossolubilidade, e os barbitúricos que são altamente lipofílicos (tiopental) também exibem alta ligação às proteínas. A diminuição da ligação às proteínas, em consequência do deslocamento dos sítios de ligação por outros fármacos (ácido acetilsalicílico, fenilbutazona) ou a presença de hipoproteinemia podem levar a um aumento dos efeitos farmacológicos. A constante de dissociação ácida (pKa) e o pH do ambiente podem ser usados para prever a proporção de ionização dos barbitúricos em qualquer condição. A pKa é o pH em que 50% do barbitúrico estão na forma ionizada e 50% na forma não ionizada. Para um barbitúrico que penetra na camada lipídica de uma célula, é necessário que esteja na forma não ionizada. Por conseguinte, à medida que o sangue se torna mais ácido, existe maior quantidade do fármaco na forma não ionizada. Isso leva a um aumento na penetração do barbitúrico no SNC e maior efetividade clínica. O inverso também é verdadeiro: com um sangue mais alcalino, a forma ionizada é favorecida, e o efeito anestésico é reduzido. Os parâmetros farmacocinéticos do tiopental foram descritos no cão, em ovinos e no coelho.9 O volume inicial de distribuição foi, respectivamente, de 38,1 ± 18,4, 44,5 ± 9,1 e 38,6 ± 10,0 mℓ/kg, respectivamente.9 A meia-vida de eliminação demonstrou ser mais curta no coelho (43,1 ± 3,4 min) e mais longa nos ovinos (251,9 ± 107,8 min).9 A meia-vida de eliminação no cão foi de 182,4 ± 57,9 min.9 O metabolismo dos barbitúricos ocorre no fígado, seguido de sua excreção pelos rins. A biotransformação no fígado ocorre principalmente no retículo endoplasmático dos hepatócitos e pode resultar em indução das enzimas hepáticas (sistema do P450).5 A capacidade de reserva do fígado é muito grande, de modo que é necessária a presença de disfunção hepática significativa para que ocorra prolongamento da duração de ação dos barbitúricos.10

■ Farmacodinâmica Sistema nervoso central Conforme assinalado anteriormente, a administração de barbitúricos resulta em depressão do SNC e anestesia. Com a administração de tiopental, o eletroencefalograma (EEG) apresenta-se deprimido de modo dependente da dose, com progressão do padrão α desperto para ondas δ e θ até a ocorrência de supressão e EEG plano.11 Os barbitúricos têm propriedades protetoras cerebrais. O metabolismo cerebral do oxigênio (CMRO2) é

reduzido em até 55% de modo dose-dependente.12 O fluxo sanguíneo cerebral e a pressão intracraniana (PIC) também diminuem paralelamente com a redução do CMRO2.12 Entretanto, a pressão de perfusão cerebral habitualmente não é afetada de modo adverso, visto que a PIC diminui mais do que a pressão arterial média. Vários estudos foram conduzidos para avaliar o tiopental como cerebroprotetor e demonstraram que ele pode ter algum valor clínico. Em cães pré-tratados com tiopental e submetidos à isquemia isolada do tronco encefálico, houve aumento dos potenciais evocados auditivos, em comparação com os cães que não tiveram pré-tratamento com tiopental.13 Além disso, foi demonstrado que o tiopental pode intensificar o efeito atenuante da hipotermia pós-parada imediata em cães com encefalopatia pós-isquêmica.14 Em virtude dessas propriedades, o tiopental constitui uma escolha apropriada para pacientes com doença intracraniana ou com história de convulsões. O metoexital tem sido associado a excitação do SNC e crises epileptiformes, tornando-o uma escolha pouco adequada para pacientes com convulsões. Pressão intraocular (PIO) é ligeiramente reduzida pela administração de tiopental.15 Sistema cardiovascular A administração de doses mais baixas de tiopental resulta em diminuição do volume sistólico e da contratilidade miocárdica.16 Pode-se observar uma redução discreta da pressão arterial, que frequentemente é compensada por um aumento da frequência cardíaca. A venodilatação após a administração de tiopental pode levar ao sequestro dos eritrócitos no baço, aumento do tamanho do baço e diminuição do volume globular. A vasodilatação dos vasos sanguíneos cutâneos e esqueléticos também pode predispor o paciente à hipotermia. Foi também demonstrada a ocorrência de arritmias ventriculares, particularmente bigeminismo ventricular.17 A incidência dessas arritmias pode ser reduzida com ventilação e oxigenação adequadas antes da administração de tiopental. O tiopental sensibiliza o miocárdio às arritmias induzidas pela epinefrina em muitas espécies estudadas.18 Sistema respiratório A administração de barbitúricos para a indução da anestesia provoca depressão dependente da dose dos centros respiratórios, juntamente com diminuição da responsividade a hipoxemia e hipercarbia.19 Observa-se também uma redução da frequência respiratória e da ventilação minuto.20 Períodos transitórios de apneia são comumente relatados após a administração rápida de grandes doses de tiopental. Foi também constatado que o tiopental provoca broncoconstrição no cão.21 Entretanto, os reflexos laríngeos podem ser menos afetados com a administração de tiopental, em comparação com outros agentes de indução, de modo que o tiopental pode constituir uma boa escolha para avaliação da função

laríngea.22 Foi também demonstrado que o tiopental reduz a depuração mucociliar no cão.23 Sistemas hepático, renal e gastrintestinal Os pacientes saudáveis exibem pouca alteração da função hepática ou gastrintestinal após indução da anestesia com tiopental, e podem-se observar apenas reduções modestas do fluxo sanguíneo hepático. Os barbitúricos estimulam um aumento das enzimas microssômicas, porém apenas depois de 2 a 7 dias de administração continuada do fármaco.24 Embora se tenha relatado a ocorrência de efeitos gastrintestinais, como diarreia ou estase intestinal, com a administração de barbitúricos, foi constatado que o tiopental diminui o tônus do esfíncter esofágico inferior em gatos.25 A administração de tiopental pode resultar em ligeira diminuição do fluxo sanguíneo renal, mais provavelmente devido a uma redução da pressão arterial sistêmica e do débito cardíaco. A administração de uma dose de 15 mg/kg de tiopental ao cão resultou em uma taxa de filtração glomerular média de 2,04 ± 0,36 mℓ/min/kg, o que não difere significativamente de outros agentes de indução.26 Efeitos fetais/neonatais Os barbitúricos intravenosos atravessam a placenta e estabelecem um equilíbrio dinâmico entre as circulações materna e fetal. Entretanto, é preciso lembrar que a circulação placentária passa pelo fígado antes de alcançar o SNC do feto, reduzindo, assim, a exposição global à maioria dos fármacos altamente metabolizados. Em um estudo realizado em cães, o tiopental causou depressão mais profunda dos reflexos neurológicos em filhotes nascidos de cesariana, em comparação com o propofol ou a anestesia epidural.27 Além disso, o fluxo sanguíneo uterino diminuiu transitoriamente em ovelhas prenhes induzidas com tiopental.28 Efeitos analgésicos É preciso assinalar que os barbitúricos não produzem antinocicepção (e analgesia somente durante a inconsciência); por conseguinte, é necessário administrar analgésicos adicionais a pacientes submetidos a procedimentos dolorosos. Com efeito, em doses subanestésicas, os barbitúricos podem, na verdade, ser hiperalgésicos. Entretanto, esse efeito é controverso e provavelmente não é clinicamente significativo.29

■ Efeitos sobre espécies específicas Cães É raro haver diferenças documentadas associadas a raças na farmacocinética e

farmacodinâmica dos anestésicos. Entretanto, entre raças de cães, os Galgos apresentam uma deficiência relativa das enzimas microssômicas hepáticas que são necessárias para o metabolismo dos tiobarbitúricos. Essa deficiência, juntamente com corpos magros e baixas reservas de gordura, resulta potencialmente em recuperação prolongada da anestesia com tiopental quando são administradas doses mais altas.24 Os barbitúricos anestésicos frequentemente não são recomendados para cães de caça (p. ex., Galgo, Wolfhound Irlandês, Galgo Afgão), porém o uso de medicações pré-anestésicas poupadoras de anestésicos e doses mínimas de tiobarbitúricos tem permitido uma indução segura da anestesia nessas raças caninas com atraso mínimo na recuperação. Equinos A farmacocinética de uma dose única de 11 mg/kg de tiopental foi estudada em equinos.30 Nesse estudo, um modelo aberto em três compartimentos descreveu de modo mais adequado a farmacocinética do tiopental. No plasma, o tiopental apresenta uma rápida fase de distribuição inicial, com meia-vida de 1,4 ± 1,2 min e 1,3 ±0,7 min em cavalos e pôneis, respectivamente. Embora os cavalos tenham apresentado meia-vida de eliminação ligeiramente mais curta (147 ± 21 min) que a dos pôneis (222 ± 44 min), não foi observada nenhuma diferença óbvia na depuração do fármaco entre cavalos (3,5 ± 0,5 mℓ/kg/min) e pôneis (3,6 ± 0,8 mℓ/kg/min).30 O tiopental não deve ser administrado a cavalos sem sedação prévia com um agonista dos receptores α2-adrenérgicos, visto que podem ocorrer excitação e incoordenação significativas. Além disso, não se recomenda a indução da anestesia com guaifenesina e tiopental em equinos que acabaram de realizar um exercício máximo.31 Ruminantes A farmacocinética do tiopental em ovinos também foi descrita utilizando um modelo aberto em três compartimentos.32 Nesse estudo, o volume de distribuição foi de 1.005 ± 196 mℓ/kg, a depuração corporal total foi de 3,5 ± 0,8 mℓ/kg/min, e a meia-vida, de 196 ±64 min. O tempo para o despertar foi de 36,6 ± 6,36 min.32 Os autores sugeriram que a duração de ação relativamente curta do tiopental deve ser atribuída principalmente à eliminação do fármaco por metabolismo hepático e sua captação pela gordura corporal.32 Essa teoria difere da opinião amplamente sustentada de que a redistribuição do tiopental leva ao término de sua ação anestésica. Toutain et al. propuseram que isso se deva, talvez, a diferenças do fluxo sanguíneo regional entre ovinos e espécies monogástricas, embora isso ainda não tenha sido estabelecido.32 Suínos

Os barbitúricos são agentes anestésicos efetivos em suínos, cujo uso é apenas limitado pela dificuldade do acesso intravenoso nessas espécies,33,34 embora seja necessário ter cuidado quando se administra tiopental a porcos hipovolêmicos, visto que a necessidade anestésica de tiopental é reduzida em aproximadamente 35% nesses animais.35 Os barbitúricos não desencadeiam a ocorrência de hipertermia maligna em suínos.

■ Uso clínico As doses de indução de tiopental usadas em espécies veterinárias estão listadas na Tabela 15.1. É preciso assinalar que a dose necessária para induzir anestesia e facilitar a intubação endotraqueal é alterada por medicações pré-anestésicas e pelo estado físico do paciente. Os pacientes pré-tratados com outros depressores do SNC, que apresentam hipovolemia, hipoproteinemia, acidose e/ou uremia irão necessitar de menor dose de tiopental para induzir anestesia. O tiopental deve ser administrado por via intravenosa, de preferência por cateter intravenoso, e a dose deve ser titulada para produzir o efeito. A indução da anestesia é rápida, ocorrendo em aproximadamente 20 a 30 segundos após a sua administração. Devido ao relato frequente de períodos de apneia após a indução da anestesia com tiopental, deve-se dispor imediatamente de equipamento para facilitar a intubação com um tubo endotraqueal com manguito e ventilação assistida. O período hábil anestésico do tiopental é muito curto, com fase de distribuição/redistribuição de 14,9 ± 3,3 min de duração em cães.10 A administração perivascular de tiopental está associada à necrose tecidual, particularmente em concentrações mais altas (p. ex., 5%). Caso ocorra injeção perivascular inadvertida, deve-se tentar a diluição do fármaco. A melhor maneira de diluir o fármaco consiste na injeção de soro fisiológico através da agulha ou do cateter que ainda permanece no local. Ao mesmo tempo, pode-se injetar lidocaína para produzir vasodilatação e anestesia local. Tabela 15.1 Doses de barbitúricos em várias espécies. Tiopental

Pentobarbital

mg/kg IV

mg/kg IV

Cão

8 a 22

2 a 30

Gato

8 a 22

2 a 15

Equino

4 a 15

Vaca

4 a 22

Ovino

8 a 15

Lhama

6 a 15

Suíno

5 a 12

20 a 30

IV = intravenosa. Para reduzir a incidência de arritmias ventriculares, a lidocaína intravenosa foi investigada como agente de coindução com tiobarbitúricos. A administração de tiopental a cães em uma dose de 11 mg/kg e de lidocaína, em uma dose de 8,8 mg/kg, produziu uma indução suave, sem arritmias e com menos depressão cardiovascular, em comparação com a administração isolada de tiopental.36 Essa técnica pode não ser apropriada para todas as espécies, visto que a administração intravenosa de uma dose relativamente grande de lidocaína pode causar toxicidade. Foram também usadas misturas de tiopental e propofol (1:1) no cão.37 A dose de cada fármaco necessária para indução foi reduzida, e a qualidade da indução foi semelhante àquela do tiopental ou do propofol isoladamente. Os períodos e a qualidade da recuperação foram semelhantes aos do propofol e superiores aos do tiopental quando administrado isoladamente.37 É preciso assinalar que a mistura deve inibir o crescimento bacteriano e é bactericida depois de 48 h contra Staphylococcus aureus, Escherichia coli, Pseudomonas aeruginosa e Candida albicans.38 Misturas de tiopental e propofol em uma razão de menos de 1:1 não mantêm as propriedades bactericidas.38 Falta a realização de uma avaliação apropriada da estabilidade dos fármacos nessas misturas, embora pareçam manter uma potência relativamente normal.

Propofol O propofol é quimicamente distinto de todos os outros fármacos intravenosos usados para indução ou manutenção da anestesia. Foi constatado que o despertar da anestesia é mais rápido com propofol do que com outros agentes indutores. Em virtude da recuperação rápida da consciência com efeitos residuais mínimos, o propofol tornou-se um agente de indução popular na anestesia tanto humana quanto veterinária. O seu primeiro uso como anestésico em seres humanos foi relatado em 1977.39

■ Estrutura química A propofol é um isopropilfenol substituído (2,6-di-isopropilfenol), que pode ser usado para produzir sedação, bem como para induzir e manter a anestesia. É formulado em vários produtos comerciais de um óleo em emulsão aquosa contendo 1% de propofol, 10% de

óleo de soja, 2,25% de glicerol e 1,2% de fosfatídeo de ovo purificado. O propofol é relativamente insolúvel em soluções aquosas, porém altamente lipossolúvel. Trata-se de uma substância branca leitosa, altamente viscosa, com pH de 6,5 a 8,5. Essa formulação de propofol é estável em temperatura ambiente e não é sensível à luz. A maioria das formulações não contém conservantes e, portanto, apresenta crescimento bacteriano ou fúngico, razão pela qual é necessária uma técnica asséptica rigorosa quando se utilizam frascos de propofol de múltiplas doses.40 De acordo com a maioria das bulas, as ampolas abertas devem ser usadas ou descartadas antes de 6 h. Quando se administra o propofol como infusão de velocidade constante, é preciso ser prudente para descartar o equipo intravenoso e de administração a cada 12 h ou se houver contaminação bacteriana evidente. Foi desenvolvida uma formulação de propofol em microemulsão livre de lipídios para aumentar o tempo de validade da ampola quando aberta, reduzir o risco de infecção pela adição de agentes antimicrobianos, diminuir a instabilidade inerente da emulsão e reduzir a dor durante a injeção.41 Além disso, foi também desenvolvida uma formulação de propofol para uso veterinário contendo álcool benzílico para administração a cães, que apresenta maior prazo de validade de 28 dias após a abertura da ampola.42 Além disso, foram desenvolvidas outras formulações na tentativa de reduzir ou de eliminar o problema da dor associada à injeção, incluindo profármacos.43 Entre estes, o fospropofol é o profármaco mais bem-sucedido investigado até o momento. Trata-se de uma solução aquosa hidrossolúvel, que provoca menos dor com a injeção em pacientes humanos do que as formulações em emulsão. O fospropofol foi administrado a cães em um estudo prospectivo de farmacocinética-farmacodinâmica de pequeno porte, que demonstrou um tempo de início e duração significativamente mais longo para o fospropofol em comparação com a formulação em emulsão.44

■ Mecanismo de ação À semelhança dos barbitúricos, o propofol parece exercer seus efeitos anestésicos por meio de sua interação com receptores GABAA.45 O propofol também inibe o receptor N-metil-Daspartato (NMDA) por meio de modulação da regulação do canal, o que também pode contribuir para seus efeitos sobre o sistema nervoso central.46

■ Farmacocinética A farmacocinética do propofol pode ser descrita por um modelo aberto bicompartimental, com uma fase de rápida distribuição, seguida de uma fase de depuração mais lenta.47 Após injeção intravenosa, o propofol alcança rapidamente o SNC, resultando em indução da anestesia. Em seguida, sofre rápida redistribuição do cérebro para outros tecidos no corpo, com término de sua ação anestésica. Na maioria das espécies (com a exceção dos gatos), o

propofol sofre metabolismo hepático rápido e extenso, com consequente produção de sulfeto hidrossolúvel inativo e metabólitos de glicuronídio. Esses metabólitos são então excretados pelos rins.48 A depuração do propofol do plasma excede o fluxo sanguíneo hepático, o que ressalta a importância da captação tecidual e sugere a possível ocorrência de metabolismo extra-hepático ou excreção extrarrenal.49 Nos seres humanos, não há evidências de comprometimento da eliminação do propofol em pacientes com cirrose hepática, e o metabolismo extra-hepático foi confirmado na fase anepática de pacientes submetidos a transplante de fígado.49,50 Em gatos, o metabolismo extra-hepático do propofol foi demonstrado no tecido pulmonar.51 Em gatos com lipidose hepática, a indução da anestesia com propofol para colocação de sonda alimentar não aumentou a morbidade nem a mortalidade, apesar da alteração esperada na ação do fármaco.52 A farmacocinética do propofol foi detalhadamente estudada no cão.47,53,54 A natureza lipofílica do propofol resulta em grande volume de distribuição aparente (17,9 ℓ/kg) bem como em volume de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico (9,7 mℓ/kg).47 Devido à redistribuição rápida do fármaco em outros tecidos, bem como ao metabolismo rápido e extenso, a média-vida de distribuição inicial é curta, assim como a taxa de desaparecimento do plasma. Os Galgos parecem ter um volume de distribuição aparente e um volume de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico menores, o que sugere que a recuperação da anestesia com propofol é mais lenta nessa raça.54 Foi também constatado que cães com mais de 8,5 anos de idade apresentam uma taxa de depuração mais lenta em comparação com cães mais jovens.53 Em virtude de sua distribuição rápida e depuração, o propofol constitui uma escolha adequada em muitas espécies para a manutenção da anestesia por infusão com velocidade constante. Na maioria das espécies (com exceção dos gatos), o propofol não se acumula após doses repetidas e/ou infusão prolongada do fármaco, de modo que a recuperação da anestesia permanece rápida e de boa qualidade.55,56

■ Farmacodinâmica Sistema nervoso central A injeção intravenosa de propofol resulta em depressão rápida do SNC e indução da anestesia. À semelhança dos barbitúricos, o propofol reduz a PIC e o CMRO2.57 A pressão de perfusão cerebral está ligeiramente reduzida em pacientes com PIC normal; todavia, em pacientes com elevação da PIC, a queda na pressão de perfusão cerebral é significativa e pode não ser benéfica.58 A resposta cerebral ao dióxido de carbono e a autorregulação metabólica cerebral são mantidas durante a administração do propofol;57 entretanto, essa resposta pode ser modificada pela administração concomitante de outros fármacos, como opioides. O propofol produz alterações EEG corticais, semelhantes àquelas dos barbitúricos, incluindo a incidência de supressão de picos com a administração de altas

doses.57 O propofol exerce efeitos anticonvulsivantes e pode ser usado no tratamento de crises convulsivas refratárias.59,60 Sistema cardiovascular O efeito cardiovascular mais proeminente da administração de propofol consiste em uma redução da pressão arterial. São também observadas diminuições na resistência vascular sistêmica e no débito cardíaco.61,62 A depressão miocárdica e a vasodilatação parecem ser dependentes da dose (e da concentração plasmática).61 Esses efeitos cardiovasculares podem ser mais profundos em pacientes que são hipovolêmicos,63 geriátricos ou que apresentam comprometimento da função ventricular esquerda.64 Entretanto, diferentemente do tiopental, a administração de propofol habitualmente não resulta em elevação compensatória da frequência cardíaca. O propofol não parece sensibilizar o miocárdio a arritmias induzidas pela epinefrina, mas não parece ser arritmogênico.65 Sistema respiratório De modo muito semelhante ao tiopental, o propofol provoca depressão da ventilação dependente da dose e apneia pós-indução, com ocorrência regular de cianose transitória.66 A incidência de apneia parece estar relacionada com a dose e a velocidade de administração, com maior probabilidade de ocorrência de apneia após injeções rápidas.66 A resposta ventilatória à hipoxemia67 e ao dióxido de carbono68 é reduzida pelo propofol,69 e a administração de opioides pode intensificar o efeito do propofol sobre a ventilação.70 São também observados efeitos respiratórios quando o propofol é administrado na forma de infusão de velocidade constante, com diminuição do volume corrente e da frequência respiratória.68 Sistemas hepático, renal e gastrintestinal O propofol não afeta adversamente o fluxo sanguíneo hepático71 nem a taxa de filtração glomerular em cães.26 Nos seres humanos, foi constatado ser o propofol um antiemético muito efetivo. De fato, doses subanestésicas de propofol podem ser usadas após a anestesia para o tratamento da náuseas e dos vômitos;72 todavia, esse efeito não foi demonstrado em animais domésticos. Músculo À semelhança do tiopental, o propofol produz relaxamento muscular. Todavia, em certas ocasiões, foram relatados movimentos mioclônicos tanto em seres humanos quanto em cães.73,74 Esses movimentos sofrem resolução espontânea. Efeitos fetais/neonatais

O propofol atravessa facilmente a placenta, porém sofre rápida depuração da circulação neonatal.75 O propofol é considerado uma escolha aceitável para cadelas submetidas a cesariana, visto que os efeitos sobre os filhotes saudáveis são mínimos.76 Efeitos analgésicos O propofol não produz antinocicepção nem hiperalgesia.29 Por conseguinte, os animais submetidos a procedimentos dolorosos devem receber analgésicos apropriados como parte do plano anestésico.

■ Efeitos sobre espécies específicas Cães O propofol pode ser administrado por via intravenosa para sedação e indução da anestesia. É também adequado para uso como infusão de velocidade constante para a manutenção da anestesia. Com frequência, recomenda-se o propofol para uso em Galgos. A dose necessária para indução da anestesia em Galgos é igual àquela usada para cães de raça mista, porém o tempo de recuperação é mais longo nos Galgos.47 Conforme assinalado anteriormente, a formulação em emulsão à base de lipídio do propofol é capaz de sustentar o crescimento de micróbios. Em um estudo retrospectivo de ferimentos limpos em cães e gatos, os animais aos quais foi administrado propofol tiveram uma probabilidade 3,8 vezes maior de desenvolver infecções de feridas, em comparação com animais que não receberam propofol.77 Os mecanismos causais não foram estabelecidos, e, tendo em vista os numerosos fatores de confusão nas taxas de infecção de feridas, deve-se ter cautela em não enfatizar excessivamente os resultados desse estudo. Entretanto, devem-se usar técnicas assépticas estritas quando se administra o propofol como anestésico, e o descarte imediato do fármaco não utilizado deve reduzir o potencial de sua contaminação e de qualquer impacto que possa ter sobre a taxa de infecção. A formulação em microemulsão sem lipídio do propofol foi avaliada no cão78 e parece ser semelhante do ponto de vista farmacocinético e farmacodinâmico à formulação lipídica. Entretanto, foi relatado que a injeção intravenosa da microemulsão resultou em dor intensa e complicações em cães.79 Felinos A administração diária repetida de propofol pode induzir lesões oxidativas aos eritrócitos de felinos.80 Foi relatada a ocorrência de formação de corpúsculos de Heinz, edema facial, mal-estar generalizado, anorexia e diarreia em um estudo em que gatos receberam propofol em vários dias consecutivos. Houve aumento significativo na formação de corpúsculos de Heinz no terceiro dia de administração de propofol, e os tempos de recuperação foram

significativamente aumentados depois do segundo dia consecutivo.80 Entretanto, em outro estudo, a administração repetida de anestesia com propofol foi avaliada, e não foram relatadas quaisquer alterações hematológicas relevantes.81 A formulação de propofol contendo álcool benzílico foi avaliada em gatos.42 Embora tenha havido preocupação com essa formulação, em virtude dos efeitos adversos potenciais do álcool benzílico sobre o sangue e o sistema nervoso de felinos, foi constatado que a administração de doses clínicas normais a altas da formulação a gatos saudáveis não provocou toxicidade orgânica.42 A formulação em microemulsão sem lipídio também foi avaliada em gatos,41,82 e, quando comparada com a emulsão lipídica, foram observadas respostas farmacocinéticas, farmacodinâmicas e fisiológicas comparáveis.41 Equinos Os efeitos clínicos do propofol no cavalo assemelham-se àqueles observados em outras espécies. A administração intravenosa de propofol após sedação produz rápida indução da anestesia, com curta duração de ação e recuperação rápida e suave.83,84 Entretanto, o propofol pode produzir respostas comportamentais imprevisíveis e excitação por ocasião da indução, limitando, assim, o seu uso como agente de indução de rotina em cavalos adultos.85 Entretanto, esses efeitos adversos por ocasião da indução parecem ser evitados pela administração intravenosa de guaifenesina durante 3 min antes da administração de propofol.86 O propofol, isoladamente ou em associação com outros fármacos, tem sido usado de modo efetivo na forma de infusão de velocidade constante em cavalos para manutenção da anestesia.87-89 Embora se tenha observado a ocorrência de eventos adversos na indução com a administração de propofol, os cavalos parecem permanecer calmos e coordenados durante a recuperação.85 Isso levou à investigação do propofol, em associação com xilazina, como modulador potencial da recuperação.90,91 Nesses relatos, foi constatado que uma associação de xilazina e propofol pode ter algum benefício, visto que houve melhora significativa na qualidade da recuperação.90,91 A formulação em microemulsão não lipídica do propofol também foi avaliada em equinos.92,93 Uma infusão de velocidade contínua de 3 h produziu resultados cardiopulmonares e bioquímicos semelhantes aos relatados quando foi administrada a formulação lipídica.93 Entretanto, em um estudo diferente de farmacocinética, os pesquisadores recomendaram ter cautela quando se usa o propofol para a manutenção da anestesia, devido à cinética variável, pouca analgesia e atividade mioclônica.92 Ruminantes O propofol tem sido usado de modo satisfatório como agente de indução em ovinos,94

caprinos,95 vacas96 e camelídeos.97 Nessas espécies, as características descritas da anestesia com propofol assemelham-se àquelas relatadas em outras espécies veterinárias. A indução é rápida e suave, a duração de ação é curta, e a recuperação é de boa qualidade. Os efeitos cardiopulmonares assemelham-se aos relatados em outras espécies. A farmacocinética do propofol foi descrita na cabra. A meia-vida de eliminação média foi curta (15,5 min), o volume de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico foi grande (2,56 ℓ/kg) e a velocidade de depuração foi rápida (275 mℓ/kg/min).95 Esses valores diferem daqueles obtidos em ovinos, nos quais a meia-vida de eliminação média foi de 56,6 ± 13,1 min, o volume de distribuição, de 1,037 ± 0,48 ℓ/kg, e a depuração, de 85,4 ± 28,0 mℓ/kg/min.98 Suínos O propofol não induz hipertermia maligna em suínos suscetíveis.99 À semelhança de outras espécies, foi relatada a ocorrência de depressão respiratória e apneia com a administração de propofol.100

■ Uso clínico As doses de propofol comumente usada para induzir anestesia em animais são apresentadas na Tabela 15.2. Deve-se assinalar que a dose necessária para obter intubação endotraqueal é alterada por medicações pré-anestésicas e pelo estado físico do animal. Os animais que estão debilitados e/ou que receberam depressores do SNC frequentemente irão necessitar de uma dose menor de propofol para indução. Tabela 15.2 Doses de propofol em várias espécies. Dose de indução

Infusão de velocidade

(mg/kg) IV

constante – mg/kg/min

Cão

3a a 10

0,2 a 0,6

Gato

5 a 10

0,2 a 1,0

Equino

2 a 3, a 6 a 8

0,2 a 0,4

Potro

2

0,33

Jumento

2

0,21

Suíno

2a3

0,1 a 0,2

Lhama

2

0,4

Furão

2a4

Coelho

2 a 10

Ovino

2a6

0,3 a 0,4

Caprino

3a6

0,3

a

Pré-tratado.

IV = intravenosa. O propofol deve ser administrado por via intravenosa, de preferência por meio de cateter intravenoso, e a dose deve ser titulada para a obtenção do efeito. Uma vez administrado, os efeitos anestésicos são habitualmente observados em 20 a 30 s, embora o período de latência possa ser prolongado em estados de baixo débito cardíaco. A qualidade da indução com propofol é boa, com transição suave para a inconsciência. Para reduzir a incidência de apneia pós-indução, recomenda-se frequentemente que a dose titulada de propofol seja administrada lentamente (durante 60 a 90 s). Entretanto, mesmo assim pode ainda ocorrer apneia. A apneia transitória raramente constitui um problema (exceto quando o estabelecimento de uma via respiratória é difícil ou impossível, como no caso de algumas condições orofaríngeas), contanto que o anestesista esteja preparado para intubar com tubo endotraqueal e assistir ou controlar a ventilação até o início da respiração espontânea. A duração da inconsciência varia de 2 a 8 min, e a qualidade da recuperação é, com frequência, satisfatória. Enquanto a injeção perivascular de propofol não produza anestesia, ela também não está associada a necrose tecidual. Foi relatada a ocorrência de dor com injeção intravenosa, e a dor parece estar associada à injeção de propofol em vasos menores, e não necessariamente à administração perivascular. Para diminuir a incidência de dor causada pela injeção, o médico pode decidir injetar o propofol em vasos de maior calibre, administrar uma pequena dose de lidocaína por via intravenosa antes da injeção do propofol ou diluir a dose por meio de administração do propofol em uma linha intravenosa de líquido.

Anestésicos dissociativos Os anestésicos dissociativos são derivados da fenciclidina, que produzem um denominado

estado de “anestesia dissociativa”, que se caracteriza pela dissociação dos sistemas talamocortical e límbico, causando uma alteração no estado de consciência.101 O cloridrato de cetamina e o cloridrato de tiletamina são os anestésicos dissociativos mais comumente usados em medicina veterinária.

■ Estrutura química A cetamina é o cloridrato de 2-(o-clorofenol)-2-(metilamino)-ciclo-hexano. Existem dois isômeros ópticos da cetamina, devido à presença de um carbono assimétrico. A maioria das formulações contém a mistura racêmica, porém dispõe-se de uma formulação de Scetamina purificada em alguns países. O isômero (S) positivo produz analgesia mais intensa, é metabolizado mais rapidamente e apresenta menor incidência de reações de emergência do que o isômero (R) negativo.102 A cetamina racêmica está disponível em solução aquosa a 10%. Apresenta pH de 3,5 a 5,5 e é conservada em cloreto de benzetônio. A tiletamina é o cloridrato de 2-(etilamino)-2-(2-tienil)-ciclo-hexano. Está apenas disponível em associação com benzodiazepínico zolazepam, sendo a associação comercializada com os nomes de Telazol® e Zoletil®. A associação tiletamina/zolazepam está disponível como pó branco, que é reconstituído com 5 mℓ de diluente. As concentrações finais de tiletamina e zolazepam dependem do produto usado.

■ Mecanismo de ação Os anestésicos dissociativos atuam sobre os receptores NMDA, opioides, monoaminérgicos e muscarínicos. Além disso, interagem com os canais de cálcio regulados por voltagem.103,104 É interessante ressaltar que os anestésicos dissociativos não parecem interagir com os receptores de GABA como o fazem os outros anestésicos injetáveis. A cetamina e a tiletamina são antagonistas não competitivos no receptor NMDA. Ligam-se ao sítio de ligação da fenciclidina, o que impede a ligação do glutamato, um neurotransmissor excitatório. A prevenção da ligação do glutamato resulta em depressão dos sistemas talamocortical, límbico e de ativação reticular. Foi também relatado que os anestésicos dissociativos exercem ação nos receptores opioides µ, δ e κ.105 A atividade nos receptores opioides confere propriedades analgésicas diferentes de outros anestésicos injetáveis, embora o significado clínico dessa ação em doses clinicamente relevantes seja questionável. Além disso, a interação dos anestésicos dissociativos nos receptores monoaminérgicos também pode contribuir para antinocicepção.104 Como a anestesia dissociativa está associada a sintomas anticolinérgicos (delirium de emergência, broncodilatação e ações simpatomiméticas), acredita-se que esses fármacos exerçam atividade antagonista nos receptores muscarínicos.104 Entretanto, muitos

desses efeitos também podem estar relacionados com os efeitos de estimulação da cetamina e da tiletamina sobre o sistema nervoso simpático.

■ Farmacocinética Os anestésicos dissociativos assemelham-se a outros anestésicos injetáveis, visto que apresentam início de ação relativamente rápido (em particular quando administrados por via intravenosa), têm curta duração e são altamente lipofílicos. Diferentemente de outros anestésicos injetáveis, os anestésicos dissociativos também são efetivos quando administrados por via intramuscular (IM). Ocorrem concentrações plasmáticas máximas em 1 min após a administração intravenosa e em 10 min após injeção intramuscular. A alta lipossolubilidade dos anestésicos dissociativos assegura a sua rápida passagem através da barreira hematencefálica, estabelecendo concentrações efetivas dos fármacos no cérebro.106 Na maioria das espécies, o metabolismo dos anestésicos dissociativos ocorre no fígado. A cetamina é desmetilada por enzimas microssômicas hepáticas, produzindo metabólito ativo norcetamina. Por fim, a norcetamina sofre hidroxilação e, em seguida, conjugação para formar metabólitos de glicuronídio hidrossolúveis e inativos, que são excretados pelo rim.107 Esse processo difere no gato, no qual a cetamina é biotransformada em norcetamina, que é excretada de modo inalterado na urina.108 Os anestésicos dissociativos devem ser usados com cuidado em animais com disfunção hepática e/ou renal significativa, visto que podem ocorrer tempos prolongados de anestesia. A tiletamina também sofre metabolismo hepático e excreção renal. Como a tiletamina só é fornecida com zolazepam, a ação do benzodiazepínico também deve ser discutida. Nos gatos, a duração de ação do zolazepam é mais longa que a da tiletamina. Isso significa que os efeitos do benzodiazepínico (sedação) no SNC estão presentes por mais tempo do que os efeitos da tiletamina. No cão, o inverso é verdadeiro, isto é, a duração de ação da tiletamina é mais longa que a do zolazepam. Isso significa que são observados os efeitos do anestésico dissociativo, incluindo rigidez muscular, estimulação simpática e delirium de emergência. Os suínos parecem ter uma recuperação lenta e calma com as associações de tiletamina/zolazepam, ao passo que, nos equinos, pode-se observar uma recuperação agitada se não for fornecida sedação adicional. Na presença de níveis plasmáticos significativos de tiletamina, a reversão do benzodiazepínico com flumazenil pode resultar em recuperação ansiosa.

■ Farmacodinâmica Sistema nervoso central A anestesia dissociativa assemelha-se a um estado cataléptico, em que o paciente não parece estar adormecido, porém não responde aos estímulos externos. Conforme assinalado

anteriormente, o antagonismo do receptor NMDA leva a uma dissociação dos sistemas límbico e talamocortical.101 Diferentemente de outros anestésicos injetáveis, os anestésicos dissociativos aumentam o fluxo sanguíneo cerebral e o CMRO2.109 A vasodilatação cerebral e o aumento da pressão arterial resultam em elevação da PIC.110 Parece que esse aumento pode ser atenuado se a ventilação for controlada, e se os animais permanecerem em um estado de eucapnia.111 Foi também demonstrado que a administração de tiopental ou de um benzodiazepínico reduz as elevações da PIC induzidas pela cetamina.106 Entretanto, o médico ainda deve ter cautela quando utilizar anestésicos dissociativos em pacientes que apresentam PIC elevada ou suspeita de sua presença. São observados padrões EEG epileptiformes após a administração de cetamina,112 levando à recomendação de que os anestésicos dissociativos sejam evitados em pacientes com distúrbios convulsivos. Entretanto, foi constatado que a cetamina não altera o limiar convulsivo em pacientes epilépticos.113 Além disso, há evidências de que a cetamina desempenhe atividade anticonvulsivante, bem como neuroprotetora.114 Durante a recuperação da anestesia dissociativa, pode ocorrer comportamento anormal, que pode progredir para o delirium de emergência. A representação incorreta dos estímulos visuais e auditivos pode ser responsável por essa reação.107 O paciente que apresenta reação de emergência pode ter ataxia, hiper-reflexia, sensibilidade ao toque e aumento da atividade motora e pode exibir uma recuperação violenta. Essas reações são habitualmente temporárias e desaparecem em poucas horas. A administração de depressores do SNC, como benzodiazepínicos, acepromazina ou agonistas dos receptores α2-adrenérgicos pode diminuir a incidência e/ou a gravidade dessas reações.107 Sistema cardiovascular A cetamina exerce efeito inotrópico cardíaco negativo direto,115 porém esse efeito é habitualmente superado pela estimulação simpática central. A administração intravenosa de cetamina aumenta a pressão arterial sistêmica e pulmonar, a frequência cardíaca, o débito cárdico, a necessidade de oxigênio do miocárdio e o trabalho cardíaco.116 É provável que essas alterações advenham da estimulação direta do SNC, resultando em aumento do efluxo do sistema nervoso simpático.117 A cetamina também inibe a recaptação de norepinefrina nas terminações nervosas simpáticas pós-ganglionares, levando a um aumento na concentração plasmática de catecolaminas.118 Os pacientes em estado crítico podem responder à indução da anestesia com cetamina com redução da pressão arterial sistêmica e do débito cardíaco. As reservas de catecolaminas e o mecanismo compensatório do sistema nervoso simpático podem ficar exauridos, revelando os efeitos inotrópicos negativos da cetamina.119 Embora animais saudáveis sejam habitualmente tolerantes a um aumento do trabalho cardíaco, das necessidades de oxigênio do miocárdio e da frequência

cardíaca, a cetamina deve ser usada com cautela nos animais que apresentam doença cardiovascular grave (p. ex., hipertensão não controlada, miocardiopatia ou insuficiência cardíaca) ou naqueles que já apresentam taquicardia e/ou arritmias. A estimulação do sistema cardiovascular nesses pacientes pode não ser desejável. Sistema respiratório Diferentemente de outros anestésicos injetáveis, a cetamina não provoca depressão respiratória significativa. As respostas ventilatórias à hipóxia e ao dióxido de carbono são mantidas em animais aos quais se administra a cetamina como único agente anestésico.120 Quando a cetamina é administrada com outros depressores do SNC, pode ocorrer depressão respiratória significativa. A administração de cetamina tem sido associada a um padrão respiratório “apnêustico”, caracterizado por duração prolongada da inspiração e período de expiração relativamente curto.121 Apesar desse padrão respiratório alterado, os níveis de dióxido de carbono e o volume minuto permanecem habitualmente dentro dos limites normais. A cetamina é um relaxante do músculo liso brônquico, que provoca broncodilatação e diminuição da resistência das vias respiratórias.122 Isso torna a cetamina uma escolha atraente quando se anestesiam animais com asma ou com doenças obstrutivas das vias respiratórias, como a doença pulmonar obstrutiva crônica. Os reflexos faríngeo e laríngeo permanecem intactos quando se utiliza a cetamina como único agente anestésico.123 Entretanto, deve-se observar que esses reflexos frequentemente não estão coordenados e não são protetores. Deve-se sempre intubar para prevenir a aspiração. A manutenção de uma via respiratória segura é particularmente importante, visto que a cetamina aumenta a salivação e as secreções do trato respiratório.106 Ambas podem ser reduzidas com a administração de um anticolinérgico. Sistemas hepático, renal e gastrintestinal Os exames laboratoriais para avaliação da função hepática ou renal não são alterados pela administração de anestésicos dissociativos. A motilidade gastrintestinal permanece inalterada após a administração de cetamina ao cão.124 Efeitos analgésicos Conforme anteriormente discutido, a ação dos anestésicos dissociativos nos receptores NMDA e opioides confere propriedades analgésicas. De fato, foi demonstrado que o uso de doses subanestésicas de cetamina produz analgesia profunda, particularmente em situações de dor somática.103 Além disso, acredita-se que o bloqueio do neurotransmissor excitatório glutamato nos receptores NMDA pelos anestésicos dissociativos possa desempenhar um

papel na prevenção ou redução máxima da sensibilização central ou dor wind-up. Por conseguinte, a administração preventiva de cetamina antes de estímulos dolorosos pode desempenhar algum papel na atenuação da sensibilização central.125 Músculo Diferentemente dos agentes anestésicos injetáveis previamente discutidos, os anestésicos dissociativos produzem pouco relaxamento muscular. De fato, os anestésicos dissociativos podem causar rigidez muscular e, com frequência, movimentos espontâneos dos membros, do tronco e/ou da cabeça. São observados aumentos substanciais da PIO após a administração de cetamina, que podem resultar do tônus aumentado dos músculos extraoculares.126 O relaxamento muscular pode melhorar com a coadministração de benzodiazepínicos ou agonistas dos receptores α2-adrenérgicos. Efeitos fetais/neonatais A cetamina atravessa a placenta e entra na circulação fetal. Em um estudo que avaliou os reflexos neurológicos em filhotes de cães nascidos por cesariana, a indução anestésica da fêmea com cetamina e midazolam resultou em maior depressão dos reflexos neurológicos, em comparação com outros fármacos de indução injetáveis.27

■ Efeitos sobre espécies específicas Cães Os anestésicos dissociativos podem ser administrados por via intravenosa ou por via intramuscular para produzir uma variedade de efeitos, desde sedação até anestesia. A indução da anestesia com cetamina como único agente pode resultar em rigidez muscular, movimentos espontâneos e recuperação indesejável. Por conseguinte, a cetamina é habitualmente administrada com um agente de coindução, como um benzodiazepínico. Como a tiletamina é fornecida em associação com zolazepam, não há necessidade de benzodiazepínico adicional para administração intravenosa. A cetamina intramuscular ou associações de tiletamina/zolazepam são frequentemente associadas a um agonista dos receptores α2-adrenérgicos e a um opioide para produzir uma excelente imobilização, com relaxamento muscular e analgesia. A Tabela 15.3 fornece as doses de cetamina isoladamente ou em associação com outros anestésicos comumente administrados a cães. A Tabela 15.4 lista as doses comuns e usos do Telazol® em cães. Felinos Os anestésicos dissociativos têm sido usados para produzir uma variedade de efeitos em gatos, desde sedação até anestesia. Esses fármacos podem ser administrados por via

intravenosa ou intramuscular. A cetamina também é absorvida pela mucosa oral. Em gatos particularmente irritáveis, a cetamina pode ser aplicada na boca na forma de spray para induzir efetivamente sedação e facilitar a indução da anestesia.127 Em geral, ocorre salivação copiosa em virtude do sabor amargo e/ou pH baixo da cetamina. Agonistas dos receptores α2-adrenérgicos, benzodiazepínicos e/ou acepromazina são comumente administrados em associação com a cetamina intramuscular. A associação de dexmedetomidina, cetamina e opioide produz excelente contenção química/anestesia, relaxamento muscular e analgesia.128 O pó de tiletamina/zolazepam (500 mg) tem sido reconstituído com xilazina (100 mg) e cetamina (400 mg) para formar um potente “coquetel” de contenção química/anestesia, que pode ser administrado por via intramuscular.129,130 É preciso ter cuidado quando se administra a associação de fármacos, visto que o volume global é muito pequeno, e a medição acurada é importante. Além disso, é necessário proceder a um monitoramento cuidadoso do paciente para evitar a hipotermia profunda, visto que pode ocorrer recuperação prolongada em consequência do metabolismo lento. O flumazenile/ou um antagonista dos receptores α2-adrenérgicos têm sido usados para acelerar a recuperação com essa combinação. A Tabela 15.5 fornece as associações comuns e doses de Telazol® em gatos. O uso de associações de tiletamina/zolazepam em grandes felídeos, particularmente tigres, não é recomendado. Foram relatadas reações adversas, incluindo recuperação tardia, paresia dos membros posteriores, hiper-reflexia, convulsões e morte.131 Tabela 15.3 Doses de cetamina quando usada isoladamente ou em associação em cães. Agente Cetamina isoladamente

Dose (mg/kg)

Via de administração

Duração (minutos)

Efeito Duração curta,

10

IV

7 a 23

anestesia inadequada para cirurgia Anestesia clínica,

Acepromazina

0,2

IV

31 a 47

menos rigidez muscular

Cetamina

10 Contenção, movimentos

Acepromazina

0,22

espásticos,

IM

recuperação prolongada

Cetamina

11 a 18 Anestesia cirúrgica,

Xilazina

0,55 a 1,1 IM

IM/IV

28 a 36

relaxamento muscular, analgesia para cirurgia de abdome

Cetamina

22 IV para produção dos efeitos Risco aumentado para

Atropina

0,04

IV

17 a 35

cães com comprometimento cardiopulmonar

Xilazina

1,1

Cetamina

11 Risco aumentado para

Atropina

0,04

IM

17 a 35

cães com comprometimento cardiopulmonar

Xilazina

1,1

Cetamina

22 Relaxamento muscular

Metomidina

0,04

IM

25 a 35

e recuperação mais longos do que com xilazina/cetamina

Cetamina

5

Indução adequada Diazepam

0,28

IV

para cães de caça (sighthounds)

Cetamina

5,5 Aumento da frequência cardíaca,

Midazolam

0,5

IV

10 a 16

depressão respiratória leve, relaxamento muscular adequado

Cetamina

10

Modificada de Tranquilli WJ, Thurmon JC, Grimm KA, eds. Lumb and Jones’ Veterinary Anesthesia and Analgesia, 4th edn. Ames, IA: Blackwell Publishing, 2007; Figure 12.1, p. 304. IM = intramuscular; IV = intravenosa. Tabela 15.4 Doses de Telazol® isoladamente ou em associação em cães. Agente

Dose (mg/kg)

Via de administração

Duração (minutos)

Efeito

Telazol

9,9

IM

10 a 30

Recuperação irregular

Telazol

6,6

IV

7 a 27 Anestesia clínica,

Telazol

8,8

IM

100

relaxamento muscular satisfatório, analgesia adequada

Xilazina

1,1

Butorfanol

0,22

Butorfanol

0,7

Telazol

9,3 a 11,9

IM

Sedação insatisfatória em cães agressivos

Acepromazina

0,6 a 3,0

Telazol

17,5 a 21,1

Sedação adequada em

IM

cães agressivos

Modificada de Tranquilli WJ, Thurmon JC, Grimm KA, eds. Lumb and Jones’ Veterinary Anesthesia and Analgesia, 4th edn. Ames, IA: Blackwell Publishing, 2007; Figure 12.2, p. 305. IM = intramuscular; IV = intravenosa. Tabela 15.5 Doses de Telazol® isoladamente ou em associação em gatos. Agente

Dose (mg/kg)

Via de administração

Duração (minutos)

Telazol isoladamente

6 a 40 (média de 12,8)

IM

40 a 70

Telazol isoladamente

12,8

IV

35 a 70

Acepromazina

0,1

IM

Telazol

3,4 ± 1,09

Efeito Salivação, respiração apnêustica Salivação, respiração apnêustica Anestesia adequada para castração

Indução e recuperação Telazol

3,3

IM

34 a 52

suaves, relaxamento muscular excelente, boa analgesia

Cetamina

2,64

Xilazina

0,66

Modificada de Tranquilli WJ, Thurmon JC, Grimm KA, eds. Lumb and Jones’ Veterinary Anesthesia and Analgesia, 4th edn. Ames, IA: Blackwell Publishing, 2007; Figure 12.4, p. 308. IM = intramuscular; IV = intravenosa. Equinos Os anestésicos dissociativos, particularmente a cetamina, são extensamente usados na

anestesia de equinos. A administração intravenosa de anestésicos dissociativos produz indução rápida e suave da anestesia, contanto que tenha sido obtida uma sedação adequada antes de sua administração. Se os anestésicos dissociativos forem administrados antes de obter uma sedação adequada, observa-se a ocorrência de excitação. Podem ainda ocorrer alguma rigidez muscular e movimento involuntário quando se utiliza a cetamina; por conseguinte, ela é frequentemente associada a outros agentes como: benzodiazepínico, agonista dos receptores α2-adrenérgicos ou guaifenesina. A anestesia pode ser mantida pela administração de doses intravenosas adicionais de cetamina. Essas doses podem ser administradas na forma de bolus intermitentes ou infusão com velocidade constante. Quando usada na forma de infusão de velocidade constante, a cetamina é frequentemente associada com sedativos e agentes analgésicos (p. ex., agonistas dos receptores α2-adrenérgicos, guaifenesina e opioides), em uma associação comumente designada como “gotejamento triplo”. As doses comumente usadas de cetamina em associação com outros agentes anestésicos podem ser encontradas na Tabela 15.6. As associações de tiletamina/zolazepam podem ser administradas por via intravenosa para induzir anestesia no cavalo, após obtenção de sedação adequada. Entretanto, deve-se assinalar que a recuperação da anestesia com tiletamina/zolazepam algumas vezes está associada a excitação e incoordenação se não forem administrados sedativos adicionais, como agonistas dos receptores α2-adrenérgicos, ou se a anestesia não for prolongada com agentes inalatórios.132 A Tabela 15.7 fornece as doses de tiletamina para cavalos. Ruminantes Os agentes dissociativos podem ser usados em ruminantes para induzir anestesia. A sedação e o relaxamento muscular melhoram habitualmente com a administração de um agonista dos receptores α2-adrenérgicos ou um benzodiazepínico antes da administração de cetamina. A anestesia pode ser mantida com infusão de cetamina em velocidade constante ou por uma associação de cetamina, guaifenesina ou xilazina. Tabela 15.6 Doses de cetamina isoladamente ou em associação para equinos. Agente

Dose (mg/kg)

Via de administração

Duração (minutos)

Efeito Indução e recuperação

Xilazina

1,1

IV

12 a 35

suaves, relaxamento muscular inadequado

Cetamina

2,2 Alterações

Xilazina

1,1

IV

18 a 56, dependendo

comportamentais,

da raça

relaxamento muscular, analgesia efetiva

Butorfanol

0,1 a 0,2

Cetamina

2,2

Xilazina

1,1

Cetamina

2,2

Metadona

0,1

Metadona

0,1

Acepromazina

0,15

Xilazina

1,1

Cetamina

2,2

Acepromazina

0,04

Metadona

0,04

Cetamina

2,0 a 2,5

Guaifenesina

50

Xilazina

0,5

Cetamina

1,0

IV

Anestesia satisfatória

IV

Anestesia inadequada

IV

3 a 18

IV

120

Tremores musculares

Pressão arterial baixa e hipoventilação

Menor depressão Guaifenesina

50

cardiovascular em comparação com barbitúrico/guaifenesina

Cetamina

1,5 a 2,2 Suplementar com 200 a 750 mg de cetamina,

Xilazina

1,1

IV

manter com halotano, relaxamento muscular satisfatório

Diazepam

0,1

Cetamina

2,0

Xilazina

1,1

Temazepam

0,044

Cetamina

2,2

Romifidina

0,1

Cetamina

2,0 a 2,2

Romifidina

0,08

Decúbito mais

IV

prolongado

IV

10 a 25

IV

25 a 40

Rigidez inicial dos membros, tremor leve

Pode exigir dose adicional de M e C

Recuperação suave Midazolam

0,06

Cetamina

2,2

Metotrimeprazina

0,5

Midazolam

0,1

Guaifenesina

100

IV

Indução da anestesia, recuperação suave

Cetamina

1,6 Exige mais tempo do que a xilazina-cetamina para o decúbito,

Detomidina

0,02

IV

10 a 43

recuperação precária ocasionalmente, hipertensão mais prolongada

Cetamina

2,2 Anestesia cirúrgica, porém pode exigir

Guaifenesina

50

IV

140

administração adicional de cetamina durante a cirurgia, boa recuperação

Detomidina

0,04

Cetamina

4

Detomidina

0,02

IV

18 a 67

Indução suave

Recuperação mais suave Relaxamento muscular Butorfanol

0,04

Cetamina

2,2

Modificada de Tranquilli WJ, Thurmon JC, Grimm KA, eds. Lumb and Jones’ Veterinary Anesthesia and Analgesia, 4th edn. Ames, IA: Blackwell Publishing, 2007; Figure 12.5, p. 309. IM = intramuscular; IV = intravenosa.

Tabela 15.7 Doses de cetamina e tiletamina em várias espécies. Espécies

Dose de cetamina (mg/kg)

Dose de tiletamina/zolazepam (mg/kg)

Cão

5 a 10 IV

1 IV

3 a 6 IM Gato

5 a 10 IV

5 a 15 IM

4 a 7 IM

Equino

2 a 2,2 IV

(após sedação adequada)

1 a 3 IV

(após sedação adequada) Bovino

2 a 4 IV

2 a 4 IV

Suíno

10 IM

6 IM

IM = intramuscular; IV = intravenosa. Doses subanestésicas de cetamina (em associação com xilazina) têm sido administradas a bezerros para produzir sedação antes da castração.133 Essa denominada técnica de “aturdimento pela cetamina” pode constituir uma alternativa ou adjuvante eficaz e custo efetivo da anestesia local para castração.133 A Tabela 15.7 fornece as doses dos anestésicos dissociativos para ruminantes. Suínos Os anestésicos dissociativos têm sido usados extensivamente em suínos para contenção química e anestesia. A cetamina não induz hipertermia maligna em suínos suscetíveis, embora o seu uso nesses animais tenha sido controverso.134 À semelhança de outras espécies, a cetamina como único agente anestésico produz relaxamento muscular inadequado, de modo que ela é comumente associada com azaperona, benzodiazepínicos e/ou agonistas dos receptores α2-adrenérgicos para sedação e anestesia. As associações de tiletamina/zolazepam são comumente reconstituídas com 250 mg de xilazina e 250 mg de cetamina e usadas como anestésico injetável em suínos.135 A Tabela 15.7 fornece as doses de anestésicos dissociativos para suínos.

■ Uso clínico As tabelas anteriormente mencionadas fornecem uma lista das doses comumente usadas de cetamina e associações de tiletamina/zolazepam. São fornecidas as vias de administração tanto intravenosa quanto intramuscular. A dose total necessária para induzir anestesia é afetada por medicações pré-anestésicas, pelo estado físico do paciente e pela via de administração. Os médicos devem avaliar cuidadosamente os pacientes para determinar se há necessidade de modificar as doses. Dependendo da dose administrada, a injeção intramuscular de anestésicos dissociativos produz efeitos que variam desde imobilização química rápida e segura até anestesia geral. O período de latência ocorre em 10 min após injeção intramuscular. O período hábil anestésico depende da dose administrada, porém é habitualmente mais longo após a injeção intramuscular, devido à dose total mais alta. A reversão do sedativo/tranquilizante usado em associação com o anestésico dissociativo não deve ocorrer até o desaparecimento dos efeitos do agente dissociativo. A reversão precoce do sedativo pode levar ao delirium de emergência e a uma recuperação irregular. A administração intravenosa de cetamina associada a um benzodiazepínico ou de associações de tiletamina/zolazepam resulta em indução da anestesia em aproximadamente 45 a 90 s. A qualidade da indução é boa, porém o médico deve lembrar que os reflexos oculares, laríngeos e faríngeos podem permanecer intactos. Os olhos permanecem abertos, porém o paciente está anestesiado. O período hábil anestésico aplicando uma única dose de indução das associações de cetamina/diazepam ou tiletamina/zolazepam é de aproximadamente 20 min. A recuperação da administração intravenosa de anestésicos dissociativos é habitualmente de boa qualidade, particularmente quando outros fármacos são coadministrados (p. ex., agonistas dos receptores α2-adrenérgicos) ou quando a anestesia é prolongada com agentes inalatórios.

Etomidato Sintetizado em 1964 e introduzido na prática médica humana em 1972, o etomidato vem sendo usado como agente de indução e de manutenção, em virtude de seus efeitos cardiovasculares mínimos e protetores cerebrais.136,137 Interesse recente por derivados do etomidato, como metoxicarbonil etomidato (MOC-etomidato) levaram a um melhor entendimento da farmacologia e dos efeitos adversos do etomidato.

■ Estrutura química O etomidato é um derivado imidazólico, o sulfato de R-(+)-pentiletil-1 H-imidazol-5carboxilato, que existe em dois isômeros, em que apenas um deles, o isômero (+), produz

hipnose. O etomidato é instável em soluções neutra e insolúvel em água. É fornecido na forma de solução a 0,2% em 35% de propilenoglicol, com pH de 6,9. As preparações de etomidato disponíveis no comércio apresentam alta osmolalidade, que pode resultar em alguns de seus efeitos adversos, incluindo potencial de lesão dos eritrócitos.

■ Mecanismo de ação À semelhança de outros anestésicos injetáveis, o etomidato possui atividade agonista do receptor de GABA.3 O etomidato intensifica a ação do neurotransmissor inibitório GABA, que aumenta a condução do cloreto na célula, resultando em hiperpolarização do neurônio pós-sináptico. A hiperpolarização do neurônio pós-sináptico resulta em depressão do SNC e hipnose.

■ Farmacocinética A farmacocinética do etomidato foi descrita em gatos e em seres humanos como modelo tricompartimental aberto.138,139 O etomidato sofre rápida redistribuição no gato (0,05 h), e a sua meia-vida de eliminação é de 2,89 h.139 O volume de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico é grande (4,88 ± 2,25 ℓ/kg em gatos), e a depuração total ocorre em 2,47 ± 0,78 ℓ/kg/h.139 O etomidato penetra rapidamente no cérebro, resultando em indução rápida da anestesia. A recuperação de uma única injeção intravenosa de etomidato também é rápida, em virtude da redistribuição do fármaco do cérebro para locais teciduais inativos. Cerca de 75% dos etomidato estão ligados à albumina, de modo que as condições nas quais as concentrações de albumina estão diminuídas resultam em aumento do fármaco farmacologicamente ativo.140 O índice terapêutico (LD50/ED50) do etomidato em ratos é muito grande (26,0), em comparação dom o tiopental (4,6).141 O etomidato sofre hidrólise da cadeia lateral etil éster, formando um metabólito hidrossolúvel e farmacologicamente inativo, que é excretado na urina, na bile e nas fezes. A hidrólise é realizada por enzimas hepáticas e esterases plasmáticas. A hidrólise do fármaco é quase completa, visto que menos de 3% do etomidato são excretados de modo inalterado na urina.142,143

■ Farmacodinâmica Sistema nervoso central O principal efeito do etomidato sobre o SNC consiste em hipnose, que é obtida por meio de atividade agonista GABA. Nos gatos, o etomidato diminui a descarga espontânea dos neurônios corticais, bem como a taxa de descarga de neurônios no tálamo e na formação reticular. Essa depressão da atividade neuronal provavelmente contribui para a inconsciência induzida pelo anestésico.144

O etomidato provoca vasoconstrição dos vasos cerebrais e diminui o fluxo sanguíneo cerebral e o CMRO2.145,146 Como a pressão arterial média permanece inalterada após a administração de etomidato, a pressão de perfusão cerebral é mantida.146 Em consequência, a pressão intracraniana previamente elevada é reduzida após a administração de etomidato, de modo semelhante ao que ocorre após a administração de tiopental.147,148 Em um modelo canino de hipoperfusão cerebral, a fração de extração de oxigênio cerebral não se modificou durante a hipotensão quando o etomidato foi administrado. Por conseguinte, foi concluído que o etomidato pode preservar a taxa metabólica cerebral.149 A redução da taxa metabólica cerebral de consumo de oxigênio, enquanto há redução da taxa de elevação da pressão intracraniana e produção de imobilização, pode diminuir os efeitos de uma agressão hipóxica ao cérebro de animais.150 O etomidato produz alterações no EEG semelhantes àquelas dos barbitúricos,148 mas também tem sido associado a crises grande mal.151 Por esse motivo, alguns anestesistas são contra o uso do etomidato em pacientes com história de convulsões. Sistema cardiovascular A administração intravenosa de etomidato a animais saudáveis caracteriza-se por estabilidade cardiovascular. Uma dose única de indução de etomidato resulta em alterações mínimas ou nenhuma alteração da frequência cardíaca, volume sistólico, débito cardíaco, pressão arterial media, pressão venosa central ou índice cardíaco.152,153 Em uma preparação de músculo papilar isolado de cão, o etomidato produziu menos depressão miocárdica do que uma dose igualmente potente de tiopental.154 A função dos barorreceptores e as respostas do sistema nervoso simpático parecem permanecer intactas após a administração de etomidato, contribuindo ainda mais para a estabilidade hemodinâmica.155 Quando administrado a cães hipovolêmicos, o etomidato produziu alterações mínimas nas variáveis cardiopulmonares.156 Entretanto, em cães com miocardiopatia dilatada, a pressão arterial permanece estável durante a anestesia com etomidato, devido a um aumento da resistência arterial e impedância aórtica, juntamente com diminuição da complacência aórtica.157 Isso indica que a pressão arterial é mantida devido a um aumento da pós-carga ventricular esquerda, o que afeta adversamente o desempenho sistólico e diastólico do ventrículo esquerdo em pacientes com comprometimento da função ventricular esquerda.157 Deve-se ressaltar que o etomidato habitualmente só é apropriado para indução da anestesia, e que os maiores efeitos cardiovasculares provavelmente apresentados pelo paciente são devidos aos fármacos usados para manutenção da anestesia (em geral, anestésicos inalatórios), o que pode anular ou alterar quaisquer benefícios potenciais do uso do etomidato. Sistema respiratório

O etomidato possui efeitos mínimos sobre o sistema respiratório. Foi relatada a ocorrência de apneia pós-indução após administração intravenosa rápida.158 Na maioria dos pacientes, qualquer redução do volume corrente observada após a administração de etomidato é habitualmente compensada por um aumento da frequência respiratória.136 Sistemas hepático, renal e gastrintestinal O etomidato não diminui o fluxo sanguíneo renal nem a taxa de filtração glomerular.26 As provas de função hepática e renal não são afetadas pela administração de etomidato.138 Sistema endócrino Foi documentada a ocorrência de supressão adrenocortical após a administração de etomidato. O etomidato provoca inibição dependente da dose da conversão do colesterol em cortisol.159 Essa supressão do sistema adrenocortical persiste durante pelo menos 6 h no cão160 e 5 h no gato.161 Este foi um mecanismo proposto para o aumento da mortalidade de pacientes humanos observado em alguns estudos após anestesia com etomidato. É preciso ter cuidado quando se anestesiam pacientes com doença adrenocortical (p. ex., doença de Addison), pacientes altamente estressados ou quando o etomidato é usado na forma de infusão de velocidade constante para manter a anestesia. Não se recomenda a infusão de longa duração do etomidato. Efeitos analgésicos O etomidato não produz antinocicepção; por conseguinte, os pacientes submetidos a procedimentos dolorosos devem receber analgésicos apropriados durante o período peroperatório. Músculo Podem ocorrer mioclonia, distonia e tremor com a administração de etomidato.162 Acreditase que isso seja o resultado da desinibição das estruturas subcorticais, que normalmente suprimem a atividade motora extrapiramidal.163 A atividade mioclônica pode ser reduzida com medicação pré-anestésica adequada e/ou administração intravenosa de um benzodiazepínico imediatamente antes da administração de etomidato.162 Dor no local de injeção A administração intravenosa de etomidato frequentemente resulta em dor. Acredita-se que a dor seja causada pelo veículo de propilenoglicol ou pela natureza hiperosmolar do produto comercial. A incidência de dor pode ser reduzida pela administração de etomidato em uma grande veia, através de acesso intravenoso ou administração intravenosa de um opioide imediatamente antes da administração do etomidato.162

Outras considerações A formulação atual do etomidato em propilenoglicol resulta em uma solução com osmolalidade de 4.640 mOsm/ℓ. Trata-se de uma solução hiperosmótica em comparação com o plasma (osmolalidade de cerca de 300 mOsm/ℓ), que tem sido associada a hemólise intravascular. Em cães, foi relatada a ocorrência de hemólise clinicamente significativa após administração prolongada de etomidato.164

■ Efeitos sobre espécies específicas Cães Apesar dos efeitos colaterais de sua administração, como vômito, mioclonia, excitação e hemólise, o etomidato ainda deve ser considerado como agente de indução por via intravenosa em pacientes com instabilidade cardiovascular, aumento da pressão intracraniana e/ou cirrose.165 Felinos A farmacocinética do etomidato foi descrita no gato e anteriormente detalhada. Quando usado como agente de indução em gatos normais, o etomidato demonstrou ser um agente de indução aceitável, que produz efeitos cardiopulmonares mínimos.166 Além disso, quando investigado como agente de indução por via intravenosa em gatos com diminuição da reserva cardiovascular, o etomidato, administrado em uma dose de 1 a 2 mg/kg titulada para produzir o efeito desejado, demonstrou ser efetivo. Entretanto, foi observada a ocorrência de salivação excessiva em todos os gatos.166 Deve-se assinalar que, devido à fragilidade dos eritrócitos de felinos, os gatos podem ter mais tendência a sofrer hemólise intravascular quando se administra etomidato. Equinos O etomidato não é usado clinicamente em cavalos. Ruminantes O etomidato foi estudado em ovelhas prenhes. Fresno et al. estudaram os efeitos cardiovasculares e acidobásicos do etomidato na ovelha prenhe e no feto.167 Foi determinado que um bolus intravenoso de 1 mg/kg de etomidato não deprimiu a função cardiovascular na ovelha e no feto. Quando o etomidato foi administrado na forma de infusão de velocidade constante durante 1 h, a frequência cardíaca e a pressão arterial maternas aumentaram durante a segunda metade da infusão e nos estágios iniciais da recuperação. Alterações acidobásicas levaram a uma depressão respiratória transitória, porém leve, da mãe e do feto, o que pode ter sido causado por uma combinação de

etomidato e posicionamento do animal.167 A transferência placentária do etomidato também foi examinada em ovelhas prenhes. Foi constatado que o etomidato atravessa rapidamente a placenta e alcança o feto em altas quantidades. Todavia, não foram demonstrados efeitos cumulativos do etomidato no feto, visto que a eliminação fetal ocorreu tão rapidamente quanto na ovelha prenhe.168 Foram também investigados os efeitos inibitórios do etomidato sobre a síntese de cortisol basal e estimulada pelo ACTH por células adrenocorticais bovinas isoladas. Em concentrações provavelmente alcançadas durante a anestesia, o etomidato bloqueia o débito de cortisol por essas células bovinas isoladas.169 Suínos O etomidato tem sido usado como agente de indução por via intravenosa em suínos.170 À semelhança de outras espécies, o etomidato proporciona estabilidade cardiovascular e diminui o fluxo sanguíneo cerebral, enquanto o fluxo sanguíneo renal permanece essencialmente inalterado.171 Além disso, o fármaco não desencadeia hipertermia maligna em porcos suscetíveis.172

■ Uso clínico As doses de etomidato comumente usadas em espécies domésticas estão listadas na Tabela 15.8. O médico deve observar que a dose necessária para a realização de intubação endotraqueal é afetada pelo estado físico do paciente e pela administração prévia de outros depressores do SNC (p. ex., sedativos, tranquilizantes, opioides). O etomidato pode se constituir em um agente de indução anestésica razoável para pacientes com alguns tipos de doença miocárdica, instabilidade cardiovascular e/ou lesões intracranianas.165 A indução da anestesia com etomidato é rápida, e a intubação endotraqueal é habitualmente possível em 30 segundos após a sua administração. Conforme assinalado anteriormente, foi descrita a ocorrência de dor com a injeção intravenosa. A incidência de dor causada pela injeção pode ser reduzida pela administração intravenosa de um analgésico opioide antes da injeção do etomidato, administração do etomidato por meio de cateter intravenoso colocado em uma grande veia e/ou administração do etomidato em um acesso intravenoso. Foi também descrita a ocorrência de mioclonia após administração intravenosa de etomidato. A medicação pré-anestésica adequada com sedativos, como benzodiazepínicos, pode reduzir a incidência de atividade mioclônica. Tabela 15.8 Doses de etomidato em várias espécies. Espécie

Dose (mg/kg) IV

Cão

0,5 a 4,0

Gato

0,5 a 4,0

Suíno

2a4

IV = intravenosa. A duração da anestesia após administração intravenosa de etomidato depende da dose, porém o despertar após uma dose única de etomidato é mais rápido do que após a administração de barbitúrico.136 A anestesia pode ser mantida pela administração de etomidato na forma de infusão de velocidade constante, visto que há pouca evidência de efeito cumulativo do fármaco. Entretanto, não se recomenda a manutenção da anestesia com etomidato, devido à supressão adrenocortical e lesão eritrocitária previamente discutidas.

Alfaxalona A alfaxalona tem sido usada em medicina veterinária desde a descrição de suas propriedades anestésicas, em 1971.173 Como a alfaxalona é pouco hidrossolúvel, foi originalmente associada a um anestésico fraco, a alfadolona e formulada em veículo de óleo de rícino polioxietilado. O Althesin® foi formulado para uso humano, enquanto o Saffan® foi comercializado para uso veterinário. Essa associação de dois neuroesteroides foi usada para induzir e/ou manter a anestesia em uma variedade de espécies domésticas, incluindo gatos, equinos, suínos e ovinos.174 Entretanto, a formulação em óleo de rícino, Cremophor El®, foi associada a hiperemia em gatos175 e liberação de histamina, com reações anafiláticas resultantes em cães.173 Mais recentemente, uma solução contendo alfaxalona em um veículo sem cremofor (ciclodextrana) foi aprovada para cães e gatos em vários países. Essa formulação não está associada à liberação de histamina.176 A discussão que se segue concentra-se nessa formulação mais recente de alfaxalona.

■ Estrutura química A alfaxalona (3-α-hidroxi-5-α-pregnane-11,20-diona) é uma molécula de esteroide neuroativa, capaz de induzir anestesia. É fornecida na forma de solução a 1% em 2hidroxipropil-β-ciclodextrina. A solução contém conservante antimicrobiano, de modo que qualquer solução remanescente no frasco após a retirada da dose necessária deve ser descartada.

■ Mecanismo de ação À semelhança de muitos dos outros agentes anestésicos injetáveis, a alfaxalona produz depressão do SNC por meio de ativação nos receptores de GABA.177 A ligação da alfaxalona aos receptores e GABA aumenta a condução do cloreto na célula, resultando em hiperpolarização da membrana pós-sináptica. Isso, por sua vez, inibe as vias responsáveis pela vigília e consciência. Quando presente em concentrações mais baixas, a alfaxalona modula as correntes iônicas através do receptor de GABA. Entretanto, em concentrações mais altas, a alfaxalona atua como agonista GABA, à semelhança dos barbitúricos.177

■ Farmacocinética A farmacocinética da alfaxalona foi determinada em cães, gatos e equinos. O volume de distribuição após doses de 2 e 5 mg/kg é de 2,4 ℓ/kg em cães e de 1,8 ℓ/kg em gatos. Nos gatos, a meia-vida (t½) de eliminação plasmática terminal média é de cerca de 45 min para uma dose de 5 mg/kg, enquanto a depuração plasmática média é de 25,1 ± 7,6 mℓ/kg/min.178 Em cães, a t½ é de cerca de 25 min para uma dose de 2 mg/kg. A depuração plasmática para uma dose de 2 mg/kg é de 59,4 ± 12,9 mℓ/kg/min.176 A duração da anestesia, a t½ e a depuração plasmática da alfaxalona em Galgos sem medicação préanestésica assemelham-se àquelas relatadas em Beagles.179 No cavalo, o volume de distribuição após uma dose de 1 mg/kg é de 1,6 ± 0,4 ℓ/kg. A t½ de uma dose de 1 mg/kg é de 33,4 min e a depuração plasmática de uma dose de 1 mg/kg de alfaxalona é de 37,1 ± 11,1 mℓ/kg/min.180 Em potros pré-medicados com butorfanol, uma dose de 3 mg/kg de alfaxalona teve meia-vida de eliminação plasmática média de 22,8 ± 5,2 min, e a depuração plasmática e o volume de distribuição observados foram de 19,9 ± 5,9 mℓ/kg/min e 0,6 ± 0,2 ℓ/kg, respectivamente.181 Parece que a alfaxalona sofre metabolismo hepático dependente do citocromo P450 (Fase I) e dependente de conjugação (Fase II). Os gatos e os cães parecem formar os mesmos cinco metabólitos de Fase I da alfaxalona. Enquanto gatos produzem sulfato de alfaxalona e glicuronídio de alfaxalona na Fase II, foi observado que os cães produzem glicuronídio de alfaxalona. Esses metabólitos são então eliminados pelas vias hepática/fecal e renal (resumo das características do produto de Jurox).

■ Farmacodinâmica Sistema nervoso central A administração de alfaxalona produz inconsciência e redução da atividade ECG dependente da dose.182 O fluxo sanguíneo cerebral, a pressão intracraniana e as demandas de oxigênio metabólico do cérebro estão todos diminuídos.183 A duração da anestesia e a falta de resposta a estímulos nocivos aumentam com doses crescentes de alfaxalona

administradas a gatos e cães. Em cães anestesiados com halotano, a administração de alfaxalona resultou em alterações do eletroencefalograma. Essas alterações consistiram em deslocamento da banda de frequência dominante de β para δ, surtossupressão ocasional e diminuição da frequência mediana e frequência de borda espectral.182 Sistema cardiovascular A administração intravenosa de alfaxalona produz depressão cardiovascular dependente da dose em cães e gatos. A pressão arterial, o débito cardíaco e a frequência cardíaca diminuíram em gatos aos quais foram administradas doses de 15 mg/kg e 50 mg/kg de alfaxalona intravenosa. Nos animais que receberam a dose de 50 mg/kg, a redução da pressão arterial sistólica foi acentuada, e não houve retorno a um valor clinicamente aceitável por aproximadamente 15 a 30 min. Em cães aos quais foi administrada uma dose intravenosa de 6 e 20 mg/kg de alfaxalona, a frequência cardíaca aumentou, enquanto a pressão arterial e a pressão arterial pulmonar média diminuíram de modo dependente da dose. Entretanto, deve-se assinalar que, quando a alfaxalona foi administrada a cães e gatos em doses clinicamente relevantes (5 mg/kg em gatos e 2 mg/kg em cães), os parâmetros cardiovasculares permaneceram muito estáveis. Estudos que utilizaram doses clínicas de alfaxalona em equinos, ovinos e suínos também demonstraram parâmetros cardiovasculares estáveis. Sistema respiratório Em cães e gatos, a administração de alfaxalona produz depressão respiratória dependente da dose, sendo a apneia o efeito colateral mais comum.184,185 Nos cães, a duração da apneia esteve relacionada com a dose de alfaxalona administrada.184 Tanto em cães quanto em gatos, foram observadas reduções dependentes da dose na frequência respiratória, no volume minuto e na pressão arterial parcial de oxigênio.184,185 A pressão parcial arterial de dióxido de carbono (PaCO2) aumentou em gatos aos quais foram administrados 50 mg/kg e em cães aos quais foram administrados 6 e 20 mg/kg.184,185 Não houve apneia nem aumento da PaCO2 em cães que receberam 2 mg/kg de alfaxalona.183 A exemplo dos parâmetros cardiovasculares, os efeitos respiratórios da alfaxalona são passíveis de manejo quando são administradas doses clinicamente relevantes. Sistemas hepático, renal e gastrintestinal Para o conhecimento da autora, não foi publicado nenhum estudo controlado que examinasse o efeito da alfaxalona isoladamente sobre o fluxo sanguíneo hepático ou renal. Estudos envolvendo alfaxalona-alfadolona demonstraram que a função renal em ratos só está alterada de modo transitório, se houver qualquer alteração,186,187 ao passo que um estudo realizado em cães mostrou que o fluxo sanguíneo renal permanecia inalterado.188 A

administração de alfaxalona-alfadolona em Galgos diminuiu o fluxo sanguíneo hepático e o suprimento de oxigênio para o fígado.189 Conforme discutido anteriormente, a alfaxalona sofre metabolismo hepático pelo citocromo P450. A indução da enzima do citocromo P450 leva a um aumento na taxa de degradação da alfaxalona, o que pode diminuir a duração da anestesia.190 Outros efeitos A alfaxalona é um composto esteroide derivado da progesterona; por conseguinte, é possível que o metabolismo específico do sexo possa produzir diferenças farmacocinéticas entre machos e fêmeas. Todavia, em estudos que descreveram a farmacocinética da alfaxalona, o sexo não parece ter nenhum efeito sobre qualquer uma das variáveis essenciais. Por conseguinte, a alfaxalona pode ser administrada na mesma dose em machos e fêmeas.177

■ Efeitos sobre espécies específicas Cães Em um ensaio clínico multicêntrico envolvendo 231 cães, foi constatado ser a alfaxalona segura e efetiva para a indução e a manutenção da anestesia.191 Nesse estudo, a dose de indução média de alfaxalona foi de 2,2 mg/kg em cães sem medicação pré-anestésica e de 1,6 mg/kg naqueles que receberam medicação pré-anestésica.191 Essa redução na dose de alfaxalona necessária para a indução após medicação pré-anestésica foi demonstrada em outros estudos.192,193 Conforme descrito anteriormente, os parâmetros cardiovasculares e respiratórios permanecem muito estáveis em cães aos quais se administra a alfaxalona em doses clinicamente relevantes, sendo a apneia pós-indução o efeito colateral mais comumente relatado.184 Em comparação com o etomidato, a indução da anestesia com alfaxalona resultou em taquicardia e aumento do índice cardíaco. Além disso, houve diminuição da pressão arterial e da resistência vascular sistêmica, embora ambas tenham permanecido em valores clinicamente aceitáveis.152 Quando usada em um estudo clínico envolvendo cães com baixo risco anestésico, a alfaxalona não produziu alterações significativas da pressão sistólica, e foi estabelecida como agente de indução clinicamente aceitável.194 A alfaxalona tem sido administrada em infusão de velocidade constante para manter a anestesia em cães e demonstrou ser um anestésico efetivo, produzindo valores hemodinâmicos clinicamente aceitáveis.195 As infusões de velocidade constante de alfaxalona produzem anestesia efetiva para procedimentos cirúrgicos.196,197 Doses de 0,07 mg/kg/min, ajustadas para manter uma profundidade adequada da anestesia,196 e doses de 0,11 ± 0,01 mg/kg/min197 produziram anestesia satisfatória em cadelas submetidas a

ooforo-histerectomia. Em ambos os estudos, foi observada a ocorrência de depressão respiratória significativa, de modo que se recomenda o monitoramento da ventilação.196,197 A alfaxalona também foi avaliada em cães com menos de 12 semanas de idade e foi estabelecida como agente de indução adequado.198 Além disso, tem sido usada para induzir anestesia em cadelas antes de cesariana.199 Foram incluídas 74 cadelas no estudo, 26 das quais receberam alfaxalona para induzir anestesia. Os escores de vigor dos filhotes foram mais altos nas cadelas que receberam alfaxalona, em comparação com aquelas que receberam propofol, porém as taxas de sobrevida de 24 h após o nascimento foram semelhantes entre os grupos (97% para a alfaxalona e 98% para o propofol).199 Outros estudos de alfaxalona em cães mostraram que a administração intravenosa para indução de anestesia aumenta a pressão intraocular.200 Diferentemente de algumas formulações de propofol e de etomidato, a injeção intravenosa de alfaxalona não provoca dor no local de injeção.79 A recuperação da anestesia com alfaxalona é mais longa em comparação com a do propofol e tem sido associada a eventos adversos, como movimentos de pedalagem, rigidez, mioclonia e vocalização.191,201 Entretanto, esses eventos tiveram uma duração de menos de 2 minutos, não resultaram em lesão e não exigiram tratamento.201 Felinos A alfaxalona tem sido empregada para sedação, bem como para indução e manutenção da anestesia no gato. A administração subcutãnea de alfaxalona e butorfanol a gatos com hipertireoidismo resultou em sedação adequada para a administração oral de iodo-131.202 Todavia, em outro estudo, a alfaxalona por via intramuscular, em associação com dexmedetomidina e hidromorfona, resultou em recuperação prolongada, com excitação, ataxia e hiper-reatividade em todos os gatos, de modo que essa via de administração de alfaxalona não é recomendada.203 Quando administrada por via intravenosa em doses clinicamente relevantes para induzir anestesia, a alfaxalona produz anestesia dependente da dose e ausência de resposta a estímulos nocivos.185 Conforme assinalado anteriormente, os parâmetros cardiopulmonares permanecem relativamente estáveis, e a hipoventilação e a hipóxia constituem os efeitos colaterais mais frequentes da administração de altas doses de alfaxalona.185 Em comparação com o propofol, a administração intravenosa de alfaxalona resultou em indução, variáveis cardiorrespiratórias e recuperação semelhantes e clinicamente aceitáveis.204 Em gatos de 3 a 12 meses de idade, a administração intravenosa de alfaxalona produziu indução suave da anestesia, com rápida recuperação.205 Foi também demonstrado que a alfaxalona é um agente de indução e de manutenção adequado em gatos com menos de 12 semanas de idade.206

A administração de doses intermitentes em bolus intravenoso de alfaxalona não parece resultar em acúmulo plasmático do fármaco em gatos, nem aumentar o tempo de recuperação, de modo que o fármaco pode ser usado em infusão de velocidade constante para manter a anestesia.178 Em gatos pré-tratados com morfina e dexmedetomidina submetidos a procedimentos de castração, a indução com alfaxalona e a infusão com velocidade constante (1,7 mg/kg e 0,18 mg/kg/min, respectivamente) foram efetivas para anestesia cirúrgica.207 À semelhança do cão, foram observados eventos adversos mínimos durante a recuperação em animais que receberam alfaxalona. Em comparação com o propofol, gatos aos quais foi administrada alfaxalona tiveram mais tendência a exibir episódios de movimentos de pedalagem e tremor durante a recuperação.208 Entretanto, a recuperação na maioria dos casos foi avaliada como recuperação global suave e foi semelhante àquela observada em gatos que receberam propofol.208 Equinos A alfaxalona tem sido para indução e manutenção da anestesia em equinos.209-211 Quando administrada por via intravenosa a cavalos após xilazina e guaifenesina, uma dose de 1 mg/kg de alfaxalona induziu satisfatoriamente anestesia, embora se tenha relatado a ocorrência de tremores.210 Em comparação com a cetamina, uma dose de 1 mg/kg de alfaxalona com 0,02 mg/kg de diazepam IV produziu um tempo de indução mais curto (18 ± 4 s), com tempo semelhante de anestesia.211 Entretanto, os escores de recuperação foram significativamente piores em cavalos aos quais foi administrada alfaxalona.211 A alfaxalona também foi administrada na forma de infusão com velocidade constante para manter a anestesia geral em cavalos submetidos a castração de campo. Nesse estudo, foi constatado que a alfaxalona, em uma dose de 2 mg/kg, e a medetomidina, em uma dose de 5 µg/kg/h, foram adequadas para anestesia em campo a curto prazo no cavalo.209 Ruminantes Foi constatado que a alfaxalona produz anestesia aceitável, enquanto mantém as funções cardiovascular e respiratória em ovinos.212,213 Foi demonstrado que uma infusão com velocidade constante de alfaxalona em ovinos anestesiados com desfluorano reduziu a necessidade de agentes inalatórios, enquanto os parâmetros cardiorrespiratórios permaneceram semelhantes àqueles de ovinos anestesiados com desfluorano apenas.212 Em outro estudo, uma dose intravenosa de 2 mg/kg de alfaxalona produziu alterações mínimas nas variáveis cardiopulmonares e acidobásica.213 Foi também demonstrado que a alfaxalona não tem nenhum efeito sobre a pressão intraocular nos ovinos; entretanto, foi observada a ocorrência de miose acentuada.214

Suínos A alfaxalona tem sido usada para induzir sedação e anestesia em porcos. A alfaxalona, isoladamente ou em associação com diazepam, foi injetada por via intramuscular a porcos. Esse esquema resultou rapidamente em decúbito, sedação profunda e efeitos colaterais mínimos. Foi observado que essa associação pode ser útil para medicação pré-anestésica em suínos, porém o volume da injeção deve limitar o seu uso a porcos pequenos.215 A indução de anestesia com alfaxalona intravenosa também foi descrita em suínos. Em porcos pré-medicados com azaperona intramuscular, a administração de alfaxalona intravenosa resultou em condições satisfatórias para intubação, com efeitos colaterais mínimos.216

■ Uso clínico A Tabela 15.9 fornece uma lista das doses comumente usadas de alfaxalona. À semelhança de todos os agentes de indução injetáveis, a dose deve ser ajustada de acordo com a administração concomitante de fármacos e o estado físico do animal. Conforme discutido previamente, a alfaxalona pode ser efetiva quando administrada por via intravenosa ou intramuscular. Todavia, devido ao volume de injeção, a via intramuscular deve ser limitada a pacientes de pequeno porte. Durante a recuperação da anestesia com alfaxalona, recomenda-se que o animal seja mantido em uma área calma e escura, onde não seja manipulado nem perturbado, exceto para monitoramento necessário. Foi relatada a ocorrência de movimentos de pedalagem dos membros, contração muscular, hiper-reatividade e ataxia em animais durante a recuperação da anestesia com alfaxalona. Essas reações podem ser obscurecidas pelo uso de agentes sedativos. Tabela 15.9 Doses de alfaxalona em várias espécies. Indução intravenosa de

Infusão com velocidade

anestesia (mg/kg)

constante (mg/kg/min)

Cão

0,5 a 2,2

0,07 a 0,12

Gato

0,5 a 5,0

0,18

Cavalo

1a3

0,03314

Potro

3

Ovino

1,2 a 2,6

Espécie

Dose para sedação (mg/kg)

3,0 SC

Suíno

0,6 a 1,1

5,0 IM

Administrada com 5 µg/kg/h de medetomidina. IM = intramuscular; SC = subcutânea.

Outros fármacos Os seguintes agentes anestésicos injetáveis não são mais utilizados rotineiramente na prática clínica, porém têm importância histórica no estudo da anestesia veterinária e, em certas ocasiões, são de interesse para pesquisadores laboratoriais.

■ Metomidato O metomidato é o primeiro composto da classe de anestésicos imidazólicos, que foi projetado como hipnótico intravenoso não barbitúrico. É livremente solúvel em água, porém as soluções aquosas são instáveis e devem ser usadas dentro de 24 h. Inicialmente, o metomidato foi introduzido como hipnótico para suínos, equinos217 e uma variedade de espécies de aves. Quando administrado por injeção intravenosa, o metomidato produz rapidamente perda da consciência. Apresenta curta duração de ação de menos de 25 min; entretanto, os animais dormem por várias horas. A recuperação em equinos pode ser extremamente violenta.218 A anestesia com metomidato caracteriza-se por estabilidade cardiovascular. Inicialmente, ocorre hipotensão leve, juntamente com diminuição da frequência cardíaca e redução discreta do débito cardíaco. A ventilação minuto também permanece estável, com leve redução da frequência respiratória, porém com aumento do volume corrente. O metomidato produz relaxamento muscular profundo, porém pouca analgesia, de modo que precisa ser associado com analgésicos para procedimentos cirúrgicos.218 O desenvolvimento posterior dos compostos imidazólicos produziu uma substância superior, o etomidato, que passou a ser usado em medicina humana e veterinária.

■ Hidrato de cloral O hidrato de cloral, o 1,1,1-tricloro-2,2-di-hidroxietano, é um hipnótico introduzido pela primeira vez em 1869. Trata-se de uma substância cristalina, que possui odor distinto que volatiliza lentamente em temperatura ambiente. O hidrato de cloral é prontamente solúvel em água, e as soluções aquosas permanecem, em geral, estáveis. Após a sua administração, o hidrato de cloral é metabolizado a tricloroetanol, que é responsável pela maior parte dos efeitos observados. Embora o mecanismo de ação não seja conhecido, é provável que o tricloroetanol

interaja com o receptor de GABA de modo semelhante aos outros anestésicos injetáveis. Quando administrado, o hidrato de cloral produz sedação dependente da dose. A dose necessária para produzir anestesia aproxima-se da dose letal mínima, de modo que a margem de segurança é muito estreita. Os efeitos de uma injeção intravenosa são de início lento, o que torna difícil alcançar o grau de sedação ou depressão. Mesmo após administração lenta, a sedação continua se aprofundando por alguns minutos após a interrupção da injeção, provavelmente devido ao tempo de latência criado pelo metabolismo a tricloroetanol. Ocorre redução da contratilidade miocárdica, resultando em hipotensão. O sistema respiratório é levemente afetado pela administração de hidrato de cloral, porém nas doses necessárias para produzir anestesia, a depressão respiratória pode ser grave. Foi relatada a ocorrência de fibrilação ventricular e morte súbita no período de recuperação. Para reduzir o risco de morte, foi utilizada a adição de sulfato de magnésio ou de pentobarbital ou de ambos. Historicamente, o hidrato de cloral tem sido usado para sedação em equinos e bovinos por via intravenosa ou oral. O hidrato de cloral é irritante tanto para o estômago quanto para as mucosas; em virtude de sua natureza irritante, a injeção perivascular do fármaco resulta em necrose e descamação da parede do vaso e tecidos circundantes. Se a injeção intravenosa for continuada até alcançar um plano cirúrgico de anestesia, a recuperação é prolongada.

■ Sulfato de magnésio O sulfato de magnésio provavelmente é mais bem considerado como relaxante muscular e depressor do SNC do que como anestésico injetável. Quando associado com hidrato de cloral, o sulfato de magnésio acelera o início da anestesia, aumenta a sua profundidade e reduz a toxicidade associada ao hidrato de cloral. A mistura recomendada é de duas partes de hidrato de cloral para uma parte de sulfato de magnésio. Soluções diluídas de sulfato de magnésio têm sido usadas para induzir anestesia em pequenos animais. Entretanto, a administração de sulfato de magnésio resulta em depressão global do SNC, e, com frequência, ocorre parada respiratória. O sulfato de magnésio tem sido usado para eutanásia, porém só deve ser administrado após o animal estar inconsciente pela ação de outro agente anestésico.

■ Cloralose A cloralose é uma solução preparada pelo aquecimento de glicose e hidrato de cloral. Seu uso como anestésico limita-se a animais de laboratório, sendo empregado em experimentos cirúrgicos sem sobrevida. A anestesia produzida com cloralose assemelha-se àquela do

hidrato de cloral, porém os efeitos têm duração de 8 a 10 h. Em comparação com hidrato de cloral, há elevação da pressão arterial, bem como da frequência cardíaca e da frequência respiratória.218 A cloralose é transformada em cloraldeído e glicose, e a margem de segurança é relativamente grande. A recuperação da anestesia com cloralose é lenta e caracterizada por movimentos de pedalagem e fasciculações musculares. Por conseguinte, existe pouca indicação para o seu uso em medicina veterinária.

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Introdução Características físico-químicas Características químicas Características físicas Farmacocinética | Captação e eliminação dos anestésicos inalatórios Captação do anestésico | Fatores que determinam a PA do anestésico Eliminação do anestésico Dose anestésica | Concentração alveolar mínima (CAM) Farmacodinâmica | Ações e toxicidade dos anestésicos inalatórios voláteis sobre os sistemas orgânicos Sistema nervoso central Sistema respiratório Sistema cardiovascular Efeitos sobre os rins Efeitos sobre o fígado Efeitos sobre o músculo esquelético | Hipertermia maligna Anestésico gasoso | Óxido nitroso Dose Farmacocinética Farmacodinâmica Transferência do N2O para espaços gasosos fechados Hipoxia de difusão Interação com o monitoramento dos gases respiratórios

Anestésicos inalatórios residuais Exposição ocupacional | Concentrações residuais de anestésicos inalatórios Implicações ambientais dos anestésicos inalatórios Referências bibliográficas

Introdução Os anestésicos inalatórios são amplamente utilizados para o manejo anestésico de animais. São singulares entre os fármacos anestésicos, visto que são administrados e, em grande parte, eliminados do corpo pelos pulmões. Sua popularidade decorre, em parte, de suas características farmacocinéticas, que favorecem um ajuste previsível e rápido da profundidade anestésica. Além disso, utiliza-se habitualmente um equipamento especial para a administração dos agentes inalatórios. Esse equipamento consiste em uma fonte de oxigênio (O2) e um circuito respiratório para o paciente, que, por sua vez, inclui habitualmente um tubo endotraqueal ou máscara facial, um meio de eliminar o dióxido de carbono (CO2) e um reservatório de gás compatível. Esses componentes ajudam a reduzir ao máximo a morbidade ou a mortalidade, visto que eles facilitam a ventilação pulmonar e melhoram a oxigenação arterial do paciente. Além disso, os anestésicos inalatórios em amostras gasosas podem ser facilmente medidos de maneira contínua. A determinação da concentração do anestésico inalatório aumenta a precisão e a segurança do manejo anestésico além do grau comumente possível com os agentes anestésicos injetáveis. Ao longo dos quase 150 anos de uso da anestesia inalatória na prática clínica, menos de 20 agentes foram efetivamente introduzidos e aprovados para uso geral em pacientes (Figura 16.1).1 Menos de 10 desses agentes têm uma história de uso clínico difundido em medicina veterinária, e apenas quatro são de importância veterinária atual na América do Norte. Esse grupo de anestésicos constitui o foco deste capítulo. Atualmente, o isofluorano é considerado o anestésico inalatório de uso mais difundido em medicina veterinária na América do Norte, seguido de perto pelo sevofluorano. Outros anestésicos inalatórios incluem o desfluorano e o agente gasoso, o óxido nitroso (N2O), que são usados com muito menos frequência em animais. O halotano, que outrora foi o anestésico volátil mais popular no mundo inteiro, não é mais distribuído comercialmente na América do Norte. Todavia, ele continua disponível em outros países (pelo menos de modo limitado), e, tendo em vista a sua distribuição internacional disseminada, continuaremos a incluir informações aqui sobre algumas ações de importância clínica para a anestesia veterinária. Dois outros agentes voláteis continuam recebendo alguma atenção por diferentes motivos. O metoxifluorano, um agente popular durante o período de aproximadamente

1960 a 1990, não foi comercializado durante muitos anos na América do Norte. Entretanto, devido a algumas de suas características físico-químicas, é importante mencioná-lo aqui, particularmente para os alunos de nossa disciplina clínica e para farmacologistas, além de possibilitar a fácil comparação com agentes de maior interesse atual. O enfluorano, introduzido para uso em pacientes humanos em 1972 e ainda comercialmente disponível, tem pouco ou nenhum uso na prática veterinária na América do Norte. Informações sobre esse anestésico volátil foram incluídas em edições anteriores deste livro. Entretanto, tendo em vista que o uso veterinário do enfluorano é apenas muito limitado em outros países, retiramos a maior parte das informações sobre esse fármaco deste capítulo, e os leitores interessados poderão consultar a quarta edição deste texto para a sua descrição. Apesar do interesse científico e muito limitado para pacientes humanos, uma análise do xenônio tampouco será incluída neste capítulo focalizado em animais.

Figura 16.1 Anestésicos inalatórios introduzidos para uso clínico difundido. Fonte: Adaptada de Karzai W. Haberstroh J. Muller W, Priebe H-J. Rapid increase in inspired desflurane concentration does not elicit a hyperdynamic circulatory response in the pig. Lab Anim 1997;

31: 279-282.

Nesta edição, não foram incluídas informações sobre agentes de interesse principalmente histórico. Os leitores interessados em aspectos desses agentes antigamente usados podem consultar as edições anteriores, bem como outros livros.2-6 Exemplos desses agentes incluem o éter dietílico e o clorofórmio. A Figura 16.1 fornece uma lista mais completa desses agentes.

Características físico-químicas A estrutura química dos anestésicos inalatórios e suas propriedades físicas determinam suas ações e segurança de administração. A análise aprofundada do impacto da estrutura química e das propriedades físicas desses agentes está além do objetivo deste capítulo. Entretanto, uma breve discussão dos aspectos da Figura 16.2 e da Tabela 16.1 é apropriada, visto que as características físico-químicas resumidas determinam e/ou influenciam considerações práticas de seu uso clínico. Por exemplo, estabelecem a maneira pela qual os agentes são fornecidos pelo fabricante (p. ex., como o gás ou líquido) e respondem pela resistência da molécula do anestésico à degradação por fatores físicos (p. ex., calor, luz) e substâncias com as quais ele entra em contato durante o uso (p. ex., componentes metálicos do aparelho anestésico e absorventes de CO2, como cal sodada). O equipamento necessário para a administração segura do agente ao paciente (p. ex., vaporizador, circuito respiratório) é influenciado por algumas dessas propriedades, assim como a captação, a distribuição e a eliminação do agente (incluindo o potencial de degradação metabólica) no paciente. Em resumo, o conhecimento e a compreensão dessas propriedades fundamentais possibilitam o uso inteligente dos anestésicos atuais.

■ Características químicas Os anestésicos inalatórios contemporâneos são, em sua maioria, compostos orgânicos, com exceção do N2O (Figura 16.2) (o ciclopropano e o xenônio são outros anestésicos inorgânicos notáveis). Os agentes de interesse atual são ainda classificados como hidrocarbonetos alifáticos (i. e., de cadeia linear ou ramificada) ou éteres (i. e., dois radicais orgânicos ligados a um átomo de oxigênio, cuja estrutura geral é ROR’). Na pesquisa contínua por um anestésico inalatório menos reativo, mais potente e não inflamável, predominou o foco na halogenação desses compostos (i. e., adição de flúor, cloreto ou bromo). O cloreto e o bromo convertem particularmente muitos compostos de baixa potência anestésica em fármacos mais potentes. Historicamente, o interesse nos derivados fluorados foi adiado até a década de 1940, em virtude de dificuldades na síntese, de modo que as quantidades disponíveis para estudo eram limitadas. Os métodos de síntese, apesar

de difíceis, progrediram de modo considerável e facilitaram a descoberta de novos agentes (ver Figura 16.2). É interessante assinalar que os compostos fluorados orgânicos formam um grupo de contrastes extremos – alguns são tóxicos, outros não; alguns são inertes, enquanto outros são altamente reativos. Em alguns anestésicos, o cloreto ou o brometo são substituídos pelo flúor para melhorar a estabilidade, porém à custa de uma redução na potência e solubilidade do anestésico.

Figura 16.2 Estrutura química dos anestésicos inalatórios de uso atual em animais. Os nomes comerciais estão entre parênteses.

O halotano (ver Figura 16.2) é um hidrocarboneto saturado alifático halogenado (etano). As expectativas de que a estrutura halogenada poderia proporcionar estabilidade

molecular e ausência de inflamabilidade incentivaram o desenvolvimento do halotano, no início da década de 1950. Entretanto, pouco depois da introdução clínica, foi observado que a presença concomitante de halotano e catecolaminas aumentava a incidência de arritmias cardíacas, particularmente em pacientes humanos. Foi constatado que uma ligação éter na molécula reduz a incidência de arritmias cardíacas. Em consequência, essa estrutura química constitui a característica predominante de todos os agentes que foram desenvolvidos ou passaram a ter uso clínico desde a introdução do halotano (ver Figura 16.2). Apesar de muitas características favoráveis e dos progressos realizados em relação aos anestésicos anteriores (ver Figura 16.1), incluindo melhora na estabilidade química, o halotano é suscetível à decomposição. Por conseguinte, o halotano é conservado em frascos escuros, e acrescenta-se uma quantidade muito pequena de conservante, o timol, para retardar a sua decomposição. O timol é muito menos volátil do que o halotano e, com o passar do tempo, concentra-se dentro dos equipamentos usados para controlar a administração do anestésico volátil (i. e., vaporizadores), causando o seu mau funcionamento. Para obter maior estabilidade molecular, o cloreto ou bromo são substituídos pelo flúor na molécula do anestésico. Essa manipulação química aumenta o prazo de validade da substância e dispensa a necessidade de aditivos, como o timol. Infelizmente, o íon flúor também é tóxico para alguns tecidos (p. ex., rins), o que representa um problema clínico se o composto original (p. ex., historicamente, o metoxifluorano de modo mais notável) não for resistente ao metabolismo (ver Figura 16.2). Tabela 16.1 Algumas propriedades físicas e químicas dos anestésicos inalatórios de uso clínico atual em animais. Propriedade Peso molecular (g)

Desfluorano Enfluorano Halotano

Isofluorano Metoxifluoranoa N2O

Sevofluorano

168

185

197

185

165

44

200

1,47

1,52

1,86

1,49

1,42

1,42

1,52

23,5

57

50

49

105

–89

59

Densidade específica do líquido (20°C) (g/mℓ) Ponto de ebulição (ºC)

Pressão de vapor (mmHg) 20°C

700 (413)

172

243

240

23

-

160

24°C

804

207

288

286

28

-

183

209,7

197,5

227

194,7

206,9

-

182,7

Nenhum

Nenhum

Sim

Nenhum

Não disponível

Nenhum

Sim

Cal sodada

Sim

Sim

Não

Sim

Não

Sim

Não

Luz UV

Sim

Sim

Não

Sim

Não

Sim

??

mℓ de vapor/mℓ de líquido a 20°C Conservante Estabilidade em:

a

O metoxifluorano não está mais disponível.

UV = ultravioleta.

■ Características físicas A vida é mantida por meio de uma constante troca de gases respiratórios (O2 e CO2) entre as células e o meio ambiente e transporte pelo sangue. De modo semelhante, os anestésicos inalatórios entram no organismo e saem dele por meio do sistema respiratório, e a sua transferência de um recipiente para os locais de ação no sistema nervoso central envolve considerações semelhantes aos gases respiratórios. No início do processo de transferência controlada, o agente é diluído em uma quantidade adequada (pressão parcial ou concentração) e fornecido ao sistema respiratório em uma mistura gasosa que contém O2 suficiente para manter a vida. A sequência de eventos envolvida é influenciada por muitas características físicas e químicas, que podem ser quantitativamente descritas (Tabelas 16.1 a 16.4). As aplicações clínicas práticas dessas descrições quantitativas são examinadas aqui. O espaço limitado não permite uma análise aprofundada de todos os princípios subjacentes, e o leitor interessado em mais informações básicas deve consultar outras fontes.7,8 As características físicas de importância para a compreensão da ação dos anestésicos inalatórios podem ser divididas, de forma conveniente, em duas categorias gerais: as que determinam os meios pelos quais os agentes são administrados, e aquelas que ajudam a

determinar a sua cinética no organismo. Essas informações são aplicadas na manipulação clínica da indução e recuperação anestésicas e na facilitação de mudanças, em tempo hábil, na depressão do SNC induzida pelo anestésico. Propriedades que determinam os métodos de administração Uma variedade de propriedades físicas/químicas determina os meios pelos quais os anestésicos inalatórios são administrados. Incluem características como ponto de ebulição, densidade do líquido (gravidade específica) e pressão de vapor.

Princípios gerais | Uma breve análise As moléculas estão em estado de movimento constante e exibem uma força de atração mútua. O grau de atração é evidente pelo estado em que a substância existe (i. e., sólido, líquido ou gás). O movimento das moléculas aumenta com a adição de energia (p. ex., na forma de calor) ao agregado molecular e diminui com a remoção de energia. Com o movimento aumentado, há uma redução das forças intermoleculares; se as condições forem extremas o suficiente, pode ocorrer mudança de estado físico. Todas as substâncias existem naturalmente em determinado estado, mas podem passar a existir (pelo menos na teoria) em qualquer uma das fases ou em todas elas pela alteração das condições. Por exemplo, a água existe na forma de gelo (a atração molecular mútua é grande), líquido ou vapor de água (atração consideravelmente reduzida), dependendo das condições.

Gás versus vapor Os anestésicos inalatórios são gases ou vapores. Em relação aos anestésicos inalatórios, o termo gás refere-se a um agente, como o N2O, que existe em sua forma gasosa na temperatura ambiente e na pressão ao nível do mar. O termo vapor indica o estado gasoso de uma substância que, na temperatura e pressão ambientes, encontra-se no estado líquido. Com a exceção do N2O, todos os anestésicos atuais encontram-se nessa categoria. O desfluorano (ver Tabela 16.1) é um líquido volátil que se aproxima da fase de transição e oferece algumas considerações singulares (entre os anestésicos inalatórios) que serão discutidas mais adiante, neste capítulo. Independentemente do fornecimento dos agentes inalatórios na forma de gases ou líquidos voláteis em condições ambientais, os mesmos princípios aplicam-se a cada agente quando ele está no estado gasoso. As moléculas movimentam-se de modo aleatório em alta velocidade e colidem umas com as outras ou com as paredes do recipiente no qual estão contidas. A força do bombardeamento por unidade de área é mensurável e designada como pressão. No caso dos gases, se o espaço ou volume no qual o gás está contido for aumentado, o número de bombardeamentos diminui (i. e., menor quantidade de colisões

moleculares por unidade de tempo), e, em seguida, a pressão diminui. O comportamento dos gases pode ser descrito previsivelmente por várias leis dos gases. As relações como aquelas descritas pela lei de Boyle (volume versus pressão), pela lei de Charles (volume versus temperatura), pela lei de Gay-Lussac (temperatura versus pressão), pela lei de Dalton de pressão parcial (a pressão total de uma mistura de gases é igual à soma das pressões parciais de todas as substâncias gasosas presentes) e outras leis são importantes para a nossa compreensão global dos aspectos dos gases e vapores respiratórios e anestésicos. Todavia, a descrição detalhada desses princípios está além do objetivo deste capítulo, e os leitores devem consultar outras obras para essas informações.8

Métodos de descrição As quantidades de um agente anestésico inalatório são habitualmente caracterizadas por um de três métodos: pressão (p. ex., em mmHg), concentração (em vol %) ou massa (em mg ou g). A forma mais familiar para os médicos é a concentração (p. ex., X% do agente A em relação à mistura total de gases). O equipamento de monitoramento para análise dos agentes, coleta amostras dos gases inspirados e expirados e fornece uma leitura dos anestésicos inalatórios. Os vaporizadores de precisão usados para controlar a administração de anestésicos inalatórios são calibrados em porcentagem do agente, e as doses efetivas quase sempre são expressas em porcentagens. Tabela 16.2 Coeficientes de partição (solvente/gás) de alguns anestésicos inalatórios a 37ºC. Solvente Água

Desfluorano Enfluorano Halotano

Isofluorano Metoxifluorano N2O

Sevofluorano



0,78

0,82

0,62

4,50

0,47

0,60

0,42

2,00

2,54

1,46

15,00

0,47

0,68

18,70

96,00

224,00

91,00

970,00

1,40

47,00

Cérebro

1,30

2,70

1,90

1,60

20,00

0,50

1,70

Fígado

1,30

3,70

2,10

1,80

29,00

0,38

1,80

Rim

1,00

1,90

1,00

1,20

11,00

0,40

1,20

Músculo

2,00

2,20

3,40

2,90

16,00

0,54

3,10

Gordura

27,00

83,00

51,00

45,00

902,00

1,08

48,00

Sangue Óleo de oliva

Amostras de tecidos obtidas de fontes humanas. Os dados são de fontes referenciadas na edição anterior deste texto. Tabela 16.3 Coeficientes de partição sangue/gás para desfluorano, halotano, isofluorano, metoxifluorano e sevofluorano em espécies de interesse clínico e/ou de pesquisa comum em medicina veterinária, incluindo comparação com valores derivados de modo semelhante para seres humanos. Desfluorano Halotano

Isofluorano

Metoxifluorano Sevofluorano

Óxido nitroso

Gato

0,58



1,40

26,4

0,59



Vaca

0,44

2,40 [415]

1,22

11,3

0,52



Cão

0,63

3,51 [415]

1,40

26,1

0,66

0,43 [416]

Cabra

0,52



1,37

13,0

0,56



Cavalo

0,54

1,77 [415]

1,13

13,0

0,65



Porco

0,50



1,07

11,1

0,52



Rato

0,61

6,56 [417]

1,41

17,7

0,74



Coelho

0,72

4,36 [418]

1,37

25,0

0,70



Ovelha

0,50



1,24

13,2

0,56



Ser humano

0,50

2,54 [417]

1,32

14,3

0,64

0,41 [416]

Os valores foram obtidos, em sua maior parte, do trabalho publicado em 2012 de Soares et al.,419 exceto quando indicado de outro modo. Os valores são expressos para 37°C. um traço indica que o valor não foi encontrado. Tabela 16.4 Coeficientes de partição de borracha ou plástico/gás em temperatura ambiente. Solvente

Desfluorano Enfluorano Halotano Isofluorano Metoxifluorano N2O

Sevofluorano Referência

Borracha



74

120

62

630

1,2



[1]

19



190

49





29

[420]



120

190

110







[1]

Cloreto de polivinila

Polietano

35



233

114





69

[420]



Cerca de 2

26

Cerca de 2

118





[1]

16



128

58





31

[420]

Esses dados foram resumidos a partir de diversas fontes, conforme relatado por Eger,1 com algumas diferenças nos métodos de determinação. Os dados de Targ et al.,420 indicam informações obtidas mais recentemente, que, diferentemente dos dados anteriores, foram registradas após equilíbrio completo com esses materiais. Quando há sobreposição, a classificação dos coeficientes de partição é consistente com halotano > isofluorano > sevofluorano > desfluorano. A combinação de ambos os grupos resulta em metoxifluorano > halotano > enfluorano > isofluorano > sevofluorano > desfluorano > N2O. A pressão também constitui uma maneira importante de descrever os anestésicos inalatórios e será discutida de modo mais detalhado no subtítulo de potência anestésica. Uma mistura de gases dentro de um recipiente fechado exerce uma pressão sobre as paredes do recipiente. A pressão individual de cada gás na mistura de gases é designada como sua pressão parcial. Conforme assinalado anteriormente, essa expressão do comportamento de uma mistura de gases é conhecida como lei de Dalton, e o seu uso é inevitável para a compreensão da anestesia inalatória. O emprego do conceito de pressão parcial é importante para entender a ação dos anestésicos inalatórios em um sistema biológico multifásico, visto que, diferentemente da concentração, a pressão parcial de um agente é a mesma em compartimentos distintos que estão em equilíbrio um com o outro. Isto é, ao contrário da concentração ou do volume percentual, que é uma expressão da razão relativa das moléculas de gases em uma mistura, a pressão parcial é uma expressão do valor absoluto. O peso molecular e a densidade do agente são utilizados em muitos cálculos para converter volumes e massa de líquidos em vapores. Em resumo (e de modo simplificado), o princípio de Avogadro estabelece que um volume igual de todos os gases, nas mesmas condições de temperatura e de pressão, contém o mesmo número de moléculas (6,0226 × 1023 [número de Avogadro] por grama de peso molecular). Além disso, em condições padrão, o número de moléculas de gás em um grama de peso molecular de uma substância ocupa 22,4 ℓ. Para comparar as propriedades de diferentes substâncias no mesmo estado físico, é necessário fazê-lo em condições comparáveis; no que concerne aos gases e líquidos, isso significa habitualmente com referência à pressão e à temperatura. A não ser que seja indicado de outro modo, os físicos têm selecionado arbitrariamente condições

padrão de 0°C (273oK na escala absoluta) e pressão de 760 mmHg (1 atmosfera ao nível do mar). Se as condições forem diferentes, é preciso efetuar correções apropriadas para temperatura e/ou pressão nos dados obtidos. a b c d

Densidade específica do isofluorano = 1,49 g/m., por conseguinte: 1 m. de isofluorano líquido = 1 m. × 1,49 g/m. = 1,49 g Como o peso molecular do isofluorano = 185 g (a partir da Tabela 13.1), então: 1,49 g ÷ 185 g = 0,0081 mol de líquido Como 1 mol de gás = 22,4 ., então: 0,0081 mol × 22.400 m./mol = 181,4 m. de vapor de isofluorano a 0°C, 1 atm Entretanto, o vapor a 20°C, e não a 0°C (i. e., 273 K), De modo que, 181,4 × 293/273 = 194,7 m. de vapor/m. de isofluorano líquido a 20°C e na pressão ao nível do mar Para uma variação substancial da pressão ambiental, o valor final assinalado anteriormente deveria ter sido ainda “corrigido” por um fator de: 760/pressão barométrica ambiente.

Figura 16.3 Exemplo de cálculos para determinar o volume de vapor de isofluorano a 20°C a partir de 1 mℓ de isofluorano líquido.

a

Quantidade total estimada de vapor de isofluorano fornecida durante 2 h (120 min): 3%/100 × 6 ./min = 0,18 ./min × 120 min = 21,60 ./120 min = 21.600 m./120 min versus

b c

3%/100 × 4 ./min = 0,12 ./min × 120 min = 14,4 ./120 min = 14.400 m./120 min Volume total de vapor economizado: 21.600 m./120 min – 14.400 m./120 min = 7.200 m. de vapor economizado/120 min Valor total de isofluorano líquido economizado/2 h 7.200 m. de vapor ÷ 194,7 m. de vapor/m. de liquido = 36,98 m. de isofluorano líquido (194,7 m. de vapor/m. de líquido podem ser calculados como na Figura 13.4 ou obtidos da Tabela 13.1) O valor econômico de reduzir o consumo de isofluorano pode ser então determinado pelo cálculo do produto do volume de líquido economizado e custo/m. de isofluorano líquido

Figura 16.4 Problema: determinar a economia no consumo de isofluorano líquido ao reduzir o fluxo de gás fresco (p. ex., O2) de 6 ℓ/min (litros por minuto) para 4 ℓ/min, tendo em vista que a concentração média administrada (ajuste do vaporizador) para 2 h é de 3%.

O peso de determinado volume de líquido, gás ou vapor pode ser expresso em termos de sua densidade ou gravidade específica. A densidade é um valor absoluto de massa (habitualmente em gramas) por unidade de volume (para os líquidos, volume = 1 mℓ; para os gases, 1 ℓ em condições padrão). A gravidade específica é um valor relativo, isto é, a

razão entre o peso de uma unidade de volume de determinada substância e um volume semelhante de água no caso de líquidos ou de ar no caso de gases (ou vapores) em condições semelhantes. O valor tanto do ar quanto da água é de um. Pelo menos para fins clínicos, o valor da densidade e da gravidade específica de um anestésico inalatório é o mesmo. Assim, por exemplo, pode-se determinar o volume de isofluorano gasoso (vapor) a 20°C a partir de 1 mℓ de isofluorano líquido, de acordo com o esquema apresentado na Figura 16.3. Esse tipo de cálculo tem aplicações práticas. Por exemplo, para determinar a economia no consumo de isofluorano líquido ao reduzir o fluxo de gás fresco (p. ex., O2), pode-se efetuar uma série de cálculos, como aqueles apresentados na Figura 16.4. Pressão de vapor. As moléculas de líquidos estão em constante movimento aleatório. Algumas dessas moléculas na camada superficial adquirem velocidade suficiente para vencer as forças de atração das moléculas vizinhas e, ao escapar da superfície, entram na fase de vapor. A mudança do estado líquido para a fase gasosa é conhecida como vaporização ou evaporação. Esse processo é dinâmico e, em um recipiente fechado que é mantido em uma temperatura constante, alcança finalmente um equilíbrio, em que não há mais nenhuma perda efetiva de moléculas para a fase gasosa (i. e., o número de moléculas que saem da fase líquida e que retornam a ela é igual). Nesse momento, a fase gasosa está saturada. As moléculas de vapor exercem uma força por unidade de área ou pressão exatamente da mesma maneira que o fazem as moléculas de um gás. A pressão (as unidades de medida são mmHg) que as moléculas de vapor exercem quando as fases de líquido e vapor estão em equilíbrio é conhecida como pressão de vapor. Por conseguinte, a pressão de vapor de um anestésico é uma medida de sua capacidade de evaporação, isto é, uma medida da tendência das moléculas no estado líquido a entrar na fase gasosa (de vapor). A pressão de vapor de um anestésico volátil precisa ser pelo menos suficiente para fornecer moléculas do anestésico no estado de vapor para produzir anestesia em condições ambientais. A pressão de vapor saturado representa a concentração máxima de moléculas no estado de vapor que existe para determinado líquido em cada temperatura. Aqui reside uma diferença prática entre as substâncias classificadas como gás ou vapor; um gás pode ser administrado ao longo de uma faixa de concentrações de 0 a 100%, enquanto o vapor tem um limite que é determinado pela sua pressão de vapor. A concentração de vapor saturado pode ser facilmente estabelecida pela relação entre a pressão de vapor e a pressão ambiente. Por exemplo, no caso do isofluorano (ver Tabela 16.1), é possível uma concentração máxima de 32% de isofluorano em condições habituais e a 20°C (i. e., [240/760] × 100 = 32%, em que 760 mmHg é a pressão barométrica ao nível do mar). Quando outras variáveis são consideradas constantes, quanto maior a pressão de vapor, maior a concentração do

fármaco passível de ser fornecida ao paciente. Por conseguinte, mais uma vez com base na Tabela 16.1, o isofluorano, por exemplo, é mais volátil do que o metoxifluorano em condições semelhantes. A pressão barométrica também influencia a concentração final de um agente. Por exemplo, em locais como Denver, Colorado, onde a altitude é de cerca de 5.000 pés acima do nível do mar (1.524 m), e a pressão barométrica é de apenas cerca de 635 mmHg, a concentração de vapor saturado do isofluorano a 20°C é agora (240/635) × 100 = 37,8%. É importante reconhecer que a pressão de vapor saturado a uma atmosfera é única para cada agente anestésico volátil e depende apenas de sua temperatura. Nesse caso, o efeito da pressão barométrica pode ser desconsiderado em relação às faixas normalmente encontradas na prática da anestesia. Por conseguinte, para um determinado agente, o gráfico da pressão de vapor saturado versus temperatura é uma curva, conforme ilustrado na Figura 16.5. A partir desse gráfico, pode-se observar que, se a temperatura do líquido aumentar, um maior número de moléculas irá escapar da fase líquida e entrar na fase gasosa. O maior número de moléculas de fase de vapor resulta em maior pressão de vapor e concentração de vapor. Por outro lado, se o líquido for resfriado, observa-se o inverso, e a concentração de vapor diminui. O resfriamento do líquido pode ocorrer não apenas devido às condições ambientais, mas também como consequência natural do processo de vaporização. Por exemplo, durante a vaporização, as moléculas “mais rápidas” localizadas na superfície são as primeiras a escapar. Com a depleção dessas moléculas de “alta energia”, a energia cinética média daquelas que ficaram é reduzida, e existe uma tendência de a temperatura do líquido remanescente diminuir, se esse processo não for compensado externamente. À medida que a temperatura cai, a pressão de vapor e, portanto, a concentração de vapor, também diminui. Ponto de ebulição. O ponto de ebulição de um líquido é definido como a temperatura em que a pressão de vapor do líquido é igual à pressão atmosférica. Habitualmente, a temperatura de ebulição é estabelecida na pressão atmosférica padrão de 760 mmHg. O ponto de ebulição diminui com o aumento da altitude, visto que a pressão de vapor não se modifica, porém, a pressão barométrica diminui. O ponto de evolução do N2O é de –89°C (ver Tabela 16.1) na pressão de uma atmosfera ao nível do mar. Por conseguinte, é um gás que atua em condições ambientais. Por esse motivo, é distribuído para fins clínicos em cilindros de aço, comprimido para o estado líquido a cerca de 750 psi (libras por polegada quadrada; 750 psi/14,9 psi [1 atmosfera] = 50 atmosferas de pressão). À medida que o gás N2O é retirado do cilindro, o N2O é vaporizado e a pressão do gás dominante permanece constante até que não haja mais líquido no cilindro. Neste momento, apenas o N2O permanece na forma gasosa, e a pressão do gás diminui a partir desse ponto, à medida que

o gás remanescente é retirado do cilindro. Em consequência, a subtração do peso do N2O do peso do cilindro, e não da pressão do gás no cilindro, proporciona uma orientação mais acurada sobre a quantidade remanescente de N2O no cilindro.9

Figura 16.5 Pressão de vapor como função da temperatura para seis anestésicos voláteis. As curvas são obtidas a partir das equações de Antoine.

O desfluorano também apresenta uma consideração interessante, visto que o seu ponto de ebulição (ver Tabela 16.1) está próximo à temperatura ambiente. Essa característica representou um desafio interessante de engenharia para o desenvolvimento de um dispositivo de administração (i. e., vaporizador) para uso rotineiro no ambiente relativamente constante do centro cirúrgico e limita qualquer consideração adicional acerca de seu uso, em todas as circunstâncias comumente encontradas na prática médica veterinária, exceto um pequeno número de situações. Por exemplo, em virtude de seu baixo ponto de ebulição, até mesmo o resfriamento evaporativo exerce uma grande influência sobre a pressão de vapor e, portanto, a concentração de vapor de misturas gasosas

administradas ao paciente.

Cálculo da concentração anestésica fornecida por um vaporizador A pressão de vapor saturado da maioria dos anestésicos voláteis é de tal magnitude que a concentração máxima de anestésico passível de ser alcançada nas condições habituais do centro cirúrgico está acima da faixa de concentrações que são comumente necessárias para um manejo anestésico clínico seguro. Por conseguinte, é necessário algum controle na concentração administrada, que habitualmente é fornecida por um dispositivo conhecido como vaporizador. O objetivo do vaporizador é diluir o vapor gerado a partir do anestésico líquido com O2 (ou com O2 mais N2O, ou O2 mais uma mistura de ar) para obter uma concentração inspirada mais satisfatória de anestésico. Essa diluição do anestésico é habitualmente realizada conforme indicado no modelo da Figura 16.6, desviando o gás que entra no vaporizador em dois fluxos: um fluxo que entra na câmara do vaporizador (volume da câmara anestésica: Vanes) e o outro que escapa da câmara de vaporização (volume de diluição ou Vdiluição). Se o vaporizador for eficiente, o gás carreador que passa pela câmara de vaporização torna-se totalmente saturado em uma concentração anestésica (%) refletida pela (pressão de vapor do agente anestésico/pressão atmosférica) × 100 na temperatura da câmara de vaporização. Em seguida, a concentração anestésica resultante é diminuída (diluída) pelo segundo fluxo de gás para uma concentração “funcional”. Nos modernos vaporizadores de precisão, específicos para agentes, não há necessidade de nenhum esforço mental – apenas regular o mostrador, visto que os fabricantes fornecem o vaporizador précalibrado para administração acurada da concentração indicada no mostrador (dentro de alguma variabilidade, isto é, dedução de 10% da concentração fornecida). Entretanto, é importante para a nossa compreensão geral conhecer os princípios subjacentes e saber como aplicá-los quando se utilizam vaporizadores mais antigos com fluxômetros não compensados. Para calcular a concentração de anestésico do vaporizador, é preciso conhecer a pressão de vapor do agente (na temperatura de uso), a pressão atmosférica, o fluxo de gás fresco que entra na câmara de vaporização e o fluxo de gás diluente. Em seguida, % do anestésico = fluxo do anestésico a partir da câmara de vaporização/fluxo total de gás. Para os leitores interessados, a Figura 16.6 fornece mais detalhes. Propriedades que influenciam a farmacocinética | Solubilidade Os gases e os vapores anestésicos dissolvem-se em líquidos e sólidos. A solubilidade de um anestésico é uma importante característica do agente, que tem implicações clínicas

significativas. Por exemplo, a solubilidade de um anestésico no sangue e nos tecidos corporais constitui um fator primordial na velocidade de captação e na sua distribuição pelo organismo. Por conseguinte, constitui um importante determinante da velocidade de indução e recuperação da anestesia. A solubilidade em lipídios possui uma forte relação com a potência anestésica, e a sua tendência a se dissolver em componentes do aparelho anestésico, como os itens de borracha, influencia a seleção do equipamento e outros aspectos do manejo anestésico.

Solubilidade dos gases Conforme assinalado anteriormente, as moléculas de um gás que recobrem uma superfície líquida estão em movimento aleatório, e algumas penetram na superfície do líquido. Após a sua entrada no líquido, elas se misturam com as moléculas do líquido (i. e., o gás se dissolve no líquido). Existe um movimento efetivo do gás dentro do líquido até que seja estabelecido um equilíbrio entre o gás dissolvido no líquido e a parte não dissolvida acima do líquido. Nesse momento, o líquido não tem nenhum ganho adicional efetivo de moléculas de gás, e o número de moléculas de gás que entra no líquido é igual ao número que sai. As moléculas de gás dentro do líquido exercem a mesma pressão ou tensão que elas exercem na fase gasosa. Se a pressão (i. e., o número de moléculas de gás que cobrem o líquido) aumentar, um maior número de moléculas irá passar para o líquido, com elevação da pressão no líquido. Esse movimento efetivo de entrada das moléculas de gás continua até que um novo equilíbrio seja estabelecido entre a pressão do gás no líquido e aquela acima do líquido. Como alternativa, se a pressão do gás que recobre o líquido estiver, de alguma maneira, diminuída abaixo daquela no líquido, as moléculas de gás irão escapar do líquido. Esse movimento efetivo de saída das moléculas de gás a partir da fase líquida continua até que seja restabelecido o equilíbrio entre as duas fases.

Figura 16.6 Modelo de vaporizador de anestésico para ajudar a ilustrar os princípios associados ao cálculo da concentração de vapor de um anestésico inalatório saindo de um vaporizador. As condições associadas à administração de halotano em São Francisco (i. e., ao nível do mar; pressão barométrica = 760 mmHg) a 20°C são utilizadas como exemplo dos princípios gerais.

A quantidade, isto é, o número total de moléculas de determinado gás que se dissolvem em um solvente, depende da natureza química do próprio gás, da pressão parcial do gás, da natureza do solvente e da temperatura. Essa relação é descrita pela lei de Henry: V=S×P em que o V é o volume de gás, P é a pressão parcial do gás e S é o coeficiente de solubilidade do gás no solvente em determinada temperatura. A lei de Henry aplica-se a gases que não se combinam quimicamente com o solvente para formar compostos. Antes de concluir essa informação básica, um breve comentário sobre diversas

variações pode ser útil. Em primeiro lugar, é importante reconhecer que, se a atmosfera que recobre o solvente é composta de uma mistura de gases, cada gás irá se dissolver no solvente em proporção à pressão parcial de cada um dos gases. A pressão total exercida pelas moléculas de todos os gases no solvente é igual à pressão total dos gases situados acima do solvente. No organismo, há uma distribuição dos gases anestésicos entre o sangue e os tecidos do corpo, de acordo com a lei de Henry. Esse processo talvez possa ser mais bem compreendido pela visualização de um sistema composto por três compartimentos (p. ex., gás, água e óleo) contido em um recipiente fechado (Figura 16.7). Nesse tipo de sistema, o gás recobre o óleo, o qual, por sua vez, recobre a água. Como existe um gradiente passivo da fase gasosa para o óleo, as moléculas de gás movem-se para dentro do compartimento de óleo. Por sua vez, esse movimento desenvolve um gradiente para as moléculas de gás localizadas no óleo em relação à água. Se o gás for continuamente acrescentado acima do óleo, haverá um movimento efetivo contínuo das moléculas de gás da fase gasosa para dentro do óleo e, por sua vez, para a água. Em determinada temperatura, quando não há mais dissolução do gás no solvente, o solvente é designado como totalmente saturado. Nesse ponto, a pressão das moléculas de gás nos três compartimentos será igual, porém a quantidade (i. e., o número de moléculas ou o volume de gás) distribuída entre os dois líquidos irá variar com a natureza do líquido e do gás. Por fim, é importante entender que a quantidade de gás que entra na solução depende da temperatura do solvente. Menor quantidade de gás se dissolve em um solvente com a elevação da temperatura, enquanto maior quantidade de gás é captada à medida que a temperatura do solvente diminui. Por exemplo, quando a água é aquecida, aparecem bolhas de ar dentro do recipiente, em consequência da redução da solubilidade do ar na água. Por outro lado, quando o sangue é resfriado abaixo da temperatura corporal normal (p. ex., hipotermia), os gases tornam-se mais solúveis no sangue. O grau com que um gás irá se dissolver em determinado solvente é habitualmente expresso em termos de seu coeficiente de solubilidade (ver Tabela 16.2). Para os anestésicos inalatórios, a solubilidade é mais comumente medida e expressa como coeficiente de partição (CP). Outras medidas de solubilidade incluem os coeficientes de solubilidade de Bunson e Ostwald.8,10 O CP é a razão de concentração entre um anestésico no solvente e a fase gasosa (p. ex., sangue e gás; Figura 16.8) ou entre dois solventes teciduais (p. ex., cérebro e sangue; ver Tabela 16.2). Por conseguinte, o CP descreve a capacidade de determinado solvente de dissolver o gás anestésico, isto é, como o anestésico irá se distribuir entre as fases gasosa e solvente líquido após ter alcançado o equilíbrio. Convém lembrar que o movimento dos gases anestésicos ocorre devido a uma diferença de pressão parcial entre as fases gasosa e

do solvente líquido, de modo que, quando não houver mais nenhuma diferença de pressão parcial do anestésico, não ocorrerá mais nenhum movimento efetivo do anestésico, e o equilíbrio estará alcançado. Os CPs de solvente/gás estão resumidos na Tabela 16.2. Os valores apresentados nessa tabela aplicam-se aos tecidos humanos, visto que estão mais amplamente disponíveis na literatura anestésica. A Tabela 16.3 fornece dados comparativos para a solubilidade de desfluorano, isofluorano e sevofluorano no sangue de uma variedade de espécies de interesse clínico em medicina veterinária. Independentemente da espécie, é importante ressaltar que numerosos fatores podem alterar a solubilidade do agente anestésico.10-13 Talvez a temperatura seja o mais notável desses fatores depois da natureza do solvente.

Figura 16.7 Representação esquemática de um gás anestésico que se distribui entre três compartimentos (gás, óleo, água). Em equilíbrio, o número de moléculas de anestésico nos três compartimentos é diferente, porém a pressão exercida por essas moléculas é a mesma dentro de cada compartimento.

Figura 16.8 Ilustração do coeficiente de partição sangue/gás. Fonte: Adaptada de Eger EI II. Anesthetic Uptake and Action. Baltimore, MD: Williams & Wilkins, 1974.

De todos os CPs que foram descritos ou são de interesse, dois são de importância particular para a compreensão prática da ação do anestésico. São os coeficientes de solubilidade sangue/gás e óleo/gás. Coeficiente de partição sangue/gás. Os coeficientes de solubilidade sangue/gás (ver Tabelas 16.2 e 16.3) fornecem um meio de prever a velocidade de indução da anestesia, recuperação e mudança da profundidade da anestesia. Por exemplo, suponha-se que o anestésico A tenha um CP sangue/gás de 15. Isso significa que a concentração do anestésico no sangue será 15 vezes maior do que no gás alveolar em equilíbrio. Expresso de maneira diferente, o mesmo de sangue, isto é, 1 mℓ, irá conter 15 vezes mais anestésico A do que 1 mℓ de gás alveolar, apesar de uma pressão parcial igual. Como alternativa, consideremos o anestésico B com CP de 1,4. Esse valor de CP indica que, em equilíbrio, a quantidade de anestésico B é apenas 1,4 vez maior no sangue do que no ar alveolar. A comparação do CP do anestésico A com o do anestésico B mostra que o anestésico A é muito mais solúvel no sangue do que o anestésico B (quase 11 vezes mais solúvel: 15/1,4).

A partir desse exemplo, e pressupondo que outras condições sejam iguais, o anestésico A irá exigir mais tempo de administração para alcançar uma pressão parcial no corpo para determinado parâmetro (p. ex., indução anestésica) do que o anestésico B. Além disso, como existe maior quantidade de anestésico A contida no sangue e em outros tecidos corporais em condições semelhantes, a eliminação (e, portanto, a recuperação da anestesia) será prolongada quando comparada com a do anestésico B. Coeficiente de partição óleo/gás. O CP óleo/gás é outra característica de solubilidade de importância clínica (ver Tabelas 16.2 e 16.3). Esse CP descreve a razão entre a concentração de um anestésico nas fases de óleo (o óleo de oliva é o padrão) e de gás em equilíbrio. O CP óleo/gás correlaciona-se diretamente com a potência anestésica (ver Dose anestésica | Concentração alveolar mínima e Mecanismo de ação, ambos mais adiante, neste capítulo) e descreve a capacidade dos lipídios para os anestésicos. Outros coeficientes de partição. As características de solubilidade para vários tecidos (ver Tabelas 16.2 e 16.3) e outros meios, como borracha e plástico (ver Tabela 16.4), também são importantes. Por exemplo, a solubilidade de um tecido determina, em parte, a quantidade de anestésico removida do sangue ao qual está exposto. Quanto maior a solubilidade do tecido, mais tempo será necessário para saturar o tecido com o agente anestésico. Por conseguinte, se outras condições forem consideradas iguais, os anestésicos que são muito solúveis em tecidos irão necessitar de um período mais prolongado para indução e recuperação. Se a quantidade de componentes de borracha no aparelho usado para a administração do anestésico ao paciente for substancial, e a solubilidade do agente anestésico na borracha for alta (p. ex., como era comum com o equipamento usado antes do início do século 21), a quantidade de captação de anestésico pela borracha também pode ser de importância clínica.

Farmacocinética | Captação e eliminação dos anestésicos inalatórios O objetivo da administração de um anestésico inalatório a um paciente consiste em obter uma pressão parcial ou tensão adequada do anestésico (Panes) no sistema nervoso central (SNC, por exemplo, cérebro; para a finalidade dessa discussão, as considerações sobre a administração do anestésico em locais de ação na medula espinal são consideradas semelhantes àquelas do cérebro) para produzir um nível desejado de depressão do SNC compatível com a definição de anestesia geral. A profundidade da anestesia varia diretamente com a Panes no tecido cerebral. A velocidade de mudança da profundidade

anestésica tem importância clínica óbvia e depende diretamente da taxa de mudança das tensões do anestésico nos vários meios em que ele está contido antes de alcançar o cérebro. Por conseguinte, o conhecimento dos fatores que regem essas relações é de importância fundamental para o controle hábil da anestesia inalatória geral. Os anestésicos inalatórios são singulares entre as classes de fármacos que são utilizados para produzir anestesia geral, visto que são administrados pelos pulmões. A farmacocinética dos anestésicos inalatórios descreve a velocidade de sua captação pelo sangue a partir dos pulmões, distribuição pelo organismo e eliminação final pelos pulmões e outras vias. Os leitores que procuram uma discussão aprofundada podem consultar as revisões de Eger10,14,15 e Mapleson.16 Os anestésicos inalatórios, à semelhança dos gases da respiração (i. e., O2 e CO2), movem-se de acordo com uma série de gradientes de pressão parcial de regiões de tensão mais alta para regiões de menor tensão até que o equilíbrio seja alcançado (i. e., pressão igual em todo o aparelho e os tecidos corporais). Por conseguinte, na indução a Panes em sua fonte no vaporizador é elevada, visto que é determinada pela pressão de vapor, e diminui progressivamente à medida que o anestésico é transferido do vaporizador para o circuito respiratório do paciente, do circuito para os pulmões, dos pulmões para o sangue arterial e, por fim, do sangue arterial para os tecidos corporais (p. ex., cérebro; Figura 16.9). Destas, a pressão parcial alveolar (PA) do anestésico é fundamental. O cérebro possui um rico suprimento sanguíneo, e o anestésico no sangue arterial (PaAnes) equilibra-se rapidamente com o tecido cerebral (PcérebroAnes). Em geral, a troca gasosa em nível alveolar é eficiente o suficiente para que a PaAnes se aproxime da PAAnes. Por conseguinte, a PcérebroAnes acompanha estreitamente a PaAnes, e, ao controlar a PAAnes, obtém-se uma maneira indireta e segura de controlar a PcérebroAnes e a profundidade da anestesia.

Figura 16.9 Padrão de fluxo dos agentes anestésicos inalatórios durante a indução e a recuperação da anestesia. A anestesia inalatória pode ser vista como o desenvolvimento de uma série de gradientes de pressão parcial (tensão). Durante a indução, existe uma alta tensão do anestésico no vaporizador, que diminui de modo progressivo à medida que o fluxo de gás anestésico é deslocado de sua fonte para o cérebro. Alguns desses gradientes são facilmente manipulados pelo anestesista; outros não o são ou são de difícil controle.

Nesse ponto, também pode ser útil lembrar que, embora a pressão parcial do anestésico seja de suma importância, a dose clínica de um anestésico inalatório frequentemente é definida em termos de concentração (C, isto é, vol %). Conforme assinalado anteriormente, isso decorre da prática comum do médico em regular e/ou medir os gases respiratórios e anestésicos em volume percentual. Além disso, na fase gasosa, a relação entre a Panes e a Canes é simples: Panes = concentração fracional de anestésico × pressão ambiental total A concentração fracional do anestésico é, naturalmente, Canes/100. Entretanto, conforme

discutido na seção anterior, a quantidade real do anestésico no sangue ou nos tecidos depende tanto da Panes quanto da solubilidade do anestésico (medida pelo coeficiente de partição) no solvente (p. ex., sangue ou óleo). Por conseguinte, em equilíbrio, a pressão parcial do gás nos alvéolos e entre os compartimentos teciduais será igual, embora as concentrações variem nesses tecidos.

■ Captação do anestésico | Fatores que determinam a PA do anestésico A PA do anestésico é um equilíbrio entre a entrada do anestésico (i. e., fornecimento aos alvéolos) e a sua perda dos pulmões (captação pelo sangue e tecidos corporais). A rápida elevação da PA do anestésico está associada a uma rápida indução da anestesia ou mudança na sua profundidade. Os fatores que contribuem para a rápida mudança na PA do anestésico estão resumidos na Figura 16.10. Fornecimento aos alvéolos O fornecimento de anestésico aos alvéolos e, portanto, a taxa de elevação da concentração ou fração alveolar (FA) até a concentração ou fração inspirada (FI) depende da própria concentração inspirada do anestésico e da magnitude da ventilação alveolar. O aumento em um ou ambos os fatores eleva a taxa de elevação da PA do anestésico; isto é, quando outros fatores são considerados iguais, há um aumento na velocidade de indução anestésica ou mudança no plano de anestesia.

Concentração inspirada A concentração inspirada é controlada por diversas variáveis. Em primeiro lugar, o limite superior da concentração inspirada é determinado pela pressão de vapor do agente, a qual, por sua vez, depende da temperatura. Isso pode ser particularmente importante, tendo em vista a ampla aplicação da anestesia inalatória em medicina veterinária e dos métodos de vaporização dos anestésicos voláteis em condições amplamente diversas (algumas condições ambientais são muito hostis). A

Aumento do aporte alveolar 1 Aumento da concentração do anestésico inspirado a Aumento da vaporização do agente b Aumento da regulagem do vaporizador c Aumento do fluxo de gás fresco d Diminuição do volume de gás do circuito respiratório do paciente 2 Aumento da ventilação alveolar

a Aumento da ventilação minuto b Diminuição da ventilação do espaço morto B Diminuição da remoção dos alvéolos 1 Diminuição da solubilidade sanguínea do anestésico 2 Diminuição do débito cardíaco 3 Diminuição do gradiente alveolovenoso do anestésico Figura 16.10 Fatores relacionados com uma rápida mudança na tensão alveolar do anestésico (PA).

As características do sistema respiratório do paciente também podem constituir um importante fator na produção de uma concentração inspirada apropriada nas condições habituais do centro cirúrgico. As características de importância especial incluem o volume do sistema, a quantidade de componentes de borracha ou de plástico do sistema, a posição do vaporizador em relação ao circuito respiratório (i. e., dentro ou fora do circuito) e do fluxo de gás fresco para o circuito respiratório do paciente. O circuito respiratório contém um volume de gás que precisa ser substituído por gás contendo a concentração desejada do anestésico. Por conseguinte, o volume do circuito respiratório atua como tampão para retardar a elevação da concentração de anestésico. Na manipulação de pequenos animais (i. e., menos de 10 kg), são utilizados habitualmente um circuito sem reinalação e/ou um fluxo de gás fresco relativamente alto no circuito respiratório do animal, de modo que não deve ocorrer uma diferença clinicamente importante entre a concentração fornecida (p. ex., regulagem do vaporizador) e a concentração inspirada. Isto é, quando a regulagem do vaporizador é ajustada para concentração desejada, o gás fresco mais o anestésico que fluem do vaporizador contêm quase imediatamente a concentração de vapor anestésico selecionada. Além disso, o fluxo total de gás é elevado em relação ao volume do circuito de fornecimento, de modo que a concentração do anestésico aumenta rapidamente no ar inspirado. Entretanto, com animais de maior porte (i. e., com mais de 10 kg), um circuito respiratório circular, com absorção de CO2 (i. e., com reinalação) é mais comumente usado para anestesia inalatória. O volume desse circuito respiratório pode ser muito grande, em comparação com o fluxo de gás fresco. Esse volume retarda acentuadamente a elevação da concentração de anestésico inspirada, visto que o volume do gás residual precisa ser “eliminado” e substituído por gás fresco contendo anestésico, a fim de que a concentração inspirada aumente para aquela liberada do vaporizador (Figura 16.11). Além disso, ocorre reinalação do gás expirado (menos o CO2) em graus variáveis com o uso desses circuitos. O gás inspirado é composto de gases expirados e frescos. Como o gás expirado contém menos anestésico do que o gás fresco, a concentração inspirada de gás anestésico será menor que a do gás fresco que sai do vaporizador.

Na prática veterinária, a influência retardada do circuito circular é mais notável no manejo anestésico de animais de porte muito grande, como equinos17 e bovinos, e/ou quando se utiliza um fluxo de gás fresco em circuito fechado (i. e., em que o O2 é o gás fresco, e o seu fluxo [com o anestésico] no circuito apenas supre as necessidades metabólicas do paciente). Com a administração em circuito fechado, o fluxo de gás fresco é muito baixo em relação ao volume do circuito.7,10,17

Figura 16.11 Comparação da taxa de aumento da concentração de halotano inspirado até uma concentração administrada constante, Finsp/Fadm, em um circuito respiratório anestésico para pequenos animais (SAAM) de 7 ℓ, com fluxos de gás fresco de 1, 2, 6 e 12 ℓ/min. Fonte: Steffey EP, Howland D Jr. Rate of change of halothane concentration in a large animal circle anesthetic system. Am J Vet Res 1977; 38(12): 1993-1996.

A alta solubilidade de alguns anestésicos (p. ex., metoxifluorano; ver Tabela 16.4) na borracha e no plástico retarda a obtenção de uma concentração apropriada de anestésico inspirado. A perda de anestésico por esses “escoadouros” do equipamento aumenta o volume aparente do circuito anestésico e, em alguns casos, pode ser clinicamente importante (p. ex., o uso de tubos e grande bolsa para reinalação de borracha em circuitos projetados para manejo anestésico de cavalos). Com os anestésicos inalatórios mais recentes e o equipamento mais moderno para administração de anestesia, esse problema é de importância clínica mínima ou nula. O posicionamento do vaporizador em relação ao circuito respiratório do paciente irá influenciar a concentração anestésica inspirada.16,18 Por exemplo, com o vaporizador posicionado dentro de um circuito circular de reinalação, a diminuição na concentração inspirada será seguida de aumento no fluxo de gás fresco para o circuito, enquanto irá ocorrer um aumento na concentração inspirada se o vaporizador for posicionado fora do

circuito (Tabela 16.5). Com a retirada do metoxifluorano da prática clínica, quase todos os vaporizadores, se não todos em uso na América do Norte, são vaporizadores de precisão específicos do agente. Esse tipo de vaporizador é sempre colocado de maneira proximal e fora do circuito respiratório.

Ventilação alveolar Um aumento da ventilação alveolar eleva a taxa de fornecimento do anestésico inalatório ao alvéolo (Figura 16.12). Se não houvesse oposição pela captação do anestésico pelo sangue e tecidos, a ventilação alveolar aumentaria rapidamente a concentração alveolar do anestésico, de modo que, em poucos minutos, a concentração alveolar seria igual à concentração inspirada. Todavia, na realidade, o influxo criado pela ventilação alveolar é contrabalançado pela absorção do anestésico no sangue. Como seria esperado, a hipoventilação diminui a velocidade com que a concentração alveolar aumenta ao longo do tempo, em comparação com a concentração inspirada (i. e., a indução da anestesia é retardada). A ventilação alveolar é alterada por mudanças na profundidade da anestesia (o aumento da profundidade significa habitualmente uma diminuição da ventilação), na ventilação mecânica (em geral, aumento da ventilação) e na ventilação do espaço morto (i. e., para uma ventilação minuto constante, uma diminuição na ventilação do espaço morto resulta em aumento da ventilação alveolar). A ventilação alveolar e, portanto, a concentração alveolar do anestésico também podem ser influenciadas pela administração de um anestésico inalatório potente, como o halotano, em associação com N2O. No início da administração de N2O (durante o período de captação de grande volume; nos primeiros 5 a 10 min de administração), a velocidade de elevação da concentração alveolar do anestésico inalatório administrado concomitantemente aumenta. Esse fenômeno, que é comumente designado como efeito do segundo gás, pode ser usado clinicamente para acelerar a indução da anestesia.10,14,19 Tabela 16.5 O posicionamento do vaporizador dentro ou fora do circuito respiratório circular influencia a concentração inspirada do anestésico. Posicionamento do vaporizador Fator

Aumento da ventilação Aumento do fluxo de gás fresco (O2) para o circuito

Fora do circuito

Dentro do circuito

Diminui

Aumenta

Aumenta

Diminui

Figura 16.12 Efeito da ventilação sobre a elevação da concentração alveolar (FA) do halotano para a concentração inspirada (FI). Conforme observado, a razão FA/FI aumenta mais rapidamente à medida que a ventilação aumenta de 2 para 8 ℓ/min. Fonte: Redesenhada, com autorização, de Eger EI II. Anesthetic Uptake and Action. Baltimore, MD: Williams & Wilkins, 1974.

Figura 16.13 Elevação da concentração alveolar do anestésico (FA) para a concentração inspirada (FI). Observe-se que a elevação é mais rápida com o anestésico menos solúvel, N2O, e mais lenta com o anestésico mais solúvel, o metoxifluorano. Todos os dados são obtidos de estudos em seres humanos. Curvas redesenhadas de Eger.1,414

Remoção dos alvéolos | Captação pelo sangue Conforme assinalado por Eger,10 a captação do anestésico é o produto de três fatores: a solubilidade (S, a solubilidade do sangue/gás; ver Tabela 16.4), o débito cardíaco (DC) e a diferença na pressão parcial do anestésico entre o alvéolo e o sangue venoso que retorna aos pulmões (PV = PV/Pbar), expressa em mmHg, isto é: Captação = S × DC (PA – PV/Pbar) em que Pbar = pressão barométrica em mmHg. Observe que, se qualquer um desses três fatores for igual a zero, não haverá mais captação do anestésico pelo sangue.

Solubilidade Conforme discutido anteriormente, a solubilidade de um anestésico inalatório no sangue e nos tecidos caracteriza-se pelo seu coeficiente de partição (CP; ver Tabelas 16.2 e 16.3).

Convém lembrar que o CP descreve a distribuição de um anestésico inalatório entre duas fases ou dois solventes (p. ex., a quantidade do agente no sangue e nos alvéolos [gás] ou no sangue e no músculo, respectivamente) uma vez estabelecido o equilíbrio (i. e., quando a pressão parcial do anestésico é igual). Com base no CP sangue/gás, os anestésicos inalatórios variam desde altamente solúveis (metoxifluorano) a pouco solúveis (N2O, desfluorano e sevofluorano). Os agentes como o halotano e o isofluorano exibem solubilidade intermediária. Em comparação com um anestésico de alta solubilidade no sangue (CP), um agente com baixa solubilidade no sangue está associado a um equilíbrio mais rápido, visto que uma quantidade menor de anestésico precisa ser dissolvida no sangue antes de alcançar o equilíbrio com a fase gasosa. No caso do agente com CP sangue/gás elevado, o sangue atua como um grande “escoadouro” no qual o anestésico é despejado, de modo que o sangue se torna “relutante” em ceder o agente para outros tecidos (como o cérebro). O sangue serve como um conduto para o transporte do fármaco até o cérebro e, como tal, pode ser visualizado como um reservatório farmacologicamente inativo, que se interpõe entre os pulmões e o local de atividade farmacológica desejada do agente (i. e., o cérebro). Por conseguinte, um agente anestésico com CP sangue/gás baixo é habitualmente mais desejável do que um agente altamente solúvel, visto que ele está associado a (a) indução anestésica mais rápida (i. e., velocidade mais rápida de elevação da concentração alveolar durante a indução; Figura 16.13); (b) controle mais preciso da profundidade anestésica (i. e., concentração alveolar durante a manutenção da anestesia); e (c) eliminação do anestésico e recuperação mais rápidas (i. e., rápida diminuição da concentração alveolar durante a recuperação).

Débito cardíaco A quantidade de sangue que flui através dos pulmões e nos tecidos corporais também influencia a captação do anestésico pelos pulmões. Quanto maior o DC, maior quantidade de sangue irá passar através dos pulmões, carregando o anestésico para longe dos alvéolos. Por conseguinte, um DC elevado, à semelhança de uma alta solubilidade sanguínea do agente anestésico, retarda a elevação alveolar da Panes (Figura 16.14). A excitação do paciente fornece um exemplo em que se espera um DC relativamente alto. Por outro lado, pode-se antecipar uma redução do DC com um paciente que apresenta função miocárdica deficiente ou bradicardia grave. Essa situação estaria associada a um aumento na velocidade de elevação da PA do anestésico, o que, juntamente com outros fatores, torna a indução anestésica mais rápida e perigosa.

Diferença de pressão parcial do anestésico entre os alvéolos e o sangue venoso

A magnitude da diferença na pressão parcial do anestésico entre os alvéolos e o sangue venoso misto que retorna aos pulmões está relacionada com o grau de captação do anestésico pelos tecidos. Não é surpreendente que o maior gradiente ocorra durante a indução. Quando os tecidos não absorvem mais o anestésico (i. e., quando o equilíbrio é alcançado), não ocorre mais nenhuma captação do anestésico a partir dos pulmões, visto que PV = PA (i. e., o sangue venoso misto que retorna aos pulmões contém a mesma quantidade de anestésico do que quando ele sai dos pulmões). As mudanças no gradiente entre o início da indução e o equilíbrio resultam, em parte, da distribuição relativa do DC. Nesse aspecto, é importante reconhecer que cerca de 70 a 80% do DC estão normalmente direcionados para um volume apenas pequeno de tecidos corporais em um indivíduo magro.20,21 Os tecidos como o cérebro, o coração, o sistema porta hepático e os rins representam apenas cerca de 10% da massa corporal; todavia, em condições normais, eles recebem cerca de 75% do fluxo sanguíneo total a cada minuto. Em consequência, esses tecidos altamente perfundidos alcançam um rápido equilíbrio com a pressão arterial parcial do anestésico, em comparação com outros tecidos corporais (o tempo efetivo é influenciado pela solubilidade do agente). Como a pressão ou tensão venosa do anestésico é igual àquela do tecido em 10 ou 15 min, cerca de 75% do sangue que retorna aos pulmões são iguais à pressão alveolar. Isso pressupõe que não houve nenhuma mudança na pressão arterial parcial do anestésico durante esse período, e, portanto, a captação é reduzida. A pele e os músculos compreendem a maior parte da massa corporal (cerca de 50% nos seres humanos); todavia, em repouso, eles recebem apenas cerca de 15 a 20% do DC, de modo que a saturação desses tecidos leva várias horas. A gordura é um componente variável da massa corporal e só recebe uma pequena proporção do fluxo sanguíneo. Em consequência, a saturação desse tecido pelo anestésico é muito lenta, visto que todos os anestésicos são consideravelmente mais solúveis na gordura do que em outros tipos de tecidos (ver Tabelas 16.2 e 16.3).

Figura 16.14 Efeito do débito cardíaco sobre a elevação da concentração alveolar (FA) do halotano para a concentração inspirada (FI). Conforme observado, a razão FA:FI aumenta mais rapidamente à medida que o débito cardíaco diminui de 18 a 2 ℓ/min. Fonte: Redesenhada, com autorização, de Eger EI II. Anesthetic Uptake and Action. Baltimore, MD: Williams & Wilkins, 1974.

Outros fatores podem influenciar a magnitude do gradiente de pressão parcial alveoloarterial do anestésico. Por exemplo, anormalidades de ventilação/perfusão resultam em um gradiente alveoloarterial proporcional ao grau de anormalidade.10,22,23 Outros fatores incluem perda do anestésico pela pele24-26 e para os espaços gasosos fechados24-26 e o metabolismo.10,14 Considerações gerais A velocidade com que a concentração alveolar do anestésico aumenta em relação à concentração inspirada (i. e., a velocidade de mudança no plano de anestesia) é frequentemente resumida na forma de um gráfico da razão FA:FI versus tempo. A posição das curvas individuais, que representam diferentes anestésicos no gráfico, está relacionada com as características de solubilidade dos anestésicos (ver Figura 16.13). A forma do gráfico de FA:FI versus tempo é semelhante para todos os anestésicos (ver Figura 16.13). Observa-se inicialmente uma rápida elevação, que resulta do efeito da ventilação alveolar

que traz o anestésico para dentro dos pulmões. Em seguida, ocorre uma redução na velocidade de elevação da curva, à medida que ocorre captação pelo sangue. Com o passar do tempo, os tecidos altamente perfundidos do organismo equilibram-se com o sangue que chega, de modo que, por fim, cerca de três quartos do fluxo sanguíneo total que retorna ao coração apresentam a mesma pressão parcial do anestésico observada quando o sangue deixou os pulmões. Por conseguinte, a captação adicional dos pulmões é reduzida, e a taxa de aproximação da FA para FI torna-se ainda mais diminuída com o tempo.

■ Eliminação do anestésico A recuperação da anestesia inalatória resulta da eliminação do anestésico do SNC. Para isso, é necessário ocorrer uma redução da pressão parcial alveolar (concentração) do anestésico, que, por sua vez, promove uma redução da pressão parcial do anestésico no sangue arterial e, em seguida, no SNC (ver Figura 16.10). Os fatores proeminentes que respondem pela recuperação são os mesmos que aqueles para a indução da anestesia. A depuração percentual de um anestésico inalatório pode ser expressa da seguinte maneira: % depuração = 100 × VA ÷ (CP sangue/gás do agente × DC + VA).27 Por conseguinte, fatores como a ventilação alveolar, o débito cardíaco e, sobretudo, a solubilidade do agente influenciam acentuadamente a recuperação da anestesia inalatória. Com efeito, as curvas do gráfico que representam a eliminação (washout) do anestésico dos alvéolos versus tempo (Figura 16.15) são essencialmente inversas às curvas de captação. Isto é, a eliminação dos anestésicos menos solúveis é inicialmente alta (i. e., rápida eliminação por meio de ventilação da capacidade residual funcional do pulmão) e, em seguida, reduz rapidamente para um nível inferior, que continua diminuindo, porém em uma velocidade mais lenta. A eliminação de agentes mais solúveis também é alta no início, porém a magnitude da redução da concentração alveolar do anestésico é menor e diminui de modo mais gradual com o tempo (ver Figura 16.15). Um importante fator durante o período de eliminação é a duração da anestesia. Esse efeito e a sua comparação entre três agentes ao longo de uma faixa de solubilidades sanguíneas estão resumidos na Figura 16.16.28 Os tempos para a recuperação da anestesia em ratos, por exemplo, correlacionam-se com os valores de solubilidade sanguínea dos anestésicos (Figura 16.17).29 Se um circuito anestésico com reinalação (p. ex., sistema circular) for utilizado, e o paciente não for desconectado do circuito no final da anestesia, o próprio circuito também pode reduzir a velocidade de recuperação, assim como foi demonstrado que o circuito também diminui a velocidade de elevação do anestésico durante a indução. Essa influência dos circuitos de reinalação pode ser diminuída pelo uso de um alto fluxo de O2 sem anestésico dentro do circuito anestésico (i. e., aplicando os

princípios do circuito sem reinalação).

Figura 16.15 Redução da concentração alveolar (FA) em relação à concentração alveolar no final da anestesia (FAO). Observe que o anestésico volátil mais recente e mais insolúvel, o desfluorano, é eliminado mais rapidamente nos seres humanos do que outros anestésicos potentes atuais. A informação sobre o metoxifluorano não é mostrada. Se estivesse presente, a curva do metoxifluorano iria aparecer acima daquela do halotano. Fonte: Reproduzida, com autorização, de Eger EI II. Desflurane animal and human pharmacology: aspects of kinetics, safety, and MAC. Anesth Analg 1992; 75: S3-S9.

Figura 16.16 A diminuição na concentração alveolar do anestésico (FE) a partir do momento da desconexão do circuito respiratório (i. e., o início da recuperação da anestesia; FEO) é influenciada tanto pela solubilidade (λ) do anestésico quanto pela duração da anestesia. Fonte: Redesenhada, com autorização, de Stoelting RK, Eger EI II. The effects of ventilation and anesthesic solubility on recovery from anesthesia: an in vivo and analog analysis before and after equilibration. Anesthesiology 1969; 30(3):290-296.

Figura 16.17 O aumento da concentração fornecida de anestésico inalatório prolongou o tempo de recuperação da coordenação motora necessária para a permanência do animal

sobre um cilindro giratório de 6 cm, em uma rotação de 8 rpm. A duração da anestesia foi constante em todos os testes. Fonte: Redesenhada, com autorização, de Eger EI II, Johnson BH. Rates of awakening from anesthesia with I-653, halothane, isoflurane, and sevoflurane – a test of the effect of anesthesic concentration and duration in rats. Anesth Analg 1987; 66:977-983.

Outros fatores que são importantes em graus variáveis para a eliminação dos anestésicos inalatórios do corpo incluem perda percutânea, difusão dos agentes entre os tecidos e metabolismo. Ocorre movimento transcutâneo de agentes inalatórios, porém a quantidade é pequena.24-27,30 A difusão entre tecidos é de interesse teórico, porém a sua importância clínica é limitada.27,31,32 Nesse aspecto, pode ser importante considerar clinicamente o impacto da obesidade sobre a recuperação da anestesia.27 O metabolismo também pode desempenhar um pequeno papel no caso de alguns anestésicos inalatórios (p. ex., metoxifluorano e, talvez, até mesmo o halotano), particularmente quando associados à anestesia prolongada.31,33-35 É importante fazer um comentário especial sobre a recuperação após o uso de N2O. A hipóxia por difusão é um evento possível no final da administração de N2O, quando o paciente respira ar ambiente imediatamente, em lugar de O2 durante pelo menos um breve período de transição (i. e., 5 a 10 min).36-38 Nesse caso, um grande volume de N2O retorna aos pulmões a partir do sangue. Essa entrada rápida inicial de N2O nos pulmões desloca outros gases presentes no pulmão. Nesse momento, se o paciente estiver respirando ar (com apenas cerca de 21% de O2), em lugar de 100% de O2, o N2O dilui o O2 alveolar, reduzindo ainda mais a pressão parcial de O2 em relação aos níveis encontrados no ar ambiente. Isso pode causar uma redução da oxigenação arterial, que comporta risco à vida. Como o principal efeito é observado nos primeiros minutos após a interrupção do N2O, é possível evitar essa condição pela administração de altas frações de O2 inspirado no término da administração de N2O, em lugar de permitir que o paciente respire imediatamente o ar ambiente. Biotransformação Os anestésicos inalatórios em sua maioria não são quimicamente inertes.39 Sofrem diferentes graus de metabolismo, principalmente no fígado, mas também em menor grau nos pulmões, nos rins e no trato intestinal,33,40-43 Isso tem uma dupla importância. Em primeiro lugar, de maneira muito limitada, o metabolismo pode facilitar a recuperação da anestesia. Em segundo lugar, e mais importante, está o potencial de toxicidade aguda e crônica por metabólitos intermediários ou finais dos agentes inalatórios, particularmente para os rins, o fígado e os órgãos reprodutores.33,43 A magnitude do metabolismo dos agentes anestésicos inalatórios varia acentuadamente

e é determinada por uma variedade de fatores, incluindo a estrutura química, a atividade das enzimas hepáticas (enzimas do citocromo P450 localizadas no retículo endoplasmático dos hepatócitos), a concentração sanguínea do anestésico,44 a presença de estados patológicos e os fatores genéticos (i. e., algumas espécies e indivíduos são metabolizadores mais ativos desses fármacos do que outros, como, por exemplo, seres humanos versus ratos). A Tabela 16.6 fornece o grau de biotransformação dos anestésicos inalatórios atuais. A degradação do sevofluorano ocorre in vivo aproximadamente na mesma extensão que a do isofluorano, talvez um pouco mais, dependendo das circunstâncias, e, conforme indicado, por aumentos transitórios pós-anestésicos nos níveis de fluoreto no sangue e na urina de ratos,45-49 cães,48 equinos,50-52 suínos53 e seres humanos.54 As concentrações séricas máximas de fluoreto observadas em seres humanos durante e após a anestesia com sevofluorano são baixas, e não se espera a ocorrência de nefrotoxicidade.54,55 O desfluorano resiste à degradação in vivo.53,56,57 O aumento no nível sérico de fluoreto inorgânico é muito menor do que aquele observado com o isofluorano.53,56,57 Para mais informações sobre a biotransformação dos anestésicos inalatórios em geral e para detalhes específicos sobre cada agente anestésico, o leitor pode consultar as revisões publicadas por Baden e Rice,33 Mazze e Fujinaga43 e Njoku et al.58 Tabela 16.6 Biotransformação dos anestésicos inalatórios em seres humanos. Anestésico

% de anestésico metabolizado

Metoxifluorano

50 a 75

[35,42]

Halotano

20 a 46

[35,41,421]

Sevofluorano

2a5

[54,422]

Enfluorano

2a8

[35,423]

Isofluorano

0,2

[424]

Desfluorano

0,02

[57]

Óxido nitroso

0,004

[361,352]

Dose anestésica | Concentração alveolar mínima

Em 1963, Merkel e Eger descreveu o que se tornou o índice padrão de potência anestésica para os anestésicos inalatórios, a concentração alveolar mínima (CAM).59 A CAM é definida como a concentração alveolar mínima de um anestésico em 1 atmosfera que produz imobilidade em 50% dos indivíduos expostos a um estímulo nocivo supramáximo. Por conseguinte, a CAM corresponde à dose50 efetiva ou ED50; metade dos indivíduos está anestesiada, enquanto a outra metade ainda não alcançou esse “nível”. A dose que corresponde à ED95 (95% dos indivíduos anestesiados), pelo menos nos seres humanos, é 20 a 40% maior do que a CAM.60 A potência anestésica de um anestésico inalatório está inversamente relacionada com a CAM (i. e., potência = 1/CAM). Com base nas informações já apresentadas, pode-se concluir também que a CAM está inversamente relacionada com o CP óleo/gás. Por conseguinte, um anestésico muito potente, como o metoxifluorano, que apresenta um CP óleo/gás alto tem uma CAM baixa, ao passo que um agente com CP óleo/gás baixo apresenta uma CAM elevada. Várias características da CAM merecem destaque.10 Em primeiro lugar, o A da CAM representa a concentração alveolar, e não a concentração inspirada ou fornecida (p. ex., por meio de vaporizador). Esse aspecto é importante, visto que a concentração alveolar é facilmente monitorada com a moderna tecnologia. Além disso, conforme assinalado anteriormente, depois de um tempo suficiente para alcançar o equilíbrio (minutos), a pressão parcial alveolar estará muito próxima das pressões parciais do anestésico no sangue arterial e no cérebro (SNC). Em segundo lugar, a CAM é definida em termos de volume percentual de 1 atmosfera e, portanto, representa a pressão parcial (P) do anestésico no local de sua ação (i. e., lembre que Px = (C/100) Pbar, em que Px indica a pressão parcial do anestésico na mistura gasosa, C é a concentração do anestésico em vol % e Pbar é a pressão barométrica ou total da mistura gasosa). Por conseguinte, embora a concentração na CAM de determinado agente possa variar, dependendo das condições de pressão ambiente (p. ex., nível do mar versus grande altitude), a pressão parcial do anestésico sempre permanece a mesma. Por exemplo, a CAM do isofluorano em cães saudáveis é de 1,63 volume %. O estudo que relata esse valor foi conduzido em condições próximas ao nível do mar, em Davis, CA (i. e., Pbar de 760 mmHg). Com base na discussão anterior, a CAM de 1,63% representa a pressão parcial alveolar do isofluorano (Piso) de 11,6 mmHg. Em comparação, para o mesmo cão na Cidade do México (elevação de 2.240 m acima do nível do mar; Pbar = 584 mmHg), o esperado é que a Piso alveolar na CAM seja a mesma determinada em Davis, CA (i. e., 11,6 mmHg); entretanto, a CAM (i. e., a concentração alveolar) seria de cerca de 2,17%. Por fim, é importante assinalar que a CAM é determinada em animais saudáveis, em condições de laboratório, na ausência de outros fármacos e em circunstâncias comuns ao uso clínico, que podem modificar as necessidades de anestesia. As técnicas gerais para

determinação da CAM em animais são descritas em outras partes.10,61-64 Na determinação da CAM em seres humanos, a incisão cirúrgica inicial da pele tem sido o estímulo padrão nocivo usado.10 Para a determinação da CAM em pequenos animais (camundongos até cães e suínos),10,65,66 o estímulo padrão consiste na aplicação de fórceps ou outra pinça cirúrgica na base da cauda ou na base da sobreunha (p. ex., suínos),64 enquanto o estímulo elétrico aplicado abaixo da mucosa oral é mais comumente utilizado em espécies de maior porte, como equinos.62 A Tabela 16.7A fornece um resumo dos valores da CAM dos anestésicos inalatórios atuais comumente encontrados em medicina veterinária para uma variedade de mamíferos, enquanto a Tabela 16.7B fornece os valores de ED50 para espécies não mamíferas. Os valores para seres humanos também são apresentados para comparação. Para valores de agentes de interesse histórico, como o metoxifluorano, o enfluorano ou o éter dietílico, o leitor deve consultar uma edição anterior deste livro ou outra literatura.10,66 Desde a sua introdução original, o conceito de CAM foi estendido para outros parâmetros de estímulos no empenho de definir melhor e compreender o estado anestésico. Por exemplo, Stoelting et al.67 determinaram o valor da CAM de um anestésico no momento em que seres humanos abriam os olhos em resposta a um comando verbal durante a recuperação da anestesia; isso foi designado como “CAM ao despertar”. Naturalmente, o estímulo verbal é menos intenso do que a incisão cirúrgica nos seres humanos e, portanto, a resposta ocorre em menor concentração do anestésico do que o movimento após a incisão. A concentração término-respiratória que impede o movimento em resposta à intubação traqueal (CAM para a intubação) é mais estimulante para os seres humanos do que a incisão cirúrgica e foi descrita por Yakaitis et al.68,69 Roizen et al.70 relataram uma concentração alveolar ainda maior necessária para prevenir a resposta adrenérgica (aumento das catecolaminas endógenas) à incisão da pele (também em pacientes humanos), em comparação com a concentração necessária para impedir apenas o movimento; esta é conhecida como CAM-BAR. De modo semelhante, Boscan et al. mostraram que a tração do ovário/ligamento ovárico aumentou a CAM do sevofluorano, em comparação com a colocação de pinça na cauda de cães.71 Por conseguinte, é possível obter um grupo de curvas de resposta, que dependem da intensidade do estímulo aplicado. Tabela 16.7A Valores da CAM (%) para uma variedade de mamíferos ao nível do mar ou próximo ao nível do mar.

Gato

Desfluorano

Halotano

Isofluorano

Sevofluorano

Óxido nitroso

9,79 [425]

0,99 [427,428]

1,28 [431]

2,58 [433]

255 [429]

10,27 [426]

1,14 [429]

1,50 [428]

3,07 [428]

1,19 [430]

1,61 [430]

3,41 [426]

1,63 [244] 1,90 [426] 2,21 [432] 0,76 [434]

Vaca

Cão

(bezerro) 7,2 [436]

7,68 a 8,19 [437]

10,3 [438]

0,86 [90] 0,87 [429,439,440]

Furão

2,10 [127]

188 [439]

1,30 [198]

2,36 [441]

222 [429]

1,31 [444]

0,92 [442]

1,39 [244]

1,01 [447]

[(bezerro)

1,28 [244]

0,89 [243,441]

0,93 [443]

223 [434]

1,14 [435]

297 [446]

1,39 a 1,50 [445] 1,52 [447]

267 [447]

1,74 [448] Cabra

1,29 [449]

1,2 [100]

1,3 [450]

1,23 [451] 1,29 [449] 1,31 [452] 1,43 [453] 1,5 [450]

2,33 [449]

Cavalo

7,02 [454]

0,88 [62]

1,31 [62]

2,31 [459]

8,06 [209]

0,95 [455]

1,43 [199]

2,84 [52]

1,02 [456]

1,44 [457]

1,05 [200]

1,64 [458]

0,89 [429]

1,28 [460]

1,15 [460]

1,46 [198]

Macaco

6,6 a 9,1a [461]

0,95 [462]

1,00 [463] 1,19 a 1,37a [461]

1,31 a 1,77a [461]

205 [280]

200 [429]

2,7 [465]

1,35 [462]

150 [466]

275 [463]

1,41 [463]

1,59 [464] Camundongo

10,00 [64]

0,90 [467]

1,45 [470]

1,97 [473]

162 [471]

0,91 [468]

1,48 [467]

2,12 [467]

195 [472]

1,25 [469]

1,51 [198]

2,53 [474]

277 [469]

1,55 [471]

2,66 [135]

1,75 [472] 2,04 [64] Coelho

8,90 [436]

0,80 [475]

2,05 [478]

0,82 [476]

2,07 [479]

1,05 [477]

2,12 [480]

3,70 [482]

1,39 [478] 1,42 [479] 1,44 [480] 1,56 [481] Rato

5,72 [483]

0,81 [487]

1,17 [487]

2,99 [489]

136 [497]

6,48 [484]

0,95 [488]

1,28 [495]

2,40 [490]

155 [498]

6,85 [485]

1,02 [489]

1,30 [496]

2,50 [45]

204 [250]

7,10 [486]

1,03 [462]

1,38 [491]

221 [499]

1,10 [490]

1,46 [462]

235 [499]

1,11 [491]

1,46 [485]

1,13 [492,493]

1,58 [448,488]

1,17 [494] 1,23 [485] Ovelha

0,97 [500]

1,58 [500]

0,73 [502]

1,15 [506]

Ser humano (30 a 60 anos)

6,00 [501]

1,58 [507]

0,74 [503,504]

1,71 [508]

0,77 [505]

1,83 [509] 1,84 [510] 1,85 [511] 1,9 [512]

104 [513]

2,05 [482] a

Valor absoluto relacionado com a linhagem.

Tabela 16.7B Valores da ED50 para uma variedade de animais não mamíferos ao nível do mar ou próximo ao nível do mar. Desfluorano

Halotano

Isofluorano

0,85 [63]

1,15 [514]

Sevofluorano

Óxido nitroso

2,9 [520]

220 [518]

Aves:

Galinha Cacatua

1,44 [515]

Grou

1,34 [516]

Pato

1,04 [517]

Galinha pintada

1,30 [517] 1,45 [518]

Galiformes

2,05 [519]

Anacã

1,47 [515]

Papagaio da Amazônia

1,91 [515]

Papagaio cinzento

1,07 [521]

africano Pombo

1,51 [518]

1,54 [518]

1,45 [522] Outros: Peixe-dourado

0,76 [523]

Sapo

0,67 [524]

82,2 [524]

Em uma única espécie, a variabilidade da CAM (resposta a um estímulo nocivo) geralmente é pequena e não é influenciada de modo substancial pelo gênero, duração da anestesia, variação da PaCO2 (de 10 a 90 mmHg), alcalose ou acidose metabólica, variação da PaO2 (de 40 a 500 mmHg), anemia moderada ou hipotensão moderada (ver Tabela 16.7A).10,66,72 Até mesmo entre espécies, a variabilidade da CAM para determinado agente habitualmente não é grande. Todavia, existe pelo menos uma exceção notável (ver Tabela 16.7A). Nos seres humanos, a CAM para o N2O é de 104%, tornando-o o menos potente dos anestésicos inalatórios usados atualmente nessa espécie. Sua potência em outras espécies é menos da metade daquela dos seres humanos (i. e., cerca de 200%). Como a CAM do N2O é superior a 100%, ele não pode ser utilizado de modo isolado em 1 atmosfera de pressão em qualquer espécie, e ainda com quantidades adequadas de O2. Por esse motivo, e pressupondo que os valores da CAM para associações de anestésicos inalatórios sejam ativos, o N2O é habitualmente administrado com outro agente mais potente, reduzindo, assim, a concentração do segundo agente necessário para a anestesia (ver Figura 16.18). Entretanto, devido à diferença de potência entre animais e seres humanos, a magnitude da redução difere de modo significativo. Por exemplo, a administração de 60% de N2O com halotano diminui em cerca de 55% a quantidade de halotano necessária para produzir a CAM em seres humanos saudáveis (ver Figura 16.18), porém a reduz em apenas cerca de 20 a 30% em cães. Conforme ilustrado na Figura 16.18, a resposta de outros animais assemelha-se mais estreitamente àquela do cão. A Tabela 16.8 fornece alguns fatores que comprovadamente influenciam a CAM.

Figura 16.18 Quando o N2O é associado ao halotano, a concentração alveolar do halotano na CAM diminui. Entretanto, o efeito de preservação do halotano pelo N2O é menor em animais, em comparação com seres humanos. Fonte: Reproduzida, com autorização, de Steffey EP, Eger EI II. Nitrous oxide in veterinary practice and animal research. In: Eger EI II, Ed. Nitrous Oxide/N2O. New York: Elsevier, 1984; 305-312.

As doses equipotentes (i. e., concentrações equivalentes de diferentes anestésicos na CAM) são úteis para comparar os efeitos dos anestésicos inalatórios sobre órgãos vitais. Nesse aspecto, a dose anestésica é comumente definida em termos de múltiplos da CAM (i. e., 1,5 ou 2,0 vezes a CAM ou, simplesmente, 1,5 ou 2,0 CAM). Por conseguinte, com base na discussão anterior, a ED50 é igual à CAM ou 1,0 CAM e representa um nível superficial de anestesia (que é claramente inadequado em 50% dos animais saudáveis não medicados de outro modo). A ED95 é de 1,2 a 1,4 CAM, e uma CAM de 2,0 representa um nível profundo de anestesia e, em alguns casos, até mesmo uma sobredose de anestésico. Os autores utilizarão o conceito de múltiplos de CAM posteriormente para comparar os efeitos dos fármacos e a farmacodinâmica de múltiplas doses de um agente específico.

Figura 16.8 Alguns fatores que influenciam o valor da CAM (exigência anestésica). Sem alteração

Aumento

Diminuição

Pressão arterial

Fármacos que causam estimulação do SNC:

Fármacos que causam depressão do SNCa:

> 50 mmHg [525] Atropina, glicopirrolato, escopolamina [427]

– Anfetamina

– Outro anestésico inalatório N2O [19]

– Efedrina

– Anestésicos injetáveis:

Duração da anestesia

– Morfina (cavalo) [200]

cetamina [309]

Gênero

– Laudanosina [481]

lidocaína [432,443]

Hiperpotassemia, hipopotassemia

– Fisostigmina [526]

tiopental [527]

Alteração acidobásica metabólica

Hipertemia (até 42°C)

– Medicação pré-anestésica: acepromazina [528-530]

PaO2 > 40 mmHg

diazepam [531-533]

PaCO2 15 a 95 mmHg

detomidina [457] fentanila [534] medetomidina [535,536]

meperidina [307] midazolam (537] morfina [538] xilazina [458] – Outros: adenosina anticolinérgico central [526]

antagonista 5-HT [539] Pressão arterial < 50 mmHg Hiponatremia Hipotermia Aumento da idade no adulto PaO2 < 40 mmHg PaCO2 > 95 mmHg Gestação a

A lista de exemplos de fármacos pretende ser representativa, mas não completa. A lista foi resumida a partir de revisões

prévias,10,61,66 exceto quando indicado com números de referência.

Farmacodinâmica | Ações e toxicidade dos anestésicos inalatórios voláteis sobre os sistemas orgânicos Todos os agentes anestésicos inalatórios atuais influenciam, de uma maneira ou de outra, as funções dos órgãos vitais. Algumas ações são inevitáveis e acompanham o uso de todos esses agentes, enquanto outras ações constituem uma característica especial ou proeminente de um ou de vários agentes. Além disso, as relações de dose-resposta dos anestésicos inalatórios não são necessariamente paralelas. Diferenças na ação e, em particular, nas ações indesejáveis de agentes anestésicos específicos formam a base para a seleção de um agente em relação a outro para determinado paciente e/ou procedimento. Os efeitos indesejáveis também fornecem o principal estímulo para o desenvolvimento de novos agentes e/ou novas técnicas anestésicas. Dados obtidos de animais saudáveis expostos a concentrações alveolares equipotentes desses fármacos, em condições controladas, fornecem informações básicas para essa análise. Em outros casos, os resultados de estudos realizados em voluntários humanos constituem a base de nossa compreensão das ações de alguns fármacos, visto que não foram descritas ações em animais de importância clínica comum em medicina veterinária. Como é geralmente permitido que os animais respirem de modo espontâneo durante o

manejo clínico da anestesia geral (versus ventilação mecânica controlada), os resultados de investigações obtidos de animais de laboratório com respiração espontânea frequentemente são considerados como referência pelos veterinários. Entretanto, na literatura mais ampla sobre anestesiologia e farmacologia, os resultados de estudos em voluntários humanos ou animais aos quais se administram quantidades precisas de anestésicos inalatórios durante a ventilação controlada (e normocapnia) formam mais comumente a base para a comparação das diferenças farmacodinâmicas. É importante ressaltar que muitas outras variáveis, além do modo de ventilação, acompanham comumente o manejo anestésico de animais nos ambientes tanto clínico quanto laboratorial. Essas variáveis influenciam a farmacocinética e a farmacodinâmica e podem levar os indivíduos a responder de modo diferente dos indivíduos que foram estudados de modo experimental em condições padronizadas. Essas variáveis geradoras de confusão incluem espécie, duração da anestesia, estimulação nociva (dolorosa), doença coexistente, medicamentos concomitantes, variação na temperatura corporal e extremos de idade, como exemplos.

■ Sistema nervoso central Os anestésicos inalatórios afetam o sistema nervoso central (SNC) de muitas maneiras. Em sua maior parte, esses agentes são selecionados em virtude de sua capacidade de induzir um estado do SNC (somático, motor) relacionado com a dose e reversível, mas também uma ausência de resposta hemodinâmica e endócrina a estímulos nocivos, isto é, um estado de anestesia geral. De modo interessante, embora a anestesia clínica tenha sido introduzida há mais de 150 anos, os mecanismos e locais pelos quais os anestésicos gerais (incluindo os anestésicos inalatórios) causam supressão da capacidade de resposta a procedimentos cirúrgicos ou outras formas de estimulação nociva permanecem desconhecidos.73 Os anestésicos inalatórios influenciam a atividade elétrica do cérebro, o metabolismo e a perfusão cerebrais, a pressão intracraniana e a analgesia – questões que são de importância crítica para o manejo anestésico de animais. Nossa análise sistemática irá começar com um foco nos mecanismos de ação dos anestésicos inalatórios no SNC. Mecanismo de ação

Mecanismos moleculares de ação Considerações básicas. Os anestésicos inalatórios, como classe, exibem ações distintas que os separam da maioria dos outros agentes farmacológicos. Os fármacos dependem, em sua maioria, de um tamanho molecular, formato, volume, carga, polaridade, grupo funcional ou outro componente estrutural singulares para a sua ligação a uma molécula-alvo específica, induzindo uma mudança funcional, conforme estabelecido pela descrição de Schloss und Schlüssel (fechadura e chave) de Fisher para as interações

enzima-substrato ou proteína-fármaco específicas.74 Entretanto, os anestésicos inalatórios não compartilham nenhuma semelhança química ou estrutural; variam na sua composição desde átomos (xenônio) e elementos diatômicos (nitrogênio) até moléculas inorgânicas (óxido nitroso) e hidrocarbonetos de comprimento variável, contendo qualquer número de halogênios e grupos funcionais orgânicos, incluindo alcanos (clorofórmio, halotano), alquenos (tricloroetileno), alcoóis (etanol), éteres (isofluorano, sevofluorano, desfluorano) e associações deles (éter etil vinílico, fluroxeno). Até mesmo subprodutos endógenos do metabolismo, como CO2,75 amônia76 e cetonas,77 exercem efeitos anestésicos. Essa diversidade química entre as “chaves” representadas pelos fármacos é incongruente com as noções clássicas das interações fármaco-ligante. A eficácia dos anestésicos inalatórios não se limita aos seres humanos e mamíferos domésticos. Com efeito, esses anestésicos imobilizam reversivelmente todos os animais vertebrados e invertebrados nos quais foram estudados, incluindo helmintos, peixes, anfíbios, répteis e aves. De fato, a eficácia não se limita ao reino animal, visto que os anestésicos inalatórios podem até mesmo impedir o movimento nos protozoários78 e em plantas (aquelas com folhas contráteis sensíveis ao toque).79 Não se sabe por que esses efeitos farmacológicos foram conservados em filos tão diversos, particularmente pelo fato de que a maioria dos anestésicos não é encontrada na natureza, e não há nenhuma pressão seletiva evidente subjacente à sensibilidade a anestésicos. Isso talvez possa sugerir que o mecanismo molecular subjacente à ação dos anestésicos inalatórios envolva interações com componentes celulares que são essenciais a todas as formas de vida. Sítios moleculares | Teorias lipídica e aquosa. Meyer80 e Overton81 observaram uma correlação entre a potência narcótica e a solubilidade dos anestésicos em óleo e, com base nisso, concluíram que a membrana lipídica da célula atuava como local de ação dos anestésicos. Entretanto, as teorias lipídicas inespecíficas não explicam adequadamente as diferenças de efeitos entre estereoisômeros de anestésicos,82 nem a existência do efeito de corte dos anestésicos e não imobilizadores, isto é, compostos que carecem de efeito imobilizador em concentrações previstas pela hipótese de Meyer-Overton na produção de anestesia geral.83 Mais recentemente, Cantor84 formulou a hipótese de que os anestésicos podem alterar a composição e forças moleculares em um plano de bicamada, causando uma mudança no perfil de pressão lateral exercido sobre as proteínas na membrana lipídica. Como os agentes não imobilizadores podem não ter acesso a regiões interfaciais da membrana de importância crítica para modulação dos receptores proteicos inseridos,85 e tendo em vista que os próprios canais iônicos e lipídios da membrana têm centros quirais que podem interagir diferentemente com estereoisômeros anestésicos, essa teoria pode abordar inconsistências apresentadas pela teoria lipídica de ação mais antiga de Meyer-

Overton. Miller86 e Pauling87 propuseram, cada um, um sítio aquoso de ação, por meio do qual a ordenação da água em hidratos gasosos ou clatratos altera a condutância elétrica através da membrana celular, produzindo inconsciência. Todavia, a CAM dos anestésicos exibe melhor correlação com a lipossolubulidade do que com a pressão de dissociação de hidratos.88,89 Além disso, a entalpia para a formação de anestésicos é muito maior do que aquela calculada para estudos de CAM de hipotermia in vivo,90 e a extrema transitoriedade da formação de clatratos anestésicos com concentração reduzida de água nos sítios de ligação dos anestésicos91 torna improvável um local de ação de fase aquosa volumoso. Sítios moleculares | Teorias das proteínas. Os anestésicos inalatório também ligam-se a proteínas e podem modular a sua função até mesmo na ausência de um ambiente lipídico.92 Em geral, os agentes potencializam os alvos celulares inibitórios, como os receptores de ácido γ-aminobutírico tipo A (GABAA), os receptores de glicina e os canais de potássio com domínios de dois poros; esses mesmos agentes inibem os alvos celulares excitatórios, como os receptores de N-metil-d-aspartato (NMDA), os receptores de ácido αamino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazol propiônico (AMPA), os receptores nicotínicos e os canais de sódio controlados por voltagem.73,82 Em muitas dessas proteínas, mutações específicas em supostos sítios de ligação de anestésicos alteram os efeitos dos anestésicos sobre a cinética dos receptores ou a condutância de íons e, algumas vezes, podem tornar o receptor insensível a um ou mais anestésicos. Contudo, essa evidência de interações proteína-ligante receptor específicas é inconsistente com a capacidade de numerosas substâncias quimicamente não relacionadas de modular um número tão grande de proteínas filogeneticamente não relacionadas. Além disso, não está bem esclarecido por que o tipo de efeito farmacológico sobre um receptor ou um canal – seja de potencialização ou de inibição – deva variar, dependendo do receptor ou do canal ser ele próprio inibitório ou excitatório. Como o anestésico “sabe” se o receptor é inibitório ou excitatório? Por fim, a criação de vários modelos de camundongos knock-in ou knock-out para receptores mutantes resistentes a anestésico não conseguiu até o momento produzir animais com qualquer resistência substancial aos efeitos imobilizadores dos anestésicos. A incapacidade de identificar o receptor crítico para a ação anestésica pode, de fato, sugerir que a imobilidade representa o produto de múltiplas modulações de receptores e canais iônicos celulares alvo,93 atuando em uma combinação de vias celulares em paralelo ou em série e circuitos neuronais para diminuir a excitabilidade celular.94 Esse tipo de modelo, em que a CAM do anestésico excede acentuadamente a constante de dissociação entre o anestésico e suas proteínas-alvo relevantes, também prediz respostas a doses acentuadas (grandes coeficientes de Hill) e efeitos combinatórios aditivos, que constituem

características essenciais da maioria das ações dos anestésicos inalatórios tanto in vivo95 quanto in vitro.96 Múltiplos locais de ação relevantes também explicariam por que a perda da eficácia anestésica em um alvo celular produz consequentemente uma maior modulação anestésica de outros alvos celulares supostos na CAM.97,98

Locais de ação anatômicos Tradicionalmente, o pressuposto era de que esse estado final a que nos referimos como anestesia geral resulta de um foco direcionado ao cérebro. Entretanto, evidências crescentes estão levando a uma mudança no raciocínio, segundo o qual esse estado conhecido como anestesia geral provavelmente consiste em um conjunto de diversos parâmetros finais que são distintos e específicos de locais, incluindo eventos supraespinais e espinais. Por exemplo, as ações focalizadas no cérebro (particularmente o córtex cerebral, a amígdala e o hipocampo) medeiam componentes centralmente reconhecidos da anestesia geral, como hipnose (sono) e amnésia (pelo menos em seres humanos), enquanto a medula espinal parece constituir um importante local de ação anestésica, que suprime o movimento produzido por estímulos nocivos.99-101 Em um modelo experimental com caprinos, em que a circulação cerebral foi isolada do resto do corpo, a administração de isofluorano cerebral seletiva aumentou em mais de duas vezes a necessidade de anestésico para imobilização, em comparação com a administração corporal total de isofluorano. Isso demonstrou que a medula espinal, e não o cérebro, é principalmente responsável pela prevenção do movimento durante a cirurgia com anestésicos inalatórios.100 Na medula espinal, a imobilidade é mais provavelmente produzida pela depressão das redes neuronais locomotoras localizadas no corno ventral. Por outro lado, os efeitos amnésicos dos anestésicos inalatórios são produzidos por ações dentro do cérebro, mais provavelmente na amígdala e no hipocampo.102 Lesões produzidas dentro da amígdala de ratos podem bloquear as ações amnésicas do sevofluorano.103 Na eletroencefalografia, a frequência de ritmo θ dependente do hipocampo diminui proporcionalmente aos efeitos amnésicos observados com concentrações subanestésicas de isofluorano em ratos.104 Além disso, camundongos mutantes que carecem do gene que codifica as subunidades α4 ou β3 dos receptores GABAA são resistentes à depressão pelo isofluorano da aprendizagem e memória dependentes do hipocampo,105,106 e o antagonismo dos receptores GABAA contendo a subunidade α5 restabelece a memória dependente do hipocampo durante a administração de sevofluorano.107 Claramente, os mecanismos de ação dos anestésicos inalatórios responsáveis pela amnésia são diferentes daqueles responsáveis pela imobilidade. Em concentrações acima CAM, presume-se que os anestésicos inalatórios causem depressão suficiente da função cortical para impedir que os animais experimentem as

dimensões afetivo-motivacionais da dor.108 Além disso, as concentrações dos agentes voláteis atuais (halotano, enfluorano, isofluorano, sevofluorano, desfluorano) entre 0,8 a 1,0 vez a CAM diminuem, mas não anulam, a sensibilização final e central e, desse modo, podem ajudar a prevenir a sensibilidade aumentada à dor pós-operatória; entretanto, concentrações mais altas de fármacos atuais não oferecem nenhum benefício adicional nesse aspecto.109,110 As concentrações de anestésicos voláteis entre 0,4 a 0,8 vez a CAM diminuem as respostas de retirada a estímulos nocivos; entretanto, concentrações mais baixas podem, na realidade, causar hiperalgia, com efeito máximo em 0,1 vez a CAM,111,112 devido a uma potente inibição dos receptores colinérgicos nicotínicos.113 Em contrapartida, os anestésicos gasosos, o xenônio e o óxido nitroso, produzem analgesia por meio da inibição dos receptores glutamatérgicos,114 e, no caso do óxido nitroso, por meio de modulação adicional das vias dos receptores noradrenérgico-opioides.115 Anatomicamente, as ações analgésicas ocorrem tanto em nível supraespinal quanto no corno dorsal da medula espinal e provavelmente são responsáveis pela maior atenuação das respostas autônomas associadas a esses gases, em comparação com os modernos agentes voláteis. Efeitos eletroencefalográficos O efeito eletroencefalográfico (EEG) é utilizado para ajudar a identificar distúrbios patológicos do cérebro e prever a consequência de lesões cerebrais. Os estudos realizados mostraram que a anestesia geral altera os parâmetros do EEG; entretanto, todos os anestésicos não produzem exatamente as mesmas alterações no padrão do EEG à medida que a dose aumenta (profundidade da anestesia), de modo que a correlação geral do EEG com a dose do anestésico não é precisa. De fato, apesar de algumas correlações fracas e de sua utilidade como indicação de mudança de profundidade anestésica, nenhum parâmetro teve sensibilidade e especificidade suficientes para justificar o uso do EEG isoladamente com índice confiável da profundidade da anestesia.116 Com os avanços tecnológicos nesses últimos anos, a pesquisa concentrou-se no uso de parâmetros processados do EEG (p. ex., índice biespectral) como descrições mais aprimoradas dos estados anestésicos. Todavia, esse assunto está além do objetivo deste capítulo e, portanto, é discutido em outras partes deste texto. Em geral, à medida que a profundidade da anestesia aumenta a partir do estado desperto, a atividade elétrica do córtex cerebral torna-se dessincronizada. Utilizando o isofluorano como exemplo da resposta geral do EEG a anestésicos voláteis,1 observa-se inicialmente um aumento da frequência de atividade do EEG (concentrações alveolares inferiores a 0,4 CAM). Com aumentos adicionais na concentração do anestésico, ocorrem diminuição na frequência e aumento da amplitude das ondas do EEG. A amplitude da onda aumenta até um pico (cerca de 1 CAM) e, em seguida, com um aumento adicional da dose,

declina progressivamente (ocorre supressão do surto com cerca de 1,5 CAM, isto é, surtos de atividade lenta de alta voltagem separados por silêncio elétrico) e, por fim, torna-se uma linha plana. Com o isofluorano, observa-se um padrão isoelétrico em cerca de 2,0 CAM, ao passo que, no outro extremo, isso não é observado com o halotano até > 3,5 CAM. Não ocorre silêncio elétrico com o enfluorano. Os dois anestésicos voláteis mais recentes, o sevofluorano e o desfluorano, causam alterações dependentes da dose, que se assemelham àquelas do isofluorano.117-119 Estudos sistemáticos da atividade do EEG em seres humanos120 e cães121 mostraram que o enfluorano foi associado a convulsões espontâneas ou intensificadas por ruído. Além disso, o enfluorano induz atividade convulsiva, que está associada a aumentos substanciais do fluxo sanguíneo cerebral e do uso metabólico de O2 pelo cérebro. Foi relatado que as respostas do EEG aos dois anestésicos mais novos, o desfluorano e o sevofluorano, assemelham-se àquelas do isofluorano,117-119 e todos os três agentes podem suprimir o comportamento convulsivo induzido por fármacos.122-126 Entretanto, existem relatos de atividade convulsiva em animais127,128 e pacientes humanos129,130 durante a anestesia com sevofluorano. Metabolismo cerebral Todos os anestésicos voláteis diminuem a taxa metabólica cerebral (TMC; consumo cerebral de oxigênio). A magnitude da redução é menor com o halotano, porém semelhantes com o isofluorano, o sevofluorano e o desfluorano.117,122,127,131,132 Fluxo sanguíneo cerebral e pressão de perfusão cerebral Os anestésicos voláteis não causam nenhuma alteração ou, com mais frequência, produzem aumento do fluxo sanguíneo cerebral (FSC).117,122,127,132-135 O efeito sobre o FSC provavelmente é a soma da tendência a uma diminuição em consequência da anestesia, que reduz o consumo cerebral de oxigênio, e de um aumento, devido à vasodilatação causada pela ação direta do anestésico no músculo liso vascular intracraniano.136 Isso pode ser resumido dizendo que a relação entre o FSC e a TMC é elevada pelos anestésicos inalatórios potentes, e essa ação aumenta o volume sanguíneo do cérebro e, por sua vez, a pressão intracraniana. O efeito está relacionado com a dose de anestésico e é influenciado pelo agente. A ordem de classificação do aumento do FSC é geralmente considerada maior para o halotano, menor para o enfluorano, isofluorano e desfluorano e mínimo para o sevofluorano.72,137,138 Curiosamente, foi relatado que o óxido nitroso provoca mais vasodilatação cerebral do que doses equipotentes de isofluorano.139 A pressão de perfusão cerebral (PPC) é definida como a diferença entre a pressão arterial média (PAM) e a pressão intracraniana (PIC); representa a força propulsora para o fluxo de sangue até o cérebro. Os agentes voláteis potentes deprimem a função

cardiovascular e reduzem a PAM, diminuindo, assim, a PPC.140 Entretanto, conforme assinalado anteriormente, o FSC aumenta tipicamente devido à vasodilatação cerebral dependente da dose, que diminui a resistência periférica,141 apesar de uma redução dependente da dose na atividade do EEG e TMC. Por meio de possíveis ações sobre a óxido nítrico sintase,142-145 a ciclo-oxigenase142 e a adenilato ciclase,146 a vasodilatação causada por anestésicos voláteis potentes leva a uma perda da autorregulação vascular cerebral, que se reflete por um desacoplamento da perfusão cerebral da demanda de oxigênio do cérebro. Além dos efeitos de agentes específicos, a modulação anestésica da hemodinâmica cerebral depende da dose do agente, do tempo de anestesia, da espécie animal estudada e da presença de hiper- ou hipoventilação. Por exemplo, em uma CAM de 0,5 vez, a autorregulação vascular cerebral durante a anestesia com agentes inalatórios potentes é reduzida ou limitada; todavia, em concentrações acima da CAM, a autorregulação vascular cerebral é diminuída significativamente e de modo progressivo, à medida que o fluxo sanguíneo cerebral torna-se simplesmente uma função da PPC.147,148 Foi demonstrado que os efeitos sobre o FSC são dependentes da duração anestésica em animais,149-152 mas não nos seres humanos.153 O aumento do fluxo sanguíneo deve-se, presumivelmente, a aumentos dependentes do tempo na inibição da óxido nítrico sintase.152 A tensão de dióxido de carbono afeta ainda mais a autorregulação. Ocorre perda da autorregulação, e o FSC aumenta com doses mais baixas de anestésicos inalatórios quando os animais ficam livres para hipoventilar,154 embora essa interação do CO2 com o agente seja maior com o isofluorano do que com o sevofluorano.155 Pressão intracraniana Os anestésicos inalatórios produzem elevação da pressão intracraniana (PIC), e essa alteração acompanha paralelamente o aumento do FSC.117,137 Por conseguinte, independentemente da espécie, a autorregulação vascular cerebral, o FSC e a PIC podem ser mais bem preservados em determinado múltiplo de CAM de um anestésico haloéter quando a hiperventilação é mantida concomitantemente, e a PaCO2 é reduzida.156,157 Embora os efeitos da maioria dos anestésicos sobre a hemodinâmica cerebral sejam semelhantes entre seres humanos e modelos de pesquisa de pequenos animais, o mesmo não se aplica a equinos e, talvez, a outras espécies animais de porte muito grande. A pressão intracraniana em equinos despertos permanece constante, independentemente da posição,158 porém a vasodilatação cerebral que ocorre durante a anestesia inalatória provoca elevação acentuada da pressão intracraniana, cuja magnitude é algumas vezes semelhante aos valores observados em pacientes humanos com grave traumatismo cranioencefálico – isto é, exacerbada por decúbito dorsal, posicionamento da cabeça para baixo, hipercapnia

durante a ventilação espontânea e tempo de anestesia durante a ventilação controlada.159-162 De maneira surpreendente, ao longo de uma ampla faixa de pressões de perfusão, cavalos anestesiados com isofluorano mantêm um fluxo sanguíneo cerebral regional relativamente constante, embora em um baixo fluxo que ainda pode fazer com que o animal corra risco de hipóxia tecidual.163 O fluxo sanguíneo para a medula espinal toracolombar é particularmente baixo, e uma redução adicional pode predispor à mielomalacia pósanestésica em equinos.

■ Sistema respiratório Os anestésicos inalatórios deprimem a função do sistema respiratório. Os agentes voláteis, em particular, diminuem a ventilação de acordo com o fármaco específico e a espécie específica. Dependendo das condições, incluindo espécies de interesse, algumas das medidas mais comumente consideradas de efetividade ventilatória, isto é, frequência respiratória e profundidade respiratória (volume corrente) podem não fornecer dados ou podem ser até mesmo enganosas. Em geral, a ventilação espontânea diminui progressivamente à medida que se aumenta a dose do anestésico inalatório, visto que, em doses baixas, o volume corrente diminui mais do que a frequência aumenta. À medida que se aumenta ainda mais a dose do anestésico, a frequência respiratória também diminui. Em animais (incluindo seres humanos) não medicados e anestesiados com agentes voláteis, ocorre parada respiratória com 1,5 a 3 CAM (Tabela 16.9). A diminuição global da ventilação minuto e o provável aumento variável na ventilação do espaço morto (causando um aumento da razão entre espaço morto e volume corrente, VD:Vc, a partir de um valor normal de cerca de 0,3 a 0,5 ou mais) resultam em diminuição da ventilação alveolar. As reduções da ventilação alveolar são desproporcionais a diminuições na produção de CO2 (a utilização de O2 é reduzida pela anestesia geral), de modo que a PaCO2 aumenta (Figura 16.19). Além disso, a estimulação normal da ventilação causada pela elevação da PaCO2 (ou pela diminuição da PaO2) é deprimida pelos anestésicos inalatórios, presumivelmente por meio da ação direta desses agentes sobre os quimiorreceptores bulbares e periféricos (corpos aórtico e carotídeo).164-167 O broncospasmo está associado a algumas condições que contribuem para o aumento da resistência das vias respiratórias. Diversos estudos preliminares indicaram que, entre os anestésicos disponíveis naquela época, o halotano era o brondilatador mais efetivo.168,169 Acredita-se que esse efeito resulte, pelo menos parcialmente, da diminuição da neurotransmissão colinérgica.170,171 Por conseguinte, era frequentemente recomendado para pacientes com risco de broncospasmo. O trabalho de Hirshmann et al. sugere que o isofluorano e, talvez, o enfluorano sejam tão efetivos na redução da resistência das vias respiratórias produzida experimentalmente quanto o halotano, constituindo, portanto, boas

alternativas para este último.172,173 Trabalhos recentes com isofluorano, sevofluorano e desfluorano indicam que o relaxamento dos músculos brônquicos em constrição por esses agentes é pelo menos igual ou superior àquele produzido pelo halotano.171,174,175 Tabela 16.9 Índice de apneia (IA) em várias espécies. Desfluorano CAM

IA

Halotano CAM

IA

Gato Cão

7,2

2,4 [177]

Cavalo Porco

9,8

7,25

CAM

IA

1,63

2,4 [244]

0,87

2,9 [440]

1,28

2,5 [244]

0,88

2,6 [62]

1,31

2,3 [62]

1,11

2,3 [251]

1,38

3,1 [250]

0,77

2,3 [179]

1,15

1,7 [179]

1,6 [177,540]

Rato Ser humano

Isofluorano

1,8 [179]

A concentração alveolar mínima (CAM) é expressa em volume %, enquanto o IA é uma relação entre a concentração anestésica término-respiratória na apneia e a CAM. Atualmente, não se dispõe de dados semelhantes para o sevofluorano.

Figura 16.19 Resposta respiratória a um aumento da concentração alveolar (expressa como múltiplo da CAM) de anestésicos inalatórios em seres humanos. Os dados foram obtidos de múltiplas fontes.165,179-183

A prevenção da irritação das vias respiratórias durante a administração de anestésicos inalatórios é importante, particularmente durante a indução da anestesia, visto que pode causar apneia, tosse e laringospasmo (particularmente em algumas espécies, como primatas humanos e não humanos), os quais, por sua vez, resultam em dessaturação da oxihemoglobina arterial. Pelo menos nos seres humanos, nenhum dos anestésicos inalatórios potentes parece ter propriedades irritantes em concentrações subanestésicas. Entretanto, a objeção do paciente e a irritação das vias respiratórias são evidentes com o desfluorano (e, em menor grau, com o isofluorano),176 em concentrações de 7% ou mais,177,178 de modo que, em consequência, o desfluorano não é comumente utilizado na indução anestésica de pacientes humanos. Tensão arterial de dióxido de carbono (PaCO2) A PaCO2 é a medida mais comumente usada de resposta do sistema respiratório aos anestésicos gerais. Todos os anestésicos inalatórios modernos deprimem a ventilação alveolar e aumentam a PaCO2 em relação à dose. A Figura 16.19 fornece um resumo dos

efeitos dos anestésicos inalatórios nos seres humanos, a espécie na qual os dados reunidos são mais completos.165,179-183 Como dados adequados de espécies de interesse para os anestesistas veterinários são incompletos, a ordem de magnitude da hipoventilação causada pelos quatro anestésicos voláteis modernos em uma dose alveolar comum não pode ser expressa com autoridade. Com efeito, a variabilidade entre espécies constitui um importante fator de confusão (ver adiante). Fatores que influenciam os efeitos respiratórios

Modo de ventilação A ventilação é frequentemente assistida ou controlada durante a anestesia inalatória para compensar a depressão respiratória induzida pela anestesia. A ventilação mecânica controlada é usada para manter previsivelmente a PaCO2 normal ou outro valor específico de PaCO2 durante a anestesia. A ventilação assistida (i. e., o anestesista aumenta o volume corrente, porém o animal determina a sua própria frequência respiratória) é utilizada na tentativa de melhorar a eficiência de oxigenação do sangue arterial e reduzir o trabalho da respiração, porém habitualmente não é efetiva para reduzir a PaCO2 de modo substancial, em comparação com circunstâncias associadas à ventilação espontânea (i. e., o animal controla tanto a frequência respiratória quanto a profundidade da respiração).184,185

Duração da anestesia A função respiratória, incluindo a PaCO2, é pouco alterada por até 10 h de administração constante de halotano (ou metoxifluorano) em baixas doses a cães.186,187 Isso também é sustentado por estudos realizados em seres humanos188 anestesiados com doses baixas e constantes de halotano. Todavia, em cavalos anestesiados por 5 h com uma dose constante de 1,2 CAM de isofluorano, foi observada uma elevação temporal substancial da PaCO2.189 Uma tendência semelhante, porém mais modesta, foi observada em cavalos, quando o halotano foi usado para anestesia.190,191 Pelo menos em algumas espécies, se a dose alveolar do halotano for aumentada acima de 1 a 1,3 CAM e mantida constante em um nível elevado, a magnitude da alteração na hipoventilação também se agrava com o passar do tempo.187 Por outro lado, há evidências de recuperação dos efeitos depressores ventilatórios dos anestésicos voláteis nos seres humanos.183

Cirurgia e outros estímulos nocivos Os estímulos nocivos podem resultar em estimulação nervosa central suficiente para diminuir a depressão ventilatória do anestésico inalatório.192-195 Esse efeito diminui com o aumento da profundidade anestésica.

Fármacos concomitantes Nos seres humanos, a substituição do N2O pela administração concomitante de uma dose equivalente de agente volátil, como o isofluorano, resulta em menor PaCO2 do que aquela observada com o agente volátil isoladamente.19 Entretanto, em cães e macacos anestesiados com halotano, a ventilação foi, pelo menos, tão deprimida e, algumas vezes, mais deprimida quando parte do halotano foi substituída por N2O.196,197 A adição de agentes opioides, como a morfina, pode aumentar a depressão respiratória produzida por um anestésico inalatório.194,198-200

■ Sistema cardiovascular Todos os anestésicos inalatórios voláteis provocam alterações dependentes da dose e específicas do fármaco no desempenho cardiovascular. A magnitude e, algumas vezes, a direção da mudança pode ser influenciada por outras variáveis que frequentemente acompanham a anestesia geral (Boxe 16.1). Os mecanismos dos efeitos cardiovasculares são diversos; todavia, incluem, com frequência, a depressão direta do miocárdio e a diminuição da atividade simpaticoadrenal. Débito cardíaco (DC) Todos os anestésicos voláteis podem diminuir o DC. A magnitude da alteração está relacionada com a dose e depende do agente. Em geral, entre os agentes atuais de uso em animais, o halotano é o que causa maior redução do DC.1,201-203 O desfluorano, em muitos aspectos, assemelha-se ao isofluorano na sua ação cardiovascular, enquanto o sevofluorano possui características que se assemelham àquelas do halotano e do isofluorano. Todos os anestésicos voláteis mais recentes tendem a preservar o DC em concentrações clinicamente úteis, o que é facilitado por reduções na resistência vascular sistêmica.177,204-212 Entretanto, o efeito direto dos agentes voláteis sobre o DC (se a resistência vascular for mantida) consiste frequentemente em uma diminuição do volume sistólico, em consequência da depressão relacionada com a dose na contratilidade do miocárdio.1,177,208,213-215 O efeito dos anestésicos inalatórios sobre a frequência cardíaca (FC) é variável e depende do agente e da espécie. Por exemplo, nos seres humanos, a FC não é substancialmente alterada na anestesia com o halotano, porém é habitualmente elevada por isofluorano, desfluorano e sevofluorano.211,216,217 Em comparação com as condições observadas em cães calmos e despertos, ocorre elevação da FC com todos os quatro anestésicos citados.207,212 Há evidências sugerindo que as diferenças entre os agentes no grau de aumento da FC em cães são explicadas por diferenças nas suas atividades vagolíticas.210 No cão, a FC habitualmente permanece constante ao longo de uma faixa de concentrações alveolares clinicamente úteis na ausência de outros fatores modificadores (p.

ex., estímulo nocivo).201,202,207,212,218,219 Ritmo cardíaco e catecolaminas Os anestésicos inalatórios podem aumentar a automaticidade do miocárdio e a probabilidade de impulsos propagados a partir de sítios ectópicos, particularmente dentro do ventrículo.220 Embora as arritmias espontâneas tenham sido mais notáveis com os anestésicos inalatórios mais antigos (p. ex., halotano), nenhum dos três agentes derivados do éter mais recentemente introduzidos parece predispor o coração a extrassístoles. Entretanto, as arritmias associadas a agonistas adrenérgicos podem ser exageradas pela presença de anestésicos inalatórios.221 A associação de arritmias cardíacas com fármacos adrenérgicos e agentes anestésicos tem sido objeto de estudos extensos. Boxe 16.1 Fatores que influenciam os efeitos cardiovasculares dos anestésicos inalatórios.

Dose do anestésico Duração da anestesia Terapia farmacológica concomitante Fluidoterapia intravenosa Magnitude da PaCO2 Ventilação mecânica Estimulo nocivo O halotano reduz acentuadamente a quantidade de epinefrina necessária para causar contrações ventriculares prematuras.222 Há algumas evidências de que níveis mais profundos de anestesia com halotano diminuem essa incidência,223-225 porém isso não é um achado consistente.226 O enfluorano e o metoxifluorano têm menos tendência a sensibilizar o coração aos efeitos arritmogênicos da epinefrina, e o isofluorano, o desfluorano e o sevofluorano são os menos arritmogênicos.1,225,227-232 O potencial de arritmias acompanha a administração da maioria dos fármacos do grupo das catecolaminas, embora a magnitude desse potencial possa variar com o fármaco coadministrado232-237 e com outras condições associadas.238 Fluxo sanguíneo regional Um princípio fundamental da função circulatória é que o fluxo sanguíneo é suficiente para

fornecer quantidades adequadas de O2 e nutrientes aos tecidos e remover os produtos de degradação metabólicos. Entretanto, os tecidos apresentam necessidades muito diferentes de fluxo sanguíneo por unidade de volume de tecido, e essas exigências de fluxo sanguíneo específicas dos tecidos modificam-se de acordo com as condições (p. ex., estado basal versus exercício ou “luta ou fuga”). Em geral, o fluxo sanguíneo para cada tecido é habitualmente mantido em um nível apenas ligeiramente acima daquele necessário para a atividade metabólica do tecido. Infelizmente, os anestésicos inalatórios não apenas reduzem o fluxo sanguíneo total (i. e., o débito cardíaco), como também têm impacto na distribuição do fluxo sanguíneo para os tecidos. Na maioria dos pacientes, as alterações são qualitativamente semelhantes para todos os agentes modernos; todavia, são observadas diferenças claras com outros agentes. A dose do anestésico e as diferenças entre espécies contribuem ainda mais para o impacto em seu efeito final. Informações detalhadas sobre as numerosas variantes dos efeitos anestésicos sobre o fluxo sanguíneo regional não estão disponíveis para todas as espécies e estão além dos objetivos deste capítulo. Entretanto, são incluídas aqui referências como introdução a esse tópico muito mais amplo.205,239-242 Pressão arterial Os anestésicos voláteis provocam uma redução dose-dependente na pressão arterial (Figura 16.20).52,201,205,209,212,242-247 Em geral, essa redução da pressão arterial relacionada com a dose é semelhante, independente da espécie estudada.62,201,203,206,243,245-248 A diminuição da pressão arterial relacionada com a dose de todos os quatro agentes modernos está habitualmente relacionada com uma redução do volume sistólico; todavia, em alguns casos (agente e/ou espécie), uma redução na resistência vascular periférica também pode desempenhar um papel importante. Esse cenário comum em animais difere nos resultados geralmente relatados de estudos conduzidos em seres humanos anestesiados com isofluorano, sevofluorano e desfluorano, nos quais a pressão diminui principalmente em decorrência de uma redução da resistência vascular sistêmica.15,249 A Tabela 16.10 fornece os índices de influência anestésica sobre o colapso cardiovascular.201,250-251 Fatores que influenciam os efeitos circulatórios Diversas circunstâncias associadas ao manejo anestésico de animais podem contribuir para os efeitos primários do anestésico ou opor-se a eles. As modificações mais profundas da ação dos fármacos são habitualmente observadas na função cardiovascular. Podem incluir ventilação mecânica e alterações da PaCO2, estímulo nocivo (cirúrgico), duração da anestesia e coexistência de fármacos.

Figura 16.20 Os anestésicos inalatórios causam uma redução da pressão arterial média (PAM) dose-dependente (expressa em múltiplos da CAM) em cães, cuja ventilação é mecanicamente controlada para manter a eucapnia. Dados obtidos de diversas fontes.202,205,212,243,245 Tabela 16.10 Depressão cardiovascular induzida por anestésicos, expressa pelos índices anestésicos cardiovasculares. Desfluorano

Halotano

Isofluorano

Cãoa

2,84

2,69

Porcob

2,45

3,02

Ratoc

3,0

a

Concentração do anestésico que provoca a morte em cães ventilados, relacionada com a CAM.540

b

Dose fatal média relacionada com a CAM.540

c

Concentração cardíaca do anestésico na insuficiência cardiovascular relacionada com a concentração cardíaca do

anestésico no estabelecimento da anestesia.250,25

Modo de ventilação e PaCO2 Pode-se observar uma considerável diferença nos efeitos cardiovasculares dos anestésicos inalatórios em animais com respiração espontânea, em comparação com aqueles cuja respiração é controlada mecanicamente (p. ex., ventilação com pressão positiva intermitente ou VPPI) para produzir e manter uma PaCO2 normal. Em geral, a função cardiovascular está habitualmente deprimida durante a VPPI em relação à ventilação espontânea. Isso resulta das ações mecânicas diretas (i. e., elevação intermitente da pressão intratorácica e consequente diminuição do retorno venoso ao coração) ou de uma diminuição da ação farmacológica indireta da PaCO2,252 ou de ambas. O dióxido de carbono desempenha ações farmacológicas importantes para essas considerações. Por exemplo, o aumento da PaCO2 exerce ações depressoras diretas sobre o coração e sobre o músculo liso dos vasos sanguíneos periféricos (i. e., vasodilatação), porém produz estimulação indireta (por meio do sistema nervoso simpático) da função circulatória. Em animais geralmente saudáveis e com sistema nervoso simpático intacto, as ações estimuladoras da hipercapnia habitualmente predominam, de modo que uma elevação da PaCO2 é habitualmente acompanhada de aumento do DC e da pressão arterial, que se torna menor quando a PaCO2 é normalizada.52,184,203,246,248,253-258

Estímulo nocivo A estimulação nociva durante a anestesia modifica o efeito circulatório dos anestésicos inalatórios por meio da estimulação do sistema nervoso simpático. O estímulo nocivo é comumente acompanhado de elevação da pressão arterial e da frequência cardíaca (débito cardíaco).70,194,195,259,260 A resposta está relacionada com a dose do anestésico. Por exemplo, Roizen et al.,70 e Yasuda et al.,259 mostraram que os planos mais profundos com halotano e enfluorano diminuíram ou impediram aumentos induzidos pela cirurgia nos níveis séricos de norepinefrina em pacientes humanos. As doses anestésicas que bloqueiam a resposta situam-se na faixa de 1,5 a 2,0 CAM.70,259 Foram relatadas respostas semelhantes também em animais.261-266

Duração da anestesia Alguns efeitos cardiovasculares dos anestésicos inalatórios podem mudar com a duração da anestesia. Por exemplo, nos seres humanos, uma anestesia com halotano de 5 a 6 h de duração está associada a um aumento nos valores de algumas medidas da função cardiovascular, como DC e frequência cardíaca.254,267 De modo semelhante, foram relatados graus variáveis de alterações relacionadas com o tempo com o uso de enfluorano,183

desfluorano217,268,269 e outros.216,268-272 Foram também relatadas alterações relacionadas com o tempo na função cardiovascular em uma variedade de animais com o uso de halotano,187,190,273,274 isofluorano189,273,275 e sevofluorano.275 A dose do anestésico187,216,276 e a postura do corpo durante a anestesia191,277 aparentemente também desempenham um papel temporal em algumas espécies. As causas dessas alterações ainda não foram esclarecidas. A depressão do músculo papilar de gato in vitro exposto a uma concentração constante de halotano não varia ao longo de um período de 3 h.278 Essa observação sugere que os efeitos temporais associados aos anestésicos inalatórios não resultam de melhora da função cardíaca intrínseca. Estudos conduzidos em voluntários humanos mostraram que as respostas temporais ao halotano podem ser evitadas se for administrado propranolol antes da anestesia, sugerindo que o mecanismo está relacionado com um aumento na atividade do sistema nervoso simpático.279 Em geral, as alterações temporais associadas aos anestésicos inalatórios são apenas mínimas ou não representam nenhum problema para o médico. Todavia, essas alterações precisam ser consideradas na interpretação dos resultados dos exames laboratoriais nos quais esses agentes são usados para o manejo anestésico.

Fármacos de administração concomitante Os fármacos administrados imediatamente antes ou em associação com anestésicos inalatórios (medicação pré-anestésica, fármacos para indução de anestésicos injetáveis, fármacos vasoativos e cardiotônicos etc.), podem influenciar a função cardiovascular ao alterar a necessidade do anestésico (i. e., a CAM e, portanto, aumento ou diminuição do nível anestésico) ou pela sua própria ação direta sobre o desempenho cardiovascular ou a função do sistema nervoso simpático. Por exemplo, o N2O é utilizado em certas ocasiões para substituir parte de um anestésico inalatório potente. Em virtude de sua própria potência anestésica (embora pequena; convém lembrar que a CAM do N2O em animais situa-se na faixa de 2 atmosferas; ver Tabela 16.7A), seu uso pode facilitar o fornecimento de uma quantidade reduzida do agente volátil potente, contribuindo, assim, para alguma preservação da função cardiovascular. O óxido nitroso pode deprimir diretamente o miocárdio, porém esses efeitos são habitualmente contrabalançados pelo seu efeito simpaticomimético, resultando em melhora efetiva da função cardiovascular, em comparação com condições sem N2O. Em pacientes animais, a magnitude do efeito do N2O é limitada e depende da espécie.196,197,245,280-283 Fármacos injetáveis, como acepromazina, agonistas dos receptores α2-adrenérgicos, tiobarbitúricos, dissociativos (p. ex., cetamina) e outros, são frequentemente administrados

a animais como parte de seu manejo anestésico. Eles confundem os efeitos primários dos anestésicos inalatórios e podem acentuar a depressão cardiovascular. Por outro lado, os fármacos simpaticomiméticos, como a efedrina,284 a dopamina e a dobutamina,285,286 frequentemente são administrados para contrabalançar a depressão cardiovascular indesejável do anestésico.

■ Efeitos sobre os rins Existe um reconhecimento geral de que os anestésicos inalatórios voláteis clinicamente usados produzem diminuições leves, reversíveis, semelhantes e relacionadas com a dose no fluxo sanguíneo renal e na taxa de filtração glomerular, e que essas alterações refletem, em grande parte, uma redução do débito cardíaco induzida pelo anestésico.249 Entretanto, alguns estudos realizados mostram pouca ou nenhuma alteração nesses parâmetros renais.45,240,287,288 Em consequência da redução da filtração glomerular induzida pelos anestésicos, os animais saudáveis anestesiados produzem comumente um volume menor de urina concentrada, em comparação com o estado desperto. A anestesia prolongada pode ser acompanhada de aumento nos níveis séricos de ureia, creatinina e fosfato inorgânico.289-292 A redução da função renal é altamente influenciada pelo estado de hidratação do animal e pela hemodinâmica durante a anestesia.293 A fluidoterapia intravenosa e a prevenção de uma acentuada redução do fluxo sanguíneo renal irão diminuir ou contrabalançar a tendência a uma redução da função renal. Na maioria dos casos, particularmente em animais saudáveis, os efeitos da anestesia inalatória sobre a função renal são rapidamente revertidos após a anestesia. Entre os anestésicos inalatórios, o metoxifluorano é o mais nefrotóxico. Embora não esteja mais disponível na América do Norte para uso em pacientes humanos ou animais, ele tem interesse fisiopatológico e, portanto, será brevemente discutido aqui. Nos seres humanos e em algumas linhagens de ratos, o metoxifluorano provocou insuficiência renal, caracterizada não pela ocorrência de oligúria, mas por um grande volume de urina (poliúria) que não respondeu à vasopressina.33 Isso foi causado pela biotransformação do metoxifluorano e pela grande liberação de íons fluoreto livres (ambos em níveis máximos e na exposição prolongada, devido ao elevado acúmulo do metoxifluorano no tecido adiposo durante a anestesia), que, por sua vez, causaram dano direto aos túbulos renais. Embora a lesão renal em animais seja rara, ela foi relatada em cães quando o metoxifluorano foi utilizado em associação com antibióticos tetraciclinas294 e flunixina.294 Com a possível exceção do enfluorano e do sevofluorano, a degradação dos outros anestésicos inalatórios não representa um risco de nefrotoxicidade induzida por fluoreto. A biotransformação do enfluorano e do sevofluorano pelos seres humanos após anestesia de

duração moderada provoca elevação das concentrações séricas de fluoreto inorgânico para um nível acima de 50 µmol/ℓ, que é normalmente considerado como limiar nefrotóxico nos seres humanos.33,249,295,296 Todavia, evidências clínicas, histológicas ou bioquímicas de lesão relacionada a aumentos do fluoreto só raramente foram relatadas em pacientes humanos. O consenso dominante é que o sevofluorano tem pouco potencial de nefrotoxicidade em consequência da desfluoração.33,249 Dois fatores podem explicar a ausência geral de lesões, apesar da capacidade do corpo de degradar o sevofluorano. Em 1977, Mazze et al., propuseram que a área sob a curva de concentração sérica de fluoreto versus tempo pode constituir um determinante mais importante de nefrotoxicidade do que a concentração sérica máxima de fluoreto.297 Tendo em vista que o sevofluorano é pouco solúvel e é rapidamente eliminado pelos pulmões, a duração de sua disponibilidade para biotransformação é notavelmente limitada. Mais recentemente, Kharasch et al. propuseram outra consideração.298 O sevofluorano é metabolizado principalmente pelo fígado, enquanto os locais hepáticos e renais são importantes para a degradação do metoxifluorano. A falta relativa de desfluoração intrarrenal do anestésico pode reduzir acentuadamente o seu potencial nefrotóxico. Os estudos realizados confirmaram o aumento dos níveis séricos de fluoreto em cavalos anestesiados com sevofluorano.50-52 Nesses relatos, a magnitude e o tempo decorrido para o aumento do fluoreto foram semelhantes àqueles relatados em seres humanos. À semelhança dos seres humanos, não houve nenhuma evidência de efeitos renais indesejáveis associados ao aumento do fluoreto em equinos. Os primeiros relatos sobre o sevofluorano observaram a sua degradação por absorventes de CO2, como cal sodada e Baralyme.46,54 Ocorre produção de um produto de degradação nefrotóxico, o Composto A.46 O composto A pode provocar lesão renal e morte em ratos,299 e o limiar de concentração para nefrotoxicidade em ratos300-302 situa-se dentro da faixa de concentrações que podem ser encontradas associadas ao manejo anestésico de pacientes humanos.303 Entretanto, os relatos de nefrotoxicidade em seres humanos são raros e apontam para mecanismos alternativos de toxicidade, como degradação metabólica do Composto A dependente da espécie em compostos diretamente nefrotóxicos. De maneira não surpreendente, o Composto A é formado nos circuitos respiratórios usados para animais (exceto nos circuitos sem reinalação que não utilizam absorvente de CO2).304 A importância final da degradação do sevofluorano in vitro para o bem-estar dos animais, como cães, gatos e cavalos,51 ainda precisa ser estabelecida. De qualquer modo, devido a preocupações associadas ao manejo anestésico de pacientes humanos, a maioria dos absorventes disponíveis no comércio e atualmente usados nos EUA não contém mais KOH ou NaOH.

■ Efeitos sobre o fígado Os anestésicos voláteis podem causar depressão da função hepática e dano hepatocelular. Os efeitos podem ser leves e transitórios ou permanentes, e a lesão pode ser de ação direta ou indireta. Estudos realizados por Reilly et al.,305 sugeriram que o halotano (porém provavelmente outros anestésicos inalatórios potentes também) inibe de modo substancial a capacidade do fígado de metabolizar os fármacos. A redução na depuração hepática intrínseca de fármacos, juntamente com a alteração de outras variáveis farmacocinéticas importantes induzidas por anestésicos (p. ex., redução do fluxo sanguíneo hepático), retarda a remoção dos fármacos ou um aumento na concentração plasmática de fármaco durante a anestesia. Foram descritos exemplos dessas circunstâncias.305-309 As concentrações plasmáticas prolongadas ou elevadas (em relação às condições observadas no animal não anestesiado) de alguns fármacos têm importantes implicações tóxicas, particularmente em pacientes com comprometimento fisiológico. Todos os anestésicos inalatórios potentes são capazes de provocar lesão hepatocelular por meio de redução do fluxo sanguíneo hepático e aporte de oxigênio. Entretanto, os dados disponíveis sugerem que, dos quatro anestésicos voláteis modernos, o isofluorano é o que mais provavelmente mantenha o melhor suprimento de O2 ao fígado, de modo que é o agente com a menor tendência de produzir lesão dos hepatócitos. O sevofluorano e o desfluorano assemelham-se ao isofluorano, enquanto o halotano produz alterações adversas mais notáveis.32,205,239,240,242,310-315 Os resultados dos estudos realizados indicam que fatores de confusão, incluindo N2O,316 hipóxia concomitante,314,317-319 indução prévia das enzimas hepáticas envolvidas no metabolismo de fármacos,320,321 modo de ventilação322 e pressão positiva no final da expiração,323 podem agravar as condições e aumentar a probabilidade de dano hepatocelular. Parece que o halotano produz dois tipos de hepatotoxicidade em indivíduos suscetíveis. Uma delas consiste em uma forma pós-anestésica leve e autolimitada de dano hepatocelular e elevação associada das concentrações séricas das enzimas hepáticas. Ocorrem sinais de hepatotoxicidade pouco depois da exposição a anestésicos. O outro tipo consiste em uma forma rara de hepatotoxicidade grave e frequentemente fatal, com início tardio. A hepatopatia fulminante parece estar limitada a pacientes humanos (i. e., “hepatite por halotano”), e acredita-se que seja uma toxicidade imunomediada.324,325 O mecanismo da hepatite por halotano também pode ser geneticamente associado.326 A incidência aumentada de lesão hepática associada ao halotano constitui o principal fator que levou a uma diminuição do uso do halotano em pacientes humanos há quase três décadas.

■ Efeitos sobre o músculo esquelético | Hipertermia maligna A hipertermia maligna (HM) é uma miopatia farmacogenética que potencialmente

comporta risco à vida e que é mais comumente relatada em pacientes humanos suscetíveis327,328 e em suínos.329 Entretanto, existem relatos de sua ocorrência em outras espécies.330-336 Recentemente, seus aspectos clinicopatológicos e histopatológicos e base genética foram descritos mais detalhadamente em equinos.337-339 Todos os quatro anestésicos voláteis atuais podem provocar HM, porém o halotano é o agente deflagrador mais potente (em comparação com outros anestésicos inalatórios.328 A síndrome caracteriza-se por um rápido aumento da atividade metabólica celular que, se não for tratada rapidamente, provoca morte. Justifica-se um monitoramento da temperatura, da produção de CO2 e de outros sinais de desequilíbrio metabólico (gasometria arterial) em pacientes suscetíveis ou suspeitos. Os pacientes comprovadamente suscetíveis à HM podem ser anestesiados com segurança. Para bloquear o início da HM, medida efetiva consiste em evitar o uso de agentes desencadeantes e administrar dantroleno profilático antes da anestesia.328

Anestésico gasoso | Óxido nitroso O óxido nitroso (N2O) foi introduzido na prática clínica há mais de 150 anos. Desde então, seu uso formou a base para um maior número de técnicas de anestesia geral em pacientes humanos, em comparação com qualquer outro agente inalatório isolado.19 Seu uso disseminado deve-se a numerosas propriedades desejáveis, incluindo baixa solubilidade sanguínea (ver Tabela 16.2), depressão limitada dos sistemas cardiovascular e respiratório e toxicidade mínima.19 Seu uso no manejo anestésico de animais tornou-se uma extensão natural de sua utilização nos seres humanos.

■ Dose O óxido nitroso não é o anestésico ideal para seres humanos ou animais. Conforme discutido anteriormente neste capítulo, o N2O não é um anestésico potente (ver Tabela 16.7A) e não irá anestesiar um indivíduo saudável e com bom condicionamento se for administrado isoladamente. Para aumentar ao máximo os benefícios do N2O, ele é habitualmente administrado em altas concentrações inspiradas. Entretanto, à medida que a concentração de N2O é aumentada, observa-se mudança na proporção e na pressão parcial dos vários outros constituintes do ar inspirado, notavelmente o O2. Em consequência, para evitar a hipoxemia, a fração mais alta que pode ser administrada com segurança em condições ao nível do mar é de 75% do ar inspirado. O uso do N2O em locais acima do nível do mar exige uma concentração mais baixa para assegurar a PIO2. O óxido nitroso tem menos valor no manejo anestésico de animais do que nos seres humanos, visto que a potência anestésica do N2O na maioria dos animais estudados é

apenas cerca da metade (ou menos) daquela observada nos seres humanos (p. ex., a CAM no cão é de cerca de 200% versus cerca de 100% nos seres humanos; ver Tabela 16.7A).10,283 Por conseguinte, o valor do N2O na prática clínica veterinária consiste em anestésico adjuvante, isto é, que acompanha outros fármacos inalatórios ou injetáveis. Como os efeitos do N2O sobre a função dos órgãos vitais (incluindo os sistemas cardiovascular e respiratório) na ausência de hipoxemia são pequenos na maioria dos animais, obtém-se algum benefício ao possibilitar uma certa redução na quantidade dos agentes anestésicos inalatórios ou injetáveis primários mais potentes.

■ Farmacocinética A baixa solubilidade sanguínea do óxido nitroso (ver Tabela 16.2) é responsável pelo seu período hábil rápido. Embora não tenha a potência de produzir anestesia por si só, o óxido nitroso pode ser usado para acelerar a indução da anestesia inalatória em decorrência de seus próprios efeitos (apesar de limitados) no sistema nervoso central e, conforme já mencionado, também em consequência do aumento da captação de um anestésico volátil mais potente administrado concomitantemente, como o halotano, constituindo o “efeito do segundo gás”.10,19,340,341 Quando se administra uma alta concentração de N2O concomitantemente em uma mistura com um agente inalatório (p. ex., N2O mais halotano), a concentração alveolar do anestésico administrado simultaneamente (halotano) aumenta com mais rapidez do que quando o “segundo” gás é administrado sem N2O. O efeito do segundo gás resulta de um aumento do volume inspiratório secundário ao grande volume de N2O captado340 e de um efeito de concentração sobre o segundo gás em um volume menor (e, portanto, aumento do gradiente de transferência para o sangue) em consequência da captação do grande volume de N2O.10,341 Os resultados de um estudo mais recente com desfluorano confirmaram os achados prévios sobre o efeito do segundo gás.342

■ Farmacodinâmica Conforme assinalado anteriormente, os efeitos do N2O sobre as funções cardiovascular e respiratória (além de reduzir a concentração de O2 inspirada) são pequenos, em comparação com aqueles de outros anestésicos inalatórios. O N2O deprime diretamente a função miocárdica, porém suas propriedades de estimulação simpática neutralizam parte da depressão direta (exercida por ele próprio, bem como por anestésicos voláteis administrados concomitantemente).283,343 Em consequência da ativação do sistema nervoso simpático, o N2O pode contribuir para um aumento desejável da pressão arterial280,344 ou uma incidência aumentada indesejável de arritmias cardíacas.345,346 Há evidências sugerindo que o seu uso contribui, em algumas circunstâncias, para a isquemia miocárdica.347-350 De modo geral, uma visão conservadora sobre o uso do N2O em relação a

respiração e circulação é que uma preocupação maior só se justifica em pacientes com função inicialmente comprometida.351,352 A exemplo de qualquer agente, é necessário considerar as suas vantagens e desvantagens com base em cada paciente. O óxido nitroso exerce pouco ou nenhum efeito sobre as funções hepática e renal.353-355 Embora haja evidências de uma interferência induzida pelo N2O na produção de eritrócitos e leucócitos pela medula óssea, o risco de resultados adversos em um indivíduo exposto na maioria das condições clínicas veterinárias é pequeno ou nulo.354,356 Entretanto, a exposição prolongada ao N2O provoca hematopoese megaloblástica e polineuropatia. Os pacientes gravemente enfermos podem apresentar uma sensibilidade aumentada a essas toxicidades. Os problemas resultam da inativação induzida pelo N2O da enzima metionina sintase dependente de vitamina B12, uma enzima que controla as inter-relações do metabolismo da vitamina B12 e do ácido fólico.357 Embora ocasionalmente um paciente possa desenvolver sinais sugestivos de deficiência de B12 e de ácido fólico depois de uma técnica anestésica incluindo o uso de N2O, trata-se de um evento raro em pacientes tanto humanos quanto animais.354,358 A exposição ocupacional ou por abuso prolongado ao N2O pode ser igualmente prejudicial e deve ser considerada nos planos de manejo na prática veterinária.33,354,359,360 O óxido nitroso é eliminado com rapidez e principalmente no ar exalado. A extensão da biotransformaçâo (até N2 molecular) é muito pequena e realizada principalmente pela flora intestinal (ver Tabela 16.6).33,361,362

■ Transferência do N2O para espaços gasosos fechados Existem ou podem existir espaços gasosos no corpo em uma variedade de condições. Por exemplo, observa-se normalmente a presença de gás no estômago e nos intestinos. O intestino representa um reservatório dinâmico; o gás nele contido é livremente deslocado para dentro ou para fora, de acordo com as leis de difusão. Os gases no intestino originamse do ar deglutido, da produção normal por processos bacterianos, das reações químicas e da difusão a partir do sangue. Existe uma acentuada variabilidade tanto na composição quanto no volume dos gases do estômago e do intestino (p. ex., herbívoros versus carnívoros). Existem outras cavidades naturais de ar, como os seios aéreos e a orelha média, e, ainda, há circunstâncias nas quais o ar pode ser introduzido de modo eletivo ou inadvertido como parte de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos (p. ex., pneumoencefalografia, pneumocistografia, endoscopia, embolia gasosa vascular etc.). Surgem problemas potenciais associados aos espaços gasosos quando se administra a um animal respirando ar uma mistura de gases contendo pressão parcial elevada de N2O.10,19 O nitrogênio (N2) constitui o principal componente do ar (80%) e da maioria dos espaços gasosos no corpo (o metano, o CO2 e o hidrogênio também são encontrados em quantidades variáveis no intestino). Quando o N2O é introduzido no ar inspirado, um

reequilíbrio dos gases no espaço gasoso começa com a rápida entrada de N2O e a saída lenta de N2. Isto é, em virtude de sua maior solubilidade no sangue, o volume de N2O que pode ser transportado até um espaço gasoso fechado é muitas vezes o volume de N2 que pode ser retirado.10 Por exemplo, o coeficiente de partição sangue/gás do N2O é de 0,47 (ver Tabela 16.2), ao passo que o do N2 é de cerca de 0,015.363 Por conseguinte, o N2O é mais de 30 vezes mais solúvel no sangue do que o N2 (0,47/0,015). O resultado da transferência efetiva de gás para o espaço gasoso pode se manifestar como aumento de volume, conforme observado no intestino,364,365 pneumotórax365 ou embolia sanguínea,366,367 elevação da pressão (p. ex., orelha média,368,369 pneumoencefalografia370) ou ambos (quando o limite de distensão do espaço complacente é alcançado). Em geral, utiliza-se ar para inflar o manguito de um tubo endotraqueal. Esse manguito representa outro espaço gasoso fechado e relativamente complacente. De modo semelhante, o óxido nitroso também irá expandir esse espaço gasoso, podendo aumentar a pressão exercida sobre a parede da traqueia.371-373

■ Hipóxia de difusão Outro aspecto a ser considerado no movimento diferencial do N2O e do N2 ocorre no final da anestesia, quando o N2O é interrompido. Devido ao grande volume de N2O armazenado no corpo durante a anestesia e a troca desigual de N2O por N2, pode ocorrer uma deficiência na oxigenação do sangue no final da anestesia, se o N2O for substituído abruptamente por ar. Conforme discutido anteriormente neste capítulo, essa condição é designada como hipóxia de difusão.36,37 A rápida difusão do N2O do sangue para os pulmões resulta em uma diminuição transitória, porém pronunciada da PO2 alveolar, com consequente redução da PaO2.

■ Interação com o monitoramento dos gases respiratórios O monitoramento de rotina do CO2 expirado é cada vez mais importante no centro cirúrgico dos hospitais veterinários. O óxido nitroso interfere na detecção acurada do CO2 em alguns equipamentos de monitoramento. Essa interação precisa ser considerada em decisões relativas à compra do equipamento e ao plano geral de manejo anestésico. Um resumo mais completo das vantagens e desvantagens do uso do N2O pode ser encontrado em outras fontes.19 Dispõe-se também de um breve resumo das considerações práticas do uso do N2O na prática veterinária.374,375

Anestésicos inalatórios residuais ■ Exposição ocupacional | Concentrações residuais de

anestésicos inalatórios A equipe do centro cirúrgico frequentemente fica exposta a baixas concentrações de anestésicos inalatórios. A contaminação do ar ambiente ocorre por meio de enchimento do vaporizador, vazamentos conhecidos e não conhecidos no circuito respiratório e derramamento acidental do líquido anestésico. Outra fonte de exposição a gases anestésicos é a desconexão do paciente do aparelho de anestesia no final de um procedimento sem antes limpar o sistema com gás sem anestésico e permitindo que o paciente expire no aparelho por vários minutos. Existem quantidades mensuráveis de gases e vapores anestésicos no ar do centro cirúrgico em uma variedade de condições.376-383 Os profissionais que compõem a equipe inalam e, conforme demonstrado em vários estudos, mantêm esses agentes por algum tempo.384,385 A velocidade lenta de eliminação de alguns vapores (particularmente os agentes mais solúveis no sangue, como o halotano) possibilita o acúmulo de quantidades residuais retidas de anestésico de um dia para o outro. Os estudos epidemiológicos de seres humanos e os estudos laboratoriais em animais levantaram uma certa preocupação, visto que sugeriram que a exposição crônica a níveis residuais de anestésicos pode representar uma ameaça à saúde. A possibilidade de que a exposição crônica a baixos níveis de agentes anestésicos constitua um perigo para o profissional da área de saúde despertou e manteve o interesse mundial desde o início da década de 1970. Particularmente preocupantes são os relatos de que os anestésicos inalatórios possuem potencial mutagênico, carcinogênico ou teratogênico. Dependendo do momento na vida em que ocorre a exposição, existe a preocupação de que esses mecanismos subjacentes possam resultar, por sua vez, em uma incidência aumentada de morte fetal, aborto espontâneo, defeitos de nascimento ou câncer em profissionais expostos.386-388 Todavia, até o momento, não foi demonstrado nenhum efeito genotóxico da exposição a longo ou a curto prazo aos anestésicos inalatórios em seres humanos, e “…a conclusão a partir de estudos tanto em animais quanto em seres humanos é a de que não existe nenhum risco carcinogênico em decorrência da exposição aos anestésicos inalatórios atualmente usados”.33 Embora os dados reunidos até o momento, particularmente relacionados com os efeitos sobre a reprodução humana, permaneçam equívocos, não existe uma relação de causaefeito sólida entre a exposição crônica a níveis residuais de anestésicos e problemas de saúde humana. Embora o risco de exposição a longo prazo a concentrações residuais de anestésicos para os que trabalham nas condições do centro cirúrgico pareça ser mínimo, as evidências atuais são sugestivas o suficiente para causar preocupação e incentivar práticas para reduzir a contaminação dos profissionais do centro cirúrgico por agentes anestésicos. De fato, nos EUA, existem três órgãos federais relacionados com os possíveis riscos associados à exposição a gases anestésicos residuais: o National Institute for Occupational

Safety and Health (NIOSH), um órgão do Department of Health, Education and Welfare, a Occupational Safety and Health Administration (OSHA), um órgão do Department of Labor, e a Food and Drug Administration (FDA). Os níveis de exposição recomendados e publicados pelo NIOSH são de 2,0 partes por milhão (ppm) para agentes voláteis e 25 ppm para o N2O.386 Nesse aspecto, dispõe-se de métodos baratos para reduzir e controlar a exposição dos profissionais no centro cirúrgico a anestésicos, e esses métodos devem ser utilizados (Boxe 16.2). Com efeito, o vazamento de agentes anestésicos inalatórios no ambiente do centro cirúrgico foi reduzido significativamente desde a década de 1970 com a introdução disseminada de sistemas de exaustão para o equipamento de administração de anestésicos. Entretanto, com a exceção dos sistemas adsorventes de anestésicos, a maioria dos sistemas utilizados deposita os gases residuais diretamente e de modo inalterado na atmosfera. O monitoramento frequente dos níveis excessivos de gases/vapores anestésicos é de valor evidente e é incentivado em circunstâncias especializadas e/ou ambientes de alta utilização. Provavelmente o maior impacto irá resultar da educação do pessoal acerca do problema potencial dos gases anestésicos residuais e métodos de controle dos níveis de exposição.386-389 Para mais informações sobre esse assunto, os leitores podem consultar um relatório mais completo dos atuais conhecimentos e conclusões a partir dos dados disponíveis que foram desenvolvidos pela American Society of Anesthesiologists (ASA) Task Force on Trace Anesthetic Gases do ASA Committee on Occupational Health of Operating Room Personnel.390 Comentários e recomendações sobre o controle dos gases anestésicos residuais no local de trabalho de clínicas veterinárias também foram articulados pelo American College of Veterinary Anesthesiology and Analgesia (www.acvaa.org/docs/2013_ACVAA_Waste_Anesthetic_Gas_Recommendations.pdf).391 Embora a exposição dos profissionais e funcionários durante o preparo e a limpeza do equipamento anestésico, os procedimentos de indução com anestésicos inalatórios e durante o trabalho com equipamento anestésico passível de vazamento seja mais notável, o período de recuperação pós-anestésica não deixa de causar também preocupação. A equipe de cuidados pós-anestésicos no ambiente de hospitais humanos também fica exposta a gases eliminados dos pacientes. Estudos de situações de cuidados pós-anestésicos em seres humanos relataram concentrações de anestésicos voláteis que, em alguns casos, aproximam-se dos limites de exposição máxima recomendados pelo NIOSH.392,393 Sem dúvida alguma, existem circunstâncias semelhantes em medicina veterinária, particularmente nos hospitais (para pequenos animais e animais de grande porte) com grandes necessidades diárias de anestesia inalatória. Por exemplo, os cavalos que se recuperam da anestesia inalatória em um recinto relativamente pequeno com troca limitada de ar fresco por unidade de tempo provavelmente podem elevar consideravelmente a

concentração de anestésico inalatório exalado, e, nesses casos, essas concentrações provavelmente se aproximem ou, talvez, excedam as quantidades máximas recomendadas pela OSHA. Boxe 16.2 Métodos para reduzir a exposição ocupacional a anestésicos inalatórios no centro cirúrgico. 1 2

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Orientar as pessoas que compõem a equipe. Usar um sistema de exaustão de gases residuais para coletar o gás a partir da válvula de escape (pop-off) do circuito respiratório e ventilador. Realizar inspeção e manutenção regulares para detectar e consertar vazamentos nos aparelhos de anestesia e circuitos respiratórios, abastecimento de gás (N2O) etc. Alterar as práticas de trabalho (p. ex., reduzir ao máximo os vazamentos ao redor da máscara facial, desligar o vaporizador/fluxo de gás fresco quando o circuito respiratório não estiver conectado ao paciente).

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Ventilar adequadamente os centros cirúrgicos e as áreas de recuperação.

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Monitorar os níveis residuais de gases anestésicos no centro cirúrgico.

■ Implicações ambientais dos anestésicos inalatórios Pesquisas e comentários acerca do impacto (ou da falta de impacto) dos modernos gases e vapores anestésicos gerais sobre o ambiente têm ocorrido continuamente na literatura médica desde que começaram a ser publicamente divulgadas preocupações sobre a destruição do ozônio estratosférico por compostos orgânicos halogenados artificiais produzidos pelo homem394,395 e sobre as contribuições biomédicas de concentrações exponencialmente crescentes de N2O e outros “gases do efeito estufa” para a atmosfera global.396 Antes de prosseguir com os gases anestésicos, parece conveniente fazer uma breve análise dos aspectos importantes da ciência atmosférica. A Terra é circundada por uma atmosfera que gradualmente tem a sua composição modificada (por meio de difusão molecular) com a altitude. As duas camadas mais internas da atmosfera importantes para a vida são a troposfera mais interna (mais próxima da superfície terrestre) (com limite superior de 8 a 16 quilômetros acima da superfície terrestre) e a estratosfera, a mais externa dessas duas camadas (que alcança até 48 quilômetros acima da superfície terrestre). As circunstâncias associadas às camadas mais externas de nosso ambiente, a mesosfera, a termosfera e a exosfera, não são importantes para a presente discussão. A vida sobre a

Terra depende da energia solar. Dos raios solares que finalmente alcançam a superfície terrestre, alguns são novamente refletidos para cima, na forma de radiação infravermelha. A emissão da radiação infravermelha no espaço constitui um importante mecanismo pelo qual a temperatura da Terra é regulada, isto é, o calor produzido pela radiação infravermelha é absorvido pelos “gases do efeito estufa”, como vapor d’água, dióxido de carbono, ozônio, metano e outros gases, o que, por sua vez, diminui o escape de energia da troposfera e, portanto, regula as condições climáticas ao reter o calor. Por conseguinte, o efeito estufa representa um pré-requisito ambiental essencial para a vida na Terra, visto que, sem ele, as condições na Terra seriam demasiado frias para sustentar o ecossistema que conhecemos. A adição (quantitativa e qualitativa) a gases do efeito estufa distorce e acelera o processo natural e resulta em uma quantidade desses gases na atmosfera maior do que o necessário para regular e manter uma temperatura ideal na Terra; o aquecimento global constitui uma consequência. A outra camada importante nessa discussão, a camada de ozônio da estratosfera, protege a superfície da Terra da radiação ultravioleta (UV) prejudicial do sol. Os principais efeitos atmosféricos que resultam da emissão de anestésicos inalatórios consistem em sua contribuição para a depleção de ozônio na estratosfera e para o aquecimento estufa na troposfera. Sabe-se que a camada de ozônio da estratosfera é destruída pelo rápido uso global e disseminado e presença atmosférica subsequente de compostos organoclorados e contendo bromo (clorofluorcarbonos; CFCs) voláteis, sintéticos e de longa vida. Com efeito, o reconhecimento da depleção do ozônio por CFCs foi um dos graves problemas ambientais do século 20 e certamente continuará sendo um importante problema durante o século 21. Os CFCs que causaram grande parte da preocupação mundial original sobre a destruição da camada de ozônio eram aqueles usados em refrigerantes, propelentes de aerossóis, soluções de limpeza e agentes espumantes.397,398 Por serem compostos halogenados, todos os anestésicos voláteis modernos são, em teoria, potencialmente destrutivos para camada de ozônio.399-401 Todavia, apenas o halotano que contém cloreto, de fato, e, em grau muito menor, o isofluorano constituem objeto de preocupação nesse aspecto (as substâncias que só contêm flúor não prejudicam a camada de ozônio). Além disso, a contribuição relativa desses dois agentes voláteis foi estimada, no máximo, em apenas 0,01% da liberação global anual de CFCs,399 de modo que o seu impacto resultante na depleção de ozônio é comparativamente pequeno.401,402 Historicamente, os CFCs têm sido considerados como as substâncias dominantes causadoras de depleção do ozônio, porém o N2O compartilha muitas semelhanças com os CFCs, e a emissão de N2O foi destacada como “…a única emissão mais importante na depleção de ozônio que, segundo expectativas, continuará sendo a maior em todo o século 21...”.403 Os anestésicos inalatórios, incluindo o N2O, não são controlados pelo Protocolo

de Montreal sobre Substâncias que Empobrecem a Camada de Ozônio de 1987 (o Protocolo de Montreal da Convenção de Viena para Proteção da Camada de Ozônio é um tratado internacional destinado a proteger a camada de ozônio, ratificado por 197 Estados).404 Embora a magnitude do impacto do halotano e do isofluorano na estratosfera seja controversa, há uma preocupação crescente de que, como resultado da efetividade do Protocolo de Montreal e esforços associados para a diminuição global dos CFC, a influência dos anestésicos voláteis sobre a depleção de ozônio esteja se tornando proporcionalmente mais importante.401 Conforme assinalado anteriormente, tanto o N2O quanto os agentes voláteis afetam o aquecimento global. O impacto dos agentes voláteis é pequeno em relação aos gases que têm uma contribuição muito maior, como CO2, metano etc., de modo que a discussão atual está mais relacionada com o seu estado potencial.401,402,405-408 Por exemplo, em sua avaliação recentemente publicada do impacto dos gases anestésicos gerais sobre o clima global, Sulbaek Andersen et al.402 estimaram que “os anestésicos inalatórios liberados durante os aproximadamente 200 milhões de procedimentos anestésicos realizados no mundo inteiro a cada ano possuem um impacto global no clima que é de aproximadamente 0,01%… daquele do CO2 liberado da combustão global de combustíveis fósseis”. De qualquer modo, a maior parte do impacto dos anestésicos inalatórios deve-se ao desfluorano, que possui o maior efeito de retenção de calor entre os anestésicos inalatórios,405,406,409,410 e o N2O, que é liberado em maiores quantidades na atmosfera.397,399,400,402,405,410 Em uma tentativa de fornecer um quadro comparativo atual, Ryan e Nielsen405 assinalam que a cada hora, e tendo em vista uma emissão média de 398 g de CO2/milha de estrada rodada nos EUA, “…o uso do desfluorano equivale a dirigir 235 a 470 milhas por hora de uso de anestésico, enquanto o sevofluorano e o isofluorano correspondem a dirigir 18 e 20 a 40 milhas por hora de uso de anestésico, respectivamente”.

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Introdução Farmacologia Mecanismo de ação molecular Mecanismo de bloqueio do tecido neural Estrutura química Propriedades físico-químicas Farmacologia clínica Farmacocinética Misturas de anestésicos locais Taquifilaxia Fármacos específicos e usos clínicos Aminoésteres Aminoamidas Efeitos adversos Toxicidade sistêmica Toxicidade local Metemoglobinemia Toxicose (ingestão oral) Reações alérgicas Referências bibliográficas

Introdução Os anestésicos locais bloqueiam reversivelmente a geração e a propagação dos impulsos

elétricos nos nervos, causando, assim, bloqueio sensorial e motor. Seu uso data do final da década de 1880, quando a cocaína foi utilizada pela primeira vez para procedimentos oftalmológicos por Carl Köller e Sigmund Freud. Entretanto, a cocaína demonstrou ser altamente tóxica e aditiva. Desde então, foram desenvolvidos novos agentes com perfil farmacológico melhor e menor potencial de toxicidade sistêmica. Atualmente, os anestésicos locais são amplamente usados para técnicas de anestesia local e regional. Essas técnicas provocam dessensibilização de uma área localizada do corpo, o que possibilita a realização de procedimentos cirúrgicos com o animal consciente. Como alternativa, essas técnicas podem ser usadas no animal anestesiado, uma vez que elas diminuem a necessidade de anestésicos gerais e promovem maior estabilidade cardiorrespiratória. A analgesia sustentada quando se administra um anestésico local de ação longa também benéfica no período de recuperação. Além disso, a lidocaína, um anestésico local, também pode ser administrada por via sistêmica para uma variedade de indicações, incluindo tratamento das arritmias ventriculares, aumento da motilidade intestinal, redução das necessidades de anestésico local e analgesia.

Farmacologia ■ Mecanismo de ação molecular Os anestésicos locais são considerados principalmente como bloqueadores dos canais iônicos, atuando, em grande parte, nos canais de Na+ controlados por voltagem. Entretanto, esses agentes também bloqueiam os canais de K+ e Ca2+ dependentes de voltagem, embora com menor afinidade.1-5 Alguns estudos também sugerem que os anestésicos locais atuem sobre sítios intracelulares envolvidos na transdução de sinais de receptores acoplados à proteína G.6 Sua variedade de alvos moleculares pode explicar alguns dos efeitos adversos e tóxicos produzidos por esse grupo de fármacos em vários sistemas orgânicos. O mecanismo de ação mais importante que leva à anestesia local envolve o bloqueio das correntes de entrada de Na+ através dos canais de Na+ controlados por voltagem, impedindo, assim, a despolarização da membrana e a excitação e condução nervosas.7 O canal de Na+ é um complexo multimolecular com uma grande subunidade α composta de quase 2.000 aminoácidos, que atravessa várias vezes a membrana celular. Essa subunidade forma o poro e o aparelho de comporta do canal.7 Algumas subunidades β auxiliares menores influenciam os estados de ativação e inativação do canal.8 A subunidade α consiste em quatro domínios (DI a DIV), contendo, cada um deles, seis segmentos helicoidais (S1 a S6). O sítio de ligação dos anestésicos locais e dos fármacos antiarrítmicos e anticonvulsivantes localiza-se no segmento S6 do DIV da subunidade α.8

Parece que esse sítio de ligação está localizado no poro do canal de Na+ e, portanto, só é acessível pelo lado intracelular.9 O canal é um conduto controlado para íons Na+ e existe em três diferentes estados: em repouso (fechado), aberto e inativado (Figura 17.1), dependendo do potencial de membrana e do tempo. No potencial de repouso da membrana, o canal encontra-se predominantemente em seu estado de repouso. Durante a despolarização, ocorre abertura do canal para possibilitar a passagem de íons Na+, e, depois de alguns milissegundos, o canal fecha-se espontaneamente em um estado inativado para possibilitar a repolarização da membrana. Após a repolarização, o canal retorna ao estado de repouso.8,10 Há evidências de que os anestésicos locais possam interagir com a membrana lipídica, alterando a sua fluidez, causando expansão da membrana e, portanto, reduzindo a condutância do Na+;11 entretanto, isso não explica por completo o mecanismo de ação dos modernos anestésicos locais utilizados clinicamente. De acordo com a “hipótese do receptor modulado”, os anestésicos locais apresentam alta afinidade de ligação para o canal de Na+ nos estados aberto e inativado, porém baixa afinidade para o estado de repouso.7,12 Acredita-se que os fármacos lipossolúveis entrem e saiam do receptor por meio de uma região hidrofóbica da membrana, enquanto os fármacos com menor lipossolubilidade e com carga passam por uma região hidrofílica (o poro interno do canal).12 A via hidrofílica só está aberta quando as comportas do canal estão abertas, o que provoca ligação cumulativa dos anestésicos locais ao canal de Na+ quando os canais estão ativos. A “hipótese do receptor protegido” propõe que o receptor para anestésicos locais está localizado dentro do canal, e que o fármaco se liga a esse receptor com afinidade constante.13 O acesso ao receptor é regulado pelas comportas do canal, e, por conseguinte, o canal precisa estar aberto para que o receptor seja acessível ao anestésico local. O aumento da frequência de estimulação aumenta o número de canais de Na+ nos estados aberto e inativo, o que aumenta a ligação dos anestésicos locais.

Figura 17.1 O canal de Na+ tem duas comportas: uma comporta de ativação (“sensor de voltagem”) e uma comporta de inativação. No potencial de repouso da membrana, o canal encontra-se em seu estado de repouso (fechado). A despolarização da membrana é “percebida” pelo sensor de voltagem, e o canal se abre, possibilitando o fluxo de íons Na+ para dentro da célula. Em 1 a 2 ms, a comporta de inativação fecha-se de modo automático (canal inativado), possibilitando a ocorrência de repolarização. A repolarização leva a mudanças de conformação, com fechamento da comporta de ativação e abertura da comporta de inativação em 2 a 5 ms (= período refratário). Após a repolarização, o canal encontra-se novamente no estado de repouso.

Ambas as hipóteses explicam a propriedade dos anestésicos locais de aminas terciárias pela qual a profundidade do bloqueio aumenta com a despolarização repetitiva da membrana, o que foi denominado “bloqueio dependente do uso” ou “bloqueio de fase”.14,15

Por outro lado, o bloqueio obtido em nervos não estimulados é constante, sendo denominado “bloqueio tônico”.14,15

■ Mecanismo de bloqueio do tecido neural Os anestésicos locais exibem um padrão diferencial de bloqueio sensitivo e motor, que pode ser observado clinicamente quando aplicados a nervos periféricos e neuroeixo central.16,17 Em primeiro lugar, ocorre vasodilatação, seguida de perda da sensação de temperatura, dor aguda, tosse leve e, por fim, perda da atividade motora (Tabela 17.1).18 Essa propriedade é denominada “bloqueio diferencial” e foi descrita pela primeira vez por Gasser e Erlanger, em 1929, quando ambos observaram que, nas fibras A mielinizadas, a cocaína reduzia os potenciais de ação compostos das fibras mais lentas e menores mais rapidamente do que das fibras mais rápidas e maiores.19 Entretanto, esse bloqueio diferencial in vivo não pode ser simplesmente explicado pelo tamanho da fibra, porém é influenciado por numerosos fatores, incluindo o tipo de fibra (tamanho e mielinização), a frequência de estimulação, a extensão do nervo exposta ao anestésico local e a escolha e concentração do agente anestésico local. A princípio, foi formulada a hipótese de que o bloqueio diferencial produzido por anestésicos locais quando aplicados a nervos periféricos era devido a maior suscetibilidade das pequenas fibras C não mielinizadas, em comparação com as fibras A mielinizadas maiores. Entretanto, estudos in vitro20 e in vivo14,21 mostraram que a suscetibilidade das fibras A ao bloqueio de fase e tônico é, na realidade, maior que a das fibras C, sendo a ordem de bloqueio das mais rápidas para as mais lentas de Aγ > Aδ = Aα >Aβ > C. Isso sugere que os déficits motores e proprioceptivos devem ocorrer antes da perda da nocicepção, porém isso é o oposto do que se observa clinicamente. As características anatômicas, como mielinização, também podem explicar algumas diferenças observadas na suscetibilidade, visto que a mielina pode efetivamente reunir moléculas de anestésico próximo à membrana axônica.22 Estudos experimentais verificaram que as fibras não mielinizadas são menos sensíveis à lidocaína do que as fibras mielinizadas.23 Isso é contrário às observações clínicas de bloqueio diferencial, que se manifesta pela perda da sensação mediada por fibras pequenas (p. ex., temperatura) dois ou mais dermátomos além do limite sensorial para as sensações mediadas pelas grandes fibras. O comprimento do nervo exposto ao anestésico local pode explicar, em parte, o bloqueio diferencial in vivo, visto que as fibras menores necessitam de uma extensão mais curta de exposição do que as fibras maiores para que ocorra bloqueio.24 Isso foi denominado “distância crítica” para o bloqueio completo de condução que, nas fibras mielinizadas, corresponde a três ou mais nós de Ranvier.25 Por conseguinte, as fibras maiores com maiores distâncias internodais são menos suscetíveis ao bloqueio dos

anestésicos locais. Tabela 17.1 Classificação das fibras nervosas e ordem de bloqueio. Classificação

Diâmetro Mielina

Condução (m/s) Localização Aferente/eferente

A-α

15 a 20

+++

30 a 120

para músculos e articulações

A-β

5 a 15

++

30 a 70

Função

Motora e propriocepção

Ordem de bloqueio

5

Eferente para o músculo

Função Nervo sensitivo aferente

motora e sensorial

4

(toque e pressão)

A-γ

A-δ

B

3a6

2a5

1a3

++

+

+

15 a 35

5 a 25

3 a 15

Eferente para o fuso muscular

Nervo sensitivo aferente

Tônus muscular

3

Dor (rápida), tosse,

2

temperatura

Simpática pré-

Função

ganglionar

autônoma

1

Função C

0,4 a 1,5



0,7 a 1,3

Simpática pós-

autônoma, dor

ganglionar

(lenta),

2

temperatura

Adaptada das referências 15 e 36. Outro mecanismo importante do bloqueio pelos anestésicos locais é o fenômeno de condução decremental, que descreve a capacidade diminuída de propagação do impulso

dos nós de Ranvier sucessivos na presença de um anestésico local.26 Esse princípio explica por que a propagação de um impulso pode ser interrompida mesmo quando nenhum dos nós se torna totalmente inexcitável,25 conforme observado, por exemplo, com baixas concentrações dos anestésicos locais. As concentrações de anestésico local que bloqueiam 74 a 84% da condutância do sódio em nós sucessivos provocam uma diminuição progressiva na amplitude do impulso, até finalmente declinar abaixo do limiar.25 Concentrações mais altas que bloqueiam mais de 84% da condutância do sódio em três nós consecutivos irão impedir por completo a propagação do impulso.25 Isso explica por que bloqueios de maior grau e duração resultam da injeção de soluções em pequeno volume/alta concentração versus soluções de grande volume/baixa concentração, apesar da mesma dose total do fármaco.27 Alguns autores sugerem que grande parte da informação sensorial transmitida por nervos periféricos é transportada por meio de codificação de sinais elétricos em póspotenciais e pós-oscilações.28 Concentrações de sub-bloqueio de anestésicos locais podem suprimir esses pós-efeitos oscilatórios intrínsecos da descarga de impulsos, sem afetar significativamente a condução do potencial de ação.29 Por conseguinte, outro mecanismo possível de bloqueio da função nervosa, particularmente com baixas concentrações de anestésicos locais, consiste na ruptura de codificação da informação elétrica.15 Quando se administram anestésicos locais no neuroeixo central (por via epidural ou intratecal) ou por via sistêmica, eles possuem outros mecanismos de ação analgésica na medula espinal, além daqueles anteriormente discutidos. Os anestésicos locais inibem outros canais iônicos, como os canais de K+ ou Ca2+ no corno dorsal da medula espinal. Isso pode afetar o neuroprocessamento central da informação sensorial, contribuindo, assim, para os efeitos antinociceptivos.30-32 Além dos canais iônicos, a transmissão nociceptiva é mediada por vários neurotransmissores no corno dorsal, como as taquicininas (p. ex., substância P). Foi demonstrado que os anestésicos locais inibem a ligação da substância P e aumentos evocados do Ca2+ intracelular.33 Além disso, os anestésicos locais também inibem a transmissão glutamatérgica nos neurônios do corno dorsal da medula espinal, reduzindo as despolarizações pós-sinápticas mediadas por N-metil-D-aspartato (NMDA) e neurocinina.34,35 Quando o alvo consiste em troncos nervosos ou grandes nervos (p. ex., plexo braquial), o arranjo somatossensorial das fibras nervosas também afeta a progressão do bloqueio (Figura 17.2).36

■ Estrutura química Os anestésicos locais clinicamente úteis são compostos de um anel benzeno lipofílico, com diferentes substituições (anel aromático) e um grupamento amina hidrofílico (amina

terciária ou quaternária), que estão ligados por meio de uma cadeia intermediária, que consiste em éster ou amida. Dependendo do tipo de ligação, os anestésicos locais são classificados como aminoésteres que são hidrolisados pelas colinesterases plasmáticas, ou aminoamidas, que são metabolizadas pelo fígado.

■ Propriedades físico-químicas As propriedades físico-químicas que influenciam a atividade dos anestésicos locais incluem peso molecular, pKa, lipossolubilidade e grau de ligação às proteínas (Tabela 17.2).37,38

Figura 17.2 As fibras nervosas no feixe do manto ou periférico inervam principalmente fibras motoras da parte proximal do membro, enquanto as fibras nervosas no feixe central inervam principalmente as fibras sensitivas do pé. Por conseguinte, o gradiente de concentração que se desenvolve durante a difusão inicial do anestésico local dentro do tronco nervoso faz com que o início da anestesia prossiga de seu local proximal em direção distal. A recuperação da anestesia também ocorre de sua localização proximal para distal, devido à absorção do

anestésico local na circulação em torno do tronco nervoso. Fonte: Adaptada da referência 36. Tabela 17.2 Propriedades físico-químicas e potências relativas dos anestésicos locais clinicamente usados. Potência

% Anestésico local

pKaa

ionizada (em pH de

% de Lipossolubilidadeb ligação às proteínas

7,4)

Potência

relativa

anestésica para relativac

toxicidade

Razão CV:SNCe

do SNCd

Ligação éster Potência baixa, duração curta Procaína

8,89

97

100

6

1

0,3

3,7

Cloroprocaína

9,06

95

810

7

1

0,3

3,7

8,38

93

5.822

94

8

2

ND

Lidocaína

7,77

76

366

64

2

1

7,1

Mepivacaína

7,72

61

130

77

2

1,4

7,1

Prilocaína

8,02

76

129

55

2

1,2

3,1

8,16

83

775

94

6

2,9

2

Potência alta, duração longa Tetracaína Ligação amida Potência e duração intermediária

Potência intermediária, duração longa Ropivacaína Potência alta, duração

longa

Bupivacaína

8,1

83

3.420

95

8

4

2

Levobupivacaína

8,1

83

3.420

> 97

8

2,9

2

Etidocaína

7,87

66

7.317

94

61

2

4,4

a

Medida com método espectrofotométrico a 36°C, exceto a prilocaína e ropivacaína medidas a 25°C.

b

Coeficientes de partição expressos como concentrações relativas (mol/ℓ) em octamol e tampão a 36°C, exceto a

prilocaína e a ropivacaína medidas a 25°C. c

Potência em relação à procaína.

d

Potência em relação à lidocaína.

e

Relação de toxicidade entre o sistema cardiovascular e o sistema nervoso central. CV denota o desaparecimento do

pulso, enquanto SNC denota o início das convulsões. Dados obtidos das referências 36, 38 e 40. ND = nenhum dado. O peso molecular dos anestésicos locais clinicamente utilizados é muito semelhante e varia entre 220 e 288 Da. Por conseguinte, o coeficiente de difusão não é significativamente afetado, e o peso molecular não parece constituir um importante fator na determinação de diferenças na atividade dos anestésicos locais.37 Entretanto, alterações do peso molecular em consequência de substituições alquil podem influenciar outras propriedades, como lipossolubilidade e pKa. Todos os anestésicos locais clinicamente úteis são bases fracas e, desse modo, ocorrem em equilíbrio entre a forma lipossolúvel, não ionizada e neutra (B) e a forma lipossolúvel e ionizada (com carga) (BH+). São formulados como soluções ácidas de sais de cloridrato (pH 4 a 7), que são mais altamente ionizadas e, portanto, hidrossolúveis. O receptor dos anestésicos locais parece estar situado no poro do canal de Na+, próximo ao citoplasma,9 e somente a forma ionizada com carga do anestésico local pode interagir com esse receptor.39 Todavia, o principal acesso dos anestésicos locais à célula consiste na penetração da forma neutra lipofílica através da membrana lipídica (Figura 17.3). A pKa de um fármaco é o pH em que as duas formas existem em quantidades iguais e é alcalino (pH > 7,4) para todos os anestésicos locais clinicamente usados. pKa = pH – log([B]/[BH+])

Quanto mais alta a pKa, maior o grau de ionização ou proporção do anestésico local na forma hidrofílica ionizada com carga em pH fisiológico (7,4), e mais lento o início de ação. Por outro lado, um anestésico local com pKa baixa terá maior proporção da forma lipossolúvel não ionizada em pH fisiológico e um início de ação mais rápido. A lipossolubilidade constitui o principal determinante da potência intrínseca do anestésico local e determina as concentrações clinicamente relevantes necessárias para produzir um bloqueio de condução efetivo.40-42 O aumento da lipossolubilidade facilita a penetração através das membranas lipídicas, acelerando potencialmente o início de ação; entretanto, os agentes altamente lipossolúveis também são sequestrados na mielina e em outros compartimentos lipídicos. Por conseguinte, o efeito final do aumento da solubilidade dos anestésicos locais consiste em seu início de ação tardio.43 Por outro lado, o sequestro do anestésico local na mielina e em outros compartimentos lipídicos cria um depósito para a liberação lenta do fármaco, aumentando a duração do efeito.43 O grau de ligação às proteínas também influencia a atividade dos anestésicos locais, visto que apenas a fração livre não ligada é farmacologicamente ativa. Maior ligação às proteínas está associada a maior duração de ação. Isso não pode ser explicado pela cinética de dissociação mais lenta do canal de Na+, e essa dissociação ocorre em segundos, independentemente do grau de ligação às proteínas.44 A maior duração de ação dos anestésicos locais com alta ligação às proteínas está provavelmente associada a outras proteínas de membrana ou extracelulares.45

Figura 17.3 Bicamada lipídica da membrana celular com o canal de Na+. Os anestésicos

locais existem na forma de base neutra (B) e na forma ionizada (BH+) em equilíbrio. A forma neutra é lipossolúvel e atravessa com facilidade a membrana celular. A forma ionizada é mais hidrossolúvel e pode atravessar o canal aberto. A forma neutra pode causar expansão da membrana e fechamento do canal de Na+. A forma ionizada interage com o seu receptor no lado intracelular do canal de Na+.

Os anestésicos locais clinicamente disponíveis consistem, em sua maioria, em misturas racêmicas dos enantiômeros R- e S-, em uma razão de 50:50. As exceções são a lidocaína, a procaína e a tetracaína, que são aquirais, e a levobupivacaína e a ropivacaína, que são os enantiômeros S puros ou levoisômeros.37,46 Embora ambos os enantiômeros tenham as mesmas propriedades físico-químicas, eles têm afinidades diferentes pelos canais iônicos de Na+, K+ e Ca2+, porém o enantiômero R apresenta maior potência in vitro e, portanto, maior eficácia terapêutica, bem como maior potencial de toxicidade sistêmica.47,48 O enantiômero S tem menor potencial de toxicidade nervosa e cardíaca, em comparação com o enantiômero R ou a mistura racêmica.49 Estudos in vitro caracterizaram as potências relativas dos agentes anestésicos locais, que dependem de suas propriedades físico-químicas (i. e., lipossolubilidade), mas também das fibras nervosas individuais e frequência de estimulação.50 Entretanto, as potências in vivo não se correlacionam necessariamente com os resultados dos estudos in vitro,51 por causa da complexa interação de fatores, incluindo local de administração, dose e volume dos anestésicos locais e outros fatores ambientais. Os anestésicos locais com grupamento amida, alto valor de pKa e menor lipossolubilidade exibem maior bloqueio diferencial, com bloqueio mais potente das fibras C do que das fibras A de condução rápida.43,52 Acredita-se que isso se deva à difusão mais lenta através das barreiras de permeabilidade existentes nas fibras A. A ordem relativa de taxa diferencial de bloqueio é: cloroprocaína > ropivacaína > bupivacaína, levobupivacaína > lidocaína > mepivacaína > etidocaína.53,54 Isso é particularmente verdadeiro em baixas concentrações, e a taxa diferencial de bloqueio tende a desaparecer à medida que aumentam as concentrações de anestésico local.

Farmacologia clínica ■ Farmacocinética Absorção O processamento dos anestésicos locais no corpo após a sua administração local é governado por vários fatores competitivos, incluindo fluxo de massa, difusão e ligação a estruturas neurais e não neurais e captação vascular (Figura 17.4). A velocidade e a

extensão da absorção sistêmica do anestésico local são importantes, visto que podem ser alcançadas concentrações plasmáticas tóxicas. Por conseguinte, os anestésicos locais com menor absorção sistêmica terão maior margem de segurança. A absorção sistêmica depende de vários fatores, incluindo o local de injeção (i. e., a vascularidade), a lipossolubilidade intrínseca e a vasoatividade do agente, a dose administrada, a presença de aditivos, como vasoconstritores, outros fatores da formulação que modificam a residência e liberação locais do fármaco, a influência do bloqueio nervoso na região (i. e., vasodilatação) e o estado fisiológico ou fisiopatológico do paciente.37 Em geral, as áreas com maior vascularidade terão uma absorção sistêmica mais extensa e mais rápida do que as áreas com mais gordura, independente do fármaco utilizado.15 As áreas com maior vascularidade apresentarão maior concentração plasmática máxima (Cmáx.) e tempo mais curto para alcançar a concentração plasmática máxima (Tmáx.). Em um estudo experimental realizado em suínos, a taxa de absorção da lidocaína após administração subcutânea foi mais alta na região peitoral, seguida da face e do pescoço, sendo mais lenta no abdome.55 Quanto a bloqueios específicos, o grau de absorção sistêmica é, por ordem decrescente: intercostal > epidural > plexo braquial > isquiático/femoral.56 Após a administração de lidocaína por meio de bloqueio nervoso em L invertido em vacas, a Cmáx. sérica foi de 572 ng/mℓ e ocorreu com Tmáx. de 0,52 h, enquanto a lidocaína por bloqueio epidural caudal foi indetectável no soro.57 A absorção sistêmica dos anestésicos locais é muito mais baixa após administração espinal (intratecal) do que epidural.58,59 Em condições normais, o maior risco de toxicidade sistêmica coincide com o Tmáx. no sangue arterial, que varia de 5 a 45 min após injeção, dependendo do local de bloqueio, velocidade da injeção e do fármaco injetado.37 Entretanto, o Tmáx. é independente da dose injetada.60 Maior velocidade de injeção está associada a maior valor de Cmáx. e, portanto, a um risco aumentado de toxicidade sistêmica.61 As propriedades físico-químicas dos anestésicos locais também irão influenciar a absorção sistêmica. Em geral, os fármacos com maior solubilidade e ligação às proteínas irão resultar em menor absorção sistêmica e Cmáx..37 Por conseguinte, os fármacos amídicos de ação mais curta, como a lidocaína e a mepivacaína, serão absorvidos mais prontamente na circulação sistêmica do que a bupivacaína, a ropivacaína e a levobupivacaína de ação longa, provavelmente devido à ligação destes últimos anestésicos a tecidos neurais e não neurais ricos em lipídios.15 Outro fator que influencia a taxa de absorção é a vasoatividade intrínseca do anestésico local. Os anestésicos locais clinicamente usados provocam, em sua maioria, vasodilatação quando aplicados localmente, com as exceções da ropivacaína e da levobupivacaína.62,63 A atividade vasoconstritora da ropivacaína e da levobupivacaína resulta em absorção mais lenta e, portanto, em Tmáx. mais prolongado.64,65

Figura 17.4 Processamento dos anestésicos locais no corpo após administração periférica.

A adição de um vasoconstritor, como a epinefrina, irá neutralizar os efeitos vasodilatadores inerentes da maioria dos agentes sobre a vascularidade local, retardando a sua absorção sistêmica. A hialuronidase é outro aditivo algumas vezes adicionado aos anestésicos locais para melhorar seus efeitos anestésicos, causando despolarização do ácido hialurônico intersticial, com consequente aumento da permeabilidade dos tecidos; todavia, ela também aumenta a absorção sistêmica e o risco de toxicidade sistêmica (ver seção sobre Aditivos mais adiante, neste capítulo). Algumas das novas formulações, como lipossomas carregados de anestésicos locais, microesferas polilácticas ou complexos de inclusão de ciclodextrina, entre outras, destinam-se a produzir uma liberação lenta do fármaco, proporcionando um depósito local do anestésico, que irá diminuir significativamente a absorção sistêmica e prolongar a duração do efeito do fármaco.60,66,67 Quando a lidocaína encapsulada em lipossomas foi administrada por via epidural a cães, a Cmáx. foi mais baixa, enquanto o Tmáx. e a duração do efeito (170 versus 61 min) foram significativamente mais longos, em comparação com a

lidocaína regular.66 Nos ovinos, a administração intercostal de microesferas de bupivacaína-dexametasona prolongou a duração do bloqueio em até 13 dias, e as concentrações plasmáticas permaneceram dez vezes abaixo da concentração produtora de convulsões.68 A lidocaína encapsulada em lipossomas também foi administrada por via tópica a gatos em uma dose de 15 mg/kg, que demonstrou ser segura, com Cmáx. bem abaixo dos níveis plasmáticos tóxicos para essa espécie.69 A administração de diferentes formulações de lidocaína de liberação lenta para bloqueio do nervo isquiático em modelos de dor pós-operatória em ratos produziu analgesia de 3 dias até 1 semana e inibiu o desenvolvimento de hiperalgesia.70,71 Distribuição Após a sua absorção na corrente sanguínea, os anestésicos locais derivados de aminoésteres sofrem rápida hidrólise pelas pseudocolinesterases plasmáticas, e a sua distribuição nos tecidos corporais é limitada. Os anestésicos locais derivados de aminoamidas distribuem-se amplamente nos diferentes órgãos e tecidos do corpo. O grau de distribuição e ligação nos tecidos é normalmente representado pelo parâmetro farmacocinético conhecido como volume aparente de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico (VdSS), que habitualmente é igualado pelo grau de ligação às proteínas.37 Apenas a fração livre e ativa do fármaco, e não a fração ligada às proteínas, determina a concentração tecidual e o grau de entrada do fármaco no sistema nervoso central.72 Os anestésicos locais de tipo amida ligam-se principalmente à α1-glicoproteína ácida (AAG) no plasma e, em menor grau, à albumina.73,74 Em cães, concentrações crescentes de AAG produziram aumento na concentração sérica total, porém redução da fração livre, do VdSS e da meia-vida de eliminação da lidocaína.72,75 Como a AAG é uma proteína de fase aguda, seus níveis circulantes estarão elevados durante o traumatismo, a cirurgia, o câncer ou qualquer estado inflamatório. Por conseguinte, embora a concentração total de anestésico local no plasma seja mais alta, refletindo o aumento da AAG, a fração do fármaco não ligado (ativo) permanecerá semelhante.37,76 Os anestésicos locais de tipo amida no sangue venoso sofrem captação pulmonar de primeira passagem, o que diminui efetivamente a concentração plasmática do fármaco de modo temporário.77,78 Em consequência, os pulmões são capazes de atenuar os efeitos tóxicos após injeções intravenosas acidentais de anestésicos locais. Em animais com shunt cardíaco da direita para esquerda, o efeito pulmonar de primeira passagem está ausente, e existe um risco aumentado de toxicidade. A captação de um anestésico local pelos pulmões depende, em grande parte, de suas propriedades físico-químicas, principalmente da lipossolubilidade e da pKa. Os agentes mais lipossolúveis sofrem maior captação pulmonar, enquanto aqueles com valores mais baixos de pKa apresentam maior fração da

forma base não ionizada, que é a forma que se acumula nos pulmões.79 A redução do pH sanguíneo (i. e., acidemia) diminui o grau de captação pulmonar dos anestésicos locais, o que pode contribuir para o aumento das concentrações plasmáticas e promover a toxicidade.77,79 A ordem de classificação da captação pulmonar em fatias de pulmão de rato foi: bupivacaína > etidocaína > lidocaína.79 Outros também encontraram maior captação de prilocaína em comparação com bupivacaína e mepivacaína no pulmão perfundido isolado de rato, com pouca evidência de metabolismo pulmonar.80 A captação pulmonar média de lidocaína após administração por via intravenosa a cães foi calculada em 63,6%.78 Há evidências de contribuição pulmonar para o metabolismo da lidocaína quando se utilizam microssomos pulmonares de rato in vitro.81 Após injeção de bolo intravenoso em coelhos, a captação pulmonar de levobupivacaína foi maior que a da ropivacaína (31% versus 23%).82 Os agentes anestésicos locais também se distribuem com rapidez e de maneira extensa no leite e no músculo, em concentrações proporcionais àquelas da corrente sanguínea. Os fármacos que sofrem difusão mais rápida no leite são aqueles que são relativamente lipofílicos, não ionizados, que não se ligam fortemente às proteínas e que apresentam baixo peso molecular.83 Após bloqueio nervoso em L invertido com 100 mℓ de lidocaína a 2% em vacas Holstein adultas, a Cmáx. da lidocaína no leite foi de 300 ng/mℓ, em comparação com a Cmáx. sérica de 572 ng/mℓ; o Tmáx. no leite foi de 1,75 h, em comparação como Tmáx. do soro de 0,52 h.57 O último tempo mensurável de detecção da lidocaína no leite foi de 32,5 h, com uma concentração média de 46 ng/mℓ.57 As atuais recomendações da Food Animal Residue Avoidance Database (FARAD) para o intervalo de segurança da lidocaína são de 24 h para carne e o leite, o que parece ser muito curto com base nesse estudo. Por outro lado, após a administração epidural caudal de 0,22 mg/kg de lidocaína, não foi constatada a presença de concentrações detectáveis do fármaco em qualquer amostra de soro ou de leite;57 por conseguinte, um intervalo de segurança de 24 h deve ser apropriado para essa via de administração e dose. Os anestésicos locais também atravessam a placenta e aparecem no feto após administração à fêmea prenhe. Os agentes anestésicos locais com ligação éster sofrem rápido metabolismo, e a sua transferência placentária é limitada.37 Os agentes anestésicos locais com ligação amida podem ser “sequestrados” em suas formas ionizadas no lado fetal mais acidótico da placenta, e, por conseguinte, observa-se um aumento de sua transferência efetiva através da placenta.84 Em ovelhas prenhes, à medida que o pH do sangue fetal diminuiu de 7,35 para 7,10, a razão feto-materna (F:M) da lidocaína aumentou de 0,76 para 1,21.84 Além do pH, o grau de ligação do anestésico local às proteínas plasmáticas tanto maternas quanto fetais também constitui um importante determinante da transferência placentária dos anestésicos locais, visto que apenas o fármaco livre não ligado atravessa a placenta.85 Como o conteúdo e a ligação da AAG no feto são menores que os da mãe,86 a

razão F:M dos anestésicos locais com alta ligação às proteínas, como a bupivacaína (F:M = 0,36), é menor que a dos fármacos com menor ligação às proteínas, como a lidocaína (F:M = 1).85,87 A transferência placentária da levobupivacaína e da ropivacaína assemelha-se àquela da bupivacaína em ovelhas prenhes.88 Um importante aspecto a ser considerado quando se escolhe um anestésico local na fêmea prenhe é a capacidade do recém-nascido de metabolizar e excretar o fármaco após o nascimento. Os estudos conduzidos em ovinos mostram que ocorre transferência da bupivacaína, mas não da lidocaína, do feto de volta à mãe.85,87 A lidocaína e seus metabólitos, a monoetilglicinaxilidida (MEGX) e a glicinaxilidida (GX), foram detectados na urina fetal em 1 a 2 h após a infusão intravenosa de lidocaína a ovelhas prenhes.85 Esses estudos sugerem que a lidocaína poderia constituir melhor opção para fêmeas prenhes, visto que o feto e o recém-nascido são incapazes de eliminar o fármaco com facilidade. Sugerem também que, se houver a probabilidade de ocorrerem altas concentrações plasmáticas do anestésico local no sangue materno (i. e., quando são utilizados grandes volumes para bloqueio local ou em caso de administração intravenosa inadvertida), seria benéfico adiar o parto no caso da bupivacaína, porém haveria nenhum benefício em fazê-lo no caso da lidocaína.85 Metabolismo Os anestésicos locais com ligação éster são depurados principalmente no sangue por pseudocolinesterases plasmáticas inespecíficas, onde sofrem hidrólise éster. As esterases presentes no fígado, nos eritrócitos e no líquido sinovial também contribuem para a depuração desses fármacos.89-91 Entre os agentes com ligação éster, a cloroprocaína é depurada mais rapidamente, em virtude de sua taxa de hidrólise mais rápida. As meiasvidas in vitro tendem a ser muito curtas no caso dos fármacos com ligação éster, variando de 11 s para a cloroprocaína no plasma humano92 até 9 e 12 s para a procaína no sangue total e no plasma de equinos, respectivamente,89 e até vários minutos para a tetracaína.37 Tipicamente, as meias-vidas terminais in vivo são mais longas, refletindo, provavelmente, a captação lenta do fármaco a partir do local de administração e/ou a sua ampla distribuição no corpo.37,93 A meia-vida terminal da procaína em equinos após administração intravenosa é de 50 min, com volume de distribuição aparente de 6,7 ℓ/kg.93 Os produtos de hidrólise da procaína, cloroprocaína e tetracaína parecem ser farmacologicamente inativos. A procaína e a benzocaína são hidrolisadas a ácido para-aminobenzoico (PABA), que, entretanto, pode causar reações alérgicas raras.37 A cocaína sofre hidrólise éster no plasma e no fígado, mas também N-desmetilação no fígado a norcocaína, que subsequentemente sofre hidrólise adicional.91 A cocaína raramente é usada em medicina veterinária, porém o seu uso ilegal em cavalos ou cães

antes de corridas para aumentar o desempenho e retardar o tempo de exaustão é possível.94 A procaína também exerce efeitos estimulantes sobre o sistema nervoso central, e seu uso é proibido em cavalos de corrida.93 Os anestésicos locais com ligação amida são quase exclusivamente metabolizados no fígado por enzimas microssomais (CYP450). As reações de Fase I envolvem hidroxilação N-desalquilação e N-desmetilação, seguidas das reações de Fase II, em que os metabólitos são conjugados com aminoácidos ou com glicuronídio, produzindo metabólitos menos ativos e inativos. Os valores de depuração diferem entre as espécies, porém a ordem de sequência de depuração é tipicamente é a seguinte: prilocaína > etidocaína > mepivacaína > ropivacaína > bupivacaína.37 Nos seres humanos, a prilocaína sofre depuração mais rápida, com valores de depuração do sangue que ultrapassam o fluxo sanguíneo hepático, indicando um metabolismo extra-hepático nessa espécie.37 A hidrólise da prilocaína produz a ortotoluidina (O-toluidina), um metabólito que oxida a hemoglobina a metemoglobina.95 A lidocaína sofre hidroxilação e N-desmetilação no fígado. Os dois princpais metabólitos da lidocaína são a monoetilglicinaxilidida (MEGX) e a glicinaxilidida (GX) em cães,96 coelhos,97 ratos,98 gatos,99 equinos,100,101 caprinos103 e frangos,103 porém esses metabólitos não foram detectados em vacas.104 Entre esses metabólitos, a MEGX, em particular, desempenha atividade significativa (aproximadamente 70% da atividade da lidocaína) e poderia contribuir potencialmente para sua toxicidade durante infusões intravenosas prolongadas.37,101 Outras amidas, como a mepivacaína, a bupivacaína e a ropivacaína, sofrem principalmente N-desalquilação e hidroxilação. Esses agentes produzem um metabólito menos tóxico, a pipecoloxilidida (PPX).105 O metabólito Ndesalquilado da bupivacaína, a N-desbutilbupivacaína, tem cerca da metade da cardiotoxicidade da bupivacaína, porém é menos tóxico para o sistema nervoso central em estudos de ratos.106 Alguns metabólitos das amidas são ainda conjugados a glicuronídio antes de sua eliminação na urina ou na bile.107 Excreção Os anestésicos locais são pouco hidrossolúveis, o que limita a excreção renal do fármaco em sua forma inalterada. Os metabólitos da hidrólise dos anestésicos locais com ligação éster são excretados principalmente na urina.108 De modo semelhante, os metabólitos dos anestésicos locais com ligação amida são eliminados na urina ou na bile. Uma pequena porção dos anestésicos locais de tipo amida é excretada de modo inalterado na urina (4 a 7% para lidocaína, 6% para a bupivacaína e 16% para a mepivacaína nos seres humanos; 1,7 a 2,9% para a lidocaína em equinos).109-111 Fatores que afetam a farmacocinética e a atividade

Os fatores dos pacientes, como idade, podem influenciar a farmacocinética dos anestésicos locais. A absorção da lidocaína com spray laríngeo foi maior em filhotes de cães com menos de 20 dias de idade, em comparação com filhotes de 2 a 3 meses.112 O volume de distribuição e a meia-vida de eliminação da lidocaína foram maiores em cordeiros recémnascidos, em comparação com carneiros adultos.113 Em um estudo farmacocinético da lidocaína em filhotes de cães, a constante de eliminação do compartimento central (K10) foi menor, e a meia-vida de eliminação foi mais longa em filhotes de cães de 3 a 16 dias de idade, em comparação com filhotes de 6 meses.114 Quando foram comparados cordeiros recém-nascidos com carneiros adultos, a depuração hepática da lidocaína foi semelhante, porém a depuração renal do fármaco inalterado foi maior nos recém-nascidos, provavelmente devido a ligação diminuída às proteínas, pH urinário mais baixo e reabsorção tubular diminuída, devido ao maior fluxo urinário.113 A hidrólise plasmática dos anestésicos locais com ligação éster também é afetada pela idade, conforme observado em recém-nascidos e lactentes humanos, nos quais a atividade da colinesterase plasmática foi metade daquela de adultos.115 Em animais geriátricos, a depuração hepática dos anestésicos locais pode estar diminuída, e a sua meia-vida, aumentada.116,117 Parece haver um aumento da sensibilidade nervosa aos anestésicos locais durante a gravidez, com início mais rápido do bloqueio de condução.118 O tratamento agudo com progesterona não teve nenhum efeito sobre o bloqueio de indução induzido pela bupivacaína no nervo vago isolado de coelho; por conseguinte, esse efeito provavelmente não representa um efeito direto da progesterona sobre a membrana celular, mas pode envolver efeitos hormonais sobre a síntese proteica.119 Foi constatado que ovelhas prenhes apresentam uma depuração mais rápida da lidocaína; todavia, a depuração da bupivacaína e da ropivacaína é mais lenta do que em ovelhas não prenhes.120,121 Essa diferença pode ser explicada pela depuração da lidocaína que é mais dependente do fluxo sanguíneo hepático, que está aumentado durante a prenhez, enquanto a depuração da bupivacaína e da ropivacaína é mais dependente da atividade das enzimas hepáticas, que pode ser inibida durante a prenhez.37 A doença hepática pode diminuir o metabolismo dos anestésicos locais com ligação amida. A atividade da pseudocolinesterase plasmática também está reduzida na presença de doença hepática e durante a prenhez, o que irá diminuir a taxa de hidrólise dos anestésicos locais com ligação éster.122,123 Em geral, podem-se administrar doses padrão a animais com doença hepática para bloqueio neural em dose única, porém as doses repetidas, os intervalos entre as doses e as infusões com velocidade contínua precisam ser ajustados para evitar a ocorrência de acúmulo e toxicidade.37 Uma diminuição do fluxo sanguíneo hepático, como a que pode ocorrer durante a anestesia geral, na presença de doença cardíaca ou em qualquer condição capaz de diminuir o débito cardíaco, irá reduzir a

depuração hepática dos anestésicos locais, particularmente daqueles que dependem mais do fluxo sanguíneo hepático, como a lidocaína.37,124 O Vdss e a depuração (Cl) da lidocaína por via intravenosa foram significativamente diminuídos em cavalos anestesiados, em comparação com animais despertos (0,4 vs. 0,79 ℓ/kg, e 15 vs. 29 mℓ/kg/min, respectivamente)125 e em gatos anestesiados, em comparação com animais despertos (1,4 vs. 1,9 ℓ/kg e 21 vs. 26 mℓ/kg/min).99 A depuração hepática de outros anestésicos locais com ligação amida, como a mepivacaína ou a bupivacaína, é mais dependente da atividade das enzimas hepáticas, e o efeito do fluxo sanguíneo hepático reduzido é menos pronunciado. A insuficiência renal diminui a atividade da pseudocolinesterase plasmática em 40% nos seres humanos.126 As aminoamidas são excretadas principalmente como metabólitos hidrossolúveis, que podem se acumular em animais com insuficiência renal e contribuir para a toxicidade do sistema nervoso central se forem ativos (p. ex., MEGX e GX).124 Foi constatado que o jejum diminui a depuração hepática da lidocaína em equinos.111 A doença gastrintestinal (p. ex., cólica em equinos) também pode afetar a depuração dos anestésicos locais derivados de aminoamidas, que dependem principalmente do fluxo sanguíneo hepático, como a lidocaína, em particular se houver redução significativa do débito cardíaco. Entretanto, os parâmetros farmacocinéticos da lidocaína intravenosa em equinos submetidos a cirurgia abdominal para cólica assemelham-se aos de cavalos despertos saudáveis, com valores de Vdss e Cl de 0,7 ℓ/kg e 25 mℓ/kg/min, respectivamente.127 Foi formulada a hipótese de que o débito cardíaco dos equinos incluídos nesse estudo poderia estar aumentado, e não diminuído.127 É interessante assinalar que o diabetes melito aumenta a depuração hepática da lidocaína, embora a excreção do metabólito MEGX esteja comprometida.128,129 A administração concomitante de anestésicos locais com outros fármacos pode afetar a sua distribuição e cinética de eliminação. Os fármacos que diminuem a atividade da esterase plasmática ou eritrocitária, como a neostigmina ou a acetazolamida, irão prolongar a meia-vida dos anestésicos locais com ligação éster.130,131 Quando inibidores da CYP1A2 e da CYP3A4, como a eritromicina, são administrados concomitantemente com anestésicos locais derivados de aminoamidas, pode-se observar uma diminuição de sua depuração hepática.132 Os bloqueadores dos receptores beta-adrenérgicos reduzem a perfusão hepática e inibem a atividade das enzimas envolvidas no metabolismo microssomal hepático, responsáveis pelo metabolismo dos anestésicos locais aminoamidas; por conseguinte, haverá maior concentração plasmática e diminuição da eliminação quando esses fármacos forem administrados concomitantemente.133 A coadministração de diferentes classes de anestésicos locais também pode afetar seus parâmetros farmacocinéticos. A taxa de hidrólise da cloroprocaína é reduzida pela

administração concomitante de bupivacaína ou de etidocaína, mas não quando é coadministrada com lidocaína ou mepivacaína.130,134 A temperatura também pode afetar a farmacocinética e a farmacodinâmica dos anestésicos locais. A capacidade da lidocaína de bloquear impulsos nervosos, tanto in vitro quanto in vivo, é potencializada pelo resfriamento.135,136 Por outro lado, a captação de lidocaína pelo nervo isquiático de mamífero é reduzida pelo resfriamento, com uma diminuição de 45% quando a temperatura cai de 37°C para 20°C.137 Alguns estudos clínicos conduzidos em seres humanos observaram um aumento na velocidade de início de vários tipos de bloqueios quando a temperatura da solução anestésica local foi aumentada para 37°C,138-141 embora esse efeito não tenha sido consistente.142,143 O resfriamento da solução anestésica local aumenta a pKa e a quantidade relativa da forma ativa ionizada, enquanto o aquecimento da solução diminui a pKa e aumenta a quantidade da forma lipossolúvel não ionizada.137 Essas alterações de pKa podem explicar a potência aumentada dos anestésicos locais com o resfriamento e a aceleração de seu início de ação com o aquecimento. A baricidade é uma das propriedades físicas mais importantes dos anestésicos locais durante a sua administração subaracnóidea ou intratecal, visto que irá afetar a distribuição e a disseminação da solução e, portanto, irá influenciar as características do bloqueio.144 A baricidade de uma solução anestésica local é a razão calculada entre a densidade da solução e a densidade do líquido cerebrospinal (LCS), ambas medidas na mesma temperatura, que normalmente é de 37°C. A densidade, que é o peso em gramas de 1 mℓ da solução, é inversamente relacionada com a sua temperatura.145 Uma solução isobárica tem uma razão de baricidade de 1. Se a razão for < 1, a solução é hiperbárica, e se for > 1, é hipobárica. Em temperatura ambiente, as soluções anestésicas locais disponíveis no comércio são, em sua maioria, isobáricas em relação ao LCS; entretanto, quando são aquecidas à temperatura corporal, tornam-se hipobáricas.145 As densidades da lidocaína a 2% comercial e da bupivacaína a 0,5% e 0,75% são inferiores à densidade do LCS humano a 37°C, tornandoas relativamente hipobáricas.146 A diluição dessas soluções com água as torna cada vez mais hipobáricas.146 Quando anestésicos locais são misturados com glicose ou solução salina hipertônica, a solução obtida é hiperbárica.145,147 Foi observada a ocorrencia de neurotoxicidade com a bupivacaína hiperbárica quando são administradas altas concentrações e doses por via intratecal a cães (≥ 10 mg de bupivacaína a 1% ou 2% em solução de glicose a 10%), mas não com baixas concentrações e doses (5 mg de bupivacaína a 0,5% em solução de glicose a 10%).148 A bupivacaína hipobárica em altas concentrações e doses (20 mg de bupivacaína a 2% em água) foi associada à ocorrência de neurotoxicidade quando administrada por via intratecal a cães.148 As soluções hipobáricas, quando injetadas no espaço subaracnóideo, migram para áreas

não dependentes, visto que a sua densidade é mais baixa que a do LCS, enquanto as soluções hiperbáricas migram para áreas dependentes. Essa migração possibilita a ocorrência de bloqueio preferencial no lado cirúrgico, sendo possível a anestesia espinal unilateral quando se utilizam doses baixas de anestésicos locais.149 As soluções isobáricas irão migrar para ambos os lados da medula espinal, causando bloqueio espinal bilateral. Nos seres humanos, foi relatado que o bloqueio espinal unilateral resulta em uma diminuição de quatro vezes na incidência de hipotensão clinicamente importante, com parâmetros cardiovasculares mais estáveis, em comparação com o bloqueio espinal bilateral convencional.150 Como são injetadas apenas pequenas quantidades de solução anestésica local, a extensão do bloqueio espinal é reduzida, e a resolução dos bloqueios sensitivo e motor é mais rápida.150 As misturas de agentes anestésicos locais com aditivos, como solventes ou vasoconstritores, com outros fármacos, como opioides, podem alterar a densidade e a baricidade da solução. Quando se misturam soluções de bupivacaína a 0,125 a 0,5% com fentanila (0,005%), sufentanila (0,005%) ou morfina (0,1%), as soluções resultantes são hipobáricas.151 A mistura de lidocaína a 2% e epinefrina (1:200.000) resulta em uma solução hiperbárica.151 Existe alguma variação na densidade do LCS entre indivíduos.152 A densidade do LCS também pode ser influenciada pelo estado fisiológico do animal (p. ex., ocorre diminuição da densidade durante a gravidez nos seres humanos).153 Por conseguinte, pode-se observar alguma variação interpessoal na resposta clínica às soluções intratecais, particularmente aquelas que são marginalmente hipo- ou hiperbáricas.144 Aditivos A epinefrina vem sendo usada como adjuvante dos anestésicos locais há mais de um século. Esse uso baseia-se na justificativa de que a epinefrina provoca vasoconstrição e, portanto, diminui a absorção sistêmica do agente anestésico local, o que diminui a dose de anestésico local necessária e prolonga a duração de seu efeito.154,155 A absorção sistêmica diminuída também reduz a Cmáx. do anestésico local, o que reduz a probabilidade de toxicidade sistêmica. Vários estudos também demonstraram diminuição da Cmáx. dos anestésicos locais quando administrados com epinefrina para bloqueio tanto periférico quanto do neuroeixo.155-158 Em geral, os maiores efeitos são observados com os agentes de ação mais curta, e não com aqueles de ação mais longa. Além dessa interação farmacocinética, a epinefrina parece exercer efeitos analgésicos quando administrada por via epidural ou intratecal ao estimular os receptores α2adrenérgicos, inibindo, assim, a liberação de neurotransmissor pré-sináptico das fibras C e Aδ na substância gelatinosa do corno dorsal da medula espinal.159-161 Foi também

demonstrado que os receptores α2-adrenérgicos podem modificar certos canais de K+ nos axônios dos nervos periféricos, potencializando as ações dos anestésicos locais de bloqueio de impulsos.162,163 Um estudo posterior realizado em ratos também mostrou que a infiltração local de epinefrina produz anestesia cutânea mediada pela ativação dos receptores α1-adrenérgicos locais.164 Por conseguinte, parece que as interações farmacocinéticas e farmacodinâmicas entre a epinefrina e os anestésicos locais sejam responsáveis pela maior duração e intensidade do bloqueio quando administrados em combinação. Um problema potencial relacionado com a administração concomitante de epinefrina e anestésicos locais consiste na diminuição do fluxo sanguíneo para os nervos periféricos ou a medula espinal, podendo causar isquemia de nervos ou da medula espinal. Entretanto, pesquisas realizadas com microesferas marcadas radioativamente em cães e gatos mostraram que a epinefrina injetada por via intratecal provoca vasoconstrição dural regional, porém não diminui o fluxo sanguíneo da medula espinal ou cerebral.165,166 Esse achado é sustentado por muitos anos de experiência clínica com soluções contendo epinefrina usadas para anestesia neuroaxial e a ausência de efeitos prejudiciais sobre a função da medula espinal.163,167 Estudos in vitro realizados em ratos mostraram que o fluxo sanguíneo para o nervo isquiático é reduzido pela injeção de lidocaína sem epinefrina, porém a redução é mais pronunciada quando se acrescenta epinefrina (5 µg/mℓ).168 Entretanto, um estudo mais recente in vivo realizado em ratos, utilizando microesferas marcadas com radioisótopos mostrou que a lidocaína, com ou sem epinefrina (10 µg/mℓ), não diminui o fluxo sanguíneo para o nervo isquiático ou o músculo esquelético circundante.169 Os autores desse estudo concluíram que outros mecanismos, além da vasoconstrição local, podem contribuir para o prolongamento do bloqueio de nervos periféricos da lidocaína pela epinefrina. A absorção sistêmica da epinefrina administrada em associação com anestésicos locais também pode produzir efeitos cardiovasculares, que se caracterizam por aumento da frequência cardíaca, do volume sistólico e do débito cardíaco e por diminuição da resistência vascular periférica.170 Um estudo conduzido em seres humanos também mostrou melhora da função diastólica do ventrículo esquerdo com a adição de epinefrina aos anestésicos locais, em comparação com a norepinefrina, que resultou em comprometimento da função.170 As concentrações plasmáticas excessivas de epinefrina podem precipitar taquicardia e arritmias. As concentrações recomendadas de epinefrina em associação a soluções de anestésicos locais para uso clínico variam entre 1:400.000 (1 mg/400 mℓ ou 2,5 µg/mℓ) e 1:200.000 (1 mg/200 mℓ ou 5 µg/mℓ.163 Pode-se obter uma concentração de 1:200.000 pela adição de 0,1 mℓ a uma solução de epinefrina 1:1.000 (0,1 mg) em 20 mℓ de solução de anestésico

local. As concentrações acima de 5 µg/mℓ não produzem qualquer diminuição adicional da Cmáx. e, portanto, devem ser evitadas, tendo em vista o potencial de efeitos colaterais sistêmicos.37 As preparações de anestésicos locais no comércio contêm epinefrina com valores de pH mais baixos do que as soluções simples ou preparadas no momento da administração. O pH mais baixo dessas preparações que contêm epinefrina pode diminuir potencialmente a quantidade da forma não ionizada, retardando, assim, o início da ação. Outros vasoconstritores, como a fenilefrina ou a metoxamina, podem ser acrescentados para prolongar a duração do efeito dos anestésicos locais ao diminuir a sua absorção sistêmica.171 Pode haver também um certo grau de interação farmacodinâmica, visto que a infiltração desses agonistas dos receptores α1-adrenérgicos causaram anestesia cutânea em ratos.164 Todavia, diferentemente da epinefrina, esses outros agentes carecem de efeitos nos receptores α2-adrenérgicos, e, por conseguinte, as interações potenciais com anestésicos locais mediadas por esses receptores não são possíveis. Além disso, a fenilefrina, mas não a epinefrina, produziu uma redução significativa do fluxo sanguíneo para o nervo isquiático e o músculo esquelético quando administrada em associação com lidocaína,169 o que pode causar potencialmente complicações devido à isquemia nervosa. Os vasoconstritores devem ser evitados para bloqueio de áreas com suprimento sanguíneo errático ou sem uma boa perfusão colateral (p. ex., anestesia regional intravenosa, bloqueios de mamilo ou grandes áreas de pele), devido à possibilidade de isquemia e necrose do tecido induzidas por vasoconstrição. Foi demonstrado que a fentolamina, um antagonista não seletivo dos receptores alfaadrenérgico, reverte o bloqueio prolongado induzido por anestésicos locais quando administrada em associação com vasoconstritores.172 Uma preparação comercial de mesilato de fentolamina foi aprovada para reversão da anestesia de tecidos moles e déficits funcionais associados decorrentes da anestesia dentária local em seres humanos. A hialuronidase, uma enzima que despolariza o ácido hialurônico, o principal cimento do interstício, pode ser adicionada aos anestésicos locais para melhorar a penetração nos tecidos e, portanto, encurtar o início de ação e aumentar a dispersão do bloqueio.173 Além disso, a hialuronidase eleva o pH da solução anestésica para um nível ligeiramente mais fisiológico, o que pode contribuir para o encurtamento do início de ação ao aumentar a quantidade do fármaco não ionizado. Entretanto, a Cmáx. do anestésico local e o risco de toxicidade sistêmica também podem aumentar. Estudos realizados em seres humanos e animais mostram diversos resultados em relação a melhora da eficácia. Alguns estudos em seres humanos mostram melhor qualidade do bloqueio peribulbar ou retrobulbar e início de ação mais rápido quando a hialuronidase é adicionada em concentrações baixas, de 3,5 UI/mℓ, a misturas de bupivacaína a 0,5 ou 0,75% e lidocaína a 2%,174-176 enquanto outros estudos não mostraram nenhum benefício quando a hialuronidase é adicionada em altas

concentrações, de até 150 UI/mℓ, a uma mistura de bupivacaína a 0,75% e lidocaína a 2% para bloqueio peribulbar.177,178 A hialuronidase adicionada à bupivacaína com epinefrina (1:200.000) para bloqueio do plexo braquial não aumentou a velocidade de início da anestesia nem reduziu a incidência de bloqueio nervoso inadequado.179 Em um estudo recente em cães, a adição de 400 UI de hialuronidase a 1,06 mg/kg de levobupivacaína a 0,5% para bloqueio epidural lombossacral reduziu o início de ação de 15 para 5 min, mas também diminuiu a duração do bloqueio, enquanto a dispersão em dermátomos permaneceu inalterada.180 Quando usado em anestesia infiltrativa, a adição de 15 UI/mℓ de hialuronidase a lidocaína a 1% aumentou a área de pele dessensibilizada, porém a dor causada pela injeção também aumentou, em comparação com lidocaína simples a 1%.181 A adição de hialuronidase à lidocaína para bloqueio infiltrativo não retarda a cicatrização de feridas.182 A adição de hialuronidase parece ser particularmente vantajosa em bloqueios oftálmicos, visto que foi demonstrado que limita o aumento agudo da pressão intraocular em consequência da injeção periocular e parece ter um efeito protetor contra a miotoxicidade induzida por anestésicos locais, resultando em estrabismo pós-operatório.183 O pH de soluções de anestésicos locais disponíveis no comércio é normalmente ácido para aumentar a estabilidade e a solubilidade e estender o prazo de validade.184,185 A alcalinização da solução pela adição de bicarbonato de sódio produz um aumento na quantidade de anestésico local na forma não ionizada, que é a fração lipossolúvel capaz de atravessar a membrana axonal, encurtando, assim, o início do bloqueio. A intensidade e a duração do bloqueio também podem aumentar devido a um aumento do gradiente de pH transmembrana, causando a retenção da forma ativa ionizada dentro do nervo. A eficácia da alcalinização depende da solução anestésica local, do local do bloqueio e da adição concomitante de epinefrina. O tamponamento da lidocaína a 1%, da mepivacaína a 1% ou da bupivacaína a 0,5% com bicarbonato de sódio para administração intradérmica não afeta o início, a extensão e a duração da anestesia cutânea em seres humanos.186,187 A adição de bicarbonato à lidocaína para bloqueio do nervo mediano em seres humanos aumenta a taxa de bloqueio motor sem modificar o início ou a extensão do bloqueio sensorial.188 De modo semelhante, a alcalinização da lidocaína a 1% ou da bupivacaína a 0,25% para um pH de 7,4 não prolongou a duração do bloqueio do nervo infraorbital em ratos.189 Estudos que usaram anestésicos locais tamponados durante a anestesia epidural forneceram resultados controversos. Alguns estudos mostram um início mais rápido de bloqueio epidural quando a lidocaína a 1,5 a 2%, a mepivacaína a 2% ou a bupivacaína a 0,5% são alcalinizadas com bicarbonato,190-192 enquanto outros estudos não demonstram nenhuma redução do início com lidocaína a 2% ou bupivacaína a 0,5% tamponadas.193-195 A alcalinização da solução de ropivacaína a 0,75% não diminui o início do bloqueio sensorial ou motor, porém

aumenta a duração do bloqueio epidural.196 Nos bloqueios de nervo femoral e nervo isquiático, os efeitos da alcalinização sobre o início da analgesia sensorial e bloqueio motor foram mais evidentes com mepivacaína a 2%; entretanto, para bloqueio axilar do plexo braquial, o maior efeito foi observado com a lidocaína a 2%.192 Todavia, em estudos nos quais houve aceleração do início do bloqueio com alcalinização, a redução foi de menos de 5 min em comparação com preparações comerciais. Além disso, parece que o efeito da alcalinização é observado principalmente quando se adiciona também a epinefrina à solução.197 Por conseguinte, o valor da alcalinização dos anestésicos locais parece questionável como instrumento clinicamente útil para melhorar a anestesia.15 A alcalinização tem maior efeito quando o anestésico local é administrado em um ambiente ácido, como no caso da instilação intravesical, em que a urina é normalmente ácida. A instilação intravesical de lidocaína a 5% tamponada com um volume igual de bicarbonato de sódio a 8,4% para um pH de 8,0 produziu anestesia local da submucosa da bexiga, conforme indicado pela rápida diminuição dos escores de dor em pacientes humanos com cistite intersticial.198 Entretanto, a administração intravesical de lidocaína alcalinizada por até 3 dias consecutivos não teve nenhum efeito benéfico aparente sobre a redução da taxa de recidiva e gravidade dos sinais clínicos em gatos com doença idiopática obstrutiva das vias urinárias inferiores.199 Os anestésicos locais tamponados também exercem maior efeito quando administrados topicamente à córnea. A permeabilidade da córnea à aplicação tópica de lidocaína aumentou quando o pH da solução foi tamponado de 5,2 para 7,2, com detecção de maiores concentrações de lidocaína no humor aquoso.200,201 O tamponamento da solução anestésica local com bicarbonato diminui a dor no local de injeção quando administrada por via subcutânea e também diminui a dor quando se insere um cateter epidural.184,185,202 Observa-se maior redução da dor no local de injeção com o aquecimento adicional da solução até a temperatura corporal.202 A dose mais comum de bicarbonato de sódio é de 0,1 mEq por mℓ de solução anestésica local. A adição de bicarbonato pode causar precipitação da solução, particularmente com bupivacaína e etidocaína, quando o pH é elevado acima de 7,0.203 A mepivacaína também pode precipitar em pH acima do valor neutro em 20 min.204 Por conseguinte, recomenda-se o uso da solução mista imediatamente após a adição de bicarbonato de sódio. A carbonatação dos anestésicos locais pela adição de dióxido de carbono (CO2) é algumas vezes usada para diminuir o início e melhorar a qualidade do bloqueio. A adição de CO2 a uma solução de lidocaína diminuiu a quantidade de lidocaína necessária para obter um bloqueio de condução in vitro.205 Essa potencialização do bloqueio do anestésico local deve-se, possivelmente, a uma redução do pH intracelular, causando o sequestro de

íons. A lidocaína carbonatada administrada por via epidural reduziu o início e melhorou o bloqueio em seres humanos;206,207 entretanto, não ofereceu nenhuma vantagem em comparação com o sal cloridrato para anestesia epidural caudal em equinos.208 A adição de agonistas dos receptores α2-adrenérgicos aos anestésicos locais durante o bloqueio regional está sendo cada vez mais usada em medicina veterinária. A clonidina tem sido extensamente usada em seres humanos para prolongar a duração dos bloqueios intratecal, epidural e de nervos periféricos. As metanálises e revisões sistemáticas claramente demonstram um benefício analgésico da adição de clonidina a anestésicos locais.209 Em animais de grande porte, a xilazina epidural ou intratecal tem sido usada com lidocaína desde o início da década de 1990 para prolongar o efeito analgésico.210 A medetomidina, administrada por via perineural ou sistêmica (0,01 mg/kg) em associação com mepivacaína para bloqueio de nervo radial em cães, prolongou a duração do bloqueio sensorial e motor, com persistência de bloqueio sensorial residual além dos efeitos sedativos observáveis.211 Recentemente, a dexmedetomidina foi introduzida como adjuvante da anestesia regional em seres humanos e animais. Estudos realizados em ratos demonstraram que a administração de dexmedetomidina em associação com bupivacaína ou ropivacaína aumenta o bloqueio sensorial e motor no bloqueio do nervo isquiático, sem induzir neurotoxicidade.212,213 Estudos clínicos conduzidos em seres humanos mostraram um início mais curto, maior duração do bloqueio sensorial e motor, aumento da qualidade do bloqueio, menores escores de dor e diminuição da necessidade de opioides sistêmicos quando a dexmedetomidina foi adicionada a bupivacaína ou levobupivacaína para vários bloqueios.214-217 A adição de dexmedetomidina à lidocaína para anestesia regional intravenosa melhorou a qualidade da anestesia e diminuiu as necessidades de analgésicos, porém não teve nenhum efeito sobre a extensão do bloqueio sensorial e motor, nem sobre início e tempo de regressão.218,219 A maior duração da analgesia produzida pela adição de clonidina ou de dexmedetomidina a anestésicos locais deve-se à hiperpolarização das fibras C por meio do bloqueio da denominada corrente de cátions ativada por hiperpolarização.220,221 Os receptores α2-adrenérgicos não parecem estar implicados, visto que a administração de antagonistas desses receptores não reverte o bloqueio de condução, nem diminui a duração do bloqueio.220-222

■ Misturas de anestésicos locais As misturas de anestésicos locais de fármacos aminoamidas, que consistem em um agente de ação intermediária, como lidocaína ou mepivacaína, associado a um agente de ação longa, como bupivacaína, são usadas na convicção de que a associação irá proporcionar início mais rápido do bloqueio e duração semelhante, em comparação com o agente de

ação longa administrado isoladamente. Todavia, essas misturas produzem resultados clínicos imprevisíveis e variáveis. Estudos clínicos conduzidos em seres humanos, utilizando uma mistura de 50:50 de lidocaína ou mepivacaína com bupivacaína ou ropivacaína para bloqueio nervoso periférico mostraram um início mais curto do efeito, porém com duração de ação também mais curta, em comparação com a administração isolada de bupivacaína ou ropivacaína.223-225 A associação epidural ou intratecal de lidocaína e bupivacaína para vacas,226 gatos227 e seres humanos228-231 produziu um início de bloqueio sensorial semelhante em comparação com qualquer um dos agentes isoladamente, e a duração foi intermediária entre a dos dois agentes ou semelhante àquela da bupivacaína. Quando a cloroprocaína, um anestésico local aminoéster de início curto e curta duração de ação, é administrada antes da bupivacaína, observa-se uma redução na duração do bloqueio induzido pela bupivacaína. Isso pode ser devido a um efeito inibidor causado pelos metabólitos da cloroprocaína sobre o sítio receptor dos canais de Na+ para a bupivacaína.232 A mistura de preparações comerciais de cloroprocaína e bupivacaína resultou em pH de 3,6 e bloqueio nervoso com características do bloqueio com cloroprocaína.233 Quando o pH da mistura foi elevado para 5,56, o bloqueio nervoso assemelhou-se ao da bupivacaína. Por conseguinte, a mistura de soluções de anestésicos locais disponíveis no comércio resulta em bloqueio imprevisível, que irá depender de diversos fatores, incluindo o pH da mistura final.233 Além disso, a toxicidade anestésica local de associações de fármacos é aditiva.234

■ Taquifilaxia A taquifilaxia aos agentes anestésicos locais é definida como uma diminuição na duração, dispersão segmentar ou intensidade de um bloqueio regional, apesar da administração repetida de doses iguais.235 Em 1969, Bromage descreveu que a injeção repetida de uma dose constante de lidocaína epidural levou a uma redução tanto no número de dermátomos bloqueados quanto na duração do bloqueio.236 A incidência desse fenômeno em medicina veterinária não é conhecida, e o fenômeno provavelmente não é, em grande parte, reconhecido. A taquifilaxia não parece estar ligada às propriedades estruturais ou farmacológicas dos anestésicos locais, nem à técnica ou ao modo de administração, como pode ocorrer no caso dos anestésicos locais com ligação éster e amida e com o bloqueio neuroaxial ou nervoso periférico.236-239 Bromage constatou que a taquifilaxia aos anestésicos locais é promovida por intervalos interanalgésicos mais longos entre as injeções.236 Se forem repetidas injeções de anestésicos locais a intervalos curtos o suficiente para prevenir o retorno da dor ou a intervalos com dor de menos de 10 min de duração, não ocorre taquifilaxia, e observa-se um aumento do efeito analgésico. Em contrapartida, se o paciente experimenta dor entre as administrações de anestésicos locais

por mais de 10 min, a taquifilaxia ocorre com mais rapidez. Os mecanismos subjacentes à taquifilaxia podem envolver aspectos tanto farmacocinéticos quanto farmacodinâmicos. Os mecanismos farmacocinéticos sugeridos incluem edema local, aumento da concentração de proteína epidural, alterações na distribuição dos anestésicos locais no espaço epidural, redução do pH perineal (limitando a difusão do anestésico local do espaço epidural para os sítios de ligação no canal de Na+), aumento do fluxo sanguíneo epidural ou aumento do metabolismo local (favorecendo a depuração dos anestésicos locais do espaço epidural).235 Foram também sugeridos outros fatores de origem farmacodinâmica, como efeitos antagonistas de nucleotídios ou aumento na concentração de Na+, aumento dos impulsos aferentes dos nociceptores ou infrarregulação dos canais de Na+ pelo receptor.235 Um estudo conduzido em seres humanos com injeções repetidas de lidocaína epidural constatou a ausência de alterações na distribuição ou taxa de eliminação da lidocaína do espaço epidural,239 e outro estudo realizado em ratos não conseguiu demonstrar qualquer efeito do pH tecidual sobre o desenvolvimento de taquifilaxia à bupivacaína.237 A taquifilaxia aos anestésicos locais não resulta de uma diminuição da efetividade do fármaco no próprio nervo,240 mas parece estar principalmente mediada por um sítio de ação espinal.241 A taquifilaxia e a hiperalgesia central parecem estar relacionadas, conforme evidenciado por estudos em ratos, nos quais ocorreu taquifilaxia apenas em condições nas quais desenvolveram concomitantemente hiperalgesia na pata testada.242 Quando foram usados apenas testes motores não nocivos para estimar a duração do bloqueio, não ocorreu taquifilaxia. Além disso, foi constatado que os fármacos que evitam a hiperalgesia em locais espinais, como antagonistas do receptor NMDA242 e inibidores da NO-sintase,243 impedem o desenvolvimento de taquifilaxia. Por conseguinte, parece que uma via do óxido nítrico espinal esteja envolvida no desenvolvimento da taquifilaxia aos anestésicos locais.241 Além disso, as vias descendentes não parecem ser necessárias para o desenvolvimento da taquifilaxia, visto que ela ocorre até mesmo após transecção da medula espinal no décimo nível torácico em ratos.241 Foi também sugerida uma mudança de anestésicos locais quando se observa o desenvolvimento de taquifilaxia a determinado agente anestésico local. Essa abordagem mostrou-se bem-sucedida em seres humanos com dor relacionada com o câncer, nos quais a morfina e a bupivacaína intratecais não foram efetivas, e a substituição da bupivacaína por lidocaína melhorou a analgesia.244

Fármacos específicos e usos clínicos

■ Aminoésteres Procaína Esse agente apresenta rápido início e curta duração de efeito (30 a 60 min), em virtude de sua rápida hidrólise no sangue.15 Pode-se adicionar epinefrina para prolongar a sua duração de ação. Seu potencial de toxicidade sistêmica é mínimo; todavia, em certas ocasiões, a procaína causa reações alérgicas, devido a um metabólito de hidrólise (PABA). A procaína é usada em medicina veterinária para infiltração e bloqueio nervoso em concentrações de 1 a 2%.245 Raramente é utilizada para anestesia tópica, visto que não é muito efetiva por essa via.245 Nos seres humanos, é algumas vezes administrada por via intratecal para procedimentos de curta duração.246 A procaína intravenosa é um estimulante do sistema nervoso central nos equinos.93 Em virtude dessa propriedade e de seu efeito analgésico quando usada para bloqueio nervoso periférico, a procaína tem sido usada ilegalmente em cavalos de corrida.245 A procaína é algumas vezes adicionada a formulações de fármacos (i. e., penicilina procaína) para prolongar a duração dos efeitos. Benzocaína Esse agente também é um anestésico local de ação rápida e curta duração, disponível exclusivamente para anestesia tópica. Provoca metemoglobinemia em várias espécies de animais e, portanto, não é mais usado na prática clínica. A benzocaína também é um anestésico para peixes quando adicionada à água.247 Cloroprocaína Esse agente assemelha-se à procaína, com rápido início e curta duração de ação (30 a 60 min). A cloroprocaína está disponível em concentrações de 1 a 3%. Não é amplamente usada em medicina veterinária; entretanto, nos seres humanos, seu uso reemergiu para anestesia epidural e intratecal de curta duração, visto que está associada a menor incidência de sintomas neurológicos transitórios, em comparação com a lidocaína.248 Além disso, pode ser usada para bloqueio infiltrativo local, quando há necessidade de curta duração do efeito. Tetracaína A tetracaína também é denominada ametocaína. É raramente usada em medicina veterinária. Nos seres humanos, é mais comumente utilizada para anestesia intratecal, visto que apresenta rápido início (3 a 5 min) e efeito com duração de 2 a 3 h.249 É raramente usada para outras formas de anestesia regional, em virtude de seu início extremamente lento e potencial de toxicidade sistêmica.249 Trata-se de um excelente anestésico tópico que,

em virtude dessa propriedade, é incluído em soluções anestésicas tópicas. Entretanto, a absorção da tetracaína pelas mucosas é muito rápida, e foram relatados vários casos fatais após a sua administração para procedimentos endoscópicos em seres humanos.250 Estudos conduzidos em seres humanos mostraram que as preparações tópicas de tetracaína, incluindo um adesivo de lidocaína/tetracaína (Synera®, Rapydan®), proporcionam anestesia dérmica mais rápida e melhor do que a mistura eutética de lidocaína e prilocaína (creme EMLA®).251,252

■ Aminoamidas Lidocaína A lidocaína continua sendo o anestésico local mais versátil e amplamente utilizado em medicina veterinária, em virtude de seu rápido início de ação, duração moderada do efeito e toxicidade moderada. Está disponível em soluções de 0,5%, 1%, 1,5% e 2%. A lidocaína é usada para anestesia infiltrativa, bloqueio nervoso periférico, bloqueio epidural e intratecal e anestesia regional intravenosa. A duração da lidocaína simples é de aproximadamente 1 h, porém pode ser prolongada por até 3 h com a adição de epinefrina.15 Além disso, é comumente usada de modo tópico para dessensibilização da laringe antes de intubação traqueal (solução em spray de 2%, 4% ou 10%). Para anestesia dérmica, está disponível em diferentes formulações, como a mistura eutética com prilocaína (creme EMLA® a 2,5%), na forma de adesivos de lidocaína (Lidoderm® a 5%) ou misturada com tetracaína (Synera®, Rapydan®). A lidocaína possui numerosos usos não anestésicos quando administrada por via intravenosa. Trata-se de um agente antiarrítmico de classe Ib. A lidocaína também diminui as necessidades de anestésicos inalatórios quando administrada por via intravenosa a diferentes espécies, incluindo cães,253-255 gatos,256 caprinos,102 cavalos257-258 e bezerros.259 Além disso, é um fármaco analgésico para alívio de diferentes tipos de dor quando administrada por via sistêmica, conforme demonstrado em pacientes humanos260,261 e em estudos experimentais de animais de laboratório.262,263 A administração de lidocaína por via intravenosa (bolo de 2 mg/kg, seguido de 0,05 mg/kg/min) produziu antinocicepção térmica em equinos.264 Todavia, não afetou o limiar térmico nos gatos (concentrações plasmáticas de até 4,3 µg/mℓ),265 nem o limiar elétrico em cães (bolo de 2 mg/kg IV, seguido de uma infusão de até 0,1 mg/kg/min).266 O mecanismo pelo qual a administração sistêmica de lidocaína produz analgesia é incerto, porém acredita-se que inclua uma ação nos canais de Na+, Ca2+ e K+ e no receptor NMDA.30-32,34,35 A lidocaína também apresenta efeitos anti-inflamatórios, que podem ser importantes na produção de analgesia, visto que os mediadores inflamatórios aumentam a excitabilidade neuronal.267 Além disso, alguns estudos mostram que a lidocaína pode

melhorar a motilidade intestinal e prevenir o desenvolvimento de íleo pós-operatório em equinos,268-271 particularmente naqueles com lesão por reperfusão.272 O processamento da lidocaína após a sua administração intravenosa foi descrito em ovinos,113 cães,96,114,273 gatos,99 cavalos,125 vacas104 e galinhas103 (Tabela 17.3). Mepivacaína Esse agente apresenta um perfil farmacológico muito semelhante ao da lidocaína, com duração do efeito ligeiramente mais longa (até 2 h), provavelmente devido às propriedades vasodilatadoras ligeiramente menos intrínsecas. A mepivacaína está disponível em concentrações de 0,5 a 2%. Seu uso na prática clínica é semelhante ao da lidocaína, exceto que ela não é rotineiramente usada para anestesia regional intravenosa ou para procedimentos obstétricos, visto que o seu metabolismo é muito lento no feto e no recémnascido.249 Diferentemente da lidocaína, a mepivacaína não é um anestésico tópico efetivo.249 Constitui o agente preferido para bloqueios de nervos periféricos diagnósticos em equinos, por causa de sua menor neurotoxicidade, em comparação com outros anestésicos locais.274 Bupivacaína A bupivacaína é um agente altamente lipofílico, cerca de quatro vezes mais potente do que a lidocaína, com início lento de ação (20 a 30 min) e longa duração do efeito (3 a 10 h).249 É usada em concentrações que variam de 0,125 a 0,75%. Seus usos clínicos incluem bloqueios infiltrativo, nervoso periférico, epidural e intratecal. A bupivacaína não é usada para anestesia tópica e não é recomendada para anestesia regional intravenosa, em virtude de seu elevado potencial de cardiotoxicidade. Tem propriedades bloqueadoras diferenciais intrínsecas, particularmente em baixas concentrações, e, portanto, está indicada quando se deseja um bloqueio sensorial acompanhado de disfunção motora mínima. Tabela 17.3 Parâmetros farmacocinéticos (média ± DP) da lidocaína intravenosa em espécies domésticas. T1/2 (min)

Vdss (ℓ/kg)

Cl (mℓ/kg/min)

Cão273

68,1 ± 10,9

1,38 ± 0,08

27,5 ± 6

Gatos99

100 ± 28

1,39 ± 0,37

26 ± 2,7

Cavalo125

79 ± 41

0,79 ± 0,16

29 ± 7,6

Bovino104

63,6 ± 42

3,3 ± 1,6

42,2 ± 20,5

Ovino113

30,9

NA

41,2

T1/2 = meia-vida terminal; Vdss = volume aparente de distribuição no estado de equilíbrio dinâmico; Cl = depuração corporal total. Levobupivacaína A levobupivacaína é o levoisômero ou enantiômero S da bupivacaína, com potencial cardiotóxico ligeiramente menor que o da mistura racêmica. Suas propriedades físicoquímicas e usos clínicos são iguais aos da bupivacaína. Ropivacaína A ropivacaína é um agente estruturalmente relacionado com a mepivacaína e a bupivacaína, mas que é comercializado na forma do enantiômero S puro para reduzir a cardiotoxicidade associada ao enantiômero R. É ligeiramente menos potente do que a bupivacaína e está disponível em concentrações de até 1%. Seus usos clínicos são iguais aos da bupivacaína, com início do efeito semelhante, bloqueio sensorial marginalmente mais curto (até 6 h) e grau de bloqueio motor ligeiramente menor em doses equipotentes.249 Exerce um efeito bifásico sobre a vascularidade periférica, causando vasoconstrição em concentrações abaixo de 0,5% e vasodilatação em concentrações acima de 1% (Tabela 17.4).275

Efeitos adversos ■ Toxicidade sistêmica Os anestésicos locais podem causar toxicidade do sistema nervoso central (SNC) e cardiotoxicidade em concentrações plasmáticas elevadas. As concentrações plasmáticas são determinadas pela taxa de absorção do fármaco na circulação sistêmica, porém o motivo mais comum para concentrações plasmáticas excessivas consiste na injeção intravascular direta inadvertida da solução anestésica local enquanto se realizam bloqueios periféricos ou do neuroeixo. Os anestésicos locais variam consideravelmente na sua potência de provocar reações tóxicas sistêmicas, e, em geral, essa potência segue a mesma ordem de classificação da potência de produzir bloqueio nervoso.276 Os agentes de maior lipossolubilidade (i. e., bupivacaína) têm mais potência de causar toxicidade sistêmica, em comparação com os agentes menos lipossoluveis (i. e., lidocaína ou mepivacaína), e os enantiômeros S ou levoisômeros (i. e., levobupivacaína ou ropivacaína) são menos tóxicos do que os enantiômeros R ou dextroisômeros ou do que a mistura racêmica de ambos.277-280 A dose de anestésico local que provoca toxicidade sistêmica irá depender da via e da

velocidade de sua administração (a administração intravenosa rápida irá mais provavelmente produzir níveis plasmáticos elevados), da espécie envolvida e dos fatores do paciente (como equilíbrio acidobásico, níveis séricos de potássio e se o animal está anestesiado). A incidência clínica de toxicidade sistêmica em animais domésticos não é conhecida. Nos seres humanos, a incidência de toxicidade sistêmica associada a bloqueios anestésicos regionais é estimada em cerca de 1 em 10.000, com maior incidência associada a bloqueios periféricos (7,5 em 10.000).281,282 Toxicidade no sistema nervoso central Os sinais tóxicos no sistema nervoso central seguem uma progressão à medida que aumenta a concentração plasmática de anestésico local (Figura 17.5). Em doses baixas, todos os anestésicos locais são anticonvulsivantes efetivos e, além disso, exercem efeitos sedativos.283 Em seres humanos conscientes sem sedação, os sinais iniciais de toxicidade local dos anestésicos no SNC consistem em dormência da língua, tontura, vertigem, sonolência, perturbações da visão e audição e ansiedade aguda ou até mesmo medo de morrer.284 Nos equinos, esses sinais têm sido descritos como alteração da função visual, piscar rápido dos olhos, ansiedade, sedação leve e ataxia.268,269,285 Com a elevação dos níveis plasmáticos, os anestésicos locais inibem os neurônios corticais inibitórios no lobo temporal ou na amígdala, permitindo que os neurônios facilitadores atuem sem oposição, resultando em aumento da atividade excitatória, que leva inicialmente a espasmos musculares seguidos de convulsões do tipo grande mal.276,283 À medida que a concentração plasmática aumenta ainda mais, os anestésicos locais podem inibir as vias tanto inibitórias quanto facilitadoras, resultando em depressão do SNC, inconsciência e coma.276,283 Tabela 17.4 Nomes comerciais, indicações e doses de anestésicos locais clinicamente importantes. Anestésico local Nome comercial

Indicações

Doses

Infltração Procaína

Novocaine, Procasel, Adrenacaine, Dalocan, Isocain (com epinefrina)

Bloqueios

Dose máxima 2 a 4 mg/kg

nervosos Tópica (dérmica, mucosas) Doses máximas: 6 a 10 mg/kg (Ca), 3 a 5

Tópica: creme EMLA (com prilocaína), adesivos de Xylocaine, Intubeaze, Lidoderm Lidocaína Injetável: Lidocaine HCl, Lignocaine, Xylocaine (alguns com epinefrina)

Infiltração

mg/kg (Fe), 6 mg/kg (Eq, Bo, Ov, Cp, Su)

Bloqueios

Epidural: 4 mg/kg de sol. a 2% (0,2 mℓ/kg)

nervosos

(Ca, Fe, Ov, Cp, Su), total de 6 mℓ (Eq, Bo)

Interpleural

IV intraoperatória: bolo de 1 a 2 mg/kg, 50 a 100 µg/kg/min (Ca), 25 a 50 µg/kg/min

Epidural

(Eq, Bo)

Intratecala Intravenosa (IV) Infiltração Bloqueios nervosos Mepivacaína

Carbocaine, Intra-Epicaine, Vetacaine

Dose máxima: 5 a 6 mg/kg (Ca, Eq, Bo, Ov, Interpleural

Cp, Su), 2 a 3 mg/kg (Fe)

Epidural

Intra-articular: 1 a 2 mg/kg

Intratecala Intra-articular Infiltração

Bupivacaína

Marcaine

Bloqueios

Dose máxima: 2 mg/kg (Ca, Eq, Bo, Ov, Cp,

nervosos

Su), 1 a 1, 5 mg/kg (Fe)

Interpleural

Epidural: 1 mg/kg de sol. a 0,5% (0,2 mℓ/kg) (Ca, Fe, Ov, Cp, Su), total de 6 mℓ

Epidural

(Eq, Bo)

Intratecala Infiltração

Levobupivacaína

Chirocaine

Bloqueios

Dose máxima: 3 mg/kg (Ca, Eq, Bo, Ov, Cp.

nervosos

Su), 1,5 mg/kg (Fe)

Interpleural Epidural

Epidural: 1 mg/kg de sol. a 0,5% (0,2 mℓ/kg) (Ca, Fe, Ov, Cp, Su), total de 6 mℓ (Eq, Bo)

Intratecala Infiltração

Ropivacaína

Naropin

Bloqueios

Dose máxima: 3 mg/kg (Ca, Eq, Bo, Ov, Cp,

nervosos

Su), 1,5 mg/kg (Fe)

Interpleural

Epidural: 1 mg/kg de sol. a 0,5% (0,2 mℓ/kg) (Ca, Fe, Ov, Cp, Su), total de 6 mℓ

Epidural Intratecala a

A dose intratecal é de 1/10 da dose epidural.

Ca: canino; Fe: felino; Eq: equino; Bo: bovino; Ov: ovino; Cp: caprino; Su: suíno.

(Eq, Bo)

Figura 17.5 Sinais progressivos de toxicidade sistêmica da lidocaína com concentrações plasmáticas crescentes. Nota: as concentrações são aproximadas e dependem de vários fatores (ver o texto).

Nem todos os anestésicos locais produzem sinais de aura, como sonolência ou excitação, antes do início das convulsões. No caso dos agentes altamente lipofílicos e com alta ligação às proteínas, como a bupivacaína, a fase de excitação pode ser breve e leve, e os primeiros sinais podem consistir em bradicardia, cianose e inconsciência.268 Em geral, pressupõe-se que a toxicidade do sistema nervoso central preceda a toxicidade cardiovascular. Essa pressuposição deriva de estudos realizados em ovinos conscientes, nos quais as doses e as concentrações plasmáticas do fármaco associadas a colapso cardiovascular (CV, definido como o desaparecimento da pressão arterial pulsátil) e a toxicidade do SNC (indicada pelo início de convulsões) foram calculadas como razão CV:SNC. Os valores para a razão CF:SNC de vários anestésicos locais em ovinos conscientes foi bem superior a 1, sustentando esse conceito.278,287 Nos seres humanos, foi realizada uma análise da frequência de convulsões e alterações cardiovasculares associadas a várias técnicas de bloqueio regional. Existe uma diferença significativa entre a taxa de desenvolvimento de convulsões com os bloqueios caudal > do plexo braquial > epidural, porém sem a ocorrência de efeitos cardiovasculares ou pulmonares adversos durante as convulsões.288 Em cães conscientes, a dose cumulativa média necessária para a atividade convulsiva foi de 4 mg/kg de tetracaína, 5 mg/kg de bupivacaína, 8 mg/kg de etidocaína e 22 mg/kg de lidocaína em um estudo.9 Em outro estudo, a administração de infusões intravenosas de lidocaína (8 mg/kg), bupivacaína (2 mg/kg/min) ou ropivacaína (2 mg/kg/min) causou convulsões generalizadas com uma dose média de 21 mg/kg de lidocaína, 4 mg/kg de bupivacaína e 5 mg/kg de ropivacaína em cães conscientes.289 A primeira atividade convulsiva observada em cães com toxicidade causada por lidocaína consistiu em extensão tônica com a infusão de uma dose de 12 mg/kg, seguida de atividade de corrida depois de 23 mg/kg e convulsões tônico-clônicas com a infusão de uma dose de 33 mg/kg.290 A concentração plasmática de lidocaína que provocou tremores musculares foi de 2,7 µg/mℓ após a administração de uma dose total de 11,1 mg/kg IV a cães conscientes.291 O início das convulsões foi observado quando as concentrações plasmáticas de lidocaína alcançaram 8,2 µg/mℓ em outro estudo envolvendo cães despertos.292 Em equinos conscientes, a concentração plasmática tóxica de lidocaína que provoca fasciculações musculares foi determinada em 3,24 µg/mℓ (faixa de 1,85 a 4,53 µg/mℓ) e não se modificou, independentemente da velocidade de administração.285 Essas concentrações plasmáticas podem ser alcançadas durante infusões intravenosas

prolongadas de lidocaína de mais de 12 h em equinos após cirurgia para cólica.293,294 Em gatos levemente anestesiados e ventilados, ocorreram convulsões após a administração de 12 mg/kg de lidocaína e 5 mg/kg de bupivacaína com velocidades de infusão intravenosa de 16 mg/kg/min e 4 mg/kg/min, respectivamente.295 A razão de toxicidade CV:SNC para a dose do fármaco foi de 4,0 para a lidocaína e de 4,8 para a bupivacaína.295 Em ovinos conscientes, as doses de likdocaína, bupivacaína e ropivacaína administradas na forma de infusão, necessárias para produzir convulsões, foram, respectivamente, de 6,8 mg/kg, 1,6 mg/kg e 3,5 mg/kg, respectivamente.296 Por conseguinte, a razão das doses convulsivantes médias (lidocaína/bupivacaína/ropivacaína) foi de aproximadamente 5:1:2.296 Existe uma relação inversa entre a dose limiar convulsiva dos anestésicos locais e a tensão arterial de dióxido de carbono.297 Isso pode ser devido a um aumento do fluxo sanguíneo cerebral durante a hipercapnia, causando maior aporte do fármaco ao cérebro e/ou diminuição da ligação dos anestésicos locais às proteínas plasmáticas, com consequente aumento do fármaco livre.298 A hipoxemia também aumenta a toxicidade do SNC e cardiovascular dos anestésicos locais.299 Toxicidade cardiovascular Em baixas concentrações, os anestésicos locais exercem, em sua maioria, um efeito antiarrítmico; entretanto, em concentrações mais altas, produzem cardiotoxicidade. Os anestésicos locais bloqueiam os canais de Na+ cardíacos e diminuem a elevação máxima da Fase 0 do potencial de ação, levando a uma inibição pronunciada e crescente da condução cardíaca.300 As alterações eletrocardiográficas incluem prolongamento dos intervalos PR e QRS e período refratário prolongado.300-302 Os efeitos cardiovasculares dos anestésicos locais são complexos e não lineares, envolvendo efeitos diretos sobre a condução e a contratilidade cardíacas e sobre o músculo liso vascular, bem como efeitos indiretos mediados pelo SNC.276 Todos os anestésicos locais causam depressão miocárdica com pequenas doses intravenosas que não provocam toxicidade manifesta do SNC.280,303 Em doses subconvulsivantes, a frequência cardíaca pode aumentar ligeiramente, e pode haver alargamento do complexo QRS, porém não são observados efeitos importantes sobre a pressão arterial e o débito cardíaco.280,303 Esses efeitos são leves e rapidamente revertidos, sem nenhuma diferença qualitativa entre os anestésicos locais.280 No início das convulsões, observa-se uma resposta simpática profunda associada a todos os anestésicos locais, que reverte a depressão miocárdica induzida, causando taquicardia e aumento da pressão arterial e do débito cardíaco.279,280,296 As doses convulsivantes de todos os anestésicos

locais de ação mais longa provocam arritmias acentuadas, tipicamente taquicardia ventricular, que pode progredir para a fibrilação ventricular ou colapso cardiovascular.279,304 Doses supraconvulsivantes de lidocaína causam hipotensão profunda, bradicardia, diminuição da contratilidade miocárdica, parada respiratória e, por fim, assistolia.279,296 Foi postulado que os efeitos tóxicos no SNC podem estar envolvidos na produção de cardiotoxicidade grave, devido ao início da insuficiência respiratória acompanhada de hipoxia, bradicardia, hipercapnia e acidose.283 Embora todos os anestésicos locais produzam efeitos inotrópicos negativos diretos, os anestésicos locais de ação mais curta, como a lidocaína e a mepivacaína, são menos arritmogênicos do que os anestésicos de ação mais longa, como a bupivacaína ou a ropivacaína.279,304 Essas divergências são produzidas por diferenças na cinética de ligação e não ligação de vários canais iônicos.305,306 Embora os agentes tanto de ação mais curta quanto de ação mais longa tenham taxas semelhantes de ligação aos canais de Na+ cardíacos, os fármacos de ação mais longa apresentam taxas de não ligação mais lentas, predispondo, assim, a arritmias cardíacas.276 Os enantiômeros R dos anestésicos locais mais lipofílicos apresentam taxas de não ligação mais lentas do que os enantiômeros S, tornando-os ainda mais arritmogênicos.305,306 Não foi observada a ocorrência de arritmias ventriculares com doses cardiotóxicas de lidocaína administradas a cães conscientes.279 Ocorreu taquicardia ventricular sem comprometimento hemodinâmico em apenas uma de oito ovelhas conscientes com lidocaína e em uma de sete com mepivacaína.304 Em contrapartida, ocorreram arritmias ventriculares em um de seis cães conscientes com doses cardiotóxicas de ropicavaína e em cinco de seis com a administração de bupivacaína.279 Ocorreu taquicardia ventricular polimórfica acompanhada de débito cardíaco diminuído em sete de dez ovelhas conscientes que receberam bupivacaína, 4 de 11 com a administração de levobupivacaína e 5 de 12 com ropivacaína.304 Embora os anestésicos locais mais recentes – ropivacaína e levobupivacaína – pareçam ser menos cardiotóxicos do que a bupivacaína (com base nas doses mais altas toleradas antes do início de arritmias graves), eles não devem ser considerados totalmente seguros.307 A anestesia geral tem impacto substancial sobre a toxicidade, a mortalidade e a farmacocinética de vários anestésicos locais e deturpa as relações de farmacocinéticafarmacodinâmica. Em um estudo de ovinos anestesiados com halotano, a depressão miocárdica preexistente do halotano foi acentuadamente exacerbada por infusões de lidocaína, mepivacaína, prilocaína, bupivacaína, levobupivacaína ou ropivacaína.304 Os efeitos tóxicos cardiovasculares de cada um dos anestésicos locais também foram prolongados em ovinos anestesiados, em comparação com animais conscientes, e,

concomitantemente, houve acentuado aumento das concentrações sanguíneas dos fármacos sob anestesia geral. Todavia, não ocorreu nenhuma arritmia grave nos ovinos anestesiados. Apesar dos efeitos cardiovasculares exagerados dos anestésicos locais quando os ovinos foram anestesiados, nenhum dos animais morreu, enquanto cerca de 15% morreram de arritmias cardíacas quando conscientes.304 Como o gradiente de K+ através das membranas dos miócitos cardíacos constitui o fator mais importante no estabelecimento do potencial de membrana, a hiperpotassemia pode aumentar acentuadamente a toxicidade dos anestésicos locais. Em condições de hiperpotassemia (5,4 mEq/ℓ) em cães, doses cardiotóxicas de lidocaína e bupivacaína foram reduzidas à metade, em comparação com condições de normopotassemia, enquanto as doses que induzem convulsões não mudaram para ambos os agentes.308 Em contrapartida, a hipopotassemia diminui a cardiotoxicidade dos analgésicos locais.308 Tratamento da toxicidade sistêmica Quando se observam sinais de toxicidade sistêmica, deve-se interromper a administração do anestésico local. O tratamento da toxicidade sistêmica é principalmente de suporte (Boxe 17.1). As principais metas consistem em oxigenação e ventilação. Pode ser necessário intubar a traqueia e proceder à ventilação mecânica do animal para evitar ou reverter a hipoxemia, a hipercapnia e a acidose, que promovem a toxicidade. Na presença de convulsões do tipo grande mal, pode-se administrar um fármaco anticonvulsivante. Se também for constatada a presença de depressão cardiovascular, não se recomenda o uso de barbitúricos ou propofol, e o tratamento com um benzodiazepínico é preferível. A toxicidade cardiovascular induzida pela lidocaína ou mepivacaína é habitualmente leve e reversível com o uso de agentes inotrópicos positivos e suporte com líquidos.15 As arritmias cardíacas produzidas por anestésicos locais de ação mais longa, como a bupivacaína (i. e., taquicardia ou fibrilação ventriculares), são habitualmente malignas e refratárias ao tratamento de rotina. Nesses casos, a reanimação cardiopulmonar deve ser imediatamente instituída, e deve-se proceder à desfibrilação, se necessário. Nos seres humanos, as diretrizes da American Society of Regional Anesthesia and Pain Medicine recomendam o uso de doses baixas de epinefrina (< 1 µg/kg) e evitar a administração de vasopressina.309 Os bloqueadores dos canais de cálcio não devem ser administrados, visto que seus efeitos cardiodepressores são exagerados.310 A amiodarona, e não a lidocaína, está indicada para o tratamento das arritmias ventriculares nesse contexto.310 Nos casos de parada cardíaca refratária, recomenda-se o uso de uma emulsão lipídica intravenosa (i. e., Intralipid® 20%), que demonstrou reverter as arritmias refratárias causadas por anestésicos locais altamente lipofílicos em diferentes modelos experimentais311,312 e em relatos clínicos de seres humanos.313-315

Em um modelo roedor de assistolia induzida por bupivacaína em animais tratados previamente com uma solução lipídica intravenosa, a dose letal mediana (LD)50 de bupivacaína aumentou em 48%.311 Em um modelo canino de cardiotoxicidade induzida por bupivacaína (10 mg/kg IV), foi instituída uma reanimação cardiopulmonar durante 10 min, e, em seguida, os cães receberam volumes semelhantes de solução salina intravenosa ou solução lipídica a 20% (dose de 4 mℓ/kg durante 2 min, seguida de 0,5 mℓ/kg/min durante 10 min).312 De maneira notável, todos os cães no grupo de controle com solução salina não conseguiram recuperar espontaneamente a circulação e morreram, enquanto todos os cães tratados com solução lipídica sobreviveram, alcançando valores quase basais da pressão arterial e frequência cardíaca em 30 min após a sua administração.312 Estudos posteriores realizados em ratos demons traram os efeitos adversos potenciais da epinefrina administrada em altas doses durante o resgate com emulsão lipídica, com maior incidência de arritmias ventriculares, hiperlactatemia, hipoxia, acidose e edema pulmonar.316,317 Outro estudo em ratos também demonstrou resultados piores quando a vasopressina foi administrada isoladamente ou em associação com epinefrina, em comparação com uma emulsão lipídica.318 Boxe 17.1 Diretrizes para o tratamento da toxicidade sistêmica dos anestésicos locais.

Toxicidade do SNC 1 2

Intubar a traqueia, administrar O2 e ventilação. Tratar as convulsões com um benzodiazepínico.

Parada cardíaca 1 2 3 4

Iniciar a reanimação cardiopulmonar básica. Administrar epinefrina em doses baixas (≤ 1 µg/kg IV). EVITAR a administração de lidocaína, vasopressina, bloqueadores dos canais de cálcio e betabloqueadores. Administrar uma emulsão lipídica a 20% IV. • Bolo inicial de 1,5 a 4 mℓ/kg durante 1 min. • Continuar com CRI de 0,25 mℓ/kg/min durante 30 a 60 min. • Se não houver resposta, administrar um bolo adicional de 1,5 mℓ/kg (até no máximo 7 mℓ/kg). • A CRI pode ser continuada em 0,5 mℓ/kg/h até obter uma melhora dos sinais clínicos (máximo de 24 h).

Dados obtidos das referências 309 e 319. O mecanismo exato de ação das emulsões lipídicas não é conhecido e provavelmente é multifatorial, porém acredita-se que esteja relacionado com a melhora do desempenho miocárdico e um efeito “escoadouro do lipídio”, que postula que o anestésico local

lipofílico seja sequestrado em um compartimento lipídico na corrente sanguínea.319 O propofol não deve ser administrado como substituto para emulsões lipídicas intravenosas, visto que o seu conteúdo de lipídio é muito baixo (10%), e as grandes doses necessárias iriam induzir depressão cardiovascular profunda.

■ Toxicidade local Neurotoxicidade A exposição dos sistemas nervosos periférico ou central aos anestésicos locais pode causar dano direto, embora essa complicação seja rara. Os mecanismos de neurotoxicidade dos anestésicos locais continuam especulativos, porém alguns estudos sugerem lesão das células de Schwann, que depende do tempo e da concentração,320 inibição do transporte axônico rápido, ruptura da barreira hematoneural, diminuição do fluxo sanguíneo neural com isquemia associada321 e desorganização da integridade da membrana celular, devido a uma propriedade detergente dos anestésicos locais.322 Todos os anestésicos locais são potencialmente neurotóxicos, e a neurotoxicidade corre paralelamente à potência anestésica. A ordem de potência in vitro de citotoxicidade é procaína ≤ mepivacaína < lidocaína < cloroprocaína < ropivacaína < bupivacaína, com base na LD50 para as células neuronais.274 A neurotoxicidade também está relacionada com a concentração do anestésico local. Concentrações clinicamente relevantes de anestésicos locais são consideradas seguras para os nervos periféricos.323 Por outro lado, a medula espinal e as raízes nervosas têm mais tendência a sofrer lesão.15 A administração intratecal a coelhos de lidocaína a 8%, bupivacaína a 2% e tetracaína a 1% causou alterações histopatológicas na medula espinal e déficits neurológicos, o que não foi observado com cloroprocaína a 2% e ropivacaína a 2%.324 O efeito citotóxico da lidocaína e da bupivacaína depende da concentração, e concentrações mais altas provocam a morte de todas as células em cultura. Em contrapartida, a mepivacaína, a ropivacaína, a procaína e a cloroprocaína não destruíram todas as células, mesmo em concentrações muito altas.274 Os efeitos dos anestésicos locais sobre o fluxo sanguíneo da medula espinal parecem ser benignos e não parecem ser responsáveis pela neurotoxicidade da medula espinal. A administração intratecal de lidocaína, mepivacaína, bupivacaína e tetracaína provoca vasodilatação e aumento do fluxo sanguíneo da medula espinal, enquanto a ropivacaína causa vasoconstrição e diminui o fluxo sanguíneo da medula espinal, sendo os efeitos dependentes da concentração.63 A incidência de lesão neurológica a longo prazo em pacientes humanos submetidos a anestesia espinal é de 0 a 0,02%.282 Por conseguinte, parece ser uma técnica relativamente segura na prática clínica quando realizada de modo adequado, utilizando concentrações de anestésicos locais clinicamente apropriadas.

Miotoxicidade Os anestésicos locais podem causar toxicidade no músculo esquelético. Em condições experimentais, todos os anestésicos locais têm o potencial de causar miotoxicidade em concentrações clinicamente relevantes. A miotoxicidade é dependente da concentração, conforme observado em um estudo realizado em coelhos, nos quais a injeção de bupivacaína a 0,75% no músculo extraocular causou mionecrose aguda e degeneração, em comparação com áreas apenas dispersas e significativamente menores de degeneração discreta das fibras musculares com a bupivacaína a 0,38%, enquanto não foi observada nenhuma degeneração muscular quando a injeção consistiu em bupivacaína a 0,19%.325 A bupivacaína parece ser mais miotóxica do que outros agentes locais, conforme julgado pela maior extensão das lesões musculares observadas.326 O mecanismo da miotoxicidade induzida por anestésicos locais está provavelmente relacionado com a desregulação da concentração intracelular de cálcio e/ou alterações na bioenergética mitocondrial.327 Na maioria dos casos, a mionecrose induzida por anestésicos locais parece ser regenerativa e clinicamente imperceptível. Entretanto, a bupivacaína e a ropivacaína provocaram dano musculoesquelético irreversível, caracterizado por mionecrose calcificada observada em 4 semanas após bloqueio de nervo periférico em um estudo realizado em suínos.326 Foi descrita a ocorrência de miopatia e mionecrose clinicamente relevantes em seres humanos após bloqueios periféricos contínuos, infiltração das margens de feridas, injeções de pontos de gatilho e bloqueios peribulbares e retrobulbares.328 Condrotoxicidade Algumas vezes, são injetados anestésicos locais por via intra-articular na prática clínica. A condrotoxicidade dos anestésicos locais foi demonstrada tanto em in vivo quanto in vitro na cartilagem tanto animal quanto humana.329-332 Do ponto de vista clínico, a condrólise tem sido associada ao uso de bombas analgésicas de anestésicos locais intra-articulares em seres humanos.333,334 A condrotoxicidade exibida pelos anestésicos locais depende do tempo e da concentração. A viabilidade de condrócitos bovinos in vitro diminuiu depois de apenas 15 min de exposição à lidocaína a 1%, e exposições mais longas à lidocaína a 1 e 2% reduziram ainda mais a viabilidade dos condrócitos.330 A viabilidade dos condrócitos foi reduzida, em grande parte, com exposição à lidocaína a 2%, e não à lidocaína a 1%.330 Esse estudo também mostrou que a superfície articular intacta não protege contra a condrotoxicidade dos anestésicos locais.330 A exposição de condrócitos equinos in vitro a bupivacaína a 0,5%, lidocaína a 2% ou mepivacaína a 2% durante 30 ou 60 min revelou que a bupivacaína é o mais condrotóxico

dos três anestésicos locais, enquanto a mepivacaína é a menos tóxica.331 A ropivacaína também é significativamente menos tóxica do que a bupivacaína e a lidocaína em cultura tanto de cartilagem articular quanto de condrócitos humanos intactos.335,336 A acentuada condrotoxicidade exibida por bupivacaína e lidocaína deve-se principalmente à necrose, mais do que à apoptose.331 Em suma, as evidências sugerem que existe maior risco de condrólise com exposição mais prolongada a uma concentração mais alta de anestésicos locais, como bomba para analgesia, do que a uma única injeção, e a mepivacaína parece ser o fármaco menos tóxico e, consequentemente, o preferido para administração intra-articular no momento atual.

■ Metemoglobinemia A formação de metemoglobina (MHb) pode ser induzida por determinados anestésicos locais em várias espécies animais e em seres humanos. A metemoglobina é produzida pela lesão oxidativa da molécula de hemoglobina. Especificamente, o ferro do grupo heme é oxidado à forma férrica (Fe3+). Nesse estado, o ferro não pode ligar-se ao oxigênio (O2), e, por conseguinte, ocorre diminuição na capacidade de transporte de oxigênio do sangue. A faixa fisiológica da MHb no sangue é de 0 a 2%.337 As concentrações de MHb de 10 a 20% são bem toleradas, porém níveis mais elevados estão frequentemente associados a sinais clínicos, e níveis acima de 70% podem causar morte.337 A desnaturação oxidativa da hemoglobina pode levar à formação de corpúsculos de Heinz (hemoglobina ou subunidades de hemoglobina precipitadas), que é irreversível e diminui o tempo de sobrevida dos eritrócitos, causando hemólise. Os anestésicos locais mais frequentemente associados à formação de MHb são a benzocaína de tipo éster e a prilocaína de tipo amida. A administração de um spray de 2 s de benzocaína (dose estimada de 56 mg) às mucosas da nasofaringe de cães, gatos, furões, macacos, coelhos e porcos miniatura induziu formação de MHb, que variou de 3,5 a 38% em 15 a 60 min após a administração em mais de 95% dos animais testados.338 Nos ovinos, a administração intranasal de benzocaína tópica durante 2 s levou à formação de MHb em metade dos animais testados, variando de 16 a 26%, enquanto um spray de 10 s causou níveis de MHb de até 50,5%.339,340 A administração dérmica de benzocaína também foi implicada em casos clínicos de metemoglobinemia em cães e gatos.341,342 Um metabólito Nhidroxi da benzocaína (i. e., O-toluidina) é a substância formadora de MHb provavelmente ativa.339 A prilocaína foi implicada em casos de metemoglobinemia em mães e fetos após administração epidural para trabalho de parto343 e após administração tópica para procedimentos dentários em seres humanos.337 Em ovinos ou macacos, a lidocaína tópica não induziu a formação de MHb, mas pode estar associada à formação de MHb em gatos e seres humanos.339,344

Quando os níveis de MHb são de 30% ou mais, ocorrem sinais clínicos de hipoxia tecidual, incluindo cianose, dispneia, náuseas, vômitos e taquicardia.337,341 Ocorrem letargia, estupor e choque quando os níveis de MHb aproximam-se de 55%.337,342 Os animais com metemoglobinemia crônica podem apresentar apenas anemia dos corpúsculos de Heinz e letargia.342 A coloração marrom chocolate do sangue e sinais clínicos que não respondem à terapia com O2 são sugestivos de metemoglobinemia. O diagnóstico definitivo é estabelecido pela determinação da concentração de MHb com cooximetria ou espectrofotometria. Os esfregaços de sangue revelam a presença de corpúsculos de Heinz nos eritrócitos. A terapia tradicional de primeira linha para a metemoglobinemia consiste na administração intravenosa lenta de solução de azul de metileno a 1% (4 mg/kg em cães, 1 a 2 mg/kg em gatos).36 A ação do azul de metileno depende da disponibilidade de fosfato de nicotinamida adenina dinucleotídio reduzido (NADPH) nos eritrócitos.337 Essa dose pode ser repetida em cães, porém é preciso ter cautela em gatos, visto que injeções repetidas de azul de metileno podem agravar acentuadamente a hemólise subsequente, sem maior redução no conteúdo de MHb.345 Deve-se administrar também glicose, visto que constitui a principal fonte de nicotinamida adenina dinucleotídio (NADH) reduzida nos eritrócitos, que é necessária para a formação de NADPH, a qual, por sua vez, é necessária para que o azul de metileno seja efetivo.337 Nos casos graves, pode ser necessária uma transfusão de sangue.

■ Toxicose (ingestão oral) Preparações tópicas contendo lidocaína, benzocaína e tetracaína são encontradas em muitos produtos adquiridos com prescrição e de venda livre, como pomadas, géis dentais, supositórios e aerossóis. Essas preparações tópicas de anestésicos locais podem ser perigosas quando ingeridas ou inadequadamente aplicadas a animais. Entre 1995 e 1999, o Animal Poison Control Center (APCC) da American Society for the Prevention of Cruelty to Animals (ASPCA) registrou mais de 70 casos de toxicose por anestésicos em uma variedade de espécies animais.346 Os casos relatados de toxicose por benzocaína ao APCC da ASPCA envolveram a ingestão de preparações tópicas ou a aplicação de spray à laringe antes da intubação endotraqueal. Os sinais clínicos em gatos e furões com toxicose por benzocaína consistiram em graus variáveis de vômitos, depressão, cianose, dispneia e taquipneia.346 Outros sinais observados na toxicose por anestésicos locais em diferentes espécies incluem sedação prolongada, vasodilatação (levando à hipotensão), arritmias cardíacas, depressão respiratória, tremores, convulsões e morte.346

■ Reações alérgicas

Os anestésicos locais de tipo éster (p. ex., procaína) estão associados a maior incidência de reações alérgicas, devido a um metabólito de ácido p-aminobenzoico (PABA). Os agentes do grupo amida não sofrem esse tipo de metabolismo e raramente causam reações alérgicas. Entretanto, os conservantes (i. e., metilparabeno, metabissulfito de sódio) usado em preparações de anestésicos locais do tipo amida são metabolizados a PABA e podem causar alergias.347,348 Por conseguinte, recomenda-se que os animais que são alérgicos a anestésicos locais do tipo éster sejam tratados com um agente de tipo amida sem conservante.347 As reações alérgicas em cães e gatos tratados com anestésicos locais do tipo amida são muito raras, em comparação com seres humanos, provavelmente por causa de seu metabolismo e produtos de degradação diferentes.36 As reações anafiláticas caracterizam-se por broncospasmo, edema das vias respiratórias superiores, vasodilatação, aumento da permeabilidade capilar e formação de pápulas e eritema cutâneos.36 A rápida intervenção com manutenção de via respiratória, a terapia com O2, a administração de epinefrina e a expansão do volume são essenciais para evitar um resultado fatal.

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18 Fisiologia Acidobásica 19 Termorregulação Peroperatória e Equilíbrio Térmico 20 Tratamento dos Distúrbios da Coagulação e das Plaquetas 21 Farmacologia Clínica e Administração de Soluções de Líquidos, Eletrólitos e Componentes Sanguíneos

Introdução Ácidos, bases, pH, pK e equação de Henderson-Hasselbach Sistemas de tampão do corpo Tampões químicos Sistema respiratório Sistema renal Efeitos da temperatura sobre o equilíbrio acidobásico Terminologia acidobásica Hiato aniônico Diferença iônica forte Distúrbios acidobásicos clínicos Distúrbios da PCO2 Aumentos na diferença alveoarterial de oxigênio Distúrbios na diferença iônica forte Distúrbios na [ATOT] Anormalidades na água livre Anormalidades isonatrêmicas de cloreto Anormalidades isonatrêmicas de ácido orgânico Estimativa da concentração de ânion forte | Hiato aniônico forte Avaliações do equilíbrio acidobásico Referências bibliográficas

Introdução Um princípio fundamental da fisiologia é a homeostasia: a manutenção de condições

constantes, mediante o equilíbrio dinâmico do ambiente corporal interno. Um dos vários processos que mantêm a homeostasia é a regulação do equilíbrio acidobásico, expressão cunhada por L.J. Henderson.1 O entendimento atual da fisiologia acidobásica continua a evoluir com o auxílio de tecnologias novas e aprimoradas, que permitem a determinação da quantidade de substâncias iônicas antes imensuráveis e que contribuem para o equilíbrio acidobásico. Dogmas históricos e inovações analíticas continuam a influenciar a interpretação clínica dos distúrbios acidobásicos. O que já foi puramente ciência descritiva adquiriu uma base muito mais quantitativa e mecanicamente, passando a contribuir de maneira significativa para um entendimento mais abrangente dos múltiplos fatores responsáveis pela regulação acidobásica na saúde e na doença. Central a todos os esquemas de equilíbrio acidobásico está o entendimento de que o metabolismo dos alimentos (carboidratos, gorduras e proteínas) dependente de oxigênio resulta na produção previsível de trabalho, calor e detritos. Na verdade, os processos metabólicos normais são responsáveis por eliminar a produção de milhares de milimoles de dióxido de carbono (CO2; ácido volátil) e, potencialmente, centenas de miliequivalentes de íons hidrogênio não voláteis (ácidos fixos) diariamente. As diferenças individuais na quantidade produzida de CO2 e íon hidrogênio (H+) são influenciadas pelo tipo de alimentação (dieta), pela taxa metabólica basal celular e pela temperatura corporal. Animais que consomem uma dieta rica em proteína produzem CO2 e quantidades excessivas de precursores do H+, ao passo que animais que consomem alimentos ricos em material vegetal produzem CO2 e quantidades excessivas de precursores do íon bicarbonato (HCO3–). O CO2 produzido combina-se com a água e é catalisado pela anidrase carbônica (AC), para formar ácido carbônico (H2CO3). A formação de ácido carbônico a partir de CO2 e água (H2O) (equação 18.1) e a geração subsequente de H+ e HCO3– (equação 18.2) fornecem um ponto focal para quase todas as discussões do equilíbrio acidobásico. Em termos históricos, na década de 1950, a concentração plasmática de íon hidrogênio + ([H ]) e o conteúdo de CO2 eram as únicas quantidades acidobásicas relevantes que poderiam ser determinadas de maneira conveniente. Os estudos de Henderson enfatizaram que são produzidas grandes quantidades de CO2 pelas células envolvidas no metabolismo e o CO2 está em equilíbrio com os íons H+ e HCO3–.

Combinando as equações 18.1 e 18.2, temos:

Uma vez mais, é importante enfatizar que as tecnologias modernas levaram ao avanço da ciência no que diz respeito à homeostasia acidobásica muito além do que se conhecia na década de 1950 e da criação da expressão equilíbrio acidobásico por Henderson. Apesar disso, a importância central da regulação do H+ para a função celular e a saúde dos animais não pode ser muito enfatizada e levou A.B. Hastings a afirmar: “Ao pensar um pouco sobre isso, suponho que nenhum constituinte de matéria viva tem tanto poder a ponto de influenciar o comportamento biológico”.2 A homeostasia acidobásica (regulação do [H+]) envolve a atividade normal integrada dos pulmões, rins, fígado e trato gastrintestinal (Figura 18.1). Os pulmões removem o CO2, os rins removem o H+ como ácido fixo, o fígado metaboliza proteínas e o intestino regula a absorção de água e nutrientes, além de eliminar resíduos/detritos. Neste capítulo, vamos rever os princípios básicos que determinam o equilíbrio acidobásico e sua integração nas abordagens descritiva e quantitativa das anormalidades acidobásicas em animais. Outros textos mais específicos devem ser consultados para uma revisão mais abrangente do assunto.2–8

Figura 18.1 O intestino, o fígado, os pulmões e os rins ajudam na homeostasia acidobásica.

Figura 18.2 Relação entre [H+] e pH. A relação não é linear.

Ácidos, bases, pH, pK e equação de HendersonHasselbach Quando aplicadas a soluções biológicas, a maioria das definições formais de ácidos e bases utiliza o conceito de Bronsted-Lowery, que classifica os ácidos como doadores de prótons e as bases como receptoras de prótons. No entanto, uma definição funcional mais apropriada pode ser a de que os ácidos são substâncias que aumentam a concentração de H+ ([H+]), expressão usada como sinônimo de prótons em solução aquosa.9 A força de um ácido e a acidez resultante de uma solução são determinadas por seu coeficiente de atividade, fator influenciado pela temperatura e que determina o grau de dissociação. Como, por definição, uma base é um receptor de H+ (prótons), cada ácido se dissocia em H+ e um receptor potencial de H+ ou base conjugada. Por exemplo, H2CO3 em solução aquosa dissocia-se em H+ e sua base conjugada HCO3–. Substâncias que são ácidos fortes têm bases conjugadas fracas e vice-versa. É interessante que a água, o solvente mais abundante no corpo, pode funcionar tanto como ácido (H3O+; doador de próton) quanto como base (H2O; receptor de próton), dependendo das condições locais (H+ + H2O ↔ H3O+). Em pH (7,4) e temperatura (37 a 38°C) normais, a água é a base mais abundante no corpo. Fisiológica e clinicamente, a formação de ácidos e, portanto, a produção de H+ são enfatizadas porque o produto final da ingestão oral, o metabolismo tecidual, e de muitos

processos fisiológicos é a produção e a liberação de íon hidrogênio. O conceito de pH (– log10[H+]) foi desenvolvido para simplificar a notação necessária para descrever as grandes quantidades de H+ produzidas e as alterações na [H+] observadas na natureza e em experimentos químicos. Essa notação, embora complicada matematicamente, converte [H+] em pH pela fórmula (Figura 18.2):

Quaisquer que sejam as questões de conversão e a faixa relativamente estreita (20 a 150 mEq/ℓ) sobre quais alterações ocorrem na [H+] nos líquidos biológicos, o conceito de pH persistiu e é relatado rotineiramente na maioria dos analisadores de pH e da gasometria. Foram desenvolvidas fórmulas de conversão do pH para [H+]:

em que pHm é o pH medido. O desenvolvimento da conversão do pH em conjunto com a teoria do equilíbrio acidobásico e a introdução de métodos para medir o pH no sangue por Hasselbach (1912) levaram ao desenvolvimento da equação de Henderson-Hasselbach e à caracterização de distúrbios acidobásicos como sendo de origem respiratória ou metabólica (não respiratória). A presença de muitos equilíbrios químicos no sangue (p. ex., fosfatos, sulfatos) e a lei de ação das massas produzem muitas equações de equilíbrio potencial que poderiam ser usadas para explicar o equilíbrio acidobásico. As razões pelas quais a equação de equilíbrio do ácido carbônico (equações 18.1 e 18.2) foi escolhida para descrever o equilíbrio acidobásico são (a) históricas (havia métodos para se determinar o conteúdo de CO2); (b) o achado de que não a água, mas o HCO3– é a principal base no líquido extracelular e o H2CO3 é o principal ácido; e (c) a equação do ácido carbônico incorpora tanto substâncias voláteis como não voláteis (fixas). A lei de ação das massas estabelece que a taxa (velocidade) de uma reação é proporcional à concentração dos reagentes e à constante de dissociação (K) da reação. A taxa de dissociação (r) de um ácido pode ser caracterizada como:

usando-se a constante de dissociação K1,

Similarmente:

e:

que em equilíbrio resulta em r1 = r2, ou:

em que Ka é a constante de dissociação para o ácido HA. Aplicando esta lei ao ácido carbônico, Henderson derivou:

Henderson usou a concentração do CO2 molecular dissolvido em vez do H2CO3, porque este não podia ser medido. Hasselbach então introduziu a PCO2 na equação de Henderson e a colocou na forma logarítmica, criando a nova equação de Henderson-Hasselbach aplicada agora universalmente:

em que pH é –log10[H+], pKa é = log10 Ka e s é a solubilidade do CO2. Esta equação é frequentemente reescrita para fins explicativos como:

Henderson aplicou deliberadamente a lei de ação das massas ao equilíbrio do ácido carbônico. A equação de Henderson-Hasselbach indica a quantidade de H+ disponível para reagir com bases. Como ácidos e bases são partículas com carga, a aplicação desta equação aos líquidos biológicos pressupõe que: • • •

A massa é conservada: a concentração de todas as substâncias pode ser considerada a soma das concentrações de formas dissociadas e não dissociadas Todas as constantes de dissociação para todas as substâncias incompletamente dissociadas (ácidos fracos e bases) são satisfeitas A eletroneutralidade é preservada: todas as cargas positivas devem igualar todas as cargas negativas.

Estas questões têm relevância particular para a aplicação dos princípios acidobásicos e a interpretação dos desequilíbrios acidobásicos. A preservação da eletroneutralidade (ânions = cátions) serve como a base para integrar sempre as concentrações de eletrólitos (Na+, K+, Cl– etc.) no diagnóstico e na interpretação dos desequilíbrios acidobásicos.

Sistemas de tampão do corpo O corpo usa três mecanismos principais para minimizar ou tamponar as cargas na [H+].6,7 Os tampões químicos sanguíneos agem em questão de segundos para resistir ou reduzir as cargas na [H+] e são a primeira linha de defesa contra alterações no pH. O sistema respiratório responde em minutos para resistir a alterações na [H+] regulando a pressão parcial de CO2 (tamponamento fisiológico) e eliminando o excesso de moléculas de CO2 causado por um aumento na produção de H+ (tamponamento químico).

Por fim, o H+ produzido por mecanismos não respiratórios (acidose metabólica ou não respiratória) é excretado pelos rins na urina por um período de horas ou dias (Figura 18.3).

Figura 18.3 Mecanismos de tamponamento do corpo.

■ Tampões químicos São substâncias que minimizam as cargas na [H+] ou o pH de uma solução quando há o acréscimo de um ácido ou uma base.10,11 Uma solução tampão consiste em um ácido fraco e sua base conjugada e é mais efetiva quando o pH está dentro de 1 unidade de pH de sua constante de dissociação (pKa) (Tabela 18.1). Alterações na [H+] sanguínea, intersticial e do líquido intracelular são modificadas imediatamente por sistemas de tamponamento químico. A razão da forma aniônica [A–] do tampão relativa à de seu ácido conjugado [HA] é uma função de sua constante de dissociação (PKa) e da [H+]. No caso de ácidos fracos, à medida que a [H+] aumenta, [A–] diminui e [HA] aumenta em quantidades iguais, mantendo a quantidade total de ATOT (ATOT = HA + A–) a mesma. Os principais tampões químicos H+ são os sistemas de tampão do bicarbonato (HCO3–/H2CO3), do fosfato

(HPO4–/H2PO4) e de proteína (Prot–/H Prot). Os ossos podem contribuir com carbonato de cálcio e fosfato de cálcio para o líquido extracelular, aumentando assim a capacidade de tamponamento. Na verdade, os ossos podem ser responsáveis por até 40% do tamponamento de uma carga aguda de ácido. Em termos funcionais, em algum momento há um aumento na [H+] no corpo, a forma aniônica do tampão (HCO3–, HPO4– e Prot–) aceita o excesso de prótons, convertendo o tampão em seu ácido conjugado (H2CO3, H2PO4 e H Prot). Como o corpo só pode ter uma [H+], a razão do ácido para as formas de sal dos vários pares de tampões em solução sempre pode ser prevista pela equação de HendersonHasselbach (princípio iso-hídrico), desde que sua concentração e a constante de dissociação (pKa) sejam conhecidas. Com o conhecimento do comportamento do par tampão, é possível predizer o comportamento de todos os demais pares de tampão da solução. Conforme assinalado antes, o par tampão HCO3–/H2CO3 é usado mais frequentemente para se determinar o estado acidobásico na prática clínica, por ser o tampão químico mais proeminente no líquido extracelular e na presença de anidrase carbônica, formas do ácido carbônico CO2, que é eliminado pela ventilação alveolar. Portanto, em condições normais, o corpo pode ser considerado um sistema ‘aberto’. Aproximadamente 60% da capacidade corporal de tamponamento ocorre por fosfatos e proteínas intracelulares. Os fosfatos inorgânicos e orgânicos (ATP, ADP e 2,3-DPG) têm valores de pKa que variam de 6 a 7,5, o que os torna tampões químicos ideais em uma ampla variação de valores potenciais de pH intracelular. O fosfato inorgânico (pKa de 6,8) é o principal tampão na urina, porque o pH tubular renal (de 6 a 7) inclui a pKa do par tampão HPO4–/H2 PO4. Tabela 18.1 Valores de pKa de tampões químicos importantes.a Composto

pKa

Ácido láctico

3,9

Ácido 3-hidroxibutírico

4,7

Creatinina

5

Fosfatos orgânicos

6 a 7,5

Ácido carbônico

6,1

Grupo imidazólico da histidina

6,4 a 6,7

Hemoglobina oxigenada

6,7

Fosfatos inorgânicos

6,8

Amino α (aminoterminal)

7,4 a 7,9

Hemoglobina desoxigenada

7,9

Amônio

9,2

Bicarbonato

9,8

a

Compostos com valores de pKa na faixa de 6,4 a 8,4 são mais úteis como tampões nos sistemas biológicos. Os valores de

pKa para o grupo imidazólico da histidina e os grupos amino α (aminoterminal) são os dos grupos laterais nas proteínas. A faixa de pKa para os fosfatos orgânicos refere-se a compostos intracelulares tais como ATP, ADP e 2,3-DPG. A regulação do pH intracelular depende da atividade de dois sistemas de transporte iônico na membrana celular: os antiporters Na+-H+ e Cl–-HCO3– (bomba de cloreto) e as proteínas intracelulares. As proteínas são de longe os tampões intracelulares mais importantes. A hemoglobina contribui aproximadamente com 80% da capacidade de tamponamento do sangue total que não o bicarbonato e, com outras proteínas intracelulares, é responsável por 75% do poder de tamponamento químico do corpo. O grupo intracelular dissociável de proteína mais importante é o anel imidazol da histidina (pKa de 6,4 a 6,7). Os grupos amino α de proteínas (pKa de 7,4 a 7,9) desempenham um papel secundário, porém importante, no tamponamento intracelular. As proteínas plasmáticas, em particular a albumina, também contêm histidina e grupo amino α, e coletivamente são responsáveis por 20% da capacidade de tamponamento do sangue total não exercida pelo bicarbonato (Tabela 18.2).

■ Sistema respiratório O sistema respiratório serve como um caminho pelo qual a [H+] pode ser regulada mediante variações na pressão parcial de dióxido de carbono (PCO2) (Figura 18.1). Quimiorreceptores em todo o corpo, mas particularmente aqueles situados no bulbo e no corpo carotídeo, monitoram alterações na [H+] e na PCO2 e ajustam a respiração (o volume corrente e a frequência respiratória) para manter uma [H+] normal. A associação de H+ com HCO3– e a formação subsequente de CO2 e H2O é um exemplo de tamponamento químico muito rápido (sistema fechado), enquanto a eliminação subsequente de CO2 pelo pulmão via aumento da ventilação (sistema fisiológico aberto) requer um tempo mais prolongado

de resposta (em geral minutos). Alterações no CO2 sanguíneo também têm consequências importantes para a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio e sua capacidade de tamponamento. Aumentos na PCO2 aumentam a [H+] e diminuem a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio (efeito Bohr: desvio da curva de oxigênio e hemoglobina para a direita). Essa queda na afinidade da hemoglobina pelo oxigênio é vantajosa nos tecidos, permitindo que ela libere mais oxigênio para o metabolismo. A hemoglobina não oxigenada, por sua vez, pode transportar mais CO2 na forma de compostos carbamino da hemoglobina (H+-Prot+) para os pulmões (efeito Haldane). É importante lembrar que em qualquer tempo há uma alteração na PCO2 relativamente maior na [H+] do que na [HCO3–], porque a última é medida em miliequivalentes por litro e a [H+] o é em nanoequivalentes por litro. É importante lembrar que a manutenção da [H+] em uma faixa estreita de valores é vital para a atividade enzimática normal nos tecidos e a viabilidade celular.

■ Sistema renal A síntese de um novo HCO3– e a excreção do excesso de H+ enfatiza o papel dos rins tanto no tamponamento químico como no fisiológico (Figura 18.1).12 Embora relativamente lentos (horas a dias), em comparação com os pulmões (minutos) e o tamponamento químico (segundos), os rins servem como o meio principal pelo qual os ácidos, produzidos por processos metabólicos (não pela produção de CO2), acabam sendo eliminados (Figura 18.3). Todos os íons hidrogênio produzidos pelos processos metabólicos são excretados na urina em combinação com ânions fracos (acidez titulável), primariamente fosfato e sais de amônio. Acidez titulável pode ser considerada um sinônimo da concentração urinária de fosfato, mas na realidade representa todos os ácidos fracos, incluindo creatinina e urato. A excreção líquida de ácido pelos rins inclui a acidez titulável e o mínimo de amônio que o HCO3– eliminou na urina. O amônio (NH4+) é produzido no túbulo proximal, primordialmente a partir do metabolismo da glutamina em um α-cetoglutarato e NH3, processo que gera simultaneamente HCO3–. Aumentos na produção de H+ podem aumentar cinco vezes a taxa de excreção do sal amônio durante acidose metabólica grave (Figura 18.4). É importante notar que a perda de potássio das células pode levar ao acúmulo intracelular de H+ ou Na+ para manter a neutralidade elétrica. Nas células tubulares renais, esse efeito pode aumentar a excreção de H+ (acidúria) e a reabsorção de HCO3– (‘acidúria paradoxal’). A acidose de célula tubular renal também pode aumentar o metabolismo do glutamato e a produção de NH3, ocasionando maior excreção de NH4+. Sabe-se que a alcalemia e a acidúria paradoxal ocorrem em pessoas, ratos e ruminantes. Sua importância em cães e gatos ainda não está bem documentada.

Tabela 18.2 Principais tampões do corpo. pKa

pH do compartimento Base de efetividade

Fraqueza

LEC Remoção do CO2 pelos HCO3–

6,1

7,4

pulmões A quantidade depende

Distância do pH de pK

dos pulmões LICa

Imidazol

Próximo de 7

7

HCO3–

6,1

7

Quantidade

Mudanças de carga nas

excessivamente grande

proteínas do LICb

Quantidade

Depende dos pulmões

relativamente grande

para a remoção de CO2

Urina

Fosfato inorgânico

6,8

5a7

pK mais alto que o pH da urina

Pouca capacidade de aumentar a taxa de excreção

LEC, líquido extracelular; LIC, líquido intracelular; HCO3–, íon bicarbonato de sódio. a

Embora o fosfato de creatina no LIC não seja um tampão, durante acidemia ele é hidrolisado, o que o capacita a ligar-se

ao H+. b

Esta modificação na carga das proteínas do LIC pode ter efeitos importantes na atividade das enzimas, de transporte e

no volume do LIC.

Figura 18.4 Reabsorção e regeneração do íon bicarbonato de sódio (HCO3–) nos túbulos renais. A reabsorção de bicarbonato no túbulo proximal coincide com a secreção de H+. A regeneração de bicarbonato nos túbulos renais coincide com a titulação de fosfato pela formação de H+ e amônio.

Efeitos da temperatura sobre o equilíbrio acidobásico Aumentos ou quedas na temperatura corporal são frequentes em animais durante anestesia e cirurgia. Os aumentos podem ser causados por estresse, aumento da atividade dos músculos esqueléticos (relaxamento inadequado), doença sistêmica e/ou distúrbios infecciosos e genéticos (hipertermia maligna). Hipotermia é uma consequência comum de anestesia e cirurgia, sendo muito mais profunda em animais pequenos (com menos de 8 a 10 kg de peso), por causa da razão maior de área de superfície corporal com relação à massa corporal. Quedas na temperatura corporal são potencializadas por soluções de limpeza (água ou álcool), exposição ao frio (mesas de inox), doença (choque), fármacos que causam vasodilatação (fenotiazínicos, anestésicos inalatórios) e relaxantes musculares (bloqueadores neuromusculares). As alterações na temperatura corporal afetam a [H+] de

todos os líquidos corporais. Aumentos na temperatura corporal diminuem o pH (aumentam a [H+]) e vice-versa, de maneira que o pH do sangue muda 0,015 a 0,02 unidade/oC. Esperam-se alterações na [H+] e no pH com a temperatura corporal por causa das alterações conhecidas induzidas na temperatura nas constantes de dissociação (pKa) e na solubilidade do CO2 no sangue. Por exemplo, à medida que a temperatura corporal diminui, pKa e solubilidade do CO2 aumentam, acarretando um aumento no pH e queda na PCO2 (Tabela 18.3). Acredita-se que essas alterações dependentes da temperatura no pH intra e extracelular sejam importantes para a manutenção de uma razão de OH–/H+ (alcalinidade relativa) de 16:1 em todo o corpo.14 Sabe-se que uma alcalinidade relativa constante de 16:1 de OH– e H+ é ótima para os sistemas enzimáticos celulares funcionarem normalmente. O mais importante dos grupos dissociáveis responsáveis pela manutenção de uma razão de OH–/H+ constante é o anel imidazólico dos resíduos de histidina da hemoglobina. A dissociação fracionada de imidazol-histidina permanece constante conforme a temperatura muda e varia com o pH durante condições isotérmicas. Essa regulação da dissociação de imidazol-histidina para manter o equilíbrio acidobásico denomina-se regulação do estado alfa, em contraste com o conceito de regulação do estado do pH, em que os valores de pH são mantidos constantes (Tabela 18.4).14 Os conceitos de estado alfa e estado do pH de equilíbrio acidobásico têm sido usados para a interpretação do pH e da gasometria sanguínea em seres humanos com temperaturas acima ou abaixo das normais.15 Os proponentes da hipótese do estado do pH argumentam que é importante manter constantes um pH de 7,40 e uma PCO2 de 40 mmHg em qualquer temperatura, enquanto os proponentes da estratégia do estado alfa tentam manter uma razão constante de [H+] para [OH–] de 1:16. Os proponentes da estratégia do estado do pH entendem que, se o pH e a PCO2 forem mantidos constantes em 7,40 e 40 mmHg, respectivamente, durante hipotermia, o animal estaria acidótico, mas argumentam que a terapia orientada pelo estado do pH reduz a morbidade.16 Os proponentes da terapia orientada pelo estado alfa têm argumentos similares e assinalam que o fluxo sanguíneo para órgãos vitais, em particular o cérebro, torna-se dependente da pressão (perda da autorregulação) no manejo de acordo com o estado do pH. Conforme uma visão prática, o pH e a PCO2 não precisam ser corrigidos por causa da temperatura, a menos que sejam necessários valores absolutos na temperatura do animal no momento em questão. A determinação do pH e dos gases sanguíneos (PO2 e PCO2) em amostra de sangue obtida de um animal com hipotermia (a temperatura em que a maioria dos aparelhos de gasometria arterial está calibrada é em 37 ou 38°C) possibilita a interpretação de anormalidades acidobásicas para as decisões terapêuticas apropriadas. Faz-se essa última afirmação com o conhecimento de que os valores do pH e dos gases sanguíneos obtidos estão corretos apenas em 37 ou 38°C e não representam os valores reais na temperatura do animal em

dado momento (a menos que seja de 37 ou 38°C). Assim, tantos valores corretos como incorretos da gasometria podem ter utilidade questionável em animais com desvios significativos da temperatura normal do corpo. Tabela 18.3 Efeito da temperatura sobre a PO2, a PCO2 e o pH. Temp °C

PO2

PCO2

pH

20

27

19

7,65

25

37

24

7,58

30

51

30

7,50

35

70

37

7,43

36

75

38

7,41

37

80

40

7,40

38

85

42

7,39

39

91

44

7,37

40

97

45

7,36

Tabela 18.4 Comparação da regulação acidobásica pelo estado do pH e pelo estado alfa.

Conceito

Propósito CO2 total

Manutenção do Estado

Imidazol a e

pH e da PaCO2

tamponamento

intracelular

Excesso de carga Estado do pH

pH constante

Aumento

Valores normais

Acidótico

(+),

corrigidos

(excesso de H+)

tamponamento diminuído

Estrutura e função enzimáticas Alteradas e atividade diminuída

Carga líquida Estado alfa

OH–/H+ constante

Constante

Valores normais

Neutro (H+ =

não corrigidos

OH–)

constante,

Normais e

tamponamento

atividade

constante

máxima

Terminologia acidobásica Foram desenvolvidas três abordagens à fisiologia acidobásica empregando variáveis diferentes, mas inter-relacionadas, para avaliar alterações no equilíbrio acidobásico (Figura 18.5).11 Conforme descrito antes, as descrições tradicionais de equilíbrio acidobásico e anormalidades acidobásicas baseiam-se na definição de Bronsted-Lowery (doador de prótons) de um ácido e uma base, bem como na equação de Henderson-Hasselbach, para a determinação do pH e da concentração de prótons. Os termos acidose e alcalose, por exemplo, são usados para descrever o acúmulo anormal ou patológico (-ose) de ácido [H+] ou álcali [OH–] no corpo.6 Os termos acidemia e alcalemia são usados para descrever se o pH está ácido ou alcalino, respectivamente. A equação de Henderson-Hasselbach caracteriza todos os distúrbios acidobásicos como sendo respiratórios ou metabólicos (não respiratórios), por causa da produção e da eliminação de ácidos voláteis (CO2 e H2CO3 dissolvidos) e não voláteis ou fixos (p. ex., láctico e fosfórico), respectivamente. Portanto, são possíveis apenas quatro anormalidades acidobásicas primárias: acidose respiratória, acidose metabólica, alcalose respiratória e alcalose metabólica (Tabela 18.5). Clinicamente, os termos respiratório(a) e metabólico(a) têm sido usados para implicar o envolvimento pulmonar e renal na regulação acidobásica:

Figura 18.5 As três abordagens usadas para descrever o desequilíbrio acidobásico. PCO2 = pressão parcial de dióxido de carbono; EPB = excesso padrão de base; DIF = diferença

iônica forte; ATOT = ácido fraco total; HAF = hiato aniônico forte. Tabela 18.5 Características tradicionais dos distúrbios acidobásicos primários. Distúrbio

Resposta

pH

[H+]

Distúrbio primário





↓ [HCO3–]

↓ PCO2





↑ [HCO3–]

↑ PCO2

Acidose respiratória





↑ [PCO2]

↑ [HCO3–]

Alcalose respiratória





↓ [PCO2]

↓ [HCO3–]

Acidose não respiratória Alcalose não respiratória

compensatória

Não respiratória é preferível a metabólica. HCO3–, íon bicarbonato de sódio. Frequentemente substitui-se metabólica por não respiratória em muitas discussões de desequilíbrio acidobásico, porque incorpora todos os mecanismos responsáveis pelo mesmo, além da produção de CO2 e ácido carbônico (H2CO3). Tais mecanismos incluem alterações na concentração de íons fortes (completamente dissociados), conforme avaliados pelo hiato aniônico e pela diferença iônica forte, os tampões plasmáticos não voláteis (primariamente proteínas séricas; ATOT) e a força iônica (constantes de dissociação; pHa) da solução (Figura 18.6). Notar que os distúrbios acidobásicos metabólicos ou não respiratórios podem ser provocados por alterações nos íons fortes ou nos fracos. Ambos esses íons podem ser medidos rotineiramente (p. ex., Cl–) ou não (lactatos, cetonas). Os que não são medidos rotineiramente são conhecidos como ‘íons não medidos’. Em suma, os distúrbios acidobásicos são causados por quatro fatores independentes (PCO2, DIF, ATOT e pKa) que podem alterar a [H+]. Cada termo é regulado e pode ser alterado independentemente dos outros e resultar em alterações na [H+].7,8 Entretanto, devese ressaltar que alterações na temperatura podem afetar todas as variáveis independentes, consideração que tem importância especial durante cirurgia e anestesia, especialmente em pecilotérmicos.14 Podem surgir anormalidades primárias no equilíbrio acidobásico de distúrbios em qualquer uma ou várias das variáveis independentes (Figura 18.6). Diz-se que ocorrem anormalidades acidobásicas simples quando uma variável independente é responsável pelo desequilíbrio acidobásico. As anormalidades acidobásicas mistas são causadas por distúrbios em duas ou mais das variáveis independentes e podem ser aditivas

(acidose respiratória e não respiratória) ou não (alcalose respiratória e acidose não respiratória) com relação à sua capacidade de influenciar a [H+] medida como o pH (Tabela 18.6).17 Ocorrem anormalidades acidobásicas mistas quando duas anormalidades acidobásicas primárias exercem efeitos opostos na [H+] plasmática. Animais com anormalidades acidobásicas mistas têm tanto acidose como alcalose, mas não demonstram necessariamente acidemia ou alcalemia, porque o pH sanguíneo pode estar normal. Observações da química sanguínea que devem levar à suspeita de um distúrbio acidobásico misto quando se avaliam os resultados da gasometria sanguínea incluem:17

Figura 18.6 Variáveis independentes responsáveis pelo equilíbrio acidobásico. As variáveis dependentes (H+ e OH–) estão dentro da elipse tracejada. DIF = diferença iônica forte.

• • •

A presença de um pH normal com PCO2 e/ou [H+] anormais Uma alteração no pH em direção oposta à prevista para o distúrbio primário conhecido Alterações na PCO2 e na [HCO3–] em direções opostas.

Os distúrbios acidobásicos mistos podem ser classificados com base na origem dos distúrbios primários como os mistos respiratórios e os não respiratórios e os triplos. Eles também podem ser classificados com base em seu efeito sobre o pH de um animal em combinações aditivas, não aditivas (compensadas) e distúrbios triplos (Tabela 18.6). Nas combinações aditivas, ambos os distúrbios primários tendem a modificar o pH na mesma direção (p. ex., acidose respiratória e não respiratória), enquanto, nas combinações não aditivas, os distúrbios primários tendem a alterar o pH em direções opostas (p. ex., alcalose respiratória e acidose não respiratória). O pH final reflete o distúrbio dominante dos dois compensados nas combinações não aditivas.2 Em outro local, foram apresentadas revisões detalhadas dos distúrbios acidobásicos em animais domésticos.4,5,17 Alterações acidobásicas secundárias ou compensatórias (adaptativas) são frequentes em resposta a anormalidades acidobásicas mais primárias e ajudam no tamponamento ou minimizando as alterações na [H+] plasmática. As anormalidades acidobásicas

respiratórias, por exemplo, em geral são compensadas por alterações na função respiratória controladas na direção oposta (Tabela 18.7). Nas anormalidades acidobásicas simples, como a acidose respiratória primária causada por hipoventilação, o rim compensa produzindo alcalose não respiratória (Tabela 18.5). Tabela 18.6 Classificação dos distúrbios acidobásicos mistos. Classificação

Efeito sobre o pH

Distúrbios respiratórios mistos Acidose respiratória aguda ou crônica

Aditivo

Alcalose respiratória aguda ou crônica

Aditivo

Distúrbios respiratórios e não respiratórios mistos Acidose respiratória e não respiratória

Aditivo

Acidose respiratória e alcalose não respiratória

Não aditivo

Alcalose respiratória e acidose não respiratória

Não aditivo

Alcalose respiratória e não respiratória

Aditivo

Distúrbios não respiratórios mistos Acidose não respiratória e alcalose não respiratória

Não aditivo

Normal mais acidose não respiratória com hiato aniônico alto

Aditivo

Acidose não respiratória com hiato aniônico alto misto

Aditivo

Acidose não respiratória com hiato aniônico normal misto

Aditivo

Distúrbios triplos Acidose não respiratória, alcalose não respiratória e acidose

O pH final é função da dominância relativa de processos

respiratória

acidificantes e alcalinizantes

Acidose não respiratória, alcalose não respiratória e respiratória

A compensação respiratória da acidose não respiratória é conseguida com o aumento da ventilação alveolar e a excreção de CO2 pelos pulmões. A acidose não respiratória se caracteriza por aumento na [H+], queda na [HCO3–] e no pH sanguíneos, bem como na PCO2 (alcalose respiratória), causada por hiperventilação secundária, enquanto a alcalose não respiratória se caracteriza por diminuição na [H+], aumento na [HCO3–] e no pH sanguíneos, bem como na PCO2, por causa da hipoventilação compensatória (alcalose respiratória) (Tabela 18.5). Nos distúrbios acidobásicos respiratórios, a compensação ocorre em duas fases. A primeira consiste na filtração por tampões que não bicarbonato e a segunda reflete a compensação renal do distúrbio acidobásico, aumentando ou diminuindo a excreção de HCO3– e Cl– na urina (Figura 18.7). A acidose respiratória caracteriza-se por aumento na PCO2 e na [H+], queda no pH e aumento associado na [HCO3–] sanguínea. O acúmulo de CO2 é causado por hipoventilação alveolar. Ocorre compensação renal por titulação de tampões que não o bicarbonato, aumento líquido no ácido, na excreção de Cl– e na reabsorção de HCO3– pelos rins.6,12 A alcalose respiratória caracteriza-se por queda na PCO2 e na [H+], aumento no pH e uma queda compensatória na [HCO3–] sanguínea. A compensação inicial na alcalose respiratória é causada pela liberação de H+ dos tampões que não o bicarbonato dentro das células. A segunda fase é mediada por uma queda compensatória na excreção líquida de ácido pelos rins.12 Ao analisarmos as alterações secundárias em determinado distúrbio acidobásico, é importante lembrar o seguinte: • • •

Com exceção da alcalose respiratória crônica, a compensação não faz com que o pH volte ao normal. Quase sempre, o pH tende na direção da condição primária Não ocorre hipercompensação É preciso que decorra tempo suficiente para a compensação atingir um estado estável, durante o qual é possível estimar a compensação esperada (Tabela 18.7).

Tabela 18.7 Respostas compensatórias nos distúrbios acidobásicos primários. Distúrbio

Alteração primária

Intervalo esperado de compensação PCO2 = últimos dois dígitos de pH × 100

Acidose não respiratória

↓ [HCO3–]

ΔPCO2 = 1 – 1,13 (Δ[HCO3–]) PCO2 = [HCO3–] + 15 PCO2 = 0,7 [HCO3–] ± 3 (cães) PCO2: aumento variável

Alcalose não respiratória

↑ [HCO3–]

PCO2 = aumentos de 0,6 mmHg para cada novo aumento de 1 mEq/ℓ na [HCO3–] PCO2 = 0,7 [HCO3–] ± 3 (cães)

Acidose respiratória Aguda [HCO3–] aumenta 1 mEq/ℓ e pH diminui Aguda

↑ PCO2

0,05 unidade para cada aumento de 10 mmHg na PCO2 [HCO3–] = 0,15 PCO2 ± 2 (cães) [HCO3–] aumenta 3,5 mEq/ℓ e pH diminui

Crônica

↑ PCO2

0,07 unidade a cada aumento de 10 mmHg na PCO2 [HCO3–] = 0,35 PCO2 ± 2 (cães)

Alcalose respiratória [HCO3–] cai 2 mEq/ℓ e pH aumenta 0,1 Aguda

↓ PCO2

unidade a cada queda de 10 mmHg na PCO2 [HCO3–] = 0,25 PCO2 ± 2 (cães) [HCO3–] cai 5 mEq/ℓ e pH aumenta 0,15

Crônica

↓ PCO2

unidade a cada queda de 10 mmHg na PCO2 [HCO3–] = 0,55 PCO2 ± 2 (cães)

HCO3–, íon bicarbonato de sódio.

Figura 18.7 Análise de distúrbios acidobásicos simples de acordo com a abordagem tradicional.

A questão que costuma surgir quando analisamos anormalidades acidobásicas simples que demonstram tanto acidose respiratória como alcalose não respiratória é: “Qual o problema primário e há um evento secundário e/ou compensatório?” A resposta nem sempre é óbvia, embora anormalidades acidobásicas primárias simples, em geral, alterem o pH na direção do distúrbio primário. Por exemplo, um animal com acidose respiratória e alcalose não respiratória compensatória teria um pH com tendência a ser acidótico (abaixo do normal, por exemplo, de 7,31). É muito mais difícil decifrar as anormalidades acidobásicas respiratórias e não respiratórias mistas, e, como as anormalidades acidobásicas simples, elas devem ser avaliadas com cuidado no contexto da doença do animal e de outra informação diagnóstica disponível. Como a acidose não respiratória é tão frequentemente associada a processos mórbidos em animais, os índices de equilíbrio acidobásico evoluíram no intuito de possibilitar a

avaliação quantitativa do componente não respiratório da anormalidade acidobásica. O padrão do bicarbonato é a concentração de bicarbonato no plasma após a amostra de sangue total ter sido equilibrada para uma PCO2 de 40 mmHg à temperatura corporal normal da espécie (em muitos aparelhos de gasometria sanguínea destinados ao uso em pacientes humanos, o valor padrão utilizado é o da temperatura corporal humana normal, de 37°C). Ruminantes tendem a ter valores padrão de bicarbonato maiores. Esse índice quantifica o componente não respiratório de qualquer anormalidade acidobásica, porque as diferenças no bicarbonato padrão do normal (para a espécie em questão, por exemplo, 23 a 28 mEq/ℓ) podem não ser causadas por alterações na PCO2 que é mantida constante em 40 mmHg à temperatura corporal normal da espécie. Similarmente, o excesso de base (EB) quantifica o número necessário de miliequivalentes por litro de ácido ou base para titular 1 ℓ de sangue em pH de 7,40 enquanto a PCO2 for mantida constante em 40 mmHg à temperatura corporal normal da espécie. Se o EB for calculado a partir do pH e da PCO2 como dissemos, mas a uma concentração de hemoglobina de 5 g/dℓ, pode-se determinar o tamponamento extracelular total. O EB calculado dessa forma denomina-se EB padrão (EBP). A diferença entre o EB e o EBP é pequena, o que acarretou poucos estudos em que o EBP é relatado. É possível determinar tanto o bicarbonato padrão como o EB (ou déficit) a partir de nomogramas. O EB tem um valor normal de zero (± 2 a 3) e é alterado apenas por ácidos não voláteis, indicando, assim, a acidose não respiratória. A magnitude numérica do EB é um guia para o tratamento:

em que 0,3 = % de peso corporal que é água extracelular. A maioria dos analisadores modernos da gasometria revela um valor de EBP calculado a partir de dados humanos. Embora tenha sido desenvolvido um nomograma canino, raras vezes é usado, porque os analisadores comerciais da gasometria estão programados especificamente para sangue humano. Em senso amplo, a abordagem do excesso de base para a análise acidobásica tem sido vista com ressalvas porque o parâmetro do EBP representa o efeito líquido de todas as anormalidades acidobásicas não respiratórias ou metabólicas em andamento. No caso de acidose e alcalose metabólicas coexistentes, o EBP sozinho falha em identificar qualquer anormalidade acidobásica, pois esses dois distúrbios poderiam anular-se reciprocamente.

Hiato aniônico O hiato aniônico (HA) é um recurso útil para avaliar distúrbios acidobásicos mistos.18,19

Quimicamente, não há HA porque a eletroneutralidade precisa ser mantida e o ‘hiato aniônico’, na realidade, é a diferença entre os ânions não medidos (AN–) e os cátions não medidos (CN+). Seguindo a lei da eletroneutralidade:

ou, quando aplicada clinicamente:

Com base na equação 18.16, a cada momento que há uma queda na [HCO3–], é preciso que haja um aumento de [Cl–] ou [AN–] para manter a eletroneutralidade. Quando o HCO3– titulado é substituído por Cl– na acidose não respiratória, a diferença ([AN–] – [CN+]; e, consequentemente, o HA) irá permanecer a mesma (denominada acidose hiperclorêmica ou normal). Quando o HCO3– titulado é substituído por AN–, a diferença ([AN–] – [CN+]; isto é, o HA) irá aumentar, enquanto a [Cl–] permanecerá a mesma (denominada acidose normoclorêmica ou com HA alto).20,21 Proteínas com carga negativa, fosfatos, sulfatos e ácidos orgânicos (p. ex., lactato, βhidroxibutirato, acetoacetato e citrato) constituem o [AN–].22 Em geral, um aumento no HA implica um acúmulo de ácidos orgânicos no corpo.23 Também ocorre aumento no HA na alcalemia causada por aumento na carga negativa líquida das proteínas séricas ou nas situações em que a alcalose não respiratória ou respiratória anula uma acidose não respiratória com HA alto.24,25 É provável que a hipoalbuminemia seja a única causa importante de uma queda no HA, e cada diminuição na concentração de albumina de 1 g/dℓ em geral produz uma redução aproximada de 2 mEq/ℓ no HA. Um paciente com acidose láctica concorrente com hipoalbuminemia pode ter um HA calculado normal. Portanto, o HA sozinho pode ser enganador clinicamente para a elucidação de alguns distúrbios acidobásicos mistos. O conceito de HA tem algumas limitações e surgiram várias correções (cHA) para as imprecisões.11,19 A soma de [Cl–] e [HCO3–] não é aceitável com base em seus coeficientes de atividade e o fato de que o HCO3– não é uma variável independente.26 Cada um desses ânions tem um coeficiente de atividade diferente, em parte porque estão presentes no líquido extracelular em concentrações que diferem por um fator mais de 5 (i. e., [Cl–] = 110 mEq/ℓ versus [HCO3–] = 21 mEq/ℓ).26 Independente disso, o HA tem utilidade clínica. Ele não é responsável pela contribuição da albumina e do fosfato no equilíbrio acidobásico e pode mudar por causa da exposição excessiva do soro ao ar, resultando em alterações de 6,5 ± 2,3 mEq/ℓ após 2 h.19,27 Essas alterações são mais pronunciadas em animais com acidose respiratória.26 Como o HA, a diferença [Na+] – [Cl–] (valor médio normal = 36 mEq/ℓ) é

potencialmente útil para a avaliação inicial daqueles distúrbios acidobásicos não respiratórios e não associados a um aumento de ânions não medidos (Tabela 18.8).28 Se a [Na+] é normal, um aumento nesse valor é causado por hipocloremia e é uma indicação de alcalose metabólica, enquanto uma queda no gradiente [Na+] – [Cl–] indica acidose hiperclorêmica.8 Além disso, a razão de cloreto de sódio (Cl–:Na+; faixa normal de 0,75 a 0,79) serve como um método simples para quantificar o papel da hipercloremia nos distúrbios acidobásicos. Uma razão Cl–:Na+ maior (> 0,79) tem efeito acidificante, e uma razão menor (< 0,75) tem efeito alcalinizante. Animais com acidose metabólica e aumento na Cl–:Na+ em geral têm hipercloremia como a causa da acidose. Uma Cl–:Na+ normal e acidose metabólica indicam acidose mista. É possível usarmos a [Na+] – [Cl–] e a Cl–:Na+ em conjunto com o HA para identificar distúrbios na hidratação e no equilíbrio acidobásico (Boxe 18.1). Tabela 18.8 Distúrbios acidobásicos não respiratórios primários e compensação respiratória. Distúrbio não

Compensação

Na+–Cl–

HA

TCO2

Hipoalbuminemia

N

N, ↓



Não

↓ Albumina

Hipocloremia



N



Não

↓ [Cl–] corrigida

Concentração



N



Sim

↑ [Na+]

Hiperalbuminemia

N

N, ↑



Não

↑ Albumina

Hiperfosfatemia

N

N, ↑



Não

↑ Fosfato inorgânico

Hipercloremia



N



Sim

↑ [Cl–] corrigida

Diluição



N



Sim

↓ [Na+]

Orgânica

N





Sim

respiratório

respiratória

Perfil bioquímico

Alcalose

Acidose

São necessários ensaios específicos

Na+ – Cl–, diferença na concentração de sódio e cloreto; HA, hiato aniônico; TCO2, CO2 total; ↑, aumento; N, normal; ↓,

diminuição (queda). Ver no texto as limitações para o uso da diferença Na+ – Cl– e do HA. Adaptada de Morais HAS, Muir WW. Strong ions and acid-base disorders. In: Bonagura JD, Kirk RW, eds. Kirk’s Current Veterinary Therapy, 12th edn. Philadelphia, WB Saunders, 1995; 121–127. Boxe 18.1 Alterações relativas na [Na+]0 e na [Cl–]0 como um índice de distúrbios na hidratação ou no equilíbrio acidobásico ou ambos.

a Alteração proporcional na [Na+]0 e na [Cl–]0 sempre se deve a distúrbios na hidratação apenas. Desidratação [Na+]0 ↑ e [Cl–]0 ↑ Hiper-hidratação [Na+]0 ↓ e [Cl–]0 ↓ b Alterações na [Cl–]0 sem qualquer alteração na [Na+]0 são sempre causadas por distúrbios acidobásicos isolados. Acidose respiratória ou alcalose respiratória [Na+]0 e [Cl–]0 ↓ Alcalose respiratória ou acidose hiperclorêmica [Na+]0 e [Cl–]0 ↑ c Alterações desproporcionais na [Na+]0 e na [Cl–]0 são decorrentes de distúrbios tanto na hidratação como no equilíbrio acidobásico. Desidratação mais acidose respiratória ou alcalose não respiratória [Na+]0 ↑ e [Cl–]0 ↓ Desidratação mais alcalose respiratória ou acidose não respiratória [Na+]0 ↑ e [Cl–]0 ↑↑ Hiper-hidratação mais alcalose respiratória ou acidose hiperclorêmica [Na+]0 ↓ e [Cl–]0 ↓ Hiper-hidratação mais acidose respiratória ou alcalose não respiratória [Na+]0 ↓ e [Cl–]0 ↓↓

Modificado de Emmett M, Seldin DW. Evaluation of acid-base disorders from plasma composition. In: Seldin DW, Giebisch G, eds. The Regulation of Acid-Base Balance. New York: Raven, 1989; 259–268.

Diferença iônica forte No início da década de 1980, foi proposta uma teoria alternativa para a regulação acidobásica.3,29 Tal teoria questionava as limitações de usarmos as alterações no bicarbonato para quantificar as anormalidades acidobásicas porque, como sugerido antes, as alterações nesse sentido não são capazes de quantificar o acréscimo de ácido ou base ao plasma, a menos que a PCO2 seja mantida constante.10 A teoria baseia-se nas propriedades físico-químicas de soluções à base de água (Figura 18.5). •





A separação dos componentes iônicos de um soluto. Íons fortes dissociam-se completamente em solução, mas ácidos fracos dissociam-se apenas em parte, existindo tanto a forma aniônica dissociada (A–) como a não dissociada (HA) (ATOT = A– + HA) A soma de todos os íons com carga positiva em qualquer compartimento (solução) deve igualar a soma de todos os íons com carga negativa. A água pura é uma solução neutra porque as concentrações de H+ e OH– são iguais. Conforme dito antes, a concentração desses íons é determinada por uma constante de dissociação sensível à temperatura A quantidade de uma substância permanece constante, a menos que ela seja acrescentada, removida, produzida ou destruída.

De acordo com essa teoria, o HCO3– não é um íon forte e sua concentração e o pH ([H+]) são variáveis dependentes determinadas pelas variáveis independentes PCO2, [ATOT] (composta principalmente de albumina e fosfatos inorgânicos) e a diferença entre cátions fortes e ânions fracos (diferença iônica forte, DIF; ver Figura 18.6).30–33 Os valores normais para essas diversas variáveis independentes foram derivados para mamíferos (Tabela 18.9).34 Íons fortes são substâncias completamente dissociadas no plasma em pH corporal. DIF = [Na+ + K+ + Ca+2 + Mg+2] – [Cl– + lactato] Os íons fortes mais importantes no plasma são Na+, K+, Ca+2, Mg+2, Cl–, lactato, βhidroxibutirato, acetoacetato e sulfato. A influência de íons fortes sobre o pH e a [HCO3–] sempre pode ser expressa em termos de DIF. Um aumento na DIF correlaciona-se com alcalose não respiratória, enquanto uma queda na DIF tem correlação com acidose não respiratória. Em suma, as variáveis DIF e ATOT fornecem medidas independentes do componente metabólico do pH plasmático. Portanto, ao usar uma abordagem de íon forte para a análise acidobásica, há quatro distúrbios acidobásicos metabólicos possíveis. A

acidose metabólica é definida, ainda, como sendo uma acidose (1) com DIF diminuída ou (2) [ATOT] aumentada, enquanto a alcalose metabólica caracteriza-se por (3) aumento da DIF ou (4) diminuição da [ATOT] (Tabelas 18.9 e 18.10).

Distúrbios acidobásicos clínicos Ocorrem distúrbios acidobásicos quando há uma anormalidade em um dos principais determinantes independentes da [H+] (p. ex., PCO2, DIF ou [ATOT]) (Tabela 18.9).5,11,26,29,33,34 O distúrbio acidobásico chamado ‘simples’ inclui tanto o processo primário como a resposta compensatória. Ou seja, se ocorre um distúrbio primário mantido na PCO2, normalmente ocorre uma alteração compensatória de magnitude regulada na DIF e vice-versa. No entanto, se o distúrbio primário resulta de uma alteração na [ATOT], não ocorre compensação renal ou ventilatória.33–37 O sucesso ou a falha no tratamento dependem de intervenções que ajustem as variáveis independentes.33,35,37 Tabela 18.9 Valores normais comparativos de pH, PCO2 (ATOT) e DIF. Animal

pH

PCO2

[ATOT]

[DIF]

Comentários DIF ↑

Ser humano

7,37

45

17,2

37

Alcalose não respiratória

Equino

7,43

44

14

40 DIF ↓

Bovino

7,43

43

22,9

44

Acidose não respiratória

Cão

7,40

37

17,4

27 ATOT ↑

Gato

7,35

30

24,3

30

Acidose não respiratória ATOT ↓

Pombo

7,43

41

7,8

34

Alcalose não respiratória

Modificada de Constable PD. Comparative animal physiology and adaptation. In: Kellum JA, Elbers PWG, eds. Stewart’s Textbook of Acid-Base Physiology. www.Lulu.com, USA, 2009:305-320. Tabela 18.10 Causas de anormalidades acidobásicas metabólicas classificadas de acordo com a abordagem do íon forte. Acidose por DIF (↓ DIF) Acidose dilucional (↓ Na+) • Com hipervolemia ° Doença hepática grave ° Insuficiência cardíaca congestiva ° Síndrome nefrótica • Com normovolemia ° Polidipsia psicogênica ° Infusão de líquido hipotônico • Com hipovolemia ° Vômito ° Diarreia ° Hipoadrenocorticismo ° Perda do terceiro espaço ° Administração de diurético Acidose hiperclorêmica (↑ Cl–corr) • Perda de Na+ com relação a Cl– ° Diarreia • Ganho de Cl– com relação a Na+ ° Fluidoterapia (NaCl a 0,9%, NaCl a 7,2%, líquidos suplementados com KCl) • Retenção de Cl– ° Insuficiência renal ° Hipoadrenocorticismo

Acidose orgânica (↑ íons fortes não medidos) • Acidose urêmica, cetoacidose ou acidose láctica • Toxicidade ° Etilenoglicol ° Salicilato Acidose por ATOT (↑ ATOT) Hiperalbuminemia • Privação de água Hiperfosfatemia • Translocação ° Lise de célula tumoral ° Traumatismo tecidual/rabdomiólise • Aumento do consumo ° Enemas contendo fosfato ° Fosfato intravenoso • Diminuição da perda ° Insuficiência renal ° Obstrução uretral ° Uroabdome Alcalose por DIF (↑ DIF) Alcalose por concentração (↑ Na+) • Perda pura de água ° Privação de água ° Diabetes insípido • Perda de líquido hipotônico ° Vômito ° Insuficiência renal não oligúrica

° Diurese pós-obstrutiva Alcalose hipoclorêmica (↓ Cl–corr) • Ganho de Na+ com relação a Cl ° Administração de NaHCO3 isotônico ou hipertônico • Perda de Cl– com relação a Na+ ° Vômito de conteúdo gástrico ° Diuréticos tiazídicos ou de alça Alcalose por ATOT (↓ ATOT) Hipoalbuminemia • Queda da produção ° Doença hepática crônica ° Resposta da fase aguda à inflamação ° Desnutrição/inanição • Perda extracorpórea ° Nefropatia com perda de proteína ° Enteropatia com perda de proteína • Sequestro ° Efusões inflamatórias ° Vasculite

Modificada de Constable PD. Comparative animal physiology and adaptation. In: Kellum JA, Elbers PWG, eds. Stewart’s Textbook of Acid-Base Physiology. www.Lulu.com, USA, 2009: 305–320.

■ Distúrbios da PCO2 A PCO2 é uma variável importante na determinação da ventilação, do pH e do oxigênio alveolares (PAO2) [PAO2 = FIO2 (PB – 47) – 1,2(PaCO2)]. Os distúrbios respiratórios primários resultam de aumentos (acidose respiratória) ou quedas (alcalose respiratória) na PCO2. A tensão de dióxido de carbono pode ser alterada pela ventilação alveolar, que exerce um efeito profundo sobre a [H+], e juntas podem ser usadas para a tomada de decisões descritivas a respeito das anormalidades acidobásicas (Tabela 18.11). Como a PaCO2 tem uma relação inversa com a ventilação alveolar, a medida da PaCO2 fornece

informação direta sobre a adequação da ventilação alveolar. Portanto, a acidose respiratória é causada por hipoventilação e é sinônimo dela, enquanto a alcalose respiratória é causada por hiperventilação e é sinônimo desta. Os principais distúrbios associados à acidose respiratória são obstrução da via respiratória, depressão do centro respiratório (p. ex., fármacos ou distúrbios neurológicos), parada cardiopulmonar (a PaCO2 pode estar abaixo do normal durante a reanimação cardiopulmonar), doenças neuromusculares, hérnia diafragmática, traumatismo da parede torácica e ventilação mecânica inadequada. O tratamento da acidose respiratória deve ser direcionado para a eliminação da causa subjacente de hipoventilação alveolar. Quando necessário, deve-se providenciar assistência ventilatória. A acidose respiratória não é indicação para tratamento com bicarbonato. A administração de bicarbonato de sódio diminui a [H+] e o impulso ventilatório, agravando, assim, a hipoxemia e a hipercapnia. O tratamento da hipercapnia em animais com doença pulmonar crônica deve ser voltado para a doença subjacente. Tabela 18.11 Processos primários associados a alterações na PCO2 e no pH. PaCO2

pH

Processo primário

Normal

Normal

Nenhum

Normal

Alto

Alcalose metabólica, alcalose respiratória

Normal

Baixo

Acidose metabólica, acidose respiratória

Alta

Normal

Acidose respiratória, alcalose metabólica

Alta

Alto

Alcalose metabólica

Alta

Baixo

Acidose respiratória

Baixa

Normal

Alcalose respiratória crônica

Baixa

Alto

Alcalose respiratória

Baixa

Baixo

Acidose metabólica

As principais causas de alcalose respiratória são hipoxia, baixo débito cardíaco, anemia grave, doença pulmonar (estimulação de reflexos periféricos, por exemplo, pneumonia), hiperventilação mediada pelo sistema nervoso central (p. ex., fármacos, inflamação ou tumor do sistema nervoso central, doença hepática, medo ou dor) e ventilação mecânica

superzelosa. A própria hipocapnia não é uma ameaça importante ao bem-estar de animais com alcalose respiratória. O pH arterial na alcalose respiratória primária crônica geralmente é normal ou ligeiramente alcalêmico, por causa da compensação renal eficiente nesse contexto. O tratamento da doença subjacente responsável pela hipocapnia deve ser o foco primário em animais com alcalose respiratória. É digno de nota que a PCO2 seja um determinante primário do fluxo sanguíneo cerebral. Hiperventilação e baixa PCO2 reduzem o fluxo sanguíneo cerebral e predispõem à isquemia cerebral.38,39

■ Aumentos na diferença alveoarterial de oxigênio A diferença alveoloarterial de oxigênio [gradiente P(A – a)O2] pode ser útil para diferenciar doença pulmonar intrínseca de doença extrapulmonar em animais com hipoxemia (redução no conteúdo de oxigênio), a qual, por sua vez, resulta em hipoxia tecidual e acidose láctica (não respiratória). O gradiente P(A–a)O2 estima a diferença entre a PO2 nos alvéolos e a do sangue arterial.38 Pode-se calcular a P(A–a)O2 clinicamente como gradiente de (A–a) = (150 – 1,25 × PaCO2) – PaO2. Em animais normais ao nível do mar, o gradiente P(A–a)O2 deve ser inferior a 15 mmHg, embora valores até 25 mmHg sejam considerados normais quando a FIO2 aumenta com a administração de oxigênio suplementar (por fluxo ou tenda) para pacientes despertos. Até gradientes P(A–a)O2 maiores podem ser normais quando são administrados anestésicos inalatórios em misturas de FIO2 muito altas (> 0,9). A hipoxia pode ser causada por hipoventilação, baixa pressão parcial de O2 inspirado (PIO2), comprometimento da difusão, desequilíbrio entre ventilação e perfusão (ocasionalmente citada como pseudodesvio) e desvios da direita para a esquerda. O gradiente P(A–a)O2 será normal em animais com hipoventilação ou PIO2 diminuída (p. ex., residência em altitude elevada) porque ainda terão função pulmonar normal. Animais com hipoventilação têm aumento na PCO2, enquanto aqueles que estejam respirando ar com baixa PIO2 apresentam uma PCO2 baixa a normal (hiperventilação). Em contraste, o gradiente P(A–a)O2 é alto em animais com comprometimento da difusão (raramente reconhecida na medicina veterinária), desequilíbrio da ventilação-perfusão e desvio da direita para a esquerda. Diminuições na oxigenação sanguínea podem resultar em menor liberação de oxigênio para os tecidos, metabolismo anaeróbico e acidose láctica (acidose metabólica).40 A administração de 100% de oxigênio em geral melhora a hipoxemia em animais com desequilíbrio da ventilação-perfusão, mas produz efeito mínimo ou nenhum em animais com desvio da direita para a esquerda significativo.

■ Distúrbios na diferença iônica forte Alterações na DIF em geral são reconhecidas por alterações na [HCO3–] ou no EB.26,30–33 Uma diminuição na DIF está associada a acidose não respiratória, enquanto um aumento na

DIF está associado a alcalose não respiratória (Tabela 18.9). Há três mecanismos gerais pelos quais a DIF pode mudar (Tabela 18.12): (a) alteração no conteúdo de água livre do plasma, (b) alteração da concentração de Cl– e (c) aumento da concentração de ânions fortes não identificados [XA–]. A seleção de líquidos intravenosos durante anestesia deve considerar sempre a DIF, embora taxas convencionais de administração de líquido (10 mℓ/kg/h) por até 3 h não afetem o equilíbrio acidobásico.41,42 A infusão intravenosa de volumes maiores a velocidades mais rápidas (> 30 mℓ/kg/h) de um cristaloide ou coloide sintético (amido hidroxietil) força a DIF e o ATOT do líquido extracelular na direção da DIF e do ATOT do líquido que estiver sendo administrado. A DIF ideal de uma solução cristaloide ‘balanceada’ deve ser de aproximadamente 24 mEq/ℓ para se contrapor à alcalose dilucional por ATOT produzida pelo líquido que estiver sendo administrado: cristaloides comerciais não contêm ATOT.41,43 O acréscimo de íons orgânicos fracos como llactato não contribui para a DIF do líquido e são metabolizados na infusão. É notável que a DIF da solução fisiológica a 0,9% seja 0 e infusões de grandes volumes desse líquido possam produzir acidose não respiratória hiperclorêmica.41

■ Distúrbios na [ATOT] A albumina e o fosfato inorgânico são ácidos fracos não voláteis e coletivamente são os principais contribuintes para a [ATOT] (Figura 18.6).8,22,31,44 Consequentemente, alterações na sua concentração modificam a [H+]. A hipoalbuminemia tende a diminuir a [ATOT] e causar uma alcalose não respiratória (Tabela 18.9). Embora raro, um aumento na concentração de albumina pode causar acidose não respiratória, em decorrência de um aumento na [ATOT]. O fosfato é o segundo componente mais importante da [ATOT] e normalmente está presente no plasma em uma concentração baixa. A hiperfosfatemia pode causar um grande aumento na [ATOT], que pode resultar em acidose não respiratória. O tratamento da acidose hiperfosfatêmica, da acidose hiperalbuminêmica e da alcalose hipoalbuminêmica deve ser voltado para a causa subjacente. A administração de bicarbonato de sódio desvia o fósforo para as células e pode ser usado como tratamento adjuvante em pacientes com acidose hiperfosfatêmica.45 Tabela 18.12 Causas de alterações nas diferenças iônicas fortes (DIF). Anormalidades na água livre Aumento na [Na+]

→ Alcalose por concentração

Diminuição na [Na+]

→ Acidose por diluição

Anormalidades no cloreto

Diminuição na [Cl–] corrigida

→ Alcalose hipoclorêmica

Aumento na [Cl–] corrigida

→ Acidose hiperclorêmica

Anormalidades nos ânions fortes não medidos Aumento na [XA–]

→ Acidose orgânica

[XA–], ânions fortes não identificados.

■ Anormalidades na água livre A alteração do conteúdo de água de compartimentos líquidos corporais irá diluir ou concentrar tanto ânions como cátions fortes.8,26,33 Consequentemente, a DIF irá mudar na mesma proporção. É possível identificar alterações na água livre avaliando-se a [Na+]. Um aumento na DIF causado pela perda de água aumenta a [Na+] e resulta em alcalose por concentração, enquanto uma queda na DIF causada por decréscimos na [Na+] resulta em acidose dilucional. Sugeriu-se que alterações no volume de líquido extracelular (LEC) sozinhas acarretam distúrbios acidobásicos; entretanto, a alteração no volume do LEC em si não muda a DIF, a PCO2 ou a [ATOT] e, portanto, não pode mudar o estado acidobásico.4 A chamada alcalose por concentração que se acredita ser causada por uma diminuição no volume do LEC na realidade é causada por uma redução primária na [Cl–].8,29,30 As principais causas de anormalidades na água livre estão listadas no Boxe 18.2. O tratamento da acidose dilucional e da alcalose por concentração deve ser voltado para a causa subjacente responsável pela alteração na [Na+]. Se necessário, a [Na+] e a osmolalidade devem ser corrigidas.46,47 Boxe 18.2 Principais causas de anormalidades na água livre.

Alcalose por concentração (↑[Na+]) Déficit de água pura Hipodipsia primária Diabetes insípido Febre Acesso inadequado à água Temperatura ambiental elevada

Perda de líquido hipotônico Vômito Peritonite Pancreatite Insuficiência renal não oligúrica Diurese pós-obstrutiva Ganho de sódio Intoxicação pelo sal Administração de líquido hipertônico (p. ex., salina hipertônica, bicarbonato de sódio) Hiperaldosteronismo Hiperadrenocorticismo Acidose dilucional (↓[Na+]) Doença hepática grave Síndrome nefrótica Insuficiência renal avançada Insuficiência cardíaca congestiva Polidipsia psicogênica Sudorese excessiva em equinos Administração de líquido hipotônico (p. ex., solução de cloreto de sódio a 0,45%) Vômito Diarreia Uroabdome Hipoadrenocorticismo Administração de diurético

Adaptado de de Morais HAS, Muir WW. Strong ions and acid-base disorders. In: Bonagura JD, Kirk RW, eds. Current Veterinary Therapy, 12th edn. Philadelphia: WB Saunders, 1995; 121–127.

■ Anormalidades isonatrêmicas de cloreto Se não houver alteração no conteúdo de água do plasma, a [Na+] plasmática será normal. Outros cátions fortes (p. ex., K+) são regulados com outros propósitos que não o equilíbrio acidobásico, e sua concentração nunca muda o suficiente para afetar substancialmente a DIF.20,21 Em consequência, a DIF muda apenas como resultado de alterações nos ânions fortes quando o conteúdo de água é normal. Se a [Na+] permanecer constante, alterações na [Cl–] podem aumentar ou diminuir a DIF de maneira substancial.46,47 Deve-se considerar a avaliação da [Cl–] em conjunto com a [Na+], porque a [Cl–] pode mudar por outras razões além de uma alteração no equilíbrio da água (Boxe 18.1).20 Portanto, a [Cl–] do animal é ‘corrigida’ de acordo com as alterações na [Na+], aplicando-se uma fórmula desenvolvida para uso em pessoas e adaptada para pequenos e grandes animais:

em que [Cl–] e [Na+] são as concentrações de Cl– e Na+. A [Na+] ideal é a concentração normal de Na+ para a espécie que estiver sendo avaliada. Os valores normais sugeridos para a [Na+] em cães são de 146 e 147 mEq/ℓ, enquanto para gatos eles variam de 150 a 156 mEq/ℓ.36 Em grandes animais, a [Na+] normal é de aproximadamente 136 mEq/ℓ em equinos e de 144 mEq/ℓ em bovinos.44 A [Cl–] normal é de aproximadamente 107 a 113 mEq/ℓ em cães, 117 a 123 mEq/ℓ em gatos, 97 a 103 mEq/ℓ em equinos e 101 a 107 mEq/ℓ em bovinos.36,48,49 Esses valores podem variar nos diferentes laboratórios e analisadores. Um aumento ou uma diminuição na [Cl–] corrigida indica que o Cl– é responsável, pelo menos em parte, pelas alterações na DIF. Um aumento na [Cl–] corrigida (i.e., um aumento na [Cl–] com relação à [Na+]) resulta em acidose não respiratória hiperclorêmica, enquanto uma diminuição na [Cl–] corrigida (i.e., uma diminuição na [Cl–] com relação à [Na+]) resulta em alcalose não respiratória hipoclorêmica. Uma [Cl–] corrigida para a normal na presença de [Cl–] anormal observada indica que alterações na DIF são causadas por acidose dilucional ou alcalose por concentração. As principais causas de acidose hiperclorêmica e alcalose hipoclorêmica constam do Boxe 18.3. O tratamento da acidose hiperclorêmica deve ser direcionado para a correção da doença subjacente. A administração de NaHCO3, quando os valores de pH são inferiores aos aceitáveis < 7,20 tenderá a corrigir a acidose hiperclorêmica, porque essa solução tem uma DIF maior do que a do plasma.

A alcalose hipoclorêmica que responde ao cloreto pode ser causada por perda excessiva de Cl– com relação ao Na+ ou pela administração de substâncias que contenham mais Na+ que Cl– em comparação com o LEC (p. ex., NaHCO3). A primeira pode ocorrer após a administração de diuréticos que causam perda de Cl– (p. ex., furosemida) ou quando a perda de líquido tem uma DIF baixa ou negativa (p. ex., vômito agudo). A administração de cloreto é essencial para o tratamento de alcalose hipoclorêmica que responde ao cloreto. A conservação renal de Cl– costuma ser favorecida em estados hipoclorêmicos e a reabsorção renal de Cl– não volta ao normal até que a concentração plasmática de Cl– volte ao normal ou quase.26 Nas situações em que se quer que haja expansão do volume extracelular, a infusão intravenosa de NaCl a 0,9% é o tratamento de escolha. Essa solução tem uma DIF de 0 e irá diminuir a DIF plasmática.5 Se houver hipopotassemia, deve-se acrescentar KCl ao líquido. Não sendo necessária expansão de volume, pode-se administrar Cl– usando sais sem Na+ (p. ex., cloreto de amônio, cloreto de potássio, cloreto de cálcio e cloreto de magnésio). Esses sais devem corrigir a alcalose, porque o Cl– é dado junto com cátions que são regulados dentro de limites estreitos para fins não relacionados com o equilíbrio acidobásico.5 Pode ocorrer alcalose hipoclorêmica resistente a cloreto em animais com hiperadrenocorticismo e hiperaldosteronismo primário. O aumento da atividade mineralocorticoide causa retenção de sódio e perda urinária de cloreto nestas doenças e ambas aumentarão a DIF. A administração de cloreto não corrigirá a alcalose metabólica por causa da clorurese. Felizmente, a alcalose metabólica nesses animais, em geral, é muito leve. Boxe 18.3 Principais causas de anormalidades no cloreto.

Alcalose hipoclorêmicaa (↓[Cl–] corrigida) Perda excessiva de cloreto com relação ao sódio Vômito de conteúdo gástrico Refluxo gástrico em equinos com íleo paralítico Torção do abomaso (ruminantes) Indigestão vagal com vômito interno (ruminantes) Tratamento com diuréticos tiazídicos ou de alça Hiperadrenocorticismo Ganho excessivo de sódio com relação a cloreto

Tratamento com bicarbonato de sódio Acidose hiperclorêmicab (↑[Cl–] corrigida) Perda excessiva de sódio com relação a cloreto Diarreia Ganho excessivo de cloreto com relação a sódio Fluidoterapia (p. ex., NaCl a 0,9%, suplementação com KCl) Intoxicação por sal Nutrição parenteral total Tratamento com cloreto de amônio ou de potássio Retenção de cloreto Insuficiência renal Acidose tubular renal Hipoadrenocorticismo Diabetes melito Medicamentosa (p. ex., acetazolamida, espironolactona) a

A acidose respiratória crônica causará uma queda compensatória na [Cl–] corrigida.

b

A alcalose respiratória causará um aumento compensatório na [Cl–] corrigida.

Adaptado de de Morais HAS, Muir WW. Strong ions and acid-base disorders. In: Bonagura JD, Kirk RW, eds. Current Veterinary Therapy, 12th edn. Philadelphia: WB Saunders, 1995; 121–127.

■ Anormalidades isonatrêmicas de ácido orgânico O acúmulo de ânions orgânicos produzidos pelo metabolismo (p. ex., lactato, acetoacetato, citrato ou β-hidroxibutirato) ou o acréscimo de ânions orgânicos exógenos (p. ex., salicilato, glicolato da intoxicação por etilenoglicol e formato da intoxicação por metanol) pode causar acidose não respiratória porque esses ânions fortes diminuem a DIF.26 O acréscimo de alguns ânions inorgânicos fortes (p. ex., SO42– durante insuficiência renal) lembram a acidose orgânica porque a DIF diminui sem alteração nos eletrólitos. As causas

de acidose orgânica encontradas mais comumente estão mencionadas na Tabela 18.13. Tabela 18.13 Principais distúrbios de íons fortes não identificados. Distúrbio

Ânions fortes

Acidose urêmica

SO42– e outros ânions de insuficiência renal

Cetoacidose diabética, cetose, toxemia gravídica

Acetoacetato, β-hidroxibutirato

Acidose láctica

Lactato

Intoxicação por salicilato

Salicilato

Intoxicação por etilenoglicol

Glicolato

Intoxicação por metanol

Formato

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Figura 18.8 A. Podem ser usados gráficos conhecidos como ‘gamblegramas’ para ilustrar a relação entre o hiato aniônico (HA), a diferença iônica forte (DIF) e o hiato iônico forte (HIF). B. Eles também podem ser usados para ilustrar a diferença entre um HA anormal e o basal (ΔHA), este último similar em termos quantitativos ao hiato iônico forte (HIF) ou à diferença

entre a DIF aparente e a efetiva: HIF = DIFa – DIFe.

O tratamento da acidose orgânica deve ser voltado para o distúrbio primário e a estabilização do animal. Deve-se usar bicarbonato de sódio com cautela, porque o metabolismo de ânions orgânicos acumulados irá normalizar a DIF e aumentar a [HCO3–]. O objetivo inicial em animais com acidose orgânica grave é aumentar o pH sistêmico para um valor aceitável > 7,20 e tratar a doença primária.

■ Estimativa da concentração de ânion forte | Hiato aniônico forte O HA, como a DIF, é calculado com base no princípio da eletroneutralidade e usado clinicamente para se estimar a concentração de AN–. A acidose orgânica aumenta o HA, enquanto a acidose hiperclorêmica não o faz. Infelizmente, o AN– inclui ânions fortes [XA–], pelos quais o HA é responsável, e ânions fracos (cargas variáveis de albumina e fosfatos) não medidos que não são da responsabilidade do HA. Como a DIF, o HA, na verdade, muda em decorrência de modificações na PCO2, na DIF ou na [ATOT] e, portanto, nem sempre reflete as alterações quantitativas nos AN–, mesmo na presença de acidose orgânica.5 O HA corrigido (HAc) foi formulado para corrigir esse problema, e alterações no HAc basal (ΔHAc) têm uma relação estreita com o hiato iônico forte (HIF) (Figura 18.8).5,19,46 O HIF representa a quantidade de ânions não medidos que não o lactato,19,31,50 que se pode quantificar pela diferença entre a DIF aparente (DIFa) e a DIF efetiva (DIFe): DIFe = (Na+ + K+ + Ca2+ + Mg2+) – (Cl– + lactato–) DIFe = CO2 + ATOT HIF = DIFa – DIFe O HIF normalmente é próximo de zero, ou seja, a carga negativa líquida do CO2 e dos ácidos fracos (ATOT) contrabalança a carga positiva líquida da DIFa. O HIF indica se estão presentes íons fortes ou fracos ou ambos, mas não revela quais. Pode ocorrer acidose metabólica com aumento do HIF na cetoacidose diabética, em que o HIF reflete quantitativamente a concentração plasmática de cetona. Estudos conduzidos em seres humanos sugerem que o HIF prediz a mortalidade melhor do que o lactato e o pH sanguíneos ou gradações relativas à gravidade de lesões.31

Avaliações do equilíbrio acidobásico

Deve-se seguir uma abordagem sistemática em etapas em todos os animais nos quais se suspeite de distúrbios acidobásicos.37,46 A primeira etapa consiste em determinar o pH e a natureza do distúrbio primário a partir dos resultados da gasometria arterial. Deve-se avaliar a possibilidade de um distúrbio acidobásico misto respiratório e não respiratório calculando a comparação esperada (Tabela 18.7). Se houver um distúrbio acidobásico não respiratório, deve-se determinar se é causado por uma alteração na [ATOT], na DIF, no AN– (a [XA–] de ânions fortes e os ânions fracos não medidos) ou uma combinação desses fatores.37,47 Lamentavelmente, a avaliação de alterações na DIF causadas por aumentos na [XA–] não é direta.11,32 Pode-se suspeitar de um aumento na [XA–] em animais acidóticos com doenças conhecidas como associadas a acidose orgânica (p. ex., insuficiência renal e cetoacidose diabética).45,46 A medição da concentração de lactato possibilita a quantificação de muitos XA–. Quando não se dispõe dos resultados da gasometria sanguínea, o perfil bioquímico pode ajudar a determinar se há anormalidades não respiratórias (Tabela 18.8). A determinação de XA– obtida mediante o emprego de um modelo matemático não é restringida pelas limitações mencionadas antes. Contudo, o cálculo da DIFe nesse modelo nem sempre é simples e pode ser clinicamente impraticável, embora tenham sido desenvolvidos vários calculadores para simplificar o processo.32,47,51 A anestesia geral causa depressão respiratória e cardiovascular dependente da dose, predispondo, assim, os animais ao desenvolvimento de acidose respiratória e não respiratória, que pode exacerbar ou complicar o estado acidobásico. A aplicação de métodos quantitativos para a análise, o diagnóstico e o tratamento dos distúrbios acidóticos compele os clínicos a considerarem um conjunto mais abrangente de causas potenciais para os distúrbios acidobásicos e, ao fazer isso, focar as abordagens diagnósticas e refinar as decisões terapêuticas.

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Introdução Termodinâmica Termorregulação Gradiente central-periférico Mecanismos de transferência de calor Aquecimento ativo do paciente Unidades de ar aquecido forçado Sistemas de água aquecida circulante Aquecimento elétrico por polímero resistente Hipertermia Significado clínico da hipotermia Manejo perianestésico nos casos de hipotermia Referências bibliográficas

Introdução Ocorre hipotermia e, menos comumente, hipertermia perianestésicas em quase todos os pacientes submetidos à anestesia. Apesar da ocorrência comum de alterações na temperatura corporal, poucos anestesistas entendem os padrões complexos da transferência de calor e a quantidade de fatores que influenciam a taxa (velocidade) e a extensão em que ela ocorre. Neste capítulo, vamos abordar esses fatores, as técnicas usadas para limitar a perda de calor e o impacto da hipo e da hipertermia sobre a morbidade para o paciente.

Termodinâmica

A termodinâmica é o estudo da transferência de calor e trabalho entre sistemas. Na biologia, as leis da termodinâmica podem ser aplicadas para explicar muitos fenômenos, mas, para o anestesista, o que interessa é a análise da transferência de calor corporal, medido clinicamente como a temperatura central do corpo em relação ao ambiente externo. O inverso (p. ex., a transferência de calor do ambiente externo para o paciente) também é de interesse, pois o entendimento do processo proporciona um meio seguro e efetivo de manter uma temperatura crescente no paciente durante o período perianestésico. A transferência de calor e as propriedades de armazenamento dos materiais em contato com o paciente também são importantes, porque, em geral, apresentam riscos para o paciente, como fontes potenciais de queimaduras. Felizmente, não é necessário um conhecimento detalhado da aplicação das leis da termodinâmica para entender o equilíbrio térmico, mas será útil um entendimento geral da conservação de energia (a primeira lei da termodinâmica) e do fluxo de calor para estabelecer um equilíbrio entre sistemas (a segunda lei da termodinâmica).

Termorregulação Um organismo tem energia térmica, medida de maneira convencional como a temperatura corporal. A quantidade total de energia térmica é uma função da temperatura e da massa do paciente, pois a energia cinética é uma função da velocidade de um objeto e sua massa. Na maioria das espécies de mamíferos domésticos, a quantidade de energia térmica (temperatura) é relativamente constante (homeotermia), apesar da produção metabólica contínua de calor e do ganho e das perdas de calor do ambiente. A quantidade de calor corporal pode ser descrita usando-se os termos normotermia (eutermia), hipotermia e hipertermia, com referência às quantidades de calor corporal normais, diminuídas ou aumentadas, respectivamente. Hipertermia é um aumento na temperatura, mas, em geral, ocorre em resposta a um aumento na temperatura do ambiente ou por alteração da termorregulação. Pirexia (i.e., febre) é similar, no sentido de ser um aumento anormal na temperatura, porém por causa de um aumento no ponto de ajuste, em geral relacionado com a resposta imune a patógenos. Hipotermia é a condição oposta e mais comumente associada à perda excessiva de calor, além da produção metabólica, ou a um ajuste inferior do ponto termorregulador que atrasa o tremor ou outros mecanismos homeostáticos. Os valores da temperatura medida correspondentes a esses estados diferentes dependem da espécie, pois a temperatura central normal do corpo pode variar. A temperatura também pode flutuar de acordo com o momento do dia (ou a época do ano, no caso dos animais que hibernam), as influências hormonais e os níveis de atividade, embora essas variações, em geral, sejam mínimas, em comparação com as induzidas pela anestesia. Além disso,

algumas espécies (em especial anfíbios, répteis e alguns peixes) normalmente ficam sujeitas às influências significativas da temperatura do ambiente (pecilotermos ou poiquilotermos), e a definição de temperatura corporal normal torna-se problemática. É interessante o fato de que o rato-toupeira sem pelagem é o único mamífero conhecido que exibe respostas pecilotérmicas a alterações da temperatura do ambiente como adulto.1 A temperatura corporal é sentida por células sensíveis à temperatura existentes em todo o corpo. Há populações distintas de terminações nervosas periféricas (receptores) na pele, que descarregam quando seus limiares térmicos são alcançados. A maioria dos receptores parece utilizar canais iônicos que pertencem à família de receptores potenciais transitórios (RPT) de canais de cátions.2 Também há receptores viscerais que são encontrados geralmente no cérebro (em especial na parte anterior do hipotálamo e na área pré-óptica), na medula espinal e em estruturas abdominais, como o trato gastrintestinal e a bexiga.2 As vias aferentes para o sistema nervoso central (SNC) são conduzidas por tipos diferentes de fibras nervosas (p. ex., fibras A-δ e C), dependendo de ser um impulso frio, quente ou nocivo. Esses sinais atravessam tratos ascendentes da medula espinal e acabam alcançando o hipotálamo, onde são integrados e as respostas são processadas. Como a temperatura local pode variar dependendo do tipo de tecido e da atividade metabólica, o impulso térmico para o SNC é um resumo de múltiplos sensores centrais e periféricos. Essa ‘média’ de temperatura permite que o corpo mantenha um ponto de ajuste térmico estreito, associado a uma faixa interlimiar (variação de temperatura em que não ocorrem respostas compensatórias [p. ex., tremor, sudorese, vasoconstrição ou vasodilatação]) de aproximadamente 0,2°C (Figura 19.1). Os anestésicos podem alterar os limiares termorreguladores para respostas compensatórias, motivo pelo qual os pacientes no peroperatório, em geral, começam a tremer, mesmo que sua hipotermia seja leve. O aumento no interlimiar (aproximadamente de 3,5°C) causado por fármacos, como opioides, sedativos e anestésicos, até certo ponto é dependente do fármaco e da dose, e reduz a capacidade do paciente para regular estreitamente a temperatura corporal central.

Gradiente central-periférico É importante entender que o calor corporal não se distribui uniformemente por todo o organismo. Por exemplo, a temperatura corporal central geralmente é vários graus (2 a 4°C) mais alta do que a temperatura cutânea (Figura 19.2).3 Também há variação longitudinal significativa na temperatura nos membros, com a diferença entre a central e a cutânea sendo maior conforme a medida que é feita a partir do tronco. Esse gradiente de temperatura é mantido pelo sistema nervoso autônomo por meio de mecanismos que regulam o fluxo sanguíneo periférico.4

Figura 19.1 A termorregulação é controlada estritamente em indivíduos sadios não medicados. Muitos fármacos usados durante o período perianestésico (p. ex., opioides e anestésicos inalatórios) podem alterar a faixa sobre a qual ocorrem respostas compensatórias a modificações da temperatura do ambiente e central do corpo.

Figura 19.2 Normalmente, há um gradiente de temperatura entre a superfície cutânea e a área central do corpo, mantido por mecanismos fisiológicos como a vasoconstrição periférica e a alteração na distribuição do fluxo sanguíneo. Muitos anestésicos que causam vasodilatação indiscriminada resultam na mistura de sangue central e periférico, levando à diminuição do gradiente e, por fim, a uma queda na temperatura corporal central.

A maior parte da transferência de calor entre o centro e a periferia ocorre via convecção hematogênica (com parte em virtude da condução de um tecido para outro). Os fatores que influenciam a distribuição de sangue incluem anastomoses arteriovenosas, vasoconstrição ou dilatação cutânea e troca de calor vascular em contracorrente.3 A sudorese (nas espécies que têm essa capacidade) e a temperatura ambiental também modificam a redistribuição de calor.3 Há mecanismos adicionais, como a respiração ofegante ou o tremor, que podem modificar a perda e o ganho de calor, embora esses mecanismos afetem mais diretamente a temperatura central que o gradiente de temperatura cutâneo-central. É interessante que, em seres humanos, aproximadamente 95% do calor gerado metabolicamente são perdidos para o ambiente via transferência através da pele, com apenas 5% perdidos através do trato respiratório. Isso implica que dispositivos de conservação de calor, como os aparelhos de troca de calor nas vias respiratórias, terão influência mínima na taxa de modificação da temperatura central durante anestesia.5–7 Como a pele humana e a densidade de pelos são significativamente diferentes daquelas de muitas espécies domésticas, a importância da perda cutânea de calor pode variar, mas, em geral, continua sendo um mecanismo importante que contribui para a hipotermia perianestésica. O motivo pelo qual é importante entender o gradiente de temperatura entre a cutânea e a central é que ajuda a explicar por que os pacientes anestesiados sofrem uma queda rápida na temperatura corporal após a administração de anestésicos, em especial os que causam vasodilatação periférica profunda (p. ex., acepromazina e gases inalatórios). Os fármacos que causam menos vasodilatação periférica costumam resultar em uma queda menos rápida na temperatura (p. ex., anestesia intravenosa total com propofol ou após medicação préanestésica com dexmedetomidina).8 A maior parte da pesquisa clínica sobre a alteração da temperatura corporal associada à anestesia foi realizada com seres humanos. É preciso lembrar que o tamanho do corpo e, mais especificamente, a razão entre a área de superfície e a massa corporal (como alternativa, a razão entre os compartimentos central e periférico) pode influenciar bastante a velocidade da alteração da temperatura corporal. O padrão típico de hipotermia perianestésica foi descrito como tendo três fases: uma hipotérmica inicial rápida, a queda linear e a fase de platô (Figura 19.3).

Figura 19.3 Padrão hipotético de queda da temperatura corporal durante anestesia geral de um paciente canino sem suporte térmico externo ou mínimo. Durante a primeira hora, a temperatura central geralmente diminui 1 a 1,5°C. Segue-se uma segunda fase mais lenta, que representa menor influência da redistribuição do sangue da parte central do corpo para a pele e maior dependência da perda de calor para o ambiente. Por fim, os pacientes alcançam um pseudoequilíbrio com o ambiente, e a perda de calor é mínima. Pacientes com uma razão maior entre a área de superfície e a massa corporal (p. ex., gatos ou cães pequenos) terão alterações mais rápidas, enquanto pacientes maiores (p. ex., equinos) vão apresentar alterações mais lentas. O uso de fontes suplementares de calor no período peroperatório tende a diminuir a velocidade da queda da temperatura corporal e elevar a temperatura mínima alcançada. O procedimento cirúrgico ou diagnóstico realizado também pode modificar a taxa da perda de calor.

Mecanismos de transferência de calor A energia térmica que chegou à superfície corporal do paciente é transferida para o ambiente via quatro mecanismos principais: radiação, condução, convecção e evaporação. A radiação de calor é a transferência eletromagnética (de fótons) de energia entre superfícies. Ela não depende da temperatura do ar em torno do paciente, mas depende da

capacidade de emissão das superfícies envolvidas e da sua diferença de temperatura (em o K) elevada à quarta potência. A capacidade de emissão em um objeto é aquela de troca de calor, com um valor de 1 sendo um absorvente perfeito de calor e 0 sendo um refletor perfeito. A capacidade de emissão da pele humana foi descrita como sendo de 0,95 (qualquer que seja sua pigmentação) para a luz infravermelha.3 A radiação foi identificada como o mecanismo mais importante que resulta em perda de calor e hipotermia perianestésica;3 é digno de nota o fato de não ser inibida de maneira significativa pelos métodos comuns usados para limitar a hipotermia (p. ex., cobertores comuns ou com água circulante, aquecimento forçado ou aquecedores). A condução e a convecção compartilham um tema comum, no sentido de que a energia térmica flui de uma superfície mais quente para uma que esteja mais fria. Em geral, condução é a transferência direta entre duas superfícies adjacentes, enquanto a convecção é facilitada via um intermediário (p. ex., o movimento do ar ou o fluxo de líquido). A transferência de calor via condução é proporcional à diferença entre as duas temperaturas na superfície e pode ser inibida pela colocação de um isolante entre elas. Com a convecção, o movimento do ar (‘vento encanado’) aumenta a perda de calor proporcionalmente à raiz quadrada da velocidade do ar. O uso de um lençol ou cobertor que aprisione o ar em torno do paciente limitará o fluxo de ar e, assim, reduzirá os efeitos da convecção em cerca de 30%.9 O acréscimo de camadas adicionais exerce pouco efeito no sentido de reduzir a perda por convecção, o que enfatiza a importância de se diminuir o fluxo de ar, em vez de ter como foco a capacidade isolante da cobertura. O uso de toalhas, almofadas ou cobertores com água circulante embaixo do paciente agirá como uma camada de isolamento e limitará a transferência direta de calor via condução. Uma diferença importante a se considerar entre espécies ao interpretar estudos da perda de calor em mamíferos domésticos em comparação com pessoas é o efeito isolante da pelagem sobre a condução ou a convecção. Em geral, a convecção é considerada a segunda causa mais importante de perda de calor intraoperatória em seres humanos, mas pode ser ainda mais importante em ambientes com alto fluxo de ar. A evaporação de líquidos da pele ou da superfície de alguma cavidade corporal resulta em perda de calor do paciente em decorrência da ‘doação’ da energia térmica necessária para vaporizar o líquido. Admite-se que a perda de calor é maior em cirurgias que requerem grandes incisões, com a exposição de superfícies internas, do que no caso de pequenas incisões ou procedimentos não invasivos. As perdas evaporativas podem chegar a 50% da perda total de calor em pequenos animais (coelhos) com grandes campos cirúrgicos,10 mas estima-se que seja menor com relação à perda cutânea em grandes animais (suínos).11 Outra fonte de perda de calor por evaporação é associada ao uso de soluções à base de água ou álcool para preparar o local da cirurgia. Sugeriu-se que a perda

de calor é menor com o uso de soluções à base de água do que com aquelas à base de álcool.12 Com relação a outras fontes de perda de calor, as perdas por evaporação decorrentes do preparo do local cirúrgico tendem a ser menores, porém são significativas. Há muito tempo, a queda na temperatura corporal tem sido associada à administração intravenosa de terapia líquida. A magnitude desse efeito é uma função da temperatura dos líquidos que estejam sendo administrados e do seu volume com relação à massa corporal do paciente. Quando os líquidos são administrados a uma temperatura inferior à corporal, a energia térmica é transferida para a solução, para aumentar sua temperatura, até alcançar um equilíbrio com o sangue do paciente. Um líquido intravenoso aquecido pode minimizar essa fonte de perda de calor, mas deve-se usar um dispositivo médico de aquecimento para evitar o aquecimento excessivo acidental, que poderia resultar em dano às proteínas e enzimas sanguíneas. Muitos dispositivos comerciais limitam a temperatura de líquidos a 40°C, a temperatura sanguínea aproximada em um paciente febril. As limitações importantes aos aquecedores de líquidos incluem a taxa de fluxo do líquido e a distância que eles podem ser posicionados do paciente. Muitos aquecedores de líquidos têm uma faixa especificada de taxas de fluxo de líquido em que seu débito não estará na temperatura indicada ou próximo dela. Se as taxas de fluxo forem muito altas, o tempo para absorção de calor e chegar ao equilíbrio será inadequado, com a superfície do aquecedor ficando mais fria que o líquido indicado. Se as taxas de fluxo forem muito baixas, o líquido perderá calor demais para o ar do ambiente no seu trajeto até o paciente. Circuitos longos de líquido posicionados entre o aquecedor e o paciente terão um efeito similar. Em condições clínicas, a quantidade de perda de calor no período perianestésico por meio de líquidos intravenosos aquecidos é menor com relação a outras vias.13,14

Aquecimento ativo do paciente Embora não seja possível prevenir completamente a perda de calor do paciente durante anestesia, foram criados vários métodos para repor tais perdas ou limitar sua magnitude. A primeira fase da perda de calor resulta primariamente da transferência do calor central para a periferia do corpo, decorrente da vasodilatação (Figura 19.2). É praticamente impossível evitar essa fase mediante a aplicação de uma fonte externa de calor após a indução. A estratégia mais efetiva consiste em preaquecer a pele e tecidos periféricos, para minimizar o gradiente térmico entre a pele e a parte central do corpo, de modo que, assim que o fluxo sanguíneo para a periferia aumentar, a energia térmica necessária para restabelecer o equilíbrio será mínima. Essa estratégia é empregada em alguns pacientes humanos, mas tem limitações óbvias nos animais. Em geral, é impossível conter o paciente para se aplicar um dispositivo aquecedor, mas algumas espécies podem ser colocadas em ambientes

aquecidos antes da indução anestésica. Uma desvantagem dessa abordagem é que o paciente geralmente irá responder, tentando manter uma temperatura central normal por meio de respiração ofegante, sudorese ou outros mecanismos compensatórios. Assim que houver a indução anestésica, o foco passa a ser limitar a perda de calor e maximizar a suplementação segura de calor. O uso de cobertores sobre o paciente pode causar uma redução aproximada de 30% nas perdas por convecção, assim como a colocação de isolamento ou cobertores de água aquecida circulante sobre todos os pontos em que o paciente fica em contato com a mesa cirúrgica, ou o posicionamento de dispositivos também reduzirá as perdas por convecção. No entanto, a pedra fundamental para se limitar a hipotermia perianestésica é a aplicação de uma fonte externa de calor (unidade de ar forçado, cobertor de água circulante ou unidade de espuma resistiva elétrica). Durante anos, veterinários tentaram vários métodos para fornecer calor suplementar durante a hospitalização ou recuperação da anestesia, incluindo o uso de resistências espiraladas para aquecimento elétrico (p. ex., almofadas de aquecimento para parição), recipientes preenchidos com água quente (p. ex., luvas de látex, frascos, garrafas, bolsas de líquido intravenoso) e sacos de grãos de cereais que podem ser aquecidos no microondas.15,16 Nenhum desses métodos deve ser usado durante anestesia, pelo potencial relativamente alto de causar queimaduras cutâneas nos pacientes.17 Pacientes conscientes são capazes de sentir a lesão térmica iminente e, em geral, vão se movimentar, tentando afastar-se da fonte de calor. Eles também alteram a posição do corpo com frequência, para limitar a exposição de uma área à pressão ou ao calor. Esses mecanismos inatos de proteção são abolidos pela anestesia geral, passando a ser responsabilidade do anestesista proteger o paciente contra queimaduras. Um fator que complica é o fluxo sanguíneo para a pele, pois, quando ele é baixo, permite o acúmulo de energia térmica na superfície cutânea, aumentando o risco de lesão térmica. Como os métodos previamente mencionados de suplementação de calor não foram designados para pacientes anestesiados, podem ser arriscados. Sua principal limitação é que o conteúdo aquecido dos sólidos e líquidos seja grande o bastante para a transferência de calor ser suficiente para causar uma queimadura, se deixado em contato com a pele por um período prolongado. Unidades de ar forçado eliminam esse problema, porque o conteúdo de calor do ar é baixo (a menos que se use um secador de cabelos em vez de um aquecedor para o paciente). Ao se usar um grande volume de ar quente (contendo relativamente pouca energia térmica), o risco de lesão é menor. Entretanto, se um objeto de metal, água ou plástico estiver em contato com o ar aquecido e a pele ao mesmo tempo, há um potencial de concentrar a energia térmica e causar uma queimadura, em especial se não for usado um cobertor de ar forçado aquecido apropriado para distribuir o fluxo de ar.

Os cobertores contendo água aquecida circulante reduzem o risco de lesão, porque limitam a temperatura da água e distribuem seu fluxo para áreas de acolchoamento que não estão em pressão significativa. Os pontos de pressão criados pelo contato do paciente com a mesa de cirurgia ou dispositivos de posicionamento podem criar áreas locais de relativa hipoperfusão cutânea. Essa diminuição local no fluxo sanguíneo permite que o calor se acumule no tecido hipoperfundido, aumentando o risco de ocorrer uma queimadura. Almofadas elétricas de aquecimento de baixo custo não redistribuem a liberação de calor para longe de áreas de pressão e hipoperfusão, motivo pelo qual nunca devem ser usadas em pacientes anestesiados ou durante a recuperação anestésica. Há no comércio almofadas de aquecimento com espuma resistente, designadas para pacientes anestesiados. A principal diferença é que o sistema reduz a liberação de calor quando a resistência da almofada aumenta. Os sistemas designados para pacientes anestesiados serão discutidos em maiores detalhes adiante. Deve ter ficado evidente que a eficiência da transferência de calor tem relação direta com a proporção da superfície corporal que pode ser exposta à fonte externa de calor. A razão entre superfície e massa corporal da área aquecida também é importante. A perda (e ganho) de calor em geral são maiores nas áreas com um grande fluxo sanguíneo e pouca massa corporal, como os membros. Sugeriu-se, então, o uso de isolamento (p. ex., mantas de bolhas) em torno das pernas para diminuir a perda de calor, tendo-se demonstrado que a aplicação de calor nos membros proporciona um aquecimento mais efetivo que no tronco.18 Embora pacientes odontológicos possam ter 80 a 90% da superfície corporal coberta, pacientes de cirurgias torácicas e abdominais só costumam ter 50% ou menos cobertos, por causa da necessidade do acesso cirúrgico. Tal fato, aliado às maiores perdas por evaporação em decorrência de grandes incisões e exposição de cavidade corporal, pode resultar em hipotermia significativa em pacientes de pequeno porte.

■ Unidades de ar aquecido forçado Há muitos modelos diferentes de unidades de ar aquecido forçado. Eles são bastante diferentes de outras fontes de ar aquecido forçado que têm sido usadas há muito tempo em pacientes veterinários, assim como secadores de cabelos. O débito de calor da unidade é uma função da temperatura do ar e do volume do fluxo de ar da extremidade da mangueira. Contudo, a eficácia do sistema para aquecer os pacientes é principalmente uma função do projeto do cobertor.19 As considerações importantes são que o cobertor deve ter diferenças mínimas de temperatura entre as áreas mais quentes e as mais frias e que a efetividade é uma função da diferença de temperatura entre o paciente e o cobertor. Até que ponto o paciente fica coberto pelo cobertor também é um fator crucial. Com esse conhecimento, não é recomendável poupar dinheiro fazendo os cobertores em casa como outros itens,

conforme fronhas para travesseiros. Além disso, o uso de um cobertor é importante para a distribuição uniforme de calor. É ineficiente conectar os pacientes à mangueira (com a extremidade do cobertor que tem a mangueira na direção do paciente) e pode resultar em superaquecimento de objetos de plástico, metal ou outros que estejam em contato direto com a pele do paciente. As unidades de ar aquecido forçado e seus cobertores são elaborados como um sistema e, quando utilizados como tais, são efetivos.20,21

■ Sistemas de água aquecida circulante Um dos sistemas mais antigos designados para uso em pacientes anestesiados consiste em uma unidade com um reservatório de água com bomba e um cobertor ou almofada substituível.22 Os principais aspectos da bomba são a incorporação de segurança elétrica, pois a água e a eletricidade estão em muita proximidade, e a capacidade de limitar a temperatura da água liberada para o paciente (geralmente em torno dos 40°C). A maioria das unidades pode ser conectada a cobertores de vários tamanhos e formatos, tendo características internas para alertar sobre níveis baixos de água. Os cobertores estão disponíveis em muitos tamanhos e formatos úteis para maximizar a área de contato corporal. A água circula através do cobertor em canais formados entre as camadas de plástico. A oclusão de alguns dos canais pela pressão do paciente resulta em desvio do fluxo em torno da área, reduzindo o risco de acúmulo de calor nos pontos de pressão. Embora os sistemas de água aquecida circulante em geral sejam menos dispendiosos que outros sistemas destinados a pacientes anestesiados, eles apresentam algumas desvantagens. Geralmente, o cobertor fica entre o paciente e a mesa. Se for necessário cobrir mais o paciente, será preciso usar mais cobertores ou unidades. Alguma falha ou vazamento de um cobertor pode deixar o paciente encharcado, resultando em aumento significativo da perda de calor, em decorrência da evaporação durante o transporte e a recuperação. Embora os cobertores de água circulante sejam mais efetivos que qualquer suporte térmico externo, costumam ser menos efetivos que as unidades de ar aquecido forçado.23 Muitos anestesistas preferem usar um cobertor de água aquecida circulante sob o paciente, combinado com uma dessas unidades sobre ou em torno de o paciente.

■ Aquecimento elétrico por polímero resistente Esses sistemas (p. ex., HotDog Patient Warming System, Augustine Biomedical Design, Eden Prairie, MN; Inditherm, Inditherm plc, Rotherham, RU) diferem do ar forçado e da água aquecida circulante por serem dispositivos de aquecimento mais condutivos que convectivos. A principal preocupação que limita o uso de almofadas elétricas de aquecimento durante a anestesia e a recuperação anestésica era (e continua sendo) a possibilidade de lesão térmica. O polímero de aquecimento difere de outras almofadas

elétricas de aquecimento por distribuir o calor de maneira uniforme, limitando pontos quentes. A resistência ao fluxo elétrico (que está relacionado com a produção de calor) é monitorada pelo controlador, regulando, assim, a liberação de calor. Além disso, sensores de temperatura localizados na almofada monitoram independentemente a temperatura, com um sistema de monitoramento redundante. A construção da almofada consiste em várias camadas compostas pelo polímero, acolchoamento, preparação para ser à prova d’água e uma camada protetora. A integridade da almofada parece ser importante, pois a umidade dentro dela pode alterar a função e as características da liberação de calor e tem sido associada à lesão térmica nos pacientes. Além disso, as unidades sensoras de temperatura dentro da almofada estão localizadas em áreas distantes, e o ideal seria colocá-las em contato com a pele do paciente, caso se queira ter uma medida precisa da temperatura no ponto de contato. As vantagens desse sistema incluem menos preocupação com contaminação do local cirúrgico por causa do fluxo de ar (sistemas de ar aquecido forçado),24 do custo mais baixo (sistemas de ar aquecido forçado e de água aquecida circulante), do funcionamento silencioso em estado sólido e de uma conexão para corrente elétrica direta simples entre a almofada e a unidade de controle. Um benefício adicional desse sistema para o anestesista é a disponibilidade de uma vestimenta que pode ser conectada à unidade (ou a uma fonte de energia fixa isolada) e usada pelo anestesista em salas de cirurgia frias (Figura 19.4). As desvantagens potenciais do sistema incluem um preço inicial relativamente alto e a preocupação com lesão térmica quando a almofada sofre danos sem sinais externos óbvios. Muitos usuários (em especial para procedimentos dentários) colocam a almofada enrolada em torno do paciente, mas uma abordagem mais segura pode ser colocá-la sobre o paciente, para limitar pontos de pressão. A efetividade do aquecimento com polímero resistente foi comparada com a do ar aquecido forçado e outros métodos. Em geral, esse sistema é similar ou um pouco mais efetivo.25–29 Todavia, a principal limitação com a transferência de calor e a manutenção da temperatura do paciente permanece sendo a quantidade de superfície corporal que pode estar em contato com a almofada.

Hipertermia É uma ocorrência rara durante anestesia. Quando ocorre, costuma ser por causas iatrogênicas (p. ex., muito ganho de calor dos dispositivos de aquecimento), animais com pelagem muito espessa submetidos a procedimentos diagnósticos associados a pouca perda de calor (p. ex., realização de uma ressonância magnética em um cão da raça Newfoundland) ou distúrbio ou doença metabólica (p. ex., hipertermia maligna ou suspeita da síndrome da serotonina). Quando reconhecida, deve-se avaliar o significado clínico da

presença de hipertermia e formular uma lista de causas diferenciais. A hipertermia transitória leve (até 40°C) raramente é um risco para o paciente e, em geral, responde ao tratamento da causa suspeita (desligamento ou redução do suporte de calor). Se a hipertermia estiver associada a outros sinais de hipermetabolismo (aumento do volume corrente final de CO2, acidose metabólica, hipoxia), deve-se suspeitar de hipertermia maligna ou alguma variante de doença hipermetabólica e instituir o tratamento agressivo do problema em questão. A hipertermia maligna foi relatada em várias espécies, inclusive a humana, gatos, cães, equinos e suínos.30–41 Síndromes hipermetabólicas similares também foram relatadas durante a captura de animais silvestres de vida livre.

Figura 19.4 Vestimenta opcional que pode ser conectada a uma unidade de controle HotDog de aquecimento do paciente (Augustine Biomedical Design, Eden Prairie, MN) ou que possa funcionar com uma fonte de energia fixa isolada. A vestimenta torna salas de operações

muito frias mais confortáveis para o anestesista. Fonte: Dra. JoAnna Anzelmo-Rump. Reproduzida, com autorização.

Um fator passível de confusão no diagnóstico da causa de hipertermia, especialmente em gatos, é a associação da administração de opioide à hipertermia perianestésica.42,43 Esse efeito parece estar relacionado com a alteração da termorregulação induzida por opioide no sistema nervoso central. A maioria das outras espécies comuns de animais de companhia tem hipotermia perianestésica após a administração de opioide, embora pareça haver exceções (p. ex., Greyhounds).31 Em outras partes deste texto há discussões mais detalhadas sobre a hipertermia maligna nas espécies.

Significado clínico da hipotermia O primeiro obstáculo para uma discussão esclarecedora do significado da hipotermia relacionada com o anestésico é definir em qual temperatura do paciente ela ocorre. Em termos estritos, seria qualquer temperatura abaixo da normal do paciente. No entanto, a experiência prática nos diz que a hipotermia leve raramente está associada a complicações significativas a longo prazo; portanto, muitos preferem definir hipotermia leve como uma temperatura corporal entre a eutérmica normal do paciente e aproximadamente 36°C, abaixo da qual se acredita que o risco de complicações aumente na maioria das espécies. Deve ser evidente que a redução da temperatura corporal é contínua e o risco de consequências adversas costuma ser multifatorial. Portanto, definir em que temperatura a hipotermia é significativa depende do paciente em questão e das comorbidades presentes. Em geral, pode-se presumir que o risco de desfechos adversos aumenta à medida que a temperatura corporal diminui, mas é impossível predizer com acurácia os valores de temperatura em que um paciente terá complicações. Na medicina veterinária, a hipotermia relacionada com a anestesia é muito comum. Animais maiores (equinos e bovinos) costumam ter algum grau de hipotermia, mas a magnitude, em geral, é pequena, face à maior razão entre massa e superfície corporais, bem como potencialmente à alta frequência do uso de agonistas dos receptores adrenérgicos α2 como pré-anestésicos. Mesmo que a hipotermia possa ser classificada como leve, há vários estudos que a associaram a tempos mais prolongados para levantar em equinos.21,44 Espécies menores, inclusive cães e gatos, geralmente têm hipotermia leve a moderada, mesmo quando são usadas fontes suplementares de calor. Contudo, a incidência relatada varia muito, dependendo da temperatura usada para se definir seu início.45–49 A incidência e a magnitude da hipotermia estão altamente correlacionadas com vários fatores de risco para complicações pós-anestésicas que não dependem da temperatura, incluindo a duração da anestesia, o estado ASA, o tamanho do paciente, a localização

anatômica e o motivo para a cirurgia.50,51 As complicações comuns em geral atribuídas à hipotermia incluem risco de overdose do anestésico,52 recuperação prolongada da anestesia,53 infecção da ferida pós-operatória, comprometimento da coagulação,54,55 aumento do tremor e do desconforto durante a recuperação, aumento da viscosidade sanguínea e complicações cardíacas que incluem arritmias e parada cardíaca.56 Embora medidas in vitro da coagulação e da função plaquetária sejam dependentes da temperatura e, em geral, prejudicadas por temperaturas associadas à hipotermia, os efeitos in vivo da hipotermia sobre a coagulação podem ser variáveis, dependendo de muitos fatores cirúrgicos e do paciente. A parada cardíaca é o exemplo mais extremo de aumento da mortalidade por hipotermia, mas não costuma ocorrer até que a temperatura central fique abaixo de aproximadamente 20 a 23°C.56 Podem ocorrer outras complicações cardiovasculares com temperaturas corporais muito mais altas (p. ex., hipotensão, isquemia miocárdica e arritmias em decorrência de aumento das demandas de oxigênio secundárias a tremores na recuperação), porém são mais preocupantes em pacientes com cardiopatia preexistente que naqueles saudáveis normais. Demonstrou-se que as infecções de feridas pós-operatórias são mais comuns quando ocorre hipotermia leve durante anestesia,57 mas outros trabalhos encontraram pouca diferença ao estudarem a taxa de infecções em feridas limpas, em vez de sugerirem que o tempo de cirurgia é mais importante.58 Os mecanismos propostos incluem diminuição do fluxo sanguíneo periférico tecidual durante a recuperação e função diminuída das células T e neutrófilos.57 No entanto, outros fatores, em especial o tempo de cirurgia, sua localização, a saúde subjacente do paciente e a hipoxemia associada à anestesia (relativamente comum em equinos), também devem ser considerados porque também se correlacionam com as taxas de infecção da ferida.59–61 A hipotermia controlada pode ser protetora para alguns pacientes. A taxa diminuída do metabolismo celular associada à hipotermia pode ser protetora em algumas condições, como doença neurológica,62–64 isquemia miocárdica56 e hipoxia tecidual.65

Manejo perianestésico nos casos de hipotermia Não há diretrizes formais para o manejo da temperatura corporal durante anestesia em pacientes veterinários. Contudo, o monitoramento da temperatura corporal no período peroperatório é recomendado por American College of Veterinary Anesthesia and Analgesia Monitoring Guidelines (diretrizes para monitoramento do ACVAA), de modo que ‘os pacientes não se deparam com grandes desvios da temperatura corporal normal’.66 Deve-se notar que o monitoramento da temperatura do paciente não modifica as alterações

no equilíbrio térmico associadas à anestesia. A aplicação de fontes externas de calor apropriadas pode influenciar, mas raramente previne alterações na temperatura durante o período operatório, a menos que os pacientes possam ficar em contato com a fonte em grande parte da superfície cutânea e por tempo suficiente para absorver energia térmica adequada. O manejo quanto à temperatura do paciente impõe uma série de compromissos entre o anestesista, o cirurgião e outras pessoas envolvidas com os cuidados pós-operatórios do paciente. Todos os anestesistas gostariam de ter seus pacientes eutérmicos, se for possível, pois sentir frio pode ser desconfortável. Todavia, a logística cirúrgica, de transporte do paciente e da recuperação em geral não favorece a manutenção da eutermia. Por exemplo, um cirurgião não pode ter acesso ao abdome para uma laparotomia exploradora se houver dispositivos de aquecimento na metade caudal do paciente, de modo que uma diminuição significativa na transferência de calor é inevitável para satisfazer as necessidades cirúrgicas. Além disso, é comum o conteúdo abdominal ficar exposto durante uma laparotomia, o que diminui ainda mais o equilíbrio térmico do paciente mediante aumento das perdas. A temperatura da sala de cirurgia deve ser aumentada, para minimizar a diferença entre a temperatura do paciente e a do ambiente, porém a maioria dos cirurgiões prioriza seu próprio conforto e mantém a temperatura da sala fria. Mesmo com as limitações impostas pelas necessidades cirúrgicas, devem ser envidados esforços razoáveis para aplicar medidas efetivas de suplementação de calor aos pacientes anestesiados, em especial se a cirurgia for invasiva ou a anestesia mais prolongada que alguns minutos. Como a maior parte (em alguns casos, mais de 90%) da perda de calor ocorre por condução, convecção e radiação através da pele, o foco deve ser limitado a tais perdas. A colocação de almofadas isolantes sob os pacientes diminui as perdas por condução na mesa de cirurgia. Dispositivos de aquecimento designados especificamente para pacientes anestesiados sobre o máximo possível da superfície cutânea diminuem o gradiente de temperatura cutâneo-ambiental e tornam mais lenta ou revertem a perda. Uma camada de material sobre ou em torno do paciente pode limitar a circulação de ar e alentecer a perda por convecção. Alguns têm usado lâmpadas iridescentes sobre o paciente para limitar ou reverter a perda de calor radiante (uma proporção significativa da perda total), mas não é uma prática comum e pode ser de controle difícil. Outros métodos de aquecimento do paciente ou de prevenção da perda de calor têm sido estudados. Em geral, são efetivos quando voltados para o mecanismo visado, mas esses mecanismos costumam ter efeitos relativamente mínimos e não exercem um impacto significativo sobre a perda total de calor. Incluem o uso de líquidos aquecidos, umidificadores das vias respiratórias e aquecedores,67 soluções cirúrgicas à base de água em vez de álcool e isolamento adicional ou camadas de cobertores (p. ex., os de bolhas

para os pés). Ao se considerar a utilidade dessas técnicas, sua efetividade e o potencial de complicar ou prolongar o procedimento anestésico e cirúrgico devem ser discutidos em detalhes. A hipotermia significativa em pacientes que estejam se recuperando da anestesia é comum, especialmente no caso de pequenos animais após cirurgias com duração de 30 min ou mais. Os fármacos usados para medicação pré-anestésica e anestesia podem influenciar bastante a redução observada da temperatura corporal, pois os vasoconstritores (p. ex., agonistas dos receptores adrenérgicos α2) tendem a restringir o fluxo sanguíneo cutâneo e a transferência de calor, enquanto os vasodilatadores (p. ex., acepromazina e anestésicos inalatórios) tendem a aumentá-los.8 Embora a magnitude da vasoconstrição ou vasodilatação possa modificar a velocidade da perda de calor, também pode alterar a taxa com que as fontes suplementares de calor aplicadas externamente são capazes de aquecer o paciente durante a recuperação. Pode ser mais difícil elevar a temperatura corporal de um animal com vasoconstrição periférica profunda (em decorrência da resposta normal à hipotermia ou induzida por fármacos). Em alguns casos, pode ser razoável administrar um antagonista dos fármacos responsáveis por retardar o aquecimento do paciente (p. ex., antagonistas do receptor adrenérgico α2 ou antagonistas de opioides), para ajudar a restaurar o fluxo sanguíneo cutâneo e as respostas termorreguladoras centrais. Entretanto, não é comum se recorrer a isso após uma cirurgia de grande porte, por causa da perda das ações sedativas e analgésicas que se seguem à reversão. Além disso, aumentos rápidos nas demandas de oxigênio serão subsequentes ao início dos tremores. Se o paciente não conseguir aumentar a liberação de oxigênio (por diminuição da função cardiovascular ou anemia) ou tiver uma oxigenação sanguínea marginal (doença respiratória), pode seguir-se hipoxia tecidual rápida. Embora a hipotermia tenha sido associada a várias complicações pós-operatórias (p. ex., aumento de infecção da ferida cirúrgica, comprometimento da coagulação e da hemostasia etc.), raramente representa uma emergência anestésica verdadeira, mesmo quando é grave. Portanto, de início, a equipe deve ter como foco os parâmetros críticos, como a função cardiovascular (frequência cardíaca, pressão arterial, débito cardíaco) e a pulmonar (CO2 corrente final, saturação da hemoglobina, manejo da via respiratória), antes de instituir o aquecimento dos pacientes quando chegam para a recuperação. Desde que as funções vitais do paciente estejam sendo monitoradas e mantidas, pode-se proporcionar o suporte térmico. No período inicial da recuperação, quando os pacientes ainda estão inconscientes ou bem sedados, as preocupações são iguais àquelas durante a anestesia, com relação à colocação de fontes de calor não designadas para os anestesiados, próximas ou sobre eles.

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Introdução Modelo de hemostasia fundamentado na célula Provas da coagulação e da função plaquetária Provas da função plaquetária (hemostasia primária) Provas da coagulação Terapia anticoagulante Fármacos antiplaquetários Inibidores da coagulação Fármacos fibrinolíticos Terapias pró-coagulantes Fármacos que sustentam a coagulação Referências bibliográficas

Introdução Nos últimos anos, houve um interesse renovado no processo da hemostasia, tanto normal como alterado, em pacientes veterinários, por causa, em parte, da disponibilidade de exames e técnicas mais modernos, capazes de ilustrar melhor o processo e os produtos da coagulação. Ao mesmo tempo, um novo entendimento da formação dos coágulos in vivo deixou claro que os exames tradicionais só proporcionam uma visão limitada dos mecanismos reais e da fisiopatologia da formação do coágulo e da função plaquetária.

Modelo de hemostasia fundamentado na célula Tal modelo fornece o alicerce para o entendimento das interações complexas de componentes celulares, fatores solúveis e o endotélio vascular na formação de um coágulo.

Em alguns casos, esse modelo explica por que certas condições (p. ex., deficiências de fatores) têm um fenótipo hemostático particular. Conforme descrita por esse modelo, a coagulação consiste em três fases: início, amplificação e propagação.1 A maior parte da coagulação in vivo ocorre como resultado da iniciação da cascata da coagulação extrínseca por um fator tecidual (FT, fator III), em oposição à ativação por contato via cascata da coagulação intrínseca.2 Após lesão da íntima de um vaso sanguíneo, o fator tecidual é exposto e também pode estar presente e disponível para a coagulação na superfície de células circulantes e micropartículas, estas últimas em pequenas vesículas com membrana, liberadas por células endoteliais ativadas, plaquetas ou leucócitos. Outra estrutura importante para o início da coagulação é a plaqueta que, após ativação, sofre alteração na forma e no rearranjo dos fosfolipídios existentes na superfície de sua membrana externa. Fosfolipídios aniônicos como a fosfatidil serina ficam expostos e fornecem uma superfície pró-coagulante para a montagem de construtos dos fatores da coagulação para manter a propagação da mesma.3 A primeira formação complexa ocorre quando o FT exposto entra em contato com o fator VII ativado (fVIIa). Esse complexo resulta na geração de uma pequena quantidade de trombina (fator IIa) após a ativação do fator X e a formação de um complexo FT-fVIIa-fXa.1 A pequena quantidade de trombina liberada pela etapa de iniciação promove o estágio de amplificação, em que são ativadas mais plaquetas, bem como os fatores da coagulação V, VIII e XI.2 A formação adicional de trombina na fase de propagação prossegue usando esses fatores e a membrana plaquetária. O complexo tenase, composto pelos fatores IXa, VIIIa e cálcio, desempenha um papel fundamental na formação da trombina durante a fase de propagação. O complexo tenase ativa o fator X da coagulação. A presença do fator Xa, então, permite a formação do complexo protrombinase, que é composto pelos fatores Xa, Va e cálcio. O complexo protrombinase é extremamente eficiente na formação de trombina (fator IIa) a partir de protrombina, que então catalisa a formação de fibrina a partir do fibrinogênio.4 Em cada estágio do processo de coagulação, há inibidores endógenos da coagulação, para evitar a formação excessiva de fibrina. O inibidor da via do fator tecidual (IVFT, ou TFPI, do inglês tissue factor pathway inhibitor) é um inibidor potente do complexo FTfVIIa-Xa.1 A antitrombina age inibindo os fatores Xa e IIa. O sistema proteína C/proteína S mantém a inibição dos fatores Va e VIIIa. Acredita-se que pacientes com perdas urinárias de antitrombina e pessoas com baixas concentrações congênitas de proteína C corram maior risco de desenvolver tromboembolismo.5 Em cães com sepse, a atividade da proteína C e da antitrombina diminui.6 Também há relatos de que cães com sepse apresentam maior atividade do inibidor da fibrinólise ativável pela trombina (IFAT, ou TAFI em inglês).7 Outros compostos fora da cascata da coagulação ajudam a manter a coagulação ou

estabilizam o coágulo formado, como o IFAT.

Provas da coagulação e da função plaquetária É muito difícil simular in vitro a fisiologia complexa da formação do coágulo in vivo. A maioria dos exames laboratoriais para verificar a função da coagulação focaliza os aspectos individuais da cascata da coagulação. Pode-se avaliar a função plaquetária com recursos, como a agregometria óptica ou de impedância, que documentam a resposta das plaquetas (em plasma rico em plaquetas ou sangue total, respectivamente) a agonistas discretos, como o difosfato de adenosina (ADP), colágeno ou ácido araquidônico.8

■ Provas da função plaquetária (hemostasia primária) A maioria dos testes de agregometria é realizada em condições de baixo cisalhamento, com revolvimento delicado, que não reflete necessariamente as condições in vivo das plaquetas associadas a áreas de lesão endotelial em condições de alto cisalhamento do sangue fluindo. O PFA-100 (Siemens-Dade Behring) é um teste de sangue total que aspira o sangue através de uma pequena abertura usando vácuo.9 A abertura é coberta com uma associação de epinefrina e colágeno ou ADP e colágeno. À medida que as plaquetas passam através da abertura coberta, são ativadas pelos agonistas e formam um tampão, interrompendo o fluxo sanguíneo. O tempo para que isso ocorra denomina-se ‘tempo de fechamento’ e é medido em segundos. Esse tempo de fechamento é prolongado em cães com doença de von Willebrand (que prejudica a capacidade de ligação e aderência das plaquetas aos locais de lesão vascular) e animais tratados com fármacos que diminuem a atividade plaquetária.10 Este teste é rápido e preciso, podendo ser usado para avaliar o risco de sangramento de um animal em decorrência das anormalidades da função plaquetária. É preciso notar que hematócritos de baixas contagens plaquetárias inferiores a 90.000/µℓ podem prolongar o tempo de fechamento, sem relação com a função plaquetária. O período de sangramento na mucosa bucal (TSMB, ou BMBT em inglês) é outro exame que tem sido usado para diagnosticar anormalidades da função plaquetária. É simples e pode ser feito rapidamente como parte de uma triagem pré-cirúrgica. Para realizar esse teste, a mucosa bucal é exposta e faz-se uma incisão padrão (de 5 mm de comprimento e 1 mm de profundidade) com um dispositivo simples.11 Assim que a incisão é feita, observa-se a área quanto à formação de um tampão plaquetário em forma de gel. O período de sangramento é definido como aquele decorrido até o sangramento cessar, sendo de 3 a 5 min em animais normais. Como a superfície bucal dos gatos é pequena, verifica-se o período de sangramento da mucosa oral fazendo-se a incisão nas gengivas, acima dos dentes caninos.12 Em geral, é preciso sedar ou anestesiar os gatos para esse procedimento.

Como o PFA, o TSMB será anormalmente prolongado se os pacientes tiverem trombocitopenia (< 75 × 109 plaquetas/ℓ).

■ Provas da coagulação A avaliação da atividade do fator da coagulação, em geral, é realizada usando-se plasma citratado, mas também pode ser feita em sistemas que utilizam sangue total. A maioria dos testes monitora a formação de um coágulo de fibrina mediante a exposição do plasma citratado ao cálcio, em combinação com uma substância ativadora, e revela o tempo até a formação do coágulo (que pode ser percebido por um sensor óptico ou mecânico) como o tempo de coagulação.13 O tempo de protrombina (TP) é iniciado usando-se uma mistura de fator tecidual e fosfolipídio e avalia primariamente a via extrínseca e comum da coagulação. O tempo parcial de tromboplastina ativada (TPTa, ou aPTT em inglês) é iniciado com um forte ativador do contato, como o caolim, e reflete a atividade nas vias intrínseca e comum. O tempo de trombina é dependente da concentração sanguínea de fibrinogênio e avalia apenas a formação de fibrina na via comum, após o acréscimo de trombina. Foram feitas modificações no TP e no TPTa com o uso de sangue total citratado para provas da coagulação também.5 Para se determinar o tempo de coagulação ativada (TCA, ou ACT em inglês), acrescenta-se sangue total a terra diatomácea (um ativador forte de contato), e o tempo até se formar um coágulo é medido. Os valores do tempo de coagulação em animais normais variam, dependendo da metodologia e da técnica. Nas provas da coagulação viscoelásticas em que se empregam técnicas como a tromboelastografia (TEG), a tromboelastometria rotacional (ROTEM) ou Sonoclot, usa-se sangue total citratado para avaliar a hemostasia tanto primária como secundária, além da fibrinólise.14 As provas fibroelásticas mostram a alteração na viscosidade à medida que o sangue vai se tornando um gel até formar um coágulo, e podem identificar tanto estados hipocoaguláveis como hipercoaguláveis. Foram descritas técnicas viscoelásticas em cães, gatos e cavalos.15–17

Terapia anticoagulante Classicamente, acredita-se que tromboses arteriais resultem da ativação ou hiperatividade de plaquetas, pois elas são mais propensas à ativação pelo estresse do cisalhamento no fluxo sanguíneo arterial. Trombose venosa ou tromboembolismo costumam estar mais associados a estase sanguínea e ativação de fatores da coagulação.18 Embora estas duas consequências fisiopatológicas determinem abordagens terapêuticas diferentes, a realidade na medicina veterinária equilibra a necessidade de segurança para o paciente e a facilidade de administração pelo proprietário. Por esse motivo, a maioria dos anticoagulantes usados

em medicina veterinária consiste em agentes antiplaquetários que podem ser administrados por via oral. Também são usados anticoagulantes injetáveis que afetam aspectos da cascata da coagulação, especialmente em pacientes hospitalizados, e os anticoagulantes orais mais novos podem ser uma abordagem mais segura para a anticoagulação adequada em pacientes veterinários.

■ Fármacos antiplaquetários A ativação plaquetária resulta em uma série de eventos que tornam a plaqueta capaz de aderir a locais de dano vascular (por meio de moléculas como o FvW e colágeno) e também causam a liberação de moléculas agonistas que mantêm a coagulação e ativam outras plaquetas na área imediata por meio de receptores específicos na superfície plaquetária. As moléculas liberadas das plaquetas ativadas incluem ADP, tromboxano, serotonina e cálcio. Como tais receptores são específicos para muitos desses agonistas, os agentes antiplaquetários foram designados para afetar a ligação ou liberação de tais agonistas. A aspirina (ácido acetilsalicílico, AAS) é um dos agentes mais comumente usados para diminuir a sensibilidade plaquetária e tem sido avaliada na maioria das espécies domésticas. O AAS exerce um efeito antiplaquetário mediante a inibição irreversível da ciclo-oxigenase (COX) plaquetária, que produz tromboxano A2 (TXA2) a partir do ácido araquidônico, em resposta à ativação plaquetária.19,20 O TXA2 é um potente vasoconstritor e ativador de plaquetas, embora as respostas plaquetárias variem entre as espécies e indivíduos. Em cães, o AAS em várias doses foi recomendado para diminuir a atividade plaquetária em pacientes com anemia hemolítica imunomediada (AHIM) e outras doenças associadas a estados hipercoaguláveis (p. ex., nefropatia com perda de proteína).6 Em muitos desses casos, foi recomendada uma dose baixa de AAS (0,5 a 1 mg/kg VO a cada 12 h), embora a eficácia dessas doses baixas sobre a agregação plaquetária tenha sido questionada recentemente. É interessante que certas raças ou famílias de cães podem não responder muito bem à inibição das plaquetas mediada pelo AAS.21 O mesmo pode ser verdadeiro para seres humanos, tendo sido descrita uma síndrome de ‘resistência ao ácido acetilsalicílico’.22 Em gatos, o AAS foi recomendado para a tromboprofilaxia em animais com miocardiopatia hipertrófica, embora a eficácia para inibição da agregação plaquetária ou a prevenção da formação de trombo intracardíaco não tenha sido demonstrada de maneira definitiva.20,23 O ácido acetilsalicílico tem sido usado para tratar cavalos com trombose venosa jugular. O clopidogrel é outro antiplaquetário que tem sido investigado em espécies veterinárias. Ele é um antagonista irreversível do receptor plaquetário P2Y12 do ADP, um dos dois receptores do ADP na superfície das plaquetas. A farmacodinâmica do clopidogrel

foi descrita em cães, gatos e cavalos, nos quais o fármaco diminui efetivamente a agregação plaquetária em resposta ao ADP.12,24,25 Por ser um profármaco, o clopidogrel requer biotransformação para tornar-se um composto ativo. Os fármacos que afetam o sistema enzimático hepático P450 podem alterar a farmacocinética do clopidogrel. No entanto, estudos recentes não indicam uma interação clinicamente relevante com inibidores da bomba de prótons.26 Como ocorre com o AAS, foram identificados pacientes humanos que não respondem ao tratamento com clopidogrel, apresentando uma redução significativa na agregação plaquetária induzida pelo ADP. O mecanismo pode ser uma alteração do processamento hepático ou variações na afinidade do receptor plaquetário.27 Ainda não foram identificados pacientes veterinários com respostas variáveis ao tratamento com clopidogrel, mas é provável que haja. Como tanto o AAS como o clopidogrel resultam em inibição irreversível da função plaquetária, é necessário que os pacientes formem novas plaquetas, de modo a recuperar a função delas. Em animais com a medula óssea normal, em geral uma nova população plaquetária estará presente 5 a 7 dias após a cessação da administração de medicações antiplaquetárias. O ácido acetilsalicílico e o clopidogrel costumam ser prescritos para animais com possíveis condições hipercoaguláveis, pois, em geral, são bem tolerados, fáceis de administrar em casa e associados a uma chance limitada de hemorragia significativa como resultado do tratamento, quando usados individualmente. Ao serem usados em conjunto em pacientes humanos, os efeitos antitrombóticos foram mais pronunciados, mas também houve um aumento na incidência de sangramento gastrintestinal.28

■ Inibidores da coagulação O único fármaco oral disponível atualmente que afeta a cascata da coagulação é a varfarina, que age como antagonista da redutase do epóxido da vitamina K, impedindo a reciclagem dessa vitamina ao prejudicar a produção de fatores da coagulação que dependem dela (i.e., II, VII, IX e X).29 É muito difícil titular a varfarina. Seu uso clínico requer estimativas mensais do TP, alimentação controlada e um esquema de dosagem estrito, para minimizar as chances de hemorragia catastrófica. O tratamento com varfarina tem sido usado como um componente do tratamento clínico em cães com trombos venosos30 e também foi utilizado em um número pequeno de gatos com miocardiopatia hipertrófica. Contudo, seu uso naqueles gatos foi associado a um tempo de sobrevida mais curto.23 Os efeitos da varfarina podem ser antagonizados quando se usa vitamina K oral (fitonadiona) ou por transfusões de plasma fresco congelado ou armazenado.31 Apesar de a administração de varfarina ser oral, ela não costuma ser usada na medicina veterinária por causa da gravidade das complicações potenciais e da dificuldade para se assegurar a obediência do

proprietário ao esquema. Recentemente, foram lançadas outras medicações anticoagulantes orais para pacientes humanos, como o rivaroxabana e o apixabano,32,33 que são inibidores do fator X ativado (Xa) da coagulação e mostraram efeito equivalente ou superior ao da varfarina em vários estudos feitos com seres humanos. Estão em andamento estudos com esses fármacos em animais e, caso provem ser eficazes, poderão vir a ser uma opção segura para a anticoagulação oral em pacientes veterinários. As heparinas constituem outra classe de fármacos de uso comum para anticoagulação em espécies veterinárias. O uso de heparina não fracionada (HNF) e heparinas de baixo peso molecular (HBPM) foi descrito em muitas espécies animais. Elas têm sido usadas para tratar muitas condições associadas à trombose potencial ou real.34,35 Todas as heparinas são injetáveis e podem ser administradas por via intravenosa ou subcutânea. Elas acentuam o efeito inibidor da antitrombina sobre os fatores X e II ativados da coagulação. A heparina de baixo peso molecular é uma molécula menor e incapaz de inativar o fator IIa, exercendo efeito apenas sobre o fator Xa. As heparinas estão indicadas para anticoagulação em pacientes com trombose visível ou naqueles em risco de complicações trombóticas, em especial no período peroperatório.36 Tem-se usado heparina não fracionada para tratar cães com AHIM, tromboembolismo pulmonar e, ocasionalmente, animais diagnosticados com a fase hipercoagulável da coagulação vascular disseminada (CID).36 Não há evidência que justifique a pré-incubação de plasma fresco congelado com HNF no contexto de CID, prática que realmente pode diminuir a quantidade de antitrombina no plasma. Além disso, a HNF costuma ser usada para anticoagulação durante procedimentos de derivação cardiopulmonar e outras técnicas avançadas (p. ex., hemodiálise). A administração pós-operatória de HNF foi descrita em cães após ressecção da glândula adrenal37 e pode ser feita para outros procedimentos vasculares. Em equinos, a HNF pode resultar em anemia causada pela aglutinação de eritrócitos, efeito adverso revertido rapidamente após a cessação do tratamento com HNF.38 Em seres humanos, a trombocitopenia induzida por heparina (TIH) é uma grande preocupação, resultando da geração de anticorpos contra a heparina ligada ao fator plaquetário 4, que acarreta ativação e consumo de plaquetas, com trombocitopenia e trombose em alguns pacientes.39 É mais provável ocorrer trombocitopenia induzida por heparina em pacientes que estejam recebendo HNF, em comparação com os que recebem HBPM.40 A TIH não foi relatada em espécies veterinárias. Em pessoas, a HBPM tem um perfil farmacocinético mais favorável (uma dose diária) e implica risco menor de hemorragia, em comparação com a HNF. Por esse motivo, pode ser mais segura em pacientes no peroperatório, embora isso não tenha sido estudado de maneira específica em pacientes veterinários. Das HBPMs disponíveis, a dalteparina e a enoxaparina foram as mais estudadas na medicina veterinária. Foram feitas comparações

diretas entre elas e a HNF em gatos35 e cães,41 havendo estudos mais focados disponíveis em equinos42 e outras espécies. Embora a farmacocinética em seres humanos justifique uma dose diária, os estudos farmacodinâmicos disponíveis em espécies animais sugerem que podem ser necessárias várias doses para manter a atividade antifator Xa na faixa terapêutica. A utilidade da HBPM versus a HNF para a profilaxia de trombos na medicina veterinária também não está esclarecida. O uso da HBPM sintética mais nova, o fondaparinux, foi descrito recentemente em gatos (Tabela 20.1).43 As diretrizes para as doses de heparina em pessoas baseiam-se na atividade antifator Xa (aXa), e os alvos variam para a dosagem profilática e terapêutica. Os níveis terapêuticos visados de aXa da HNF (medidos 4 h após a administração de uma dose) são de 0,35 a 0,7 U/mℓ, enquanto os níveis profiláticos correspondem a aproximadamente 10% desses valores.44,45 As doses para a heparina de baixo peso molecular atingir níveis terapêuticos de aXa são de 0,5 a 1 U/mℓ e, para profilaxia, 0,1 a 0,3 U/mℓ. Em cães, por causa da disponibilidade limitada de testes rápidos para aXa, em geral a dose de HNF é ajustada de acordo com a medida de um TPTa seriado até que alcance 1,5 a 2 vezes o valor normal. Essas diretrizes variam, dependendo do tipo de aparelho utilizado para medir o TPTa, e, com o uso de algumas metodologias, um prolongamento mais próximo de 1,2 a 1,5 vez o TPTa normal pode estar indicado.15 Os esquemas posológicos para a HNF e a HBPM em cães e gatos foram revistos recentemente.36

Fármacos fibrinolíticos Em animais que desenvolveram trombos venosos ou arteriais, o fluxo sanguíneo e a liberação de oxigênio podem ser restabelecidos mediante o uso de fármacos fibrinolíticos que estimulam a dissolução de coágulos in vivo. Os principais que têm sido usados nesse sentido são o ativador do plasminogênio tecidual (APt, ou tPA) e a estreptoquinase, esta última não sendo mais comercializada nos EUA. O ativador do plasminogênio tecidual é um ativador potente da plasmina, que age desdobrando a fibrina nos fibrinopeptídios A e B. Se a fibrina estiver em ligação cruzada pelo fator XIII ativado, a dissolução pela plasmina também resulta na geração de dímeros D.47 A administração sistêmica de APt pode estar associada a hemorragia, e a reperfusão rápida de áreas trombosadas após a administração de APt pode resultar em lesão. Em decorrência desses efeitos colaterais da administração sistêmica, há relatos de investigações mais recentes sobre a administração local de APt com liberação orientada por cateter. Quando usada para a dissolução de coágulo em gatos com tromboembolismo aórtico, observou-se reperfusão rápida dos membros trombosados em aproximadamente 50% desses animais.48 A porcentagem é similar à relatada em gatos que estejam recebendo cuidados de suporte (tratamento de insuficiência cardíaca congestiva,

analgesia) sem terapia fibrinolítica específica, e a maioria dos gatos teve efeitos colaterais, inclusive azotemia, sinais neurológicos e morte súbita.48 O uso clínico do ativador do plasminogênio tecidual em cães foi relatado com pouca frequência, embora tenha sido empregado experimentalmente em algumas circunstâncias diferentes.49 Relatos prévios sobre o uso de estreptoquinase em gatos com tromboembolismo aórtico resultaram em taxas similares de sobrevida e reperfusão.50 Tabela 20.1 Doses de fármacos anticoagulantes e antiplaquetários usados na medicina veterinária. Fármaco

Espécie

Cão Ácido acetilsalicílico

Gato Equino

Cão Clopidogrel

Gato Equino

Dose

Comentários

5 mg/kg VO a cada 24 h19

Dose analgésica mais alta

81 mg/gato VO a cada 48 h a

Eficácia questionável em

72 h23 5 mg/kg VO a cada 48 h20

outra dose Não diminui a função

5 mg/kg VO a cada 24 h24

plaquetária

10 mg/kg60

Efetiva, dose única

1 mg/kg VO a cada 24 h25 18,75 mg/gato VO a cada 24 h12 2 mg/kg VO a cada 24 h24 0,22 mg/kg VO a cada 12 a 24

Cão

h61

Gato

0,06 a 0,09 mg/kg VO a cada

Varfarina 24 h62

Ajustar a dose pelo TP ou pela PIN Monitorar TP

150 a 300 U/kg SC a cada 8 Cão Heparina não fracionada (HNF)

Gato

h15,34 Ajustar o alvo pelo TPTa ou 30 a 50 U/kg/h IV

pelos níveis de aXa

Equino

150 a 300 U/kg SC a cada 6 a 8

Pode resultar em anemia

h35 40 a 150 U/kg SC a cada 12 h63 Dalteparina, 150 U/kg a cada 8 h64,65 Enoxaparina, 0,8 mg/kg SC a cada 6 h66 Cão Heparina de baixo peso molecular (HBPM)

Gato Equino

Dalteparina, 100 a 200 UI/kg

Intervalo ideal entre as doses

SC a cada 6 a 8 h35,67

desconhecido

Enoxaparina, 1 mg/kg SC a

Apenas dose única

cada 6 a 12 h35,68 Dalteparina, 50 U/kg SC a cada 12 h69 Enoxaparina, 40 a 80 U/kg70

TPTa, tempo parcial de tromboplastina ativado; PIN, proporção internacional normalizada; VO, via oral; TP, tempo de protrombina; SC, subcutânea. A proteína C, em conjunto com o cofator proteína S, é uma proteína anticoagulante endógena potente. Por causa da hipercoagulabilidade reconhecida em pacientes humanos com sepse grave, um produto com proteína C ativada (PCa ou aPC; Xigris®, Eli Lilly) foi liberado para uso clínico. Esse composto foi administrado a pacientes com sepse grave e choque séptico. Os resultados iniciais foram promissores e sugeriram um efeito positivo sobre as estatísticas de sobrevivência.51 Entretanto, esses resultados não foram confirmados em ensaios clínicos mais recentes, e o fármaco foi retirado de circulação em 2012.52 Embora uma PCa tenha sido testada em cães, a curta duração do efeito, a possível imunogenicidade de uma proteína humana e o custo limitaram seu uso.

Terapias pró-coagulantes Há muito poucas terapias pró-coagulantes disponíveis para o veterinário. A maioria é de produtos tópicos, incluindo géis hemostáticos e trombina líquida solubilizada, que são

aplicados diretamente na fonte da hemorragia. Em pacientes com hemorragia decorrente de deficiência de fator da coagulação, produtos como plasma fresco congelado ou armazenado podem ser apropriados para restabelecer a função coagulante apropriada. Em pacientes com toxicose causada por anticoagulante rodenticida ou algumas formas de doença hepática (especialmente gatos), a administração de vitamina K (fitonadiona) na dose de 1 a 5 mg/kg/dia VO ou SC pode permitir que o corpo reinicie a produção dos fatores necessários. Outro fármaco disponível na medicina humana que tem sido pouco usado em cães é o fator VII ativado recombinante (VIIa). Seu mecanismo é explicado da seguinte maneira: embora níveis fisiológicos do fVIIa resultem apenas em pequenas quantidades de trombina, a dose maior usada com o rfVIIa resulta na formação suficiente de trombina para permitir que a coagulação prossiga. O fator VII ativado está indicado para a cessação de sangramento em pacientes com hemofilia ou outras deficiências de fator da coagulação e foi usado para corrigir anormalidades hemostáticas testadas em Beagles com deficiência do fVII.53 Além desses usos humanos que constam da bula, o fVIIa também foi usado para cessar o sangramento em pacientes com traumatismo grave e coagulopatia.54 Nesse contexto, mostrou-se efetivo no sentido de interromper o sangramento ou torná-lo mais lento, sem um aumento concomitante na incidência de trombose. Embora isso represente uma indicação possível para o uso do fVIIa em pacientes veterinários, a efetividade do tratamento e a imunogenicidade do próprio composto não foram estudadas extensamente. Se tiver sido desenvolvida uma coagulopatia iatrogênica secundária ao uso de moléculas de heparina, pode-se usar protamina para reverter os efeitos da heparina. A protamina forma complexos 1:1 com as heparinas (mais com a HNF que com a HBPM). Quando administrada em excesso, pode causar anticoagulação. As recomendações de dosagem são de 1 a 1,5 mg de protamina por 100 unidades de heparina administradas. Como a heparina é metabolizada rapidamente, se tiverem decorrido 30 min após sua administração, dá-se metade da dose de protamina e a outra metade só depois de mais 30 min.55 A protamina pode causar liberação de histamina e hipotensão ou bradicardia se for administrada por via intravenosa rapidamente, havendo alguns relatos de ter causado reações anafiláticas fatais em pessoas, o que pode estar relacionado com a exposição prévia a produtos de insulina contendo protamina (p. ex., insulina zíncica com protamina).56 Embora essas reações não tenham sido relatadas na medicina veterinária, a protamina deve ser administrada lentamente, em especial a pacientes que possam ter sensibilização prévia.

Fármacos que sustentam a coagulação Outros fármacos podem ser usados para facilitar a coagulação, fortalecendo o coágulo de fibrina. Os ácidos aminocaproico e tranexâmico análogos da lisina são classificados como

agentes antifibrinolíticos, por sua capacidade para limitar a quebra do coágulo em circunstâncias normais e patológicas. Ambos esses fármacos funcionam ocupando o local de ligação da lisina na plasmina, o que impede sua associação à fibrina e, consequentemente, estabiliza o coágulo (para iniciar a fibrinólise, a plasmina liga-se a resíduos de lisina na fibrina). No contexto de uma sobredose de agentes fibrinolíticos, os análogos da lisina podem ajudar a estabilizar ou prevenir a hemorragia. Os antifibrinolíticos (em especial o ácido aminocaproico) são usados frequentemente em cirurgias nasais em equinos, nas quais pode ocorrer hemorragia extensa.57 Outros autores consideraram seu uso em cães com hemoperitônio ou outras condições em que a manutenção da integridade do coágulo é crítica.58 Estudos recentes em Greyhounds descreveram o uso de ácido aminocaproico após cirurgias eletivas, pela tendência dessa raça à hemorragia pós-operatória 48 a 72 h após a cirurgia.59 Com base no início da hemorragia, os autores aventaram a hipótese de que o sangramento ocorra por causa da ruptura de coágulos formados e que os Greyhounds possam estar hiperfibrinolíticos em algumas circunstâncias. São necessárias mais pesquisas para definir uma dose efetiva e o esquema posológico para pequenos animais.

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Fisiologia dos líquidos corporais Água corporal total Composição de soluto dos vários compartimentos corporais de líquido Movimento da água entre os compartimentos de líquido intracelular e extracelular Desvios de líquido entre os compartimentos intravascular (LIV; plasma) e intersticial (LIS) Modelo do glicocálice endotelial de troca de líquido transvascular e modificação da equação de Starling Tipos diferentes de líquidos usados na prática clínica Cristaloides Coloides sintéticos Implicações clínicas do uso de coloide sintético na medicina veterinária Terapia hídrica peroperatória Monitoramento do equilíbrio hídrico Terapia hídrica individualizada voltada para o objetivo Eletrólitos Sódio Cálcio Potássio Tratamento com transfusão Tratamento com hemoderivados Testes de compatibilidade para transfusão

Considerações sobre a transfusão para perda sanguínea maciça Administração de sangue Efeitos adversos da transfusão Alternativas a transfusões sanguíneas alogênicas Transfusão autóloga Substitutos do sangue Estratégias para minimizar a perda sanguínea peroperatória Referências bibliográficas

Fisiologia dos líquidos corporais O corpo é composto principalmente por água, uma molécula triatômica formada por dois átomos de hidrogênio ligados por pontes covalentes a um de oxigênio (H-O-H). A água comporta-se como uma molécula com carga: um dipolo criado pelo oxigênio, cuja carga é negativa, e o hidrogênio com carga positiva. Essa polaridade é responsável por muitas das propriedades químicas e físicas da água, como uma alta tensão superficial, calor específico elevado, produção de muito calor por vaporização, baixa pressão de vapor e ponto elevado de ebulição. Graças à natureza ionizante da água, as substâncias dissolvidas nela segregamse em componentes individuais. A água também existe em uma forma ionizada, composta por um íon hidroxila com carga negativa (OH–) e um íon protonado com carga positiva (H3O+). O meio aquoso criado pela água proporciona o arcabouço onde ocorrem todos os processos metabólicos e enzimáticos.

■ Água corporal total A água é o único composto isolado mais abundante no corpo, constituindo a maior parte do peso corporal. Em média, a água constitui aproximadamente 60% do peso corporal de um mamífero adulto. A idade, a composição corporal e o sexo podem influenciar a água corporal total (ACT). Animais recém-nascidos têm uma ACT maior, em comparação com os adultos (80% versus 60%), tendo sido descrita uma queda relacionada com a idade em animais de estimação durante os primeiros seis meses de vida.1 O tecido adiposo tem um conteúdo menor de água, quando comparado com tecidos corporais magros como o músculo, de modo que, ao se fazer uma estimativa da ACT, é preciso considerar a condição corporal, pois a obesidade pode acarretar uma superestimativa. Para entendermos a distribuição da água corporal, pode-se pensar nos líquidos corporais como existentes em dois compartimentos principais (i.e., o do líquido intracelular

[LIC] e o do líquido extracelular [LEC]). O líquido extracelular pode ser dividido ainda em dois compartimentos: o do líquido intersticial (LIS, o que circunda as células) e o do líquido extravascular (LEV, aquele contido dentro dos vasos). O maior volume de água no corpo está contido dentro das células, o que faz do LIC o principal contribuinte para o peso corporal. Cerca de dois terços da ACT (i.e., 40% do peso corporal) são LIC. O terço restante da ACT (i.e., 20% do peso corporal) é LEC, estando distribuído entre o LIS e o LIV na razão de 3:1. Cerca de três quartos ou 75% do LEC (i.e., 15% do peso corporal) são constituídos pelo LIS que banha as células e um quarto ou 25% do LEC (i.e., 5% do peso corporal) é LIV (i.e., volume plasmático.

■ Composição de soluto dos vários compartimentos corporais de líquido Além da água, os compartimentos corporais de líquido também contêm concentrações de solutos diferentes (Tabela 21.1). Tal heterogeneidade ocorre porque as membranas que separam os compartimentos de líquido têm características de permeabilidade diferentes para os vários solutos. O LIC e o LEC estão separados por membranas celulares, enquanto o endotélio capilar separa o LIS e o LIV. O endotélio é livremente permeável à água e a vários solutos iônicos cuja concentração é similar no LIS e no LIV. Em contrapartida, a membrana celular é livremente permeável à água, mas, mediante a utilização de várias proteínas transportadoras, os mecanismos de transporte ativo e a difusão passiva mantêm um meio intracelular específico, resultando em concentrações muito diferentes de soluto no LIC, em comparação com o LEC (Tabela 21.1). O equilíbrio de Gibbs-Donan resulta em concentrações ligeiramente diferentes de cátions e ânions no LIS e no LIV (i.e., plasma), porém, em termos clínicos, essa diferença é negligenciável e a concentração plasmática de vários íons é considerada um reflexo das concentrações de soluto no LEC. O principal cátion no LEC é o Na+, com Cl– e HCO3– sendo os ânions mais abundantes. Em contraste, os principais cátions no LIC são K+ e Mg2+ e os ânions mais comuns são fosfatos orgânicos e proteínas. Tabela 21.1 Composição de soluto dos vários compartimentos corporais. Extracelular (LEC) Íons (mEq/ℓ)

Na+

Intracelular (LIC) Intersticial (LIS)

Intravascular (plasma, LIV)

145

142

12

K+

4

5

140

Ca2+

2

2

4

Mg2+

2

2

34

Cl–

112

104

4

HCO3–

27

24

12

HPO42–, H2PO4–

2

2

40

Proteína–

1

14

50

■ Movimento da água entre os compartimentos de líquido intracelular e extracelular O movimento da água entre o líquido intracelular (LIC) e líquido extracelular (LEC) é governado pelo gradiente osmótico criado pelas concentrações diferentes de solutos entre esses dois compartimentos de líquido. As concentrações diferentes de solutos em uma seleção determinam a osmolalidade, dependente apenas do número de partículas na solução, e não de sua fórmula química, da valência, do peso ou do tamanho moleculares. A pressão osmótica decorrente dos solutos é expressa em miliosmoles por quilograma de água (mOsm/kg). Nos líquidos biológicos, a diferença entre osmolaridade e osmolalidade não é significativa, e a concentração miliosmolar de uma solução pode ser expressa como miliosmolaridade ou miliosmolalidade da solução. A osmolalidade (i.e., o número de partículas osmoticamente ativas) determina, em parte, o volume de água no LEC e no LIC. Solutos que não podem cruzar a membrana celular contribuem para a osmolalidade efetiva (ou tonicidade) e são denominados ‘osmoles efetivos’. Já os solutos que podem difundir-se livremente através da membrana das células (como a ureia) são designados ‘osmoles inefetivos’ e não contribuem para desvios de líquido através das membranas celulares, pois estão em equilíbrio em ambos os lados da membrana semipermeável. Osmose é o movimento da água através da membrana semipermeável de uma área de pressão osmótica mais baixa (concentração baixa de soluto) para uma de pressão osmótica mais alta. Tanto no plasma como no líquido intersticial, a osmolalidade resulta principalmente de íons como Na+, K+, Cl–, HCO3–, glicose e ureia. Moléculas grandes como a de albumina, embora um componente imensamente importante da pressão coloidosmótica (PCO),

contribuem pouco para a osmolalidade. Sendo o cátion mais abundante no LEC, o Na+ está associado a ânions que são os principais responsáveis pela osmolalidade do LEC. A glicose constitui outro osmol efetivo por não ser livremente permeável através das membranas celulares, mas a ureia não é um osmol efetivo por ser livremente permeável através das membranas celulares. Pode-se estimar a osmolalidade do LEC (essencialmente a osmolalidade plasmática) aplicando a seguinte fórmula: Osmolalidade plasmática (mOsm/kg) =2[(Na+) + K+)] + [(Glicose)/18 + [BUN]/2,8 Quando a concentração de vários solutos em cada lado da membrana celular não se altera (p. ex., equilíbrio), o líquido está em equilíbrio osmótico (mesma osmolalidade) e não há gradiente para o movimento da água entre os dois compartimentos de líquido. Se houver perda extracelular de água livre, a concentração de solutos aumenta no LEC, levando à geração de maior osmolalidade (i.e., pressão osmótica) em comparação com o LIC, resultando no empuxo osmótico que causa o movimento resultante da água (osmose) através da membrana celular no LEC até um novo equilíbrio osmótico ser alcançado. Por esta razão, a água é perdida do LIC para substituir o déficit de água livre do LEC. A osmolalidade pode ser medida ou calculada (conforme dito antes). A osmolalidade é medida clinicamente congelando-se o ponto de depressão de uma amostra sérica. A osmolalidade sérica normal fica em torno de 300 mOsm/kg. Em termos clínicos, a osmolalidade medida pode não ser igual ao valor calculado e a diferença entre as duas (hiato osmolar) pode ser usada para predizer a presença de solutos não medidos.

■ Desvios de líquido entre os compartimentos intravascular (LIV; plasma) e intersticial (LIS) Ocorrem desvios de líquido entre o LIV (plasma) e o LIS no nível dos capilares. Os princípios fundamentais que governam o movimento foram descritos por Starling em 1896.2 O movimento de líquido através da parede capilar é determinado pelo desequilíbrio entre a pressão osmótica de absorção criada pelas proteínas plasmáticas [pressão coloidosmótica (PCO)] e a pressão hidrostática capilar. A barreira endotelial capilar deixa as proteínas plasmáticas passarem lentamente para o LIS. O coeficiente osmótico de Staverman, σ, pode ser usado para se quantificar o grau de permeabilidade da membrana capilar a algum soluto em particular. Ele varia de 1 (i.e., reflexão de 100% ou não permeável) a 0 (i.e., nenhuma reflexão ou completamente permeável). Para uma membrana que separa soluções de um soluto único em duas concentrações diferentes, o princípio da termodinâmica irreversível estabelece que:

em que Jv é a taxa de filtração de volume por unidade de área da membrana A, Lp representa a permeabilidade hidráulica, ΔP é a diferença nas pressões hidrostáticas e ΔΠ é a diferença nas pressões osmóticas através das membranas. O líquido intravascular e o LIS contêm muitos solutos (espécie ‘n’). Portanto, para descrever o movimento do líquido através da parede capilar, a equação anterior pode ser escrita como:

em que

representa a soma da diferença na pressão osmótica exercida através da

parede capilar por todos os solutos no LIV e no LIS. Na equação anterior, ΔP descreve a diferença entre a pressão arterial capilar local (Pc) e a pressão hidrostática no LIS (Pi). Na maioria dos leitos microvasculares, a parede capilar é livremente permeável à água e a outros solutos iônicos, como Na+, K+ e glicose, por causa de seu σ muito pequeno, ≤ 0,1. Em outras palavras, eles são osmoles inefetivos nesse cenário e não contribuem para a distribuição da água entre o LIS e o LIV. Apenas solutos macromoleculares (como as proteínas) com σ alto, e que estejam presentes em concentrações significativamente diferentes através da parede capilar, vão contribuir para a geração de gradientes osmóticos (σΔΠ). Se Πp é a pressão osmótica gerada pelas proteínas plasmáticas (PCO) no LIV e Πi é a pressão osmótica gerada por macromoléculas no LIS, então a equação anterior pode ser escrita como a expressão convencional para a equação de Starling, como segue:

Em circunstâncias normais, a Pc é muito maior do que a Pi, produzindo um gradiente de pressão hidrostática na extremidade arterial que favorece o movimento do líquido para fora do capilar no interstício. A Pc diminui da extremidade arteriolar para a venosa do capilar, enquanto a Πp se mantém quase a mesma, resultando em um gradiente de pressão oncótica que favorece o movimento do líquido do interstício para os capilares na extremidade venosa.3 Ao todo, há uma pressão de filtração líquida que é responsável pelo movimento da água para fora dos capilares no interstício. Normalmente, parte do líquido filtrado retorna à circulação via sistema linfático.

■ Modelo do glicocálice endotelial de troca de líquido transvascular e modificação da equação de Starling À medida que o entendimento da estrutura microcapilar evoluiu, foi proposto que as propriedades de filtração da parede capilar na verdade residem em uma camada endotelial de glicocálice (CEG), que é uma matriz de fibras moleculares. A matriz cobre as fendas intercelulares e as células endoteliais no lado luminal dos capilares.4,5 As forças de Starling tradicionais descrevem que o líquido filtrado na extremidade arteriolar do capilar é absorvido de volta para a circulação na extremidade venosa sob a influência do gradiente de pressão osmótica dominante gerado pela diferença Πp – Πi. Recentemente, mostrou-se que o efeito da Πi sobre a troca de líquido no nível capilar é muito inferior ao previsto pela equação de Starling original. Agora está estabelecido que muitos capilares filtram o líquido para o LIS em todo seu comprimento e não ocorre absorção na extremidade venosa dos capilares. Pressão oncótica da proteína plasmática (PCO) opõe-se a essa filtração, mas não altera a direção da filtração líquida (i.e., sempre ocorre filtração na direção do LIS). A maior parte do líquido filtrado retorna para a circulação via linfáticos. A camada endotelial do glicocálice separa o plasma de um espaço sob o glicocálice, que contém uma quantidade muito pequena de proteína. Essa PCO do subglicocálice (Πg) deve substituir Πi na equação de Starling para determinar o fluxo transcapilar (Jv):

Uma concentração baixa de proteína no espaço sob o glicocálice resulta em um valor baixo de Πg, que aumenta o valor de (Πp – Πg); em outras palavras, uma força oposta maior contra o fluxo transcapilar (Jv) que ocorre sob a influência da diferença nas pressões hidrostáticas em torno da membrana capilar (Pc – Pi). O fato de que o valor baixo de Πg resulta em Jv baixa, combinado com a importância do fluxo linfático em vários tecidos como um fator principal para o líquido voltar para a circulação, são dois aspectos críticos sobre os quais se baseia o modelo do glicocálice de troca de líquido transvascular. Um índice de permeabilidade vascular é a taxa de escape transcapilar de albumina (TCERA). Em seres humanos, é de cerca de 5% da albumina plasmática por hora. Essa taxa poderia duplicar durante cirurgia ou aumentar 20% ou mais em pacientes com sepse. A evidência aponta uma CEG comprometida em tais pacientes. A perda de albumina plasmática causa redução na Πp, levando a aumento na Jv. O aumento na Πp (PCO) em pacientes com sepse diminui a Jv e prolonga a expansão vascular, em comparação com os cristaloides.

Tipos diferentes de líquidos usados na prática clínica ■ Cristaloides As soluções cristaloides são preparadas dissolvendo-se compostos cristalinos em água. A maioria dos cristaloides usados na prática clínica é de soluções poli-iônicas à base de sódio ou dextrose em água. Os cristaloides são classificados principalmente de acordo com sua tonicidade com relação ao plasma. Os cristaloides isotônicos têm tonicidade/osmolalidade similar em comparação com a do plasma. Isso significa que a administração de líquidos isotônicos não causa qualquer alteração na concentração de soluto do líquido extracelular. Não haverá alteração alguma nas forças osmóticas resultantes que poderiam provocar o movimento da água entre o LIC e o LEC. Portanto, o líquido cristaloide isotônico ficará no LEC e não ocorrerá alteração alguma no volume do LIC, a menos que tenha havido perda prévia de água livre do compartimento do LIC. Após administração intravenosa, os cristaloides isotônicos ficam no LEC e redistribuem-se para o LIV e o LIS. Essa redistribuição ocorre de acordo com a distribuição normal de líquido no corpo, de modo que, 30 a 60 min após a infusão, apenas cerca de um quarto (25%) da quantidade administrada permanece no compartimento intravascular e o resto move-se para fora do LIS.6,7 Os líquidos isotônicos mais comumente usados e seus constituintes são citados na Tabela 21.2. Os líquidos isotônicos contêm misturas de vários eletrólitos encontrados no plasma, em combinação com ou sem componentes que afetam o estado acidobásico do paciente. Alguns desses cristaloides contêm dextrose. Exceto a solução fisiológica (NaCl a 0,9%), a maioria dos cristaloides de uso comum contém um precursor para a produção de bicarbonato, como íons lactato ou acetato e gliconato (solução de lactato de Ringer [SLR] ou Normosol® ou Plasmalyte®, respectivamente). Os íons lactato sofrem oxidação ou gliconeogênese primariamente no fígado, embora os rins e tecidos musculares também participem até certo ponto. Durante a glicogênese, o lactato é convertido em glicose via piruvato, e esse processo utiliza H+. Assim, o lactato também tem um efeito poupador de bicarbonato. O acetato é metabolizado principalmente nos músculos, e o gliconato pode ser metabolizado pela maioria dos tecidos. Como esses cristaloides aumentam o nível de bicarbonato no plasma, são chamados ‘líquidos alcalinizantes’. Já o cloreto de sódio a 0,9% é uma ‘solução acidificante’, em decorrência da diluição do bicarbonato plasmático (acidose dilucional) e do alto conteúdo de Cl–, que pode diminuir a diferença iônica forte e causa acidose metabólica hiperclorêmica.8–10 A composição de alguns desses cristaloides é mais semelhante à do plasma (p. ex., SLR, Plasmalyte 148®, Normosol®) que a de outros

(p. ex., NaCl a 0,9%), e são considerados cristaloides isotônicos balanceados, em comparação com os não balanceados. Outra maneira de ver esses cristaloides é do ponto de vista do seu uso clínico. A maioria dos cristaloides isotônicos, em decorrência de sua semelhança na osmolalidade e na composição de soluto com a do plasma, não causa um desvio osmótico de água a partir das células sanguíneas para o plasma e pode ser usada para reanimação de emergência com volume, sendo, por isso, chamada de ‘líquidos de reposição’. Tabela 21.2 Características de vários cristaloides isotônicos em comparação com o plasma. Líquido

Eletrólitos (mEq/ℓ)

Tampões (mEq/ℓ)

(isotônico,

0,9%

pH

Cl–

K+

Ca2+

Mg2+

Lactato

Acetato Gliconato (mOsm/ℓ)

154

154

0

0

0

0

0

0

308

5

130

109

4

3

0

28

0

0

272

6,5

140

98

5

0

3

0

27

23

294

5,5

140

98

5

0

3

0

27

23

294

6,4

140

98

5

0

3

0

27

23

294

142

104

5

5

3

reposição) Na+ NaCl a

Osmolaridade

Solução de lactato de Ringer Plasmalyte 148® NormosolR® PlasmaLyte A®

Plasma

HCO3– = 24

300

7,4

Para entender o uso clínico de vários cristaloides, é indispensável saber em qual compartimento corporal há deficiência de líquido (perfusão versus hidratação).11 Quando são usados cristaloides isotônicos para reposição de líquido intravascular e déficits de eletrólitos, cerca de 75% do líquido se redistribuem para o LIS. Portanto, em geral, são administrados volumes relativamente grandes para repor déficits intravasculares. Em cães, Silverstein et al. demonstraram o potencial dos líquidos isotônicos de aumentar o volume

sanguíneo.12 Imediatamente após a infusão de líquido, o volume sanguíneo aumentou 76%, mais de 3 a 4,5 vezes o aumento observado após a administração de líquidos hipertônicos e coloides. No entanto, 30 min após a infusão, o aumento foi de 35% apenas. O aumento inicial no volume sanguíneo foi atribuído ao volume maior de cristaloides administrado. O mais importante é que os autores calcularam a razão de eficácia (TE; aumento no volume sanguíneo, em comparação com o volume de líquido infundido), e, 30 min depois da infusão, o líquido isotônico apresentou uma TE de 0,4 apenas. A recomendação típica para reposição do déficit intravascular é de 3 a 4 vezes o volume de líquidos. Choque, hemorragia e déficit grave de volume em decorrência de diarreia, vômito, diurese excessiva ou extravasamento do terceiro espaço constituem cenários comuns quando esses líquidos são administrados. Os cristaloides também são administrados durante procedimentos cirúrgicos mais eletivos em pacientes saudáveis. Em geral, recomenda-se que pacientes com choque devam receber até um volume de sangue (p. ex., 80 a 90 mℓ/kg em cães) em 1 h, começando-se com um quarto a um terço da dose de ataque dada de maneira incremental, com monitoramento constante para os pontos terminais desejados, de modo a orientar o tratamento hídrico subsequente (i.e., voltado para o objetivo). Uma taxa típica de líquido usada em pacientes sob anestesia geral é de 5 a 10 mℓ/kg/h,13,14 embora a tendência recente seja diminuir essas taxas em pacientes sem fatores de risco para perda peroperatória de líquido. Uma ligeira variabilidade na composição e na concentração de vários solutos (eletrólitos e tampões) em cristaloides isotônicos diferentes (Tabela 21.2) pode tornar a administração de uma solução preferível em certas situações clínicas. Pacientes com alcalose metabólica hipoclorêmica e hipercalcemia podem beneficiar-se do uso de solução fisiológica a 0,9%.15,16 O uso de líquidos alcalinizantes não é muito comum em bovinos adultos desidratados, porque a acidose metabólica não é uma ocorrência comum, exceto em casos de sobrecarga de grãos, lipidose hepática, cetose crônica ou doença renal.17,18 Pacientes que estejam acidóticos podem beneficiar-se do uso de líquidos alcalinizantes. A solução de lactato de Ringer pode conter uma mistura racêmica de lactato D e L ou só L. Os líquidos contendo acetato podem ter um efeito mais alcalinizante, pois cães não conseguem metabolizar o lactato D tão prontamente.15 Vários cristaloides isotônicos têm concentrações diferentes do íon Na+, o que lhes confere uma faixa de osmolalidades (Tabela 21.2). Na vigência de distúrbios eletrolíticos graves, recomenda-se usar um líquido com uma concentração de Na+ mais próxima para a reanimação do paciente, de maneira a evitar alterações rápidas na concentração do íon Na+ (que não deve mudar mais que 0,5 a 1 mEq/ℓ/h). Para a reanimação de pacientes com traumatismo craniano ou edema cerebral, a reposição com soluções cristaloides que tenham concentração de Na+ mais altas (i.e., NaCl a 0,9%) terá menor probabilidade de diminuir a

osmolalidade plasmática, que poderia favorecer o movimento da água nas células cerebrais. Com um conteúdo de Na+ de 130 mEq/ℓ, a SLR é relativamente hipotônica em comparação com o plasma e tem sido associada a elevação da PIC em alguns modelos de lesão cerebral traumática.19,20 Pode ocorrer acúmulo de líquido intersticial ou edema após a administração excessiva de líquido, em especial nos pacientes com insuficiência renal oligúrica, insuficiência cardíaca, traumatismo craniano, contusões pulmonares ou queda da pressão coloidosmótica. Nos quadros clínicos que se caracterizam por sangramento intracavitário (abdominal ou torácico) ativo ou intracraniano, a administração agressiva de líquido para se conseguir a reanimação com normotensão antes que se obtenha o controle cirúrgico do sangramento poderia acarretar aumento da pressão hidrostática que, por sua vez, levaria à ruptura de coágulos sanguíneos e ao agravamento do sangramento. A reanimação ‘hipotensiva’ com líquido costuma ser defendida nestes pacientes, com o objetivo de se alcançar o limite inferior de pressão arterial média clinicamente aceitável (60 mmHg, correspondente à pressão de perfusão de vários sistemas de órgãos vitais). Outros sugerem a reanimação tardia com líquido até que se consiga a hemostasia; contudo, o risco de anestesiar pacientes hemodinamicamente instáveis deve ser considerado contra o risco percebido de reanimação de volume. O veterinário também deve estar ciente da possibilidade de hemodiluição excessiva de fatores da coagulação, plaquetas, proteína plasmática e eritrócitos quando são administrados grandes volumes de líquido.6,7,21 Isso pode ser ainda mais relevante em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos associados a mais perda sanguínea ou pacientes que já tenham coagulopatias preexistentes, hipoproteinemia ou anemia. Graças à presença de íons Ca2+ na SLR, é recomendável não administrar hemoderivados na mesma linha do líquido, pois o Ca2+ pode antagonizar os anticoagulantes comuns, ocasionando a formação de microêmbolos. Estudos concluíram que podem ser usados, com segurança, taxas rápidas de transfusão de sangue total (ST) ou concentrado de hemácias (CH) juntamente com a SLR22 e esta última também pode ser empregada com segurança para diluir concentrados de hemácias conservados com citrato, fosfato e dextrose (CFD) em contextos de emergência.23 Pela contribuição importante do fígado para o metabolismo do lactato, tem havido alguma preocupação quanto ao uso da SLR em pacientes com insuficiência hepática. Entretanto, estudos não conseguiram mostrar qualquer aumento nos níveis sanguíneos de lactato após a administração de SLR.24,25 É comum ocorrer hiperlactatemia em pacientes com câncer, por causa da glicólise anaeróbica pelas células neoplásicas, mas um estudo em cães com linfoma mostrou apenas um aumento transitório nos níveis de lactato, que voltaram ao normal 2 h após a infusão.26 Grandes quantidades de soluções de acetato administradas rapidamente podem causar

vasodilatação, em decorrência da liberação de adenosina dos músculos, o que poderia causar hipotensão, em particular nos pacientes com hipovolemia.27–29 Cristaloides hipertônicos Tais soluções têm maior tonicidade/osmolalidade em comparação com o plasma. A administração de líquidos hipertônicos aumenta a pressão osmótica no LIV e ajusta o gradiente para o movimento da água do LIS, bem como do LIC (com menos pressão osmótica; concentração mais baixa de soluto). Os líquidos hipertônicos de uso mais comum na prática clínica são soluções salinas hipertônicas (SSH; Tabela 21.3). O coeficiente de reflexão de Na+ na membrana celular é mantido próximo de 1, provavelmente pelas ações constantes da bomba de Na+/K+ ATPase, enquanto o coeficiente de reflexão da membrana endotelial é de 0,1 apenas. Isso significa que a maior parte do movimento da água após a administração de SSH é do LIC e não do LIS.30 Assim, o líquido é puxado para fora das células (desidratação celular) e do interstício para o espaço intravascular. A análise das pressões de direcionamento transcapilar (governadas pelas leis de Starling) confirma uma expansão imediata do volume plasmático sob o efeito da SSH, que reverte rapidamente o gradiente de pressão transcapilar, a partir de uma pequena força de filtração em condições fisiológicas normais para uma grande força de absorção (gradiente de pressão osmótica). Em decorrência de um coeficiente de reflexão muito baixo do endotélio capilar para o Na+, a pressão osmótica gerada é transmitida através do endotélio capilar para a membrana celular e é responsável por puxar a água para fora das células. Como a própria SSH faz pouco para combater os déficits de ACT, é indispensável que o tratamento hipertônico seja seguido pela administração de líquidos de acompanhamento apropriados (cristaloides isotônicos, coloides ou hemoderivados). Em bovinos, era costume recomendar que, após o uso de líquidos hipertônicos, é importante administrar líquidos ororruminais se o animal não consumir mais de cerca de 20 ℓ de líquido por via oral.17,31 SSHs são cristaloides balanceados e estão disponíveis em várias concentrações, tendo osmolalidade muito alta em comparação com a do plasma (Tabela 21.3). Clinicamente, a SSH de uso mais comum é a 7,5%. Embora o manitol também seja outro agente hiperosmótico, seus efeitos osmóticos costumam ser retardados por 15 a 30 min32 e não são tão profundos como os da solução de NaCl a 7,5%, porque sua osmolaridade é apenas metade (1.250 mOsm/ℓ para manitol a 25%), no máximo. A discussão aqui terá como foco apenas a SSH. Em animais hipovolêmicos (modelos com choque hemorrágico), a expansão do volume plasmático no final de uma dose de ataque ou infusão de SSH administrada durante 1 a 10 min na dose de 4 a 8 mℓ/kg variou de 10 a 21 mℓ/kg, com doses maiores tendo causado maior expansão de volume. Todavia, a SSH equilibrou-se rapidamente com o LEC, de modo que, depois de 1 a 3 h, a expansão do volume plasmático foi mínima.33–36 Em cães

normovolêmicos, Silverstein et al. mostraram que o índice de eficácia (definido como o aumento relativo no volume sanguíneo com relação ao volume infundido) foi máximo com a SSH imediatamente após a infusão (2,7 ± 0,5; aproximadamente três vezes o de outros tipos de líquido) e maior ainda 30 min após a infusão, em comparação com cristaloides isotônicos e coloides sintéticos.12 Para prolongar a duração do efeito, a SSH foi combinada com um coloide (6% de dextrana 70 [SHD]), que não apenas aumentou a extensão da expansão imediata do volume plasmático, como a fez persistir por 3 h.34,35 Outros coloides disponíveis, como amido hidroxietil (AHE), também podem ser combinados com SSH. A combinação hipertônico-hiperoncótica constitui ‘reanimação com pequeno volume de líquido’.17 Em geral, é constituída diluindo-se 23,4% de SSH com o coloide na razão de 1:2,5 ou as duas podem ser usadas separadamente (2 a 6 mℓ/kg de 7% de SSH + 4 a 10 ml de coloide).17,31 Os efeitos cardiovasculares da administração de SSH caracterizam-se por aumento da pré-carga, da frequência cardíaca e da contratilidade miocárdica e queda na resistência vascular sistêmica, todos atuando em conjunto para aumentar o débito cardíaco.37–39 Foram descritos efeitos imunomoduladores benéficos, caracterizados por menor interação de neutrófilos com as células endoteliais, ativação neutrofílica reduzida e maior atividade de linfócitos e células T destruidoras naturais.40–42 Mostrou-se que a SSH diminui o edema citotóxico e melhora a perfusão esplâncnica e muscular capilar em modelos animais de lesões por contusões de tecido mole, choque hemorrágico e oclusão da artéria mesentérica superior.43–47 A maioria da literatura clínica e experimental sobre a SSH/SHD sugere sua aplicação no tratamento do choque hipovolêmico hemorrágico.33–36,48,49 Outra área em que a SSH se mostrou benéfica é no tratamento da hipertensão intracraniana. Embora as diretrizes que fundamentam o tratamento do traumatismo cerebral50 ainda recomendem o manitol como a terapia hiperosmolar de escolha (evidência de Nível II), surgiu nova evidência mostrando que a salina hipertônica seria uma escolha melhor.51–56 Os benefícios da reanimação hipertônica também foram documentados no modelo canino de choque obstrutivo induzido por dilatação gástrica/vólvulo,57 no modelo canino de pancreatite induzida pela bile58 e em modelos murinos de pancreatite aguda.59,60 A prática em grandes animais revelou que a SSH ou a SHD são particularmente úteis nos casos em que o grande volume sanguíneo do paciente torna a expansão de volume um desafio. A terapia de reidratação oral tem sido sugerida como aceitável se a desidratação de um bezerro ou bovino for < 8%, mas mostrou-se que uma combinação de SSH intravenosa mais reidratação oral tinha sucesso quando a desidratação era ≤ 8%.17,31 O uso de reanimação hipertônico-hiperoncótica foi descrito em cavalos com endotoxemia,61,62 bezerros com endotoxemia,63 diarreia64–66 e bovinos adultos com endotoxemia.67

O uso de SSH em pacientes com hemorragia fora de controle pode exacerbar o sangramento e piorar o prognóstico, em comparação com a reanimação isotônica. No entanto, estudos demonstram que, se a hemorragia for controlada, então a SSH poderá melhorar as variáveis hemodinâmicas e o desfecho final.68–70 Mostrou-se que a administração de um bolo de líquido hipertônico-hiperoncótico (4 mℓ/kg) lentamente (durante mais de cerca de 12 min), em comparação com 1 min, diminuiu de maneira significativa a perda sanguínea e melhorou a sobrevivência.69,71 Sugeriu-se que a desidratação preexistente é uma contraindicação para a administração de SSH, porque um ambiente intracelular desidratado diminuiria a eficácia da reanimação com líquido hipertônico intravascular. Estudos realizados em modelos suínos72 e ovinos73,74 desidratados e hemorrágicos com a pré-infusão de osmolalidades plasmáticas de 325 a 340 mOsm/ℓ mostraram que a administração de 4 mℓ/kg de NaCl a 7,5% levou à estabilidade hemodinâmica e aumentou o volume plasmático para níveis semelhantes ao de animais euvolêmicos. Quando se quer um início rápido de ação, de fato pode-se considerar a SSH um adjunto à reanimação isotônica para corrigir a hipovolemia em pacientes desidratados. Um estudo recente sobre desempenho em cavalos mostrou que aqueles reanimados com 2 ℓ de SSH seguidos por 5 ℓ de salina isotônica atingiram um hematócrito e TP normais, em comparação com os que receberam 7 ℓ de NaCl a 0,9% e tiveram hemoconcentração residual.75 Não se pode esquecer a diurese que ocorre após a administração de SSH e a mobilização do líquido intracelular para o espaço intravascular com o potencial a ser filtrado, a possibilidade de desidratação subsequente tem de ser considerada em pacientes veterinários, em especial quando a administração de líquido no acompanhamento é adiada ou impossível (p. ex., em algumas condições de campo). Tabela 21.3 Características de várias soluções salinas hipertônicas em comparação com o plasma. Salina

Soluções salinas hipertônicas

normal

Composição

Plasma

3%

5%

7,2%

7,5%

23%

0,9%

Na+ (mEq/ℓ)

513

856

1.232

1.283

4.004

154

142

Cl– (mEq/ℓ)

513

856

1.232

1.283

4.004

154

104

Osmolaridade (mOsm/ℓ)

1.026

1.712

1.464

2.566

8.008

308

300

A solução salina hipertônica foi associada a arritmias cardíacas, bradicardia, hipotensão

e sobrecarga de volume. Tais efeitos são notados principalmente quando são administradas altas doses de SSH em concentração mais alta a uma velocidade muito rápida.76 O esquema de administração recomendado de NaCl a 7,5% na dose de 4 a 6 mℓ/kg a uma velocidade que não ultrapasse 1 mℓ/kg/min em geral não está associado a complicações. O uso das doses recomendadas raramente causa quaisquer anormalidades consistentes na bioquímica sanguínea, mas deve-se considerar o potencial de hipernatremia, acidose metabólica hiperclorêmica e hipopotassemia, em especial se forem consideradas anormalidades eletrolíticas preexistentes ou a administração repetida de SSH.8–10,21 Ajito et al.77 administraram doses de 2,5, 5 e 15 mℓ/kg de NaCl a 7,5 a uma velocidade de 1,6 mℓ/kg/min a cães da raça Beagle anestesiados. A administração de 5 mℓ/kg causou apenas elevações transitórias no Na+ (153 com 3 min; 165 aos 5 min; nível basal de 142) que ficaram abaixo de 160 mEq/ℓ no final da infusão, enquanto uma dose de 15 mℓ/kg levou a hipernatremia consistente (161 a 174 mEq/ℓ) de 10 min a 90 min após o início da infusão. Um estudo conduzido em cães mostrou que a dose máxima tolerada de NaCl a 7,5% foi de 20 mℓ/kg, embora tenha causado sinais neurológicos transitórios, como embotamento e letargia, que se resolveram em 24 h.78 Cristaloides hipotônicos Tais soluções têm tonicidade/osmolalidade inferior à do plasma (Tabela 21.4). A glicose em água é uma fonte de água livre porque a glicose é metabolizada deixando água sem partículas osmóticas. A administração de dextrose diminui a concentração de soluto no LEC em comparação com o LIC, criando um gradiente de pressão osmótica para o movimento da água do LEC para o LIC (tumefação celular). Menos de 10% do líquido hipotônico infundido permanece no espaço de líquido LIV após 30 a 60 min. Em decorrência do seu grande volume de distribuição e do potencial de tumefação celular, os líquidos hipotônicos não estão indicados para reposição intravenosa de volume, sendo usados principalmente para repor as necessidades de manutenção de pacientes que não ingerem água por causa de anorexia (ausência de consumo de alimentos), impossibilidade de beber e/ou as perdas hídricas não estão além do normal das perdas fisiológicas (ao contrário de vômito, diarreia etc.). As necessidades de líquido para manutenção podem ser calculadas de várias maneiras.80,81 Podemos usar a fórmula empírica simples de 40 mℓ/kg/dia (para cães de grande porte) ou 60 mℓ/kg/dia (para cães de pequeno porte e gatos). Como as necessidades de água estão ligadas ao metabolismo, pode-se calcular o gasto diário de energia de manutenção (e a necessidade de água) como 140 kcal × peso corporal (kg).80 Outra fórmula usada para se calcular a necessidade de manutenção de água é 30 × peso corporal (kg) + 70, mas, se o paciente pesar menos de 3 kg ou mais de 50 kg, então propõe-se o usar a

necessidade calórica para calcular a necessidade de líquido de manutenção.80,81 É necessário 1 mililitro de água para cada kcal de energia consumida. As perdas fisiológicas de líquido em andamento podem consistir em perdas insensíveis (fezes, saliva, pele e trato respiratório) e/ou sensíveis (urinárias). A natureza típica de tais perdas é hipotônica, com baixo Na+ e alto K+, em comparação com os níveis do LEC.81 Os líquidos hipotônicos são fabricados para se adequarem a essa composição (Tabela 21.4). Em pacientes com função renal normal, também se pode fazer a reposição de líquidos isotônicos com o acréscimo de algum K+ para fins de manutenção, porque os rins podem excretar excesso de eletrólitos. Outras indicações importantes incluem a suplementação de água livre (p. ex., hipernatremia, diabetes insípido) e de dextrose durante hipoglicemia. É importante administrar esses líquidos a uma taxa mais lenta, de modo a evitar a diluição súbita e excessiva de solutos no plasma, pois a redução da osmolalidade do LEC poderia causar tumefação celular (edema cerebral). É recomendável monitorar as concentrações de eletrólitos em pacientes que estejam recebendo líquidos hipotônicos.

■ Coloides sintéticos Os coloides são compostos de partículas macromoleculares suspensas em uma solução de líquido cristaloide. Na ausência de aumento da permeabilidade vascular, seu movimento através do endotélio é limitado e ficam menos capazes de se acumular no interstício. Isso resulta em um tempo de permanência maior no compartimento do LIV, em comparação com os cristaloides, e podem empurrar o líquido para tal compartimento conforme suas propriedades oncóticas. A pressão coloidoncótica é a pressão osmótica gerada pelos coloides na solução e é determinada pelo número de partículas, não pelo tamanho delas. Na prática clínica, os coloides são usados principalmente em pacientes que precisam de suporte oncótico (com hipoproteinemia), para evitar acúmulo de líquido intersticial, ou em pacientes hipovolêmicos, como líquido para reanimação.82–87 As preparações de coloides podem ser classificadas como consistindo em componentes de hemoderivados ou compostos sintéticos de três grupos principais: derivados do AHE, dextranos e gelatinas. A maior parte da discussão que se segue gira em torno de soluções de amido hidroxietil, em decorrência do seu uso comum na prática clínica, mas também apresentamos alguns conceitos básicos sobre os dextranos e as gelatinas. Tabela 21.4 Características dos cristaloides hipotônicos comumente disponíveis em comparação com o plasma. Eletrólitos (mEq/ℓ)

Tampões (mEq/ℓ)

Líquido Na+

Cl–

K+

Ca2+

Mg2+

Osmolaridade

Lactato Acetato Gliconato (mOsm/ℓ)

pH

Glicose (g/ℓ)

NaCl a

77

77

0

0

0

0

0

0

154

5

0

77

77

0

0

0

0

0

0

280

4,5

25

40

40

16

5

3

12

12

0

376

5,5

50

40

40

13

0

3

0

16

0

364

5,5

50

0

0

0

0

0

0

0

0

252

4

50

142

104

5

5

3

300

7,4

0,45% NaCl a 0,45% com 2,5% de dextrose PlasmalyteM® com 5% de dextrose NormosolM® com 5% de dextrose Dextrose a 5%

Plasma

HCO3– = 24

Amidos hidroxietil Amidos hidroxietil (AHE) são as preparações sintéticas de coloides usadas mais comumente tanto na medicina humana como na veterinária. Em termos químicos, são polímeros modificados de amilopectina, um polissacarídio muito semelhante ao glicogênio. Os polímeros ficam suspensos em solução salina ou uma cristaloide balanceada de eletrólitos. Preparações diferentes de AHE com características estruturais variáveis (Tabela 21.5) têm propriedades físico-químicas diferentes, determinadas por três variáveis principais: peso molecular (PM) médio, substituição molar (SM) e razão C2-C6. É importante entender essas diferenças para se entender a variabilidade clínica quanto à farmacocinética, à farmacodinâmica e ao perfil de efeitos adversos das várias preparações de AHE.88–90 Em geral, identifica-se um AHE por três números (p. ex., AHE 130/0,4 a 6%). O primeiro representa o PM médio fabricado em quilodáltons (kDa), o segundo indica a SM e o terceiro corresponde à concentração da solução. A concentração influencia a expansão inicial de volume. Soluções a 6% são isooncóticas e aquelas a 10% são hiperoncóticas, com expansão de volume consideravelmente

maior. O peso molecular é o peso médio (Mw) ou o número médio (Mn) do tamanho dos polímeros. Como, na verdade, os polímeros têm comprimento variável (de alguns milhares a alguns milhões de dáltons), esse parâmetro é apenas uma média. O AHE é classificado de maneira arbitrária pelo fabricante de acordo com o peso molecular médio em preparações de Mw alto (> 400 kDa), médio (200 a 400 kDa) e baixo (< 200 kDa). Como o Mw leva em consideração os pesos individuais de partículas diferentes, é influenciado pela presença de grandes moléculas no sistema e dará um valor maior em comparação com o Mn, que representa o peso total de todas as moléculas dividido pelo número de moléculas. A razão Mw:Mn fornece um índice da polidispersão. É importante entender que o Mw se aplica à preparação do coloide in vitro, porque, logo depois que esses líquidos são administrados a um paciente, a fração de baixo peso molecular é excretada pela via renal e moléculas maiores são hidrolisadas progressivamente pela amilase α sérica, resultando em uma distribuição estreita de pesos moleculares com um Mw médio in vivo inferior ao da preparação infundida. A queda na PCO após a excreção inicial da fração de pequeno peso molecular é compensada parcialmente pela disponibilidade de um número maior de moléculas de baixo peso molecular geradas pelo metabolismo (clivagem) de moléculas maiores. Substituição molar descreve o grau de substituição de moléculas de glicose com grupos hidroxietil. Essa substituição aumenta a solubilidade do polímero e inibe o seu metabolismo pela amilase. O grau de SM pode ser calculado de duas maneiras. Um método, denominado grau de substituição (GS), consiste em se calcular o número de resíduos de glicose substituídos dividido pelo número total de resíduos de glicose. Pelo segundo método, a SM é calculada como o número médio de resíduos de hidroxietil por unidade de glicose. Pode ocorrer mais de uma substituição em cada resíduo de glicose, de modo que a SM pode ser maior do que o GS. O valor de 0,4 no AHE 130/0,4 a 6% indica que há quatro resíduos de hidroxietil, em média, por 10 subunidades de glicose. Com base no grau de substituição, o AHE foi considerado um heta-amido (≥ 7%), hexa-amido (0,6), penta-amido (0,5) e tetra-amido (0,4). Quanto maior a SM, mais difícil metabolizar o AHE. A razão C2-C6 descreve o padrão de hidroxietilação e também tem impacto sobre a farmacocinética das preparações de AHE. Grupos hidroxietil na posição C2 da molécula de glicose inibem o acesso da amilase α ao substrato com mais eficiência que na posição C6. Produtos de AHE com alto peso molecular, razão C2:C6 e SM maiores são metabolizados lentamente e têm persistência prolongada no plasma. Com base nessas propriedades físicoquímicas, as preparações de AHE podem ser classificadas de maneira mais clinicamente relevante como lentamente degradáveis (p. ex., heta-amido) ou rapidamente degradáveis (p. ex., Voluven® ou VetStarch®) (ver Tabela 21.5). A farmacocinética e a farmacodinâmica de várias preparações de AHE são complexas,

em parte por causa da sua natureza polidispersa.91 Após administração por via intravenosa, as partículas com peso molecular abaixo do limiar renal (45 a 60 kDa) são filtradas rapidamente na urina. Além disso, pequenas quantidades difundem-se para o interstício dos tecidos, acabando por se redistribuir e ser eliminadas subsequentemente. Uma porção transitória é armazenada em tecidos e degradada pelo sistema reticuloendotelial. Moléculas maiores ficam retidas no plasma por um tempo variável, sujeitas ao metabolismo pela amilase α. O metabolismo, por sua vez, é influenciado pelas propriedades físico-químicas das preparações de AHE em questão, conforme descrito anteriormente.88–90 As frações menores resultantes após o metabolismo são excretadas na urina. Estudos em animais e seres humanos demonstraram acúmulo mais significativo de preparações de AHE lentamente degradáveis, em comparação com as rapidamente degradáveis, em especial após administrações repetidas.91 A depuração de tetra-amidos mostrou ser cerca de 23 vezes mais rápida que a dos heta-amidos e cinco vezes maior do que a dos penta-amidos. A farmacocinética do AHE foi descrita em cães e cavalos.92-94 Diferenças específicas da espécie na atividade da amilase plasmática também foram documentadas e contribuem para a meia-vida variável do AHE em espécies diferentes. Com relação aos seres humanos, a atividade da amilase mostrou-se maior no plasma canino92 e menor no equino.93 A farmacodinâmica de líquidos está relacionada com o volume e a duração da expansão do volume intravascular e pode ser influenciada por muitos fatores, incluindo a dose, a velocidade da administração, a preparação específica do coloide, a permeabilidade microvascular, a espécie animal e o estado volumétrico intravascular antes da infusão.88– 91,95 Preparações iso-oncóticas (a 6%) de AHE foram associadas a um aumento similar no volume intravascular, em comparação com o volume administrado, enquanto as preparações hiperoncóticas (a 10%) podem expandir o volume até 145%, puxando o líquido do espaço intersticial.88,89 O aumento inicial no volume plasmático resulta da PCO da preparação coloidal administrada e é atribuído principalmente ao grande número de partículas de baixo peso molecular. À medida que essas partículas menores são removidas da circulação durante as primeiras horas, ocorre uma queda significativa na PCO, que se traduz clinicamente no efeito reduzido sobre a expansão do volume plasmático com o tempo. Graças à presença das partículas de grande peso molecular restantes no plasma, a concentração da preparação coloidal (massa por unidade de volume) ainda pode ser bastante alta, mas a PCO será baixa. Tabela 21.5 Características de preparações de amido hidroxietil usadas em anestesia veterinária. Propriedades físico-químicas

Expansão

Tipo de AHE

Produto de AHE

Peso (kDa) Conc. Molecular

Osmolaridade do volume plasmático (mmHg) (mOsm/ℓ) (%)

Transportador PCO

Número SM

C2C6

médio

TetraRapidamente

amido

degradável

(Voluven®,

6%

130

6%

670

6%

450

70 a 80

0,4

9:1

Salina

Alta, 30 s

308

130

307

100

309

100

VetStarch®)

Lentamente degradável

Hetaamido

0,75

(Hextend®)

4a 5:1

Balanceada

Hetaamido (Hespan®)

69

0,7

4:1

Salina

Baixa, 30 s

Baixa, 30 s

Preparações lentamente degradáveis têm uma meia-vida plasmática mais longa, porém mostrou-se que isso não se traduz em maior duração da expansão de volume. Apesar do acúmulo plasmático mínimo de tetra-amido, os estudos em cirurgias ortopédicas96,97 e cardíacas98 demonstraram que a duração de seu efeito (em concentração similar) é comparável à do penta-amido99 e do heta-amido.96,100 É importante entender que, embora a depuração e a concentração residual de AHE sejam afetadas por suas propriedades físicoquímicas (principalmente a SM e a razão C2:C6)101, a PCO depende do número de partículas osmoticamente ativas e não da concentração de AHE.88–90,95 Em um determinado volume de solução de AHE, haverá mais partículas do produto de peso molecular inferior traduzindo-se em uma PCO maior em concentrações plasmáticas similares. O efeito do heta-amido sobre a PCO foi descrito em pôneis e cavalos sadios, cães e cavalos com hipoproteinemia, cães hipovolêmicos e hipotensos sob anestesia e cães submetidos a cirurgia ortopédica.82,83,102–107 Os efeitos de várias preparações de AHE sobre a PCO não parecem ir além de 24 h. É importante lembrar que variáveis como as condições de saúde,104,105 o estado preexistente de volume,82,91,95 a terapia hídrica concomitante,106,108 a dose,107 o tipo de preparação83,93,102 e a anestesia109 têm todos o potencial de influenciar a PCO plasmática, significando que os resultados de estudos diferentes precisam ser avaliados com cuidado. Em um estudo feito com cavalos publicado recentemente, a PCO comparada com cloreto de sódio a 0,9% foi mais alta no grupo que recebeu tetra-amido

(130/0,4) que naquele que recebeu heta-amido (600/0,75), mas retornou ao nível basal em 24 h.86 Graças à sua capacidade de proporcionar suporte coloidal oncótico e retenção intravascular prolongada, o AHE provou ser melhor para o suporte intravascular e melhorar os índices hemodinâmicos, em comparação com os cristaloides.82–87 Eventos adversos foram associados ao uso de AHE em pacientes clínicos. É importante notar que os resultados de estudos in vitro não podem ser diretamente extrapolados para cenários clínicos (in vivo), pois o perfil de efeito colateral sofre forte impacto do comportamento farmacocinético in vivo de vários produtos de AHE, e as preparações lentamente degradáveis (heta-amido e penta-amido) implicam maior risco, em comparação com as preparações rapidamente degradáveis (tetra-amidos).88–90 Todos os tipos de líquidos têm o potencial de causar coagulopatia dilucional, mas as soluções de AHE também têm impacto sobre a hemostasia diretamente, alterando tanto a primária como a secundária.88 O AHE diminui a expressão do complexo GP IIb-IIIa na superfície plaquetária e também cobre fisicamente a superfície das plaquetas, diminuindo a interação de agonistas, como o fibrinogênio solúvel e o fator de von Willebrand (FvW), com esse receptor, o que impede a agregação plaquetária. O AHE também diminui a concentração do complexo FVIII/FvW, possivelmente em decorrência da eliminação acelerada desse complexo após a ligação ao AHE. Esses efeitos adversos têm sido traduzidos clinicamente em aumento da perda sanguínea peroperatória. O uso de preparações de AHE rapidamente degradáveis (AHE 130/0,4) causou perda sanguínea inferior em vários tipos de cirurgias, em comparação com as preparações de AHE lentamente degradáveis (AHE 200/0,5, AHE 450/0,7 e AHE 600/7,5).96,110,111 A descompressão foi sugerida como uma opção de tratamento para a coagulopatia leve associada à administração de AHE.112 Estudos veterinários em cães103,106,113–118 e cavalos62,83,102,119,120 também relataram efeitos relacionados com a dose107,116,117,119,120 de heta-amido e tetra-amido sobre a função plaquetária e o complexo FVIII/FvW115–117,119–121 in vitro e in vivo, mas não documentaram aumentos no sangramento clínico com as dosagens estudadas.103,106,113 Vários desses estudos documentaram menos impacto sobre a hemostasia quando foram usados tetra-amidos.83,107,116,121 Estudos em seres humanos122,123 mostraram que preparações de AHE formuladas em solução transportadora balanceada contendo íons Ca2+ causam menos comprometimento da hemostasia, em comparação com formulações à base de cloreto de sódio a 0,9%. Comparações similares in vitro em cães115 e cavalos119 não mostraram qualquer melhora na função plaquetária, conforme avaliado pela estimativa dos tempos de fechamento da plaqueta. Também foram expressas preocupações quanto à acidose metabólica hiperclorêmica com formulações de cloreto de sódio a 0,9%.88 Um ensaio cego multicêntrico recente em pacientes humanos com sepse grave revelou que o AHE 130/0,42 foi associado a mais mortalidade e necessidade de terapia de

reposição renal, em comparação com o grupo do acetato de Ringer.124 Uma metanálise recente também em seres humanos revelou maior risco de lesão renal aguda em pacientes criticamente enfermos que receberam preparações de AHE.125 Não há estudos documentando toxicidade renal em pacientes veterinários. Foram publicados relatos indicando baixa incidência de reações anafiláticas, aumentos no nível de amilase α e acúmulo tecidual de preparações lentamente degradáveis, causando prurido em pessoas.88,90 Em gatos, o heta-amido tem sido associado a vômito se administrado muito rapidamente. A maioria das recomendações posológicas para pacientes veterinários é extrapolada do fabricante e da literatura sobre medicina humana, não de estudos veterinários específicos. As recomendações atuais são de não ultrapassar uma dose de 20 mℓ/kg/dia de heta-amido, enquanto a de tetra-amido pode chegar a 50 mℓ/kg/dia. Foi relatado aumento da perda sanguínea em cães quando se usou uma dose > 30 mℓ/kg de heta-amido.126,127 Os poucos estudos em cavalos sugeriram que uma dose de heta-amido de 10 mℓ/kg/dia é bem tolerada.62,93 Dextranas São moléculas lineares de polissacarídios e incluem uma preparação de peso molecular baixo (dextrana 40 a 10%) e uma de alto (dextrana 70 a 6%) em salina a 0,9%. As moléculas menores são removidas por filtração glomerular e as maiores ficam na circulação por mais tempo, acabando por serem metabolizadas pelos sistemas enzimáticos da dextranase nos rins, fígado e baço, para produzir dióxido de carbono e água. Pela importância da filtração glomerular na excreção das dextranas, a meia-vida pode aumentar em pacientes com insuficiência renal. As dextranas são hiperoncóticas em comparação com o plasma e causam expansão do volume plasmático, que pode ultrapassar o volume infundido (dextrana 40 > dextrana 70). As dextranas têm sido usadas para melhorar o fluxo sanguíneo microcirculatório (em especial a dextrana 40), prevenir a ocorrência de trombose venosa profunda e como tromboprofilaxia em seres humanos. As complicações associadas ao seu uso incluem reações anafiláticas, comprometimento da função renal (em particular com a dextrana 40) e da hemostasia, bem como inibição da agregação plaquetária, hiperfibrinólise dependente da dose, níveis diminuídos de atividade do FvW e do FVIII).127–132 Elas também podem cobrir a superfície dos eritrócitos, interferindo em procedimentos simultâneos. Para minimizar efeitos adversos, foi sugerida uma dose máxima de 10 a 20 mℓ/kg/dia em cães e 5 mℓ/kg/dia em gatos. Gelatinas

São proteínas polidispersas de alto peso molecular, formadas pela hidrólise do colágeno bovino. Três preparações de gelatina modificadas de geração mais nova são as succiniladas ou líquidas modificadas, as que fazem ligação cruzada com a ureia e as de ligação cruzada com o oxigênio (oxipoligelatinas). As preparações de gelatina têm pesos moleculares médios similares (30 a 35 kDa) e são fornecidas em concentrações de 3,5 a 5,5%.133 O pequeno tamanho das moléculas de gelatina as torna passíveis de filtração glomerular, que é a principal via de eliminação. A meia-vida sugerida da oxipoligelatina em cães é de 2 a 4 h.129 A distribuição da dose total administrada em 24 h é de 71% na urina, 16% extravascular e os 13% restantes no plasma.133 Excreção renal rápida significa menos retenção plasmática e, embora haja relatos de efeitos colaterais sobre a coagulação similares aos de outros coloides sintéticos, sua magnitude é menor.129,134,135 As gelatinas com ligação cruzada com a ureia foram associadas a reações anafilactoides devidas à liberação de histamina, que foi bloqueada pelo uso profilático de bloqueadores de histamina.136 Embora não haja um padrão de diretrizes para as dosagens de gelatina em espécies veterinárias, a de oxipoligelatina recomendada para cães é de 5 mℓ/kg.129

■ Implicações clínicas do uso de coloide sintético na medicina veterinária A maioria dos estudos em medicina veterinária tem-se focado no efeito do AHE, das dextranas e das gelatinas em animais sadios e documentaram uma deterioração relacionada com a dose tanto na hemostasia primária como na secundária, mas houve falha em demonstrar exacerbação de sangramento clínico. Como os efeitos de coloides sintéticos sobre a hemostasia estão ligados diretamente à sua concentração plasmática, é razoável supor que, se forem usados em dosagens acima das recomendadas, repetidamente, quando a depuração está diminuída (p. ex., comprometimento renal) ou em pacientes com diátese hemorrágica preexistente, têm o potencial de aumentar o sangramento clínico. Da mesma maneira, embora não haja dados veterinários que documentem o efeito dos coloides sintéticos sobre a função renal, sabemos que a filtração renal é a principal via de excreção e que há um aumento na osmolalidade e na densidade urinárias em cães que recebem AHE 600/0,75.137 A hiperviscosidade da urina após filtração glomerular de moléculas de coloide, teoricamente causando obstrução tubular em decorrência da estase do fluxo urinário, parece o mecanismo mais provável de comprometimento renal.90,131,132 Assim, a possibilidade de disfunção renal pode existir, em especial nos pacientes criticamente enfermos com comprometimento renal preexistente, o que requer monitoramento da função renal (débito urinário, creatinina, nitrogênio ureico sanguíneo etc.) e o uso de quantidades mínimas de coloides sintéticos em tais situações. Também preparações hiperoncóticas parecem potencializar isso, de modo que pode ser mais aconselhável usar preparações iso-oncóticas

de coloides sintéticos, sempre que possível.90,131,132

Terapia hídrica peroperatória O objetivo da terapia hídrica perioperatória é manter o volume circulatório, para não comprometer a perfusão de órgãos terminais e a liberação de oxigênio. A abordagem tradicional para se alcançar esse objetivo inclui a administração de cristaloides para reposição, em uma dose e a uma velocidade que pode variar entre 5 e 20 mℓ/kg/h.13,14 Esperava-se que essa taxa alta de administração de líquido inibisse a hipovolemia intraoperatória transitória em decorrência da privação de líquido durante o jejum préoperatório, da vasodilatação associada aos anestésicos, dos líquidos do terceiro espaço intravascular, das perdas insensíveis de líquido e da perda intraoperatória de líquido ou sanguínea.138,139 Evidência emergente tem comprovado a maioria dessas teorias. O tratamento perioperatório atual do paciente não inclui jejum prolongado,140 em geral permitindo-se que tenham acesso à água até o momento da cirurgia. Além disso, mostrouse que o volume sanguíneo mantém-se normal mesmo após jejum prolongado.141 O conceito de terceiro espaço de líquido durante cirurgia142 e a carga de líquido de pacientes normovolêmicos para prevenir hipotensão intraoperatória143 têm sido questionados. O estresse associado à cirurgia e à anestesia desencadeia respostas neuroendócrinas mediadas pela estimulação do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal, pela ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, pelo peptídio natriurético atrial e pela liberação de vasopressina. Todos esses mecanismos compensatórios podem alterar a dinâmica do líquido, independentemente da função renal.144 Em cães, a concentração do hormônio antidiurético aumentou145 e a produção de urina diminuiu após medicação pré-anestésica com morfina146 e não mudaram durante anestesia e cirurgia quando os pacientes receberam terapia hídrica convencional147 ou maior administração de líquido cristaloide.7 Os efeitos fisiológicos da anestesia e da cirurgia cessam ou diminuem no final da última, isso em um paciente que tenha recebido um volume relativamente grande de líquidos. No pós-operatório, tais pacientes acabam ganhando peso corporal.147,148 Esse equilíbrio positivo de líquido e ganho de peso ocorre principalmente no LEC e mostrou-se que está associado a várias anormalidades, inclusive aumento da água pulmonar, função pulmonar reduzida, aumento da taxa de infecção, menor motilidade intestinal, queda no hematócrito, na proteína total e na temperatura corporal, acabando por traduzir-se em aumento da morbidade e da mortalidade. O Confidential Inquiry into Perioperative Small Animal Fatalities (CIPSAF) revelou que gatos que receberam líquidos (provavelmente não em dosagens voltadas para o objetivo) tiveram quatro vezes mais propensão a óbito, e os autores especularam que a administração excessiva de líquido causando sobrecarga poderia

ser uma causa.152 A administração intraoperatória restritiva de líquido poderia melhorar a função pulmonar e a hipoxemia pós-operatórias.153–155 Também se observou que gatos monitorados com a oximetria de pulso durante anestesia tiveram uma propensão a óbito 3 a 4 vezes menor, embora o estudo não tenha esclarecido qual a relação disso com a administração de líquido.152 Evidência obtida com a anestesia em seres humanos sugere que pacientes de baixo risco submetidos à cirurgia de risco baixo a moderado beneficiam-se da terapia hídrica intraoperatória liberal (dose total de 20 a 40 mℓ/kg), resultando em menos complicações pós-operatórias, como tontura, dor, náuseas, vômitos, sonolência e tempo menor de hospitalização.155–157 No entanto, não se observou comprometimento algum na função renal com a terapia hídrica restritiva em seres humanos.154 Não se notou impacto na pressão sistólica em cães que receberam líquidos a taxas de 0 a 15 mℓ/kg/h158 e o aumento dessas taxas de 0 para 30 mℓ/kg/h não causou qualquer alteração na produção de urina ou na liberação de oxigênio durante a anestesia.7 Pacientes humanos de alto risco submetidos a cirurgias abdominais de grande porte beneficiam-se da terapia hídrica restritiva,159,160 embora esse não tenha sido um achado universal. O que constitui terapia hídrica restritiva ou liberal ainda é uma questão discutível, porque os ensaios randomizados controlados diferentes realizados com seres humanos usaram esquemas diferentes de líquido.161 Recentemente, as diretrizes da AAHA/AAFP para terapia hídrica em cães e gatos162 sugeriram começar administrando-se 3 mℓ/kg/h a gatos e 5 mℓ/kg/h a cães, embora essas recomendações não tenham se baseado em qualquer evidência clínica específica e não sejam universalmente aceitas.

■ Monitoramento do equilíbrio hídrico A estimativa do LIC e do LEC não é fácil e faz-se uma do volume de LIV principalmente na prática clínica. Não há uma variável única que sirva para se avaliar o volume intravascular, o que cria algumas dificuldades para a aplicação da terapia hídrica voltada para o objetivo. Além disso, é importante fazer avaliações seriadas de um paciente para otimizar o estado de volume. Para se estimar o estado de volume, devem ser usados, em conjunto, o exame clínico (cor das mucosas, tempo de enchimento capilar, frequência e qualidade de pulso, temperatura das extremidades, mentação, turgor cutâneo, umidade das mucosas, edema periférico, auscultação torácica em busca de crepitações pulmonares, papiledema, frequência respiratória, oximetria de pulso, pressão arterial, débito urinário), o monitoramento hemodinâmico invasivo para a obtenção de dados objetivos (monitoramento direto da pressão arterial e do débito cardíaco, pressões de enchimento cardíaco incluindo a pressão venosa central e a de oclusão da artéria pulmonar, a variação da pressão de pulso e do volume sistólico, ecocardiografia transesofágica) e os dados

laboratoriais (gasometria arterial e venosa, nível de eletrólitos, avaliação da função renal). A informação sobre vários parâmetros macrovasculares (pressão venosa central, pressão arterial, débito urinário) e microvasculares (concentração e depuração de lactato, excesso de base, saturação de oxigênio venoso misto ou central) de perfusão ajuda a determinar o estado de liberação crítica de oxigênio para os tecidos.163,164 Mostrou-se que a terapia inicial direcionada para o objetivo (TIDO) no intuito de normalizar alguns desses pontos terminais melhora os resultados.165 O ideal é monitorar o tratamento com coloides sintéticos usando-se a coloidoosmometria para medir a PCO, em vez de se confiar na análise refratométrica, porque a relação entre a PCO e o índice de refração pode ser diferente para proteínas plasmáticas versus coloide sintético.166 Há uma correlação fraca entre as alterações na PCO e na proteína total, conforme medidas por um refratômetro após a administração de heta-amido e dextrana 70. Ambos esses coloides sintéticos levam a leitura do refratômetro na direção de 4,5 g/dℓ.167 As leituras refratométricas dos sólidos totais costumam diminuir após a administração de coloide, em decorrência dos efeitos dilucionais, e tais quedas poderiam ser interpretadas erroneamente como uma necessidade de suporte coloidal adicional, ocasionando sobrecarga hídrica.95

■ Terapia hídrica individualizada voltada para o objetivo É importante lembrar que nem todos os pacientes respondem igualmente à administração de líquido. Mostrou-se que apenas 50% dos pacientes criticamente enfermos têm uma reserva de pré-carga cardíaca adequada para responder à expansão de volume com aumento do débito cardíaco.168 Sendo assim, é importante reconhecer os pacientes que respondem à administração de líquido, para evitar sobrecarga inefetiva ou deletéria do mesmo.169 Embora ainda não tenham sido estabelecidas diretrizes padronizadas para a terapia hídrica individualizada, mostrou-se que uma abordagem a ela, denominada ‘terapia individualizada voltada para a meta’ e baseada na retroalimentação objetiva da capacidade de resposta de um paciente ao líquido, melhora o prognóstico em contextos perioperatórios.170–172 O uso de índices estáticos convencionais de pré-carga para orientar a terapia destinada a restaurar o volume intravascular envolve a medição das pressões cardíacas de enchimento (pressão venosa central, pressão capilar pulmonar em cunha, pressão ventricular telediastólica) e mostrou ser um indicador confiável e geralmente tardio de sobrecarga hídrica, alterações no volume sanguíneo e capacidade de resposta a líquido.169,173 O cateterismo da artéria pulmonar (CAP) de início era empregado para orientar a melhor liberação de oxigênio em pacientes cirúrgicos de alto risco, mas, em decorrência do aumento da morbidade e na mortalidade associado ao próprio uso do CAP e da falha em se mostrar qualquer benefício claro, foi abandonado na medicina humana.174

O monitoramento da resposta a líquido evoluiu para técnicas hemodinâmicas minimamente invasivas, baseadas na dinâmica do líquido, como a ecocardiografia Doppler transesofágica e o uso de índices dinâmicos de pré-carga, como a variação da pressão sistólica (VPS), da pressão de pulso (VPP), do volume sistólico (VVS) e da onda pletismográfica.169,175–179 Esses índices dinâmicos avaliam as alterações cíclicas na précarga ou o retorno venoso em resposta à terapia hídrica e mostraram-se previsores mais confiáveis da resposta dos pacientes à administração de líquido. A VPP e a VPS ocorrem como consequência das alterações cíclicas na pressão intratorácica, causadas pela ventilação mecânica.169,176,180 A redução no retorno venoso durante a inspiração com ventilação com pressão positiva é o principal determinante dessa variação. De acordo com o princípio de Frank-Starling, o enchimento diastólico dos ventrículos determina o estiramento miocárdico e, portanto, o volume sistólico, porque está relacionado com a contratilidade miocárdica. Nos estados hipovolêmicos, a VVS é alta e a contratilidade ventricular esquerda depende, em sua maior parte, da pré-carga. Em outras palavras, o ventrículo opera no ramo ascendente da curva de Frank-Starling. À medida que o volume se expande, a função ventricular esquerda desvia em direção à direita na curva de Frank-Starling e causa uma queda observada na VVS.169,176,180 Mostrou-se que tanto a VPP como a VVS são marcadores sensíveis da capacidade da resposta ventricular à carga de líquido. A avaliação da pré-carga dinâmica pode ser realizada em pacientes clínicos que estejam sendo monitorados pela pressão arterial direta, ventilados mecanicamente e sem arritmias.169,176 Recentemente, o índice pletismográfico de variabilidade (IPV) e a VPP foram avaliados em um modelo canino de choque hemorrágico como previsores de alterações de volume.178,179 Os autores concluíram que o IPV derivado de uma oximetria de pulso bem-sucedida detectou hipovolemia e retorno à normovolemia, mas não foi capaz de detectar hipervolemia.178 De maneira semelhante, eles concluíram que a VPP foi um indicador confiável de hipovolemia em um modelo ventilado mecanicamente de choque hemorrágico em cães.179 Em tal estudo, a VPP basal (%) foi de 10,1 ± 2,9, aumentou para 30 ± 8,3 após a indução de hemorragia e normalizou em 8,5 ± 3,7 após retransfusão. O monitoramento pelo Doppler transesofágico ajuda a quantificar a pré-carga, medindo e calculando a área (ATDVE) ou o volume (VTDVE) telediastólicos do ventrículo esquerdo. Em cirurgias abdominais de grande porte, o uso do Doppler transesofágico foi associado a menos complicações pós-operatórias e internações em unidades de terapia intensiva, retorno mais rápido da função gastrintestinal e tempo menor de hospitalização.181 A questão sobre o tipo de líquido (cristaloides ou coloides) a ser usado para expansão de volume foi discutida por muito tempo. Mostrou-se que os coloides são mais eficazes para restaurar o volume intravascular,82,84–87 porém, na ausência de qualquer benefício

nítido sobre a mortalidade, a literatura técnica humana a respeito não defende o uso de um ou outro.182

Eletrólitos ■ Sódio O sódio é o cátion mais abundante no LEC (Tabela 21.1). Na membrana celular, a Na+/K+/ATPase mantém uma concentração intracelular relativamente baixa de Na+. A concentração sérica de Na+ é um reflexo da quantidade de Na+ com relação ao LEC total e não dá qualquer indicação sobre o conteúdo corporal total de sódio. Os distúrbios do sódio resultam principalmente de alterações na quantidade de água corporal, de modo que as alterações na concentração de Na+ devem ser vistas como alterações no conteúdo de água livre do corpo. O volume e a tonicidade dos líquidos corporais são mantidos pela regulação do equilíbrio de Na+ e água. Em resposta às alterações no volume intravascular, o hormônio antidiurético (HAD) sinaliza a partir de barorreceptores e osmorreceptores, mecanismos da sede, sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e peptídio natriurético atrial (PNA), todos de acordo para promover a homeostasia.183 Vários processos mórbidos podem causar hipernatremia, que pode ser resultante de desidratação hipotônica (resultando em hipernatremia hipovolêmica), perda de água livre (resultando em hipernatremia normovolêmica) ou ingestão ou administração iatrogênica de líquidos com alto teor de sódio (resultando em hipervolemia).183 A hipernatremia resulta em desidratação celular (especialmente das células cerebrais) à medida que a água se move do LIC para o LEC. O encolhimento do tecido cerebral pode causar laceração de vasos sanguíneos, resultando em hemorragia subaracnoide e intracerebral.184 As consequências fisiopatológicas da hipernatremia são determinadas principalmente pela rapidez do início da hipernatremia, mais que pelo valor absoluto. Em circunstâncias crônicas (mais de 2 a 3 dias), as células cerebrais aumentam a osmolalidade intracelular pelo acúmulo de solutos osmoticamente ativos denominados ‘osmoles idiogênicos’.185,186 Lien et al.187 descobriram que a hipernatremia em ratos aumentou a concentração de mioinositol, bataína, glicerofosforilcolina, fosfocreatina, glutamina, glutamato e taurina no cérebro. Os osmoles idiogênicos ajudam a manter o volume intracelular e prevenir o efluxo de líquido. Por isso, na hipernatremia crônica, a correção rápida do nível de sódio poderia diminuir a osmolalidade extracelular e causar movimento da água para as células cerebrais, resultando em edema cerebral. Se o início da hipernatremia for relativamente agudo (< 24 h), a correção rápida será mais bem tolerada, porque os osmoles idiogênicos ainda não estarão presentes.

Hemorragia intracraniana e desidratação neuronal podem resultar em fraqueza muscular, letargia, ataxia, convulsão, coma e morte.184 O tratamento deve envolver a correção do problema subjacente e o uso de líquidos para repor a água livre. Em pacientes hipovolêmicos, deve-se corrigir o déficit de volume intravascular com um líquido isotônico para o paciente, seguido pela correção do déficit de água livre com líquidos como dextrose a 5% ou 2,5% em salina a 0,45%.188 Pode-se usar a fórmula a seguir para calcular o déficit de água livre: [(Na+ sérico/140) – 1] × Peso corporal (kg) × 0,6 Recomenda-se que, nos casos de hipernatremia crônica, os déficits de água do paciente devam ser corrigidos lentamente em 48 a 72 h, de modo que a concentração de Na+ não diminua a uma taxa que ultrapasse 0,5 mEq/ℓ/h. A hiponatremia pode resultar de ganho de água livre ou perda de sódio, podendo ocorrer na vigência de euvolemia (associada a osmolalidade normal e caracterizada por conteúdo normal de água e Na+, pseudo-hiponatremia), desidratação (associada à hiperosmolalidade) ou hipervolemia (associada à hipo-osmolalidade, vista mais comumente no contexto clínico).188 A hiponatremia com hipo-osmolalidade pode ser dividida ainda em hiponatremia com hipovolemia, hipervolemia ou euvolumia, dependendo do processo mórbido subjacente. Foi descrita uma síndrome de secreção inapropriada de HAD (SIHAD) em pessoas e cães, que leva à hiponatremia com hipoosmolalidade e euvolumia,189,190 caracterizando-se por secreção de HAD na ausência de osmolalidade baixa ou hipovolemia e pode causar hiponatremia. Nos contextos perioperatórios, a SIHAD foi associada ao uso de vários anestésicos, inclusive narcóticos.189,191 A estimulação simpática decorrente da dor associada a procedimentos cirúrgicos também pode causar liberação de HAD na ausência de contração de volume. Todos esses fatores podem levar à retenção renal de água e ao desenvolvimento de hiponatremia em pacientes cirúrgicos.183 A síndrome da ressecção transuretral da próstata (RTUP) é uma causa estabelecida de hiponatremia em pacientes humanos anestesiados, em decorrência da absorção intravascular de líquidos de irrigação, causando hiponatremia hipotônica.192 Entretanto, uma série de casos que descreveu um pequeno número de cães submetidos a esse procedimento não mostrou hiponatremia.193 As consequências fisiopatológicas da hiponatremia também dependem de sua velocidade de desenvolvimento. A diminuição na concentração sérica de sódio pode gerar um gradiente osmótico através da barreira hematencefálica, que causaria o movimento da água para as células cerebrais, ocasionando edema cerebral. Não costuma haver sinais, a menos que a concentração caia abaixo de 125 mEq/ℓ, mas eles incluem ataxia, vômito, depressão, convulsões e coma.194 Durante hiponatremia crônica, a taxa de correção de Na+

recomendada é de não mais que 0,5 mEq/ℓ/h. Se a correção for mais rápida, a maior osmolalidade plasmática pode causar efluxo de água das células cerebrais (desidratação celular), ocasionando a síndrome clínica de desmielinização osmótica ou mielinólise pontina central.195,196 O tratamento da hiponatremia dependerá em parte do estado de volume do paciente. Foi descrita uma abordagem com salina a 3% para a correção da hiponatremia.189

■ Cálcio O cálcio é um cátion divalente muito importante que está envolvido em muitos processos biológicos, além do fato de que seus efeitos sobre o músculo liso cardíaco, o vascular e a coagulação sanguínea são particularmente importantes para o anestesiologista.197 Além disso, o cálcio está envolvido na contração muscular esquelética, na condução neuronal, na transmissão sináptica e na secreção hormonal, e age ainda como um mensageiro intracelular importante, necessário para muitas funções celulares. Aproximadamente 99% do cálcio corporal total são armazenados como hidroxiapatita no tecido esquelético, e o restante é dividido entre os compartimentos do LIC e do LEC. O cálcio existe em três formas biológicas: como cálcio livre ionizado (iCa2+) no plasma; em complexo ou quelado em fosfato, sulfato, bicarbonato, citrato e lactato; e ligado a proteína.198 A forma biologicamente ativa é o iCa2+, que está envolvido em várias funções já descritas. O nível sérico de cálcio é controlado pelo hormônio paratireóideo, pela calcitoniana e pelo calcitriol (1,25-di-hidroxicolecalciferol), hormônios que agem no nível dos ossos, rins e trato gastrintestinal para regular a homeostasia do cálcio.197 A hipocalcemia é comum em pequenos animais criticamente enfermos, cavalos com cólica e bovinos doentes. Mostrou-se que ela indica um prognóstico desfavorável.18,31,61,199,200 Também se demonstrou que a anestesia inalatória diminui as concentrações de cálcio total e ionizado em cavalos.201,202 Pode ocorrer hipocalcemia em decorrência do comprometimento da liberação do hormônio paratireóideo (HPT; hipoparatireoidismo primário e secundário, após tireoidectomia e paratireoidectomia), da síntese de calcitriol (insuficiência renal aguda ou crônica, síndromes de má absorção, insuficiência hepática etc.) e da quelação do cálcio sérico (enemas de fosfato de sódio, terapia com bicarbonato, hemoderivados contendo citrato, toxicidade do etilenoglicol, saponificação de gordura na pancreatite ou esteatite etc.).197,200,203 Hipoalbuminemia/hipoproteinemia poderiam afetar (diminuir) a concentração total de cálcio e mostrou-se que as fórmulas usadas tradicionalmente para corrigir a concentração total de cálcio com relação a alterações (queda) na concentração de albumina são errôneas, sendo aconselhável medir sempre a concentração de iCa2+.204 A gravidade dos sinais clínicos depende da magnitude e da rapidez do início da

hipocalcemia. As consequências fisiopatológicas devem-se a uma diminuição no limiar do potencial de membrana, resultando em maior excitabilidade da membrana, à medida que a membrana neuronal fica mais permeável ao sódio. A hiperpotassemia e a hipomagnesemia potencializam os efeitos cardíacos e neuromusculares da hipocalcemia.188 Os sinais clínicos são atribuíveis à irritabilidade neuromuscular e poderiam caracterizar-se por tetania, convulsões, inquietação ou excitação, atrito facial, tremores musculares, taquicardia, hipertermia, hipotensão e parada cardiopulmonar.188 O eletrocardiograma pode revelar um intervalo QT prolongado. A hipocalcemia aguda sintomática deve ser tratada com gluconato de cálcio (solução a 10%, na dose de 0,5 a 1,5 mℓ/kg), administrado lentamente IV durante 15 a 20 min, com monitoramento contínuo da frequência cardíaca. A hipercalcemia pode resultar de maior absorção de cálcio a partir dos ossos (hiperparatireoidismo, hipercalcemia decorrente de malignidade etc.), aumento da absorção a partir do trato gastrintestinal (hipervitaminose D, doenças granulomatosas, cremes antipsoríase, rodenticidas à base de vitamina D etc.) ou menor excreção renal (insuficiência renal aguda ou crônica).188 Íons hidrogênio podem competir com o iCa2+ pelos locais de ligação com a albumina, de modo que a acidemia pode aumentar a concentração de cálcio ionizado.205 A hipercalcemia pode resultar em anormalidades neuromusculares, cardiovasculares, gastrintestinais, renais e musculares esqueléticas.188,197 Os sinais clínicos podem caracterizar-se por náuseas, anorexia, constipação intestinal, dor abdominal, poliúria, polidipsia e mineralização de tecido mole.188 As alterações eletrocardiográficas caracterizam-se por encurtamento do intervalo QT, prolongamento do PR e complexo QRS largo. O tratamento da hipercalcemia deve envolver a correção da desidratação, promover a calciurese, a inibição da reabsorção óssea e o tratamento do processo mórbido subjacente.188,197 Líquidos sem cálcio, em especial NaCl a 0,9%, são preferíveis porque inibem de maneira competitiva a reabsorção tubular renal de cálcio.188 Assim que o paciente estiver bem hidratado, pode-se considerar o uso de um diurético de alça (furosemida) para promover calciurese com o monitoramento regular dos eletrólitos séricos. Além disso, glicocorticoides, bifosfonatos (pamidronato, etidronato dissódico etc.) e calcitonina podem ser usados para tratar a hipercalcemia associada a alguns tumores e diminuir a reabsorção óssea.188,197 Os efeitos de vários fármacos usados durante a anestesia, em especial anestésicos inalatórios, locais e relaxantes musculares não despolarizantes, podem ser influenciados por alterações na concentração de cálcio.197

■ Potássio O potássio é o cátion intracelular mais abundante (Tabela 21.1). Aproximadamente 95% dele está presente no líquido intracelular, com apenas 5% no extracelular. Portanto, é

evidente que a estimativa rotineira da concentração plasmática de potássio dá pouca indicação do conteúdo de potássio corporal total. O alto gradiente normal entre o potássio do LIC e do LEC é mantido pela bomba de Na+/K+-ATPase. No estágio de repouso, a permeabilidade da membrana celular é aproximadamente 100 vezes maior para os íons de K+ do que para os de Na+. A maioria dos efeitos vistos devidos a alterações na concentração de K+ no LEC resulta de alterações no potencial de repouso da membrana, particularmente notável nas membranas celulares excitáveis, como as do tecido cardíaco. A concentração de potássio é um reflexo da ingestão (nutrição), da perda gastrintestinal, da função renal e dos desvios transcelulares de potássio.206 As principais causas de hiperpotassemia envolvem aumento da ingestão (principalmente a administração iatrogênica excessiva de líquidos contendo potássio), diminuição da excreção renal (obstrução uretral, ruptura da bexiga, insuficiência renal anúrica ou oligúrica, hipoadrenocorticismo, fármacos etc.), translocação do LIC para o LEC (acidose mineral aguda, deficiência de insulina, síndrome da lise tumoral, fármacos etc.) e pseudo-hiperpotassemia (hemólise, trombocitose e coleta de amostra em EDTA contendo Na+/K+).206,207 A hiperpotassemia pode diminuir o potencial de repouso da membrana (torná-la menos negativa) e tornar as membranas hiperexcitáveis no começo; porém, à medida que a escalada da concentração de potássio sobe mais um ponto quando o potencial de repouso da membrana excede o limiar do potencial da membrana, causando despolarização, não ocorre repolarização e a célula perde sua excitabilidade. Os sinais clínicos incluem fraqueza muscular e toxicidade cardíaca, especialmente aparente em concentrações > 7,5 mEq/ℓ. A simultaneidade de hipocalcemia, hiponatremia, acidemia e hipovolemia pode exacerbar a deterioração cardíaca em concentrações inferiores.188,206,208 Foram descritas alterações no eletrocardiograma decorrentes de hiperpotassemia.208 À medida que a concentração de potássio no LEC aumenta de discreta para grave, as alterações no eletrocardiograma caracterizam-se por aumento na amplitude e estreitamento da onda T, encurtamento do intervalo QT, prolongamento do PR, alargamento do complexo QRS, diminuição da amplitude e alargamento da onda P, desaparecimento dela, parada atrial, bradicardia extrema, ritmo sinoventricular e, por fim, aparecimento da onda em forma de sino do complexo QRS, seguido por fibrilação ventricular ou assistolia também ventricular. Essas alterações do ECG são inconsistentes e influenciadas por outras variáveis, inclusive o equilíbrio acidobásico, o aumento do K+ e anomalias eletrolíticas concomitantes.208,209 O tratamento envolve o uso de sais de cálcio para proteção cardíaca, início do movimento do potássio do LEC para o LIC, terapia com bicarbonato, diurese com líquidos e alívio da obstrução urinária, se presente.206 A diálise peritoneal ou a hemodiálise são opções viáveis para a hiperpotassemia refratária.188 Embora tenha sido sugerido o uso de

líquidos sem potássio em pacientes com hiperpotassemia, mostrou-se que, em gatos com obstrução uretral, não houve diferença na velocidade de redução do potássio com Normosol-R® ou solução de cloreto de sódio a 0,9%.210 A administração intravenosa de cálcio eleva o limiar do potencial de membrana, de modo que o gradiente entre o potencial de repouso e o limiar da membrana é restabelecido, resultando na restauração da excitabilidade da membrana. O tratamento com cálcio começa a funcionar em questão de minutos e a resposta costuma durar algo entre 30 e 60 min.206 A administração lenta de um bolo (10 a 20 min) de gluconato de cálcio a 10% em uma dose 50 a 150 mg/kg (0,5 a 1,5 mℓ/kg) com monitoramento contínuo do ECG deve ser considerada, pois a administração rápida poderia causar bradicardia. Caso se use cloreto de cálcio, deve-se administrar aproximadamente um terço da dose.188 A administração de cálcio não age no sentido de baixar a concentração de potássio. Para mover de fato o potássio intracelular e diminuir sua concentração sérica, pode-se administrar dextrose intravenosa com ou sem insulina. A insulina facilita o movimento da glicose para as células e o potássio move-se na mesma direção (intracelular), embora tenha sido sugerido um mecanismo independente que resulta na ativação da bomba de Na+/K+ATPase (em especial nos músculos).211 Deve-se usar insulina cristalina regular em uma dose de 0,25 a 0,5 U/kg de peso corporal, devendo-se administrar simultaneamente dextrose (diluída a 50%), em uma dose de 2 g (4 ml) por unidade de insulina administrada. O efeito do tratamento tem início em cerca de 30 min e pode durar em torno de 1 h.188 Existe o potencial de hipoglicemia iatrogênica com esse tratamento (insulina mais dextrose) e, assim que se conseguir a estabilização inicial, pode ser necessária suplementação com dextrose até que se consiga a euglicemia. A administração intravenosa de bicarbonato de sódio resulta em alcalose que, por sua vez, faz com que os íons hidrogênio se movam do LIC para o LEC e o potássio para o LIC. A dose recomendada é de 1 a 2 mEq/kg, mas antes é preciso considerar a possibilidade de acidose cerebroespinal paradoxal, hiperosmolalidade e a capacidade de ventilação do paciente. O tratamento com bicarbonato também causa hipocalcemia, que pode ser contraproducente se forem usados sais de cálcio por causa de seus efeitos cardioprotetores. O tratamento tem efeito em aproximadamente 15 min, que pode durar 1 h. O uso de um agonista β2 foi descrito para se tratar a hiperpotassemia, por estimular a bomba de Na+/K+-ATPase, o que ocorre independentemente da insulina.212 A hipopotassemia resulta de diluição (de líquidos pobres em potássio), baixo consumo alimentar, aumento da excreção urinária (insuficiência renal crônica, diurese pósobstrutiva, diuréticos, excesso de mineralocorticoide etc.), perda gastrintestinal (vômitos, diarreia) e desvio intracelular (alcalose, líquidos contendo glicose/insulina, agonistas etc.).188,206,213 Pode ocorrer hipopotassemia refratária na presença de hipomagnesemia.186

Os sinais clínicos de hipopotassemia caracterizam-se por distúrbios da função neuromuscular em decorrência da hiperpolarização, em especial quando a concentração cai abaixo de 2,5 mEq/ℓ, e podem caracterizar-se por ventroflexão cervical, paralisia respiratória, anorexia, vômitos, diminuição da motilidade gastrintestinal e letargia.188,214 As anormalidades eletrocardiográficas podem incluir depressão do segmento ST, amplitude diminuída ou inversão da onda T, aumento da amplitude da onda P e intervalos PR e QRS prolongados, mas arritmias potencialmente fatais são incomuns.188 O tratamento envolve suplementação parenteral com cloreto de potássio ou fosfato de potássio como aditivos aos cristaloides. É importante lembrar que a velocidade da suplementação de potássio não deve exceder mais que 0,5 mEq/kg/h, por causa dos efeitos cardiotóxicos do potássio sobre a condução cardíaca.188 Se forem usados líquidos suplementados com potássio durante anestesia, é importante ter outro cateter colocado com uma segunda bolsa de líquido conectada sem potássio adicional, para o caso de haver necessidade da administração de um bolo de líquido.

Tratamento com transfusão Embora os cristaloides e coloides sintéticos possam proporcionar suporte cardiovascular ao melhorarem variáveis hemodinâmicas, em situações de perda sanguínea significativa ou coagulopatia, hemoderivados tornam-se necessários. Todavia, eles são caros, têm uma meia-vida mais limitada, precisam de condições específicas de armazenamento e são altamente imunogênicos, por causa da presença de produtos biológicos, como proteínas e células. Portanto, é importante determinar adequadamente quando uma transfusão é necessária, quais componentes são necessários e qual a melhor maneira de administrar o sangue com segurança. Há pouca coisa publicada na literatura veterinária especificamente sobre o uso de transfusões no período peroperatório e durante anestesia. No entanto, o entendimento acerca dos hemoderivados disponíveis e seu uso, as indicações para transfusão autóloga e nova informação sobre transfusões em situações de perda sanguínea maciça podem ajudar na prática.

■ Tratamento com hemoderivados Produtos de eritrócitos estão indicados em pacientes anêmicos, para melhorar sua capacidade de transporte de oxigênio. A liberação de oxigênio pode ser estimada pela seguinte equação: LO2 (Liberação de oxigênio) = DC (Débito cardíaco) × Conteúdo de oxigênio do sangue arterial (CaO2)

em que CaO2 = (PaO2 × 0,003) + (SaO2 × Hb × 1,34), PaO2 é a pressão parcial de oxigênio no sangue arterial e SaO2 é a saturação da hemoglobina com oxigênio no sangue arterial. O sinal para transfusão é a concentração de hemoglobina abaixo da qual a LO2 diminui a ponto de ter início o metabolismo anaeróbico. Embora ainda haja uma deficiência de literatura que defina um sinal para transfusão em pacientes cirúrgicos humanos com perda sanguínea substancial, recomenda-se a administração de eritrócitos em pacientes estáveis anêmicos quando a concentração de hemoglobina cai abaixo de 6 g/dℓ (hematócrito [Htc] aproximado de 18%).215 Em pequenos animais, sugeriu-se que um hematócrito de 15 a 18% pode ser um sinal razoável para transfusão.216 Em bovinos euvolêmicos, recomenda-se um nível de hemoglobina de 5 g/dℓ (hematócrito aproximado de 15%) e, em bovinos submetidos a cirurgia, com doença pulmonar ou no final da prenhez, um valor de 7 g/dℓ (hematócrito aproximado de 21%) foi sugerido como sinal para transfusão.217 Um hematócrito de 20% foi sugerido como sinal para transfusão em cavalos.218 Contudo, deve-se evitar usar apenas o nível de hemoglobina como sinal para transfusão e basear qualquer decisão no sentido de fazer uma transfusão no estado de volume intravascular do paciente em questão, na evidência de choque, na duração (aguda versus crônica) a na extensão da anemia, bem como em parâmetros fisiológicos cardiovasculares. Nos contextos agudos, os animais não apresentam as alterações compensatórias que ocorrem durante a anemia crônica, como desvio para a direita da curva de dissociação da hemoglobina em decorrência do aumento da síntese de 2,3-DPG (facilitando a liberação de oxigênio para os tecidos), desvio do sangue para fora da circulação esquelética, cutânea e esplâncnica, na direção da coronariana e da cerebral, secundário a alterações no tônus simpático, e recrutamento de capilares para facilitar a extração de oxigênio tecidual.219 No intraoperatório, é importante monitorar a quantidade da perda sanguínea, o que pode ser feito pela avaliação visual do campo cirúrgico, estimando-se a quantidade de sangue nos panos e no piso, bem como nas gazes e esponjas molhadas com ele, que devem ser recolhidas e pesadas para se estimar a quantidade de sangue contida nelas, subtraindose seu peso quando secas (supondo que 1 g de peso = 1 ml de sangue). Se não for usado líquido de lavagem, pode-se medir diretamente o volume de sangue colhido no frasco de aspiração. Caso o frasco contenha uma mistura de sangue e líquido, pode-se usar a fórmula a seguir para estimar a perda sanguínea:220

Também é útil ver uma perda sanguínea como a porcentagem do volume sanguíneo

total para estimar a gravidade, pois animais anestesiados, em geral, não têm a mesma capacidade de compensar uma perda sanguínea significativa que um paciente desperto. Ocorrem alterações hemodinâmicas profundas em animais anestesiados quando perdem aproximadamente 15 a 20% de seu volume sanguíneo de forma aguda, e o impacto disso na liberação de oxigênio pode ser mais acentuado, por causa da depressão dos reflexos cardiovasculares durante a anestesia.82,221 Os sinais tradicionais para transfusão baseiam-se no Htc, nas alterações intraoperatórias no mesmo e nos sólidos totais (SD), podendo ser difícil interpretá-los ante a terapia hídrica intraoperatória e o momento da estimativa após a perda sanguínea. Quando há perda aguda de sangue total, a razão de eritrócitos com relação ao plasma permanece idêntica. O Htc só começa a cair após a administração intraoperatória de líquido ou desvios do líquido intravascular, e outros mecanismos compensatórios resultam em expansão do volume plasmático e hemodiluição.217 Em geral, uma queda nos SD será o primeiro sinal de perda sanguínea aguda, pois de início a contração esplênica pode manter o Htc. Como alternativa, uma queda no Htc e nos SD em decorrência da administração de líquido em uma cirurgia sem hemorragia significativa pode representar hemodiluição, sendo possível obter-se uma estimativa melhor da perda sanguínea real verificando-se novamente os valores após ter ocorrido redistribuição de líquido (em geral, várias horas mais tarde). O monitoramento dos índices de perfusão e oxigenação inadequadas não deve envolver apenas o monitoramento padrão, como da pressão arterial, da frequência cardíaca, da eletrocardiografia e da oximetria de pulso, devendo abranger também os índices de parâmetros da perfusão microvascular, como lactato, excesso de base, saturação venosa mista/saturação venosa central e ecocardiografia, quando aplicáveis.163,164,215 Mostrou-se que a perda sanguínea sob anestesia pode diminuir o débito cardíaco mais profundamente, em comparação com as alterações na pressão arterial e, muitas vezes, a frequência cardíaca.221 Portanto, o monitoramento desses parâmetros cardiovasculares tidos como o padrão na anestesia veterinária pode não identificar a gravidade da perda sanguínea, mas o monitoramento cuidadoso da perda sanguínea física conforme descrito antes em conjunto com os parâmetros da perfusão, como os níveis de lactato, e excesso de base pode fornecer uma perspectiva melhor sobre o comprometimento da liberação de oxigênio e a necessidade de melhorar a capacidade de transporte de oxigênio. As várias razões para a transfusão de sangue total ou concentrado de hemácias em pacientes veterinários incluem anemia decorrente da perda sanguínea, hemólise e falha eritropoética.222–228 Assim que for tomada a decisão para fornecer eritrócitos, há vários produtos que podem ser escolhidos. É comum usar sangue total fresco (STF) na medicina clínica veterinária, graças à sua pronta disponibilidade de doadores domésticos. Ele tem todos os componentes do sangue, inclusive eritrócitos, proteínas plasmáticas, plaquetas e

fatores da coagulação lábeis e estáveis, devendo ser usado até 8 h após a coleta, por causa do potencial de crescimento bacteriano.229 Seu uso deve ser restrito aos pacientes com perda sanguínea maciça ou àqueles que tenham perdido múltiplos componentes. O sangue total pode ser transfundido em taxas variáveis, dependendo daquela de perda sanguínea e do tamanho do volume do déficit, mas uma dose inicial de 10 a 22 mℓ/kg ou baseada no aumento necessário no Htc pode ser calculada da seguinte maneira:229 STF (ml) = [(Htc (necessário) – Htc (do receptor)] × Peso (kg) × Volume sanguíneo (mℓ/kg)/Htc (do doador) Se não for usado em 8 h, o STF pode ser armazenado em refrigerador a 1 a 6°C por 28 dias, caso se use CPDA-1 como conservante, ou 30 dias, se for usado citrato ácido de dextrose (CAD). O sangue total armazenado difere do STF por não ter plaquetas funcionais e fatores da coagulação lábeis (V e VIII). Pode ser usado para suplementar a capacidade de transporte do oxigênio em um paciente com hipoproteinemia ou perda de volume sanguíneo circulatório. A dose pode ser calculada como para o STF. O concentrado de hemácias é preparado separando-se as hemácias do plasma mediante o uso de uma centrífuga refrigerada em alta rotação. Os concentrados de hemácias contêm eritrócitos, uma pequena quantidade de plasma, leucócitos, plaquetas e uma pequena quantidade de anticoagulante. Uma unidade de concentrado de hemácias obtida de uma unidade de sangue total contém aproximadamente a mesma capacidade de transporte de oxigênio de uma unidade de sangue total, mas em um volume menor. A transfusão de concentrado de hemácias está indicada em pacientes que precisam melhorar sua capacidade de transporte de oxigênio, porém estão normovolêmicos e não têm anormalidades da coagulação. Na trombocitopenia grave, o risco de sangramento também é afetado pelo grau de anemia. Os eritrócitos podem diminuir o risco de sangramento em tais pacientes porque eliminam o óxido nítrico, levando a um aumento da atividade plaquetária. O hematócrito mais alto após a administração de concentrado de hemácias pode empurrar as plaquetas na direção da parede endotelial, para melhorar o contato e aumentar a produção de tromboxano pelas plaquetas no local da lesão, bem como ajudar a diminuir o estresse causado pelo cisalhamento.230,231 Se a coleta inicial de concentrados de hemácias for feita em CPDA-1, o produto poderá ser armazenado a 4°C por aproximadamente 20 dias. Se forem acrescentadas soluções nutricionais aditivas, o tempo de armazenamento pode ser estendido (35 dias com Nutricel® ou Optisol® e 37 dias com Adsol®).229 O hematócrito dos produtos de concentrado de hemácias pode variar bastante, mas, se o hematócrito for de aproximadamente 60%, então o volume necessário para aumentar o hematócrito do receptor pode ser calculado da seguinte maneira:232

Concentrado de hemácias (ml) = 1,5 ml × aumento percentual desejado no Htc × Peso (kg) Os produtos de plasma estão indicados no perioperatório para tratar coagulopatia significativa e podem ser usados como profilaxia em pacientes com coagulopatias conhecidas ou no perioperatório, se ocorrer sangramento ativo. O tipo de produto usado depende da coagulopatia que estiver sendo tratada. O plasma fresco congelado (PFC) é separado por meio de alta rotação em centrífuga do sangue total que é congelado até 8 h após a coleta. Além das proteínas plasmáticas e dos fatores da coagulação, o PFC é rico nos fatores da coagulação V, VIII e de von Willebrand. O PFC pode ser armazenado por até 1 ano em congelador a –20°C a –30°C e usado como profilaxia antes de cirurgia em pacientes com coagulopatias hereditárias ou adquiridas significativas, bem como no perioperatório, se ocorrer sangramento ativo causado por coagulopatia e o TP for mais de uma vez e meia o normal, o TPTA for mais de duas vezes o normal ou o INR for superior a 2.215 O PFC pode ser descongelado à temperatura ambiente ou em água a 37°C, depois de colocado em uma bolsa de plástico vedada para evitar contaminação nas saídas. A dosagem recomendada para o tratamento da toxicidade de rodenticida à base de antagonista da vitamina K é de 10 a 20 mℓ/kg e, para tratar coagulopatia associada à hemofilia A ou doença de von Willebrand, é de 15 a 30 mℓ/kg.234 Se o PFC for armazenado por mais de 1 ano, passa a ser chamado de plasma congelado (PC). Se uma separação inicial do sangue total não for congelada até 8 h ou se o PFC for descongelado e recongelado, também é chamado de PC. Ele difere do PFC pela ausência dos fatores da coagulação lábeis V, VIII e de von Willebrand. O PC pode ser mantido congelado a –20°C por 5 anos a partir da data da coleta. Embora os fatores da coagulação lábeis e proteínas anticoagulantes não estejam ativos, o plasma congelado armazenado (PCA) pode ser usado para o tratamento de coagulopatias dependentes de vitamina K (fatores II, VII, IX e X), como a intoxicação por rodenticida,229 da mesma forma que como uma fonte potencial de albumina para suporte da PCO. O crioprecipitado (crio) pode ser preparado a partir de PFC até 12 meses após a coleta. É formado pelo descongelamento lento a 0°C a 6°C. Forma-se um precipitado branco e as frações de plasma e precipitado são separadas por centrifugação e recongelamento. A fração precipitada denomina-se crioprecipitado e serve como uma fonte concentrada dos fatores lábeis V, VIII, de von Willebrand e fibrinogênio. Deve ser usado até 10 meses a partir da data da coleta do sangue. O crioprecipitado é o tratamento de escolha para profilaxia ou sangramento ativo em cães com hemofilia A ou doença de von Willebrand, embora a disponibilidade às vezes possa ser um problema.234,235 A dosagem recomendada de crioprecipitado é de 1 unidade por 10 kg de peso corporal. O sobrenadante produzido no processo de elaboração do crio denomina-se plasma

pobre em crio (PPC), que não tem fatores da coagulação lábeis, mas ainda contém os não lábeis II, VII, IX e X, de modo que pode ser usado para o tratamento de coagulopatias associadas à intoxicação por rodenticida. A albumina constitui 50 a 60% da proteína plasmática total e fornece 75 a 80% da PCO em animais sadios, tendo ainda outras funções fisiológicas importantes, inclusive o transporte de vários substratos e fármacos, capacidade de tamponamento, eliminação de radicais livres, mediação da coagulação e cicatrização de feridas.236 Muitos pacientes criticamente enfermos sofrem de hipoalbuminemia, o que poderia resultar em complicações como acúmulo de líquido intersticial, inclusive edema pulmonar, má cicatrização de feridas, transporte de vários anestésicos, hipercoagulabilidade e disfunção orgânica sistêmica.237,238 A hipoalbuminemia foi associada a um prognóstico desfavorável tanto em pacientes humanos como veterinários. Em pacientes criticamente enfermos, a relação entre albumina e PCO não é tão previsível com se poderia esperar e a formação de edema resulta de processos fisiopatológicos complexos envolvendo alterações na permeabilidade capilar, na função linfática, na PCO plasmática, na cinética da albumina e na estrutura da matriz extracelular. A forma de suplementação de albumina mais comum específica da espécie para suporte da PCO foi por meio de transfusões plasmáticas. No entanto, será necessário um grande volume de plasma para fornecer uma quantidade relativamente pequena de albumina; estima-se que serão necessários 22,5 mℓ/kg de plasma para a albumina subir até um nível de 0,5 g/dℓ.239 Consequentemente, um grande volume de líquido terá de acompanhar a transfusão de plasma, que potencialmente poderia causar sobrecarga circulatória associada à transfusão (SCAT). Em espécies veterinárias, têm sido usadas duas formas de albumina, a sérica humana (ASH) e a sérica canina (ASC), como fontes dessa proteína. O uso de albumina sérica bovina em cães também foi descrito.240 O uso de albumina sérica humana foi relatado principalmente em pequenos animais, embora também tenha sido descrito em cavalos,241–244 bem como o de preparações hiperoncóticas a 25% (PCO) e iso-oncóticas a 5% (PCO) em estudos retrospectivos em pequenos animais criticamente enfermos241–243 e prospectivos em animais sadios.245–247 Alguns estudos prospectivos245–247 foram realizados em cães sadios, para avaliação de quaisquer efeitos adversos potenciais com o uso de ASH. Nesses estudos, alguns cães desenvolveram reações de hipersensibilidade imediata (anafilactoides), caracterizadas por vômito, edema facial, taquipneia, colapso e hipotensão. Além disso, alguns cães desenvolveram reações de hipersensibilidade tardia 5 a 13 dias após a transfusão inicial, caracterizadas por edema facial, de membros, prurido, claudicação com desvio do membro, vômito, letargia, inapetência, equimoses, linfadenopatia, diarreia e lesões cutâneas indicativas de vasculite. Dois dos cães em um estudo sofreram consequências fatais.245 A hipersensibilidade tardia caracterizou-se por deposição de complexo antígeno-anticorpo em

vários tecidos, uma característica da hipersensibilidade do tipo III.245,248 A transfusão de ASH também levou a uma resposta imune de IgE em cães sadios, conforme mostrado por testes intradérmicos positivos.247 É interessante que estudos retrospectivos conduzidos em pequenos animais criticamente enfermos que receberam ASH mostraram poucos efeitos adversos. Em um estudo conduzido por Mathews e Barry241 com 64 cães e dois gatos, foi relatado edema facial em apenas dois cães durante transfusão de ASH, mas nenhuma informação foi disponível sobre reações tardias. Outro estudo conduzido com 73 cães criticamente enfermos não mostrou anafilaxia fulminante, mas complicações menores em 27% dos animais, caracterizadas por taquipneia, taquicardia, aumento da temperatura corporal, edema periférico e arritmias ventriculares.242 Foram vistas reações tardias em três cães 5 a 14 dias após a administração, caracterizadas por edema, urticária, claudicação, pirexia, vômito, lesões cutâneas e dor generalizada. Um estudo recente com 418 cães e 170 gatos em que se usou ASH a 5% mostrou diarreia, hipertermia ou tremores em 43,5% dos cães e 36,5% dos gatos, mas não houve reações graves de hipersensibilidade.243 Sugeriu-se que a razão para essa dicotomia na resposta é a incapacidade de pacientes hipoalbuminêmicos criticamente enfermos elaborarem uma boa resposta imune.242,243 Mostrou-se que cães sadios produziram altos níveis de anticorpos IgG 10 a 14 dias após a infusão, embora tenham sido necessárias 4 a 6 semanas para que animais criticamente enfermos chegassem à produção máxima de IgG.245–247 Ante as sequelas graves em pacientes relativamente saudáveis, só se deve considerar a administração de ASH em pequenos animais gravemente comprometidos, nos quais outras opções tenham sido esgotadas. Felizmente, há pouco tempo foi lançada no mercado a ASC (albumina canina liofilizada, Animal Blood Resources International, Dixon, CA). O produto é derivado de plasma canino de doador mediante um processo de choque térmico. Encontra-se disponível como uma preparação liofilizada em frascos de 5 g, que pode ser reconstituída com solução de cloreto de sódio e usada como solução hiperosmótica a 16% (166 mg/ml) ou preparação iso-osmótica a 5% (50 mg/ml). A solução a 16% pode ser administrada a pacientes hipotensos com baixa concentração de albumina, no intuito de se conseguir expansão aguda de volume e manutenção do volume intravascular. Um estudo clínico recente documentou o uso de ASC no tratamento pós-operatório de cães após cirurgia para controle da fonte de peritonite séptica.249 Quatorze cães foram divididos em dois grupos, com um recebendo ASC e o outro sendo submetido a tratamento clínico direcionado (TCD). Foram usados 800 mg/kg de ASC a 5% por 6 h no grupo que recebeu essa albumina. A pressão arterial medida pelo Doppler, a concentração de albumina e a PCO tiveram um aumento significativo 2 h após a infusão no grupo que recebeu ASC. A concentração de albumina foi muito maior 24 h após a infusão nesse

grupo, em comparação com o submetido a tratamento clínico, embora não se tenha notado diferença na PCO nessas 24 h. Ambos os grupos receberam quantidades semelhantes de cristaloides e coloides sintéticos durante a hospitalização. Os autores especularam que a administração de AHE (PCO de 32,7 mmHg) durante a hospitalização subsequente mascarou o efeito da ASC a 5% (PCO de 22 mmHg) sobre a PCO. Em outro estudo observacional em seis cães com hipoalbuminemia e peritonite séptica, foram usados 800 a 884 mg/kg de ASC.250 Esse estudo também mostrou um aumento significativo na albumina e na PCO em 2 e 24 h, em comparação com o nível basal, mas não houve aumento algum na pressão sistólica 2 h após a infusão. Nenhum estudo clínico mostrou qualquer reação adversa à administração de ASC, nem imediata nem tardia (6 a 8 semanas após a infusão). Apenas um cão exibiu aumento na frequência respiratória durante a transfusão, que se resolveu após a diminuição da taxa de administração. Foi realizado um estudo de segurança pelo fabricante em cães da raça Beagle sadios, que receberam uma dose de 1 g/kg em um período de 1 h, repetida 1 vez/semana durante 4 semanas.251 Todos os cães toleraram a infusão, exceto um que, durante a segunda semana, desenvolveu palidez e tempo de enchimento capilar prolongado, que se resolveram diminuindo-se a velocidade da infusão. Os investigadores concluíram que cães sadios toleravam bem a infusão repetida, sem qualquer evidência de anormalidade fisiológica ou bioquímica. Apesar dos dados experimentais favoráveis e benefícios fisiológicos do uso de albumina, a literatura na medicina humana não foi capaz de demonstrar benefícios significativos de seu uso com relação à solução de cloreto de sódio, em termos de melhora na morbidade e na mortalidade.252,253 Em pacientes com traumatismo, o uso de albumina na verdade pode ser prejudicial com relação ao de cristaloides apenas.252 Entretanto, na análise de subconjunto, pode haver um pequeno benefício do uso de albumina naqueles pacientes em estado crítico com sepse ou síndrome da dificuldade respiratória aguda (SDRA).252,254,255 Faltam estudos semelhantes na medicina veterinária, mas, com base na literatura humana disponível, no risco da administração de ASH em animais e no custo da ASC, os autores recomendam que o uso de albumina específica da espécie seja considerado apenas em animais com a síndrome da dificuldade respiratória aguda ou sepse grave e hipoalbuminemia concomitante grave (menos de 1,3 g/dℓ). As transfusões de plaquetas em pacientes humanos são feitas com fins profiláticos e terapêuticos. Um estudo prospectivo com seres humanos revelou que, de 7.401 transfusões de plaquetas realizadas em 503 pacientes, aproximadamente 74% foram de natureza profilática, 18% foram terapêuticas e 8% administradas antes de cirurgia ou procedimentos invasivos em pacientes com coagulopatia ou em alto risco de sangramento.256 No contexto perioperatório, deve-se considerar a transfusão profilática de plaquetas se a contagem plaquetária for < 50 × 109/ℓ.215 A necessidade de tratamento, incluindo profilático em

pacientes com contagens de plaquetas na faixa de 50 a 100 × 109/ℓ, deve basear-se no potencial de disfunção plaquetária, na hemorragia esperada ou em andamento e no risco de sangramento em um espaço confinado (p. ex., o cérebro).215 A transfusão de plaquetas pode estar indicada em pacientes com contagens normais, se houver suspeita de disfunção plaquetária ou ela for conhecida (p. ex., exposição a um fármaco antiplaquetário ou trombopatias congênitas). Além da necessidade de um procedimento invasivo com risco de sangramento, as plaquetas são recomendadas para a profilaxia em seres humanos apenas se sua contagem for < 10 × 109/ℓ.257,258 Em pacientes com sangramento ativo, a transfusão terapêutica de plaquetas está indicada se a contagem for < 20 × 109/ℓ.257,258 Sangue total fresco é o hemoderivado mais facilmente disponível que serve como fonte de plaquetas e deve ser usado até 8 h após a coleta. O ideal é usá-lo em um paciente que esteja anêmico e também tenha trombocitopenia ou trombocitopatia. Espera-se que uma dose de 10 mℓ/kg aumente em 10.000/μℓ a contagem plaquetária.259,260 Em pacientes sem anemia, essa quantidade de eritrócitos transfundidos pode resultar em policitemia e sobrecarga de volume. As vantagens de usar STF são por não haver perda de plaquetas durante o processamento e ocorrer menos ativação delas que quando obtidas por centrifugação.260 O plasma rico em plaquetas (PRP) é produzido a partir de STF, mediante centrifugação lenta. O plasma sobrenadante contém plaquetas e está separado das demais células sanguíneas.259 A dose recomendada desse plasma é de 1 unidade por 10 kg de peso corporal. O uso de sangue total de bovinos e cavalos para a produção de PRP também foi descrito.261 O concentrado de plaquetas (CP) pode ser preparado a partir do PRP mediante centrifugação rápida. O sobrenadante (plasma pobre em plaquetas) é espremido em outra bolsa satélite acoplada à do PRP, deixando aproximadamente 35 a 70 ml de concentrado de plaquetas. Também é armazenado de maneira similar ao PRP. Um estudo em cães revelou uma produção média de plaquetas de 8 × 1010 por unidade de CP e que cerca de 25% das plaquetas são perdidas durante o processo de elaboração do CP a partir de STF.262 O uso de separadores de células sanguíneas automatizados para a plaquetoférese canina foi descrito, resultando em uma produção média de plaquetas de 3,3 × 1011 delas em um volume colhido médio de 246 ml.263 A dose recomendada de CP é de 1 unidade por 10 kg de peso corporal, esperando-se um aumento máximo de 40.000/μℓ na contagem.259 Produtos plaquetários frescos são armazenados a 20°C a 24°C, com agitação leve contínua ou intermitente por 5 dias durante o preparo, usando-se um sistema de coleta fechado.259 O concentrado de plaquetas congelado pode ser feito estabilizando-se as plaquetas submetidas à aférese com dimetil sulfóxido (DMSO) a 6% ou a 2% e ThromboSol® (uma

mistura de amilorida, adenosina e nitroprussiato de sódio, efetores do segundo mensageiro que inibem a função plaquetária).264 Valeri et al. mostraram que plaquetas caninas preservadas com DMSO a 6% e mantidas a –80°C por 1 ano tiveram uma taxa de recuperação de 70%, com meia-vida de 2 dias, versus 3,5 dias no caso de plaquetas frescas.265 Além disso, as plaquetas foram efetivas no sentido de cessar o sangramento em cães com trombocitopenia.266 Um estudo mais recente com cães revelou recuperação de 49% das plaquetas quando preservadas com DMSO a 6%, em comparação com 44% quando a conservação é feita com DMSO a 2% e ThromboSol®, e a meia-vida aproximada foi de 2 dias, comparada à média de 3,8 dias das plaquetas frescas.264 Como as plaquetas retiveram a capacidade de ser ativadas com meia-vida razoável, continuaram promissoras para o tratamento de sangramento potencialmente fatal em cães com trombocitopenia ou trombocitopatia grave. Plaquetas criopreservadas com DMSO a 6% estão disponíveis no mercado de produtos veterinários (concentrado congelado leucorreduzido de plaquetas caninas, Animal Blood Resources International, Dixon, CA). A dose recomendada é de 1 unidade/10 kg de peso corporal, administrada durante 4 h. Estudos para avaliar esse produto comercial indicaram uma taxa menor de recuperação de plaquetas, de 59%, e aumento da ativação dessas células, conforme indicado pela citometria de fluxo e pela agregometria.267,268 Plaquetas liofilizadas (LIO) são estabilizadas usando-se uma ligação cruzada com aldeído das proteínas da membrana e lipídios e então liofilizadas, sendo armazenadas em refrigerador por até 2 anos e podendo ser reconstituídas com cloreto de sódio a 0,9% imediatamente antes da administração.269 Dados experimentais mostram que as LIO agem como plaquetas normais (conforme demonstrado pela ligação ao colágeno, ao endotélio danificado, ao FvW e a receptores da membrana celular), são ativadas normalmente e ligam-se ao fibrinogênio.270,271 Em um modelo canino experimental de trombocitopenia e disfunção plaquetária induzida por derivação cardíaca, uma infusão de LIO resultou em melhora nos tempos de sangramento venoso, que atingiram o auge 20 a 30 min após a infusão, em comparação com o grupo de controle.272 Foi completado um ensaio multicêntrico prospectivo em que se comparou o uso de LIO com o de concentrado fresco de plaquetas (FRESH) em cães com trombocitopenia e evidência de sangramento ativo.273 Dos 37 cães arrolados, 22 receberam LIO e 15 receberam FRESH; a incidência de reações à transfusão foi baixa em ambos os grupos e não houve diferença no tempo de hospitalização e na mortalidade entre eles. Também há um potencial de se usar LIO como agente hemostático, mesmo que a contagem e a função das plaquetas estejam normais. Em um modelo suíno de lesão hepática, a administração de LIO resultou em sobrevivência de 80%, em comparação com 20% no grupo que recebeu placebo.274 Um dos suínos no grupo que recebeu LIO teve evidência de trombos em outras localizações à necropsia, indicando o

risco de potencial tromboembólico. LIO caninas ainda são experimentais e não estão à venda no comércio.

■ Testes de compatibilidade para transfusão Assim que se toma a decisão de fazer uma transfusão, deve-se proceder aos testes de compatibilidade caso a transfusão não seja uma emergência ou o paciente esteja correndo alto risco de ter uma reação adversa. Se o sangramento excessivo for um risco, a tipagem e a prova de reação cruzada devem ser consideradas antes do procedimento cirúrgico. Tipagem sanguínea Os grupos sanguíneos têm significado clínico porque há probabilidade de reações à transfusão se for realizada uma transfusão não compatível em algumas situações. O número e o tipo de grupos sanguíneos significativos variam entre as diferentes espécies de animais domésticos. Em cães, os tipos sanguíneos reconhecidos incluem o antígeno eritrocitário canino (DEA, de dog erythrocytc antigen) 1.1, 1.2, 3, 4, 5 e 7.229,275,276 O sistema DEA 1, com seus subtipos alélicos (i.e., DEA 1.1, DEA 1.2 e, possivelmente, DEA 1.3), é o mais antigênico. Em decorrência da ausência de isoanticorpos de ocorrência natural, a primeira transfusão de um doador positivo para o DEA 1.1 para um receptor negativo para o DEA 1.1 não deve causar uma reação imune dos eritrócitos. Contudo, uma segunda transfusão como essa, em geral, causará uma reação hemolítica grave, se tiver decorrido tempo suficiente para que se desenvolva uma resposta imune.277 Mostrou-se que isoanticorpos de ocorrência natural estão presentes em alguns cães para o DEA 3, o DEA 5 e o DEA 7.229,278,279 Tais isoanticorpos podem resultar em reações à transfusão que, em geral, são leves ou tardias e pode-se notar uma meia-vida bem mais curta dos eritrócitos transfundidos.280 No momento, um cão é considerado doador universal se for positivo para o DEA 4 e negativo para todos os demais antígenos sanguíneos caninos. O “Dal”, um antígeno recém-descoberto, existe com alta frequência em cães, mas é perdido em alguns da raça Dálmata.281 Anticorpos in vitro contra o Dal induzem uma reação forte de aglutinação e poderiam causar uma reação grave à transfusão. Com base na prevalência populacional, especulou-se que, com o teste de compatibilidade para o DEA 1.1, o risco de reação aguda à transfusão poderia diminuir 24% e, reduzindo-se a exposição aos outros sistemas do DEA, o risco de reações agudas e tardias a transfusões pode cair ainda mais uns 8%.229 Existem kits para tipagem sanguínea do DEA 1.1 e são recomendados para cães antes de transfusões na maioria das circunstâncias. Gatos podem ser dos grupos sanguíneos A, B, ou AB. Também foi identificado um antígeno de grupo sanguíneo felino adicional, o “Mik”.282 A distribuição desses tipos sanguíneos varia geograficamente, com maior prevalência do tipo B sendo relatada na

Austrália (36% da população).283 O grupo sanguíneo B é mais prevalente entre algumas raças puras felinas, incluindo Birmanesa (18%), Devon Rex (41%), Cornish Rex (31%), British de Pelo Curto (36%) e Scottish Fold (19%).284 Originalmente, 97% dos gatos nos EUA eram do tipo A e apenas 0,3% no nordeste daquele país eram do tipo B. No entanto, um estudo realizado em 1989 revelou uma incidência de 6% do tipo B nos EUA.285 Ainda segundo relatos, o tipo AB ocorre em menos de 1% da população felina geral, embora essa incidência possa ser mais alta à medida que surjam metodologias de tipagem mais modernas, capazes de identificar melhor esses gatos.286 Os gatos com grupo sanguíneo do tipo A podem ter aloanticorpos naturais em títulos baixos, capazes de encurtar a vida dos eritrócitos se for transfundido sangue do tipo B. Já gatos do tipo B têm altos títulos de isoanticorpos de ocorrência natural contra o tipo A, que podem causar uma reação fatal, mesmo que seja transfundido apenas 1 ml de sangue do tipo A.287,288 Gatos do tipo AB não têm aloanticorpo algum, mas devem receber hemoderivados do tipo AB ou do tipo A, por causa da forte presença de isoanticorpos anti-A nos hemoderivados do grupo B. A maioria dos gatos tem o antígeno Mik, mas, naqueles sem ele, os isoanticorpos de ocorrência natural podem ocasionar reação hemolítica à transfusão, mesmo que os animais não tenham recebido uma transfusão prévia.289 Em termos simples, a probabilidade de uma reação por incompatibilidade à transfusão é muito maior em gatos do que em cães, se for feita uma transfusão com outro tipo sanguíneo. Há kits comerciais para a tipagem sanguínea de gatos, recomendando-se com veemência que sejam usados antes de uma transfusão nesses animais. Cavalos não têm aloanticorpos de ocorrência natural dos tipos sanguíneos. Os tipos Aa e Qa de equinos são considerados mais antigênicos.290 As chances de reações adversas aumentam se o doador ou o receptor for uma égua que já tenha procriado. Portanto, recomenda-se usar sangue de cavalos-machos ou de éguas que nunca tenham estado prenhes como fontes preferíveis para transfusões sem tipagem. Também é preferível considerar doadores que sejam negativos para os fatores Aa e Qa, de modo a se evitar a sensibilização de éguas com cria contra os dois aloantígenos mais comuns envolvidos na isoeritrólise neonatal. Mostrou-se que éguas das raças Puro-Sangue, Quarto de Milha e Morgan têm genótipos Aa e Qa negativos e devem ser avaliadas como candidatas a doadoras universais.290 A maioria dos cavalos que não tenham recebido transfusões prévias pode receber uma ou mais transfusões com segurança por um período de 3 a 4 dias a partir de um doador não testado, porque a produção de anticorpos demora 5 a 7 dias.291 A tipagem sanguínea de cavalos só está disponível em poucos laboratórios diagnósticos, porque o antissoro necessário não se encontra disponível com facilidade.292 Em bovinos, a probabilidade de reação durante a primeira transfusão é baixa, por causa de uma falta de isoanticorpos de ocorrência natural ou títulos séricos baixos. Entretanto,

vacas negativas para o antígeno J nos eritrócitos podem ter anticorpos I capazes de causar uma reação na primeira transfusão, se forem usadas células doadoras positivas para o I.293 Embora essa reação pareça ter significado clínico mínimo, a vaca doadora ideal deve ter eritrócitos negativos para o I. Prova cruzada Esse procedimento determina a compatibilidade sorológica entre o sangue do receptor e o do doador e baseia-se em uma reação de aglutinação, permitindo a detecção de aloanticorpos de ocorrência natural ou produzidos como resultado da exposição prévia a hemoderivados incompatíveis. A ‘prova cruzada principal’ avalia a compatibilidade entre os eritrócitos do doador e o plasma ou soro do receptor. A ‘prova cruzada menor’ é uma avaliação da compatibilidade entre os eritrócitos do receptor e o plasma ou soro do doador. Em cães, a prova cruzada é recomendada quando se desconhece a história de transfusões, caso se note reação hemolítica durante a primeira transfusão, se tiverem decorrido mais de 7 dias desde a transfusão ou se o tipo DEA 7 do doador for desconhecido.277,294 Em gatos, devem ser consideradas com ênfase tanto a tipagem como a prova cruzada antes de uma primeira transfusão, por causa da identificação do antígeno Mik com aloanticorpos de ocorrência natural e do potencial de uma reação fatal à transfusão.287–289 Em cavalos, a prova cruzada é recomendada se for necessária uma segunda transfusão mais de 4 a 7 dias após uma primeira ou tiver sido percebida alguma reação durante a primeira. O soro de bovinos tem um mínimo de anticorpos aglutinantes e, em geral, a prova cruzada tem pouco benefício no sentido de prever uma reação a transfusões, a menos que seja realizado um teste hemolítico com complemento.217 Os procedimentos padrão de provas cruzadas295 podem ser encontrados em muitos textos. Agora dispõe-se de um kit em gel para prova cruzada em cães e gatos que simplifica o procedimento (RapidVet®-H, DMS Laboratories Inc., Flemington, NJ).

■ Considerações sobre a transfusão para perda sanguínea maciça A transfusão maciça (TM) envolve a administração de sangue total ou componentes sanguíneos em uma quantidade além do volume sanguíneo do paciente em 24 h ou mais de metade do volume sanguíneo em 3 h.296 As diretrizes convencionais na medicina humana quanto ao tratamento do sangramento incontrolável e à hemorragia excessiva envolveram a administração inicial de líquido cristaloide e coloide para reanimação para manter a pressão arterial e a perfusão tecidual, seguida por 10 ou mais unidades de concentrado de hemácias nas primeiras 24 h, para restaurar a oxigenação dos tecidos.297 Ambos esses processos são de natureza dilucional e a administração de concentrado de hemácias também foi

considerada pró-inflamatória. Estudos recentes em seres humanos mostraram que o aumento na razão de plasma e plaquetas com relação ao concentrado de hemácias no início da fase de reanimação melhora o prognóstico.298–300 Graças a esses avanços recentes, foram elaborados alguns protocolos de TM (também conhecidos como protocolos para sangramento substancial [PSP]).301 Um estudo revelou que o uso de um PSP, a liberação de um protocolo componente fixo (10 unidades de concentrado de hemácias, 4 unidades de PFC e 2 unidades de plaquetas) resultou em uma queda de 74% na mortalidade, diminuída também em 30 dias (51% versus 66%), e no consumo global de hemoderivados.302 Também há evidência de que as razões de hemoderivados em 6 h são mais preditivas de um resultado melhor que as razões em 24 h.303,304 Modelos matemáticos iniciais para estimular pacientes com exsanguinação revelaram subutilização de substitutos de fator da coagulação.305,306 Um modelo305 defendeu uma razão entre PFC e concentrado de hemácias de 2:3 e entre plaquetas e concentrado de hemácias de 8:10, para evitar efeitos de hemodiluição e coagulopatia, enquanto outro modelo306 defendeu uma razão de 1:1:1 para plaquetas, plasma e concentrado de hemácias, próxima da liberação de sangue total. Dados de estudos feitos com militares e civis e a análise em conjunto revelam uma redução significativa na mortalidade quando são usadas razões mais altas de PFC:concentrado de hemácias.298–300 Não há ensaios prospectivos randomizados que especifiquem a razão ideal de hemoderivados para pacientes com sangramento substancial decorrente de traumatismo, porém, com base na evidência presente, parece que a liberação de plaquetas, PFC e concentrado de hemácias em uma razão aproximada de 1:1:1 é capaz de proporcionar melhor reanimação hemostática como parte da reanimação com controle de dano (RCD).307 De acordo com a literatura a respeito do que ocorre em seres humanos, um estudo veterinário realizado com cães que receberam TM mostrou uma taxa de mortalidade alta de 74%, com 100% de mortalidade em cães com tempos de coagulação elevados.296 Outro estudo feito em três gatos que receberam TM revelou 67% de sobrevivência.67 Um cão com laceração aórtica que recebeu TM e 5 unidades de concentrado de hemácias, 3 unidades de PFC e 1,2 ℓ sangue autotransfundido sobreviveu.308

■ Administração de sangue Em decorrência da alta viscosidade do concentrado de hemácias, a administração pode ser facilitada diluindo-se as células com cloreto de sódio a 0,9% morno e usando-se o maior cateter possível para acesso venoso. Os produtos de eritrócitos podem ser aquecidos em uma bolsa vedada de plástico colocada em água a 37°C. Nenhum outro tipo de líquido ou fármacos, exceto cloreto de sódio a 0,9%, deve ser administrado rotineiramente na mesma linha de hemoderivados, em especial líquidos que contenham cálcio. A via ideal de

administração é a intravenosa, mas pode-se usar a intraóssea em neonatos e animais cujo acesso vascular seja difícil. Em cães sadios, mais de 90% dos eritrócitos podem ser vistos na circulação periférica após liberação intraóssea.309 A taxa inicial de administração, em geral, é de 0,25 mℓ/kg nos primeiros 30 min, para o monitoramento de efeitos adversos da transfusão, podendo-se aumentar para 10 a 20 mℓ/kg/h se tais efeitos não forem detectados. Em pacientes com cardiopatia, a taxa deve ser menor e, em gatos, foram descritas taxas de 4 mℓ/kg/h, 10 mℓ/kg/h e 60 mℓ/kg/h em casos de anomalias cardiovasculares, normovolemia e choque hipovolêmico, respectivamente.222 O ideal é terminar a transfusão de sangue em até 4 h, em decorrência do risco potencial de proliferação bacteriana em sangue mantido à temperatura ambiente. Nos contextos de sangramento substancial ou traumatismo, o sangue pode ser administrado o mais rapidamente possível. Isso é mais fácil com o uso de cateteres curtos e calibrosos. Há tipos diferentes de bombas para a administração de um volume especificado em um tempo específico, mas essa técnica de liberação pode influenciar a meia-vida dos eritrócitos transfundidos. Em cães, o uso de uma seringa com bomba foi associado à sobrevivência bem menor (24 h) de eritrócitos transfundidos, em comparação com as técnicas de fluxo por gravidade.310 Em gatos, o uso de uma seringa com bomba e um filtro microagregado (18 μ) não resultou em qualquer diferença a curto prazo (12 h) ou longo prazo (6 semanas) na sobrevivência das células, em comparação com a técnica de fluxo por gravidade.311 O efeito pode não estar relacionado apenas com o uso de uma bomba, mas também com a velocidade do fluxo, a configuração da tubulação e outras variáveis que podem danificar as células. Todos os produtos plasmáticos (PFC, PC, PPC, PRP, CP) também devem ser administrados através de um filtro.

Efeitos adversos da transfusão As reações a transfusões são categorizadas como imunomediadas ou não imunológicas, bem como em agudas ou crônicas.312 As reações imunológicas, em geral, são contra eritrócitos, proteínas plasmáticas, leucócitos ou antígenos plaquetários. Reações hemolíticas agudas a transfusões (RHAT), reações não hemolíticas febris (RNHFT) e reações alérgicas constituem a maioria das reações imediatas. As reações não imunológicas podem estar relacionadas com a administração, contaminação, aditivos e armazenamento. As reações hemolíticas agudas a transfusões caracterizam-se por hemólise intravascular e são reações de hipersensibilidade mediadas primariamente pela IgG. Elas ocorrem por causa das incompatibilidades mediadas por aloanticorpo sensibilizado (como um cão negativo para o DEA 1.1 sensibilizado após receber sangue positivo para o DEA 1.1) ou pela presença de aloanticorpos naturais (como anticorpos anti-A de ocorrência

natural em um gato tipo B). A interação antígeno-anticorpo causa ativação do complemento e de citocinas, podendo resultar em uma resposta inflamatória sistêmica.313 As reações não hemolíticas febris a transfusões (RNHFT) são definidas como um aumento de mais de 1°C na temperatura em 1 a 2 h de transfusão, sem outra explicação.229,312 Essas reações estão associadas principalmente a citocinas derivadas de leucócitos e/ou anticorpos circulantes antileucócito no receptor contra leucócitos do doador. O uso de filtros para leucorredução durante a coleta de componentes sanguíneos diminui a incidência dessas reações.229 É importante monitorar com cuidado os pacientes, porque a febre também pode ser decorrente de contaminação bacteriana da unidade. Se for percebida tal reação, então deve-se fazer a transfusão mais lentamente ou interrompê-la. Caso o único sinal visto seja febre, pode-se recomeçar a transfusão lentamente e considerar a administração de anti-inflamatórios não esteroides. As reações alérgicas resultam de uma reação de hipersensibilidade do tipo I mediada por anticorpo IgE e são causadas por substâncias solúveis existentes no plasma do doador que se ligam a anticorpos IgE pré-formados ou mastócitos no receptor, causando liberação de histamina. Essas reações podem variar de urticária discreta a anafilaxia grave, ocasionando hipotensão e choque. Caso se observe apenas urticária, a transfusão pode ser interrompida temporariamente e administrar-se um anti-histamínico.312 Se a reação for mais grave, a transfusão deve ser suspensa e o paciente tratado conforme necessário com líquidos e/ou fármacos vasoativos. Define-se uma lesão pulmonar aguda relacionada com transfusão (LPART) como dificuldade respiratória com infiltrados bilaterais, hipoxemia (PaO2/FIO2 < 300 mmHg) que ocorre até 6 h após a transfusão, com exclusão clínica de insuficiência cardíaca e outras doenças.313 Em seres humanos, a incidência relatada de LPART foi entre 0,08% e 15%.314 Um estudo recente em pequenos animais revelou incidência de 3,7% de lesão pulmonar aguda veterinária (LPAVet)315 após transfusão, semelhante à incidência de lesão pulmonar aguda em cães criticamente enfermos. Isso foi relatado com o uso de todos os tipos de hemoderivados, mas o PFF foi implicado com maior frequência. Foram propostas duas teorias para explicar a fisiopatologia da LPART.316,317 A primeira sugere ser uma reação mediada por anticorpo, em que anticorpos antigranulócitos do plasma do doador aglutinam os leucócitos do receptor. Essa interação antígeno-anticorpo pode causar ativação do complemento, levando a sequestro pulmonar e ativação de neutrófilos, o que acarreta dano endotelial e extravasamento capilar. A segunda teoria postula que a LPART resulta de dois eventos (hipótese dos ‘dois ataques’), o primeiro sendo a condição clínica do paciente, que causa ativação endotelial e sequestro de neutrófilos. O segundo evento resulta da transfusão de mediadores biologicamente ativos, como lipídios e citocinas, que ativam neutrófilos já sequestrados nos pulmões, levando à

liberação de oxidases e proteases que causam dano às células endoteliais e extravasamento capilar, resultando em LPART. O quadro clínico da LPART é muito semelhante ao da SDRA, com sinais e sintomas que incluem taquipneia, febre, taquicardia e hipoxemia, sem evidência de sobrecarga circulatória. O diagnóstico diferencial inclui SCAT, RHATs, reações anafilactoides e contaminação bacteriana. O tratamento é principalmente de suporte e pode incluir apenas suplementação de oxigênio nos casos menos graves ou ventilação mecânica nos graves. Em geral, a LPART é autolimitante e os pacientes humanos costumam recuperar-se em 96 h. Na medicina humana, o desenvolvimento de LPART tem sido associado particularmente à transfusão de plasma de mulheres parturientes como doadoras, com muito menor incidência ante o uso de plasma de homens e mulheres não parturientes.318 Os aloanticorpos contra eritrócitos não estão aumentados em cadelas com gestações repetidas, mas os aloanticorpos leucocitários não foram estudados.319 As reações não imunológicas agudas à transfusão podem incluir sepse, sobrecarga circulatória, problemas com transfusão maciça e questões de estocagem. Na medicina humana, a contaminação bacteriana de componentes sanguíneos é considerada uma das causas mais comuns de morbidade e mortalidade, variando de 100 a 150 indivíduos que recebem transfusões a cada ano.320 As bactérias podem originar-se de doadores submetidos a triagem inadequada ou do local de punção venosa. Em uma série de casos de 14 gatos, a contaminação de hemoderivados foi ligada a Serratia marcescens, contaminação de um frasco contendo bolas de algodão embebidas em álcool e uma bolsa de solução salina usada durante a venopunção.321 Os sinais de sepse em 6 gatos desse relato incluíram vômito, diarreia, colapso e morte aguda. Caso se suspeite de sepse, a transfusão deve ser interrompida imediatamente, providenciando-se uma coloração de Gram e hemocultura diretamente da unidade e do paciente. Os hemoderivados têm um potencial coloidal significativo e sua administração a animais normovolêmicos ou àqueles com comprometimento cardíaco ou da função pulmonar os predispõe à hipervolemia, conhecida como sobrecarga circulatória associada à transfusão (SCAT). Os sinais clínicos incluem dispneia, cianose, edema pulmonar, aumento da pressão venosa central e distensão da veia pulmonar em radiografias torácicas. O tratamento envolve a interrupção da transfusão, suplementação com oxigênio e diuréticos. Foram descritas em cães complicações metabólicas e hemostáticas similares às observadas em seres humanos após transfusões maciças, tendo incluído hipocalcemia, hipomagnesemia, trombocitopenia, elevações nos tempos de coagulação (TP e TTPA) e hipotermia.296 Ocorrem trombocitopenia e coagulopatia dilucional por causa da diluição de fatores da coagulação e plaquetas com sangue armazenado pobre no fator em questão,

resultando no prolongamento dos tempos de coagulação. O aumento nesses tempos foi um indicador de prognóstico desfavorável no estudo supracitado em cães que receberam TM. É provável que a hipocalcemia e a hipomagnesemia sejam decorrentes da ligação do citrato anticoagulante ao cálcio e ao magnésio ionizados. Após transfusão, o citrato em geral é metabolizado com bastante rapidez pelo fígado, porém, em circunstâncias de administração rápida, pode causar hipocalcemia. Além disso, o metabolismo do citrato pode estar mais lento em pacientes com função hepática deficiente, hipotermia ou baixa perfusão hepática. A hipocalcemia sintomática (tremores musculares, arritmias, hipotensão etc.) deve ser tratada com gliconato de cálcio (50 a 150 mg/kg de solução a 10%) ou cloreto de cálcio (5 a 10 mg/kg de solução a 10%). O sangue armazenado costuma estar a uma temperatura de 4°C e, se administrado sem ser aquecido, inicialmente pode causar arritmias e queda do débito cardíaco, além de hipotermia, embora esses efeitos adversos também dependam da velocidade de administração.322 Durante o armazenamento, os eritrócitos sofrem uma série de alterações biológicas e bioquímicas, conhecidas coletivamente como ‘lesões da armazenagem’. Há depleção progressiva de ATP e 2,3-DPG, menor deformabilidade dos eritrócitos, queda no pH das unidades armazenadas em decorrência da glicólise e aumento do conteúdo de potássio da unidade por causa da lise dos eritrócitos. Em seres humanos, pode ocorrer hiperpotassemia associada a transfusões, mas os eritrócitos da maioria das raças caninas (exceto algumas, como Akita e Shiba Inus) contêm pouco potássio intracelular, de modo que a hiperpotassemia de produtos eritrocitários armazenados é menos problemática na maioria dos cães.323 Foi relatada hiperpotassemia em 20% (2 de 10) dos cães que receberam TM e também em um ao qual foi administrado concentrado de hemácias que tinha 28 dias.296,323 Durante a armazenagem, a formação de coágulos ou a introdução de ar na bolsa pode ocasionar embolia aérea. São usados equipos de tamanho típico de 170 μ com filtro para transfusão sanguínea, de modo a ajudar na remoção de coágulos e detritos. Pode acontecer hemólise não imunomediada por causa de hiperaquecimento, congelamento da bolsa de sangue ou mistura com líquidos hipotônicos. Sinais de hemoglobinemia e/ou hemoglobinúria podem ser notados durante transfusão, sem outros sinais de reação hemolítica aguda à transfusão. Em cães, a incidência de efeitos adversos relacionados com a transfusão mostrou variação de 3,3 a 13%.227,228 Os sinais clínicos descritos em cães podem incluir febre, taquicardia, dispneia, tremores musculares, vômito, fraqueza, colapso, inquietação e salivação. Também podem ser observadas hemoglobinemia e hemoglobinúria nas reações hemolíticas agudas a transfusões. Em gatos, a incidência relatada de reação à transfusão variou de 1,2 a 8,7%.222–224 A maioria dos efeitos adversos foi de RNHFT. Outros sinais clínicos relatados incluíram atrito facial, vômitos, salivação e sobrecarga de volume. Os sinais relacionados com reação hemolítica

aguda à transfusão incluíram pigmentúria, febre e taquipneia. Um estudo em cavalos relatou incidência de 16% (7/44) de efeitos adversos de hemoderivados, que incluíram urticária, anafilaxia (caracterizada por cólica aguda, dispneia e excitação) e hemólise.226 Foi preciso recorrer à eutanásia em um dos cavalos que apresentou reação anafilática aguda. A incidência relatada de reações a transfusões de plasma equino comercial é de 8,7% em potros e 0% em cavalos adultos, tendo incluído febre, taquicardia, taquipneia e cólica.324 Também há relato de hepatite sérica com plasma equino comercial. O plasma equino congelado não comercial foi associado a 10% de reações adversas, que foram de natureza discreta e incluíram urticária, taquicardia, pirexia, taquipneia, prurido grave e tumefação ocular.325 Os efeitos adversos relatados em bovinos incluem tremores, urticária, edema, piloereção, respiração estertorosa, taquicardia, taquipneia, dispneia e movimentos violentos.217,326 Qualquer que seja a espécie, sinais típicos de reação a transfusão em animais conscientes podem ser mascarados ou estar ausentes em animais anestesiados. Em gatos, a meia-vida de eritrócitos transfundidos é de aproximadamente 35 a 38 dias no caso de transfusões compatíveis e diminui para apenas 1 a 2 h se um gato do tipo sanguíneo B receber sangue do tipo A e cerca de 2 dias quando sangue do tipo B é administrado a um gato que tem o tipo A.229 Mostrou-se que a meia-vida de eritrócitos alogênicos transfundidos em bovinos é de 2 a 4 dias, ocorrendo uma perda rápida de 10 a 15% das células nas primeiras 24 h.217 Estudos prévios em que foram empregadas técnicas de marcação radioativa dos eritrócitos revelaram que os eritrócitos transfundidos sobrevivem menos de uma semana em cavalos e às vezes menos de 2 dias, mas um estudo recente feito com eritrócitos marcados com biotina mostrou uma vida média de 20 dias dos eritrócitos em transfusões alogênicas.327 Quando os pacientes estão anestesiados, os efeitos adversos associados a reações a transfusões podem ser mascarados. As diretrizes práticas da American Society of Anesthesiologists recomendam o monitoramento cuidadoso de pacientes para a detecção de urticária, hipotensão, taquicardia, aumento da pressão máxima na via respiratória, hipertermia, hemoglobinúria, queda do débito urinário e evidência de aumento do sangramento vascular.215 Se qualquer um desses for visto, deve-se interromper a transfusão e solicitar os exames diagnósticos apropriados.

Alternativas a transfusões sanguíneas alogênicas Por causa das complicações potenciais associadas ao uso de hemoderivados alogênicos e para ajudar a conservá-los, foram verificadas estratégias alternativas para reduzir a necessidade deles em contextos perioperatórios.

■ Transfusão autóloga Consiste na transfusão para o próprio paciente do qual se colheu sangue previamente. Ao se fazer isso, os riscos associados à transmissão de doenças infecciosas ou reações à transfusão são minimizados. Foram exploradas três formas de estratégias de transfusão autóloga. A doação pré-operatória de sangue autólogo (DPSA) constitui um suprimento seguro de sangue para pacientes destinados a um procedimento cirúrgico eletivo que poderia associar-se a perda sanguínea significativa. Os pacientes doam o próprio sangue, que é armazenado para uso neles mesmos. Dados de metanálises feitas com seres humanos sobre a DPSA revelaram uma redução de 63% nas transfusões sanguíneas alogênicas, mas um aumento geral de 30% na transfusão (alogênica e autóloga) de eritrócitos em pacientes que fizeram a doação. Foi relatado um declínio médio de 1,23 g/dℓ na hemoglobina do paciente antes da DPSA ou imediatamente antes da cirurgia.328–330 O uso de DPSA foi descrito especialmente em cirurgias para substituição total do quadril em seres humanos.331 Na medicina veterinária, a DPSA foi descrita em cavalos com cirurgias sinusais marcadas e em gatos submetidos a craniotomias.332,333 Em gatos, o tempo médio desde a doação até a cirurgia foi de 12 dias. O hematócrito mediano antes da doação era de 30% (aproximadamente 10 g de hemoglobina/dl) e antes da cirurgia foi de 26% (aproximadamente 8,7 g de hemoglobina/dl), uma queda (1,3 g/dℓ) similar à relatada em seres humanos.328,333 No pré-operatório, observou-se anemia discreta em 3 de 15 gatos. Desses 15 que receberam uma transfusão autóloga no perioperatório, 11 não precisaram de transfusão alogênica. Algumas limitações inerentes dessa técnica incluíram a necessidade de planejamento avançado, levantamento de custos, necessidade de sedação em pacientes veterinários, risco de contaminação bacteriana, e alguns pacientes podem ter anemia peroperatória e maior probabilidade de precisar de transfusão. Além disso, o gasto desnecessário relatado de unidades de DPSA variou de 18 a mais de 50% em seres humanos.334,335 Esse desperdício pode ser diminuído com o uso da unidade de DPSA em outros animais, porém isso exigiria triagem para doenças infecciosas, tipagem sanguínea e provas cruzadas, todas dispendiosas. A hemodiluição normovolêmica aguda (HNA) abrange a retirada de sangue total do paciente antes da perda sanguínea cirúrgica esperada. É feita antes ou após a indução anestésica. O volume sanguíneo circulante é restaurado usando-se cristaloides ou coloides em uma razão de 3:1 ou 1:1, respectivamente. O sangue é colhido em bolsas padronizadas e armazenado na sala de operações à temperatura ambiente. O sangue colhido é administrado até 6 a 8 h depois, de modo que há pouca deterioração de plaquetas e fatores da coagulação. O principal benefício da HNA é a redução da perda de eritrócitos quando há perda de sangue total com queda do hematócrito após se completar a HNA. Uma diminuição na viscosidade sanguínea causada pela hemodiluição diminui a resistência

periférica, e o débito cardíaco pode estar aumentado. Embora o conteúdo arterial de oxigênio (CaO2) esteja diminuído, é mantido pelo aumento no débito cardíaco. Ao se realizar a HNA, é comum ter como objetivo um hematócrito de 25%, mas isso deve ser ditado pela perda sanguínea esperada, pelo estado volumétrico preexistente, pelo tipo de procedimento cirúrgico, pelo Htc antes da HNA, pela presença de quaisquer outras comorbidades e pelas normas institucionais. Para se calcular a quantidade de sangue que poderia ser colhida para se conseguir o Htc visado, pode-se usar a seguinte fórmula:

em que VSC é o volume sanguíneo circulante, calculado como o peso corporal (kg) vezes o volume de sangue (mℓ/kg), Ho é o Htc original do paciente antes da HNA, Hf é o Htc visado e Hav é a média entre o Ho e o Hf. Em seres humanos, a HNA foi utilizada com sucesso durante procedimentos cirúrgicos para prostatectomia radical, artroplastia do quadril e do joelho e cirurgias vasculares. Foi relatada uma queda relativa de 31% na frequência de transfusão alogênica.328,336–339 A transfusão autóloga com a metodologa de salvamento de células é uma técnica pela qual o sangue perdido no intra e no pós-operatório é colhido, lavado e administrado ao paciente. Métodos relativamente simples de salvamento de sangue incluem o uso de pontas estéreis de aspiração a vácuo ou uma seringa e um sistema de tubos para aspiração de sangue, conectado a um reservatório para coleta. Se o sangue tiver tido contato com superfícies serosas por mais de 1 h, ocorre desfibrinação, que exclui a necessidade de um anticoagulante, mas, quando o sangue é colhido de um local de hemorragia recente e rápida, é necessário anticoagulante. O sangue colhido por esses métodos deve ser transfundido até 4 a 6 h após a coleta, em comparação com a HNA, que pode ser mantida até por 8 h. O uso de um sistema separador celular semiautomatizado para autotransfusão (Electa Autotransfusion Cell Separator, Dideco, Mirandola, Itália) foi descrito em uma série de casos de cães com hemoabdome.340 O sangue é diretamente aspirado do campo cirúrgico em um reservatório onde ocorre a mistura automática com anticoagulante. Em seguida, é movido para um sistema de centrifugação, processo denominado ‘priming’, após o qual é feita a ‘lavagem’ para remover plasma, fatores de coagulação ativados, anticoagulantes, complemento e medicações sistêmicas. Depois de completada a fase de lavagem, a de ‘esvaziamento’ move o sangue para uma bolsa de reinfusão. Os autores especularam que o uso da técnica citada os capacitou a reduzir a necessidade de transfusão. Metanálises em seres humanos mostraram que as técnicas de salvamento de células levaram a uma redução

relativa de 38% e absoluta de 21% no risco de exposição à transfusão alogênica de eritrócitos.341 Usa-se um filtro de leucorredução na linha durante a transfusão de células salvas para diminuir a contagem de células nucleadas e a carga bacteriana liberada para o paciente. Em seres humanos, as soluções com células salvas usadas para administração são iguais ou superiores às unidades de bancos de sangue com relação à morfologia celular, ao pH, à resistência osmótica do eritrócito e aos níveis de 2,3-DPG.342,343 Em geral, a contraindicação para o uso dessas técnicas é no caso de pacientes com neoplasia, para evitar disseminação hematogênica iatrogênica. No entanto, esse risco é reduzido conforme o processo de salvamento celular e o uso de filtros de leucorredução para remover células tumorais. Os estudos realizados em seres humanos falharam em documentar o aumento de quaisquer prognósticos adversos quando foram empregadas técnicas de salvamento celular em contextos perioperatórios oncológicos.343–346 Septicemia não parece ser uma complicação importante do salvamento celular.344,347 Deve-se evitar a autotransfusão se forem usados métodos menos sofisticados de autotransfusão e suspeitar-se de contaminação entérica ou o hemoabdome for decorrente da suspeita de um hemangiossarcoma esplênico. Para evitar hemólise como resultado da técnica de coleta, recomenda-se manter a agulha ou a ponta de aspiração abaixo da superfície do sangue, para evitar dano à interface de ar e manter o vácuo nos ajustes máximos, entre 100 e 300 mmHg.348 A ‘síndrome do salvamento celular’ pode ser uma consequência de lavagem inadequada dos eritrócitos e rotação de proteínas plasmáticas, citocinas inflamatórias, complemento, hemoglobina livre e produtos da degradação da fibrina, que poderiam causar coagulação intravascular disseminada, SDRA, lesão renal aguda e óbito.349

■ Substitutos do sangue O uso de soluções que transportam oxigênio como uma alternativa à transfusão sanguínea vem sendo pesquisado há décadas. As primeiras versões de transportadores de oxigênio baseados na hemoglobina (TOAH) foram associadas a efeitos nefrotóxicos e a uma meiavida intravascular curta.350 Isso melhorou com a ultrapurificação para remover elementos estromáticos dos eritrócitos e polimerização de unidades de hemoglobina com glutaraldeído (Oxyglobin®, HBOC-200, Biopure Corporation, Cambridge, Mass.).351,352 Oxyglobin® é o único produto aprovado clinicamente para uso em cães e é uma solução de hemoglobina derivada de glutaraldeído bovino polimerizado ultrapurificado,352 fornecida como uma solução coloide estéril de cor púrpura em uma embalagem de 60 ml ou 125 ml que contém uma concentração de hemoglobina de 13 g/dℓ em uma solução de lactato de Ringer modificada com pH de 7,8 e osmolalidade de 300 mOsm/kg. Aproximadamente 50% dos polímeros de Hb têm peso molecular entre 65 e 130 kDa, com apenas 10% acima

de 500 kDa e o médio é de 200 kDa. Estudos da farmacocinética da Oxyglobin® em cães revelaram uma meia-vida plasmática terminal dependente da dose de 18 a 43 h para uma variação de dose entre 10 e 30 mℓ/kg.353 A administração a cães sadios de doses de 8,5 mℓ/kg, 21 mℓ/kg e 42,5 mℓ/kg a uma velocidade de 7 mℓ/kg/h revelou meia-vida média de eliminação de 22, 30 e 38 h, respectivamente. A depuração plasmática e o volume de distribuição também estiveram relacionados com a dose, e a depuração individual de componentes da Hb do plasma foi inversamente proporcional ao tamanho (dímero > tetrâmero > octâmero).354,355 A maior parte da dose é depurada do plasma 5 a 9 dias após a infusão. A farmacocinética da Oxyglobin® foi descrita em cavalos após uma única dose de 250 ml (32,5 g), com meiavida de eliminação mediana de 1,3 h para pequenos agregados e 12 h para grandes agregados de hemoglobina.356 O sistema reticuloendotelial é responsável pela metabolização da Oxyglobin®, e os tetrâmeros e dímeros instáveis que constituem menos de 5% da Oxyglobin® são excretados pelos rins. A Oxyglobin® tem uma P50 maior (34 mmHg), em comparação com a do sangue canino, que é de aproximadamente 28 mmHg, e menor viscosidade (1,3 versus 3,5 centipoises), em comparação com a do sangue total. A curva de dissociação da Oxyglobin® fica à direita da curva de dissociação da hemoglobina canina, o que resulta em uma descarga melhor de oxigênio da Oxyglobin® para os tecidos. Após hemodiluição isovolêmica aguda em cães, a administração de HBOC-201 (Hemopure®, um produto similar estudado para uso em pacientes humanos) resultou em uma extração proporcionalmente maior de oxigênio, em comparação com a transfusão de eritrócitos autólogos.357 A administração de HBOC-201 também restaurou a tensão de oxigênio da musculatura esquelética para perto do nível basal em um modelo canino de estenose arterial artificial.358 A hemoglobina bovina utiliza Cl– em vez de 2,3-DPG como um modulador alostérico para modificar o transporte e a afinidade do oxigênio, do dióxido de carbono e dos íons hidrogênio, outra vantagem sobre o sangue armazenado, tipicamente pobre em 2,3-DPG. A Oxyglobin® tem propriedades vasopressoras por causa da retirada do óxido nítrico, da suprarregulação de endotelinas e da melhor autorregulação arteriolar decorrente de aumentos na liberação de oxigênio.359 Foi relatado aumento na resistência vascular sistêmica em cães e pôneis.360,361 Em um modelo de choque hemorrágico canino, em comparação com heta-amido, a administração de HBOC na dose de 30 mℓ/kg resultou em uma reversão mais rápida da hipóxia tecidual, caracterizada por reversão da acidose metabólica esplâncnica e sistêmica e resolução da lactatemia, mas não se observou aumento algum na liberação sistêmica e mesentérica de oxigênio. Essa reversão rápida do metabolismo anaeróbico apesar da ausência de aumento na liberação de oxigênio deve-se

potencialmente à facilitação da liberação de oxigênio pelo HBOC no nível da microcirculação, não a um aumento no conteúdo de oxigênio e à liberação volumosa de oxigênio para a microcirculação.362 As vantagens nítidas da Oxyglobin® envolvem uma variação ampla na temperatura de armazenamento (2 a 30°C), meia-vida longa de 3 anos a partir da data de fabricação e nenhuma necessidade de prova cruzada. Graças à ausência de membrana eritrocitária antigênica, não se espera resposta antigênica alguma à sua administração. Quando administrada na dose de 10 mℓ/kg, a Oxyglobin® produziu anticorpos IgG em cães por volta de 6 semanas depois, com o título mais alto tendo sido alcançado cerca de 10 semanas após a terceira transfusão, mas não foi notada deposição seletiva de anticorpos no fígado ou nos rins, e os anticorpos circulantes não diminuíram a capacidade de transporte de oxigênio da Oxyglobin®.363 Em pacientes cirúrgicos humanos, mostrou-se que os HBOCs diminuem as transfusões sanguíneas alogênicas.364,365 A Oxyglobin® está aprovada para o tratamento da anemia em cães,366,367 mas foi usada fora da recomendação da bula para tratar o mesmo problema em gatos368–370 e seu uso em pôneis também foi descrito.361 Em gatos, o uso fora da bula deveu-se à indisponibilidade de hemoderivados felinos, de doadores de sangue compatíveis e às dificuldades na tipagem sanguínea por causa da aglutinação de eritrócitos.368,369 Os efeitos colaterais observados em gatos incluíram taquipneia, alteração na cor de mucosas, pigmentúria, vômitos, anormalidades neurológicas, edema pulmonar e efusão pleural.368,369 Alguns gatos368 que tiveram edema pulmonar ou efusões pleurais já tinham antes um ou as outras, e, em outro estudo,369 todos os gatos que tiveram edema pulmonar tinham evidência de patologia cardíaca. No estudo inicial,368 gatos que desenvolveram sobrecarga circulatória receberam uma dose mediana de Oxyglobin® de 20,6 mℓ/kg, enquanto os gatos com patologia cardíaca369 que receberam 12,3 mℓ/kg em 24 h tiveram sobrecarga circulatória. A Oxyglobin® deve ser usada com cuidado em gatos, porque muitos deles com miocardiopatia podem não exibir sinais clínicos francos. Além disso, é recomendável o monitoramento da pressão venosa central, da frequência respiratória e da distensão venosa jugular como indicadores gerais de sobrecarga.368,369 Dentre sete pôneis que receberam Oxyglobin®, um apresentou uma reação anafilactoide, caracterizada por prurido intenso, taquicardia e taquipneia.361 A dose recomendada para cães é de 10 a 30 mℓ/kg, com a velocidade de administração não ultrapassando 10 mℓ/kg/h e, para gatos, a recomendação é manter a velocidade de 5 mℓ/kg/h ou menos, para minimizar o risco de sobrecarga circulatória. Menos de 5% da Oxyglobin® estão presentes como dímeros instáveis que são excretados rapidamente na urina. Sua eliminação pode tingir a urina de vermelhoalaranjado por 4 a 6 h após a administração, tempo durante o qual as estimativas de parâmetros urinários (p. ex., pH, proteína, glicose, cetonas) não são confiáveis. Também

pode ocorrer alteração transitória da cor das escleras e da pele. O perfil bioquímico sérico com base nas estimativas colorimétricas não costuma ser válido. Deve-se usar uma bolsa aberta em 24 h, por causa do potencial de formação de meta-hemoglobina e de contaminação bacteriana.

Estratégias para minimizar a perda sanguínea peroperatória Os inibidores seletivos e não seletivos da enzima ciclo-oxigenase (COX), incluindo o carprofeno, o meloxicam, o deracoxibe e o ácido acetilsalicílico (aspirina), podem prejudicar a hemostasia ao inibirem a função plaquetária em níveis variáveis.371–373 Além disso, fármacos antiplaquetários como o clopidogrel também inibem a função das plaquetas, com os efeitos em gatos durando aproximadamente 7 dias após o término da administração.374 Se clinicamente aceitável, a administração desses fármacos deve ser interrompida no pré-operatório. Para cirurgia eletiva, as diretrizes práticas da American Society of Anesthesiologists recomendam interromper o tratamento anticoagulante, se possível, e/ou adiar a cirurgia o suficiente para que os efeitos do fármaco diminuam.215 A desmopressina pode melhorar a hemostasia em procedimentos invasivos, como biopsia e cirurgia. Mostrou-se que o uso de acetato de desmopressina (DDVAP) melhora a hemostasia primária em cães com disfunção plaquetária induzida pelo ácido acetilsalicílico, doença de von Willebrand e hepatopatia crônica.375,376 Fármacos antifibrinolíticos previnem a ruptura de coágulos. Em seres humanos, seu uso foi associado à redução significativa na perda sanguínea durante e após cirurgia.377,378 A aprotinina resultou em uma diminuição de 34% na probabilidade de necessidade relativa de transfusão de eritrócitos e pareceu mais efetiva que os análogos da lisina, os ácidos épsilonaminocaproico e tranexâmico. Na literatura veterinária, dois estudos379,380 demonstraram o uso do ácido épsilon-aminocaproico em Greyhounds retirados de corridas submetidos a amputação e gonadectomia, tendo sido associado a perda sanguínea pós-operatória significativamente menor. As diretrizes práticas da American Society of Anesthesiologists não recomendam o uso rotineiro desses agentes, mas sugerem que eles podem ser usados para diminuir a necessidade de transfusão sanguínea alogênica em pacientes sob alto risco de sangramento excessivo.215 A manutenção de uma normotermia próxima do normal é importante no período peroperatório, porque a hipotermia pode aumentar a perda sanguínea cirúrgica.381 Nos procedimentos eletivos de artroplastia do quadril, uma queda de 1,6°C na temperatura corporal central resultou em aumento de 500 ml da perda sanguínea e aumento significativo da necessidade de transfusão alogênica de sangue.382,383 A hipotermia pode

influenciar adversamente tanto a função plaquetária como a atividade dos fatores da coagulação.384,385 É importante lembrar que muitos fatores além da temperatura corporal podem interagir para aumentar a perda sanguínea operatória. As transfusões no contexto peroperatório podem salvar a vida quando usadas corretamente. É crucial escolher os componentes apropriados, fazer a tipagem sanguínea e a prova cruzada para minimizar o risco de reações, monitorar com cuidado outras reações e usar técnicas adjuvantes para reduzir a necessidade de transfusão alogênica. O uso de transfusão autóloga e salvamento celular pode melhorar nossa capacidade de aprimorar a liberação de oxigênio.

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22 Fisiologia Cardiovascular 23 Medida do Débito Cardíaco 24 Anestesia por Derivação Cardiopulmonar 25 Marca-passos Cardíacos e Anestesia 26 Fisiologia e Administração Anestésica em Pacientes com Doença Cardiovascular

Introdução Sistema circulatório Sistema cardiovascular | Peixes, anfíbios e répteis Sistema cardiovascular | Aves e mamíferos Sangue Sistema linfático Circulações especiais Circulação coronariana Circulação pulmonar Circulação esplâncnica Hemorreologia Impedância Turbulência Hemodinâmica Ciclo cardíaco e alça de pressão e volume Determinantes do desempenho e do débito cardíacos Pré-carga Pós-carga Contratilidade Relaxamento Acoplamento ventricular-vascular Acoplamento fisiológico e matemático Mecanismos neuro-humorais e de controle local

Controle neuro-humoral Mecanismos humorais Sistemas de controle local Liberação e captação de oxigênio Referências bibliográficas

Introdução As designações de sistema circulatório e sistema cardiovascular são usadas em referência a um sistema orgânico que consiste em coração, vasos sanguíneos e linfáticos, sangue e linfa. A finalidade do sistema cardiovascular é fazer o sangue circular, bem como outros materiais essenciais, em especial o oxigênio, para as células e remover os produtos de degradação. O oxigênio é o combustível que sustenta a vida e todos os tecidos. O coração e o cérebro são particularmente dependentes da disponibilidade contínua de oxigênio para manterem normais suas respectivas funções metabólicas e atividades celulares. Períodos relativamente breves (2 a 3 min) de anoxia cerebral ou cardíaca, por exemplo, podem ter consequências devastadoras que colocam a vida em risco, mesmo que o fluxo sanguíneo seja restabelecido. Em termos mais específicos, a principal função (1) do coração é bombear sangue; (2) da vasculatura é transportar o sangue e facilitar a perfusão tecidual e os processos de troca celular; (3) do sangue é de transporte (oxigênio, dióxido de carbono, nutrientes, detritos, hormônios), regulação (do pH, da temperatura, do equilíbrio hídrico) e proteção (mecanismos da coagulação, resposta imune) do corpo contra perda sanguínea e invasores estranhos; e (4) da linfa é trazer de volta para a circulação o plasma filtrado, defender contra antígenos e transportar líquido e gordura a partir do intestino. Em termos esquemáticos, o sistema cardiovascular dos mamíferos é um circuito que compreende as duas circulações (sistêmica e pulmonar) em série (Figura 22.1). O sangue oxigenado que retorna dos pulmões entra no átrio esquerdo e em seguida no ventrículo esquerdo. O sangue é então bombeado para a aorta que, em conjunto com uma trama elaborada de grandes condutos (artérias), o distribui para todo o corpo. As extremidades terminais dessas grandes artérias, as arteríolas, regulam o fluxo sanguíneo de maneira diferenciada e o oxigênio é liberado de acordo com as necessidades dele nos tecidos, originando vasos menores, os capilares, que constituem os principais locais para a transferência de oxigênio e nutrientes para os tecidos e a remoção dos subprodutos que acabam desaguando no átrio direito e, em seguida, no ventrículo direito. O sangue é então bombeado para os pulmões, completando o circuito. A circulação do sangue depende de um coração funcional, vasos sanguíneos normais e

um volume sanguíneo adequado, e funciona para manter um ambiente interno constante (meio interior) para todas as células vivas. Como o fluxo sanguíneo é responsável pela captação, pela liberação e pela eliminação de todos os anestésicos, são necessários um entendimento fundamental e a apreciação da função cardiovascular e da dinâmica circulatória para a prática anestésica segura. Neste capítulo, vamos rever a anatomia e a fisiologia do sistema cardiovascular dos mamíferos e descrever ou resumir os efeitos gerais da anestesia e dos anestésicos, quando for o caso. Uma descrição da estrutura, da função e da fisiologia do coração, dos vasos sanguíneos e linfáticos e do sangue é acompanhada por uma revisão da hemorreologia, da hemodinâmica, dos mecanismos de controle locais e neuro-humorais, bem como do equilíbrio entre a liberação e o consumo de oxigênio. Foi incluída uma breve revisão do sistema circulatório de espécies exóticas, para comparação e por causa de sua prevalência crescente como animais de estimação.

Sistema circulatório Todos os animais têm um sistema circulatório, embora isso possa variar bastante entre os gêneros. A American Veterinary Medical Association (AVMA) lista peixes, furões, coelhos, hamsters, aves, gerbilos, roedores, rãs, tartarugas, cobras e lagartos, entre outros, como espécies exóticas. Várias dessas espécies têm um único sistema circulatório e nem todas têm um coração com quatro câmaras (Figura 22.2). Está além do âmbito deste capítulo uma discussão sobre as opiniões atuais sobre a arquitetura dos sistemas circulatórios, ‘aberta’ ou ‘fechada’, e as características circulatórias exclusivas do sistema circulatório de cada espécie, porém agora é considerada inadequada a ideia de que o coração e a circulação de anfíbios e répteis (com três câmaras; desvios cardíacos e vasculares) sejam etapas intermediárias funcionalmente ineficientes para o coração de quatro câmaras das aves e dos mamíferos.1,2 É mais provável que os desvios cardíacos e vasculares representem um traço fenotípico adaptativo, que confere aos répteis a capacidade de regular o fluxo sanguíneo, dependendo das necessidades respiratórias. Segue-se uma visão geral do sistema cardiovascular de peixes, anfíbios e répteis.

Figura 22.1 O sistema circulatório abrange o coração, o sangue e duas circulações (a pulmonar e a sistêmica). Circulação pulmonar: a artéria pulmonar leva o sangue do ventrículo direito (VD) para os pulmões, onde o dióxido de carbono é eliminado e o oxigênio é captado. O sangue oxigenado retorna ao átrio esquerdo (AE) via veias pulmonares. Circulação sistêmica: o sangue é bombeado pelo ventrículo esquerdo (VE) para a aorta, que o distribui para os tecidos periféricos. O oxigênio e nutrientes são trocados por dióxido de carbono e outros subprodutos do metabolismo tecidual nos leitos capilares. O sangue retorna ao átrio direito (AD) pelas vias sistêmicas. Fonte: modificada da referência 55. (Esta figura encontrase reproduzida em cores no Encarte.)

■ Sistema cardiovascular | Peixes, anfíbios e répteis O coração dos peixes bombeia o sangue em uma única alça através de todo o corpo. Considera-se que tenham um sistema de ciclo único (uma ‘circulação’) ou sistema circulatório de alça fechada. O coração consiste em quatro partes: duas câmaras primárias, uma entrada e uma saída (Figura 22.2). Os anfíbios e a maioria dos répteis têm um coração de três câmaras e considera-se que seu sistema circulatório é ‘duplo’ (arterial e venoso). O ventrículo é separado incompletamente em duas bombas. O sangue que retorna para o coração é bombeado para os pulmões, a pele e circulação sistêmica. Portanto, uma mistura de sangue oxigenado e desoxigenado é bombeada para a circulação sistêmica. O coração de muitos répteis, inclusive tartarugas, cobras e lagartos, consiste em dois átrios e um único ventrículo com uma crista muscular distintiva ainda incompleta, que age dividindo o ventrículo em duas câmaras principais e minimiza a mistura do sangue oxigenado com o desoxigenado.2,3 A artéria pulmonar e os arcos aórticos direito e esquerdo originam-se de locais anatômicos específicos (cavo pulmonar; cavo venoso do ventrículo “único”; não mostrados) (Figura 22.2). Ocasionalmente, o seio venoso é considerado uma câmara adicional que classifica o coração não crocodiliano como um órgão atípico “de quatro câmaras”.4 A artéria pulmonar é equipada com um esfíncter muscular que, quando se contrai, desvia o fluxo sanguíneo através do septo ventricular incompleto para o ventrículo esquerdo e para fora da aorta, causando um desvio da direita para a esquerda (D–E), que se estima equivalha a 60 a 70% do retorno venoso. Tanto a resistência vascular arterial pulmonar e sistêmica como o grau de desenvolvimento da crista muscular controlam a magnitude e a direção do desvio cardíaco em répteis.2 Por exemplo, durante a diástole, o sangue desoxigenado mistura-se com o oxigenado, mas não durante a sístole, quando o processo de contração faz o ventrículo funcionar como uma bomba de pressão de câmara dupla. As características anatômicas citadas determinam a direção em que o fluxo sanguíneo é desviado e acredita-se que tenham funções fisiológicas importantes, incluindo o desvio D–E durante o mergulho e a interrupção da respiração (Tabela 2.1). Tanto o mergulho como a interrupção da respiração aumentam a resistência vascular periférica,

resultando em bradicardia, uma resposta normal em répteis, levando ao redirecionamento do fluxo sanguíneo para o cérebro e o coração. Nesses animais, a glicólise aeróbica passa a ser anaeróbica durante a suspensão demorada da respiração, resultando em acidemia, restrição do fluxo sanguíneo pulmonar e desvio D–E do sangue, para assegurar que o fluxo sanguíneo continue para a circulação sistêmica.3 A volta à respiração normal reverte esses eventos, diminuindo a resistência pulmonar, aumentando a frequência cardíaca e reduzindo o desvio D–E. As alterações fisiológicas descritas podem ser induzidas farmacologicamente por anestésicos dissociativos (cetamina, tiletamina), agonistas do receptor adrenérgico α2 (medetomidina, dexmedetomidina) ou propofol e devem ser esperadas.3 A ventilação com pressão positiva pode ajudar a minimizar o desvio D–E e manter a oxigenação tecidual adequada. A circulação sistêmica dos répteis, como em outros vertebrados, consiste em vasos arteriais, venosos e linfáticos. As cobras têm um plexo venoso vertebral (PVV), que compreende uma rede de veias espinais, localizadas dentro e em torno da coluna vertebral. O plexo é sustentado pelos ossos circundantes, fornecendo uma rota para retorno venoso e a manutenção do suprimento cerebral.3 Um sistema renal-porta é encontrado em aves, anfíbios, répteis e peixes, mas não em mamíferos. Nas espécies com esse sistema, o sangue venoso que retorna da cauda e dos membros posteriores pode ser filtrado nos rins e no fígado. Valvas localizadas entre as veias abdominais e femorais regulam o fluxo sanguíneo através dos rins, em especial durante os momentos de conservação de água. Em geral, a administração parenteral de fármacos potencialmente nefrotóxicos na cauda ou nas extremidades caudais não é recomendável.4 Todavia, a administração de fármacos não nefrotóxicos nas extremidades caudais não implica risco.5 Os répteis têm um sistema linfático, mas não têm linfonodos. Os vasos linfáticos têm dilatações musculares conhecidas como ‘corações linfáticos’, que propelem o líquido para o sistema venoso.4,5

Figura 22.2 Aspectos comparativos dos diferentes sistemas circulatórios. Notar o forame de Panizza nos crocodilianos. Fonte: modificada da referência 2. Reproduzida, com autorização, de American Physiology Society. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) Tabela 22.1 Funções fisiológicas hipotéticas do desvio cardíaco. Função fisiológica

Direção do desvio

Poupa energia cardíaca

D–E

“Mede” as reservas pulmonares de oxigênio

D–E

Reduz o fluxo de CO2 nos pulmões

D–E

Reduz a filtração do plasma nos pulmões

D–E

Facilita o aquecimento

D–E

Dispara o hipometabolismo

D–E

Facilita a secreção de ácido no estômago e a digestão

D–E

Facilita a eliminação de CO2 nos pulmões*

E–D

Minimiza a desproporção V/Q*

E–D

Melhora o transporte sistêmico de O2*

E–D

Oxigenação miocárdica*

E–D

D–E, da direita para a esquerda (desvio pulmonar); E–D, da esquerda para a direita (desvio sistêmico). *As funções hipotéticas do desvio E–D aplicam-se apenas a tartarugas, cobras e lagartos. Répteis crocodilianos não podem desenvolver esses desvios, por causa da sua anatomia; ver detalhes no texto. A anatomia circulatória dos crocodilianos é única entre os répteis e é similar à das aves e dos mamíferos (quatro câmaras separadas), o que impede o desvio cardíaco D–E. Contudo, os crocodilianos retêm o sistema do arco aórtico duplo encontrado em muitos répteis.2 O arco aórtico esquerdo origina-se do ventrículo direito, próximo da artéria pulmonar, e o arco aórtico direito origina-se do ventrículo esquerdo. É importante que os arcos aórticos esquerdo e direito dos crocodilianos comuniquem-se via forame de Panizza, localizado perto do coração e via uma anastomose no abdome (Figura 22.2). Esse arranjo anatômico permite que o sangue venoso sistêmico desvie da circulação pulmonar. Conforme sugerido antes, os desvios D–E e os da esquerda para a direita (E–D) podem ter consequências anestésicas importantes (Tabela 22.1). Um desvio D–E impede que o fluxo sanguíneo passe pelos pulmões, levando o sangue desoxigenado de volta para a circulação sistêmica, enquanto um desvio E–D faz o sangue venoso pulmonar (oxigenado) recircular de volta para a circulação pulmonar. Não se acredita que o desvio E–D fisiológico em répteis contribua para a sobrecarga da circulação pulmonar, em decorrência da capacidade do sangue de fazer um desvio E–D ou D–E, embora possa contribuir para a supercirculação pulmonar em mamíferos. O tônus autônomo, substâncias neuro-humorais e a atividade do estiramento pulmonar e dos quimiorreceptores controlam a resistência vascular sistêmica e pulmonar em répteis, que por sua vez controla a frequência cardíaca, o volume sanguíneo ventricular e a contratilidade ventricular. Juntos, esses fatores determinam a direção e a magnitude do desvio cardíaco. O estado ventilatório (em particular nos animais que mergulham), a termorregulação, a alimentação e a digestão também influenciam o desvio cardíaco, embora não se saiba exatamente até que ponto. Por exemplo, a maioria dos répteis respira intermitentemente, com longos períodos de apneia. O tônus parassimpático aumenta durante a apneia, resultando em bradicardia e aumento da resistência vascular pulmonar, o que promove o desenvolvimento de desvio D–E.2 Taquicardia, diminuição da resistência vascular pulmonar e um aumento no desvio E–D coincidem com períodos de ventilação.2 Os desvios intrapulmonares ou intracardíacos (malformação congênita) podem afetar o início e o término dos efeitos anestésicos, em particular quando são administrados

anestésicos inalatórios. A velocidade da indução com um anestésico inalatório é determinada pela rapidez com que a pressão parcial do anestésico é alcançada no cérebro, que, por sua vez, é determinada pela taxa de influxo do anestésico para os pulmões, a taxa de transferência do anestésico para o sangue e a taxa de transferência do anestésico do sangue arterial para o cérebro. Um desvio E–D tem efeito mínimo ou nenhum sobre o início do efeito ou a eliminação dos anestésicos inalatórios em mamíferos (Boxe 22.1). A velocidade de indução do anestésico inalatório é inalterada, mesmo que a recirculação do sangue através dos pulmões promova uma velocidade mais rápida de aumento na pressão parcial alveolar. A velocidade de indução pode ser aumentada após a administração intravenosa de um anestésico, por causa da transferência imediata do fármaco injetável para a circulação sistêmica e o cérebro. Um desvio D–E deve alentecer a velocidade da indução anestésica com inalatório e sua eliminação, efeito que deve ser mais pronunciado com os anestésicos menos solúveis (isofluorano, sevofluorano, desfluorano) que com os mais solúveis (halotano). Isso ocorre por causa do efeito dilucional do sangue desviado, que contém o anestésico volátil, sobre a pressão parcial do anestésico vindo dos alvéolos ventilados. Contudo, a captação alveolar de anestésicos voláteis altamente solúveis é suficiente para anular parcialmente o efeito dilucional. Em geral, espera-se que os anestésicos com alto coeficiente de partição sangue-gás (baixa solubilidade) causem indução e recuperação mais rápidas em mamíferos normais sem desvio D–E. Por exemplo, a indução anestésica e a eliminação do anestésico em suínos sadios são mais rápidas com o desfluorano menos solúvel que com o sevofluorano, que é mais rápido que o isofluorano.6 Todavia, a velocidade de captação de anestésico e a de indução em animais com desvios intracardíacos de ocorrência natural deve ser retardada, assim como a de eliminação. Um estudo comparando os efeitos do isofluorano, do sevofluorano e do desfluorano em iguanas-verdes (Iguana iguana) (desvio D–E de 60 a 70%) não conseguiu demonstrar diferenças significativas na farmacocinética em qualquer evento de indução ou recuperação com esses três fármacos, tendo sugerido que é possível obter-se uma farmacocinética mais favorável alterando-se a temperatura corporal, a pré-carga cardíaca, o tônus vagal, o padrão ventilatório e a pressão parcial de oxigênio no sangue, para diminuir a fração do desvio D– E.7 Boxe 22.1 Efeito de desvios intracardíacos sobre a indução anestésica.

Desvio E–D: Anestésico IV: pouco efeito sobre a indução Anestésico volátil: pouco efeito sobre a indução

Desvio D–E: Anestésico IV: indução rápida, o sangue desvia dos pulmões e vai para o cérebro Anestésico volátil: indução mais lenta

■ Sistema cardiovascular | Aves e mamíferos O coração de aves e mamíferos é composto por quatro câmaras: dois átrios de parede fina, separados por um septo interatrial, e dois ventrículos de parede espessa, separados por um septo interventricular. O sistema respiratório exclusivo das aves, incluindo a presença de sacos aéreos, facilita a troca de gases durante o ciclo respiratório e tem implicações importantes com relação aos anestésicos inalatórios, discutidas em outra parte deste texto. A discussão a seguir tem como foco a anatomia cardiovascular dos mamíferos. Coração | Anatomia Os limites das câmaras cardíacas em mamíferos são facilmente definidos pelas grandes veias (cavas cranial e caudal), que trazem o sangue de volta para o átrio direito; as veias pulmonares menores, que trazem sangue oxigenado de volta para o pulmão e o átrio esquerdo; o sulco coronário, que demarca os átrios dos ventrículos; e os sulcos interventriculares (longitudinais), que separam os ventrículos direito e esquerdo (Figura 22.3). Todas as quatro câmaras do coração são facilmente visualizadas e investigadas pelas técnicas eletrocardiográficas, limitadas apenas pelo tamanho do coração e pela frequência cardíaca do animal. O ramo paraconal da artéria coronária esquerda principal, ocasionalmente chamada artéria coronária descendente anterior esquerda em seres humanos, fornece suprimento sanguíneo para o septo ventricular e a parede ventricular esquerda livre. A artéria coronária subsinuosal, em geral uma extensão da artéria coronária circunflexa esquerda (o outro ramo importante da artéria coronária esquerda principal), e ocasionalmente da artéria coronária direita, fornece suprimento sanguíneo para a maior parte do ventrículo esquerdo. A artéria coronária direita supre de sangue a parede ventricular direita livre e partes do ventrículo esquerdo (Figura 22.3B). A artéria coronária esquerda, em geral, é dominante. A artéria coronária direita é mais frequentemente dominante em gatos e equinos. O sangue que retorna da circulação sistêmica (retorno venoso) e da circulação pulmonar deságua no átrio direito e no esquerdo, respectivamente. Os ventrículos, as principais câmaras de bombeamento do coração, estão separados dos átrios pelas valvas atrioventriculares. A valva tricúspide está localizada entre o átrio e o ventrículo direitos, enquanto a valva mitral fica entre o átrio e o ventrículo esquerdos. Os

ventrículos recebem sangue de seus respectivos átrios e o ejetam através das valvas semilunares: a valva pulmônica situada entre o ventrículo direito e a artéria pulmonar, e a valva aórtica entre o ventrículo esquerdo e a aorta.

Figura 22.3 A. Em mamíferos, o coração é uma bomba de quatro câmaras, sendo duas de

parede fina e duas de parede espessa, mais uma rede vascular (circulação coronariana) altamente reativa e difusa. Os átrios direito (AD) e esquerdo (AE) de parede fina estão separados um do outro por um septo membranoso entre ambos. O septo interventricular (SIV) fica entre os ventrículos direito e esquerdo. A valva tricúspide (VT) e a mitral (VM) ficam entre o AD e o VD e o AE e o VE, respectivamente. As valvas pulmonar (VP) e aórtica (VA) separam o VD e o VE da artéria pulmonar (AP) e da aorta (Ao), respectivamente. B. Um trígono fibroso localizado no centro do coração fornece o arcabouço ao qual estão ligados os átrios e ventrículos mais as valvas cardíacas. As artérias coronárias direita e esquerda emergem da raiz da aorta e fornecem sangue para todas as câmaras do coração, inclusive as valvas cardíacas. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Assim que o processo de contração cardíaca é iniciado, a contração quase simultânea dos átrios é seguida pela contração aproximadamente sincrônica dos ventrículos, o que resulta em diferenças de pressão entre os átrios, ventrículos e as circulações pulmonar e sistêmica. A contração cardíaca gera alterações na pressão diferencial que são responsáveis pela abertura e pelo fechamento das valvas atrioventricular e semilunares, bem como pela produção das bulhas cardíacas (B1, B2, B3 e B4; ver Hemodinâmica). As cordoalhas tendinosas originárias dos músculos papilares situados na parede interna das câmaras ventriculares estão inseridas nas bordas livres dos folhetos valvares atrioventriculares e ajudam a manter a competência das valvas restringindo seu prolapso na direção dos átrios, o que impede a regurgitação de sangue para o átrio durante a contração ventricular (Figura 22.3A). A alteração na geometria da câmara cardíaca (p. ex., estiramento, dilatação ou hipertrofia) causada por mudanças no volume sanguíneo, deformação (tamponamento pericárdico) ou doença (tumores, fibrose) pode ter efeitos profundos sobre a função miocárdica, como os causados por perturbações neuro-humorais, metabólicas e farmacológicas. Coração | Metabolismo A manutenção de atividade cardíaca normal depende das vias metabólicas pelas quais o ATP é gerado. Até mesmo uma descrição superficial dessas vias está além do âmbito deste capítulo, estando elas descritas de maneira mais apropriada em revisões destinadas especificamente ao assunto.8 O coração gera ATP por dois métodos primários: fosforilação oxidativa e glicólise (Figura 22.4). A fosforilação oxidativa nas mitocôndrias é responsável por aproximadamente 95% da formação de ATP no coração durante condições não isquêmicas normais, com o restante sendo derivado da glicólise e da formação de GTP a partir do ciclo do ácido cítrico. O coração utiliza todo o ATP miocárdico em cerca de 10 s durante condições normais de repouso, o que enfatiza a necessidade de sua produção contínua. Uns 60 a 70% da hidrólise do ATP são utilizados na contração cardíaca e os 30 a

40% restantes são usados para manter a função de bombas de íon e Ca2+-ATPase do retículo sarcoplasmático. A taxa de fosforilação oxidativa está ligada diretamente à de hidrólise do ATP, de maneira que o conteúdo de ATP permanece constante durante exercício intenso ou alterações nas concentrações sanguíneas de catecolamina. A fosforilação oxidativa mitocondrial é dependente da cadeia de transporte de elétron que gera dinucleotídio de adenina nicotinamida (NADH) e dinucleotídio de adenina flavina (FADH2), produzidos primariamente pela via da oxidação de ácidos graxos, pelo ciclo do ácido cítrico, pela reação da desidrogenase do piruvato e pela glicólise (Figura 22.5). A regulação do metabolismo miocárdico está ligada à concentração arterial do substrato carbono, de hormônios, ao fluxo coronariano, ao estado inotrópico e ao estado nutricional do tecido.9,10 O ciclo do ácido cítrico é dependente da acetil-CoA formada a partir da descarboxilação do piruvato e da oxidação de ácidos graxos (Figura 22.5). Os equivalentes reduzidos NADH e FADH2, que são gerados pelas desidrogenases da glicólise, pela oxidação de lactato, piruvato e ácidos graxos, ou pelo ciclo do ácido cítrico, liberam elétrons para a cadeia de transporte de elétron, resultando em formação de ATP por fosforilação oxidativa. Esses processos são modificados continuamente pelas necessidades de energia da célula e por estímulos neurais e hormonais. O ATP produzido fornece energia para a contração cardíaca, o relaxamento do coração e atividades relacionadas. Coração | Eletrofisiologia O propósito do coração é bombear sangue em quantidades suficientes para satisfazer as demandas de oxigênio do corpo. É necessária uma série altamente integrada de eventos eletroquímicos seguidos por outros metabólicos e mecânicos para a função contrátil normal do coração (acoplamento excitação-contração). É notável o fato de que a contração miocárdica é precedida por ativação elétrica e não ocorre sem ela, embora seja possível uma atividade elétrica normal ou quase sem contração miocárdica (acoplamento eletromecânico; dissociação eletromecânica [DEM]; atividade elétrica sem pulso [AEP]). Atividade elétrica sem pulso é a designação clínica usada para descrever a DEM, sendo definida como a ausência de pulso palpável na presença de atividade elétrica cardíaca organizada que não a fibrilação ou a taquicardia ventriculares. A membrana das células cardíacas (sarcolema) é uma camada dupla de lipídios altamente especializada, que contém canais associados a proteína, bombas, enzimas e intercambiadores em um meio líquido de arquitetura sofisticada (reorganizável e móvel). A composição molecular e a fluidez das membranas cardíacas determinam seu transporte iônico e as propriedades elétricas associadas à membrana. A distribuição desigual de vários íons, em especial sódio, potássio e cloreto, é responsável pelo desenvolvimento do potencial de repouso da membrana dentro das células cardíacas, conforme estimado pela

equação de Nernst ou, de maneira mais precisa, pela equação de campo constante de Goldman-Hodgkin-Katz.11,12

Figura 22.4 Ligações entre a energia cardíaca, a fosforilação oxidativa e a geração de NADPH pelas desidrogenases no metabolismo. RS, retículo sarcoplasmático. CPT-I, carnitina palmitoiltransferase I; TAC, transportador de ácido graxo CD36; G 6-P, glicose 6-fosfato; TGLI, transportadores de glicose; TMC, transportadores do ácido monocarboxílico; PDH, desidrogenase do piruvato. Fonte: modificada da referência 8. Reproduzida, com autorização, de American Physiological Society. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 22.5 Regulação da oxidação da glicose e do lactato pela desidrogenase do piruvato (PDH). A atividade da PDH é inibida pelo produto da inibição da acetil-CoA e do NADH (setas tracejadas) e por fosforilação da quinase da PDH e desfosforilação pela fosfatase da PDH. Modificada da referência 8. Reproduzida, com autorização, de American Physiological Society. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

A equação de Nernst para íons potássio:

em que E é a força eletromotiva; [K+]i/[K+]o é a concentração de potássio intracelular e extracelular em mM, Ci e Co são as concentrações iônicas dentro (i) e fora (o) da membrana celular; z é a valência do íon, nesse caso 1; R é a constante do gás; T é a temperatura absoluta; F é a constante de Faraday, e 2,303 é o fator de conversão de ln para log de 10; mV = milivolts a 37°C.

Equação de Goldman-Hodgkin-Katz:

em que Em é o potencial de repouso da membrana e “P” é a permeabilidade relativa da membrana ao Na, ao K e ao Cl nas células miocárdicas. O potencial elétrico transmembrana gerado pelas células cardíacas é o resultado do fluxo de íons através da membrana (propriedades ativas), que geram correntes que passam por poros ou canais da membrana que funcionam como ‘portões’ (Figura 22.6; Tabela 22.2),11 com referência à abertura (ativação) ou ao fechamento (por desativação ou inativação) de canais iônicos. Esses canais se caracterizam por sua seletividade iônica, pela condutância, pelas características de serem passagens e pela densidade. Seus mecanismos controlam a passagem de íons e são compostos por portais de ativação e inativação, controlados pela voltagem e, frequentemente, pelo tempo. A configuração funcional dos portões determina o estado do canal: ativado ou aberto, inativado ou fechado e em repouso (passível de ser ativado). O movimento direcional (para dentro ou para fora) dos vários íons depende, em última análise, do estado do canal e da força eletroquímica de direcionamento (potencial de equilíbrio menos o potencial de membrana) de cada íon. A força eletroquímica de direcionamento, conforme ilustrada pela equação de Nernst, é composta de uma força elétrica e um gradiente de concentração. Deve-se notar que, na presença de muitos anestésicos, em particular os locais (lidocaína, bupivacaína) e inalatórios (halotano, isofluorano e sevofluorano), esses mesmos canais demonstram bloqueio dependente do uso,13–15 o fenômeno exibido pelas células cardíacas que, na presença de um fármaco, aumenta a taxa de estimulação (p. ex., a frequência cardíaca) e induz um efeito mais pronunciado do fármaco sobre as propriedades eletrofisiológicas do coração que durante taxas mais lentas de estimulação. A excitabilidade, ou a capacidade da membrana da célula cardíaca de gerar e propagar um potencial elétrico (potencial de ação), é uma propriedade intrínseca fundamental das células cardíacas.11 O potencial de ação (PA) cardíaco varia consideravelmente daquele de nervos e do músculo esquelético e, como discutido antes, depende do fluxo transmembrana de múltiplos íons (Tabela 22.3). O PA cardíaco surge de um potencial de membrana mais positivo (90 versus 65 mV), é de maior magnitude (130 versus 80 mV) e de duração muito mais longa (150 a 300 versus 1 a 3 ms) do que os PAs registrados de nervos e músculos esqueléticos. Cinco fases características são discerníveis na maioria das células cardíacas: a fase 0, ou de despolarização rápida, é causada pelo influxo rápido e relativamente grande de íons

sódio (corrente rápida para dentro) para a célula; a fase 1, a inicial da repolarização, é causada pelo movimento transitório de íons potássio para fora; a fase 2, a de platô, é atribuída à entrada contínua, mas diminuída, de íons sódio e um influxo grande, mas lento, de íons cálcio (corrente lenta para dentro) para as células; a fase 3 é a de repolarização, durante a qual o potencial de membrana retorna ao seu valor de repouso, por causa do efluxo de potássio (corrente para fora) das células; e a fase 4 é a de repouso nas células musculares atriais e ventriculares antes do início do próximo PA (Figura 22.7; Tabela 22.3). É digno de nota que houve grande interesse nas correntes de repolarização (Ik), por causa de sua importância na determinação da duração do PA (longa e curta) e seu envolvimento no que se denomina síndrome do QT longo (QTL), uma condição incomum em seres humanos, na qual a repolarização retardada do coração aumenta o risco de torsade de pointes, predispondo a fibrilação ventricular. O hERG (o gene humano Ether-à-go-go Relacionado, ou KCNH2) é um gene que codifica para o canal de potássio e forma uma parte principal de uma das proteínas do canal iônico (a corrente retificadora ‘rápida’ tardia [IKr]), que conduz os íons potássio (K+) para fora das células musculares cardíacas. Essa corrente é crítica para o retorno do potencial de membrana ao estado de repouso (repolarização). Embora interessante em termos fisiológicos e importante para a triagem do potencial de fármacos arritmogênicos em seres humanos, não há evidência convincente de que esse gene, mesmo presente na maioria dos mamíferos (exceto roedores), contribua para o desenvolvimento de arritmias em animais.16

Figura 22.6 Diagrama esquemático dos canais e correntes de uma célula miocárdica. INa, corrente rápida de sódio; ICa(L), corrente de cálcio através dos canais de cálcio do tipo L; ICa(T), corrente de cálcio através dos canais de cálcio do tipo T; IKr, corrente retificadora rápida tardia de potássio; IKs, corrente retificadora lenta tardia de potássio; Ito, corrente transitória para fora; IKi, corrente retificadora de potássio para dentro; IK(ATP), corrente de potássio sensível ao ATP; IKp, platô da corrente de potássio; IK(Na), corrente de potássio ativada pelo sódio (em condições de sobrecarga de sódio); Ins(Ca), corrente inespecífica ativada pelo cálcio (em condições de sobrecarga de cálcio); INa,b, corrente de fundo de sódio; ICa,b, corrente de fundo de cálcio; INaK, corrente da bomba de sódio e potássio; INaCa, corrente de troca de sódio e cálcio; IP(Ca), bomba de cálcio sarcolêmica; Iup, captação de cálcio do mioplasma para a rede do retículo sarcoplasmático (RRS); Irel, liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático juncional (RSJ); Ileak, extravasamento de cálcio da RRS para o mioplasma; Itr, translocação do cálcio da RRS para o RSJ. A calmodulina e a troponina são tampões de cálcio no mioplasma. A calsequestrina é um tampão de cálcio no RSJ. Fonte: adaptada da referência 12. Reproduzida, com autorização, de Wiley. Tabela 22.2 Correntes associadas ao potencial de ação cardíaco. Corrente

Abreviatura

Rápida de entrada de sódio

INa

Qualidade Responsável pelo disparo do potencial de ação; abolida pela tetrodotoxina; inibida por agentes antiarrítmicos da classe I Importante para a fase de platô do potencial de ação cardíaco;

Lenta de entrada de sódio

ICa, Isi

envolvida no acoplamento excitação-contração; aumentada por estimulação β; inibida por antagonistas do cálcio Corrente transitória de cálcio, que se abre com baixas voltagens

Subtipo T

ICa(t)

(–60 a –50 mV); pode ser importante na despolarização do nó sinusal

Subtipo L

Corrente de fundo de potássio (retificadora para dentro)

ICa(l)

IK1 ou Iir

Corrente de cálcio de longa duração, inibida por antagonistas do cálcio

Ajuda a manter o potencial de repouso da membrana (PRM)

Correntes de potássio para fora dependentes do tempo; ativadas pela despolarização (completamente ativa a +10 mV) e desativadas pela repolarização; dependem da voltagem;

Correntes retificadoras de potássio

IK (inclui Kr e Ks)

controladas pela voltagem

responsáveis pela repolarização nas células nodais e contribuem para a despolarização espontânea; divididas em IKr (r = rápida) e IKs (s = lenta). O canal hERG medeia a corrente repolarizante IKr no PA cardíaco

Corrente de potássio transitória inicial para fora, antes chamada Transitória de potássio para fora

Ito

corrente de cloreto; proeminente nas células epicárdicas ventriculares, nas fibras de Purkinje e nas células atriais; causa a fase 1; também pode encurtar a duração do potencial de ação

Outras correntes Corrente marca-passo diastólica no

If ou Ih

Produz automaticidade no nó SA e nas fibras de Purkinje

De troca de sódio e cálcio

INa/Ca

Contribui para a fase tardia do potencial de ação cardíaco

De cloreto

ICl

nó SA e nas fibras de Purkinje

Ativada pelo cAMP; encurta a duração do potencial de ação durante estimulação adrenérgica

Correntes de K dependentes de G operadas por ligando Ativada por receptores muscarínicos de acetilcolina nas células Sensível à acetilcolina

IKACh

nodais, de Purkinje e atriais; não nos ventriculares; independente do tempo; quando a corrente é desviada nas células nodais, a despolarização espontânea é retardada Provavelmente as mesmas qualidades da IKACh; a adenosina

Sensível à adenosina

IKADO

estimula a corrente de fundo de potássio independente do tempo

Regulada pelo ATP

IKATP

A ausência de ATP estimula (p. ex., isquemia); inibida pelas sulfonilureias, ativada pelos ativadores do canal de K (pinacidil)

Fonte: modificada de Opie LH. The Heart: Physiology and Metabolism, 3rd ed. Philadelphia: Lippincott-Raven, 1998; 91– 97.

Tabela 22.3 Principais fluxos iônicos durante o potencial de ação cardíaco. Fase do potencial de

Nome

Íon

Movimento

Corrente

INa

Na+

Para dentro

Para dentro

0 (despolarização)

Ito1

K+

Para fora

Para fora

1 (repolarização inicial)

ItO2

Cl

Para dentro

Para fora

1 (repolarização inicial)

ICa

Ca2+

Para dentro

Para dentro

2 (platô)

ação

Retificando para IK1

K+

Para dentro

Para dentro

dentro; potencial da membrana em repouso

(Ikr, Ik)

K+

Para fora

Para fora

If

Na+

Para dentro

Para dentro

3 (repolarização) 4 (despolarização em células automáticas)

Os canais IK1 abertos nas células em repouso são o principal contribuinte para o equilíbrio responsável pelo potencial de Nernst durante a fase 4 (potencial de repouso). Fonte: modificada de Katz AM. Physiology of the Heart, 3rd edn. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2001; 499. A velocidade de condução do impulso elétrico cardíaco é determinada pela magnitude e pela taxa de influxo de sódio para a célula cardíaca, que, por sua vez, determina a magnitude e a taxa de alteração no potencial transmembrana (dV/dt) durante a fase 0 do PA cardíaco (Figura 22.7). Para uma única célula cardíaca, a alteração (d) no potencial transmembrana (V) está relacionada com a corrente iônica transmembrana (Iíon) e a capacitância da membrana (C; 1 µF/cm2), proporcionadas pela separação da carga através da camada lipídica dupla: dV/dt = 1/C × Iíon Esta equação estabelece que as alterações em V ocorrem em virtude do deslocamento da carga sobre a membrana pelo movimento de íons através da membrana celular. Este

movimento ocorre por causa da atividade dos canais iônicos controlados pela voltagem, pelas bombas e pelos intercambiadores, e Iíon representa sua soma total. Uma Iíon negativa (movimento de íons positivos para a célula) produz uma dV/dt positiva, que eleva (i.e., despolariza, torna mais positivo) o potencial membrana. Uma Iíon positiva indica um fluxo para fora de íons positivos e age para reduzir (repolarizar) o potencial de membrana, gerando uma dV/dt negativa. A geração do PA cardíaco resulta da evolução dependente do tempo, da voltagem e da concentração da Iíon e representa a contribuição de múltiplos mecanismos seletivos para o movimento iônico através da membrana celular cardíaca (Figura 22.7).17 A corrente flui de uma célula despolarizada para sua vizinha menos despolarizada via caminhos intercelulares resistivos conhecidos como junções estreitas. A corrente transmembrana e a corrente axial que flui entre as células em uma cadeia celular linear podem ser descritas por

em que a é o raio da fibra e ri é a resistência axial por unidade de comprimento. Vm é uma função tanto do tempo (t) como do espaço (x), daí o uso do símbolo derivado ∂ indicando sua primeira derivada no tempo (∂Vm/∂t) ou sua segunda derivada no espaço (∂2Vm/∂x2). Esta equação estabelece que a alteração resultante na corrente axial deva ser considerada pela corrente que cruza a membrana. É digno de nota que os canais iônicos sejam inibidos pelos anestésicos. Os canais intercelulares (junções estreitas) também são deprimidos (a resistência aumenta) pelos anestésicos, apesar da interação direta com algumas de suas subunidades proteicas.18 Portanto, os anestésicos podem exercer vários efeitos sobre as proteínas da membrana, interferindo, assim, na excitabilidade cardíaca e na transmissão e na propagação dos impulsos elétricos.

Figura 22.7 Potencial de ação cardíaco: alterações no potencial transmembrana associadas aos potenciais de ação de resposta rápida e resposta lenta. Notar que os potenciais de ação de resposta lenta originam-se de um potencial de membrana em repouso menos negativo e têm uma velocidade muito mais lenta de subida (fase 0). Durante o período supernormal, um estímulo sublimiar elicia um potencial de ação normal. a-b: potencial da membrana em repouso; lado interno negativo: c-d: PRE: a estimulação celular não produz um novo potencial de ação; d-e: PRR: um estímulo maior do que o normal pode produzir um potencial de ação. Ver no texto a explicação das fases 1–4 do potencial de ação. PRE, período refratário efetivo; PRR, período refratário relativo.

Quanto maior a dVm/dt, mais rápidas a transmissão e a condução do impulso cardíaco através do tecido cardíaco.12 As células cardíacas, que normalmente têm um potencial de membrana mais negativo (células musculares atriais e ventriculares e as de Purkinje), demonstram maior excitabilidade e uma velocidade de condução mais rápida que aquelas com potenciais de membrana menos negativo (nós sinoatrial e atrioventricular e miocárdio doente).11,12 O cálcio que entra nas células cardíacas durante a fase 2 dispara a liberação intracelular de cálcio, que é importante para a contração celular normal e, com o potássio, determina a duração do PA nos miócitos atriais e ventriculares. Como o cálcio entra nas células lentamente e com um potencial de membrana menos negativo, as células cardíacas com um potencial de membrana em repouso reduzido (nós sinoatrial e atrioventricular) demonstram uma dVm/dt na fase 0 consideravelmente menor e velocidade de contração lenta, em comparação com as células do músculo atrial e ventricular e as de Purkinje (Figura 22.7).12 O efluxo de potássio das células cardíacas é controlado por uma variedade de mecanismos, inclusive diferenças de concentração através da membrana e alteração nas características da permeabilidade (difusional) da membrana celular ao potássio (Tabela

22.2). Coletivamente, os canais responsáveis pela repolarização (fase 3) também são os determinantes principais da duração do PA cardíaco, da refratariedade da célula cardíaca e da duração do período supernormal (Figura 22.7). A duração do PA cardíaco tem implicações clínicas importantes com relação à quantidade de cálcio que entra e ao potencial de desenvolvimento de arritmia.11 PAs cardíacos mais longos permitem a entrada de mais cálcio nas células e prolongam a refratariedade celular. Se houver grandes disparidades ou falta de homogeneidade na duração do PA e na refratariedade de células cardíacas adjacentes em decorrência da reentrada de impulsos elétricos em tecidos rapidamente repolarizados e nova excitação, ocorrerão arritmias.19 Acredita-se que as células cardíacas com PAs particularmente longos aumentem a probabilidade de intervalos QT longos, pós-despolarizações e dispersão da refratariedade do PA, predispondo, assim, a arritmias cardíacas a partir da atividade espontânea ou do desenvolvimento de circuitos elétricos reentrantes (de reentrada) no coração. A despolarização diastólica da fase 4 (potencial marca-passo) confere ao coração a propriedade exclusiva de automaticidade e ocorre nos nós sinoatrial e atrioventricular, bem como nas fibras musculares especializadas atriais e ventriculares (rede de Purkinje).11 O potencial da membrana em repouso despolariza na direção de um potencial limiar que, quando alcançado, dispara o desenvolvimento de um PA. Os processos iônicos responsáveis pela fase 4 ou despolarização diastólica variam entre os diversos tecidos especializados do coração, primariamente por causa das diferenças em seu potencial da membrana em repouso e do tipo celular (p. ex., nó sinoatrial versus atrioventricular versus fibras de Purkinje). As células nos nós sinoatrial e atrioventricular têm comparativamente potenciais diastólicos máximos menos negativos (–65 mV) que as células de Purkinje e sua automaticidade depende da entrada de íons cálcio (corrente lenta para dentro) e de uma diminuição progressiva na permeabilidade da membrana ao efluxo de potássio (Figura 22.7).11,12 As células automáticas nas vias atriais especializadas e a rede ventricular de Purkinje têm um potencial diastólico máximo mais negativo (–90 mV) e sua automaticidade depende de uma corrente ‘engraçada’ para dentro induzida pela hiperpolarização, denominada If e levada principalmente por íons sódio, bem como de uma diminuição no efluxo de potássio (Tabela 22.2). Como os íons potássio normalmente deixam as células cardíacas para restaurar ou manter o potencial da membrana em repouso, qualquer queda no efluxo de potássio facilita a despolarização. Os principais mecanismos responsáveis pela mudança na automaticidade são alterações no potencial limiar, velocidade de despolarização da fase 4 e potencial diastólico máximo após a repolarização. O tecido cardíaco com a velocidade mais rápida da despolarização da fase 4 (normalmente o nó sinoatrial) denomina-se marca-passo e determina a frequência cardíaca. O marcapasso cardíaco normalmente diminui a automaticidade de marca-passos mais lentos ou

subsidiários (supressão supradirigida), impedindo que mais de um marca-passo controle a frequência cardíaca. A supressão supradirigida em marca-passos subsidiários deve-se à ativação da bomba de sódio e potássio (Na+–K+), que acarreta a hiperpolarização da membrana e aumenta o tempo para que o potencial limiar seja alcançado (Figura 22.8).12 Os marca-passos subsidiários são mais suprimidos ante frequências cardíacas rápidas, porque a bomba de Na+–K+ é mais ativa nessas frequências, resultando em um potencial diastólico máximo mais negativo. Clinicamente, a administração de um antimuscarínico pode causar aumentos na frequência sinusal, capazes de eliminar (supressão supradirigida ou supraconduzida) arritmias ventriculares infrequentes ou mais lentas. A automaticidade também é influenciada por fatores locais, inclusive a temperatura, o pH e os gases sanguíneos (PO2 e PCO2), a concentração extracelular de potássio, catecolaminas e vários hormônios (Figura 22.9). A soma de todos os PAs produzidos a cada ciclo cardíaco após ativação pelo nó sinoatrial é responsável pelo eletrocardiograma na superfície corporal (Figura 22.10). A iniciação de um impulso elétrico é seguida pela transmissão elétrica rápida do impulso através dos átrios, originando a onda P. A repolarização dos átrios dá origem à onda Ta que, embora ausente no ECG da maioria dos pequenos animais, costuma ser óbvia nos grandes animais (equinos e bovinos), em que a massa total do tecido atrial é substancial o bastante para gerar força eletromotiva suficiente para ser reconhecível ao ECG. A repolarização dos átrios nas espécies menores (cães e gatos) e a despolarização dos nós sinoatrial e atrioventricular não geram um potencial elétrico suficientemente grande para ser registrado na superfície do corpo, exceto nos casos de taquicardia sinusal. Assim que a onda de despolarização alcança o nó atrioventricular, a condução fica mais lenta, por causa do baixo potencial de repouso da membrana do nó atrioventricular (aproximadamente –60 mV) e da queda relativa na frequência da fase 0 (condução decremental). O aumento do tônus parassimpático pode causar uma lentidão acentuada da condução nodal atrioventricular, ocasionando bloqueio atrioventricular de primeiro, segundo e, raramente, terceiro graus. Muitos fármacos usados em anestesia, incluindo opioides, agonistas do receptor adrenérgico α e, ocasionalmente, acepromazina, aumentam o tônus parassimpático, causando bloqueio cardíaco e bradiarritmias. O uso de antimuscarínicos, em geral, é um tratamento efetivo nessas situações, mas não para o bloqueio atrioventricular causado por doença estrutural (p. ex., inflamação, fibrose ou calcificação). Recomenda-se consideração cuidadosa ao administrar atropina ou glicopirrolato junto com agonistas do receptor adrenérgico α, em decorrência do potencial de provocar ou exacerbar arritmias cardíacas e, mais provavelmente, pelo desenvolvimento de alterações acentuadas no tônus autônomo (disautonomia) e aumento do estiramento (aumento na pós-carga) no coração.20

Figura 22.8 Supressão supradirigida: a ativação da bomba de Na+–K+ hiperpolariza a membrana celular, prolongando o tempo para o potencial de membrana alcançar o limiar, o que pode eliminar a atividade de marca-passos secundários (subsidiários). A atividade do marca-passo primário aciona o marca-passo secundário, reajustando o processo de despolarização.

Figura 22.9 Automaticidade: o nó sinoatrial (marca-passo tecidual) caracteriza-se pelo potencial diastólico máximo menos negativo que se move na direção do limiar (despolarização diastólica de fase 4), uma fase 0 lenta, causada primariamente pela ativação da ICaI, e uma repolarização relativamente rápida em decorrência da IK. A velocidade da despolarização diastólica de fase 4 (automaticidade) pode aumentar mediante aumentos na frequência cardíaca, na temperatura, no cálcio, nas catecolaminas e na tiroxina, bem como pelas quedas na tensão de oxigênio e na concentração extracelular de potássio.

Figura 22.10 PAs cardíacos registrados de vários tecidos do coração somam-se para produzir o complexo P-QRS-T do eletrocardiograma (ECG), registrado na superfície do corpo. AD, átrio direito; AE, átrio esquerdo; AV, nó atrioventricular; Int., intervalo; M., músculo; SA, nó sinoatrial; Seg., segmento; VD, ventrículo direito; VE, ventrículo esquerdo. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Em condições normais, a condução do impulso elétrico através do nó atrioventricular produz o intervalo PR ou PQ do ECG e dá tempo para os átrios se contraírem antes dos ventrículos (Figura 22.10). Esta demora tem importância funcional, em particular na vigência de frequências cardíacas mais rápidas, por fazer com que a contração atrial contribua para o enchimento ventricular. É indispensável lembrar que as células do nó atrioventricular são extremamente dependentes do íon cálcio para a geração de um PA e a condução do impulso elétrico. Portanto, as células do nó atrioventricular são extremamente sensíveis a fármacos que bloqueiem o fluxo transarcolêmico do cálcio, incluindo doses excessivas de anestésicos (inalatórios e injetáveis) e antagonistas do canal de cálcio (verapamil, diltiazem). Estes fármacos e doença cardíaca podem causar bloqueio atrioventricular e refratariedade pós-repolarização, que não responde à administração de antimuscarínicos. Refratariedade pós-repolarização é o fenômeno em que as células cardíacas permanecem refratárias à ativação elétrica após a repolarização completa.21 É

mais provável que esse fenômeno cause bloqueio atrioventricular à medida que a velocidade da despolarização atrial aumenta. Aumentos no tônus parassimpático, em particular na presença de fármacos ou doença (isquemia) que interfiram na condução do impulso elétrico através do nó atrioventricular, podem resultar em evidência ao ECG de bloqueio atrioventricular de primeiro (intervalo PR prolongado), segundo (condução da onda P bloqueada, resultando em ausência do complexo QRS) ou terceiro graus (dissociação de P e complexo QRS). Assim que o impulso elétrico atravessa o nó atrioventricular, é rapidamente transmitido para o músculo ventricular por cardiomiócitos especializados, conhecidos comumente como fibras de Purkinje. Feixes de células de Purkinje (o ramo direito e o ramo esquerdo do feixe) transmitem os impulsos elétricos para o septo ventricular e as paredes ventriculares direita e esquerda, respectivamente, via faixa moderadora no ventrículo direito e divisões esquerdas anterior e posterior do ramo esquerdo do feixe no ventrículo esquerdo. As células de Purkinje e as chamadas células M ou mesomiocárdicas localizadas nas extremidades terminais dos ramos ventriculares do feixe e no meio das paredes ventriculares, respectivamente, têm o PA mais longo e, portanto, servem como ‘portões’ fisiológicos que impedem a reentrada e a recirculação dos impulsos elétricos no miocárdio ventricular.22 Acredita-se que a duração relativamente longa do PA das células M seja responsável, em parte, pelo desenvolvimento de ondas U no ECG. As fibras de Purkinje conduzem o impulso elétrico a velocidades relativamente rápidas (3 a 5 m/s). Sua distribuição é responsável por diferenças no padrão do ECG (despolarização ventricular) entre as espécies. É importante lembrar que, embora a transmissão do impulso elétrico tenha sido comparada, por analogia, com um seixo jogado na água, formando uma onda concêntrica, a condução do impulso elétrico no coração depende, em última instância, da variação espacial na refratariedade das células miocárdicas e da resistência uniforme (isotrópica) de uma célula a outra e das propriedades de capacitação (passivas) da membrana, determinadas, em grande parte, pela baixa resistência das junções estreitas (nexo) entre as células.23,24 O intervalo que começa imediatamente após a onda S do complexo QRS (ponto J) e precede a onda T é conhecido como segmento ST. A elevação ou depressão desse segmento (± 0,2 mV ou maior) a partir da linha isoelétrica, em geral, é uma indicação de hipoxia ou isquemia miocárdica, débito cardíaco baixo, anemia, pericardite ou contusão cardíaca, e sugere o potencial para o desenvolvimento de arritmias. O segmento ST é seguido pela onda T, ou em geral a atenua. A configuração e a magnitude da onda T variam consideravelmente entre as espécies e são influenciadas por alterações na frequência cardíaca, na temperatura sanguínea e na concentração extracelular de potássio. Por

exemplo, a hiperpotassemia aumenta a condutância do potássio na membrana, o que encurta a polarização e produz ondas T de grande magnitude, em geral espiculadas ou pontiagudas e de curta duração (intervalo QT curto). Raras vezes podem ser distinguidas ondas U imediatamente após o término da onda T e acredita-se que representem a repolarização de células M e, possivelmente, de células de Purkinje (Figura 22.10).22 Como as ondas Ta, as ondas U são observadas com maior frequência em grandes animais (equinos e bovinos) durante desequilíbrios eletrolíticos (hipopotassemia ou hipocalcemia) ou após a administração de fármacos usados ocasionalmente para tratar cardiopatia (quinidina ou digitálicos). Sabe-se que vários anestésicos inalatórios (clorofórmio, halotano) sensibilizam o miocárdio às catecolaminas, resultando no desenvolvimento de arritmias cardíacas.25 Foram relatadas observações similares com os tiobarbitúricos e, em menor extensão (sem relevância clínica), com o propofol ou a cetamina durante anestesia com isofluorano.26–28 É provável que este efeito seja produzido por alterações no ciclo do cálcio intracelular relacionadas com o fármaco, que resultam em alterações na propagação do impulso elétrico e na excitabilidade do ciclo cardíaco. Também se sabe que os anestésicos, em particular os voláteis, interagem com múltiplos canais iônicos cardíacos. Evidência experimental sugere que os anestésicos voláteis, em concentrações de 1 a 2 vezes a CAM (concentração alveolar mínima), modifiquem os canais de potássio cardíacos repolarizantes hERG e IKs.29 Concentrações mais baixas de anestésicos voláteis priorizam a ativação de canais sarcolêmicos e mitocondriais de KATP pela estimulação dos receptores de adenosina e ativação subsequente da quinase da proteína C (PKC) e pelo aumento da formação de óxido nítrico e radicais livres de oxigênio. Os opioides ativam os receptores δ e κ desses fármacos, levando à ativação da PKC. O estado aberto dos canais mitocondriais e sarcolêmicos de KATP acaba por induzir citoproteção ao diminuir a sobrecarga de Ca2+ no citosol e nas mitocôndrias, fenômeno denominado ‘pré-condicionamento isquêmico’.30 Em concentrações um pouco mais altas (i.e., ≥ CAM), os canais de cálcio e sódio são envolvidos. Esses efeitos alteram a duração e a forma do PA, o período refratário efetivo e a velocidade da condução do impulso, resultando em diferenças heterogêneas regionais que promovem a excitação para reentrada. A triangulação, ou seja, lentidão da repolarização, e a lentidão da condução são as duas alterações pró-arrítmicas mais importantes no PA cardíaco.31,32 A triangulação permite a reativação da corrente de cálcio, mais tempo para a corrente de troca de Na+–Ca2+, reativação da corrente de sódio, sincronização reduzida dos PAs e facilitação da reexcitação, predispondo à geração de pós-despolarizações precoces (PDPs).32 A condução alterada, em particular a lenta, é um parâmetro importante para se determinar o produto da velocidade de condução vezes o período refratário (λ), que determina se a reentrada é impossível (λ > comprimento disponível de tecido excitável) ou

possível (λ < comprimento disponível de tecido excitável). Quando λ é encurtado em combinação com a triangulação, o coração quase sempre entra em taquicardia ventricular multifocal ou fibrilação ventricular. O desequilíbrio autônomo generalizado com componentes tanto simpáticos como parassimpáticos pode produzir um estímulo neural que predispõe à repolarização cardíaca subsequente e a anormalidades da condução e vasospasmo coronariano. Isso pode ser responsável por arritmias cardíacas e requer atenção quanto à administração concomitante de um antimuscarínico e agonistas do receptor adrenérgico α2.20 Em suma, a membrana da célula cardíaca tem propriedades ativas (movimento iônico) e passivas (de resistência e capacidade) que determinam a excitabilidade, a automaticidade, a ritmicidade, a refratariedade e a capacidade do coração de conduzir um impulso elétrico. Os anestésicos, por seus efeitos tanto sobre as propriedades ativas como as passivas do coração, podem causar alterações significativas na excitabilidade cardíaca e na condução do impulso elétrico, predispondo os animais potencialmente a arritmias cardíacas e anormalidades da contração mecânica.25–29,31–34 Coração | Acoplamento excitação-contração Refere-se ao processo pelo qual a ativação elétrica do coração é transformada em contração muscular.35,36 Tal processo começa com a despolarização da membrana da célula cardíaca e termina com a interação das proteínas contráteis nos sarcômeros individuais. A [Ca2+] extracelular normal é de 10–3 M, comparada com uma [Ca2+] intracelular de 10–7 M. A ativação elétrica do sarcolema e dos túbulos transversos (túbulo T: invaginação profunda do sarcolema) pelo PA cardíaco causa um influxo de pequena quantidade de íons cálcio disparando a liberação de uma quantidade muito maior de cálcio (liberação de cálcio induzida pelo próprio cálcio: LCIC) a partir de fontes de cálcio ligadas à calsequestrina no retículo sarcoplasmático. A liberação de cálcio induzida pelo próprio cálcio aumenta a concentração intracelular de cálcio de 10–7 M para 10–5 M, causando contração celular (Figura 22.11). A importância do influxo de cálcio durante a fase 2 do PA no processo contrátil do músculo cardíaco em comparação com outros músculos (esqueléticos e lisos) não pode ser muito enfatizada, porque a contração cardíaca é mais dependente de alterações na concentração extracelular de cálcio e responde instantaneamente a elas. A maioria dos íons cálcio que entram na célula cardíaca o faz através dos canais de cálcio dependentes da voltagem, embora alguns íons cálcio entrem via reação de troca de cálcio e sódio.37 Os canais de cálcio estão localizados por todo o sistema de túbulos T, que penetra profundamente no interior da célula. Os túbulos T limitam grandes cisternas terminais, que são a parte terminal de um sistema tubular longitudinal intracelular difuso: o retículo

sarcoplasmático. Os canais de cálcio dependentes da voltagem são de dois tipos (Tabela 22.2): um lento de longa duração (tipo L), que é aberto pela despolarização celular completa, e um rápido mas transitório (tipo T), ativado mais cedo que o tipo L e com potenciais mais negativos (Figura 22.11). Continua discutível o mecanismo exato pelo qual os canais de cálcio (tanto do tipo L como do T) dos túbulos T comunicam-se com os canais liberadores de cálcio do retículo sarcoplasmático.35 A maioria do cálcio que entra na célula cardíaca durante cada PA o faz através do canal do tipo L, também denominado receptor de di-hidropiridina (DHP), por causa da sua sensibilidade a tipos específicos de antagonistas do cálcio (compostos semelhantes ao verapamil, ao diltiazém e ao nifedipino).37 A velocidade de alteração na concentração intracelular de cálcio é o ativador mais efetivo da liberação do cálcio intracelular a partir do retículo sarcoplasmático. Tal observação sugere que os canais rápidos do tipo T possam ser importantes no processo de excitaçãocontração. Os canais do tipo T ativam com potenciais mais negativos que os canais do tipo L e são insensíveis aos bloqueadores do canal de sódio (p. ex., lidocaína ou tetrodotoxina) e fármacos antagonistas do cálcio.37 Os canais do tipo T, portanto, são responsáveis pela fase inicial da abertura do canal de cálcio e podem ser importantes para iniciar a liberação do cálcio intracelular e a despolarização elétrica de tecidos menos polarizados, como os nós sinoatrial e atrioventricular.17 Os canais do tipo L são mais prevalentes nas células musculares atriais e ventriculares que os canais do tipo T, abertos com potenciais menos negativos, e podem ser responsáveis pelas últimas fases da abertura do canal de cálcio.36 Ambos os canais estão ligados fisiologicamente via pontes especializadas ou proteínas (“pés”) que os conectam ao mecanismo de liberação de cálcio no retículo sarcoplasmático. Essas proteínas são parte de um complexo proteico de alto peso molecular no retículo sarcoplasmático, denominado receptor de rianodina (RyR), por causa de sua afinidade pelo inseticida rianodina.38 Baixas concentrações de rianodina facilitam a liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático, enquanto altas concentrações a inibem. Os receptores de rianodina são similares aos do trifosfato de inositol (IP3), transportam Ca2+ para o citosol ao reconhecerem esses íons no lado citosólico, estabelecendo assim um mecanismo positivo de retroalimentação; uma pequena quantidade de Ca2+ no citosol perto do receptor causará a liberação de ainda mais Ca2+ (p. ex., LCIC). É digno de nota o fato de haver múltiplas isoformas de RyR, sendo as cardíacas do tipo RyR2.38 Qualquer fármaco que prolongue as aberturas de canal desencadeadas pelo Ca2+ citoplasmático também promoverá ativação de RyR pelo Ca2+ luminal. Por exemplo, mutações na isoforma do receptor de rianodina do músculo esquelético (RyR1) no canal liberador de Ca2+ são responsáveis pela suscetibilidade à hipertermia maligna, que pode ser desencadeada por anestésicos inalatórios como o halotano.39 Os receptores do 1,4,5-trifosfato de inositol (IP3R) fornecem uma segunda via para a liberação interna de Ca2+.40 Sua localização subcelular nos miócitos

cardíacos é similar nos miócitos atriais e ventriculares e fibras de Purkinje. Acredita-se que modulem a transcrição, amplifiquem os sinais para o RyR2 Ca2+ e causem ativação celular independente através de diversas vias que geram IP3. A expressão desse receptor é cerca de 50 vezes inferior à do RyR2 nos miócitos ventriculares. Acredita-se que a ativação de IP3Rs (principalmente do tipo 2 nos miócitos atriais e ventriculares e do tipo 3 nos miócitos de Purkinje) por certos agonistas (p. ex., angiotensina II, endotelina e norepinefrina) seja importante no desenvolvimento de hipertrofia e insuficiência cardíacas.40

Figura 22.11 O cálcio entra na célula cardíaca durante o potencial de ação cardíaco (fase 2). Aumentos no cálcio intracelular desencadeiam a liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático (RS), por um processo denominado liberação de cálcio induzida pelo cálcio (LCIC). Aumentos no cálcio intracelular (10–7 a 10–5 M) na vizinhança das proteínas contráteis fazem com que a cabeça de miosina se contraia, resultando em encurtamento do sarcômero. A utilização do trifosfato de adenosina (ATP) e a formação de difosfato de adenosina (ADP) e fosfato inorgânico, em combinação com a recaptação de cálcio pelo RS, causam uma diminuição na concentração intracelular de cálcio e a cabeça de miosina relaxa. O fosfolambano regula a bomba responsável pela recaptação de cálcio para o RS.

Resumindo, a função cardíaca normal depende do acoplamento de canais iônicos relacionados funcionalmente e transportadores no sarcolema com canais liberadores de cálcio (RyR2) no retículo sarcoplasmático (RS), as organelas intracelulares que armazenam

Ca2+. O acoplamento excitação-contração (EC) cardíaco é iniciado por um PA e pela despolarização da membrana que ativa os canais de Ca2+ do tipo L controlados pela voltagem no sarcolema. O pequeno aumento na [Ca2+]i devido ao fluxo de Ca2+ através dos canais desse íon na membrana plasmática é detectado por aglomerados próximos de RyR2s no RS juncional, que produzem disparos de Ca2+ que amplificam a LCIC. A ativação dos IP3Rs serve como uma segunda via para a liberação de Ca2+ interno. A sincronização de Ca2+ provocada pelo PA produz a [Ca2+]i celular transitória ampla que ativa a contração. A instabilidade no Ca2+ cardíaco pode ser causada por alteração na sensibilidade ao RyR2, na organização espacial dos locais de liberação de Ca2+ ou por mutações e variantes das proteínas RyR2 e IP3R. A sinalização cardíaca anormal de Ca2+ resulta em defeitos na atividade elétrica dos miócitos e múltiplos fenótipos de doença cardíaca, acarretando arritmia, miopatia, insuficiência cardíaca e uma predisposição à toxicidade associada aos anestésicos. Coração | Contração e relaxamento Os miócitos cardíacos são compostos de unidades contráteis denominadas sarcômeros, que contêm proteínas contráteis espessas (miosina) e finas (actina), proteínas reguladoras (troponina e tropomiosina) e várias proteínas estruturais.37,41,42 Os filamentos espessos de miosina são compostos por aproximadamente 300 moléculas, cada uma terminando em uma cabeça bilobada (Figura 22.12). Metade (150) das cabeças bilobadas de miosina está localizada em cada extremidade do sarcômero e projeta-se do filamento espesso na direção dos filamentos finos (pontes cruzadas). Os filamentos finos estão inseridos em uma extremidade às proteínas estruturais (linha Z) que separam cada sarcômero. Cada filamento fino contém duas tiras helicoidais de actina entremeada com tropomiosina, que tem complexos de troponina periódicos (Figura 22.12). Aumentos no cálcio intracelular iniciados durante a fase 2 do PA cardíaco são amplificados por LCIC subsequente e servem como o catalisador para a interação de actina e miosina e o encurtamento do sarcômero. Em termos mais específicos, os íons cálcio ligam-se à proteína reguladora troponina C (C de cálcio), que anula a função inibidora da troponina I (I.D. inibidora) sobre a interação química de actina e miosina. A transformação de energia química em encurtamento do sarcômero e trabalho mecânico depende da hidrólise do ATP e da ATPase da miosina. A hidrólise do ATP em difosfato de adenosina (ADP) com a liberação de fosfato inorgânico (Pi) resulta em uma forte ligação entre a actina e a miosina, além de uma alteração na conformação da cabeça bilobada de miosina que faz com que ela flexione e os filamentos de actina movam-se pelo seu centro. O resultado dessas alterações é um movimento (‘de alavanca’) entre as cabeças de miosina e a actina, de modo que os filamentos de actina e miosina deslizam um sobre o outro,

resultando em encurtamento do sarcômero e/ou tensão (Figura 22.11).41 Os ciclos de alavanca ocorrem enquanto o cálcio citosólico permanece elevado. Aumentos no cálcio intracelular facilitam esse processo químico incrementando a atividade da ATPase da miosina. Portanto, ao combinar-se com a troponina C e aumentar a atividade da ATPase da miosina intracelular, o cálcio serve com o principal fator para a determinação da velocidade com que as pontes cruzadas se formam e desmancham. A taxa de interação das pontes cruzadas é a base para a relação entre força e velocidade em experimentos com tecido isolado por meio dos quais se estuda a atividade contrátil do músculo cardíaco.42 A taxa de inserção das pontes cruzadas determina a velocidade de encurtamento do sarcômero e foi denominada contratilidade cardíaca.43 Além disso, ao aumentar o número de pontes cruzadas interagindo, o cálcio intracelular aumenta a força máxima que pode ser atingida. Em termos clínicos, a taxa de alteração de pressão (dP/dt) e a da força de desenvolvimento (dF/dt) em animais foram usadas como medidas indiretas da contratilidade cardíaca, embora dependentes da carga e da velocidade.43

Figura 22.12 As fibras musculares cardíacas contêm uma fileira sobreposta de proteínas contráteis finas (actina) e espessas (miosina) que produzem várias bandas (A, H, I e Z) dentro de cada sarcômero quando vistas ao microscópio. Notar que os sistemas de túbulos transversos (T) e longitudinais (L) facilitam a presença de quantidades relativamente grandes de cálcio extracelular (10–3 M) nas adjacências das proteínas contráteis (no alto da figura). A despolarização da membrana inicia a entrada de cálcio nas células cardíacas, a interação com as proteínas contráteis e o encurtamento do sarcômero (à esquerda). Em termos mais específicos, a ligação do cálcio com a troponina C (Tn-C) elimina a função inibidora da troponina I (Tn I) sobre a interação da actina com a miosina. A troponina T (Tn-T) liga o complexo de troponina à tropomiosina (à direita).

O comprimento ótimo do sarcômero para a interação de actina e miosina in vitro é de aproximadamente 2,2 µm. Já se pensou que comprimentos menores ou maiores que esse diminuíssem a força da contração cardíaca porque, teoricamente, diminuem o número de cabeças de miosina disponíveis para interação com a actina.42 O conceito de comprimento ótimo do sarcômero com relação à velocidade de encurtamento do sarcômero serve como explicação para a lei de Frank-Starling do coração (também conhecida como lei de Starling), que prediz um aumento na força contrátil quando os sarcômeros estão esticados (aumento do volume ventricular telediastólico) até seu comprimento ótimo (Figura 22.13). No entanto, é improvável que essa explicação esteja totalmente correta, pois o comprimento dos sarcômeros raramente se altera (ou o faz um mínimo apenas) quando com carga, mesmo durante formas dilatadas de insuficiência cardíaca.37 A explicação mais provável para a lei de Starling do coração é que a carga do sarcômero aumenta a afinidade da troponina C pelo cálcio, resultando em maior ativação do miofilamento e encurtamento do sarcômero sem aumento no comprimento do último nem aumento adicional no cálcio intracelular.37 A maioria dos anestésicos intravenosos (p. ex., barbitúricos, cetamina e propofol) e, em particular, os inalatórios diminuem a contratilidade cardíaca dependente da dose porque reduzem o influxo de cálcio através dos canais do tipo L, diminuindo a liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático e a sensibilidade da troponina C ao cálcio.44–54 Os mecanismos que facilitam a concentração de cálcio no citosol aumentam a quantidade de ATP hidrolisado e a força gerada pela interação dos filamentos de actina e miosina e a velocidade de encurtamento. A ativação simpática de receptores adrenérgicos β, por exemplo, aumenta o cAMP, que, por sua vez, ativa a proteinoquinase para aumentar a entrada do cálcio através dos canais do tipo L.36 A ativação da via de transdução do sinal do IP3 também estimula a liberação de cálcio pelo RS através dos receptores de IP3 localizados no RS. A ativação da proteinoquinase dependente do cAMP fosforila o fosfolambano no RS, o que normalmente inibe a captação de cálcio. Essa desinibição do

fosfolambano acarreta aumentos na taxa de captação de cálcio pelo RS. Portanto, os agonistas do receptor adrenérgico β aumentam a força e a velocidade de encurtamento da contração (i.e., inotropismo positivo) e a taxa de relaxamento (i.e., inotropismo negativo).

Figura 22.13 Lei de Starling do coração: o conceito de comprimento ótimo do sarcômero com relação à velocidade do encurtamento do sarcômero quando levado para o coração intacto prediz que aumentos no volume ventricular (aumento da pré-carga) devem aumentar o débito cardíaco.

Os efeitos dos anestésicos injetáveis e inalatórios sobre a sensibilidade da troponina C ao cálcio ainda não foram esclarecidos. É digno de nota que o halotano (e outros inalatórios), isquemia, catecolaminas e acidose interferem na recaptação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático, interferindo, assim, no processo de relaxamento e, por fim, levando à depleção do cálcio intracelular.36 Ocorre ativação simpática de receptores adrenérgicos β por agonistas adrenérgicos endógenos (norepinefrina, epinefrina) ou exógenos (dopamina, dobutamina) que podem ser administrados para aumentar o desempenho contrátil do coração (inotropismo) e acelerar o relaxamento (lusitropismo). A estimulação do receptor adrenérgico β ativa a proteína G ligadora do GTP (GS), que estimula a adenilil ciclase (AC) a produzir cAMP, que ativa a PKA, fosforilando, assim, proteínas envolvidas no acoplamento excitação-contração (fosfolambano, canais de Ca2+ do tipo L, RyR, troponina I e proteína C de ligação à miosina). A interação diminuída dos filamentos de actina e miosina sinaliza o começo do processo de desacoplamento da actina com a miosina e relaxamento miocárdico, e tem relação direta com uma redução na concentração intracelular do íon cálcio.36,42 Esses

mecanismos principais são importantes para reduzir a concentração intracelular do íon cálcio e na queda subsequente da força contrátil do coração. Os aumentos no cálcio intracelular desencadeados pela despolarização aumentam a atividade da proteína reguladora do cálcio calmodulina, que serve como um sensor do cálcio intracelular e, quando ativada (complexo calmodulina-cálcio), estimula a extrusão ativa de cálcio por bombas, aumenta a atividade de uma bomba de cálcio modulada pelo fosfolambano (aumentando a captação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático) e acentua a atividade do intercambiador de sódio e cálcio (Figura 22.11).36 O cálcio sequestrado pelo RS por uma bomba de cálcio dependente do ATP (SERCA: ATPase do cálcio sarco/endoplasmático) diminui a concentração citosólica de cálcio e o remove da troponina C. O cálcio intracelular reduzido induz uma alteração na conformação no complexo da troponina, levando à inibição da última no local de ligação com a actina.42 No fim do ciclo, um novo ATP liga-se à cabeça de miosina, deslocando o ADP, e o comprimento inicial do sarcômero é restaurado. Sistema vascular O propósito do sistema vascular (artérias, capilares e veias) é o transporte de sangue, facilitando, assim, a captação e a troca de nutrientes, bem como a eliminação de subprodutos/resíduos. Os vasos sanguíneos maiores (> 100 a 200 µm) são considerados a macrocirculação e os menores (≤ 100 µm) compreendem a microcirculação. A maioria dos grandes vasos não fica embutida em órgãos e tem como função liberar o sangue para e do coração e dos tecidos periféricos. A maioria dos pequenos vasos encontra-se embutida em órgãos e está envolvida ativamente nos processos de troca e regulação do fluxo sanguíneo. O sistema circulatório é composto por duas circulações conectadas em série: a pulmonar e a sistêmica (Figura 22.1). A artéria pulmonar e a aorta liberam sangue para as circulações pulmonar e sistêmica, respectivamente. A circulação pulmonar recebe a maioria de seu suprimento sanguíneo do ventrículo direito, perfunde o pulmão e esvazia seu conteúdo no átrio esquerdo. A circulação sistêmica recebe seu suprimento sanguíneo, via aorta, do ventrículo esquerdo. A aorta e outras grandes artérias constituem a parte de alta pressão da circulação sistêmica, a qual perfunde a maioria dos órgãos e tecidos do corpo, terminando por esvaziar seu conteúdo no átrio direito. Em termos mais específicos, os vasos da circulação sistêmica (como da pulmonar) passam por divisões repetidas nos leitos vasculares paralelos cada vez menores, que terminam nas arteríolas (as menores artérias), que por sua vez dividem-se ainda mais a partir de capilares. A área de corte transversal total da circulação aumenta muito a cada divisão, alcançando o máximo nos capilares (Figura 22.14).55 De um ponto de vista puramente funcional, os vasos podem ser categorizados com

condutos primariamente elásticos do tipo windkessel (grandes artérias), vasos de resistência (pequenas artérias), vasos esfincterianos (arteríolas), vasos de troca (capilares), vasos de capacitância (vênulas e veias), grandes condutos (veias), vasos de desvio (anastomoses arteriovenosas). Quanto ao aspecto estrutural, todos os vasos sanguíneos contêm uma camada endotelial (túnica íntima) em sua superfície interna que torna essa superfície lisa e impede a coagulação. Todos os capilares também contêm proporções variáveis de fibras elásticas, músculo liso e colágeno (Figura 22.15). Esses três tipos de tecido compreendem a túnica média, composta principalmente de músculo liso e tecido conjuntivo elástico, e a túnica externa (adventícia), que contém fibras de colágeno fibroso. A proporção de tecido conjuntivo elástico com relação ao músculo liso determina a principal função do vaso (i.e., de conduto, resistência ou capacitância). Artérias maiores têm uma alta proporção de tecido elástico em comparação com músculo liso e tecidos fibrosos e são relativamente rígidas em comparação com as veias. Essa diferença estrutural possibilita o estiramento da aorta após a contração ventricular e a ejeção de sangue. A energia potencial (armazenada) sobre a aorta estirada após a contração cardíaca retorna como energia cinética (movimento) e fluxo sanguíneo à medida que o ventrículo começa a relaxar e a valva aórtica se fecha. Arquitetura altamente elástica da aorta facilita o fluxo sanguíneo contínuo, embora não uniforme (efeito windkessel), para os tecidos periféricos durante o ciclo cardíaco (contração-relaxamento-repouso). Acredita-se que o efeito windkessel seja responsável por até 50% do fluxo sanguíneo periférico na maioria dos animais durante frequências cardíacas normais. As arritmias cardíacas, em especial as taquiarritmias, e doenças vasculares (vasos rígidos não elásticos) reduzem o efeito windkessel e causam alterações distintivas na onda de pressão arterial.

Figura 22.14 Relação entre a pressão arterial, a velocidade do fluxo sanguíneo e a área de

corte transversal do sistema cardiovascular. Notar que, à medida que o sangue se aproxima dos capilares, a pressão arterial e a velocidade do fluxo sanguíneo diminuem e a área de corte transversal aumenta. Fonte: modificada de Witzleb Z. Functions of the vascular system. In: Schmidt RF, Thews G, eds. Human Physiology. New York, Springer, 1983; 408.

Uma única camada de células endoteliais delineia todo o sistema vascular e é um fator fundamental na manutenção da integridade estrutural e funcional da parede dos vasos. O endotélio age como uma membrana semipermeável que regula a transferência de moléculas grandes e pequenas. As células endoteliais são dinâmicas e têm funções metabólicas e de síntese que exercem ações autócrinas, parácrinas e endócrinas que modulam a contração e o relaxamento dos músculos lisos, a trombose, a trombólise e a aderência de plaquetas e leucócitos. As células endoteliais geram e mantêm uma camada superficial endotelial (CSE), o glicocálice,56 rico em carboidrato e composto por uma rede de carga negativa de proteoglicanos, glicoproteínas e glicolipídios, que reveste o endotélio vascular de todos os capilares (leitos microvasculares), artérias e veias (macrovasos).57 Ele constitui um compartimento intravascular volumoso que desempenha um papel importante na manutenção da homeostasia da parede vascular ao regular o fluxo sanguíneo, movimento de eritrócitos e leucócitos, bem como a permeabilidade da parede vascular nos capilares.57 A perda patológica do glicocálice inicia o rompimento da barreira vascular e foi associada a isquemia, resposta inflamatória sistêmica, sepse e sobrecarga de volume.58,59

Figura 22.15 Componentes elásticos, músculo liso e tecido fibroso nos vasos sanguíneos da circulação. Notar a ausência relativa de músculo liso nos capilares e vênulas. Fonte: modificada de Berne RM, Levy MN, Principles of Physiology, 1st ed. St. Louis, MO: Mosby, 1990; 195.

Grandes artérias As grandes artérias perto do coração e em todas as extremidades do corpo são tubos altamente elásticos que servem como condutos através dos quais o sangue é transportado para a periferia. A elasticidade das grandes artérias se opõe ao efeito do estiramento que a pressão arterial produz após a contração ventricular. Por exemplo, o estiramento inicial da aorta causado pela ejeção ventricular sofre a oposição do tecido elástico nos vasos sanguíneos, que faz com que a aorta e grandes artérias retornem a sua dimensão original (Figura 22.15). Esse fenômeno de encolhimento das grandes artérias é conhecido como efeito windkessel (ver anteriormente) e ajuda a converter o fluxo descontínuo (cíclico ou fásico) de sangue arterial associado ao bombeamento ventricular em um fluxo contínuo, embora um tanto desuniforme (pulsátil), para as artérias periféricas. Até que ponto as artérias maiores podem se estirar depende da proporção de fibras elásticas com relação às de colágeno. Grandes artérias elásticas não se distendem com facilidade. As artérias sistêmicas, em geral, são 6 a 10 vezes menos distensíveis que as veias sistêmicas. A distensão da artéria pulmonar corresponde a cerca da metade daquela das veias sistêmicas ou pulmonares (Figura 22.16).60

Pequenas artérias As grandes artérias periféricas contêm maiores porcentagens de músculo liso do que de músculo elástico, proporcionando, assim, mais controle sobre o diâmetro do vaso, a resistência vascular e a regulação do fluxo sanguíneo. A quantidade de músculo liso determina o tônus em repouso do vaso, o tônus basal miogênico (contrações espontâneas) e a quantidade de estresse de relaxamento (capacitância tardia) e o estresse de relaxamento reverso exibido pelo vaso. O estresse de relaxamento caracteriza-se por um aumento inicial rápido no tônus em repouso, causado por um aumento no volume vascular que declina gradualmente durante os vários minutos seguintes. A pressão diminui por causa do rearranjo miofilamentar do músculo liso. O estresse de relaxamento reverso é o inverso desse processo. Os ramos mais distais das artérias periféricas (pequenas) terminam nas artérias que são consideradas coletivamente como ‘vasos de resistência’, pois controlam a distribuição do fluxo sanguíneo tecidual. Esses vasos contêm uma predominância de músculo liso, são densamente inervados e incluem arteríolas, metarteríolas e anastomoses arteriovenosas. É digno de nota que aproximadamente 80% da queda de pressão entre a aorta e as grandes veias (veia cava) ocorram através das arteríolas (Figura 22.14).

Figura 22.16 Relação da complacência (volume e pressão) das artérias sistêmicas e veias e o leito vascular pulmonar acumulado. Notar que um pequeno aumento no volume causa um aumento muito maior na pressão arterial do que na pressão venosa, sugerindo uma complacência muito menor (maior elastância). Fonte: modificada da referência 60. Reproduzida, com autorização, de Lippincott Williams & Wilkins.

Vasos de resistência Incluem os ramos terminais de pequenas artérias, arteríolas, metarteríolas (‘vasos esfincterianos’: vaso(s) curto(s) que ligam arteríolas e capilares) e anastomoses arteriovenosas (AAVs). Em condições normais, as arteríolas fornecem mais de 50% da resistência vascular sistêmica total, enquanto as artérias grandes e pequenas são responsáveis por 20%, os capilares por 25% e as veias por 5%. Em termos funcionais, os vasos esfincterianos ajudam a regular o número de capilares abertos e, portanto, o tamanho

do leito capilar disponível para os processos de troca. As arteríolas musculares de paredes relativamente espessas e os vasos esfincterianos são regulados por uma variedade de fatores neurais, humorais e metabólicos locais, sendo os principais determinantes do volume e da distribuição do fluxo sanguíneo para todos os tecidos do corpo. As anastomoses arteriovenosas desviam do capilar ao se conectarem arteríolas a vênulas, permitindo, assim, o desvio do sangue das arteríolas para vênulas. Esses vasos podem reduzir ou interromper totalmente o fluxo sanguíneo para os capilares e são densamente inervados por receptores adrenérgicos tanto α1 como α2.61 As anastomoses arteriovenosas são encontradas em número maior na pele e nas extremidades do corpo (orelhas, pés e cascos) da maioria das espécies, e antes pensava-se que estivessem envolvidas primariamente na termorregulação.61,62 Elas têm células de músculo liso por todo seu comprimento e estão localizadas na maioria, se não todos, os leitos teciduais. Mais recentemente, sua identificação e a verificação na parede intestinal, nos rins, fígado e músculos esqueléticos aumentaram o interesse em seu papel como um mecanismo regulador separado do fluxo sanguíneo para o controle dos nutrientes que o sangue leva para esses tecidos.60 A influência dos anestésicos, em particular os agonistas do receptor adrenérgico α2 sobre as AAVs, não está estabelecida, mas sabe-se que causam uma redistribuição considerável do fluxo sanguíneo e do débito cardíaco, reduzindo predominantemente o fluxo para órgãos menos vitais e o desviando.63

Capilares A microcirculação inclui os vasos sanguíneos menores no corpo e consiste nas arteríolas terminais (cerca de 100 µm), na rede capilar (4 a 8 µm) e nas vênulas (≤ 100 µm). A microcirculação está embutida nos órgãos e é responsável pela regulação do fluxo sanguíneo para os tecidos e pelos processos de troca entre o sangue e os tecidos. Os capilares separam o volume intravascular do volume de líquido intersticial. A parede capilar é uma estrutura de três camadas na maioria dos capilares, consistindo em glicocálice na superfície luminal, membrana basal na superfície abluminal e células endoteliais entre ambos. Portanto, o volume intravascular realmente consiste no volume do glicocálice, no volume plasmático e no volume eritrocitário. O glicocálice normalmente é a interface dinâmica e ativa entre o plasma e a parede capilar, podendo ser visualizado como uma rede de membrana ligada a glicoproteínas e proteoglicanos no lado luminal das células endoteliais (Figura 22.17),56 que age como uma peneira molecular semipermeável com relação a macromoléculas aniônicas, como a albumina e outras proteínas plasmáticas cujo tamanho e estrutura parecem determinar sua capacidade de penetrar na camada. A CSE normal é impermeável aos eritrócitos e moléculas com mais de 70 kDa e semipermeável à albumina (peso molecular de cerca de 69 kDa; diâmetro ≈ 7 nm; coeficiente de reflexão de

0,79 a 0,9).64 Em termos funcionais, moléculas anfipáticas como a albumina ajudam a manter e regular a permeabilidade do glicocálice.65,66

Figura 22.17 O glicocálice é uma rede de glicoproteínas e proteoglicanos ligados à membrana no lado luminal das células endoteliais. Fonte: adaptada da referência 56. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Há três tipos de capilares: contínuos não fenestrados, fenestrados e descontínuos ou sinusoidais (Figura 22.18).66 Todos os capilares são variavelmente porosos e encontrados em números variáveis nos diferentes leitos teciduais, dependendo do metabolismo tecidual (necessidades de O2) e da importância da troca de líquido. Os capilares contínuos não fenestrados com junções estreitas estão localizados em todos os tecidos do corpo, exceto nos epitélios e nas cartilagens. Eles têm um poro funcional com aproximadamente 5 nm de tamanho, que permite a difusão de água, solutos pequenos e materiais lipossolúveis no líquido intersticial circundante, mas o glicocálice impede a perda de moléculas maiores (> 70 kDa) e células sanguíneas.64

Figura 22.18 Ilustração das diferenças anatômicas entre vários tipos de capilares. Os eritrócitos estão excluídos da camada do glicocálice. Fonte: referência 64. Reproduzida, com autorização, de Oxford University Press.

Capilares contínuos não fenestrados especializados são encontrados na maior parte do sistema nervoso central, no sistema nervoso entérico, na retina e no timo. As células endoteliais estão unidas entre si por junções estreitas com um poro efetivo cujo tamanho é < 1 nm.66 As células endoteliais no cérebro e na medula espinal ficam estreitamente opostas pelas junções estreitas da zona ocludente, com poucas quebras na parede capilar, e são responsáveis pela barreira anatômica hematencefálica, que só é permeável a moléculas não lipossolúveis menores. Rupturas nas junções entre células endoteliais causadas por traumatismo ou inflamação são a via primária para a filtração transvascular de líquido e o aumento da porosidade. As aquaporinas, proteínas do canal de água, estão presentes nas células endoteliais vasculares contínuas, mas não fenestradas.67 Elas facilitam seletivamente o transporte rápido de líquido através das células epiteliais e endoteliais, mas também são encontradas em outros tipos de tecido, como células musculares e nervosas. No nível celular, as aquaporinas medeiam o transporte osmótico de água através das membranas plasmáticas celulares e facilitam o transporte transepitelial de líquido, a migração celular e a neuroexcitação. Há pelo menos 11 membros conhecidos da família do gene da aquaporina de mamíferos que codificam proteínas que funcionam como canais de

membrana, para a água apenas ou para a água mais moléculas pequenas.67 Há capilares fenestrados com diafragma nas fenestras na pele, no tecido conjuntivo, nos rins, na mucosa intestinal, nas glândulas endócrinas e exócrinas, bem como no plexo coroide, e podem absorver líquido intersticial para o plasma. A membrana basal desses capilares é contínua, e suas fenestrações com diafragma são induzidas por fatores de crescimento endotelial vascular. O tamanho de seu poro superior varia de 6 a 12 nm.66 Os capilares fenestrados com fenestras abertas são aqueles que contêm ‘janelas’, ou poros, que atravessam o revestimento endotelial. Os poros permitem a troca rápida de água e solutos. Capilares fenestrados abertos estão presentes no córtex e na medula renais, na mucosa gastrintestinal e nos linfonodos. A CSE serve como a principal barreira ao fluxo transcapilar de macromoléculas com mais de 15 nm.64 Os sinusoides (canais) lembram capilares fenestrados, mas, em contraste, são descontínuos e caracterizam-se por hiatos entre células endoteliais adjacentes. A membrana basal e a CSE estão ausentes nas fenestrações e o líquido intersticial é essencialmente parte do volume plasmático nos tecidos sinusoidais (baço, fígado, medula óssea, órgãos endócrinos). As proteínas plasmáticas (p. ex., albumina) secretadas pelas células hepáticas passam facilmente através dos sinusoides e para a corrente sanguínea através de poros com até 200 a 280 nm.66 Células fagocíticas monitoram a passagem do sangue nos tecidos sinusoidais, engolfando eritrócitos danificados, patógenos e restos celulares. Qualquer que seja o tipo de capilar examinado, a troca de líquido, nutrientes e subprodutos celulares entre o sangue e o líquido intersticial é sua função primária. A troca capilar é governada por dois processos primários: difusão e filtração. A lei de Fick da difusão descreve a troca de soluto (Js) como Js = DADC/MT em que D é o coeficiente de difusão, A é a área de superfície capilar, MT é a espessura da membrana e DC é o gradiente ou diferença de concentração. O coeficiente de difusão é determinado pelo meio de difusão e pelas qualidades características da partícula em difusão, como o peso molecular, a carga iônica e a solubilidade lipídica. A troca por filtração é determinada por quatro fatores primários (Pc, Pi, πc e πi), de acordo com uma equação de equilíbrio dinâmico, proposta pela primeira vez por Starling e Landis (lei de Starling do capilar) e modificada por Pappenheimer e Soto-Rivera:

em que Jv é o fluxo de líquido através do capilar (positivo para filtração e negativo para reabsorção), Pc e Pi são as pressões hidrostáticas capilar e intersticial, πp e πi são as

pressões plasmática no capilar e coloidosmótica intersticial de proteínas, Ki é o coeficiente de filtração capilar e σ é o coeficiente de reflexão osmótica para todas as proteínas plasmáticas.68,69 O coeficiente de filtração (Ki) indica a resistência da parede vascular ao fluxo de líquido e é determinado pela área de superfície, pelo número e pelo raio dos poros capilares, pela espessura da parede capilar e pela viscosidade do líquido que está sendo filtrado. O coeficiente de reflexão osmótica (σ) é um indicador do transporte transvascular de proteína e, em geral, presume-se que seja muito alto (1 ou próximo disso) em animais normais, pois a maioria dos leitos capilares é impermeável aos coloides. Como todos os fatores podem ser medidos, calculados ou estimados com a equação de Starling, o fluxo resultante de líquido através da parede capilar pode ser quantificado com precisão.69 Em termos conceituais, já se acreditou que esses fatores explicavam a filtração de líquido na extremidade arterial do capilar e sua reabsorção na extremidade venosa do mesmo. Os vasos linfáticos levam o excesso de líquido para fora. Agora se considera que os capilares não fenestrados normalmente filtram líquido para o líquido intersticial (LI) por todo seu comprimento, o fluxo de líquido para o espaço intersticial está sob um gradiente de pressão hidrostática dominante (pressão capilar, Pc, menos a pressão no LI, Pi) e o efeito de πc sobre a troca de líquido transvascular é muito menor do que o previsto (Figura 22.19).57

Figura 22.19 Desequilíbrio das pressões clássicas de Starling quando quatro termos são medidos ao mesmo tempo. A parte (A) mostra o modelo tradicional de filtração e reabsorção proposto na maioria dos livros. A parte (B) mostra a evidência atual de que o líquido deixa o capilar em todo seu comprimento, em decorrência da pressão hidrostática e da influência sobre um glicocálice intacto; os termos intersticiais são considerados dispensáveis. As setas pretas indicam o equilíbrio da força resultante e, daí, a direção e a magnitude da troca de líquido. A linha tracejada (vermelha) ilustra qualiatativamente a força de filtração resultante muito menor prevista pelo modelo do glicocálice e fenda. Ver Figura 22.20. Fonte: referência 57. Reproduzida, com autorização, de Oxford University Press. (Esta figura encontra-se

reproduzida em cores no Encarte.)

A diferença de pressão coloidosmótica (PCO) que determina a troca de líquido é aquela através do glicocálice semipermeável. A baixa concentração de proteína dentro do espaço intercelular do subglicocálice é responsável pelo baixo fluxo transcapilar (Jv) e pelo fluxo de linfa na maioria dos tecidos. Não ocorre absorção através dos capilares venosos e vênulas, exceto no caso de doença. Em condições normais, πc opõe-se à filtração, mas não a reverte, e a maioria do líquido filtrado retorna à circulação na forma de linfa. A camada de superfície endotelial cobre as fendas intracelulares endoteliais nos capilares fenestrados, separando o plasma de um espaço sob o glicocálice quase sem proteína (Figura 22.18). A PCO (πg) substitui πi como um determinante de Jv. O líquido no lado abluminal do glicocálice é separado do LI pericapilar pela via tortuosa através das fendas intercelulares. As proteínas plasmáticas, inclusive a albumina, escapam para o espaço intersticial através das fendas intercelulares (poros maiores), que são responsáveis pelo aumento do Jv observado durante inflamação. É importante lembrar que o Jv pode ser modificado por muitos fatores, inclusive fármacos e a terapia hídrica com líquidos intravenosos para reposição. A equação revisada de Starling deve ser escrita como

em que πg é a PCO do ultrafiltrado no lado inferior do glicocálice (Figura 22.20). A πp pode ser muito baixa, por dois motivos: σ é alto ou o fluxo para fora do ultrafiltrado impede o equilíbrio da difusão de proteína entre o líquido do subglicocálice e o LI pericapilar. A filtração do líquido transcapilar fornece o meio para o fluxo difusional de oxigênio e nutrientes necessários para o metabolismo celular e a remoção de subprodutos metabólicos, além de influenciar o tônus do músculo liso vascular nas arteríolas, a condutividade hidráulica nos capilares e a transmigração de neutrófilos através das vênulas pós-capilares. A redistribuição de líquido através da barreira endotelial microvascular constitui o mecanismo primário para a remoção do excesso de líquido da corrente sanguínea e a formação de linfa, em particular durante sobrecarga de volume vascular. Aumentos na Pc (sobrecarga de volume, obstrução venosa e insuficiência cardíaca) e no Kf (histamina, citocinas e cininas) ou quedas na πp (hipoproteinemia) causam excesso de líquido, que se acumula no espaço intersticial, resultando em edema. O edema intersticial (ou celular) aumenta a distância de difusão do oxigênio e de outros nutrientes e causa colapso dos capilares no tecido tumefato (ausência de refluxo capilar), especialmente nos órgãos encapsulados (p. ex., cérebro, rins), comprometendo o metabolismo celular e prejudicando a perfusão tecidual nutritiva. A formação de edema e a ausência de refluxo capilar também

atuam para limitar a remoção difusional de produtos potencialmente tóxicos do metabolismo celular. O edema deve-se não apenas a um aumento na Pc, mas também à degradação da CSE. O acúmulo excessivo de líquido nos pulmões, intestinos e fígado (os chamados órgãos de superfluxo) pode resultar em coleção de líquido nos alvéolos, no lúmen intestinal e na cavidade peritoneal. Quedas na Pc (hipotensão e hipovolemia) e aumentos na πp (hiperproteinemia e desidratação) favorecem a reabsorção de líquido intersticial no compartimento vascular (autotransfusão), reduzindo o potencial de acúmulo de líquido no espaço intersticial. Anestesia, anestésicos, quantidade e tipo de líquido administrado, bem como técnicas anestésicas podem ter efeitos importantes nas forças de Starling e na CSE.56,65,69 Por exemplo, a maioria dos anestésicos e das técnicas anestésicas diminuem a Pc, causando reabsorção resultante de líquido do espaço intersticial e hemodiluição. Se o anestésico ou a técnica provocar vasodilatação discreta de pequena artéria, a Pc pode aumentar, resultando em acúmulo de líquido intersticial (p. ex., edema). Vários fármacos anticancerosos (doxorrubicina) e anestésicos (p. ex., morfina e meperidina) ou diluentes (Chremofor EL) causam liberação de histamina, aumentando assim o Ki. A sobrecarga de líquido degrada a CSE, resultando em acúmulo de líquido intersticial (Boxe 22.2).70–73

Figura 22.20 Lei de Starling do capilar revisada. O ‘conceito de barreira dupla’ reconhece o espaço abaixo do glicocálice endotelial como quase livre de proteína (πg). Isso altera o gradiente oncótico dirigido para dentro sugerido por Ernest Starling para o lado luminal da parede vascular. A perda de líquido transcapilar é limitada por um gradiente de pressão oncótica através do glicocálice endotelial, e não através de toda a parede anatômica do vaso. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.) Boxe 22.2 Causas de aumento do volume de líquido intersticial e edema.

Aumento da pressão de filtração Dilatação arteriolar Constrição de vênula Aumento da pressão venosa (insuficiência cardíaca, valvas incompetentes, obstrução venosa, aumento do volume total de líquido extracelular, efeito da gravidade etc.) Queda no gradiente de pressão osmótica através do capilar Queda no nível plasmático de proteína Acúmulo de substâncias osmoticamente ativas no espaço intersticial Aumento da permeabilidade capilar Substância P Histamina e substâncias relacionadas Cininas etc. Fluxo sanguíneo inadequado

Vênulas e veias As vênulas pós-capilares são compostas por um revestimento endotelial e tecido fibroso, e têm como função colher o sangue dos capilares (Figura 22.15). Como os capilares, as paredes das vênulas menores são muito porosas e servem como os principais locais para a troca de líquido. A troca de líquido e de macromoléculas ocorre de maneira mais proeminente nas junções venulares, onde leucócitos fagocíticos emigram do sangue para os tecidos inflamados ou infectados. Algumas vênulas agem com esfíncteres pós-capilares, e todas emergem em pequenas veias. A inervação simpática de vênulas maiores pode alterar o tônus delas e desempenha uma função importante na regulação da pressão hidrostática capilar. Veias pequenas e grandes contêm quantidades crescentes de tecido fibroso, além de músculo liso e tecido elástico, embora suas paredes sejam muito mais finas que as de artérias de tamanho comparável. Muitas veias contêm válvulas que agem em conjunto com a compressão externa (músculos em contração e diferenças de pressão nas cavidades abdominal e torácica), para facilitar o retorno do fluxo sanguíneo para o átrio direito.74 O sistema venoso é o principal reservatório de sangue, contendo 60 a 70% do volume

sanguíneo durante condições de repouso (Figura 22.21). As veias são 30 vezes mais complacentes (distensíveis) que as artérias (Figura 22.16). As veias esplâncnicas e cutâneas têm uma população maior de receptores adrenérgicos α1 e α2 que, quando ativados, ajudam a mobilizar o sangue para a circulação, sempre que isso é necessário (ver circulação esplâncnica). É importante lembrar que o coração não pode bombear mais sangue para a circulação além da quantidade que ele recebe, de modo que o tônus venomotor (resistência venosa) é um determinante principal do retorno venoso e do débito cardíaco.

Figura 22.21 O sangue distribui-se de maneira desuniforme por todo o sistema circulatório. A maior parte do volume sanguíneo fica contida dentro de veias sistêmicas. Alterações relativamente pequenas na capacidade venosa podem modificar extremamente a pressão de enchimento cardíaco, causando alterações previsíveis no débito cardíaco (Q), na resistência vascular periférica (R) e na pressão sanguínea arterial (P). Diminuições na pressão de enchimento, por exemplo, diminuem Q e P e aumentam R. Fonte: modificada da referência 54. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Metabolismo do músculo liso

O metabolismo dos carboidratos e ácidos graxos pelo músculo liso vascular é compartimentalizado e caracteriza-se por uma produção substancial de ácido láctico, mesmo em condições de oxigenação completa.75,76 O papel que a produção aeróbica de lactato desempenha na energética do músculo liso ainda não foi completamente definido e é provável que sirva como um mecanismo para proporcionar coordenação ótima e modulação do fornecimento de glicose e ligação para a produção de energia oxidativa com a demanda de energia. A membrana do músculo liso vascular contém microdomínios (cavéolas) e canais iônicos que regulam o metabolismo e a função celulares. Eles incluem mas não estão limitados a um hospedeiro de receptores (óxido nítrico, prostaciclina, endotelina, serotonina, vasopressina, adenosina, receptores muscarínicos e adrenérgicos), geradores de segundo mensageiro (ciclase de adenilato, fosfolipase C), proteínas G (RhoA, Gα), quinases (quinase rho, proteinoquinase C, proteinoquinase A), canais iônicos (canais de cálcio do tipo L, canais de KATP, canais sensíveis ao cálcio) em estreita proximidade, que regulam a função do músculo liso vascular.75,76

Contração do músculo liso O músculo liso é um músculo não estriado involuntário fundamentalmente diferente do esquelético e do cardíaco em termos de estrutura, função, regulação da contração e acoplamento excitação-contração. O músculo liso vascular é dividido em dois subgrupos: a unidade única (unitária) e músculo liso multiunitário. O músculo liso vascular unitário predomina em locais de esfíncter pré-capilar e caracteriza-se por atividade espontânea iniciada por áreas de marca-passo ativadas por estiramento. O músculo liso vascular unitário opera para manter um fluxo sanguíneo local constante, apesar de alterações nas pressões de perfusão.75 As fibras de músculo liso multiunitário, em geral, não respondem ao estiramento, estão presentes nas maiores artérias e veias, sob o controle do sistema nervoso central, e anulam o músculo liso unitário para regular a distribuição do fluxo sanguíneo corporal total.75–77 A contração das células musculares lisas é regulada por ativação do receptor e mecânica (estiramento) das proteínas contráteis actina e miosina. Uma alteração no potencial de membrana iniciado por potenciais de ação também pode disparar a contração. Todos os três mecanismos acarretam aumentos no Ca2+ citosólico ([Ca2+]).76 Aumentos no Ca2+ citosólico aumentam a liberação de Ca2+ das reservas intracelulares (retículo sarcoplasmático) e do espaço extracelular através dos canais de Ca2+ (operados pelo receptor). A atividade contrátil no músculo liso é determinada primariamente pela fosforilação da cadeia leve de miosina. A ativação pelo receptor ou pelo estiramento aumenta o Ca2+ intracelular, que se combina com a proteína calmodulina. O complexo Ca2+-calmodulina ativa a quinase da cadeia leve de miosina (quinase da CLM) para fosforilar essa cadeia, resultando na interação da miosina com a actina e em contração

(Figura 22.22). A energia liberada do ATP resulta no ciclo de pontes cruzadas da miosina com actina para a contração. A sensibilização das proteínas contráteis ao Ca2+ é sinalizada pela via da quinase RhoA/Rho, para inibir a desfosforilação da cadeia leve pela fosfatase da miosina, mantendo, assim, a força de geração. Níveis baixos de fosforilação da cadeia leve de miosina mantêm os níveis basais de tônus do músculo liso.77,78 Os canais de cálcio plasmalêmicos são as principais vias pelas quais o Ca2+ entra nas células musculares lisas vasculares.78 Foram identificados vários tipos de canais de Ca2+, incluindo os operados pela voltagem (CCOVs), por receptor (CCORs) e pelos estoques de cálcio (CCOEs). Os CCORs são subdivididos ainda em canais de Ca2+ abertos pelo ligando e nos operados pelo segundo mensageiro (CCOSMs).79 Os CCORs podem ser bloqueados por antagonistas do cálcio (p. ex., verapamil, diltiazém ou nifedipino). Todos desempenham um papel no aumento da concentração intracelular de Ca2+, mas acredita-se que os CCOVs sejam cruciais na regulação fisiológica do tônus do músculo liso vascular. As concentrações citosólicas de Ca2+ são reduzidas pelo complexo Ca2+-ATPase da membrana plasmática (CAMP), pelo Ca2+-ATPase do retículo sarcoplasmático (CARS), pelo intercambiador de Na+/Ca2+ e pelas proteínas de ligação do Ca2+ citosólico. Tanto a extrusão do Ca2+ mediada pelo CAMP como a captação do Ca2+ mediada pelo CARS desempenham papéis principais na redução do Ca2+ nas células musculares lisas vasculares.78 Vários agonistas (norepinefrina, epinefrina, angiotensina II, endotelina etc.) podem induzir contração do músculo liso ao ligar-se aos receptores acoplados à proteína G, que estimulam a atividade da fosfolipase C, a qual ativa o 4,5-bifosfato de fosfatidilinositol (PIP2) lipídico da membrana para catalisar a formação de dois segundos mensageiros: IP3 e diacilglicerol (DAG). Acredita-se que a ativação dos receptores dos canais de IP3 desempenhe um papel fisiológico primário na mobilização do Ca2+ intracelular. A ligação do IP3 a receptores no retículo sarcoplasmático resulta na liberação de Ca2+ no citosol. É digno de nota que esses mecanismos de liberação de cálcio induzida pelo cálcio (LCIC) são considerados essenciais para a homeostasia celular normal do Ca2+ nas células do músculo liso vascular.78,79 Além da ativação da quinase da CLM dependente do Ca2+, a fosforilação da cadeia leve de miosina é também regulada pela fosfatase da CLM (desfosforilação), que remove fosfato de alta energia da cadeia leve de miosina para promover o relaxamento do músculo liso (Figura 22.22).75–78 Isto ocorre como resultado da remoção do estímulo contrátil, de quedas na concentração intracelular de Ca2+, aumento na atividade da fosfatase da CLM, ou da ação direta de uma substância que inibe o mecanismo contrátil. Uma queda na concentração intracelular de Ca2+ pela captação de Ca2+ no retículo sarcoplasmático é dependente da hidrólise do ATP. A ligação do Ca2+ sarcoplasmático a proteínas também contribui para diminuir as concentrações intracelulares de Ca2+. A membrana plasmática

também contém intercambiadores de Na+/Ca2+ e ATPases de Ca2+-Mg2+, o que confere um mecanismo adicional para reduzir a concentração do ativador de Ca2+ dentro da célula.77

Figura 22.22 Acoplamento excitação-contração no músculo liso vascular. O cálcio entra nas células cardíacas através de dois tipos de canais dependentes da voltagem (L e T) e vários tipos de canais operados por receptor. Não é mostrado como alguns agonistas agem sobre os receptores de membrana do músculo liso para estimular a renovação do fosfatidilinositol e a produção de trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG). O IP3 libera cálcio do RS e o DAG ativa a proteinoquinase C, que estimula a atividade dos canais de cálcio lentos dependentes da voltagem. O cálcio que entra na célula dispara a liberação de cálcio intracelular (liberação de cálcio induzida pelo cálcio) a partir do retículo sarcoplasmático (RS). Aumentos no cálcio intracelular também interagem com a calmodulina para formar um complexo dos dois, que estimula a quinase da cadeia leve de miosina (CLM), a qual, junto com o cálcio intracelular, facilita a interação da actina com a miosina. A contração termina com a desfosforilação da cadeia leve de miosina pela fosfatase e o cálcio intracelular é reduzido pela recaptação sarcolêmica (músculo liso) e do RS, pela troca de cálcio intracelular

por sódio extracelular e pela ação dos canais lentos de cálcio.

A maioria dos anestésicos voláteis e intravenosos inibe a atividade contrátil do músculo liso vascular. A resposta ocorre em concentrações clinicamente relevantes dos anestésicos voláteis e na extremidade superior ou mais alta que as concentrações clinicamente relevantes de anestésicos no caso dos injetáveis.78,79 A vasoconstrição resultante de muitos receptores de agonistas comuns endógenos e exógenos, incluindo epinefrina, norepinefrina, dopamina, dobutamina e fenilefrina, é anulada pelos anestésicos.79 A ativação operada por receptor, CCOVs, CARS e a sensibilidade do miofilamento ao Ca2+ é inibida por anestésicos voláteis e injetáveis. O isofluorano, o sevofluorano, o propofol e os benzodiazepínicos inibem a contração do músculo liso diminuindo a concentração intracelular de Ca2+, efeito mediado pelo bloqueio dos canais de cálcio, em especial os CCOVs, e aumentando os níveis intracelulares de AMP e GMP cíclicos. A supressão da contração do músculo liso, induzida pelos anestésicos voláteis, também é atribuível a mecanismos independentes da [Ca2+], que envolvem a depressão da sensibilização ao Ca2+ mediada pela proteinoquinase C.79 Os canais de potássio sensíveis ao ATP (KATP) presentes nas células do músculo liso vascular desempenham um papel importante nas respostas vasculares a uma variedade de vasodilatadores farmacológicos e endógenos.80 Os canais de KATP são inibidos pelo ATP intracelular e por agentes à base de sulfonilureia. Os vasodilatadores farmacológicos usados para baixar a pressão arterial (cromacalim, pinacidil) e muitos anestésicos, inclusive o isofluorano, o sevofluorano e o propofol, ativam diretamente os canais de KATP, resultando na saída de K+ da célula e em hiperpolarização da membrana.79–81 A hiperpolarização da membrana associada fecha os canais de Ca2+ dependentes da voltagem, o que acarreta uma redução no Ca2+ intracelular e vasodilatação.81 O isofluorano ativa os canais de KATP via ativação da proteinoquinase A (PKA). Em contraste, a hipotensão após administração sistêmica de propofol é causada principalmente por seu efeito de relaxamento direto sobre o músculo liso vascular.82 É digno de nota lembrar que os canais de KATP são ativados durante hipoxia, isquemia, acidose e choque séptico.80

Sangue O sangue é um líquido único e complexo, que tem muitas propriedades e funções ainda não elucidadas. Composto por aproximadamente 60% de plasma e 40% de células, o sangue é responsável pelo transporte de oxigênio, nutrientes e outras substâncias (células, plaquetas, fatores da coagulação, eletrólitos, proteínas, hormônios etc.) para os tecidos e de dióxido de carbono, dos subprodutos do metabolismo celular e de substâncias estranhas (p. ex., anestésicos) para os órgãos encarregados de sua eliminação. Essa suspensão de eritrócitos,

leucócitos e plaquetas no plasma é responsável pela manutenção de um ambiente interno normal (homeostasia), pela defesa contra substâncias estranhas (imunidade) e pela prevenção ou limitação de hemorragias (hemostasia).83 A função mais essencial do sangue é liberar oxigênio para os tecidos. O oxigênio é relativamente insolúvel no plasma (93 a 95% de água por volume): 0,003 mℓ de O2 por 100 mℓ de plasma por 1 mmHg de pressão parcial de oxigênio (PO2) ou aproximadamente 0,3 mℓ por 100 mℓ a uma PO2 igual a 100 mmHg. A hemoglobina (Hb) contida nos eritrócitos (ou hemácias) transporta quantidades muito maiores de oxigênio do que poderiam ser levadas pelo plasma. A encapsulação da Hb nos eritrócitos tem consequências biológicas importantes, inclusive a taxa de saturação de Hb com oxigênio, sua meia-vida intravascular, a prevenção de toxicidade renal e a manutenção da pressão coloidosmótica. A PO2 em que a Hb está com 50% de saturação de oxigênio denomina-se P50 (Figura 22.23). Na maioria das espécies, a alta concentração de 2,3-difosfoglicerato dentro dos eritrócitos, em comparação com o plasma, facilita a liberação de oxigênio da Hb e ajuda a manter uma P50 fisiologicamente relevante (26 a 28 mmHg). A quantidade de O2 que pode ser transportada pelo sangue depende da quantidade de Hb por unidade de sangue. A hemoglobina existe como um tetrâmero (peso molecular de 64 kDa), que consiste em duas cadeias polipeptídicas α e duas β. Cada cadeia polipeptídica contém heme e uma molécula central de ferro que pode ligar-se ao oxigênio.83 A afinidade da Hb pelo oxigênio depende da PCO2, do pH, da temperatura corporal, da concentração intraeritrocitária de 2,3-fosfoglicerato e da estrutura química da Hb (Figura 22.23).3 O heme deve estar na forma reduzida ou de sulfato ferroso (Fe2+) para ligar-se ao oxigênio. Cada grama de Hb pode levar aproximadamente 1,34 mℓ de oxigênio (capacidade de oxigenação), sem incluir o oxigênio dissolvido no plasma. Isso significa que a quantidade aproximada de O2 levada por 15 g/dℓ de Hb ao nível do mar será de 20 mℓ/100 mℓ (15 g/dℓ × 1,34 mℓ = 20 mℓ/100 mℓ). A quantidade total de O2 (dissolvido no plasma e ligado à Hb) levada pelo sangue denomina-se conteúdo de oxigênio e é determinada pelo conteúdo de oxigênio da Hb, pela saturação percentual (%Sat) da Hb, pela concentração de Hb e pela pressão parcial de oxigênio. Quando a PO2 é de 100 mmHg e a Hb é de 15 g/dℓ, o conteúdo sanguíneo de oxigênio é de 20,8 mℓ [(1,34 × Hb × %Sat) + (0,003 × PO2) = 20,8 mℓ], enfatizando a importância do papel da Hb como transportadora de oxigênio.

Figura 22.23 A. Curva de dissociação de oxigênio-hemoglobina: a pressão arterial parcial de oxigênio (PO2) é colocada no gráfico contra a saturação da hemoglobina (Hb) com oxigênio (O2). A curva faz um desvio para a direita (a Hb tem menos afinidade pelo O2) por causa de

acidose (↓pH) e aumentos na concentração de dióxido de carbono ([CO2]), na temperatura corporal e no 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG). Esse efeito ajuda a descarregar o O2 da Hb nos tecidos em metabolismo e aumenta a afinidade pelo O2 nos pulmões. B. A concentração de Hb e a viscosidade sanguínea (µ) determinam a liberação de oxigênio para os tecidos. Há um volume ‘ideal’ de Hb ou hematócrito (Ht) (3 × Hb = Ht), em que a liberação de oxigênio para os tecidos é otimizada. cP, centipoise.

Forma-se meta-hemoglobina quando o ferro contido dentro da molécula de Hb é oxidado para o estado férrico (Fe3+), a forma da Hb que não pode ligar-se ao oxigênio. A hemoglobina é mantida no estado Fe3+ dentro dos eritrócitos pela redutase do dinucleotídio reduzido de nicotina adenina (NADH)–meta-hemoglobina. A carbóxi-hemoglobina, a sulfa-hemoglobina e a cianometa-hemoglobina são outras Hbs sem capacidade de transportar oxigênio. A ligação do oxigênio à Hb tem um papel vasorregulador importante, por promover a ligação do óxido nítrico (NO), formando S-nitroso-hemoglobina (SNO).84,85 O óxido nítrico desempenha um papel central na fisiologia vascular como uma molécula vasodilatadora autócrina e parácrina que mantém o tônus vasomotor, medeia a vasodilatação mediada pelo fluxo e inibe a agregação plaquetária e a molécula de expressão da aderência ao endotélio.86,87 Evidência atual sugere que a desoxigenação da Hb é acompanhada por uma transição alostérica na S-nitroso-hemoglobina [da estrutura R (oxigenada) para a T (desoxigenada)], que libera o grupo NO.88 A S-nitroso-hemoglobina contrai os vasos sanguíneos e diminui a perfusão na estrutura R, além de relaxar os vasos para melhorar o fluxo sanguíneo na estrutura T.88,89 Portanto, ao perceber o gradiente fisiológico de oxigênio nos tecidos, a Hb explora as alterações associadas à conformação na SNO para trazer o fluxo sanguíneo local alinhado com as necessidades de oxigênio (Figura 22.24). Parte do dióxido de carbono produzido pelo metabolismo dos tecidos liga-se à Hb desoxigenada e é eliminada durante o processo de oxigenação, antes que o sangue retorne à circulação sistêmica e o ciclo se repita. A Hb plasmática livre (hemólise) é mantida no estado ferroso (Fe2+) redox, que reage com o NO em uma reação quase limitada pela difusão para inibir a sinalização do NO.89 O extravasamento de Hb para o espaço subendotelial e a reciclagem redutiva de volta ao estado ferroso podem acentuar esse efeito. A oxidação de Hb livre da célula a partir do estado férrico (Fe3+) para ferril (FE4+) age como um agonista pró-inflamatório potente que inicia a lesão celular oxidativa.90 O heme e o ferro livres promovem lesão inflamatória via ativação de respostas imunes inatas nos macrófagos e monócitos. As vias compensatórias que normalmente controlam essas reações de desoxigenação e oxidação incluem o sequestro de dímero D e heme mediado pela haptoglobina e pela hemopexina, respectivamente.90 A sinalização da hemoxigenase e da redutase da biliverdina destoxifica o heme e o ferro, proporcionando uma sinalização

protetora antioxidante catalítica, antiproliferativa e anti-inflamatória. Quando os mecanismos de eliminação protetora de Hb estão saturados, os níveis de Hb livre da célula aumentam no plasma, resultando no consumo de óxido nítrico. Como o óxido nítrico desempenha um papel importante na homeostasia vascular e sabe-se que é um regulador crítico do relaxamento do músculo liso basal e mediado pelo estresse, bem como do tônus vasomotor, da expressão da molécula de adesão endotelial, da ativação e da agregação plaquetárias, o consumo excessivo pode ter consequências clínicas drásticas, incluindo distonias que envolvem os sistemas gastrintestinal, cardiovascular, pulmonar e urogenital, assim como distúrbios da coagulação. Além disso, a depleção de haptoglobina acarreta depuração renal dos dímeros de Hb livre,86,87 e a depuração renal de grandes quantidades de dímeros de Hb pode resultar ainda em sua precipitação nos túbulos proximais, ocasionando dano tubular renal e insuficiência renal.91 A Hb livre também aumenta a pressão coloidosmótica do sangue total. Em termos coletivos, essa é uma área ativa de investigação atual e central para o desenvolvimento, a eficácia clínica e a segurança dos transportadores de oxigênio baseados na Hb. Há pouca, se alguma, informação a respeito dos efeitos dos anestésicos sobre a capacidade de transporte de oxigênio pela Hb, embora se saiba que vários anestésicos locais (p. ex., prilocaína, benzocaína) e incipientes em solução (p. ex., álcool benzílico) predisponham à meta-hemoglobinemia, especialmente em gatos.

Figura 22.24 Modelo simplificado do ciclo respiratório: um sistema de três gases, abrangendo NO, CO2 e O2, em que os dois últimos governam o equilíbrio entre as estruturas R e T da Hb, que por sua vez dita se a bioatividade do NO é dispensada para dilatar os vasos sanguíneos; alterações dinâmicas e gradativas no tônus arteriolar acoplam o fluxo sanguíneo à demanda metabólica (‘vasodilatação hipóxica e vasoconstrição hiperóxica’). A bioatividade do NO está ligada ao equilíbrio entre as SNOs (hemoglobina S-nitrosilada) no sangue e nos tecidos, cuja posição é regulada pelo estado alostérico da hemoglobina. Fonte: referência 88. Reproduzida, com autorização, de Nature. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 22.25 O sistema linfático (verde) é linear e, nele, os capilares linfáticos nos tecidos periféricos drenam a linfa e a transportam de volta para o sistema sanguíneo vascular pelo ducto torácico. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Sistema linfático

Em termos anatômicos, o sistema linfático periférico não faz parte do sistema sanguíneo circulatório e consiste em uma rede densa de canais que funcionam em conjunto com o sistema circulatório para o transporte de via única de líquido intersticial, proteínas, lipídios e produtos de degradação de volta para a circulação sanguínea, via ducto torácico (Figura 22.25). Ele está envolvido integralmente na manutenção da dinâmica circulatória normal, especialmente do volume de líquido intersticial (aproximadamente 10% do filtrado capilar). Os capilares linfáticos (lactíferos) colhem o líquido intersticial (linfa) principalmente na forma de quilomícrons (triglicerídios, fosfolipídios, colesterol e proteínas), que acabam retornando para a veia cava cranial e o átrio direito após passagem por uma série de vasos linfáticos e linfonodos.93 Os vasos linfáticos têm músculo liso dentro de suas paredes, contêm valvas similares às das veias e são responsáveis pelo fluxo de linfa.94 O sistema linfático desempenha um papel crítico na homeostasia do líquido intersticial, na defesa imune e na manutenção do metabolismo. Os vasos linfáticos transportam linfa, proteínas, células imunes e lipídios digeridos, permitindo que o líquido e as proteínas retornem à corrente sanguínea, os lipídios sejam armazenados e os antígenos sejam detectados nos linfonodos. A drenagem linfática é dirigida principalmente pelas constrições rítmicas, que dependem do NO, do músculo liso dos vasos linfáticos e da contração do músculo esquelético em conjunto com as válvulas linfáticas (Figura 22.25).95 O equilíbrio do líquido intersticial (acúmulo) é modulado de maneira crítica pela pressão desse líquido e por mediadores inflamatórios. Os linfonodos filtram o líquido intersticial e destroem bactérias, vírus e detritos. Os capilares linfáticos existem em todos os órgãos e tecidos vascularizados, exceto na retina, nos ossos e no cérebro. Os capilares linfáticos não têm uma membrana basal, mas são revestidos com uma camada única de células endoteliais linfáticas (CELs) parcialmente sobrepostas,93,95 as quais estão ancoradas às matrizes extracelulares e funcionam como valvas primárias que controlam unidirecionalmente a drenagem da linfa quando a pressão intersticial aumenta. As células endoteliais linfáticas modulam a resposta inflamatória secretando quimiocinas para o recrutamento de células imunes (dendríticas) no sistema linfático. Além disso, proteínas importantes na resposta imune inata [p. ex., receptor semelhante ao Toll (TRL-4, de Toll-like receptors)] têm alta expressão nas CELs e contribuem para a linfangiogênese induzida por lipopolissacarídios (LPS) mediante o recrutamento quimiotático de macrófagos.96,97 É interessante o fato de que a mofina e outros opioides são agonistas do TRL-4. A ativação do receptor TLR-4 foi associada a alterações comportamentais e efeitos a longo prazo causados por opioides, inclusive tolerância, hiperalgesia e alodinia.98,99

Circulações especiais As circulações de sistemas orgânicos específicos (cérebro, rins, fígado etc.) são discutidas em mais detalhes em outros capítulos, nos quais são descritas sua fisiologia e sua anatomia. No entanto, três circulações merecem menção especial: a coronariana, a pulmonar e a esplâncnica. O fluxo sanguíneo miocárdico e a liberação de oxigênio são críticos para a prevenção de isquemia miocárdica e a manutenção da função cardíaca normal. As circulações pulmonar e esplâncnica recebem todo ou grande parte do débito cardíaco, respectivamente, e são reservatórios sanguíneos essenciais. Anestésicos e anestesia impedem as respostas compensatórias normais e os mecanismos autorreguladores que mobilizam e redistribuem o sangue para os tecidos em que a demanda é maior. Esses efeitos devem-se primariamente aos seus efeitos vasodilatadores e à depressão da ativação simpaticoadrenal.

■ Circulação coronariana O coração tem o maior consumo de oxigênio por unidade de massa tecidual de todos os principais órgãos no corpo. A extração de oxigênio arterial no miocárdio é de 70 a 80%, comparada com aproximadamente 25% para a maioria dos outros órgãos. O coração recebe aproximadamente 5% do débito cardíaco (0,8 mℓ/min por grama de músculo cardíaco), e tem uma rica rede capilar, três a quatro vezes mais densa que a do músculo esquelético, para conseguir essa extração tão alta.100–103 As diferenças anatômicas na circulação coronariana entre espécies são responsáveis pelas dissimilaridades na fonte e na distribuição do fluxo sanguíneo miocárdico (Figura 22.3B). A artéria coronária anterior esquerda descendente e seus ramos diagonais suprem massa de miocárdio maior do que a circunflexa nos seres humanos, suínos, ratos e primatas não humanos. A artéria circunflexa supre a maior massa de músculo cardíaco em cães, gatos, equinos e bovinos, embora haja variação individual considerável entre os animais.104 Os cães têm uma circulação colateral extensa, enquanto porcos e primatas, não.105 As veias cardíacas esvaziam-se na grande veia cardíaca, que se esvazia no átrio direito, via seio coronário, e é responsável por mais de 90% do retorno venoso de coração.105 Vasos pequenos, como capilares (veias de Tebésio), estão presentes por todo o coração e drenam diretamente nas câmaras cardíacas, sendo responsáveis por aproximadamente 4% do retorno venoso.106 O fluxo através do miocárdio em repouso geralmente é tomado como o gradiente de pressão entre a raiz aórtica (pressão de condução coronariana) e o átrio direito, embora a pressão de perfusão coronariana no ventrículo esquerdo seja determinada de maneira mais precisa como a diferença entre a pressão aórtica diastólica e a ventricular esquerda telediastólica (PTDVE).100 Em condições normais, a pressão de condução é completamente mantida ao longo dos vasos epicárdicos, que servem como condutos com pouca, se alguma, perda de pressão nas artérias

epicárdicas distais. A pressão arterial intracoronariana declina na microvasculatura (< 100 µm), alcançando um valor de 20 a 30 mmHg através dos capilares.103 O fluxo sanguíneo para o coração ocorre principalmente durante a diástole e diminui mais de 50% durante a contração isovolumétrica nos vasos intramiocárdicos, em comparação com as artérias epicárdicas, com o fluxo mesossistólico tornando-se retrógrado.103 O fluxo sanguíneo retorna durante o relaxamento isovolumétrico e a diástole. O principal determinante da resistência do fluxo sanguíneo no miocárdio inclui a compressão extravascular dos vasos coronarianos intramurais (30 a 40% da resistência total), o estado contrátil do miocárdio e a frequência cardíaca.101 Além disso, a torção ventricular sistólica também aumenta a resistência coronariana, de modo que o fluxo sistólico no miocárdio pode ser zero ou negativo durante a sístole. O fluxo sanguíneo coronariano é determinado primariamente pela demanda local de oxigênio.107 Os mecanismos autorreguladores coordenam a interação da pressão de condução intracoronária com a resistência microvascular para manter o fluxo adequado através dos capilares, para a liberação de substrato e a remoção metabólica. O endotélio vascular é a via comum final que controla o tônus vasomotor (autorregulação coronariana) e, conforme ocorre com outros vasos, o NO desempenha um papel principal.108,109 Quedas na pressão de condução são compensadas por decréscimos na resistência, enquanto aumentos na pressão de condução o são por aumentos na resistência, de maneira que o fluxo permanece constante para determinada carga cardíaca.107 Os mecanismos reguladores operam dentro da faixa fisiológica de pressões arteriais, mas caem durante hipotensão, quando o fluxo se torna fortemente dependente da pressão de condução. As artérias coronárias recebem sua inervação por meio de fibras vagais bilaterais (parassimpáticas) do plexo cardíaco localizado na base da aorta e nervos simpáticos surgem do gânglio estrelado.110 As fibras parassimpáticas inervam primariamente estruturas cardíacas supraventriculares, em especial os nós SA e AV. Os fatores que abaixam a pressão arterial (hipovolemia) aumentam a pressão ventricular diastólica (insuficiência cardíaca) ou diminuem o tempo diastólico (taquicardia) abaixo da taxa de fluxo subendocárdico ou subepicárdico e isso pode resultar em isquemia subendocárdica e alterações do segmento ST-T no ECG. Aumentos na frequência cardíaca ultrapassam o tempo diastólico mais que o sistólico, diminuindo, assim, o tempo de perfusão, devendo ser evitados.101 A anestesia e os anestésicos também podem diminuir a perfusão miocárdica por aumentarem a pressão atrial direita ou telediastólica quando a função miocárdica está comprometida.

■ Circulação pulmonar A circulação pulmonar recebe todo o débito do coração direito (débito cardíaco total), contém aproximadamente 10 a 15% do volume sanguíneo total e serve como um

importante reservatório de sangue, estabilizando o volume sistólico ventricular e o volume sanguíneo sistêmico.110 O objetivo primário da circulação pulmonar é a troca de gases. O ventrículo direito (VD) e os pulmões estão em série com o ventrículo esquerdo e a circulação sistêmica, e todo o débito cardíaco passa através dos pulmões (Figura 22.1). A complacência da artéria pulmonar tampona o fluxo durante a ejeção do VD, reduzindo a pressão de pulso na artéria pulmonar. Similarmente ao ventrículo esquerdo, alterações na função do ventrículo direito podem ser descritas por alterações dependentes da carga na pressão desenvolvida ou alterações independentes da carga na elastância ventricular, também de maneira similar ao que ocorre no ventrículo esquerdo (ver Hemodinâmica). O ventrículo direito e a circulação pulmonar amenizam alterações dinâmicas no volume e fluxo sanguíneos resultantes da respiração, de modificações posturais e no débito cardíaco ventricular esquerdo. As pressões vasculares pulmonares e a resistência vascular pulmonar são muito inferiores às observadas na circulação sistêmica.111 Esse sistema de baixa pressão tem capacidade apenas limitada de controlar a distribuição regional do fluxo sanguíneo nos pulmões, resultando no aspecto mais característico da circulação pulmonar: o potencial de colapso (‘colabamento’) dos capilares pulmonares. Aumentos discretos da pressão arterial pulmonar normalmente distendem e recrutam capilares pulmonares, diminuindo a resistência vascular pulmonar.110 Contudo, a baixa pressão na circulação pulmonar a torna suscetível à pressão extravascular e, em geral, o fluxo sanguíneo pulmonar é descrito em termos de um ‘resistor de Starling’, em que a pressão que circunda um tubo passível de colapso influencia a passagem do líquido através dele. O fluxo sanguíneo pulmonar e sua distribuição são determinados pela diferença entre a pressão de influxo e a de efluxo, mas a pressão externa (alveolar) no pulmão e a gravidade, em geral, influenciam a distribuição regional do fluxo sanguíneo pulmonar.110 Uma pressão de influxo baixa predispõe o pulmão ao chamado ‘efeito de queda d’água’, em que a pressão venosa pulmonar está abaixo da alveolar e não tem influência sobre o fluxo sanguíneo ou a determinação da resistência vascular pulmonar. Sempre que a pressão circundante (ventilação mecânica) é maior do que a de efluxo, o fluxo sanguíneo é determinado, então, pela diferença entre a pressão de influxo e a circundante. Por exemplo, a pressão inspiratória excessiva e prolongada pode reduzir acentuadamente ou interromper o fluxo sanguíneo pulmonar, ocasionando reduções acentuadas no fluxo sanguíneo para o ventrículo esquerdo, no débito cardíaco e na pressão arterial. É importante notar que grandes aumentos na pressão da artéria pulmonar podem sobrepujar a capacidade do leito vascular pulmonar de ser recrutado e distendido, resultando em edema pulmonar e/ou ascite. Outra característica única da circulação pulmonar é a vasoconstrição em resposta a condições hipóxicas. A vasoconstrição pulmonar hipóxica (VPH) funciona como um mecanismo de retroalimentação (feedback) negativo para combinar a ventilação e a

perfusão, e é provável que esteja ligado à produção local de óxido nítrico (um vasodilatador).112 A hipoxia alveolar é o estímulo mais importante para a vasoconstrição pulmonar hipóxica, e parece que o local de ação são pequenos vasos extra-alveolares. Em condições normais (não hipóxicas), o oxigênio circulante regula sua própria captação, ao ajustar a perfusão local para combinar com a ventilação local. Entretanto, durante condições hipóxicas, ocorre constrição dos vasos pulmonares, aumentando a pressão arterial pulmonar. Tal resposta distende e recruta vasos pulmonares subperfundidos, desviando efetivamente o sangue para alvéolos mais bem ventilados, o que resulta em melhora na razão de ventilação:perfusão. A vasoconstrição pulmonar hipóxica é minimamente inibida pela maioria dos anestésicos, inclusive o propofol.113,114

■ Circulação esplâncnica Inclui múltiplos órgãos, recebe aproximadamente 25% do débito cardíaco e contém cerca de 20% do volume sanguíneo total (Figura 22.26A).115 As veias esplâncnicas são altamente complacentes e servem como um dos maiores reservatórios do volume sanguíneo do corpo. Elas e o baço contêm uma alta população de receptores adrenérgicos α1 e α2, e são altamente sensíveis a estimulação ou bloqueios adrenérgicos (Figura 22.26B).115 Dependendo da espécie, o baço pode ser um reservatório significativo de sangue. O volume de sangue mobilizado do baço, do fígado e do intestino de cães variou de 6 a 30%, e de 55 a 81% do volume sanguíneo após hemorragia moderada (9 mℓ/kg) e grave (33 mℓ/kg), respectivamente.116 Durante condições fisiológicas, uma alteração no fluxo arterial esplâncnico provoca uma alteração proporcional na pressão dentro dos vasos esplâncnicos de capacitância: o volume de sangue nesses vasos tem uma relação linear com a pressão transmural. Se o fluxo sanguíneo diminui, o volume e a pressão do sangue nas veias também diminuem. As veias encolhem, ajudando a manter a pressão intramural e fornecendo uma força direcional para a expulsão do volume intravascular para a circulação sistêmica.117 Se a pressão arterial diminui de maneira substancial, a estimulação simpaticoadrenal causa constrição arterial esplâncnica, que aumenta a pressão nos vasos de capacitância, expelindo o sangue esplâncnico para a circulação sistêmica.117 A mobilização de volume é o resultado da vasoconstrição ativa e do recolhimento elástico passivo das veias esplâncnicas, secundário à diminuição do influxo arterial.115 Esses processos liberam sangue para a circulação sistêmica, compensando efetivamente até 50 a 60% do volume perdido após hemorragia moderada a grave. A mobilização ativa do volume sanguíneo esplâncnico resulta quase inteiramente da ativação de receptores adrenérgicos β2 e α,115 ambos agindo em consonância com o desvio de sangue ao máximo a partir da vasculatura esplâncnica para a circulação sistêmica, ao causarem vasoconstrição, diminuírem a capacitância vascular

esplâncnica e a resistência vascular hepática. A anestesia e os anestésicos, incluindo benzodiazepínicos, atrapalham ou mesmo abolem a capacidade da circulação esplâncnica de mobilizar o sangue.117,118 Esse efeito pode ser tão ou mais importante que os efeitos vasodilatadores arteriais ou contráteis miocárdicos negativos dos anestésicos, quando consideramos as causas potenciais de hipotensão arterial e/ou baixo débito cardíaco durante anestesia.

Hemorreologia É o estudo do fluxo sanguíneo no sistema vascular e naturalmente inclui um entendimento da pressão e da resistência.119 A corrente de fluxo (I) nos circuitos elétricos é determinada pela força eletromotiva ou voltagem (E) e pela resistência à corrente de fluxo (R), de acordo com a lei de Ohm: I = E/R Similarmente, o fluxo de líquidos (Q) através de tubos não distensíveis é determinado pela pressão de condução (P) e pela resistência ao fluxo (R): Q = P/R A resistência ao fluxo sanguíneo é determinada pela geometria do vaso (raio, comprimento, morfologia) e pelas características do meio líquido, com a viscosidade do sangue (η) sendo a principal. O fluxo laminar constante, não pulsátil, dos líquidos newtonianos (líquidos homogêneos cuja viscosidade não se altera com a velocidade do fluxo ou a geometria vascular), como a água, solução fisiológica e, em condições fisiológicas, o plasma, pode ser descrito pela lei de Hagen-Poiseuille, que estabelece:

em que P1 – P2 é a diferença de pressão, r4 é o raio à quarta potência, L é o comprimento do tubo, η é a viscosidade do líquido e 8/π é a constante de proporcionalidade.120 A manutenção do fluxo laminar é uma suposição fundamental da resistência oferecida ao fluxo constante de líquido na equação de Hagen-Poiseuille. Essa lei, embora usada com frequência para avaliar o fluxo sanguíneo no sistema vascular, é apenas descritiva, devendo ser mantida em perspectiva ao se considerar a vida real, porque o sangue não é um líquido

homogêneo, o fluxo sanguíneo não é constante, e sim pulsátil, e nem sempre laminar. Essas diferenças do fluxo constante e laminar idealizado para os líquidos newtonianos ao longo de tubos não distensíveis de raio constante têm consequências importantes sobre a quantidade de fluxo sanguíneo para os leitos teciduais periféricos, a liberação de oxigênio e a distribuição do fluxo sanguíneo entre os leitos teciduais. A pressão de distensão é um fator fundamental na determinação da tensão na parede do vaso ou da câmara e tem relação direta com o músculo liso ou o consumo miocárdico de oxigênio.

Figura 22.26 A. A circulação esplâncnica contém aproximadamente 25% do volume sanguíneo. As artérias esplâncnicas representam todos os vasos arteriais dos órgãos préporta; as veias esplâncnicas representam o compartimento sanguíneo venoso de todos esses órgãos. B. Distribuição de subtipos de adrenorreceptores (α1, α2, β2) e as pressões intravasculares aproximadas (barra inferior) dos segmentos correspondentes da vasculatura esplâncnica. Fonte: referência 115. Reproduzida, com autorização, de Lippincott Williams & Wilkins. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

A relação entre pressão de distensão do vaso ou da câmara (quando se refere ao coração), diâmetro do vaso, espessura da parede do vaso e tensão da parede do vaso é representada pela lei de Laplace:

em que T é a tensão na parede, P é a pressão desenvolvida, r é o raio interno e h é a espessura da parede. Esta relação tem extrema importância porque relaciona a pressão, a dimensão e a espessura da parede com alterações no desenvolvimento da tensão, conhecida como um determinante importante do acoplamento ventricularvascular (pós-carga), do trabalho miocárdico e do consumo miocárdico de oxigênio (Boxe 22.3).121 O sangue é um líquido não newtoniano, liberado mediante o estreitamento progressivo dos vasos sanguíneos de maneira pulsátil não laminar ou mesmo turbulenta. Os principais fatores que influenciam a resistência (R) do fluxo sanguíneo são a viscosidade do sangue (η), em grande parte determinada pela concentração de eritrócitos (Ht), e a impedância [Z: resistência dinâmica (pulsátil): Rp], e coletivamente podem ser consideradas obstáculos vasculares:122 Rp = η × Z Boxe 22.3 Determinantes do consumo miocárdico de oxigênio.

1 2 3 4 5 6 7

Desenvolvimento de tensão Frequência cardíaca Estado contrátil Custo basal (movimento de íon; bombas da membrana) Despolarização Ativação Manutenção do estado ativo

8 9

Encurtamento contra uma carga (efeito Fenn) Efeito metabólico direto de catecolaminas

T = tensão; P = pressão; R = raio Deve-se notar que Rp (p = pulsátil) é dependente principalmente da geometria do vaso e não é o mesmo R da lei de Ohm ou o equivalente na equação de Hagen-Poiseuille (8Lη/r4π), mas representa a resistência ao fluxo sanguíneo pulsátil, oscilatório ou, em termos simples, fisiológico. É mais correto pensar no termo resistência (R) na equação de Hagen-Poiseuille como parte de um sistema não pulsátil, não oscilatório e, o mais importante, não fisiológico. O termo viscosidade (η), embora menos importante que Z no determinante Rp, depende primariamente da concentração de eritrócitos (hematócrito), da deformabilidade e da agregabilidade dos eritrócitos, da viscosidade do plasma, da temperatura e das condições do fluxo sanguíneo (Figura 22.23B).123 O termo reológico, que caracteriza as condições do fluxo sanguíneo, é a taxa de cisalhamento, uma função da velocidade do fluxo sanguíneo e da geometria vascular. A viscosidade do sangue é dependente da taxa de cisalhamento. A viscosidade diminui conforme a taxa de cisalhamento aumenta, de acordo com η = estresse de cisalhamento (din/cm2)/taxa de cisalhamento (s–1) em que o estresse de cisalhamento é a força aplicada durante o fluxo sanguíneo pulsátil entre camadas teóricas de sangue no vaso sanguíneo.124,125 É importante lembrar que a taxa de cisalhamento é o principal determinante da concentração de NO, um vasodilatador local potente.126 O óxido nítrico relaxa o músculo liso vascular, ao ligar-se à metade heme da guanilato ciclase citosólica, ativando-a, e aumentando os níveis intracelulares de 3’,5’monofosfato cíclico de guanosina (GMP cíclico), o que resulta em vasodilatação. É

interessante que a taxa de cisalhamento aumenta gradualmente e a viscosidade sanguínea diminui, conforme as grandes artérias se tornam menores, e é maior nos capilares, quaisquer que sejam as taxas de fluxo. Esse fenômeno (viscosidade diminuída nos vasos menores), conhecido como efeito de Fahraeus-Lindquist, é atribuído à centralização dos eritrócitos, ao número reduzido dessas células (efeito Fahraeus) na parede vascular (‘deslizamento plasmático’) e à sua deformabilidade, ou seja, a viscosidade nos capilares é baixa porque os eritrócitos só conseguem passar através dos capilares em fila única.123,127 Em suma, à medida que o diâmetro do vaso diminui, a concentração de eritrócitos (efeito Fahraeus) e a viscosidade também diminuem (efeito Fahraeus-Lindquist). O hematócrito ótimo para o transporte de mais oxigênio por unidade de tempo para os tecidos varia entre as espécies, por causa de diferenças na anatomia e na dinâmica circulatória, mas, em geral, fica entre 30 e 45%.128 Cães e equinos podem contrair o baço, o que resulta na presença de mais eritrócitos (aumento do hematócrito) e capacidade adicional de transporte de oxigênio em momentos de estresse ou exercício. Hematócritos altos (policitemia: > 65%), condições de fluxo sanguíneo baixo (choque), aumento da agregabilidade dos eritrócitos, formação de roleaux (sepse) e hiperproteinemia (desidratação) aumentam a viscosidade, resultando em menor liberação de oxigênio para os tecidos (Figura 22.27). Hematócritos altos resultam em um fluxo sanguíneo mais lento nos capilares e vênulas e aumentam acentuadamente a viscosidade sanguínea e o trabalho de bombeamento do sangue. A hemodiluição (administração de líquido) pode ser benéfica no tratamento dessas condições e tem sido usada durante anestesia, para reduzir a perda de eritrócitos e melhorar a liberação de oxigênio.129,130 Níveis moderados de hemodiluição reduzem o hematócrito sistêmico, mas compensam uma queda na viscosidade sanguínea aumentando a velocidade do fluxo sanguíneo (débito cardíaco), o que resulta em aumento ou manutenção da liberação de oxigênio para os tecidos. No entanto, se o hematócrito tiver caído para 40% do normal ou menos, a redução na concentração sanguínea de hemoglobina compromete o conteúdo de oxigênio no sangue e a oxigenação tecidual. Em tais condições, a liberação de oxigênio para os tecidos depende de um aumento na extração de oxigênio e da manutenção da área de superfície para troca, que é determinada pela densidade capilar funcional (DCF).131 A viscosidade sanguínea é determinada principalmente pelo hematócrito nos vasos maiores, enquanto a taxa de cisalhamento na parede dos vasos menores (< 100 a 400 µm) é uma função da viscosidade plasmática. As propriedades viscosas do plasma e o estresse de cisalhamento da camada plasmática da parede vascular são importantes para se determinar a DCF na microcirculação. A viscosidade e a velocidade do fluxo plasmático definem o estresse de cisalhamento em pequenos vasos e têm relação direta com a produção de substâncias vasodilatadoras como a prostaciclina e o NO, fatores fundamentais para a determinação da DCF.126,131

Figura 22.27 Efeito do hematócrito (Ht, %) sobre o transporte de oxigênio (Ht/η). A seta marcada N representa um Ht relativamente normal. A seta marcada D representa um animal com anemia ou hemodiluição. A linha tracejada representa a situação normal, quando o Ht é apenas variável. A linha contínua representa a resposta a alterações no Ht quando a viscosidade do plasma (η) e a agregação (agreg.) eritrocitária estão aumentadas e a deformabilidade eritrocitária está diminuída. Fonte: modificada da referência 123.

■ Impedância O segundo fator fundamental na determinação do fluxo sanguíneo em sistemas pulsáteis é a impedância (Z).132,133 Em termos quantitativos, impedância é a relação entre a pressão e o fluxo pulsáteis nas artérias:

em que ZL representa a impedância longitudinal, que é a soma dos componentes resistivos pulsátil (RP) e não pulsátil (R) da resistência arterial longitudinal. Em condições normais (sem estresse), o componente resistivo não pulsátil representa 90% da impedância total ao fluxo sanguíneo e o componente pulsátil compreende 10%. Esse fato (R = 90% de ZL) é a principal razão pela qual tantos investigadores e clínicos calculam a resistência vascular da lei de Ohm. No entanto, os componentes de ZL podem mudar de maneira considerável em

animais doentes ou durante manipulação farmacológica, com RP tornando-se muito mais importante. A impedância é determinada pelos vários componentes de frequência que compreendem a pressão arterial e as ondas da velocidade de fluxo, é medida pela aplicação de uma análise de Fourier ou harmônica a essas ondas e expressa como uma proporção ou módulo e fase (Figura 22.28), com o ponto-chave sendo que a impedância é um índice dependente da frequência, não do tempo. A contribuição da impedância (Zi), a proporção de pressão e fluxo em um local arterial que é considerada a contribuição para a árvore vascular (p. ex., a raiz aórtica), depende das propriedades arteriais locais (p. ex., elastância ou complacência), das propriedades de todos os vasos além do ponto de medida abaixo dos pontos onde desaparecem as pulsações e reflexões da onda de pulso provenientes de artérias que se estreitam (em particular arteríolas) e bifurcações de vasos.132,133 Portanto, a impedância ao fluxo sanguíneo é vista como tendo um componente resistivo (estado constante, contínuo), decorrente primariamente das arteríolas, e um componente reativo (pulsátil), causado pelas propriedades da parede do vaso (complacência, elastância e reflexão da onda de pulso).

Figura 22.28 A carga hidráulica (pós-carga) apresentada ao ventrículo esquerdo pela circulação sistêmica pode ser caracterizada pela expressão das relações entre pressão e fluxo na aorta ascendente conforme a contribuição da impedância, o módulo de impedância e a fase dos espectros de impedância aórtica. O módulo de impedância em 0 Hz (R, resistência vascular periférica) diminui até um valor baixo que oscila em torno de um valor característico (Z0), por causa das reflexões da onda de pulso (RF). Valores de fase negativos indicam que a harmonia do fluxo precede a harmonia de pressão e vice-versa.

A pressão arterial sistólica baixa permite uma ejeção ventricular mais completa, mantém baixas as demandas miocárdicas de oxigênio e fornece um pequeno estímulo para a hipertrofia. A pressão diastólica alta assegura fluxo sanguíneo coronariano e perfusão miocárdica adequados, porque a maioria do fluxo sanguíneo miocárdico ocorre durante o relaxamento ventricular. Aumentos na rigidez arterial elevam a amplitude da pressão do pulso e a pressão sistólica e diminuem a pressão diastólica. Reflexões da onda fora do tempo, em geral, aumentam a pressão diastólica (aumentam Z0: impedância característica). A totalidade desses efeitos aumenta o trabalho miocárdico, o consumo de oxigênio e a necessidade de energia, e diminui a perfusão miocárdica.121 O ideal é que a melhor combinação entre a atividade de bombeamento do coração e a resposta vascular para a ejeção de sangue (acoplamento ventricular-vascular) seja obtida quando o trabalho miocárdico é mantido o mais baixo possível (pressão sistólica baixa), enquanto a perfusão adequada do coração e dos tecidos periféricos é mantida (pressão diastólica alta).134 Anestesia e terapia hídrica causam efeitos variáveis sobre o hematócrito, a deformabilidade dos eritrócitos e as concentrações plasmáticas de proteína, ocasionando alterações na η que, quando combinadas com alterações em Z, podem afetar favoravelmente o acoplamento ventricular-vascular, desde que não ocorra hipotensão (pressão arterial média inferior a 50 a 60 mmHg).135,136

■ Turbulência O fluxo sanguíneo pulsátil pode ser laminar, com uma velocidade longitudinal que assume a forma de uma parábola, ou pode ser irregular ou turbulento (Figura 22.29). Para bombear o sangue quando o fluxo é turbulento, são necessários mais pressão, liberação miocárdica de energia e trabalho. O potencial de turbulência a se desenvolver nos vasos sanguíneos pode ser previsto por um número adimensional, denominado número de Reynolds (NR):137

em que ρ é a densidade do líquido, D é o diâmetro do vaso e v é a velocidade média do

fluxo sanguíneo (Figura 22.29). A viscosidade sanguínea (η) é inversamente proporcional ao número de Reynolds e é um determinante importante do fluxo sanguíneo turbulento. Em geral, a turbulência provoca flutuações periódicas da onda e vibrações das estruturas teciduais circundantes, ocasionando sopros e, com o tempo, dilatação vascular causada pelo enfraquecimento dos elementos de sustentação da parede vascular. A hemodiluição crônica ou aguda (terapia hídrica) reduz o hematócrito e, portanto, η, levando a um aumento no número de Reynolds e à produção de sopros cardíacos ‘fisiológicos’. Além disso, a restrição ao fluxo causada por doença congênita (estenose aórtica ou pulmonar) ou o estreitamento de um vaso sanguíneo acarretam aumento na velocidade do fluxo sanguíneo, conforme previsto pela equação da continuidade, que estabelece que o sangue que flui através de áreas diferentes de um sistema vascular contínuo intacto tem de ser igual; portanto, o sangue que flui através de um estreitamento ou orifício estreitado tem de aumentar. O fluxo corrente abaixo da obstrução ou do estreitamento, em geral, é turbulento, com múltiplas velocidades e direções. Doenças cardíacas (estenose pulmonar ou aórtica) e vasculares (tromboflebite) que estreitam as aberturas valvares ou vasos sanguíneos aumentam a velocidade e são causas importantes de sopros. As medidas da velocidade do fluxo sanguíneo podem ser avaliadas clinicamente pela ecocardiografia Doppler e pela equação de Bernoulli modificada, ΔP = 4v2, supondo-se que a velocidade distal à obstrução seja significativamente maior do que a velocidade proximal à obstrução e, portanto, possa ser ignorada.137

Figura 22.29 Perfis de velocidade para o fluxo sanguíneo laminar e turbulento. A turbulência aumenta a energia necessária para o fluxo sanguíneo, porque aumenta a perda de energia na forma de atrito. Desenvolvem-se vórtices durante o fluxo sanguíneo turbulento, e as velocidades axial e média são menores do que durante o fluxo laminar. Vmáx = velocidade máxima.

Hemodinâmica A pressão arterial nas artérias costuma ser avaliada durante anestesia, seja por medida direta ou indireta. A medida da pressão arterial em particular é um dos meios mais rápidos e informativos para se avaliar a função cardiovascular. Quando medida corretamente e com frequência, a pressão arterial fornece uma indicação correta dos efeitos de fármacos, dos eventos cirúrgicos e das tendências hemodinâmicas. O determinante vascular mais importante da pressão arterial é o tônus arteriolar, que pode ser modificado por quase todos os anestésicos.138,139 Os fatores que acabam por determinar a pressão arterial são a frequência cardíaca, o volume sistólico, a resistência vascular, a complacência arterial e o volume sanguíneo. No sistema vascular, o volume sanguíneo é uma das principais variáveis que afetam a pressão arterial e determinam a pressão média de enchimento circulatório (PMEC), que é definida como a pressão de equilíbrio da circulação quando o fluxo sanguíneo é zero.140 A PMEC é de aproximadamente 7 mmHg quando o fluxo sanguíneo é normal (70 a 80 mℓ/kg). Elevações na PMEC aumentam o enchimento ventricular, o débito cardíaco e a pressão arterial e diminuições na PMEC têm o efeito oposto. A pressão arterial é um componente fundamental para a determinação da pressão de perfusão e da adequação do fluxo sanguíneo tecidual. Acredita-se que pressões de perfusão acima de 60 mmHg, em geral, proporcionem um fluxo sanguíneo tecidual adequado. O coração (circulação coronariana), os pulmões (circulação pulmonar), os rins (circulação renal), as estruturas abdominais (circulação esplâncnica) e o feto (circulação fetal) contêm circulações especiais em que alterações na pressão de perfusão podem exercer efeitos imediatos sobre a fusão do órgão em questão (ver Circulações especiais). Por exemplo, a pressão de perfusão na circulação coronariana é determinada pela diferença entre a pressão arterial diastólica e a ventricular telediastólica. Se essa pressão diminuir, desenvolve-se isquemia miocárdica. Clinicamente, a pressão arterial costuma ser medida e discutida em termos de pressão arterial média, supondo-se que as pressões arteriais sistólica e diastólica deem informações clínicas úteis adicionais. Quando a pressão arterial média não pode ser avaliada diretamente, é estimada pela equação:

em que Pm, Ps e Pd são, respectivamente, as pressões média (m), sistólica (s) e diastólica (d) (Figura 22.30A).141 Pm, Ps e Pd podem ser medidas, calculadas ou estimadas usando-se técnicas invasivas (diretas), como o cateterismo arterial, ou não invasivas (indiretas), como o Doppler ou a oscilometria. A maioria dos fármacos usados para proporcionar anestesia diminui a resistência vascular periférica e a pressão arterial. Os agonistas do receptor adrenérgico α2 e anestésicos dissociativos (cetamina, tiletamina) podem aumentar a resistência vascular periférica, potencialmente aumentando a pressão arterial, mas diminuindo o débito cardíaco. A pressão arterial do pulso (Ps – Pd) e a onda da pressão de pulso fornecem informação valiosa sobre alterações na complacência vascular (complacência = VS/PP aórtica) e no tônus vascular.141 Tanto a pressão como a morfologia da onda de pressão se alteram à medida que a onda segue perifericamente, a pressão sistólica aumenta e a média diminui, e a diastólica diminui minimamente (Figura 22.31). Em geral, fármacos (fenotiazinas) ou doenças (choque séptico) que têm efeitos dilatadores arteriais acentuados aumentam a complacência vascular, causando um aumento rápido, de curta duração, e queda rápida na onda arterial, enquanto aumenta a pressão do pulso arterial.141 Situações que causam vasoconstrição diminuem a complacência vascular, fazendo com que a onda de pulso seja mais duradoura e haja uma queda mais lenta nos valores da pressão sistólica para a diastólica. A pressão do pulso pode conter ondas de pressão secundárias e, às vezes, terciárias, em particular se o local de medida for em uma artéria periférica a alguma distância do coração.139 Ondas de pulso secundárias e terciárias são indicação de tônus vascular normal ou elevado em resposta à estimulação do sistema nervoso simpático ou a efeitos vasculares de fármacos (p. ex., cetamina, dexmedetomidina ou catecolaminas). Tradicionalmente, as pressões arterial e venosa central mais a morfologia da onda têm sido usadas para avaliar o estado do coração durante anestesia.142–146 Dá-se ênfase aos valores máximo e mínimo aceitáveis, à morfologia da onda de pressão e às alterações esperadas associadas a anestésicos e a vários tratamentos (vasopressores, líquido). No entanto, deve-se ter cuidado ao interpretar cada uma dessas variáveis, pois aumentos na pressão arterial nem sempre estão associados a um aumento na perfusão tecidual e viceversa. É aconselhável mais cautela, ainda, ao se avaliar a pressão venosa central, por causa de sua dependência de outras variáveis (o volume sanguíneo, a frequência cardíaca, o retorno venoso, a função ventricular direita).117,145 Similarmente, alterações na morfologia da onda estão sujeitas a muitas variáveis modificáveis (p. ex., a localização dentro da rede arterial, hemorragia, tônus simpático), diversas delas podendo causar alterações agudas na

morfologia da onda arterial ou venosa.

Figura 22.30 Pressão arterial e controle local do fluxo sanguíneo. A. A pressão arterial é determinada por fatores fisiológicos e físicos. A pressão arterial média (Pm) representa a área sob a curva da pressão arterial dividida pela duração (Ps) (Pd) do ciclo cardíaco e pode ser

estimada acrescentando-se um terço da diferença entre a pressão sistólica (Ps) e a diastólica (Pd) para a Pd. Ps – Pd é a pressão de pulso. B. Fatores que regulam a resistência periférica. A resistência ao fluxo é determinada pela viscosidade sanguínea e pelo obstáculo vascular, que varia inversamente com o número e o raio dos vasos sanguíneos, o último fator sendo dependente do fluxo sanguíneo e da força de cisalhamento. A força de cisalhamento age sobre células endoteliais liberando óxido nítrico (NO), prostaciclina e FHDE (fator hiperpolariznte derivado do endotélio), que causa o relaxamento do músculo liso vascular. NOS, sintase do NO; PLA2, fosfolipase A2; COX, ciclo-oxigenase; PGIS, sintase da prostaciclina; P450, citocromo P-450; AC, adenilciclase. Fonte: parte (B) modificada da referência 76.

Figura 22.31 Morfologia da onda de pressão arterial movendo-se distalmente na vasculatura arterial. A pressão média arterial cai progressivamente a partir da aorta na direção dos ramos periféricos, refletindo a dissipação de energia no fluxo. Artérias de tamanho grande e médio têm uma pressão média ligeiramente mais baixa, porém uma pressão sistólica um pouco mais alta, em comparação com a raiz da aorta. A pressão sistólica mais alta nas artérias de tamanho grande e médio é explicada pela reflexão das ondas de pressão a partir de artérias pequenas. A pressão diastólica mostra uma queda contínua desde a aorta em direção à periferia. A pressão de pulso (Ps – Pd) aumenta gradualmente a partir da aorta na direção das

artérias de tamanho médio. Fonte: modificada da referência 132. Reproduzida, com autorização, de Wiley.

■ Ciclo cardíaco e alça de pressão e volume São usados desenhos esquemáticos do ciclo cardíaco para ilustrar as relações temporais entre seus vários componentes, incluindo eventos elétricos (ECG), mecânicos (pressão, volume e fluxo) e acústicos (bulhas cardíacas), associados a contração e relaxamento cardíacos (Figura 22.32A). Tão importante (mas não em termos descritivos) quanto os componentes do ciclo cardíaco que variam com o tempo é a representação independente do tempo: a alça de pressão e volume ventriculares (Figura 22.32B). Essa alça é um índice do desempenho ventricular sistólico e diastólico ‘independente da carga’ e também é usada para a avaliação da interação ventricular vascular (acoplamento) e da energética miocárdica. Alterações na alça de pressão e volume ilustram e quantificam os determinantes de alterações na função cardíaca: pré-carga, pós-carga e contratilidade cardíaca.147,148 Os vários componentes qualitativos do ciclo cardíaco e da alça de pressão e volume são essencialmente idênticos para ambos os ventrículos, o direito e o esquerdo, embora a sequência de ativação elétrica, as alterações na pressão e sua morfologia sejam diferentes. Como a atividade elétrica precede a mecânica, a onda P do ECG da superfície é um ponto de partida razoável para se começar a descrever o ciclo cardíaco (Figura 22.32A). A ativação elétrica dos átrios produz a onda P do ECG e, pela transmissão interatrial rápida do impulso elétrico (feixe de Bachmann), causa contração quase simultânea dos átrios. Ondas P bífidas representando a ativação elétrica dos átrios direito e esquerdo são observadas frequentemente em ECGs obtidos de grandes equinos, em decorrência da grande massa muscular, da frequência cardíaca relativamente lenta e do tempo necessário para a ativação elétrica atrial. A contração atrial aumenta a pressão intra-atrial, originando a onda ‘a’ da curva de pressão atrial. Ambos os átrios (direito e esquerdo) funcionam como reservatórios de sangue e condutos para a transferência do sangue e, durante a contração, priorizam os ventrículos, contribuindo com aproximadamente 10 a 30% (mais em frequências cardíacas mais rápidas) do volume sanguíneo que enche os ventrículos. O ‘estalido’ atrial faz com que as valvas atrioventriculares fiquem em aposição relativa antes da contração ventricular e é responsável pela quarta bulha cardíaca (B4). A contração ventricular é assinalada pela onda R do ECG e começa após um atraso variável (intervalo PR), durante o qual o impulso elétrico atravessa o nó atrioventricular e a rede de Purkinje. Assim que a pressão ventricular aumenta até um valor maior do que a do átrio, as valvas atrioventriculares fecham-se, na verdade ficando abauladas nos seus respectivos átrios, e dão origem à onda ‘c’ da curva de pressão atrial. As valvas atrioventriculares são

impedidas de prolapsar completamente para as câmaras atriais pelas cordoalhas tendinosas, que são tendões semelhantes a cordas que conectam músculos papilares ventriculares aos folhetos da valva tricúspide e da valva mitral. O desenvolvimento súbito de tensão no miocárdio em contração e a tensão das cordoalhas tendinosas coincidente com o fechamento da valva atrioventricular são responsáveis pela primeira bulha cardíaca (B1; Figura 22.32A). O aumento rápido na pressão ventricular enquanto as valvas atrioventriculares (mitral e tricúspide) e semilunares (aórtica e pulmonar) estão fechadas denomina-se contração isovolumétrica, porque o volume do ventrículo permanece constante (Figura 22.32A,B). Assim que a pressão ventricular excede aquela na aorta ou na artéria pulmonar, as valvas semilunares abrem-se e a ejeção começa (Figura 22.32A,B). A fase de ejeção do ciclo cardíaco caracteriza-se por lentidão da pressão ventricular desenvolvida, após a abertura das valvas semilunares, e uma queda abrupta no volume ventricular. Tais alterações coincidem com um grande aumento na velocidade do fluxo aórtico e uma queda na curva da pressão venosa à medida que as valvas atrioventriculares são levadas na direção do ápice do coração. A pressão ventricular excede a pressão aórtica durante o primeiro terço da ejeção ventricular (período de ejeção rápida), alcança o equilíbrio com a pressão aórtica, e, depois, por causa do início do relaxamento ventricular, declina mais rapidamente que a pressão aórtica (Figura 22.32A). O sangue continua a ser ejetado do ventrículo até o fechamento das valvas semilunares, que assinala o fim da sístole ventricular (pela maioria das definições) e está associado ao desenvolvimento da segunda bulha cardíaca (B2), composta pelos componentes aórtico (A2) e pulmonar (P2), sendo frequentemente desdobrada (10 a 15 ms) durante frequências cardíacas lentas e em grandes animais (equinos e bovinos).149 O volume de sangue ejetado [volume sistólico (VS)] pelo ventrículo normal, geralmente, fica entre 50 e 60% [fração de ejeção (FE)] de seu volume total.

Figura 22.32 O ciclo cardíaco (A) ilustra a relação entre eventos mecânicos, acústicos e elétricos no coração como uma função do tempo. A alça de pressão e volume (PV) (B) é uma ilustração do ciclo cardíaco independente do tempo, que pode ser usada para ilustrar os eventos mais importantes (p. ex., telessístole; telediástole), quantificar o volume sistólico e derivar índices de função cardíaca independentes da carga. Isovol., isovolumétrica(o).

O período entre o fechamento das valvas semilunares e a abertura das atrioventriculares denomina-se relaxamento isovolumétrico e assinala o início do relaxamento ventricular (Figura 22.32A,B), caracterizando-se por uma queda rápida na pressão ventricular e nenhuma alteração no volume ventricular, além de coincidir com a onda V da curva de pressão atrial (Figura 22.32A). Assim que a pressão ventricular cai abaixo da atrial, a valva atrioventricular abre-se, iniciando a fase de enchimento ventricular rápido (possivelmente facilitado pela sucção ventricular) e produzindo a terceira bulha cardíaca (B3). Acredita-se que a terceira bulha cardíaca seja causada por vibrações quando a parede ventricular atinge seu limite elástico durante o enchimento ventricular; é relativamente fácil ouvi-la em grandes animais (equinos e bovinos), e ela origina o galope ventricular característico em cães e gatos com formas dilatadas de doença cardíaca e aumentos na pressão atrial esquerda.150 Alguns gatos podem apresentar galopes sem que tenham doença cardíaca. O enchimento ventricular prossegue mais gradualmente após a fase inicial de enchimento rápido, enquanto a pressão e o volume ventriculares aumentam de maneira não linear durante o final da diástole (Figura 22.32B). A inclinação da curva de pressão e volume (dP/dV; Figura 22.32B) durante o enchimento ventricular é um índice de rigidez ventricular, usando-se seu inverso (dV/dP) para avaliar a complacência ventricular.148 A fase mesossistólica lenta de enchimento ventricular continua à medida que o sangue retorna para os átrios, vindo das circulações sistêmica e pulmonar até que o ciclo cardíaco seja reiniciado pelo próximo impulso elétrico. Uma alça de pressão e volume (PV; Figura 22.33) é basicamente um retângulo irregular, inscrito em sentido anti-horário, no qual a pressão interventricular é representada no eixo y, contra o volume ventricular no eixo x. A análise da alça de PV começa no ponto B e ocorre no fim da diástole (início da sístole; assinalada pelo fechamento das valvas AV e pela primeira bulha cardíaca) (Figura 22.33). As coordenadas desse ponto são o volume e a pressão telediastólicos (VTD; PTD). A razão do VTD para a PTD é uma medida da complacência ventricular estática (Cestática); a razão da PTD para o VTD é uma medida da rigidez ventricular estática. O achatamento relativo da curva da alça de A para B, à medida que o ventrículo se enche, é uma estimativa da complacência ventricular dinâmica (Cdinâmica) e, como a rigidez ventricular estática, a ascensão da curva é uma medida da rigidez dinâmica. Portanto, o lusitropismo (facilidade de enchimento ventricular) pode ser expresso pelo achatamento da curva de A para B da alça de PV e pela razão VTD:PTD. Como A para B não é uma linha reta com inclinação constante, uma única inclinação pode ser aproximada, ou inclinações podem ser medidas pela construção de tangentes à linha em qualquer um ou todos os pontos. A pressão ventricular aumenta rapidamente de B para C, mas não há alteração no volume (contração isovolumétrica) até a abertura das valvas semilunares (em C) e o sangue

começar a ser ejetado para a aorta. A pressão ventricular altera-se minimamente de C para D, mas o volume ventricular diminui (contração isotônica). A distância horizontal (BC a DA) representa o volume sistólico (VS), e a razão [(BC – DA):BC] vezes 100 é a fração de ejeção (FE). A porcentagem do VTD representada pelo VS é considerada um ‘padrão-ouro’ da saúde geral do sistema cardiovascular.

Figura 22.33 A relação de pressão e volume e Ees/Ea. A. Uma única alça de pressão e de volume ventriculares esquerdos dá informação independente da carga sobre a função ventricular sistólica e diastólica e o acoplamento ventricular-vascular. A pressão ventricular telediastólica no ponto B é uma estimativa da complacência ventricular estática. A inclinação da linha do ponto A ao ponto B expressa a complacência ventricular dinâmica. Ocorre póscarga máxima no ponto C (abertura da valva aórtica). A valva aórtica fecha-se no ponto D [Pts em (B)] e é usada para determinar a relação de pressão e volume telessistólica (RPVTS), usada para determinar a elastância telessistólica [Ets em (C)]. A inclinação da diagonal do ponto D para o ponto B expressa a elastância arterial [Ea em (B)]. B. A RPVTS e a relação de pressão e volume telediastólica (RPVTD) são usadas para a determinação de Ets e Ea. C. A razão de Ea para Ets expressa o acoplamento ventricular-vascular (Ea/Ets ≈ 1).

O ponto D da alça de PV ocorre no final da sístole (TS) quando a ejeção cessa e, logo após, a valva semilunar fecha-se. As coordenadas do ponto D são o volume telessistólico (VTS) e a pressão telessistólica (PTS) e sua razão (PTS:VTS) é denominada elastância telessistólica (Ets) ou rigidez. A conexão de muitos valores de Ets obtidos a partir de uma família de alças de PV produz uma linha denominada relação de pressão e volume telessistólica (RPVTS) ou elastância variável com o tempo, cuja curva representa a contratilidade miocárdica. A alça de PV cai rapidamente de D para A. Isso constitui o período de relaxamento isovolumétrico quando a pressão cai, mas o volume ventricular não muda. Em A, a valva AV abre-se e o relaxamento isotônico começa à medida que se inicia o enchimento ventricular. A área total na alça de PV representa o trabalho total realizado pelo ventrículo contra o obstáculo da ejeção imposto pela pressão arterial. O trabalho total compreende o trabalho interno (causado pelo ciclo de cabeças de meromiosina pesada e estiramento da série de elementos elásticos) e o trabalho externo (i.e., movimento de um volume de sangue contra uma resistência). O trabalho total é uma medida da demanda miocárdica de oxigênio (MVO2) e, junto com a liberação miocárdica de oxigênio (DO2), pode ser usado para estimar o equilíbrio energético (DO2 – MVO2). Portanto, uma única alça de PV do ventrículo esquerdo permite o cálculo (1) do lusitropismo (função diastólica dinâmica e estática), (2) da contratilidade miocárdica, (3) do volume sistólico e (4) da demanda miocárdica de oxigênio. Além disso, a razão (C’ – DC):(BC – DA) da pressão aórtica pulsátil (C’ – DC) para o volume sistólico (BC – DA) é a razão de pressão pulsátil para fluxo pulsátil, usada como uma estimativa da impedância da contribuição aórtica, um monitor útil do acoplamento ventricular-vascular.

Determinantes do desempenho e do débito

cardíacos Em geral, o desempenho cardíaco é descrito em termos das cinco propriedades básicas do coração: cronotropismo (frequência), batmotropismo (excitabilidade), dromotropismo (velocidade de condução), inotropismo (contratilidade) e lusitropismo (relaxamento). O ciclo cardíaco e a alça de pressão e volume ilustram os eventos hemodinâmicos temporais que ocorrem durante a contração e o relaxamento do coração. Clinicamente, a ecocardiografia de modo M e o Doppler espectral são usados para avaliar a função ventricular. Essas técnicas fornecem uma representação temporal dinâmica da função cardíaca e, quando acopladas a sistemas de análise de software, uma avaliação pictórica e quantitativa do desempenho cardíaco (Figura 22.34). As exigências de oxigênio dos tecidos são satisfeitas pelo ajuste contínuo do débito cardíaco (DC), que é o produto da frequência cardíaca (FC) e do volume de sangue bombeado pelo coração durante cada ciclo cardíaco (volume sistólico [VS]): DC = FC × VS Diminuições no tempo de enchimento ventricular e aumentos na resistência vascular periférica total (RPT) limitam o débito cardíaco, em particular com frequências cardíacas mais rápidas:151 DC = (PAM – PVC)/RPT em que PAM é a pressão arterial média, PVC é a pressão venosa central e DC é o débito cardíaco. Anestésicos injetáveis (barbitúricos e propofol) e inalatórios (halotano, isofluorano e sevofluorano) têm, todos, o potencial de diminuir a frequência cardíaca, o volume sistólico, a resistência vascular periférica total, a pressão arterial e o débito cardíaco (Boxe 22.3). O volume sistólico representa a diferença entre os volumes ventriculares telediastólico e telessistólico (VS = VTD – VTS; Figura 22.32B). Tradicionalmente, considerava-se que o volume sistólico fosse determinado primariamente pela contratilidade cardíaca e por dois fatores de acoplamento vascular, a pré-carga e a póscarga.152 Entretanto, o refinamento e o desenvolvimento de métodos mais descritivos para a avaliação da função cardíaca levaram o enfoque a considerar os efeitos do relaxamento (lusitrópicos) sobre o volume sistólico.153,154 As propriedades lusitrópicas (complacência = 1/rigidez) são as responsáveis pela rigidez da câmara ventricular (dP/dV) ou seu inverso, a complacência (dV/dP). É preciso lembrar que alterações na pré-carga, na pós-carga ou nas propriedades cardíacas contráteis (inotrópicas) e de relaxamento (lusitrópicas) podem influenciar-se mutuamente e, portanto, influenciar o volume sistólico. Esses fatores, por sua vez, são todos modificados por alterações na frequência cardíaca, levando a uma

interação complexa (acoplada matematicamente) de variáveis que, em conjunto, determinam o débito cardíaco (Figura 22.35).151 Os termos pré-carga e pós-carga, descritos antes nesta seção como dois determinantes do acoplamento vascular do débito cardíaco, originaram-se de experimentos isolados com músculos, em que a pré-carga representou a carga original, o comprimento ou o estiramento sobre o músculo antes de sua estimulação e sua contração, e a pós-carga representou a força ou tensão desenvolvida antes da ejeção ventricular. Estudos com músculo cardíaco isolado (sistema de Langendorff) continuam a ser essenciais para o entendimento e a descrição da fisiologia, do metabolismo e das respostas do músculo cardíaco a várias perturbações (hipoxia, isquemia e fármacos), em geral sendo apresentados como gráficos tridimensionais de força, velocidade e comprimento.43 A função cardíaca em animais intactos, contudo, não é como no músculo cardíaco isolado, porque, além dos fatores intrínsecos, o desempenho ventricular é determinado pelo acoplamento vascular arterial e venoso, modulado por efeitos neuro-humorais, limitações pericárdicas e intratorácicas, bem como pelos padrões de contração ventricular.133,134 De qualquer maneira, os termos pré-carga e pós-carga continuam fazendo parte do jargão popular quando se descreve o desempenho ventricular em animais intactos.

■ Pré-carga A pré-carga é a carga hemodinâmica ou o estiramento que incide sobre a parede miocárdica no final da diástole, logo antes do começo da contração. Há várias medidas possíveis da pré-carga: a pressão telediastólica (PTD), o volume telediastólico (VTD), o estresse da parede no final da diástole e o comprimento telediastólico do sarcômero. O VTD está diretamente relacionado com o grau de estiramento dos sarcômeros miocárdicos.43 O comprimento do sarcômero é a medida mais significativa da pré-carga muscular, mas é impossível medi-lo no coração intacto. Em animais intactos, a pré-carga geralmente é explicada em termos da relação de Frank-Starling ou como autorregulação heterométrica: autorregulação da força da contração ventricular que ocorre em relação direta com o comprimento telediastólico da fibra.152 Há controvérsia se realmente aumentos no volume ventricular aumentam ou não o comprimento (estiramento) de sarcômeros individuais (ver a seção intitulada Coração | Contração e relaxamento); o mais provável é que simplesmente os miofilamentos desenvolvam maior sensibilidade ao cálcio, resultando em aumento da força contrátil.36,42 A relação de Frank-Starling serve como um mecanismo compensatório importante para a manutenção do volume sistólico quando há alterações agudas na contratilidade ventricular e na pós-carga (Figura 22.13). A pré-carga é determinada pelo retorno venoso (RV) e este depende da pressão média de enchimento circulatório (PMEC; a pressão em todas as partes do sistema circulatório quando o coração é parado e a pressão

equilibra-se), da pressão venosa central (PVC) e da resistência venosa:117,140 RV = (PMEC – PVC)/resistência venosa De acordo com Gelman, Guyton et al., o principal determinante da RV é a PMEC (Figura 22.36).117,155,156 É importante lembrar que aumentos no débito cardíaco durante a administração de líquido são devidos mais provavelmente a um aumento na PMEC e ao aumento subsequente no RV que ao aumento na contratilidade cardíaca.117 Graças à dificuldade de se determinarem com precisão a PMEC e o volume ventricular no contexto clínico, o diâmetro ventricular (ecocardiogarfia), a PTD ventricular (cateterismo cardíaco), a pressão capilar pulmonar em cunha e, ocasionalmente, a pressão atrial média são usados como estimativas da pré-carga.154 A pressão telediastólica pode ser avaliada, clinicamente, medindo-se a pressão capilar pulmonar em cunha (PCPC), colocando-se um cateter de Swan-Ganz através do ventrículo direito na artéria pulmonar. A substituição de pressão por volume, embora comum, deve ser feita com o entendimento de que há muitas circunstâncias (procedimentos com o tórax aberto e rigidez cardíaca ou coração não complacente) em que a pressão não representa precisamente alterações no volume ventricular e, portanto, não é um índice preciso da pré-carga.

Figura 22.34 A ecocardiografia de modo M (A) e o Doppler (B e C) ilustram as relações dinâmicas em tempo real na função cardíaca em animais. PVD, parede ventricular direita; VD, câmara ventricular direita; VT, valva tricúspide; SIV, septo interventricular; VE, câmara ventricular esquerda; VMA, valva mitral anterior; VMP, valva mitral posterior; VA, valva aórtica; AO, aorta; EN, endocárdio; PVE, parede ventricular esquerda.

■ Pós-carga É a carga hidráulica imposta sobre o ventrículo durante a ejeção e o termo usado mais comumente para descrever a força oponente à ejeção ventricular.151 Um dos principais motivo do grande interesse nesse determinante fisiológico da função cardíaca é sua relação inversa com o volume sistólico e sua correlação direta com o consumo miocárdico de oxigênio.121 Embora corretas em termos conceituais, as descrições e o uso do termo póscarga foram prejudicados por múltiplas definições e pelo entendimento incompleto do que ele realmente representa.157 Em tecidos isolados, pós-carga é a força gerada após a précarga, para o músculo encurtar.43 Portanto, a carga total em experimentos com músculo isolado é representada pela pré-carga mais a pós-carga. Em contraste com o músculo isolado, a pós-carga em animais intactos altera-se continuamente durante toda a ejeção ventricular e é descrita com maior precisão pela tensão (estresse) desenvolvida pela parede ventricular esquerda durante a ejeção ou conforme a impedância (Zi) arterial contribuinte (Figura 22.28).158 Determina-se o estresse ou a tensão da parede ventricular (T) pela relação de Laplace (T = Pr/2 h: T, tensão; r, raio; h, espessura da parede).159 Além do estresse da parede ventricular, a pós-carga em animais intactos foi definida como a pressão ventricular no final da sístole (PTS), TPR e impedância arterial. A PTS é estimada a partir da pressão arterial no momento do fechamento da valva de saída e pode ser aproximada pela pressão média pulmonar ou arterial para seus respectivos ventrículos.

Figura 22.35 O débito cardíaco é igual à frequência cardíaca (FC) multiplicada pelo volume sistólico (VS) ou à pressão arterial (PA) dividida pela resistência vascular periférica (RVP). Aumentos na frequência cardíaca, na contratilidade cardíaca e na pré-carga, bem como diminuições na pós-carga, podem aumentar o débito cardíaco. A pré-carga e a pós-carga são consideradas fatores do acoplamento e modificadas pela resistência, pela capacitância e pela complacência vasculares. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 22.36 Volumes com estresse (Ve) e sem estresse (Vse). O volume sanguíneo total pode ser dividido em Ve e Vse. Sangue abaixo do orifício de retorno venoso (VenR) não afeta o retorno venoso, mas serve como uma reserva e pode ser mobilizado por vasoconstrição. A

altura da coluna de sangue acima do VenR e o diâmetro do orifício (resistência venosa) determinam a taxa do retorno venoso (RV). A pressão média de equilíbrio quando o coração está em repouso é denominada pressão média de enchimento circulatório (PMEC; 5 a 12 mmHg). RV = (PMEC – PVC)/resistência venosa. O principal determinante da PMEC é o Ve. O débito cardíaco (DC) é determinado pelo RV, que é determinado primariamente pela PMEC e pela PVC (PMEC – PVC). A constrição de veias esplâncnicas, por exemplo, aumenta a PMEC, a PMEC – PVC, o RV e o DC.

Um método muito mais preciso, ainda que tecnicamente desafiador, para avaliar a póscarga em animais intactos é medir o acoplamento ventricular-vascular.134,160,161 A contribuição da impedância arterial é uma expressão da resposta do sistema arterial ao fluxo sanguíneo pulsátil e é uma função da pressão arterial, da elasticidade da parede arterial, das dimensões do vaso sanguíneo abaixo do ponto em que as pulsações são atenuadas e da viscosidade sanguínea (ver Hemorreologia). A contribuição da impedância arterial incorpora componentes de resistência que variam com o tempo (pressão e fluxo), e componentes de reactância (elastância). A medida da contribuição da impedância arterial requer a medição simultânea e instantânea da pressão e do fluxo na raiz aórtica.158 Ambas as ondas são sujeitas a uma transformação de Fourier, a partir da qual uma série de ondas em forma de sino e frequências são derivadas. A impedância característica é a relação entre pressão e fluxo, em que as ondas de pressão e fluxo não são influenciadas pela reflexão da onda (ela aproxima a contribuição da impedância durante vasodilatação máxima). A impedância característica é de aproximadamente 5% da resistência arterial total e, em geral, é um indicador sensível da elasticidade ou complacência da parede vascular. O módulo de impedância na frequência zero (fluxo não pulsátil) é equivalente à resistência vascular (R) e, geralmente, descrito como TPR. Embora muito menos acurada que a determinação dos módulos de impedância, em particular quando se avalia a progressão de doença cardíaca ou fármacos que alteram as propriedades cardíacas e vasculares simultaneamente, a medição da TPR é usada na prática clínica como uma medida da pós-carga e do tônus vascular, por ser tecnicamente simples de se obter e mais fácil de entender intuitivamente.

■ Contratilidade A contratilidade cardíaca (inotropismo) é uma capacidade intrínseca do coração para gerar força e, como tal, tem relação direta com processos físico-químicos e a disponibilidade de cálcio intracelular (ver Coração | Acoplamento excitação-contração).37 Autorregulação homeométrica é a expressão frequentemente aplicada a esses fatores que, além do comprimento da fibra muscular, influenciam a força da contração cardíaca. A contratilidade, em geral, é descrita em preparações de músculo isolado por desvios na curva de função ventricular (p. ex., desvios na relação da Frank-Starling) (Figura 22.13).43

É digno de nota que esses métodos sejam chamados ‘dependentes da carga’, implicando que alterações em outros fatores (frequência cardíaca, pré-carga, pós-carga) influenciem os resultados obtidos. Uma diminuição na contratilidade cardíaca é um fator fundamental que pode diminuir o débito cardíaco e, potencialmente, induzir insuficiência cardíaca em animais com doença cardíaca ou após a administração de quantidades excessivas de um anestésico.162–164 O ideal é que os índices de contratilidade cardíaca devam ser independentes da carga: alterações na frequência cardíaca, na pré-carga, na pós-carga e no tamanho do coração. Muitos índices de contratilidade evoluíram, em uma tentativa de desenvolver uma medida da atividade contrátil cardíaca verdadeiramente independente da carga. Esses índices variam de maneira considerável em sua dependência da carga, sua sensibilidade e sua especificidade como medidas da contratilidade cardíaca, e, em geral, enquadram-se em uma de quatro categorias amplas: (1) índices de fase de contração isovolumétrica, (2) índices da fase de ejeção, (3) índices da relação entre pressão e volume, e (4) índices da relação estresse-estiramento (Boxe 22.4). Embora muitas abordagens para avaliar a contratilidade cardíaca sejam úteis experimental e clinicamente, passaram a ser aceitos apenas os índices da fase isovolumétrica (por serem fáceis de medir), os da relação entre pressão e volume (por sua independência da carga) e o da fase de ejeção (trabalho cardíaco da pré-carga recrutável: área fechada dentro da alça de pressão e volume do VE contra o VTD no gráfico). Além disso, pode-se usar a medida da relação entre pressão e volume para avaliar as propriedades energéticas sistólicas, diastólicas e miocárdicas do coração.165 Boxe 22.4 Índices hemodinâmicos da função sistólica e diastólica.

Função sistólica 1

Índices isovolumétricos a Avaliação ecocardiográfica (modo M, bidimensional, Doppler) b dP/dtmáx, dP/dt40 e dP/dt/Vtd c Vmáx

2

d Energia, frequência da carga de energia Índices da fase de ejeção a Avaliação ecocardiográfica (modo M, bidimensional, Doppler) b Débito cardíaco c Fração de ejeção, (VTD – VTS)/VTD d Trabalho sistólico

e Velocidade máxima de encurtamento circunferencial f Tempo de ejeção ventricular esquerda 3

g Período pré-ejeção Índices de pressão e volume a Avaliação ecocardiográfica (modo M, bidimensional, Doppler) b Ets e Emáx c Razões telessistólicas de pressão e volume

4

d Tmáx (tempo para Emáx) Índices de estresse-estiramento a Rigidez elástica (estresse-estiramento) b Razão telessistólica de estresse e volume

Função diastólica 1

Índices de relaxamento isovolumétrico (derivados da pressão) a Avaliação ecocardiográfica (modo M, bidimensional, Doppler) b dP/dtmín c Constante de tempo da queda da pressão ventricular esquerda (T) d Tempo de relaxamento

2

e –dP/dt (queda da tensão) Índices de enchimento diastólico a dP/dV b Taxa de enchimento máximo (dV/dtmáx)

3

c Rigidez da câmara (dP/dV versus P) Índices telediastólicos a Pressão telediastólica

4

b Razão P/V telediastólica Índices da fase de ejeção a Avaliação ecocardiográfica (modo M, bidimensional, Doppler) b Tempo para –dP/dtmín; tempo para 50% –dP/dtmín c Tempo de enchimento diastólico d Período de relaxamento diastólico

e Tempo a partir da dimensão ventricular esquerda mínima até a abertura da valva mitral A inclinação da relação entre pressão e volume telessistólicos (RPVTS) e a elastância telessistólica (Ets) podem ser determinadas sob um nível constante de contratilidade, medindo-se a alteração no VTS (produzida em parte por oclusão venosa parcial) em várias magnitudes de PTS (Figuras 22.33A e 22.37A,B). A inclinação da RPVTS é a estimativa independente da carga mais útil e exata da contratilidade cardíaca inerente de que se dispõe atualmente (Figura 22.37C).

■ Relaxamento Lusitropismo refere-se à capacidade de relaxamento do miocárdio após o acoplamento excitação-contração e tem importância fundamental para o entendimento do desempenho cardíaco.153 A definição mais popular e clinicamente relevante de diástole estabelece que o relaxamento começa com o fechamento da valva aórtica, anunciado pela segunda bulha cardíaca [B2 (Figura 22.32A)].166 A diástole é, ainda, dividida em quatro fases: (1) relaxamento isovolumétrico, (2) enchimento ventricular inicial rápido, (3) enchimento ventricular lento (diástase) e (4) sístole atrial (durante ritmo sinusal). Fatores mecânicos, fatores de carga, atividade inotrópica, frequência cardíaca e assincronicidade (padrões de relaxamento) são os principais determinantes do lusitropismo. Fatores e intervenções que alteram especificamente as propriedades de relaxamento do coração têm interesse especial, por causa da sua importância na determinação da complacência ventricular ou rigidez. Uma lista parcial de métodos usados para descrever quantitativamente o relaxamento inclui índices de pressão, derivados do volume e intervalo (Boxe 22.4). Os índices de relaxamento volumétrico [taxa de declínio da pressão ventricular (–dP/dt) e a constante de tempo para o relaxamento (τ)] são úteis para se medir a fase de relaxamento e refletem a dissociação das ligações de actina e miosina por causa da recaptação de cálcio citoplasmático pelo retículo sarcoplasmático. Ambos os índices são influenciados pela função sistólica miocárdica, pelas condições de carga ventricular (pré-carga e pós-carga) e pela frequência cardíaca, e, portanto, considerados como sendo dependentes da carga. Por mais que se tenha cautela ao usar um índice para avaliar o desempenho cardíaco sistólico, diastólico ou contrátil, é claro que o principal a considerar tem de ser os fatores (determinantes do desempenho) que influenciam o índice selecionado. Fármacos usados como pré-anestésicos ou para anestesia intravenosa ou inalatória podem ter efeitos profundos sobre o sistema cardiovascular e os índices do desempenho cardíaco. Além disso, deve-se dar a maior consideração aos efeitos dos anestésicos sobre a função venosa, a PMEC e o RV. Os efeitos vasculares venosos dos anestésicos sobre o volume sanguíneo efetivo circulante são muito mais complexos do que se pensava e podem ser responsáveis

por quedas precipitadas e dramáticas no débito cardíaco (Tabela 22.4).

■ Acoplamento ventricular-vascular As medições da função sistólica e diastólica têm sido expressas (correta e incorretamente) por muitos métodos (p. ex., taxas máximas de subida e queda da pressão intravascular, razão do volume sistólico com relação ao volume telediastólico); no entanto, o ‘padrãoouro’ (o mais correto) é a análise de gráficos da pressão ventricular esquerda versus o volume ventricular esquerdo (alça de pressão e volume) a partir de uma família de alças de pressão e volume obtidas durante uma queda gradativa na pré-carga, em geral alcançada mediante a oclusão da veia cava caudal. É importante determinar a função tanto sistólica (capacidade que gera força) como a diastólica (lusitropismo ou propriedades de enchimento) do ventrículo e como ele interage com a árvore arterial (acoplamento ventricular-vascular). Isso é relevante para a patogenia de doenças e como o tratamento pode remediá-las. Curva de retorno venoso O conceito moderno de acoplamento ventricular-vascular foi popularizado por Guyton et al., que usaram a curva de função vascular e, mais precisamente, a do retorno venoso (‘diagrama de Guyton’) e a da função cardíaca (ventricular), para predizer alterações no débito cardíaco (Figura 22.38).155,156 Os diagramas de Guyton do acoplamento ventricularvascular enfatizaram que as variáveis independentes importantes para a determinação do débito cardíaco são as somas das resistências vasculares, das capacitâncias e da contratilidade cardíaca.155 O ‘diagrama de Guyton’ ilustra a relação inversa entre a pressão venosa (PVC) e o débito cardíaco (Figura 22.38). A interseção horizontal (abscissa) da curva do retorno venoso ou a pressão venosa com débito cardíaco de zero é a PMEC, que é uma função da capacitância e do volume sanguíneo total e tem sido correlacionada diretamente com a sobrevivência ao choque hemorrágico e séptico.167 É possível provocar variações na curva do retorno venoso alterando-se a resistência venosa, a capacitância ou o volume sanguíneo (Figura 22.36). O equilíbrio da curva de retorno venoso e da função ventricular é alcançado quando o retorno venoso em determinada pressão se combina com a capacidade do ventrículo de bombear o sangue que retorna para o coração (retorno venoso). Portanto, se a pressão venosa aumenta (administração rápida de líquido), o débito cardíaco aumenta durante o próximo ciclo cardíaco. Aumentos no débito cardíaco, por sua vez, transferem sangue da circulação venosa para a arterial, diminuindo, assim, a pressão venosa. Esse processo continua em etapas progressivamente decrescentes até ser alcançado um novo equilíbrio para o débito cardíaco e o retorno venoso, lembrando que existe apenas um ponto de equilíbrio para o débito cardíaco e o retorno venoso. Podem ser empregados

raciocínios semelhantes para outras perturbações: alterações no volume sanguíneo, na resistência arterial e na contratilidade cardíaca.157,165,167

Figura 22.37 A. Três alças de PV com o mesmo VTD mas com pressões aórticas diferentes: a resistência periférica total aumentou. O canto superior esquerdo de cada alça cai na RPVTS e a parte inferior direita da alça cai na RPVTD (ver Figura 22.33). B. São mostradas três alças diferentes que têm VTDs e pressões aórticas diferentes. As alças foram obtidas diminuindo-se o retorno venoso. C. Alterações na contratilidade modificam a geração de pressão ventricular e o volume sistólico. Fármacos que aumentam a inclinação da RPVTS aumentam a Ets, que é a inclinação (declive) da relação linear ou elastância telessistólica. A Ets é considerada um índice confiável e preciso da contratilidade ventricular, porque varia com a contratilidade ventricular, mas não é afetada por alterações nas propriedades do sistema arterial ou no VTD. A pressão no final da sístole é a Pts [Pts = Ets(V – V0)]. Pts é a pressão telessistólica, V0 é o volume ventricular quando P = 0 e V é o volume de interesse. Tabela 22.4 Efeitos farmacológicos de doses clinicamente relevantes de anestésicos administrados comumente.a Força Fármaco

FC

Ritmo PA

DC

contrátil PMEC cardíaca

Anestésico

↑↓

inalatório

±

+

Hipnótico injetável ±

+

↓↓

↓↓



↓↓

Tônus vascular

↓↓

Atividade

Atividade Capacitância

reflexa do

nervosa

venosa

barorreceptor simpática esplâncnica ↓↓

↓↓

↑↑



↓↓













↑↑

0







±↓

±↓

±↓

±↓



+

±





±↓









+





±↓

±↓

±↓









0

±

±

±

±

±

±

±

±

Cetamina



+



↑±

0

0

0

0↑

0

Tileatimina



+

↑±

0

0

0

0↑

0

Morfina



0

–↓

–↓

0↓

0

0

0↓

0↓

0

Hidromorfona



0

–↓

–↓

0↓

0

0

0↓

0↓

0

Fentanila



0

–↓

–↓

0↓

0

0

0↓

0↓

0

Agonista α2

↓↓

+

↑→↓

↓↓

0↓

↑→↓

↑→↓

0↓

0

↓→↑

0↑

0

0

0↓

0

0↓

0↓

0

0↓

0↓

Propofol

Etomidato

Barbitúrico

Neurosteroide

Cloralose

± ± ↑ ± ↓

Dissociativos



↑ ± ↑ ±

Opioide

Benzodiazepínico Diazepam Midazolam

0

Fenotiazina ±

Acepromazina



0



0↓

0↓















0↓

0↓





0









0↓

0↓





0





Anestésicos locais

Lidocaína

Bupivacaína

± ↑ ± ↑

a

Em geral, as doses clinicamente relevantes são iguais ou inferiores às recomendadas pelo fabricante. Efeitos idealizados

esperados em cães sadios normais; ↑, aumenta; ↓, diminui; ±, aumenta ou diminui; 0, pouca ou nenhuma alteração; ↑→↓, aumento seguido por queda; ↓→↑, queda seguida por aumento; +, potencialmente arritmogênico(a); –, antiarrítmico. Pode-se argumentar que esse tipo de apresentação da hemodinâmica e da função cardiovascular resulta no raciocínio circular (acoplamento matemático), pois uma alteração no débito cardíaco pode ser usada para explicar o retorno venoso e vice-versa. Na verdade, como o retorno venoso e o débito cardíaco são dependentes do fluxo em torno do circuito, o ponto de equilíbrio em que é produzido determinado débito cardíaco é uma função da capacitância e da resistência venosas e arteriais, do volume sanguíneo e da contratilidade cardíaca.

Figura 22.38 Curvas de retorno venoso (diagramas de Guyton). A. O retorno venoso e o débito cardíaco (curvas de Guyton) são determinados pelos efeitos oponentes da pressão atrial direita. Por exemplo, aumentos na pressão atrial direita aumentam o débito cardíaco, mas diminuem o retorno venoso. Alterações (B) no volume sanguíneo, (C) no tônus simpático, (D) no tônus vascular e (E) na função cardíaca têm efeitos previsíveis sobre o acoplamento do retorno venoso com o débito cardíaco em determinada pressão venosa. Notar que, durante insuficiência cardíaca moderada (E), o débito cardíaco é preservado à custa de aumentos na pressão venosa.

Acoplamento ventricular-arterial Construtos arteriais ou ventriculares-vasculares têm como foco a relação entre pressão e volume no ventrículo esquerdo e a ejeção de sangue para a aorta ascendente (acoplamento ventricular-arterial; Figura 22.33B).13,147,152,168,169 O poder dessa abordagem baseia-se em sua capacidade de detectar doença cardiovascular e identificar causas prováveis da patogenia da doença e na capacidade de derivar inúmeros índices importantes para avaliar a função cardiovascular em animais intactos.165 A inscrição instantânea da alça pressão/volume permite o cálculo de medidas da contratilidade cardíaca, das necessidades miocárdicas de oxigênio e da eficiência miocárdica, tanto dependentes como independentes da carga.152 Por exemplo, a razão da pressão e do volume ventriculares (dP/dV: elastância que varia com o tempo) varia durante todo o ciclo cardíaco e a inscrição da alça de pressão e volume. Reduções agudas na précarga são usadas para a produção de alças de pressão e volume cada vez menores e para a construção de uma linha reta que conecta todos os pontos telessistólicos. Essa linha é conhecida como relação de pressão e volume telessistólicos, conforme dito antes, cuja curva é a elastância ventricular telessistólica (Ets), um índice independente da carga diretamente proporcional à contratilidade ventricular (Figura 22.37A,B). O trabalho mecânico [trabalho sistólico (TS)] realizado pelo coração é proporcional à área de pressão e volume (APV: área dentro da curva de pressão e volume), que tem uma relação linear com o consumo miocárdico de oxigênio (CMO2) e, quando colocada no gráfico contra o volume telediastólico, obtém-se outro índice da contratilidade cardíaca sensível e independente da carga derivada, denominado trabalho sistólico pré-carga recrutável (TSPR). A eficiência mecânica (EM) do coração é a razão do TS relativa ao CMO2 e é derivada dividindo-se o TS pela APV (EM = TS/APV). A ejeção de sangue para a aorta ascendente é governada pelas mesmas propriedades de resistência e reativas (viscoelásticas) que comandam o retorno venoso. Essas propriedades de carga arterial (pós-carga) influenciam o volume sistólico.55 A diferença entre os volumes telediastólico e telessistólico da relação entre pressão e volume é o volume sistólico, que, quando colocado no gráfico versus a pressão sistólica (Pts) durante reduções no volume

sistólico, resulta em uma linha cuja curva é a elastância arterial efetiva (Ea) (Figura 22.33A,B). Na prática, Ea em geral é aproximada pela razão da Pts para o volume sistólico (Pts/VS = Ea). Esse parâmetro é particularmente poderoso porque incorpora os principais elementos da carga vascular (pós-carga), incluindo a resistência periférica, a complacência vascular total, a impedância característica (ver a seção intitulada Determinantes do desempenho e do débito cardíacos) e alterações induzidas pelas que ocorrem na frequência cardíaca. É digno de nota que componentes puramente resistivos da carga vascular são considerados adequadamente para determinar o estado estável ou parâmetro não pulsátil, a resistência periférica total, que é responsável por aproximadamente 90% da carga vascular em condições normais. O componente pulsátil ou dinâmico da carga vascular, em geral, é responsável por aproximadamente 10% da carga vascular em condições normais, acrescenta-se ao componente resistivo e torna-se cada vez mais importante durante doença cardiovascular, alterações no volume sanguíneo ou após a administração de fármacos que afetam o sistema cardiovascular.154,162–164 Foram descritos outros métodos para se analisar com precisão a pós-carga arterial (ver a seção intitulada Determinantes do desempenho e do débito cardíacos). Como tanto a Ets como a Ea têm a medida da Pts e do volume ventricular em comum, podem ser esquematizadas em um único gráfico para se obter o ponto ‘ideal’ de acoplamento ventricular-arterial em quaisquer circunstâncias cardiovasculares (Figura 22.33B). Dito de outra forma, se o volume telediastólico (pré-carga), Ea e Ets forem conhecidos, é possível predizer o débito cardíaco (DC = VS × FC). Além disso, essa análise prediz que o TS deve ser maximizado quando essa relação é igual a 1 (Ets = Ea) e que a eficiência mecânica (EM) máxima é alcançada quando Ea = Ets/2, pois a EM = TS/APV = 1/(1 + Ea/Ets/2).170 O ponto ideal de acoplamento ventricular-arterial ideal em animais intactos ocorre quando a pressão arterial média é adequada para o fluxo orgânico (aproximadamente 60 a 70 mmHg) e, conforme dito antes, a pressão sistólica está baixa e a diastólica encontra-se alta (pressão de pulso pequena). A baixa pressão sistólica facilita a ejeção ventricular máxima e as baixas demandas de oxigênio pelo miocárdio, enquanto a pressão diastólica alta assegura a perfusão coronariana adequada. A interação ventricular arterial ideal fica comprometida por qualquer fator que diminua a contratilidade cardíaca (Ets diminuída) ou aumente a rigidez arterial (aumento da Ea). Aumentos na rigidez arterial incrementam a amplitude do pulso, a pressão sistólica e, portanto, diminuem o volume sistólico para uma dada contração cardíaca, enquanto elevam a DMO2. A pressão diastólica, em geral, cai, reduzindo, assim, o fluxo sanguíneo coronariano e a perfusão miocárdica. Além disso, alterações no momento da reflexão da onda de pulso, principalmente iniciados por aumentos no tônus arteriolar, podem aumentar a pressão sistólica e reduzir a diastólica,

exacerbando a situação.10,55,65

■ Acoplamento fisiológico e matemático A prática anestésica segura é dependente do monitoramento preciso dos efeitos anestésicos relacionados com o fármaco. Isso, em geral, abrange métodos (reflexos da córnea, palpebrais e tônus da mandíbula) e técnicas (físicas, mecânicas, elétricas) para determinar o nível de consciência (qualitativo, categórico) e avaliar quantitativamente variáveis cardiorrespiratórias. A maioria dos estudos experimentais que visa detalhar os efeitos anestésicos em seres humanos e animais costuma incluir outras variáveis derivadas e calculadas (débito cardíaco, resistência vascular, trabalho cardíaco, liberação e consumo de oxigênio), para se ter informações mais detalhadas sobre os efeitos relacionados com fármacos. Tal informação é, então, usada para esclarecer e justificar interpretações das ações de fármacos. Como todos os dados estão sujeitos à análise estatística, vale a pena saber se a variável em consideração é dependente (do ‘efeito’, da ‘resposta’, do ‘débito’) ou independente (‘controlada’, ‘manipulada’). Uma variável dependente pode ser uma variável medida, como a frequência, a pressão ou o fluxo medidos diretamente, ou uma variável calculada cujo valor é determinado por variáveis independentes. Por exemplo, alterações na frequência cardíaca (uma variável dependente) costumam ser explicadas por alterações na pressão arterial (uma variável independente) induzidas por fármacos. Portanto, a descrição de dados que descrevem os efeitos anestésicos induzidos por fármacos deve ser feita com cuidado, porque qualquer variável pode ser considerada dependente de alguma coisa. A pressão arterial, por exemplo, pode ser considerada uma variável dependente, pois seu valor depende do instante em que é medida e da posição do sistema arterial ou venoso que é medido. Portanto, depende das variáveis independentes de tempo e posição. Alterações induzidas por fármacos anestésicos na pressão arterial também costumam ser explicadas como uma função de duas outras variáveis dependentes, a resistência vascular e o débito cardíaco. Tais variáveis também são acopladas fisiologicamente. Além disso, sabe-se que a resistência vascular depende diretamente da viscosidade sanguínea – quanto maior a viscosidade, maior a resistência – e, assim, a viscosidade depende do hematócrito, de modo que, quanto maior o hematócrito, maior será a viscosidade. Portanto, não surpreende detectar que uma relação indicativa de aumentos na resistência vascular periférica esteja associada a aumento do hematócrito e vice-versa. Esse é um exemplo do acoplamento fisiológico e é previsível, por causa da dependência conhecida que a resistência vascular tem da viscosidade e esta do hematócrito. O acoplamento fisiológico entre duas variáveis dependentes significa que há um componente variável comum do qual ambas dependem. O acoplamento fisiológico tem de ser considerado ao serem interpretados os efeitos cardiorrespiratórios dos anestésicos e

enfatiza a importância de serem identificadas variáveis independentes e dependentes. O acoplamento fisiológico é mais complicado ainda em muitos estudos que investigam os efeitos cardiovasculares de anestésicos por acoplamento matemático, o que leva a erros ainda maiores na análise e na interpretação dos dados. Ocorre acoplamento matemático quando a relação entre duas variáveis deve-se a um componente comum, em que uma delas está contida na outra ou uma terceira variável dependente é comum a ambas.171,172 Por exemplo, pode-se usar o produto do débito cardíaco pela diferença arteriovenosa de oxigênio para calcular o consumo de oxigênio usando-se o princípio de Fick. Essa abordagem é adotada frequentemente para determinar o ponto crítico em que o consumo de oxigênio torna-se dependente de seu fornecimento. Ocorre acoplamento matemático porque o débito cardíaco e o conteúdo arterial de oxigênio são usados para calcular ambas as variáveis (i.e., consumo e liberação de oxigênio). Quando variáveis com componentes compartilhados são colocadas em um gráfico, o acoplamento matemático dos erros aleatórios em ambas as variáveis produzem vieses que confundem a relação fisiológica verdadeira.

Mecanismos neuro-humorais e de controle local A anestesia é dependente da captação ou absorção, distribuição e eliminação dos anestésicos. Volumes teciduais diversos e seus fluxos sanguíneos, solubilidade dos fármacos nos tecidos e mecanismos metabólicos determinam a concentração plasmática dos fármacos e seus efeitos finais. Os fármacos são liberados para os vários tecidos do corpo de acordo com a distribuição do débito cardíaco (Tabela 22.5). No entanto, de acordo com o volume por unidade de tecido, uma parte maior do débito cardíaco e, portanto, do fármaco distribui-se para o grupo de tecidos ‘rico em vasos’ (GRV: coração, cérebro, fígado, rins, leito esplâncnico) do que para o grupo muscular (GM: músculos, pele) ou para o grupo pobre em vasos (GPV: gordura, osso, cartilagem).173 A distribuição e a regulação do fluxo sanguíneo, portanto, constituem fatores fundamentais para o início, a magnitude e a duração do efeito dos fármacos. O controle regulador do sistema cardiovascular e do fluxo sanguíneo tecidual é integrado mediante os efeitos combinados dos sistemas nervosos central e periférico, a influência de substâncias vasoativas (humorais) circulantes e mediadores teciduais locais.173–175 Esses processos reguladores mantêm o fluxo sanguíneo em um nível apropriado, enquanto distribuem o sangue para satisfazer as necessidades dos leitos teciduais que têm a maior demanda de oxigênio. A maioria dos órgãos compensa as alterações na pressão arterial com a variação fisiológica por autorregulação. Define-se autorregulação como a manutenção fisiológica de um fluxo constante em uma variação moderada de pressões de perfusão. É digno de nota lembrar que a anestesia deprime os

mecanismos autorreguladores.176 Tabela 22.5 Distribuição do débito cardíaco. Órgão

% do total

1. Coração

4

2. Cérebro

14

3. Rins

20

4. Trato gastrintestinal

22

5. Músculo esquelético em repouso

20

6. Pele

8

7. Outros órgãos

12

O fluxo sanguíneo tecidual é regulado pela integração de fatores suprarregionais [sistema nervoso central (SNC)], regionais e locais. Juntos, esses fatores coordenam ajustes imediatos e a longo prazo no débito cardíaco, na resistência vascular periférica total, na capacitância vascular e no volume sanguíneo.117,174,175 Os centros cerebrais mais altos, incluindo o hipotálamo (dor e temperatura) e o córtex cerebral (emoções: vigilância e medo), facilitam ou modificam as respostas cardiovasculares. Ajustes contínuos na função do sistema cardiovascular e nas respostas reflexas a estímulos mecânicos e químicos ajudam a amenizar alterações sanguíneas na pressão arterial e no volume intravascular e a manter a liberação de oxigênio e nutrientes para os tecidos (Boxe 22.5). O sistema nervoso autônomo exerce grande influência sobre a regulação da função cardiovascular.177,178 Receptores periféricos, inclusive barorreceptores, mecanorreceptores e quimiorreceptores, respondem a alterações na pressão, no volume ou nas tensões dos gases sanguíneos, respectivamente, e enviam informação para o SNC por meio de nervos aferentes.174 Esses sinais sensoriais são integrados em ‘centros de controle’ localizados no hipotálamo, na ponte e na medula, desencadeando respostas levadas por nervos eferentes simpáticos ou parassimpáticos para a periferia. O sistema nervoso autônomo também modula a liberação de vários peptídios que exercem influência humoral generalizada sobre o desempenho cardíaco contrátil e o tônus vascular.177,178 Alterações a cada minuto no fluxo sanguíneo são reguladas por mecanismos de controle local, que são um tanto

independentes do comando do sistema nervoso.179 Substâncias vasodilatadoras, primariamente subprodutos do metabolismo tecidual, agem sobre os pequenos vasos, provocando vasodilatação proporcional à quantidade produzida de metabólitos. Além disso, sabe-se que o endotélio vascular modula mecanismos de controle locais e neurais mediante a liberação de prostaglandinas e fatores derivados do endotélio, como o óxido nítrico (Figura 22.30B). Os anestésicos podem e interferem nos mecanismos sensoriais (impulsos), de integração neural (processamento) e efetores (de saída) que controlam a função cardiovascular.180–184 Os anestésicos inalatórios, em particular as respostas compensatórias a perdas sanguíneas, traumatismo, administração de líquido e fármacos para reanimação (catecolaminas, vasopressinas) e se (quando) administrados em quantidades excessivas, podem abolir totalmente os mecanismos de controle homeostático.185 Normalmente, uma queda na pressão arterial em animais conscientes é sentida por uma variedade de barorreceptores vasculares, que são os determinantes a curto prazo mais importantes da pressão arterial. O débito desses receptores dispara reajustes no débito do SNC autônomo, que compensa pequenas alterações na pressão arterial. A autorregulação miogênica local também ajuda a proteger o cérebro, o coração, o fígado, o mesentério e a musculatura esquelética de pequenas alterações na pressão arterial. Se a pressão arterial cair a um ponto em que o fluxo sanguíneo tecidual seja afetado de maneira negativa, os centros do SNC são ativados, ocasionando aumentos substanciais na frequência cardíaca, na contratilidade cardíaca e no tônus vascular. A epinefrina e a norepinefrina são liberadas das glândulas adrenais, o que, combinado com aumentos no tônus simpático e a ativação do sistema renina-angiotensina, intensifica a vasoconstrição (Boxe 22.6). O fluxo sanguíneo é redistribuído para os pulmões, o coração e o cérebro, bem como para longe da pele, a musculatura esquelética, os rins e as vísceras esplâncnicas. Além disso, os quimiorreceptores periféricos captam alterações na tensão sanguínea de oxigênio (PaO2) e no pH. O início agudo de hipoxemia ou hipercarbia (acidemia), em conjunto com hipotensão, pode induzir vasoconstrição periférica. Se a pressão arterial não for restaurada, a pressão hidrostática capilar diminui, promovendo o movimento de líquido do espaço intersticial para os capilares, aumentando, assim, o volume intravascular. O desvio intravascular de líquido extravascular pode restaurar até 50% do volume intravascular em um período relativamente curto (horas).117 A constrição da vasculatura periférica, a centralização do volume sanguíneo, a redistribuição do fluxo sanguíneo e aumentos no débito cardíaco e na pressão arterial, geralmente, são capazes de restabelecer a perfusão tecidual, desde que o episódio de hipotensão ou a perda sanguínea não excedam a capacidade compensatória do corpo. Boxe 22.5 Reflexos e efeitos cardiovasculares e pulmonares.

1 2 3 4

5 6 7

8

9 10 11 12 13

14 15

Efeito Anrep: aumentos na pressão aórtica resultam em um efeito inotrópico positivo, aumento da resistência ao efluxo no coração. Sinal de Branham: alentecimento da frequência cardíaca após compressão ou excisão de uma fístula arteriovenosa (p. ex., ligadura de canal arterial persistente). Reflexo Bainbridge: aumento na frequência cardíaca causado por aumento da pressão arterial nas grandes veias à medida que entram no átrio direito. Reflexo Bezold-Jarisch: vias aferentes e eferentes no nervo vago – a estimulação de quimiorreceptores ou receptores de estiramento (mecanorreceptores) cardíacos, primariamente ventriculares, induz bradicardia sinusal, hipotensão e vasodilatação periférica. O estiramento de mecanorreceptores ventriculares é responsável pela síncope quando em posição quadrupedal. Efeito Bayliss: o estiramento do músculo liso vascular causa contração muscular e aumento da resistência, que faz o fluxo sanguíneo voltar ao normal. Reflexo baro ou pressorreceptor de alta pressão: quedas na frequência cardíaca iniciadas por aumentos na pressão arterial. Uma queda na pressão arterial provoca hiperventilação. Reflexo do receptor de estiramento atrial: a distensão atrial causa a liberação do peptídio natriurético atrial (PNA) dos átrios, resultando em atividade diurética, vasodilatação e secreção de aldosterona. O PNA é um antagonista endógeno da angiotensina II. Taquicardias sinusais e supraventriculares são estímulos comuns para a resposta. Reflexo vasovagal: iniciado por uma queda no retorno venoso para o coração (p. ex., hipovolemia, ortostase, compressão da veia cava inferior e analgesia regional), causando bradicardia sinusal e vasodilatação. O termo passou a incluir síncope neurocardiogênica, síndrome do seio carotídeo e síncope da micção em pacientes humanos. Reflexo craniocardíaco: estimulação de nervos cranianos (olfatório, oftálmico e trigêmeo) resultando em bradicardia e hipotensão. Reflexo abdominocardíaco: a estimulação mecânica de vísceras abdominais causa alterações na frequência cardíaca, em geral tornando-a mais lenta; raramente causa extrassísoles. Reflexo oculocardíaco (reforço de Aschner): a compressão do globo ocular causa redução da frequência cardíaca sinusal (bradicardia). Reflexo de Hering-Breuer: efeitos do vago no controle da respiração – a insuflação pulmonar cessa a inspiração e a desinsuflação pulmonar a inicia. Quimiorreflexo pulmonar: a estimulação das terminações de fibra C [receptores capilares justapulmonares (receptores J)] por dano tecidual, acúmulo de líquido e de citocinas produz bradicardia sinusal, hipotensão, respiração superficial e apneia, broncoconstrição e secreção de muco (p. ex., administração de isofluorano). Reflexo venorrespiratório: aumentos na pressão atrial direita estimulam aumentos na respiração. Reflexo da tosse: a estimulação da laringe, da traqueia ou dos brônquios principais ou a estimulação química em toda a árvore respiratória resulta em tosse.

Reflexo vasovagal: vias aferentes e eferentes no nervo vago – a estimulação ou irritação da laringe ou da 16 traqueia por um laringoscópio ou tubo endotraqueal precipita bradicardia. Boxe 22.6 Fatores que regulam a pressão arterial e a perfusão tecidual.

Imediatos (a curto prazo) 1 2 3 4 5 6

Sistema nervoso autoimune (simpático e parassimpático) Regula a frequência cardíaca e o tônus e capacidade vasculares Baro e pressorreceptores reflexos vasculares (receptores de estiramento) Regulam a frequência cardíaca e o tônus e capacidade vasculares Receptores de estiramento cardíaco Regulam a frequência cardíaca e o tônus e capacidade vasculares Os quimiorreceptores reflexos captam alterações no oxigênio e no dióxido de carbono (íons hidrogênio) Respostas hematogênicas (humorais; epinefrina e norepinefrina) Regulam a frequência cardíaca e o tônus e contratilidade vasculares Fatores locais Pressão parcial do oxigênio arteriolar O oxigênio diminuído provoca vasodilatação e vice-versa Metabólitos locais Aumento da produção de dióxido de carbono, íons hidrogênio e lactato Autorregulação miogênica Ajusta o tônus vascular às alterações na pressão arterial

Intermediários 1 2

Desvios do líquido transcapilar (lei de Starling do capilar) Regulam a filtração e a absorção de líquido Respostas hormonais (renina e angiotensina) Regulam o tônus vascular e a rotação de sal e água

A longo prazo 1 2

Consumo oral de líquido Regula o consumo resultante de líquido Controle do sistema renal [vasopressina (HAD), aldosterona e peptídio natriurético atrial] Regula a água corporal total e o débito renal de líquido

■ Controle neuro-humoral

A regulação do sistema cardiovascular e do volume sanguíneo pelo sistema nervoso depende de três componentes dentro do último: entrada aferente, integração e processamento centrais e saída eferente.177,178 Fatores neurais e hormonais, inclusive osmorreceptores no hipotálamo, a liberação de hormônios antidiuréticos pelos neurônios nos núcleos supraóptico e paraventricular, a aldosterona e a renina produzidas pelos rins, bem como a liberação do peptídio natriurético atrial (PNA) pelos receptores atriais sensíveis ao estiramento, todos estão envolvidos integralmente na manutenção do volume plasmático e, portanto, do volume sanguíneo. Entretanto, um desses mecanismos que domina o controle do volume plasmático e sanguíneo mais que os outros é o efeito do volume sanguíneo sobre a pressão arterial e as consequências desta sobre a excreção urinária de sódio e água (Figura 22.39).184 Portanto, alterações na pressão arterial podem ter efeitos profundos na distribuição diferencial do fluxo sanguíneo entre os leitos teciduais, a troca de líquido (intestinos, rins) e o volume sanguíneo (natriurese e diurese por pressão). A interação desses mecanismos acaba por controlar a hemodinâmica, o volume sanguíneo, o de líquido extracelular e a excreção renal de sal e água (Figura 22.39).

Figura 22.39 Resposta neuro-humoral a uma diminuição no volume sanguíneo.

Entrada aferente A entrada aferente para o SNC é recebida a partir de sensores periféricos que respondem a alterações agudas na pressão e volume sanguíneos, bem como ao metabolismo tecidual (oxigenação). Esses sensores periféricos constituem a primeira etapa em um arco reflexo cujos órgãos efetores são o coração e a vasculatura. Em geral, o arco reflexo opera como um sistema de retroalimentação negativa destinado a manter uma pressão arterial variável em um valor fixo, ou ponto de ajuste.174 Os barorreceptores arteriais são receptores de estiramento (mecanorreceptores) localizados no seio carotídeo e no arco aórtico, que respondem a aumentos na pressão

arterial por meio de aumentos gradativos na velocidade de disparo de fibras sensoriais, existentes nos nervos glossofaríngeo e vago. Esses impulsos seguem para o núcleo do trato solitário dentro do SNC, são processados e iniciam uma resposta efetora que faz a pressão arterial voltar à sua variação normal (Figura 22.40). Essa resposta é conseguida por ativação parassimpática, que diminui a frequência cardíaca, e inibição da saída vasoconstritora simpática para arteríolas e veias. Os barorreceptores tornam-se inoperantes em uma pressão arterial abaixo de 60 mmHg, mas a frequência de impulsos nervosos aumenta progressivamente à medida que a pressão sobe acima de 60 mmHg, atingindo um máximo em aproximadamente 180 mmHg.174 A maioria dos barorreceptores tem um ponto de ajuste de aproximadamente 100 mmHg. No entanto, se o valor da pressão arterial mudar para um novo e permanecer estática, os barorreceptores podem ‘reajustar-se’ para esse novo ponto em 24 a 48 h, porque eles só são efetivos no controle a curto prazo da pressão arterial. A maioria dos anestésicos, se não todos, interferem na capacidade de resposta dos barorreceptores. Os anestésicos inalatórios em particular deprimem a responsividade barorreceptora normal e diminuem a saída do SNC. A magnitude da depressão do barorreceptor depende da profundidade da anestesia e das condições físicas do paciente. Os mecanorreceptores cardíacos estão localizados nos átrios e ventrículos esquerdos, e ajudam a minimizar alterações na pressão arterial sistêmica em resposta a alterações no volume sanguíneo.184,185 Esses receptores cardíacos de estiramento diferem dos barorreceptores porque respondem a alterações relativamente pequenas no estiramento ou na pressão, como o fazem os receptores de pressão dentro da circulação pulmonar. Os átrios contêm dois tipos de receptores localizados nas junções venoatriais.174 Os receptores atriais A reagem primariamente a alterações na frequência cardíaca, enquanto os receptores B respondem a alterações a curto prazo no volume atrial. Um aumento no volume atrial ativa tanto os mecanorreceptores A como os B, enviando impulsos para a medula via aferentes vagais. Dependendo da frequência cardíaca que prevalecer e da pressão arterial, a frequência cardíaca pode aumentar (reflexo Bainbridge) ou diminuir (barorreflexo e ativação das fibras C depressoras atriais). A distensão atrial também diminui a saída simpática para arteríolas aferentes renais, resultando em vasodilatação, enquanto o hipotálamo recebe entrada neural, que diminui a liberação de vasopressina (hormônio antidiurético), que age aumentando o fluxo urinário.174 Uma perda rápida de água livre na urina ajuda o volume sanguíneo a retornar aos valores normais. Além dessas respostas neurais, o PNA e o peptídio natriurético cerebral (PNC) são liberados na corrente sanguínea.175 O peptído natriurético atrial e o fator natriurético atrial (FNA) são produzidos nos cardiomiócitos atriais em resposta à distensão atrial e a aumentos na excreção de sódio pelos rins com um aumento acompanhante na perda de água. Similarmente, o PNC, produzido por células musculares ventriculares, depende de aumentos nas pressões de

enchimento ventricular e estiramento miocárdico e seu nível aumenta durante disfunção miocárdica.175

Figura 22.40 Fatores reguladores nervosos, humorais e locais (teciduais) mantêm a pressão e o fluxo sanguíneos dentro de limites fisiológicos. Os mecanorreceptores e quimiorreceptores captam alterações na tensão da parede (estiramento), no pH e nos gases sanguíneos [pressão parcial de oxigênio arterial (PaO2) e pressão parcial de dióxido de

carbono (PaCO2)], respectivamente. Os produtos metabólicos gerados nos tecidos periféricos e liberados na circulação modulam o tônus dos vasos sanguíneos e a distribuição do fluxo sanguíneo. Os impulsos nervosos gerados pelo coração, pela vasculatura e por sensores periféricos são transmitidos para o tronco cerebral, onde são integrados, alterando o tônus simpático e parassimpático. A liberação de norepinefrina (NE) pelos nervos simpáticos estimula o coração e constringe os vasos sanguíneos. A liberação de acetilcolina (ACh) pelos nervos parassimpáticos deprime o coração. +, estimulador; –, inibidor. Fonte: modificada da referência 73. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Mecanorreceptores ventriculares localizados no endocárdio ventricular descarregam em paralelo com alterações na pressão ventricular e exercem efeitos que ajudam a regular a pressão arterial sistêmica e o trabalho miocárdico. Contudo, a distensão ventricular também estimula reflexos depressores potentes que diminuem a frequência cardíaca e a resistência vascular periférica, resultando em bradicardia e hipotensão (reflexo de BezoldJarisch).186,187 A ativação de fibras C ventriculares não mielinizadas serve como a base para essa resposta reflexa. Os impulsos iniciados pela distensão ventricular ou pela injeção de certas substâncias químicas (p. ex., capsaicina ou serotonina) nas artérias coronárias podem desencadear o reflexo de Bezold-Jarisch, também denominado quimiorreflexo coronariano.187 A artéria carótida e o arco aórtico contêm quimiorreceptores sensoriais especializados, denominados corpos carotídeos e aórticos (Figura 22.40),174 que recebem o fluxo sanguíneo mais alto por grama de peso de tecido de qualquer órgão no corpo. Esses quimiorreceptores são sensíveis a alterações na tensão de oxigênio e de dióxido de carbono, na concentração do íon hidrogênio (pH) e na temperatura. Os quimiorreceptores dos corpos carotídeo e aórtico ajudam a regular a função respiratória em resposta a quedas no pH e na pressão parcial de oxigênio arterial e a aumentos na pressão parcial de dióxido de carbono arterial. A atividade aferente do corpo carotídeo é levada pelo nervo glossofaríngeo e a do corpo aórtico pelo nervo vago. Esses sensores são mais sensíveis a alterações na concentração do íon de hidrogênio e respondem proporcionalmente à magnitude da alteração de seu ponto de ajuste. O ponto de ajuste para ativação é um pH abaixo de 7,4. O ponto de ajuste aproximado para o dióxido de carbono é de 40 mmHg e para o oxigênio é de 80 mmHg. Aumentos na atividade aferente dos quimiorreceptores aumentam a ventilação minuto, restaurando o pH sanguíneo, o dióxido de carbono e/ou o oxigênio arteriais ao normal. Hipoxia, hipercarbia e acidose não respiratória podem causar bradicardia, vasodilatação coronariana e um aumento na resistência arteriolar sistêmica. Esse efeito é mais pronunciado se o aumento normal na ventilação for prevenido, por exemplo, durante anestesia. Quimiorreceptores localizados no epicárdio ventricular respondem à hipoxia ou à isquemia iniciando o quimiorreflexo coronariano (reflexo de Bezold-Jarisch), produzindo

bradicardia e hipotensão.187 Saída eferente Quando impulsos aferentes vindos dos sensores periféricos chegam ao cérebro, são integrados para produzir uma resposta neural e/ou humoral. O núcleo do trato solitário (NTS) na medula serve como estação de relé para os impulsos aferentes vindos dos sensores periféricos (Figura 22.41A,B). Os neurônios que se originam no NTS enviam informação para o núcleo vagal e várias regiões conhecidas coletivamente como centro vasomotor. Os núcleos vagais enviam fibras nervosas diretamente para o coração. Corpos nervosos celulares para o sistema nervoso simpático estão localizados na medula espinal toracolombar e ligados ao NTS por axônios que seguem no trato bulboespinal (Figura 22.41A). O trato bulboespinal contém axônios excitatórios e inibitórios que causam aumentos ou diminuições no débito simpático.175 Os centros no hipotálamo ligam as respostas somáticas e autônomas necessárias para os animais se adaptarem ao seu ambiente. Os centros iniciam a constrição adrenérgica dos vasos de resistência e capacitância e a dilatação colinérgica dos vasos que suprem a musculatura esquelética e a cardíaca durante a resposta de ataque ou fuga. Os centros hipotalâmicos modulam a resposta cardiovascular (vasoatividade cutânea) a alterações na temperatura corporal durante tremores, sudorese ou respiração ofegante. O hipotálamo também modula a resposta cardiovascular ao exercício e pode estar envolvido na regulação da pressão arterial. O sistema nervoso autônomo, que é a ligação eferente entre o SNC e o sistema cardiovascular, faz o controle rápido de pressão e fluxo sanguíneos.174 Impulsos eferentes são transmitidos tanto por nervos simpáticos como parassimpáticos. Receptores adrenérgicos e colinérgicos nos órgãos-alvo iniciam as alterações intracelulares que produzem uma resposta celular aos sinais que chegam do SNC. Sistema nervoso simpático As vias simpáticas originam-se nas colunas intermediolaterais ou nos segmentos toracolombares da medula espinal. Tanto impulsos inibitórios como excitatórios chegam aos corpos das células nervosas simpáticas pré-ganglionares via axônios que seguem pelo trato bulboespinal (Figura 22.42). As vias inibitórias descendentes são serotoninérgicas e as excitatórias descendentes são adrenérgicas. O equilíbrio entre esses dois tipos de impulso determina o nível que prevalece de tônus simpático para a periferia. Os nervos simpáticos pré-ganglionares enviam axônios via raízes ventrais da medula espinal para gânglios paravertebrais localizados bem ao lado da coluna vertebral (Figura 22.41A). Muitas das fibras pré-ganglionares ascendem pelas cadeias paravertebrais e fazem sinapse com neurônios pós-ganglionares nos gânglios cervicais craniais, médios e caudais

(estrelados) (Figura 22.41A), onde fazem sinapse com neurônios simpáticos pósganglionares, que enviam suas fibras para o coração, os vasos sanguíneos e as vísceras. Fibras nervosas cardíacas simpáticas pós-ganglionares inervam o nó sinoatrial, o nó atrioventricular, os átrios e o miocárdio (Figura 22.41A). As fibras nervosas simpáticas pós-ganglionares liberam o neurotransmissor norepinefrina, que se liga a adrenorreceptores nas membranas das células cardíacas. Fibras nervosas simpáticas pós-ganglionares também deixam os gânglios paravertebrais via nervos espinais para inervar vasos de todo o corpo. Normalmente, o tônus simpático mantém um estado parcial de contração no músculo liso vascular, o que dá a resistência necessária para manter a pressão arterial sistêmica adequada e ajuda no controle da distribuição fracional do débito cardíaco para os tecidos corporais. A extensão da inervação para os vasos de resistência (arteríolas) varia com o tipo de tecido. Os rins, o baço, o trato gastrintestinal e a pele são extensamente inervados pelo sistema nervoso simpático. A redistribuição do fluxo sanguíneo para fora desses tecidos durante momentos de crise preserva o fluxo sanguíneo para o cérebro, o coração e a musculatura esquelética. Neurotransmissão simpática A maioria das fibras simpáticas pós-ganglionares é adrenérgica, liberando norepinefrina em suas junções neuroefetoras.177 O aminoácido tirosina é o substrato usado por esses nervos para a produção de norepinefrina. A tirosina é transportada ativamente através da membrana da célula nervosa para o axoplasma neural, onde é convertida por sua hidroxilase e descarboxilação em dopamina, que é armazenada nas vesículas dentro do nervo. Dentro dessas vesículas, tem lugar uma etapa final de hidroxilação para produzir o neurotransmissor norepinefrina (Figura 22.43).

Figura 22.41 A. Distribuição dos nervos simpáticos e parassimpáticos para o sistema cardiovascular. O núcleo do trato solitário é o principal ponto de recepção no tronco cerebral do impulso aferente que chega dos sensores periféricos e centros mais altos no cérebro. Interneurônios conectam o núcleo do trato solitário ao centro vasomotor e fibras do trato bulboespinal que descem pela medula espinal e fazem sinapse com nervos simpáticos préganglionares com nervos que vão para o coração e os vasos sanguíneos. Interneurônios também conectam o núcleo do trato solitário ao núcleo vagal no tronco cerebral, onde neurônios fazem sinapse com fibras nervosas parassimpáticas pré-ganglionares levadas pelo nervo vago para o coração. B. Mecanorreceptores no seio carotídeo e no arco aórtico enviam impulsos via o nervo do seio carotídeo, um ramo do nervo glossofaríngeo, e o tronco simpático, respectivamente, para o núcleo do trato solitário no tronco cerebral (centros cardiovasculares). Alterações na atividade desses mecanorreceptores causadas na pressão arterial resultam em ajustes no efluxo simpático e parassimpático para o coração e os vasos de resistência (arteriais) e capacitância (veias). ACh, acetilcolina; AV, nó atrioventricular; E, vago esquerdo; NE, norepinefrina; D, vago direito; SA, nó sinoatrial. Fonte: modificada da referência 73. Reproduzida, com autorização, de Springer. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Potenciais de ação nervosos aumentam o cálcio intracelular, fazendo com que as vesículas se fundam com a membrana da célula nervosa e liberem norepinefrina na fenda sináptica, onde ele se liga a uma variedade de adrenorreceptores (Tabela 22.6). Há receptores pré-sinápticos na membrana da célula nervosa e receptores pós-sinápticos no órgão efetor. A ligação do receptor pós-sináptico de norepinefrina dispara uma cascata de eventos intracelulares que, por fim, produzem uma ação celular. A meia-vida efetiva de norepinefrina após a liberação na fenda sináptica é muito curta. A norepinefrina é degradada localmente na junção neuroefetora pelas enzimas monoaminaoxidase (MAO) e catecol-O-metiltransferase (COMT) (Figura 22.43). A maior parte da norepinefrina liberada na fenda sináptica sofre recaptação nos terminais nervosos adrenérgicos, onde entra novamente nas vesículas de armazenamento. Esse sistema de captação neuronal de amina é designado captação 1, tem alta afinidade pela norepinefrina, menos afinidade pela epinefrina e pouca afinidade pelo agonista sintético adrenérgico β isoproterenol. A norepinefrina difunde-se rapidamente para fora da fenda sináptica, onde é recaptada em locais extraneuronais ou levada para o sangue venoso e metabolizada nos pulmões. A via de recaptação extraneuronal foi designada captação 2, tem baixa afinidade pela norepinefrina, alta afinidade pela epinefrina e muito alta afinidade pelo isoproterenol. A recaptação 2 tem maior significado fisiológico na eliminação de catecolaminas circulantes, primariamente a epinefrina, liberada pela glândula adrenal, e tem pouco significado fisiológico pela norepinefrina liberada nos terminais nervosos simpáticos pós-ganglionares.

Figura 22.42 Sistema nervoso autônomo.

Adrenorreceptores A sequência de eventos intracelulares iniciados pela ligação do receptor de norepinefrina é determinada pelo tipo de adrenorreceptor. A classificação dos adrenorreceptores continua a

evoluir com base em critérios farmacológicos e moleculares (Tabela 22.6).83–87 Todos os adrenorreceptores têm uma homologia similar de estrutura e produzem eventos intracelulares pela ligação às proteínas da membrana reguladoras do nucleotídio guanina (proteínas G).177 A estrutura do receptor acoplado à proteína G consiste em uma única subunidade proteica com sete segmentos hidrofóbicos transmembrana, três sequências extracelulares hidrofílicas e três alças intracitoplasmáticas hidrofílicas. Essas proteínas reguladoras associadas à membrana servem para converter o sinal que chega à membrana celular em uma resposta específica do sistema enzimático ou atividade do canal iônico que produz uma resposta celular. A transmissão autonômica no sistema cardiovascular é iniciada pela estimulação de três proteínas G diferentes: a Gs estimula a adenilatociclase, causando aumento no cAMP intracelular; a Gi inibe a adenilatociclase, diminuindo a concentração intracelular de cAMP (Tabela 22.6); e a Gp ativa a fosfolipase C, que hidrolisa o fosfoinositol em trifosfato de inositol (IP3) e diacilglicerol (DAG). O IP3 causa a liberação de íons cálcio (Ca2+) do retículo sarcoplasmático e o DAG ativa a proteinoquinase C, que fosforila proteínas contráteis no miocárdio e no músculo liso vascular.

Figura 22.43 Processos neuroquímicos em neurônios adrenérgicos e colinérgicos. Tabela 22.6 Superfamília de genes e produtos gênicos acoplados à proteína G no tecido cardíaco. Tipo e subtipo de receptor

Localização

Proteína G

Resposta biológica

Adrenérgico Estimulação da AC, respostas Miocárdio

inotrópicas e cronotrópicas

β1

Vascular coronariana

Gs Gs

positivas Estimulação da AC, vasodilatação (?)

Estimulação da AC, respostas Miocárdio β2 Vasculatura coronariana (?)

inotrópicas e cronotrópicas Gs

positivas

Gs Estimulação da AC, vasodilatação (?) Estimulação da hidrólise do

Miocárdio α1 Vasculatura coronariana

PI, resposta inotrópica Gp

positiva (?)

Gp Estimulação do PI, vasoconstrição

Muscarínico Encurtamento do potencial de ação atrial, alentecimento da M2

Miocárdio

Gi

frequência sinusal e da condução AV; inibição da AC, respostas inotrópica e cronotrópica negativas

M3

Músculo liso coronariano

Gp (?)

Estimulação do PI, vasoconstrição Produção do FRDE,

M3

Endotélio coronariano

Gp (?)

estimulação da GC, vasodilatação

AC, adenilatociclase; FRDE, fator relaxante derivado do endotélio; GC, guanilatociclase; PI, fosfatidilinositol. Modificada de Opie. 106 p. 164. Fonte: modificada de Opie LH. The Heart: Phisyology and Metabolism, 3rd edn Philadelphia: Lippincott-Raven, 1998; 91–

97. Os receptores adrenérgicos β são classificados farmacologicamente em três tipos, β1, β2 e β3, com base em suas afinidades relativas por vários agonistas (Tabela 22.6).177 O significado fisiológico do receptor β3 não está claro, mas parece estar envolvido na regulação do metabolismo e da energia. Os adrenorreceptores dos subtipos β1 e β2, quando ativados pela norepinefrina, pela epinefrina ou por outros agonistas adrenérgicos β, estimulam a formação da enzima adenilatociclase por meio da proteína Gs, causando um aumento no cAMP intracelular. Os adrenorreceptores β também ativam os canais de Ca2+ do tipo L no tecido miocárdico e vascular, aumentando, assim, a concentração intracelular de cálcio. No coração, são encontrados adrenorreceptores β1 e β2, responsáveis por aumentos na frequência e na contratilidade cardíacas durante estimulação simpática (Tabela 22.7). A estimulação do adrenorreceptor β aumenta a inclinação da despolarização diastólica da fase 4 nos tecidos que atuam como marca-passos e nas células automáticas subsidiárias. Aumentos no cAMP e no Ca2+ aumentam a contratilidade cardíaca e facilitam o relaxamento cardíaco. Embora tanto os adrenorreceptores β1 como β2 estejam presentes no coração, os β1 predominam nos estados sadios, em especial no miocárdio ventricular. Os adrenorreceptores β2 relaxam o músculo liso nos tecidos vasculares, brônquicos, gastrintestinais e geniturinários. Na vasculatura, eles não são inervados e, portanto, produzem vasodilatação em resposta a catecolaminas circulantes ou fármacos. Sua localização em leitos vasculares específicos sugere um papel na distribuição do fluxo sanguíneo, em particular durante exercício. Três subtipos de adrenorreceptores α1 foram classificados de acordo com sua afinidade por agonistas adrenérgicos.177 Os subtipos de receptores são designados α1A, α1B e α1C, mas sua distribuição não é universal entre as espécies ou em leitos teciduais específicos. Todos os subtipos de adrenorreceptores α1 identificados atualmente exercem seu efeito intracelular por ativação da enzima fosfolipase C via a proteína Gp. A fosfolipase C hidrolisa o fosfoinositol e libera Ca2+ dos estoques citoplasmáticos, causando a resposta contrátil vista nas células miocárdicas ou do músculo liso vascular (Tabela 22.6). Tabela 22.7 Farmacologia do sistema nervoso autônomo. Simpático Órgão Coração

Tipo principal de receptor

Parassimpático Resposta

Tipo principal de receptor

Resposta

1. Nó SA

β1

↑ FC

M2

↓ FC

2. Átrios

β1

↑ condutividade

M2

↑ condutividade

3. Nó AV

β1

↑ condutividade

M2

4. Músculo atrioventricular

↓ velocidade de condução (bloqueio AV)

↑ contratilidade β1

↑ condutividade

M2

Nenhum efeito

↑ automaticidade

Vasos sanguíneos: Arteríolas 1. Músculo cutâneo

β2

Vasodilatação

M3

Nenhum efeito

2. Pele e mucosas

α1

Vasoconstrição

M3

Nenhum efeito

α1

Vasoconstrição

β2

Vasodilatação

M3

Nenhum efeito

β2

Relaxamento

M3

Contração

1. Músculo liso

α, β2

↓ motilidade

M3

↑ motilidade

2. Esfíncteres

α1

Contração

M2, M3

Relaxamento

3. Glândulas



Nenhum efeito

M3

↑ secreção

Detrusor

β2

Relaxamento

M3

Contração

Trígono e esfíncter

α1

Contração

M2, M3

Relaxamento

Veias Músculo liso brônquico GI

Bexiga

Olho

Músculo radial

α1

Contração (midríase





M3

Contração (miose)

ativa) Músculo circular





Contração M3

Músculo ciliar

(acomodação para a visão próxima)

Órgãos sexuais masculinos

α

Glândulas salivares

α, β

Rim

β1

Fígado

β2

Ejaculação Secreção viscosa espessa Secreção de renina Glicogenólise Gliconeogênese

M

M3

Ereção Secreção aquosa profusa



Nenhum efeito



Nenhum efeito

Estudos farmacológicos identificaram três subtipos de adrenorreceptores α2 –, α2A, α2B e α2C –, embora a distribuição tecidual deles não esteja esclarecida.177 Os adrenorreceptores α2 inibem a adenilatociclase por meio da proteína Gi. A inibição da adenilatociclase atenua a produção de cAMP nas células-alvo. Esse mecanismo é importante nas plaquetas e nos túbulos renais, mas no músculo liso vascular um mecanismo alternativo de transdução do sinal é responsável pela resposta vasoconstritora. Os adrenorreceptores α2 no músculo liso vascular estão localizados pré-sinapticamente e extrassinapticamente. A estimulação de adrenorreceptores α2 extrassinápticos por agonistas adrenérgicos α (norepinefrina, fenilefrina) ativa um canal de cálcio operado por receptor que aumenta a concentração intracelular desse elemento, resultando na contração do músculo liso vascular, que complementa o efeito contrátil de adrenorreceptores α2 ativados pela estimulação de nervos simpáticos. Por causa da sua localização extrassináptica, os adrenorreceptores α2 respondem às catecolaminas circulantes, como a epinefrina e a norepinefrina, e ajudam a manter a vasoconstrição simpática generalizada em resposta ao débito de catecolamina da glândula adrenal. Essa última resposta é importante na reação de luta ou fuga que ocorre em situações de crise, como traumatismo ou hemorragia. Os adrenorreceptores α1 e α2 coexistem na vasculatura, conforme descrito antes.177 Há uma resposta maior à estimulação α2 no lado venoso da circulação, em comparação com o

lado arterial. Portanto, a vasoconstrição mediada por adrenorreceptor α2 pode ser mais importante na mobilização do volume sanguíneo de veias, levando a um aumento no débito cardíaco durante situações de estresse, como exercício ou hemorragia.117 A administração de um agonista do receptor adrenérgico α2 (dexmedetomidina) produz vasoconstrição generalizada tanto de vasos arteriais como venosos, resultando em aumentos na pressão arterial, na resistência sistêmica, no retorno venoso e na pressão atrial direita. No entanto, o débito cardíaco pode não aumentar em decorrência de decréscimos na frequência cardíaca e aumentos na pós-carga (ver Pós-carga).188 Os adrenorreceptores α1 e α2 podem causar respostas complementares ou antagonistas, dependendo de sua localização. Por exemplo, a norepinefrina estimula os adrenorreceptores α1 localizados na membrana celular pós-sináptica, causando contração do músculo liso vascular e vasoconstrição. A norepinefrina também se liga a adrenorreceptores α2 présinápticos, produzindo um efeito de retroalimentação (feedback) negativa que diminui a liberação de norepinefrina do terminal nervoso. Assim, os adrenorreceptores α2 ajudam a modular a respiração vasoconstritora iniciada pela estimulação de um receptor póssináptico. Os adrenorreceptores α2 ajudam a assegurar que ocorra apenas uma resposta vasoconstritora a curto prazo após a estimulação nervosa simpática. A estimulação de fibras pós-ganglionares simpáticas que suprem o músculo liso vascular causa não apenas a liberação do neurotransmissor norepinefrina, como também a do cotransmissor neuropeptídio Y,177,189 presente nas vesículas contidas nos terminais nervosos simpáticos pós-ganglionares, que é sinérgica com os efeitos da norepinefrina sobre a vasculatura periférica e produz vasoconstrição, além de também ser encontrado na medula adrenal. Os níveis circulantes de neuropeptídio Y inibem a liberação de renina e estimulam a do PNA. O papel do neuropeptídio Y na regulação cardiovascular não foi caracterizado completamente, porém pode ser um mediador importante no controle central da pressão arterial. Fibras nervosas simpáticas colinérgicas originam-se no córtex cerebral e enviam fibras descendentes para a medula espinal. Essas fibras nervosas fazem sinapse com gânglios simpáticos e enviam fibras pós-ganglionares para vasos pré-capilares na musculatura esquelética.83 As fibras nervosas simpáticas pós-ganglionares são ativadas apenas durante momentos de tônus simpático alto (medo, dor ou exercício) e liberam acetilcolina, que provoca vasodilatação na musculatura esquelética. Neurotransmissão parassimpática O sistema nervoso parassimpático (SNP) origina-se de dois locais no SNC: a medula espinal cervical e a sacral (Figura 22.42). Fibras nervosas simpáticas pré-ganglionares localizadas no SNC fazem sinapse com neurônios parassimpáticos pós-ganglionares

relativamente curtos localizados nos gânglios em órgãos-alvo. A parte cranial do sistema nervoso parassimpático origina-se no bulbo. Os axônios seguem via nervo vago para fazer sinapse com nervos parassimpáticos pós-ganglionares que terminam no coração e nos vasos sanguíneos.174,177 A acetilcolina é o neurotransmissor liberado nos gânglios autonômicos e de nervos parassimpáticos pós-ganglionares (Figura 22.43). Os nervos colinérgicos transportam ativamente colina do líquido extracelular para o axoplasma neural, onde ela age estimulada por sua enzima acetiltransferase, combinada com a acetil coenzima A, e é convertida em acetilcolina que, como a norepinefrina, é armazenada em vesículas dentro do nervo (Figura 22.43). Potenciais de ação do nervo colinérgico aumentam o cálcio intracelular, causando a fusão da vesícula com a membrana da célula nervosa e a liberação de acetilcolina na fenda sináptica. A acetilcolina liga-se a receptores muscarínicos específicos (M1 a M5), mediando uma resposta celular que varia de acordo com o tecido inervado e o tipo de receptor colinérgico envolvido (Tabela 22.7). Os receptores M4 e M5 expressam-se preferencialmente no SNC.177 As ações da acetilcolina terminam rapidamente por sua hidrólise em colina e ácido acético pela enzima acetilcolinesterase. A acetilcolina que se difunde para fora da fenda sináptica e para o líquido extracelular ou o plasma é hidrolisada pela butilcolinesterase (pseudocolinesterase) plasmática. A colina produzida a partir desse metabolismo é captada rapidamente pela célula nervosa e usada na nova síntese de acetilcolina. Os receptores colinérgicos são classificados como nicotínicos ou muscarínicos (Tabela 22.6). Os primeiros estão localizados nos gânglios autonômicos, na medula adrenal e na junção neuromuscular do músculo esquelético. Os receptores muscarínicos estão localizados nos terminais nervosos parassimpáticos pós-ganglionares.190 Os receptores nicotínicos são proteínas pentaméricas da membrana, que formam um canal iônico não seletivo na membrana celular. Os receptores nicotínicos pós-sinápticos, localizados nos gânglios autonômicos ou na junção neuromuscular, quando estimulados pela acetilcolina, abrem seu canal iônico, permitindo o fluxo de cátions para a célula nervosa ou muscular, o que resulta em despolarização e, por fim, transmissão de um impulso elétrico pela célula nervosa ou contração músculos. Os receptores nicotínicos são subclassificados em receptores NG, localizados nos gânglios autonômicos, e NS, localizados na junção neuromuscular e dentro do SNC.177 Os receptores muscarínicos estão localizados nos órgãos efetores autonômicos do sistema nervoso parassimpático, como, por exemplo, o coração, o músculo liso e as glândulas exócrinas (Tabela 22.7).177 Eles estão acoplados à proteína G e exibem mais homologia com os receptores adrenérgicos ou dopaminérgicos que os receptores colinérgicos nicotínicos.

O nervo vago inerva o nó sinoatrial, o miocárdio atrial, o nó atrioventricular e, em extensão muito menor, o miocárdio ventricular (Figura 22.41B). A estimulação de receptores M2 pela acetilcolina ativa diversas proteínas G diferentes da membrana, resultando em inibição da adenilato ciclase, ativação dos canais de potássio e da fosfolipase C, que hidrolisa o fosfoinositol. Esses efeitos causam uma diminuição na inclinação da despolarização da fase 4 diastólica no marca-passo e em tecidos automáticos intermediários, bem como hiperpolarização das membranas celulares cardíacas, mediante a ativação dos canais de potássio da membrana. A frequência cardíaca diminui da mesma forma que a frequência de condução de impulsos através do nó atrioventricular e a contratilidade cardíaca. Altos níveis de tônus parassimpático podem ocasionar bloqueio atrioventricular (de primeiro, segundo e terceiro graus) e assistolia cardíaca temporária. O nervo vago direito envia a maioria de suas fibras para o nó sinoatrial e a estimulação é mais apta a provocar bradicardia e parada sinusais, enquanto a estimulação do nervo vago esquerdo bloqueia a condução no nó atrioventricular. A estimulação do sistema nervoso parassimpático tem efeitos mínimos sobre a maioria dos vasos sanguíneos periféricos (Tabela 22.7). No entanto, a acetilcolina administrada por via sistêmica liga-se a receptores M2 nos vasos, que medeiam um relaxamento dos vasos dependentes do endotélio.191 A divisão sacral do sistema nervoso parassimpático tem corpos celulares nervosos préganglionares localizados na coluna intermediolateral da medula espinal.174,177 Os nervos parassimpáticos nessa região congregam-se para formar os nervos pélvicos que inervam os intestinos, o cólon, o reto, a bexiga e a genitália (Figura 22.42). A estimulação dos nervos parassimpáticos também causa aumento do fluxo sanguíneo para as glândulas salivares e o tecido genital erétil.

■ Mecanismos humorais O sistema nervoso autônomo funciona causando alterações agudas na função cardiovascular que podem ser de grande magnitude, mas, em geral, são breves. Alterações mais sustentadas na função cardiopulmonar são causadas por mecanismos humorais (Boxe 22.6). A medula adrenal é um gânglio simpático modificado, inervado por fibras simpáticas pré-ganglionares, e faz parte do sistema nervoso simpático. As células neuronais da medula adrenal, além de enviarem axônios para órgãos-alvo, liberam os neurotransmissores epinefrina e norepinefrina na circulação. Os fatores precipitantes da liberação de catecolaminas da medula adrenal incluem dor, traumatismo, hipovolemia, hipotensão, hipoxia, hipotermia, hipoglicemia, estresse de exercício e medo (luta ou fuga). As catecolaminas circulantes exercem uma variedade de efeitos, incluindo aumentos na taxa metabólica, glicogenólise hepática e no músculo esquelético, gliconeogênese no fígado e um aumento na disponibilidade de ácidos graxos livres, uma fonte importante de nutrientes

para o miocárdio. As catecolaminas circulantes também aumentam a frequência e a contratilidade cardíacas, dilatam os leitos vasculares nos músculos esqueléticos e cardíaco, além de causar constrição das arteríolas esplâncnicas e cutâneas, diminuindo o fluxo sanguíneo para órgãos menos essenciais durante uma resposta de luta ou fuga e redirecionando o sangue para o coração, os pulmões e o cérebro. As ações da medula adrenal são complementares aos efeitos da estimulação nervosa simpática. Juntos, o sistema nervoso autônomo e os mecanismos humorais fornecem respostas rápidas (sistema nervoso) e mantidas (humorais) a situações estressantes.174 O rim é o principal local de ativação do sistema renina-angiotensina. 192,193 A renina é produzida nos rins durante depleção de sódio, hipotensão, diminuições no volume de líquido extracelular ou aumentos no débito simpático (Boxe 22.6). A secreção de renina na circulação sistêmica converte o angiotensinogênio circulante, produzido pelo fígado, em angiotensina I, a qual, por sua vez, é convertida em angiotensina II por uma enzima conversora presente no endotélio vascular pulmonar. A angiotensina II provoca constrição arteriolar, causando aumentos na pressão arterial, e estimula o córtex adrenal a liberar aldosterona, um hormônio que causa reabsorção renal de Na+ e água, aumentando efetivamente a sede e o volume de líquido extracelular (Figura 22.39). O hipotálamo está envolvido diretamente no controle neural central das respostas cardiovasculares, mas também desempenha um papel importante na regulação humoral da função cardiovascular. A arginina vasopressina [hormônio antidiurético (HAD)] é produzida no hipotálamo e transportada através de axônios nervosos para a hipófise posterior.194 Em circunstâncias normais, a hipófise libera vasopressina em resposta a aumentos no soluto plasmático, resultando em aumento na vasopressina circulante (Boxe 22.6). A vasopressina age sobre os ductos coletores renais, onde estimula a conservação de água, o que faz com que a osmolalidade (e o volume) plasmática(os) volte(m) ao normal. A vasopressina é um vasoconstritor, em especial nos vasos mesentéricos; portanto, a presença de vasopressina circulante tem influência na redistribuição do fluxo sanguíneo sistêmico (Figura 22.39). Também pode ocorrer liberação de vasopressina pela hipófise na ausência de alterações na osmolalidade plasmática. Exemplos de estímulos não osmóticos que causam liberação de vasopressina são dor, estresse, hipoxia, insuficiência cardíaca e depleção do volume vascular. Vários anestésicos estão associados a aumento dos níveis circulantes de arginina vasopressina, incluindo opioides (morfina e meperidina) e barbitúricos.75

■ Sistemas de controle local Autorregulação é a capacidade dos vasos sanguíneos de ajustar o fluxo sanguíneo de acordo com a necessidade metabólica e mantê-lo, apesar de alterações extremas na pressão

de perfusão tecidual (Figura 22.44).195,196 A maioria dos tecidos pode regular seu próprio fluxo sanguíneo durante alterações fisiológicas na pressão de perfusão. Existe tônus basal neurogênico em muitos vasos. O tônus basal não neurogênico (intrínseco) soma-se ao neurogênico e está presente em vasos da pele e da musculatura esquelética. Uma redução no tônus vasomotor nesses vasos, em geral, representa uma redução no componente neurogênico. Dilatação ativa é uma expressão que se aplica quando o tônus vascular diminui abaixo do nível basal não neurogênico e resulta de dois componentes principais, um mecanismo sensível à pressão denominado componente miogênico e um mecanismo metabólico influenciado pela tensão local de oxigênio.197 Ambos os mecanismos estão ligados à liberação de mediadores vasodilatadores locais. Esse fenômeno, também denominado hiperemia reativa, ocorre em arteríolas com menos de 25 µm de diâmetro.198 O mecanismo miogênico é responsável pela hiperemia reativa após períodos curtos (< 30 s) de isquemia. À medida que o fluxo retorna à arteríola previamente ocluída, a velocidade do fluxo sanguíneo aumenta, o que aumenta o estresse de cisalhamento da parede, causando a liberação de óxido nítrico do endotélio vascular.191 O componente metabólico da hiperemia reativa ocorre após períodos mais longos de oclusão (> 30 s). Decréscimos na tensão de oxigênio liberam uma prostaglandina vasodilatadora que mantém o fluxo sanguíneo até a tensão normal de oxigênio ser restabelecida. O dano endotelial em pequenas arteríolas elimina a resposta de hiperemia reativa junto, pois tanto o óxido nítrico como as prostaglandinas são produtos de cílios endoteliais vasculares. O estiramento do músculo liso vascular opõe-se à resposta vasodilatadora miogênica vista nos vasos maiores (efeito Bayliss: o aumento de pressão arterial estira o vaso sanguíneo, causando sua vasoconstrição).197 O mecanismo proposto para o efeito Bayliss é uma despolarização induzida pela pressão da célula endotelial, mediada por um canal de potássio que retifica o fluxo para dentro. Os efeitos de anestésicos sobre a hiperemia reativa e o efeito Bayliss ainda não foram esclarecidos. Conforme discutido antes, o fluxo sanguíneo capilar está ligado a múltiplos fatores, inclusive, mas não limitados a, pressão de perfusão, velocidade do fluxo sanguíneo, taxa metabólica tecidual, tensão de oxigênio e viscosidade do plasma (ver Hemorreologia).92,199– 201 Coletivamente, esses fatores determinam o número de capilares perfundidos (contendo eritrócitos).131,200 Em repouso, condições basais, apenas uma fração (cerca de um terço à metade) dos capilares em determinado tecido estão sendo perfundidos no momento em questão. Durante momentos de maior demanda de oxigênio (p. ex., exercício), mais vias capilares podem ser abertas para o fluxo de eritrócitos. Um capilar ficar aberto ou fechado depende do estado contrátil de uma região de músculo liso (provavelmente uma arteríola terminal) localizado próximo da entrada de um capilar. O número de esfíncteres précapilares abertos é aproximadamente proporcional à atividade metabólica tecidual e ao

hematócrito local. Conforme a atividade metabólica aumenta, a tensão local de oxigênio diminui até ocorrer um nível crítico de hipoxia tecidual, incluindo vasodilatação.92 Evidência atual também sugere que a viscosidade do sangue e do plasma tenha um papel fundamental na determinação do diâmetro, da geometria e da perfusão da microcirculação e da densidade capilar funcional (DCF).202,203 A DCF, definida como o número de capilares com passagem de eritrócitos por unidade de área de superfície, está diretamente ligada à sobrevivência. Como já foi dito, o aumento da viscosidade do sangue e do plasma aumenta a DCF, efeito atribuído à vasodilatação microvascular causada pela liberação de óxido nítrico, induzida pelo estresse de cisalhamento. Além disso, a geometria do vaso sanguíneo (i.e., seu formato e seu diâmetro) não é rigidamente fixa e pode modificar-se em resposta a alterações nos obstáculos vasculares (OV) ou pela contribuição da geometria vascular para a resistência ao fluxo. Conforme a viscosidade do sangue aumenta, os OV diminuem e a perfusão tecidual aumenta. Hemorragia e tratamento convencional com líquidos resultam em hemodiluição e diminuição na viscosidade sanguínea e plasmática, o que tem um impacto negativo na microcirculação e na DCF. A manutenção ou o aumento na viscosidade de líquidos para reanimação para manter a viscosidade plasmática poderiam melhorar a perfusão microvascular e a sobrevivência a longo prazo.

Figura 22.44 Autorregulação. A relação entre o fluxo sanguíneo e a pressão de perfusão nos leitos vasculares periféricos (excluindo-se o SNC) caracteriza-se pela variação de pressão em que o fluxo sanguíneo se altera muito pouco. A faixa autorreguladora normal na maioria dos leitos vasculares varia entre 60 e 180 mmHg. Alguns leitos vasculares (cérebro, intestinos e músculo esquelético) fecham-se quando a pressão de perfusão se aproxima de 15 a 30 mmHg (pressão crítica de fechamento). Fonte: modificada da referência 73.

Peptídios e outras substâncias são importantes na regulação do fluxo sanguíneo tecidual (Tabela 22.8). As ações de enzimas locais produzem cininas como a bradicinina a partir do substrato calicreína. As cininas têm efeitos vasodilatadores de curta duração, por causa da inativação rápida por peptidases no plasma. O metabolismo do ácido araquidônico produz uma variedade de prostaglandinas que tendem a ser compartimentalizadas e têm efeitos locais muito específicos. A hipoperfusão renal inicia a produção de PGI2, que age para restaurar o fluxo sanguíneo renal, o volume urinário e a excreção de sódio. A administração pré-anestésica de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) pode interferir na produção dessas importantes prostaglandinas, ao inibir a atividade da enzima ciclo-oxigenase. Há receptores locais específicos no endotélio vascular para uma variedade de agonistas (incluindo acetilcolina, bradicinina e histamina) que, quando ligados pelo agonista apropriado, induzem a formação e a liberação de óxido nítrico.191 As células endoteliais vasculares também produzem uma substância vasoconstritora potente, conhecida como endotelina, que age sobre os receptores dela nas células musculares lisas vasculares.204 A endotelina é liberada pelo endotélio em resposta ao aumento da pressão intraluminal, contribuindo para o efeito Bayliss (aumento no tônus miogênico do músculo liso), e é seletiva para certos leitos vasculares, incluindo vasos coronarianos, arteríolas aferentes renais e vasos de capacitância venosa, sendo tanto um inotrópico positivo como cronotrópico. A endotelina aumenta os níveis plasmáticos de outros mediadores humorais, como o fator natriurético atrial, a renina, a aldosterona e catecolaminas circulantes (Tabela 22.8). Tabela 22.8 Resumo dos fatores que afetam o calibre das arteríolas. Constrição

Dilatação

Aumento da descarga noradrenérgica

Diminuição da descarga noradrenérgica

Catecolaminas circulantes (exceto epinefrina no músculo

Epinefrina circulante no músculo esquelético e no fígado

esquelético e no fígado)

Peptídio natriurético atrial circulante

Angiotensina II circulante

Ativação de dilatadores colinérgicos no músculo esquelético

Arginina vassopressina circulante

Bradicinina

Serotonina liberada localmente

Histamina

Endotelina I

Substância P (reflexo axônico)

Neuropeptídio I

Óxido nítrico e fator relaxante derivado do endotélio

Inibidor da Na+-K+ ATPase circulante

Prostaciclina e prostaglandina E2 Aumento da tensão de dióxido de carbono

Queda da temperatura local

Queda do pH Lactato, íons potássio, adenosina etc. Aumento da temperatura local

Figura 22.45 Normalmente, o consumo de oxigênio (VO2) é limitado potencialmente por sua liberação (DO2 = DC × CaO2) e sua extração (EO = CaO2 – CVO2). Quedas no débito cardíaco (fluxo sanguíneo) para valores críticos (DO2Crít) geram situações em que o VO2 se torna dependente do fornecimento pela DO2. Diminuições na DO2 abaixo da DO2Crít levam ao acúmulo de oxigênio (DO2) (metabolismo anaeróbico) e à geração de ácido láctico, resultando em acidose metabólica. CaO2, conteúdo arterial de oxigênio; DC, débito cardíaco; CVO2, conteúdo venoso de oxigênio.

Liberação e captação de oxigênio A manutenção da oxigenação tecidual adequada depende da captação de oxigênio pelos pulmões e de sua liberação (DO2) para o metabolismo nos tecidos. A importância da DO2 adequada não pode ser superestimada, porque se sabe que o consumo reduzido de oxigênio (VO2) e o desenvolvimento de aumento do débito de oxigênio (O2D) estão ligados diretamente a morbidade e mortalidade maiores.205–207 Assim que a DO2 e a oxigenação tecidual caem abaixo de um limiar mínimo para as necessidades metabólicas oxidativas dos vários órgãos celulares, ocorre um equilíbrio entre o fornecimento e a demanda de oxigênio

(Figura 22.45). Uma DO2 inadequada aumenta o débito de oxigênio e promove o metabolismo anaeróbico. A gravidade do débito de oxigênio e o metabolismo anaeróbico podem ser quantificados por seus correlatos metabólicos: ácido láctico e excesso de bases negativas (déficit de base: DB). O acúmulo de lactato (La) e o DB podem ser usados clinicamente para quantificar com precisão o início e a gravidade do débito de oxigênio, a probabilidade de óbito e de reversão terapêutica.207,208 O consumo de oxigênio é determinado pelo maquinário metabólico dentro das células. Em resumo, os fatores que determinam o fornecimento de oxigênio para os tecidos são a concentração de Hb, a afinidade dela pelo oxigênio (P50), sua saturação com oxigênio (SaO2), a pressão parcial de oxigênio (PaO2) e o débito cardíaco (DC). O VO2 pode ser determinado pela equação de Fick, ou do consumo de oxigênio [VO2 = DC (CaO2 – CVO2)].209 A equação de Fick pode ser rearranjada para derivar a liberação de oxigênio (DO2 = CO × CaO2), a extração de oxigênio (EO = CaO2 – CVO2) e a taxa de extração de oxigênio (TEO = CaO2 × CVO2/CaO2), observando-se que todas elas contêm o termo CaO2 e, portanto, estão acopladas matematicamente. O conteúdo sanguíneo arterial de oxigênio (CaCO2) é calculado como (Hb × 1,35 × SaO2) + (PaO2 × 0,003). O sangue arterial (Hb =15 g/dℓ; Ht = 45%), por exemplo, contém aproximadamente 20 a 21 mℓ de oxigênio/dℓ de sangue quando a SaO2 = 100% e a PaO2 = 100 mmHg (ar ambiente). O conteúdo de oxigênio do sangue venoso (CVO2), em geral, é de 14 a 15 mℓ/dℓ, produzindo uma TEO de 0,2 a 0,3 (20 a 30%). Concentrações diminuídas de hemoglobina (parasitismo, hemorragia e hemodiluição) causam aumento da extração de oxigênio para manter a liberação necessária de oxigênio pelos tecidos do metabolismo. A concentração crítica de Hb, a DO2Crít, e a TEOCrít são de aproximadamente 4 g/dℓ, 5 a 7 mℓ/kg/min e 0,6 (60%), respectivamente, em cães sadios normais (Figura 22.45).210–212 Sabe-se que a maioria dos anestésicos diminui a extração de oxigênio e aumenta a DO2Crít de maneira dependente da dose, enquanto aumenta o lactato sanguíneo, efeito que foi explicado pelas alterações na distribuição do fluxo sanguíneo induzidas pelo anestésico (má distribuição) entre os sistemas orgânicos.213,214 Esses efeitos conhecidos enfatizam a necessidade de metodologias contínuas de monitoramento e técnicas e protocolos individualizados voltados para o objetivo.

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Introdução Princípios básicos do monitoramento do débito cardíaco História da medição do débito cardíaco Técnicas de determinação do débito cardíaco Princípio de Fick Termodiluição com cateter da artéria pulmonar Termodiluição transpulmonar e diluição com indicador por ultrassom Diluição de lítio Análise da forma da onda arterial Ecocardiografia e eco-Doppler Bioimpedância e biorreatância torácicas Capnografia padrão como indicador do débito cardíaco Referências bibliográficas

Introdução Débito cardíaco é o volume de sangue ejetado de cada ventrículo por minuto, em geral registrado em ℓ/min, e corresponde ao produto da frequência cardíaca pelo volume sistólico. Índice cardíaco é débito cardíaco com relação à área de superfície corporal, ou ao peso corporal, expresso em ℓ/min/m2 e ℓ/min/kg, respectivamente (Tabela 23.1). O débito cardíaco é determinado por cinco variáveis primárias: frequência cardíaca, ritmo, pré-carga, contratilidade e pós-carga. O débito cardíaco resume, em um único valor, a contribuição do sistema cardiovascular para a liberação global de oxigênio do coração para o corpo. Portanto, o monitoramento parece razoável na avaliação de insuficiência cardiovascular em qualquer paciente crítico

submetido à anestesia. Infelizmente, nenhum estudo definitivo mostrou que a determinação do débito cardíaco ou de suas alterações em resposta ao tratamento seja superior ao monitoramento hemodinâmico padrão em termos de prognóstico.2 De fato, não há evidência de prognósticos melhores em pacientes com doença aguda com o uso de qualquer dispositivo específico de monitoramento, não apenas monitores cardíacos.3 Além disso, o débito cardíaco não deve ser avaliado como única variável em um contexto clínico. Por exemplo, se a frequência metabólica estiver aumentada ou a distribuição do fluxo sanguíneo estiver anormal em pacientes com sepse, em geral seu débito cardíaco estará normal ou mesmo aumentado e podem, inclusive, vir a ter insuficiência circulatória.4 Tabela 23.1 Exemplos de índices típicos de débito cardíaco relatados em espécies veterinárias. Espécie

IVS (mℓ/kg/batimento)

FC (batimentos/min)

IC (mℓ/min/kg)

Gato

0,90 a 1

180

160 a 180

Bovino

0,7 a 0,8

60

35 a 50

Cão

1,6 a 1,9

120

190 a 230

Caprino

1,1 a 1,3

80

85 a 100

Equino

2,6 a 3

45

115 a 135

Camundongo

1,5 a 1,8

400

600 a 720

Coelho

0,4 a 0,6

250

100 a 150

Rato

1 a 1,2

300

300 a 360

Ovino

0,7 a 0,9

80

55 a 70

Suíno

1,2 a 1,4

100

120 a 140

IVS, índice do volume sistólico; FC, frequência cardíaca; IC, índice cardíaco. Isso levanta a seguinte questão: por que medir o débito cardíaco? Há evidência nítida de que a persistência de um estado de débito cardíaco baixo tem efeitos deletérios significativos sobre a perfusão e a oxigenação dos órgãos.5 Em pacientes humanos criticamente enfermos, um débito cardíaco baixo com ausência mantida de resposta ao

tratamento tem sido associado a alto índice de mortalidade.6 Portanto, pelo menos em alguns pacientes específicos, a medida do débito cardíaco pode representar um auxílio suplementar para avaliar a adequação do tratamento e orientar intervenções terapêuticas para o alvo (i.e., terapia hídrica direcionada).2 Em termos mais específicos, em um paciente hipotenso, se for difícil interpretar os sinais clínicos, ou a causa da hipotensão não for óbvia e provavelmente multifatorial (incluindo os efeitos medicamentosos do anestésico), deve-se considerar o monitoramento do débito cardíaco. Por isso, o monitoramento do débito cardíaco é um recurso útil para o controle do paciente durante a anestesia. A medida do débito cardíaco é vantajosa no monitoramento de alterações hemodinâmicas relacionadas com o anestésico e na avaliação da efetividade da reanimação de pacientes com traumatismo e em estado crítico.7 Por exemplo, o monitoramento da extensão das alterações relativas no débito cardíaco após reanimação hídrica em pacientes hipovolêmicos permite que o anestesista avalie a eficiência da intervenção e separe os que respondem à administração de líquido dos que não o fazem.8–10 Em cenários diferentes, o acompanhamento das tendências no débito cardíaco, mais que a pressão arterial, como durante uma infusão de dobutamina ou nitroprussiato, traz informação mais significativa sobre a resposta hemodinâmica ao tratamento.11 Um aspecto importante é que a determinação de valores absolutos do débito cardíaco, em geral, tem menos importância que o acompanhamento das tendências. A avaliação de alterações relativas no débito cardíaco após o desafio do sistema cardiovascular, com carga de líquidos ou medicações, é conhecida como ‘monitoramento do débito cardíaco funcional’.12 Uma vez que se tenha determinado que a avaliação do débito cardíaco pode ser indicada para uma determinada circunstância, também é importante que a sua medição seja suficientemente precisa para identificar alterações clinicamente relevantes em resposta ao tratamento. Em geral, admite-se que um aumento agudo de 20 a 25% no débito cardíaco tenha relevância clínica para identificar uma resposta positiva, porque tal alteração corresponde ao limite de precisão das técnicas atuais de medição.13 A técnica ideal para monitorar o débito cardíaco fornece medidas acuradas, que podem ser interpretadas e reproduzidas, é fácil de usar e está disponível. O dispositivo ideal também deve ser seguro para o paciente, ser independente do operador, dar uma resposta em pouco tempo e ser efetivo com relação ao custo. Por fim, os resultados obtidos devem ter relevância clínica no sentido de orientar o tratamento. Para ser útil no tratamento do paciente hemodinamicamente instável, a técnica deve permitir a determinação rápida e repetitiva do débito cardíaco. No momento, não há um dispositivo que satisfaça todos estes critérios.

Princípios básicos do monitoramento do débito cardíaco Os anestesiologistas veterinários agora dispõem de um número crescente de técnicas e dispositivos de medição para avaliar o débito cardíaco, cada um com suas próprias vantagens e limitações.15 Da mesma maneira que na seleção de sistemas de monitoramento de qualquer outro parâmetro fisiológico, os princípios gerais a seguir podem servir como orientação para que se decida qual a técnica de monitoramento do débito cardíaco é mais adequada para o caso. Nenhuma técnica de monitoramento hemodinâmico pode melhorar o resultado em si: a estimativa do débito cardíaco não é exceção. Três condições fundamentais precisam ser satisfeitas para o monitoramento hemodinâmico, no intuito de afetar o resultado de maneira positiva: (1) os resultados obtidos têm de ter relevância clínica para o paciente, (2) os dados obtidos precisam ser precisos o bastante para que se institua uma intervenção terapêutica e (3) a última tem que melhorar o resultado. Se a informação obtida não for precisa, ou for interpretada ou aplicada incorretamente, é improvável que a intervenção resultante melhore a condição do paciente, podendo até ser prejudicial a ele.3,13 A escolha do sistema de monitoramento depende do paciente (de sua espécie, seu tamanho) e, em geral, da disponibilidade de dispositivos e habilidade no hospital ou na instituição em questão. A habilidade e a familiaridade por parte do operador representam fatores críticos para a obtenção de resultados confiáveis com o uso de múltiplos dispositivos de monitoramento cardíaco. Um exemplo típico de dependência elevada do operador é a ecocardiografia em comparação com outros dispositivos automátivos que produzem resultados consistentes, com pouca variação entre operadores.13 Do mesmo modo que acontece com qualquer outro parâmetro de monitoramento, é essencial integrar os dados cardíacos com outras variáveis fisiológicas produzidas por múltiplas fontes. A pressão arterial do paciente dá informação suplementar importante. Um débito cardíaco baixo em um paciente hipotenso é um indicador provável de hipovolemia ou queda da função cardíaca, enquanto um débito cardíaco alto em um paciente hipotenso sugere resistência vascular diminuída.12 No contexto clínico, o débito cardíaco é estimado, não medido.16 A única técnica que permite medir o débito cardíaco diretamente é a fluxometria eletromagnética, que requer a implantação cirúrgica de uma sonda de fluxo, circunferencialmente à artéria pulmonar principal. Essa técnica é considerada o padrão ideal no contexto de pesquisa, mas, por motivos óbvios, impraticável para aplicações clínicas.17 Todos os valores de técnicas à beira do leito são estimativas do débito cardíaco, com base em suposições e algoritmos. Por

causa dessa estimativa, a comparação de resultados de técnicas diferentes, em geral, produz relativamente pouca concordância e vieses significativos.16 Em seres humanos, a técnica de termodiluição invasiva com cateter na artéria pulmonar (CAP) geralmente é considerada o padrão ‘de referência’ para fins clínicos, mas tem suas próprias limitações.8 Uma medida obtida por uma técnica menos invasiva pode ser preferível, se puder ser obtida com mais rapidez e facilidade, mesmo que um pouco menos acurada. Na medicina veterinária, um exemplo disso é a utilização da técnica da diluição de lítio como um método de referência adequado em equinos, para comparação com outros dispositivos de monitoramento do débito cardíaco.15,18–20 A técnica não invasiva não pode ser a prioridade. Embora obviamente preferível, nem sempre é possível não ser invasiva, podendo até ser contraproducente. Por exemplo, a vantagem real da ecocardiografia sobre as técnicas para estimar o débito cardíaco não é o fato de não ser invasiva, mas a peculiaridade de fornecer uma avaliação direta da função cardíaca.21,22 Uma técnica completamente não invasiva como a bioimpedância, apesar de confiável em seres humanos sadios, provou ser inconsistente quando aplicada a pacientes criticamente enfermos ou usada em outras espécies.13,23

História da medição do débito cardíaco A primeira técnica para calcular o débito cardíaco foi descrita por Adolph Fick em 1870, que descreveu o cálculo do débito cardíaco a partir da medição do conteúdo de oxigênio do sangue arterial e venoso misto, bem como do consumo de oxigênio.24 A técnica de Fick requer cateterismo da artéria pulmonar para amostragem do sangue venoso misto. Isso foi feito pela primeira vez experimentalmente em cães vivos, em 1886, por Grehant e Quinquaud25 e, em seguida, por Zuntz e Hagemann, em um equino, em 1898.26 Seu uso clínico em pacientes humanos não ocorreu até quase 50 anos depois. A medição do consumo de oxigênio sempre representou um desafio significativo, o que continua sendo uma limitação da técnica de Fick.27 Por isso, foi introduzido o uso de estimativas do consumo de oxigênio, e o método passou a ser conhecido como técnica de Fick modificada. A técnica de Fick tornou-se o padrão para a medição do débito cardíaco até o desenvolvimento de técnicas de diluição com corante. A técnica de diluição com corante para a determinação do débito cardíaco baseia-se no trabalho independente de Stewart e Hamilton no final do século XIX e início do XX.28 A equação que eles elaboraram possibilitou a estimativa do débito cardíaco conhecendo-se a quantidade de um indicador injetado e calculando-se a área sob sua curva de diluição medida corrente abaixo. As técnicas de diluição de corante demonstraram repetidas vezes ser confiáveis como a técnica de Fick e mais adequadas ao contexto clínico.29–31 Portanto, a

diluição de corante tornou-se rapidamente o ‘método de referência aceito’ para medição do débito cardíaco.32 A termodiluição, descrita primeiro por Fegler em 1954, usa o calor como um indicador, e segue os mesmos princípios da diluição de corante.33 O artigo que foi um marco no cateterismo do coração direito com um cateter com balão na ponta realizado por Swan et al. em 197034 finalmente estabeleceu o estágio para o uso clínico disseminado do monitoramento do débito cardíaco.35 Desde então, a precisão da termodiluição baseada em estimativas do débito cardíaco pôde ser avaliada em centenas de estudos. É interessante o fato de que todos esses estudos têm em comum uma limitação importante, representada pela ausência de um padrão ideal para comparação. Com o tempo, a termodiluição com base no CAP mostrou boa concordância com os cálculos diretos de Fick e as técnicas de diluição de corante em uma ampla variedade de condições clínicas; isso, combinado com a facilidade relativa da inserção de um CAP em seres humanos, tornou essa técnica o ‘padrão ideal’ para comparação com todos os novos monitores do débito cardíaco.32,36,37 Apesar do uso disseminado da termodiluição com CAP, muitos estudos questionaram a efetividade e a segurança dessa tecnologia,38–43 pelo interesse crescente no desenvolvimento de tecnologias alternativas que possam medir o débito cardíaco de maneira menos invasiva.44–46

Técnicas de determinação do débito cardíaco O desenvolvimento e a variação de novas tecnologias para medir o débito cardíaco representam grandes oportunidades para a veterinária clínica e aplicação em pesquisa. Muitas das técnicas descritas neste capítulo são usadas atualmente ou acabarão sendo adequadas para uso na medicina veterinária.

■ Princípio de Fick O débito cardíaco pode ser estimado de maneira sofisticada usando-se o princípio de Fick. A técnica baseia-se na lei de conservação de massa.27 O princípio estabelece que, no decorrer de determinado período de tempo, a quantidade de O2 ou CO2 que entra nos pulmões ou sai dele é igual à quantidade do gás captado ou expelido pelo sangue que flui na circulação pulmonar. Em termos matemáticos, o débito cardíaco derivado do princípio de Fick iguala-se à captação de oxigênio pelo paciente (VO2) dividida pela diferença entre o conteúdo de sangue arterial e venoso misto (CaO2 – CVO2):47

Isto é verdadeiro pressupondo-se a ausência de qualquer desvio cardiopulmonar.47 A determinação do débito cardíaco por esse método requer o cateterismo de uma artéria periférica e da artéria pulmonar principal para amostragem de sangue arterial e venoso misto, respectivamente.27 A medição do VO2 também requer a coleta e a análise acuradas dos gases exalados ou a determinação via técnicas em circuito fechado, sendo a etapa mais problemática do método de Fick que acabou por limitar seu uso com finalidades clínicas.47 Foi desenvolvido um método de Fick indireto, conhecido como técnica de nova respiração parcial, para eliminar a necessidade da amostragem invasiva de sangue. O monitor NICO® (Novametricx Medical Systems, Wallingford, CT, USA) aplica o princípio indireto de Fick para a eliminação do dióxido de carbono (CO2), em vez da captação de oxigênio.48 Essa tecnologia usa períodos intermitentes de nova respiração parcial para permitir a estimativa minimamente invasiva do conteúdo de CO2 no sangue arterial e no venoso misto. O monitor consiste em um sensor de dióxido de carbono, um sensor descartável do fluxo de ar conectado a um sistema de alça fechada e um oxímetro de pulso. O monitor NICO estima o conteúdo de CO2 do sangue arterial e do venoso misto a partir de medidas da pressão parcial corrente final de CO2 (PCFCO2) durante a respiração normal e manobras de nova respiração. O VCO2 é calculado a partir da ventilação por minuto e de seu conteúdo de dióxido de carbono. O conteúdo arterial de dióxido (CaCO2) é estimado a partir do dióxido de carbono corrente final durante períodos de ventilação. Fases intermitentes de nova respiração parcial permitem a estimativa da pressão parcial do CO2 venoso misto (PvCO2), a partir do qual se calcula o conteúdo de CO2 (CvCO2). À medida que o paciente respira novamente, o nível da PCFCO2 aumenta até um platô que corresponde à pressão parcial de CO2 no sangue que entra nos pulmões (ou sangue venoso misto). Nesse ponto de equilíbrio, a eliminação de CO2 dos pulmões aproxima-se de zero e pode-se pressupor que a pressão parcial de CO2 no final do sangue capilar pulmonar (sangue venoso misto) seja igual à PCFCO2.49 Cada determinação do débito cardíaco requer cerca de 4 min. A cada 3 min, é ativada uma válvula de nova respiração que impede a eliminação de volumes normais de CO2, e os gases inalados e exalados pelo paciente são desviados pela alça do NICO por 50 s.48 Como resultado, a eliminação de CO2 cai e sua concentração na artéria pulmonar aumenta. Presume-se que o débito cardíaco permaneça inalterado em condições normais (N) e de nova respiração (R). Para compensar a presença de sangue desviado, estima-se o desvio pulmonar usando a oximetria de pulso e a FIO2.49 A equação geral em que a técnica se baseia é

em que VCO2, CvCO2 e CaCO2 são o consumo de CO2, a concentração venosa de CO2 e a concentração arterial de CO2, respectivamente. Como a taxa de difusão do dióxido de carbono é mais de 20 vezes maior do que a do oxigênio, supõe-se que não haverá diferença no CO2 venoso (CvCO2), nem em condições normais nem de nova respiração. Assim, a equação é simplificada para

O débito cardíaco de nova respiração parcial de CO2 mostrou confiabilidade suficiente para aplicação clínica em pacientes humanos adultos e pediátricos.50–52 No entanto, a precisão do dispositivo NICO em pacientes críticos foi questionada.53 O monitor NICO foi testado em espécies veterinárias, incluindo cães e equinos.53–55 A necessidade de intubação endotraqueal e ventilação mecânica limita o uso desse dispositivo no período intraoperatório. Em estudos de validação em seres humanos e cães, um volume correção de 12 mℓ/kg resultou em determinações do débito cardíaco que se correlacionaram bem com as medidas obtidas tanto por termodiluição como por técnicas de diluição em lítio.55–57 A necessidade de eliminação constante de CO2 exclui o uso do monitor NICO durante respiração espontânea em pequenos animais, em decorrência da variabilidade do volume corrente.55

■ Termodiluição com cateter da artéria pulmonar Na técnica tradicional de termodiluição intermitente, usa-se como indicador um bolus de solução fisiológica estéril gelada, que é injetado no átrio direito via um cateter na artéria pulmonar (cateter de Swan-Ganz). A alteração na temperatura do sangue com o tempo na artéria pulmonar principal é, então, usada para calcular o débito cardíaco.36 Um bolus de solução fisiológica de volume e temperatura conhecidos é injetado no átrio direito via abertura proximal de um cateter de Swan-Ganz.58 A solução fisiológica pode ser resfriada em gelo ou injetada à temperatura ambiente, e ser administrada em um volume de 5 ou 10 mℓ. Como regra geral, volumes maiores a temperaturas mais baixas produzem os resultados mais acurados. A solução fisiológica mistura-se com o sangue à medida que passa através do ventrículo direito e pela artéria pulmonar, diminuindo, assim, a temperatura do sangue. As alterações na temperatura do sangue são detectadas por um termistor na extremidade distal do cateter, que fica dentro da artéria pulmonar principal, e, com o tempo, um computador mostra a curva de termodiluição (Figura 23.1).33 O computador, então, calcula o fluxo (débito cardíaco do ventrículo direito) usando a informação da temperatura sanguínea obtida, e a temperatura e o volume do bolus injetado

de solução fisiológica que começa. Normalmente, a injeção é repetida pelo menos duas vezes, e as medidas da média são calculadas. Por causa das alterações no débito cardíaco durante o ciclo respiratório, é importante injetar a solução fisiológica durante uma fase consistente da respiração. Convencionalmente, isso é feito no fim da expiração.37 Conforme ocorre com todos os métodos em que se utiliza indicador-diluição, a medição do débito cardíaco por termodiluição baseia-se na equação de Stewart-Hamilton:

O denominador é uma integração matemática definida pelo sinal de integral ∫ e Δ Temp é o gradiente de temperatura e representa a integral na função. O dt indica que o tempo (t) é a variável de integração. O domínio da integração é de t = 0 a t = ∞. A curva de temperatura não retorna realmente ao nível basal por causa da recirculação; o computador é responsável por isso no cálculo da área sob a curva, extrapolando o retorno projetado ao nível basal de temperatura. O débito cardíaco é inversamente proporcional a ∫Δ Temp dt; portanto, quando o débito cardíaco é alto, o indicador cruza rapidamente o sensor de temperatura, produzindo uma pequena área sob a curva de Δ Temp. Em contrapartida, quando o débito cardíaco é lento, o bolus de solução fisiológica fria difunde-se no ventrículo direito e na artéria pulmonar em um tempo relativamente longo, tornando maior a área sob a curva de temperatura versus o tempo (Figura 23.2).

Figura 23.1 Representação gráfica da curva de diluição para o débito cardíaco medido por termodiluição com CAP.

Figura 23.2 A. Representação gráfica da curva de termodiluição de um débito cardíaco normal. B. Curva de termodiluição de um débito cardíaco alto. C. Curva de termodiluição de um débito cardíaco baixo. Deve-se notar a relação inversa entre a área sob a curva (ASC) e o débito cardíaco.

Uma modificação do cateter original de Swan-Ganz inclui uma espiral térmica proximal para aquecer o sangue na veia cava cranial. As alterações na temperatura do sangue são, então, detectadas na extremidade distal do CAP usando-se um termistor. Esse método permite a estimativa contínua do débito cardíaco, com os valores exibidos representando o valor médio de determinações repetidas nos 10 min prévios.58,59 O uso de valores médios do débito cardíaco corrige a imprecisão da termodiluição associada a possíveis arritmias. A principal desvantagem desse método é não ser capaz de produzir valores em tempo real, limitando, assim, sua utilidade em alterações do débito cardíaco rapidamente reconhecíveis em pacientes hemodinamicamente instáveis. O cateterismo da artéria pulmonar permite medições simultâneas de outros parâmetros hemodinâmicos além do débito cardíaco, incluindo pressões na artéria pulmonar, pressões

de enchimento direito e esquerdo e a saturação de oxigênio do sangue venoso misto (SVO2).37 Há algumas fontes importantes de erro com as medições por termodiluição que precisam ser consideradas. Se o volume injetado for inferior ao que entra no computador, a área detectada sob a curva será artificialmente pequena e o débito cardíaco será falsamente alto. Também, se a temperatura da solução fisiológica injetada for inferior à esperada (p. ex., usando-se solução fisiológica gelada em vez de à temperatura ambiente), a alteração na temperatura será artificialmente maior e o débito cardíaco estimado será erroneamente baixo.38 Complicações significativas foram associadas ao uso do CAP e vários relatos descreveram o risco intrínseco de morbidade e mortalidade.39–43 O estudo PAC Man, realizado em pacientes humanos, registrou a ocorrência de complicações em 10% das inserções. As mais comuns foram arritmias, bloqueio cardíaco, ruptura do coração direito ou da artéria pulmonar, tromboembolismo, infarto pulmonar, dano valvular e endocardite. Lesões similares endocárdicas e valvulares também foram descritas em equinos após o uso de CAPs.60 Portanto, o uso do CAP deve ser restrito a pacientes selecionados, nos quais o benefício de seu uso possa contrabalançar significativamente os riscos. As recomendações atuais para seres humanos justificam o uso de um CAP apenas em pacientes com insuficiência ventricular direita grave e naqueles que precisam de monitoramento intensivo da resistência vascular pulmonar durante terapia vasodilatadora. Além disso, o uso de um CAP e da sua termodiluição exige treinamento apropriado, pois é comum haver erros e má interpretação de dados. Em animais, há experiência clínica limitada com o uso clínico do CAP e da sua termodiluição.61–64 Isso se deve, principalmente, à invasividade e à dificuldade para colocálo e de manutenção do cateter na localização apropriada. Além disso, os CAPs disponíveis no mercado são designados especificamente e no tamanho adequado para seres humanos, em geral sendo inadequados para uso direto em outras espécies, em decorrência das diferenças morfológicas. Em cães de pequeno porte (com menos de 5 kg) e gatos, por exemplo, um CAP padrão destinado ao uso de homens adultos, uma vez avançado na artéria pulmonar principal, provavelmente teria a abertura proximal localizada na veia jugular. A injeção do indicador nessa localização, em lugar de ser feita no átrio direito, causará perda e mistura demorada, com erro significativo na estimativa do débito cardíaco. Ocorre o cenário oposto em equinos, para os quais o CAP destinado a uma pessoa adulta é muito curto.A abertura proximal iria se localizar no ventrículo direito, em vez de no seu local apropriado, o átrio direito, alterando significativamente a estimativa do débito cardíaco. No entanto, há CAPs pediátricos humanos cujo tamanho foi adaptado para espécies veterinárias, geralmente usados para finalidades de pesquisa.

■ Termodiluição transpulmonar e diluição com indicador por ultrassom Os princípios básicos da termodiluição com CAP aplicam-se aos sistemas mais novos de monitoramento do débito cardíaco que não requerem o uso de um cateter arterial pulmonar real. Exemplos desses sistemas são o PiCCO® (Pulsion Medical Systems, Munique, Alemanha) e COstatus® (Transonic Systems, Ithaca, NY, USA), que permitem estimar o débito cardíaco usando apenas um cateter venoso central e um arterial.65,66 A base da estimativa do débito cardíaco por esses sistemas ainda é a equação de Stewart-Hamilton. O sistema PiCCO® baseia-se na termodiluição transpulmonar para a determinação do débito cardíaco e requer acesso dedicado à artéria femoral para serem feitas as medições. O PiCCO® estima o débito cardíaco usando injeções venosas centrais de líquido intravenoso gelado como um indicador e mede as alterações na temperatura no período por meio de um cateter com termistor arterial na ponta, colocado na artéria femoral.65 O COstatus® estima o débito cardíaco usando a tecnologia do ultrassom para medir alterações na velocidade sanguínea ao ultrassom após uma injeção de um pequeno bolus de solução fisiológica (0,5 a 1 mℓ/kg) aquecida à temperatura corporal (37°C). Para a obtenção das medições, uma bomba em forma de rolo faz o sangue circular através de uma alça arteriovenosa (AV) extracorpórea descartável interposta entre o cateter arterial periférico e o lúmen distal do cateter venoso central. Dois sensores reutilizáveis que medem alterações na velocidade sanguínea ao ultrassom e o fluxo sanguíneo na alça AV são fixados com pinças aos ramos arterial e venoso da alça. O sensor venoso detecta a injeção de solução fisiológica e registra o tempo e o volume dela. O sensor arterial, então, mede as alterações na concentração de solução fisiológica no sangue como uma diluição, e, também, registra o período de trajeto do indicador no sistema cardiopulmonar. O volume sistólico é, então, derivado das curvas de diluição obtidas.67 A concordância dos valores do débito cardíaco medidos usando-se técnicas transpulmonares e de diluição do indicador ao ultrassom com as medidas usando a termodiluição com CAP mostrou-se adequada para uso clínico em seres humanos.68–71 Além disso, ambas as tecnologias fornecem variáveis volumétricas além do débito cardíaco, como o volume telediastólico e medidas da água pulmonar extravascular. Essas variáveis foram investigadas como indicadores possíveis da resposta a líquido com resultados promissores.72,73 O PiCCO® e o COstatus® parecem bem mais práticos e fáceis para o usuário que a termodiluição com CAP. Além disso, não requerem qualquer adaptação específica para uso em espécies veterinárias. O COstatus® mostrou ser acurado e seguro em pacientes muito pequenos (com 1 kg de peso ou menos).70 Todos esses fatores podem permitir o uso mais amplo desses sistemas na medicina veterinária, especialmente em pequenos animais, em

comparação com a termodiluição com CAP.74,75

■ Diluição de lítio O sistema LiDCO® (LiDCO, Londres, RU) é um exemplo de monitoramento do débito cardíaco com diluição de corante, fundamentado na injeção intravascular de uma quantidade mínima de uma solução isotônica de cloreto de lítio (0,002 a 0,004 mmoℓ/kg) usada como indicador.76 Essas doses de lítio são muito pequenas para exercer qualquer efeito farmacológico ou ter efeitos tóxicos. A concentração de lítio no sangue é determinada por um eletrodo seletivo para o lítio conectado a um cateter arterial periférico. Uma vantagem da técnica de medição do débito cardíaco com a diluição de lítio como indicador é não haver necessidade de uma linha venosa central para a injeção do indicador, que pode ser dada via uma linha regular periférica.77 A curva de concentração de lítio versus o tempo é registrada com o sangue retirado (4,5 mℓ/min) através de um sensor descartável especial adaptado à linha arterial do paciente. O sinal da voltagem através da membrana seletiva ao lítio é convertido para a concentração de lítio por um computador. O débito cardíaco é calculado de acordo com a equação76

em que LiCl é a dose de cloreto de lítio, expressa em mmol, ASC é a área sob a curva da diluição primária e Htc é o hematócrito. É necessária uma correção do hematócrito para transformar o fluxo plasmático no fluxo sanguíneo total porque o lítio se distribui apenas no plasma. A técnica de diluição do lítio mostrou-se menos acurada que a termodiluição com CAP, mas tem as vantagens de ser simples de aprender e fazer. Esse sistema também usa de maneira conveniente cateteres provavelmente já colocados no lugar em um paciente criticamente enfermo. O sistema requer alguma familiaridade para pôr em prática, mas é relativamente rápido e fácil de usar. Similar à termodiluição, o LiDCO® não funciona bem nas taquiarritmias.76 O sistema LiDCO® passou a ser usado em ampla escala ultimamente na medicina veterinária, tanto no contexto clínico como no de pesquisa. Foi encontrada boa concordância com a termodiluição com CAP em cães, gatos e cavalos, mais a vantagem de ser menos invasivo, menos dispendioso e mais fácil de usar.78–81 Em suínos, é até melhor fazer a diluição do lítio do que a termodiluição com CAP, em comparação com a fluxometria eletromagnética. Em um estudo, o débito cardíaco pela diluição de lítio, usando-se um cateter venoso central para aplicar a injeção, mostrou melhor concordância com a fluxometria eletromagnética do que a termodiluição com CAP.82 É digno de nota

que, embora não haja estudos da correlação do sistema LiDCO® com a fluxometria eletromagnética (medição direta do débito cardíaco) em muitas espécies veterinárias, ele, em geral, é usado de maneira arbitrária no contexto de pesquisa como um sistema de referência para comparação com outros sistemas de monitoramento do débito cardíaco.15,18– 20,83,84 Essa abordagem tem o potencial de produzir conclusões imprecisas. A principal desvantagem da diluição de lítio é a perda sanguínea associada à retirada de sangue arterial para a determinação da concentração de lítio. Embora a perda associada a uma única medida seja mínima, deve ser considerada quando aplicada a pequenos animais, se um grande número de determinantes for verificado.

■ Análise da forma da onda arterial A análise da forma da onda de pressão arterial permite a determinação contínua do débito cardíaco.85 Além da medição intermitente do débito cardíaco por diluição, conforme acabamos de descrever, os sistemas PiCCO® e LiDCO® também são integrados com as funções da análise da forma da onda arterial.59,86 O PiCCO® usa a análise do contorno do pulso arterial, enquanto o LiDCO® usa a análise da força do pulso para a estimativa do débito cardíaco a cada batimento.87 Ambos os métodos requerem calibração antes da medição do débito cardíaco, com base na suposição de que o volume sistólico é igual à soma dos fluxos sistólico e diastólico, que são proporcionais às áreas sistólica e diastólica na forma da onda da pressão arterial (Figura 23.3). O sistema PiCCO® usa a termodiluição transpulmonar para o procedimento de calibração, enquanto o LiDCO® é calibrado usandose a diluição do lítio.88 Calibrações repetidas dos sistemas de análise do contorno do pulso arterial são necessárias para obter a estimativa adequada do débito cardíaco. A recalibração também é necessária sempre que houver uma alteração no tônus vasomotor ou qualquer outra alteração significativa na condição clínica do paciente.89,90

Figura 23.3 Análise da forma da onda arterial. Componentes na forma da onda arterial usados pelo método da ‘área sob a curva’. VS é a soma dos fluxos sistólico e diastólico, que são proporcionais as suas áreas respectivas sob a curva da pressão arterial; Pmd é o incremento na pressão arterial média no final da sístole e é usado para calcular o fluxo diastólico; k é o fator de calibração e é medido pela calibração contra um volume sistólico conhecido, por exemplo, usando a termodiluição transpulmonar. Conhecendo k, é possível calcular o volume sistólico a cada batimento.

Dispõe-se de outros dispositivos para determinação do débito cardíaco com base na análise da forma da onda arterial, como o FloTrac/Vigileo (Edwards Lifesciences, Irvie, CA, USA). Existem dispositivos que não requerem calibração basal e calculam o volume sistólico empiricamente.91 No entanto, a precisão e a exatidão destes métodos ainda são questionadas por muitos investigadores.92 Além disso, a análise do contorno do pulso arterial é altamente propensa a dificuldades técnicas relacionadas com umidade e ressonância dentro do sistema de medição.93 Por essas razões, é necessário mais investigação das técnicas de análise da forma da onda arterial em espécies e cenários clínicos diferentes para se definirem as indicações e recomendações para uso clínico.

■ Ecocardiografia e eco-Doppler O débito cardíaco pode ser determinado com a ecocardiografia usando-se os métodos com base ou não no Doppler.94,95 Uma grande vantagem da ecocardiografia sobre outras

técnicas de monitoramento é a grande quantidade de informação hemodinâmica obtida, além do próprio débito cardíaco. É possível avaliar rapidamente a contratilidade cardíaca e o enchimento das câmaras, bem como a visualização direta de valvas e do pericárdio.21,22 As técnicas que não utilizam o Doppler baseiam-se em reconstruções volumétricas aproximadas da câmara ventricular esquerda. O método mais comum baseia-se na regra de Simpson, em que o ventrículo esquerdo é dividido em uma série de discos empilhados desde a base até o ápice. São necessários dois planos ortogonais para construir os discos, e o volume ventricular esquerdo é calculado somando-se os volumes aproximados dos discos individuais. O volume sistólico é calculado determinando-se a diferença no volume entre a diástole e a sístole.94 A natureza demorada da técnica em que não se utiliza o Doppler pode tornar inadequada a estimativa do débito cardíaco para uma avaliação rápida em situações de emergência. A dificuldade com a definição da margem endocárdica também pode gerar resultados bastante imprecisos. Por essas razões, as técnicas em que não se utiliza o Doppler raramente são empregadas para finalidades clínicas. Quando um feixe de ultrassom é direcionado ao longo da aorta, parte do sinal de ultrassom é refletida de volta pelo movimento dos eritrócitos a uma frequência diferente. O desvio resultante na frequência do sinal, conhecido como efeito Doppler, é usado para determinar a velocidade do fluxo. Isso representa o princípio básico por trás da determinação do débito cardíaco pelo eco-Doppler. O monitoramento do débito cardíaco pelo eco-Doppler pode ser feito por via transtorácica ou transesofágica.96,97 A determinação do débito cardíaco começa com a medição da área de corte transversal (ACT) do trato de saída (efluxo) ventricular esquerdo (TSVE). O motivo da escolha dessa localização é que o corte transversal do TSVE é essencialmente um círculo e sua área pode ser determinada facilmente como πr2. A ACT também pode ser medida com mais precisão traçando-se o limite do TSVE (Figura 23.4A). Após a determinação da ACT, coloca-se uma amostra de volume para a onda pulsada do Doppler na localização onde a área foi determinada. Em pequenos animais, recomendase a incidência ecocardiográfica subcostal para essa avaliação. É possível obter incidências subcostais do coração com o paciente em decúbito lateral direito ou esquerdo e são relativamente fáceis. Em geral, essas incidências abrangem três a quatro câmaras (o ventrículo esquerdo, parte do ventrículo direito ou o átrio do mesmo lado, partes do átrio esquerdo e o TSVE com a aorta) e permitem que o operador obtenha um alinhamento paralelo quase perfeito do cursor do Doppler com o TSVE. A janela da onda de pulso ao Doppler pode ser colocada logo abaixo do plano da valva aórtica, incidência que permite bons traçados do fluxo e a obtenção das medidas. É gerado um perfil da velocidade com relação ao tempo por essa interrogação Doppler usando-se a equação:

Em que V é a velocidade dos eritrócitos, fd é o desvio do Doppler, c é a velocidade da onda do ultrassom, fi é a frequência do ultrassom e θ é o ângulo em que as ondas do ultrassom penetram o vaso.

Figura 23.4 Estimativa transtorácica do débito cardíaco pelo eco-Doppler em um cão com 27 kg. A. Incidência do eixo curto para a determinação da área de corte transversal (ACT) do trato de saída ventricular esquerdo (TSVE). A linha amarela pontilhada representa o traçado do limite do TSVE. AE, ventrículo esquerdo. B. Incidência subcostal do ventrículo esquerdo (VE) e do TSVE. Uma janela da onda de pulso do Doppler é colocada logo abaixo do plano da valva aórtica, para a obtenção dos traçados do fluxo e cálculo da integral de velocidade e tempo (IVT) do TSVE. FC, frequência cardíaca. O débito cardíaco é igual a IVT × ACT × FC. O débito cardíaco estimado do paciente é de 6,224 ℓ/min. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

O traçado do limite do perfil de velocidade possibilita a determinação de sua integral sobre o tempo. A integral de velocidade e tempo (IVT) representa essencialmente a distância que o sangue percorre durante um batimento e é conhecida como ‘distância sistólica’. Multiplicando-se a IVT pela área de corte tranversal (ACT) do TSVE tem-se o volume sistólico, que, multiplicado pela frequência cardíaca (FC), fornece o débito cardíaco (Figura 23.4B): débito cardíaco = FC × ACT × IVT Essa técnica requer conhecimento e habilidades para evitar armadilhas e reconhecer resultados inacurados.98 Em geral, a determinação do débito cardíaco com base no Doppler parece ser uma alternativa aceitável à termodiluição para finalidades clínicas, se realizada corretamente.99–101 Fatores importantes que podem afetar significativamente a exatidão são a qualidade da imagem, o local da amostragem, o ângulo de insonação, a velocidade da proporção entre sinal e ruído, a possibilidade de medir o diâmetro do TSVE e o formato da valva aórtica. Uma complicação descrita associada ao uso de sondas esofágicas é a lesão induzida pelo calor. As sondas de ecocardiografia transesofágica geram certa quantidade de calor e, por essa razão, não são adequadas para a avaliação contínua do débito cardíaco. A instrumentação ecocardiográfica e a perícia no seu uso são raras entre anestesiologistas veterinários. Atualmente, isso continua sendo parte do domínio de cardiologistas veterinários, que precisam ter disponibilidade para fazer o procedimento. Há evidência significativa da precisão e da aplicabilidade prática da ecocardiografia para a determinação do débito cardíaco em muitas espécies veterinárias, o que provavelmente resultará em uma variedade maior de usos para finalidades clínicas.

■ Bioimpedância e biorreatância torácicas A bioimpedância utiliza as alterações na condutividade de uma correção de alta frequência e baixa magnitude que passa através do tórax para gerar o volume sistólico.107 As

alterações na condutividade elétrica são produzidas pelas variações do fluxo sanguíneo intratorácico durante cada ciclo cardíaco. Coloca-se uma série de eletrodos do tipo usado para ECG no tórax e no pescoço. Faz-se passar uma corrente pequena, não dolorosa, entre os eletrodos e medem-se as alterações na voltagem, o que também é denominado bioimpedância. O valor da bioimpedância é convertido no volume sistólico, usando-se algoritmos matemáticos. Foram descritos vários algoritmos patenteados com base em modelos matemáticos diferentes do tórax.108,109 O VS, em geral, é calculado usando-se a equação:

em que ρ é a resistividade do sangue, L é a distância média entre os eletrodos internos (o comprimento torácico), TEV é o tempo de ejeção ventricular, (dZ/dt)máx é o valor máximo do primeiro derivado durante a sístole e Z0 é a impedância torácica basal. A bioimpedância fornece uma estimativa em tempo real do volume sistólico e do débito cardíaco, junto com as medições do conteúdo de líquido torácico, o tempo de ejeção ventricular esquerdo, a resistência vascular sistêmica e o índice de trabalho cardíaco esquerdo.108 A biorreatância foi desenvolvida a partir da técnica de bioimpedância, mas mede alterações na frequência de correntes elétricas, mais que na voltagem, o que a torna potencialmente menos propensa a erros derivados de ruídos.110 Ambas as técnicas não são invasivas e podem ser aplicadas rapidamente. Entretanto, a maior preocupação com relação a elas é a exatidão e a precisão das medições. Estudos fisiológicos em seres humanos sadios mostraram boa confiabilidade dos resultados, mas isso não foi consistente em pacientes criticamente enfermos, em particular na presença de edema pulmonar e/ou efusão pleural. Além disso, também pode ocorrer interferência elétrica por causa de outros dispositivos de monitoramento da anestesia conectados ao paciente.111–113 Há pouca ou nenhuma evidência sobre a precisão e a confiabilidade dessas técnicas em espécies veterinárias.114,115 Portanto, até o momento, a determinação do débito cardíaco por bioimpedância e biorreatância não deve ser considerada um método válido e passível de ser reproduzido. Uma falha dos modelos matemáticos de bioimpedância e biorreatância é a aproximação do formato do tórax como um cilindro ou cone para a determinação do débito cardíaco. Isso representa supersimplificações dos eventos elétricos que ocorrem dentro do tórax durante o ciclo cardíaco e são fontes de imprecisão técnica. Parece improvável que os algoritmos designados para pacientes humanos seriam suficientemente acurados para uso nas várias espécies veterinárias.

■ Capnografia padrão como indicador do débito cardíaco Um indicador simples e prático do débito cardíaco em qualquer paciente anestesiado é o dióxido de carbono (CO2) corrente final medido pela capnografia. Pressupondo-se que o paciente esteja em condições estáveis com relação à ventilação por minuto e à temperatura corporal, e na ausência de obstrução de via respiratória ou fontes extrametabólicas de CO2 (cirurgia laparoscópica ou administração de bicarbonato de sódio), mostrou-se que uma alteração súbita no CO2 corrente final reflete uma alteração linearmente proporcional no débito cardíaco.116,117 Portanto, a queda concomitante na pressão arterial e no CO2 corrente final medido em um paciente anestesiado pode refletir uma redução primária no débito cardíaco. Em tais condições, se forem confirmados ritmo sinusal e frequência cardíaca normal, as intervenções terapêuticas devem ser voltadas para a otimização da pré-carga e da contratilidade miocárdica para manter o volume sistólico. Em contraste, uma queda na pressão arterial sem redução no CO2 corrente final provavelmente indicará uma diminuição na resistência vascular sistêmica que pode ser controlada rapidamente com um agente vasopressor.

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Introdução Circuitos e canulação do paciente Circuito externo Canulação do paciente Respostas sistêmicas | Biopatologia Fármacos e intervenções usados durante derivação cardiopulmonar Antibióticos Esteroides Antifibrinolíticos Anticoagulação e reversão Hipotermia Preparação pré-anestésica Avaliação do paciente Organização para a anestesia Medicações Sequência de eventos e terminologia Conclusão Referências bibliográficas

Introdução A expressão derivação cardiopulmonar é aplicada em ampla escala ao procedimento pelo qual o sangue é desviado para fora do coração e dos pulmões, enquanto também fornece sangue oxigenado a outros órgãos para manterem a viabilidade. Há uma longa história do uso de animais, predominantemente suínos e ovinos, para o treinamento e a pesquisa em cirurgia cardiovascular. Além disso, nas últimas duas décadas, animais, particularmente

cães (embora haja relatos ocasionais de gatos1) foram anestesiados com frequência variável no contexto clínico, para facilitar procedimentos cirúrgicos envolvendo o coração (e os pulmões).2–15 Embora morbidade peroperatória seja comum (p. ex., arritmias, sangramento, dano ao nervo frênico, hipoventilação, hipoxemia), as porcentagens de sobrevivência aguda (sem bomba para recuperação) dos relatos supracitados, em geral, são altas, até de 100%. No entanto, a sobrevivência a longo prazo é variável, com complicações em ampla escala, incluindo relatos de hemorragia, tromboembolismo, efusão pleural, insuficiência cardíaca e morte súbita. O foco deste capítulo é fornecer ao leitor uma introdução da derivação cardiopulmonar, conforme usada para facilitar cirurgias cardíacas em pacientes caninos. Os desafios associados a isso como um recurso clínico foram revistos recentemente.16 Embora a conduta anestésica seja revista aqui, grande parte do capítulo é dedicada à introdução dos conceitos básicos de circuitos e instrumentação usados para facilitar a derivação cardiopulmonar, além das considerações (p. ex., proteção cardíaca, conduta com relação à coagulação) que surgem como resultado. Como o leitor pode pensar, muitos procedimentos cardíacos podem ser realizados com o coração batendo, às vezes com a utilização adicional de oclusão do influxo e hipotermia. Neste capítulo, nos limitamos a uma discussão da conduta em pacientes caninos clínicos nos quais é necessária derivação cardiopulmonar para facilitar uma cirurgia cardíaca.

Circuitos e canulação do paciente ■ Circuito externo O circuito externo ao paciente consiste em um reservatório para o sangue e os líquidos usados para ativar a bomba, uma membrana (versus bolha)17 oxigenadora de tamanho apropriado (é comum usar o pediátrico em cães de pequeno a médio porte), um sistema de ventilação, bombas (em rolo ou centrífugas)18,19 em número variável (três a cinco) para facilitar a circulação do sangue, um cambiador de calor e banho de água quente/fria circulante para permitir o resfriamento inicial e o subsequente aquecimento do paciente (Figura 24.1). Tubos apropriados ao tamanho do paciente (para minimizar a hemodiluição excessiva resultante do volume primário excessivo, a exposição aos componentes do circuito e o traumatismo eritrocitário subsequente) conectam essas partes e ficam fixados a linhas que vão para o paciente e saem dele. Como o pulmão não se mantém funcional durante esse processo, um fluxômetro de oxigênio (ou oxigênio e fluxômetros de ar ao longo de um misturador de oxigênio para variar a fração de oxigênio) e um vaporizador são conectados ao circuito para facilitar a liberação do anestésico inalatório conforme

necessário. A manutenção da anestesia com fármacos injetáveis administrados por via parenteral também foi descrita.14 Os circuitos de derivação mais modernos têm um mecanismo de bomba independente e tubos para a liberação de soluções cardioplégicas, bem como monitores em linha (para o registro da temperatura, do hematócrito, da saturação etc.) no lado arterial e/ou venoso e dispositivos de segurança (p. ex., detector de bolhas e sensores de fluxo). Em outros textos médicos, o leitor encontra uma descrição mais completa e um diagrama do circuito de derivação disponível para derivação cardiopulmonar em seres humanos.20

Figura 24.1 Bombas para derivação cardiopulmonar padrão e pediátrica.

Embora o pessoal responsável pela conduta anestésica no paciente deva ter um entendimento geral do circuito externo usado, a experiência do autor é a de que um indivíduo com treinamento especializado em perfusão deva ser o responsável por assegurar a funcionalidade do circuito externo e do equipamento de derivação. Entretanto, o pessoal

da anestesia precisa estar em comunicação constante e dar ao responsável pela perfusão informação específica sobre o paciente, como o hematócrito e o volume sanguíneo calculado. Tal informação será usada para determinar o volume da bomba principal com um hematócrito visado de 25 a 30% para otimizar o fluxo capilar e a capacidade de transporte de oxigênio durante a derivação, quando a hipotermia causa um aumento na viscosidade sanguínea.21 A perfusão pode requisitar líquidos cristaloides, coloides sintéticos, sangue ou concentrado de hemácias (geralmente em pacientes menores) e aditivos como manitol, bicarbonato de sódio e heparina para acrescentar à bomba principal. Em algumas circunstâncias, são acrescentados esteroides à bomba principal. A equipe de perfusão também pode requisitar um vaporizador e anestésico inalatório compatível com o que a equipe de anestesia esteja usando no paciente. Outros detalhes sobre os tipos e tamanhos de oxigenadores, o cálculo do volume da bomba principal, os componentes da solução principal, tipos e tamanhos de tubos etc. podem ser encontrados em outros textos.21–23

■ Canulação do paciente É feita pela equipe cirúrgica. Uma toracotomia lateral é a abordagem preferida em cães se o procedimento cardíaco a ser feito permitir; uma alternativa viável é uma abordagem por esternotomia mediana. Comumente, o sangue arterial (oxigenado) é enviado de volta ativamente (por meio de uma bomba) para o paciente via uma cânula colocada na artéria femoral; a artéria carótida é usada mais comumente em cães menores. É importante que a equipe de anestesia esteja segura quanto ao local a ser utilizado, e, especificamente com relação aos vasos femorais, qual membro será usado, para não colocar no mesmo membro o cateter arterial que irá monitorar a pressão arterial sistêmica. A cânula arterial é colocada primeiramente ou ao mesmo tempo em que é feita a toracotomia, se houver dois cirurgiões. A colocação cedo facilita uma conexão mais rápida com o circuito de derivação se o estado do paciente deteriorar durante a colocação da(s) cânula(s) venosa(s). A canulação bicaval ou venosa atrial é feita pela equipe cirúrgica, dependendo do procedimento a ser realizado. No caso de procedimentos que envolvam o coração direito, prefere-se a canulação bicaval para minimizar a quantidade de sangue no campo cirúrgico e o comprometimento da drenagem venosa se o coração for retraído durante o procedimento (Figura 24.2). A linha venosa conectada à cânula drena passivamente a maior parte do sangue que retorna ao coração para o reservatório do circuito de derivação. O sangue que retorna das veias tebesianas, do seio coronariano e de colaterais sistêmicos, em geral, pode ser drenado mediante a colocação apropriada (dependendo da natureza da cirurgia) dessas cânulas para reduzir o risco de distensão ventricular. Como esse processo é dependente da gravidade, a altura do paciente acima do reservatório é uma consideração importante. Pode-

se aplicar aspiração com cautela à drenagem venosa, se necessário. Uma linha ventricular esquerda adicional de ventilação pode ser colocada para minimizar a distensão ventricular esquerda e o aquecimento resultante da drenagem de colaterais sistêmicos, pericárdicos e broncopulmonares, bem como das veias tebesianas.20 Também se dispõe de uma cânula de aspiração cirúrgica que pode ser conectada ao reservatório com uma linha.

Figura 24.2 Canulação bicaval para a remoção de massa atrial direita (no centro da foto). A veia cava caudal está na posição de 11 h e a veia cava cranial na de 1 h. Nós de fita são puxados para cima em torno de cada cava, para evitar extravasamento de sangue para o átrio direito. A ventosa de cardiotomia na posição de 7 h está colocada para drenar qualquer fluxo do seio coronariano. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

A colocação das cânulas supracitadas facilita a circulação extracorpórea e proporciona um campo cirúrgico menos sanguinolento, mas não oferece um mecanismo para proteção miocárdica. Por isso, coloca-se uma cânula adicional para a administração de cardioplégicos. Essa cânula pode ser colocada de modo que o fluxo da solução cardioplégica seja anterógrado, via uma cânula na raiz aórtica localizada no lado cardíaco da crossa da aorta pinçada, ou retrógrada, via um cateter com balão no seio coronariano. As soluções cardioplégicas são administradas para interromper a atividade cardíaca assim que a crossa da aorta é pinçada, de modo a reduzir as necessidades de energia, proteger as células miocárdicas e eliminar radicais livres. Elas podem ser baseadas em sangue

(sanguíneas) ou em cristaloides, com aditivos para proteção cardíaca (p. ex., manitol ou lidocaína) e altos níveis de potássio para interromper a atividade elétrica. Acredita-se que as soluções sanguíneas proporcionem melhor liberação de oxigênio e limpeza dos radicais livres, em especial durante procedimentos prolongados.20,23 Consegue-se proteção miocárdica adicional com hipotermia sistêmica e/ou local (usando solução gelada em torno do coração, se apropriado e com a devida proteção do nervo frênico).

Respostas sistêmicas | Biopatologia Embora a derivação cardiopulmonar ofereça condições ideais para uma intervenção cirúrgica, os processos envolvidos também geram efeitos negativos reais ou potenciais sobre muitos sistemas orgânicos. Isso foi revisto extensamente e muitos continuam a formar a base de estudos em andamento.24–27 Em suma, o contato dos componentes sanguíneos com o circuito de derivação cardiopulmonar (tubos, bomba, oxigenador) resulta rapidamente em ativação significativa da cascata inflamatória, não dessemelhante da que ocorre na sepse. Os processos cirúrgicos também contribuem e, em conjunto, isso resulta em ativação de plaquetas, leucócitos, complemento e citocinas. As consequências dessa resposta inflamatória podem ter longo alcance, influenciando a coagulação, que, por sua vez, aumenta a formação de microêmbolos e o sangramento, resultando em disfunção orgânica. Portanto, essa é uma área de investigação significativa com relação à maneira pela qual os anestésicos e/ou modificações nos componentes do circuito (p. ex., circuitos ligados à heparina) podem modular de maneira favorável essas respostas para beneficiar o paciente. Algumas das modificações e estratégias comuns que ajudam a maximizar o prognóstico do paciente à luz dessas alterações são apresentadas na próxima seção.

Fármacos e intervenções usados durante derivação cardiopulmonar ■ Antibióticos Por causa da natureza invasiva do procedimento cirúrgico e das alterações inflamatórias resultantes da derivação, administra-se um antibiótico de amplo espectro antes da cirurgia e a intervalos fixos durante a mesma.

■ Esteroides Em decorrência das muitas alterações celulares e humorais que ocorrem durante a derivação cardiopulmonar, tem-se defendido o uso de esteroide. Embora sua administração

esteja associada a um aumento da glicemia, que por sua vez está associado a um prognóstico neurológico desfavorável, considerações como melhora da estabilidade hemodinâmica e redução da lesão miocárdica e da inflamação, em geral, superam as preocupações.28–30 Tem sido nossa prática administrar uma única dose de dexametasona (1 mg/kg, IV) antes de iniciar a derivação.

■ Antifibrinolíticos Análogos da lisina (p. ex., os ácidos ∊-aminocaproico e tranexâmico) que inibem as proteases mediante antagonismo da plasmina livre e inespecífico da protease (ou plasmina) e inibidores da calicreína (p. ex., aprotinina) foram usados no pré-operatório, no intuito de diminuir a necessidade de transfusão após a derivação em pacientes humanos.31–33 Os análogos da lisina agem como antifibrinolíticos e ajudam a prevenir a dissolução do coágulo, enquanto a aprotinina tem ações tanto antifibrinolíticas como anti-inflamatórias. A eficácia questionável no sentido de reduzir as necessidades de transfusão, o custo e o potencial de efeitos adversos gerou preocupações com relação ao uso rotineiro desses fármacos para cirurgia cardíaca. Números limitados de cães receberam ácido ∊aminocaproico e aprotinina durante tratamento clínico, e os dados sobre benefícios ou efeitos colaterais na cirurgia cardiovascular são limitados.

■ Anticoagulação e reversão A heparina está aprovada e é usada rotineiramente em pacientes humanos para anticoagulação durante derivação cardiopulmonar, apesar da grande variabilidade individual em suas ações. Uma dose inicial de heparina não fracionada de 300 a 400 UI/kg foi recomendada para pacientes humanos e também foi utilizada em pacientes caninos clínicos. Na experiência do autor, o tempo de coagulação ativado (TCA) após a administração dessa dose a cães é tipicamente maior do que 1.000 s quando a amostra de sangue é obtida aproximadamente 10 min após a administração; um TCA maior do que 400 a 480 s (em pacientes com hipotermia) é considerado pela maioria como adequado para derivação cardiopulmonar. A administração repetida (geralmente parcial) é considerada necessária se os valores do TCA se aproximarem disso enquanto o paciente ainda estiver conectado ao circuito de derivação. Com a disponibilidade de circuitos revestidos com heparina, pode ser necessário ajustar a dose inicial e as repetidas. A heparina de baixo peso molecular (p. ex., dalteparina, enoxaparina) e também outros anticoagulantes (argatrobano, dabigratrano) com mecanismos de ação diferentes (p. ex., inibição direta da trombina), além de medicações antiplaquetárias (p. ex., clopidogrel), estão cada vez mais disponíveis para uso no tratamento da (anti)coagulação em seres humanos. Algumas delas foram estudadas e empregadas em cães e gatos, mas não há

estudos específicos sobre seu uso durante derivação cardiopulmonar.34,35 Os efeitos da heparina são revertidos com sulfato de protamina ao ser concluída a derivação cardiopulmonar. Conforme discutido adiante, recomenda-se a administração lenta, porque há relatos de que a protamina cause hipotensão significativa em cães quando administrada rapidamente.36

■ Hipotermia É uma estratégia usada comumente durante derivação cardiopulmonar, no intuito de reduzir a taxa metabólica e o consumo de oxigênio. A hipotermia preserva os estoques de fosfato de alta energia e diminui a liberação de neurotransmissor excitatório, a indução enzimática mediada pelo cálcio e a destruição celular.37,38 A redução na demanda de oxigênio permite taxas de fluxo menores na bomba, que, por sua vez, reduzem o traumatismo celular e os eventos embólicos, além de proporcionar melhor visualização cirúrgica. No entanto, não está isenta de aspectos negativos, que incluem, mas não se limitam a, alterações na disposição do fármaco, na coagulação, nos valores acidobásicos e eletrolíticos, além de aumentos na glicemia, na viscosidade sanguínea e na arritmogenicidade cardíaca. É de suma importância para a equipe de anestesia a maneira pela qual os valores do pH e da gasometria sanguínea são conduzidos ante alterações na temperatura corporal. Lembrar que a solubilidade do dióxido de carbono (e do oxigênio) no sangue aumenta com a hipotermia, enquanto seu conteúdo permanece constante. Daí, o valor da PCO2 diminui e o pH aumenta. A influência da temperatura sobre o pH resulta de uma alteração na solubilidade do dióxido de carbono (conforme dito antes) e outro mecanismo que é independente dela. O último mecanismo pelo qual o pH é influenciado está relacionado com o fato de que a água, uma solução fraca de ácido e base, é um solvente primário nos sistemas corporais e sua dissociação é influenciada diretamente pela temperatura. À medida que a temperatura do corpo diminui, a tendência da água em dissociar-se em seus componentes ionizados (H+ e OH) também diminui. As alterações no pH sanguíneo são paralelas com aquelas relacionadas com a temperatura da água, porém amenizadas pela capacidade de tamponamento do aminoácido histidina (e seu anel imidazólico de cinco membros). Assim, o pH sanguíneo permanece mais alto que o da neutralidade da água em determinada temperatura.21,38,39 A conduta alfa quanto à estabilidade do equilíbrio acidobásico permite que o pH e as tensões de dióxido de carbono acompanhem alterações na dissociação termodinâmica, mas mantenham constante o dióxido de carbono total. O termo alfa refere-se à proporção de histidina não protonada relativa à protonada. Relevante para o clínico é que os valores do pH e da gasometria sanguínea não sejam corrigidos de acordo com a temperatura corporal, porém interpretados e tratados conforme seriam a 37°C. Em contrapartida, a conduta para

manter um pH estável consiste em manter valores corrigidos de temperatura no nível normal (a 37°C) à medida que o paciente é resfriado. Em pacientes humanos adultos, por várias razões, inclusive a melhor manutenção da autorregulação cerebral e prevenção de acidente vascular encefálico, a conduta alfa é mais comum, sendo também a estratégia de tratamento com que a autora está familiarizada para uso em cães.21,22 Em crianças jovens, nas quais o risco de microêmbolos causarem acidente vascular encefálico é desprezível, sugeriu-se que a conduta no sentido de manter um pH estável pode melhorar os resultados, graças ao aumento da perfusão cerebral. Um estudo prospectivo feito com crianças com menos de 9 meses de idade na época da cirurgia, contudo, não mostrou qualquer diferença no desenvolvimento neurológico com 2 ou 4 anos de acompanhamento. É interessante terse observado uma tendência mais baixa a morbidade pós-operatória.40

Preparação pré-anestésica ■ Avaliação do paciente Além de uma avaliação acurada do peso corporal e exames físicos e laboratoriais rotineiros (hemograma completo, perfil bioquímico sérico e urinálise), devem ser solicitados um perfil da coagulação do paciente e seu tempo de coagulação ativado, bem como tipagem sanguínea (e/ou) prova cruzada. Também se deve fazer uma avaliação cardíaca completa e dispor da história de medicações. Tal informação forma a base da discussão entre os membros da equipe sobre quaisquer considerações especiais para o paciente. Por exemplo, pode ser do melhor interesse do paciente interromper certas medicações antes da anestesia e da cirurgia. Similarmente, se um paciente tiver efusão abdominal ou pleural, deve-se considerar sua drenagem.

■ Organização para a anestesia Deve-se verificar a funcionalidade do aparelho de anestesia para pequenos animais e do ventilador, bem como se não há vazamentos. O cateterismo padrão (arterial, venoso e venoso central – com cateter de múltiplos lumens ou de Swan-Ganz, se desejado) e o equipamento de intubação no tamanho apropriado devem estar disponíveis. Como o paciente será anticoagulado, a colocação atraumática do cateter é seguida por sua cobertura protetora e fixação nos locais. Deve-se dispor, ainda, de um monitor fisiológico com capacidade de monitorar a frequência e o ritmo cardíacos, as pressões arteriais diretas e venosas centrais/da artéria pulmonar, o dióxido de carbono corrente final, a saturação de oxigênio e a temperatura retal e esofágica. Um recurso para monitorar a junção neuromuscular (p. ex., estimulador de nervo periférico), o estado da coagulação [bloqueio

do TCA ou TP/INR (tempo de protrombina/proporção internacional normalizada)], cateter urinário e sistema de coleta também devem estar disponíveis. A autora também prefere ter ao alcance um monitor Doppler de pressão arterial, respirômetro e valvas para PEFP (pressão expiratória final positiva). Várias seringas, suprimentos para a administração de líquidos intravenosos, coloides, hemoderivados e medicações, seringas de gasometria, bolsas de pressão etc. também devem ser mantidos em um local de fácil acesso. Outros suprimentos que precisam estar à disposição incluem uma unidade de marcapasso e derivações, desfibrilador com material para traqueostomia (no evento da necessidade de ventilação após a anestesia). Um cateter epidural pode ser considerado (em geral após a normalização do estado da coagulação) para ajudar no controle da dor pósoperatória.

■ Medicações Além dos fármacos utilizados para anestesia (Tabela 24.1), inúmeras outras medicações (Tabelas 24.2 e 24.3) devem estar disponíveis e, em alguns casos, ser utilizadas. Elas incluem anticolinérgicos, inotrópicos, vasopressores, antiarrítmicos, dexametasona, furosemida, eletrólitos, bicarbonato de sódio, heparina, um antifibrinolítico, um agente bloqueador neuromuscular e protamina. Pode ser necessário insulina para tratar hiperglicemia. Embora seja nossa prática usar um opioide, benzodiazepínico, anestésico inalatório e bloqueador neuromuscular ou plano anestésico balanceado, também foram descritas outras técnicas anestésicas.13,14 Tabela 24.1 Anestésicos sugeridos para cães submetidos à derivação cardiopulmonar. Fármaco

Dose (mg/kg ou conforme anotado)

Medicação pré-anestésica (SC/IM) Hidromorfona

0,1

Midazolam

0,1

Atropina

0,02

Indução anestésica (IV) Fentanila

0,01

Midazolam

0,2

Etomidato

0,5

Manutenção anestésica (IV/TIC ou inalatória) Fentanila

0,35 a 0,7 µg/kg/min

Midazolam

0,35 a 0,7 µg/kg/min

Isofluorano

Até fazer efeito

Atracúrio

0,1 a 0,25

Tabela 24.2 Anticolinérgicos, inotrópicos, vasopressores e antiarrítmicos para cães anestesiados para derivação cardiopulmonar. Fármaco

Dose de ataque (mg/kg)

Dose (µg/kg/min)

Atropina

0,02 a 0,04

Lidocaína

1a3

80 a 100

Esmolol

0,1

70 a 100

Diltiazém

0,5 a 1 lentamente

1a5

Dobutamina

NA

5 a 10

Dopamina

NA

2 a 10

Milrinona

0,05

0,5

Epinefrina

0,005 a 0,05

0,05 a 0,2

Fenilefrina

0,002 a 0,005

1a3

Norepinefrina

NA

0,1 a 0,2

Tabela 24.3 Fármacos adjuvantes para cães submetidos à derivação cardiopulmonar. Fármaco

Dose (IV)

Heparina

300 a 400 UI/kg

Fosfato sódico de dexametasona

1 mg/kg

Cefoxitina

22 mg/kg a cada 90 min

Ácido ∊-aminocaproico

100 mg/kg, dose de ataque lenta 10 a 15 mg/kg/h, TIC

Furosemida

0,5 a 2 mg/kg

Protamina (administrar lentamente)

3 mg/kg ou 1,3 mg/mg de heparina

Sequência de eventos e terminologia Muito do que está descrito aqui tem base experimental, a partir do trabalho em duas instituições. A autora reconhece que outras abordagens são viáveis e mais adequadas em outros ambientes. Após uma avaliação rápida na manhã da cirurgia e a confirmação da medicação e do jejum, o cão é pré-medicado. A pré-medicação é administrada por via subcutânea ou intramuscular e, em geral, consiste em um opioide não liberador de histamina, como hidromorfona ou metadona. O midazolam e um anticolinérgico podem ser administrados simultaneamente. Após cerca de 30 min, período durante o qual o funcionamento do equipamento de anestesia terá sido conferido e as infusões de fármacos verificadas, o cão é trazido para a área de indução anestésica e instrumentado com ECG, Doppler e cateter intravenoso cefálico. Inicia-se, então, a infusão de oxigênio, líquidos intravenosos e anestésico (que em nossa prática consiste em fentanila e midazolam). Como muitos desses cães estão recebendo tratamento para insuficiência cardíaca, a administração intravenosa de líquido é mantida de maneira conservadora na variação de 1 a 2 mℓ/kg/h. A indução anestésica é feita com fentanila e midazolam intravenosos, junto com uma dose baixa de um agente hipnótico (p. ex., etomidato ou propofol), se necessário. Após intubação endotraqueal e conexão ao aparelho de anestesia, é colocado o equipamento adicional, que inclui um oxímetro de pulso, capnógrafo e sonda esofágica de temperatura. São colocados cateteres adicionais para facilitar as medições das pressões arterial e venosa central, bem como a obtenção de amostra de sangue para determinação do pH, da gasometria arterial, da glicose, do estado acidobásico, dos eletrólitos, do hematócrito e da PT (volume eritrocitário/proteína total) e TCA/TP (tempo de coagulação ativado/tempo de

protrombina). O suporte nesse estágio pode consistir em um inotrópico para manter a pressão arterial e um antiarrítmico, se forem observadas arritmias e tiverem consequências para o paciente, que é ventilado para manter uma tensão arterial normal de dióxido de carbono, verificada com uma amostra de sangue para gasometria sanguínea, obtida após o cateter arterial estar no lugar. Se forem notadas outras anormalidades no pH, na gasometria arterial, nos valores acidobásicos, de eletrólitos ou glicose, são feitas tentativas para corrigi-las. Não se costuma providenciar calor externo para tais pacientes nesse estágio, pois o resfriamento deles irá ocorrer com o início da derivação. Enquanto o local da cirurgia está sendo pinçado, são administrados dexametasona e antibióticos (os antibióticos profiláticos são repetidos a intervalos de 90 min durante a anestesia). Caso se pretenda administrar um agente antifibrinolítico, isso também é iniciado nesse momento. Após a ida do cão para a sala cirúrgica e seu posicionamento apropriado, colocam-se uma sonda retal de temperatura e um estimulador de nervo periférico (ENP), e conecta-se a linha venosa central para monitoramento. Obtém-se um TCA ou TP antes da administração de heparina, e é comum obter-se outra amostra de sangue para verificar o pH, a gasometria sanguínea, os eletrólitos, a glicose, o lactato, o hematócrito e a PT. Verifica-se a desobstrução da bolsa do sistema de coleta de urina e esvazia-se a mesma, se necessário. Os cirurgiões começam a trabalhar no local da cânula femoral e podem iniciar a toracotomia simultânea ou subsequentemente. Em geral, é um bom momento para ajustar as conexões do desfibrilador interno na mesa de cirurgia. Administra-se heparina e verifica-se novamente o TCA ou o TP 10 min após a administração. Uma dose de ataque do bloqueador neuromuscular é dada lentamente por via intravenosa após se avaliar a resposta do paciente à incisão de toracotomia, e, dependendo do fármaco e da preferência do anestesiologista, prossegue-se com a administração a uma taxa de infusão constante (TIC) ou repete-se a dose de ataque durante o procedimento, monitorando-a com o ENP. A infusão de fentanila e midazolam continua e ajusta-se a dose de isofluorano e inotrópicos, conforme necessário, para normalizar a pressão arterial, enquanto se mantém o plano anestésico apropriado. À medida que os cirurgiões manipulam o coração para colocar as cânulas, pode-se observar a hipotensão resultante de alterações no enchimento cardíaco e arritmias, que são tratadas, conforme necessário, para minimizar a influência sobre a pressão arterial e/ou a chance de fibrilação prematura. Aplica-se pressão expiratória final positiva (PEFP) a 2,5 a 5 cmH2O após o tórax ser aberto, em um esforço para manter a oxigenação, se não prejudicar a visualização pelo cirurgião.41,42 Como alternativa, pode-se aplicar assim que a funda pericárdica estiver no lugar. Ocasionalmente, um cão pode perder sangue ou desfibrilar durante a colocação da cânula. O tratamento é adequado à causa e, em alguns casos, poderia incluir uma

transferência rápida para circulação extracorpórea. Se o processo prosseguir sem problemas, então a transição planejada para derivação parcial é iniciada retirando-se a pinça das linhas venosas (conectadas às cânulas venosas) e começando-se o bombeamento arterial. Não se deve esquecer que o fluxo não é mais pulsátil, de modo que os monitores tenderão a registrar apenas um valor médio, assim que o coração parar de ejetar. É comum uma queda significativa na pressão arterial durante essa transição para a circulação extracorpórea. Acredita-se que isso se deva, em parte, a alterações abruptas no volume, no hematócrito, na pressão coloidoncótica e na viscosidade. O intensivista ajusta o fluxo da bomba para variar a pressão arterial média, com a meta tradicional em adultos humanos sendo manter a pressão entre 40 e 70 mmHg;20 recentemente, foram sugeridas pressões mais altas em pacientes humanos, em decorrência do impacto benéfico sobre o prognóstico neurológico. Se a taxa de fluxo da bomba for considerada adequada para o tamanho do paciente, o intensivista pode requisitar um vasoconstritor como a fenilefrina para ajudar na manutenção da pressão arterial. Esse também é o momento em que o intensivista começa a agir com a administração do anestésico inalatório, e a ventilação mecânica pode ser reduzida ou interrompida à medida que o coração deixa de ejetar sangue. A PEFP é mantida, conforme demonstrado em cães, para beneficiar a oxigenação, pelo menos, transitoriamente, sem impacto negativo sobre o débito cardíaco.41–43 Infusões de anestésicos injetáveis costumam ser diminuídas à medida que o paciente é resfriado. Isso é feito apesar de decréscimos demonstrados nas concentrações, resultantes de hemodiluição e sequestro de fármacos pela bomba, como a fentanila, por causa da queda na taxa metabólica com a hipotermia (que, por sua vez, diminui a necessidade de anestésico) e das alterações na ligação de proteína (que aumentam a fração livre do fármaco).44,45 Caso se use atracúrio ou cisatracúrio para bloqueio neuromuscular, serão notados aumentos significativos no intervalo entre as doses com a hipotermia. A administração de medicações antifibrinolíticas, quando são usadas, em geral continua até a conclusão da derivação. Pode-se obter sangue para determinar os valores do pH sanguíneo, da gasometria sanguínea, do equilíbrio acidobásico, da glicemia e dos eletrólitos, o TCA/TP e o hematócrito/PT com o intensivista, que também está apto a administrar medicações (p. ex., antibióticos, bloqueadores neuromusculares), conforme necessário; as linhas IV podem continuar a ser usadas, mas deve-se notar que os padrões de fluxo vascular são alterados e isso pode ter uma influência adicional sobre a cinética dos fármacos. Também é comum haver vasoconstrição periférica resultante da hipotermia. À medida que o paciente resfria, o ritmo cardíaco, se já não tiver sido alterado pela doença primária e a manipulação, em geral irá mudar, e pode-se notar fibrilação ventricular. Embora se possa fazer uma tentativa de desfibrilação elétrica nesse momento, o sucesso é limitado em pacientes profundamente hipotérmicos. Portanto, é melhor colocar o

paciente em derivação total assim que seja viável. Para tanto, o cirurgião pinça a crossa da aorta e administra solução cardioplégica, conforme descrito antes, para interromper a atividade elétrica. Assim que a crossa da aorta estiver pinçada, o ventilador é desligado, se ainda não tiver sido. O intensivista, então, assume total responsabilidade pelo controle do paciente, enquanto a equipe cirúrgica trabalha no coração. A equipe de anestesia tem um papel de suporte durante esse período. Conforme o procedimento cardíaco chega ao fim, as equipes de anestesia, cirurgia e perfusão precisam comunicar-se para que a transição do paciente da derivação seja bemsucedida. É indispensável verificar os valores sanguíneos antes de desligar a bomba. Não se pode esquecer que os valores de potássio podem estar anormalmente altos, em decorrência da administração de solução cardioplégica, mas nenhuma intervenção é necessária, porque esse efeito se resolve assim que a circulação cardíaca é reassumida. As infusões de antiarrítmicos, inotrópicos e agentes vasoativos, em geral, são iniciadas nesse momento, em uma tentativa de prevenir tais ocorrências por causa da derivação; podem ser usadas doses de ataque conforme necessário. Embora a epinefrina ou uma combinação de dobutamina e dopamina tenham sido usadas com sucesso, a preferência do autor tem sido fazer a transição do cão da derivação com dobutamina e fenilefrina. Também faz parte de nossa experiência o fato de que cães não costumam precisar de medicações antihipertensivas, como o nitroprussiato, mas elas devem estar disponíveis, pois outros descreveram que são necessárias. O intensivista também começará a aquecer o paciente nesse momento, antecipando-se à transição da derivação. É possível notar fibrilação ventricular durante esse período ou após a remoção da pinça na crossa da aorta. Caso a desfibrilação não seja bem-sucedida após algumas tentativas, pode ser melhor deixar o coração repousar e aquecer o cão, enquanto ele ainda está com a derivação parcial. Embora não haja uma diretriz absoluta, a experiência clínica sugere que, se as tentativas de desfibrilação não tiverem êxito durante o desmame da bomba, o aquecimento do paciente para 33°C e 35°C geralmente é bem-sucedido. Em raras ocasiões, o cão pode precisar de um marca-passo temporário. O paciente também pode recuperar espontaneamente um ritmo elétrico normal e começar a ejetar sangue gradualmente com suporte cardiovascular à medida que o aquecimento continua. O cirurgião pedirá ajuda à equipe de anestesia para fornecer ar ao coração com um ventilador, no intuito de proporcionar uma respiração maior ou uma série de respirações e, assim, movimentar o sangue para o coração. Antes do fechamento cardíaco, pode-se recorrer ainda à ecocardiografia transesofágica para verificar se há ausência de ar no coração esquerdo. A ventilação retorna assim que o coração começa a ejetar sangue, conforme notado pelo retorno do fluxo pulsátil na linha arterial. O intensivista irá diminuir gradualmente a contribuição da bomba para a circulação à medida que o coração reassumir sua função.

Assim que o coração estiver bombeando adequadamente, as cânulas poderão ser removidas e a administração de protamina iniciada. Têm sido descritas doses entre 2 e 6 mg/kg ou 1,3 mg de heparina/kg. A escolha da dose deve ser feita após serem considerados a duração da administração de heparina, os valores de TCA/TP e a temperatura corporal. Em cães, é possível observar hipotensão significativa com a administração de protamina, que se acredita esteja associada primariamente à liberação de histamina, mas o aumento na liberação central de óxido nítrico também foi implicado.36,46 Com a administração lenta, ainda é possível que ocorram reações anafilactoides que, em parte, acredita-se que se devam à ativação excessiva de complemento, resultante da formação de complexos da heparina com a protamina. Em alguns pacientes, as reações anafilactoides podem ser mediadas via anticorpos IgE. As respostas podem ser imediatas ou tardias. Também há relatos de que a protamina afete o número e a função das plaquetas, favoreça a fibrinólise e diminua a força do coágulo, o que, por sua vez, contribui para que ocorra sangramento.47–49 Como pode haver outras causas de hipotensão (p. ex., sangramento cirúrgico) durante esse período, a comunicação entre a equipe de cirurgia e a de anestesia é fundamental para determinar a causa e a extensão do problema. O pH, a gasometria arterial, a glicemia, o estado acidobásico e o nível dos eletrólitos, o hematócrito, a PT e o TCA são verificados conforme a necessidade durante esse período, corrigindo-se os valores que estiverem anormais. O débito urinário também é avaliado nesse momento, lembrando que não é comum haver alteração na cor da urina relacionada com hemólise após derivação. É um tanto comum, apesar do uso de soluções cardioplégicas com alto teor de potássio, observar quedas nos valores desse elemento durante essa fase. Os valores de cálcio também tendem a ser baixos e a suplementação pode ajudar a corrigir a hipotensão induzida pela protamina. Embora se possa usar magnésio em um paciente quando há dificuldade durante tentativas de desfibrilação, o tratamento, em geral, é adiado até o paciente estar em uma unidade de cuidados críticos, por causa do potencial de hipotensão com a administração de tal elemento. Pode-se transfundir sangue total fresco simultaneamente com protamina ou após sua administração, para fornecer plaquetas e fatores da coagulação. O fechamento da parede torácica é o mesmo de qualquer toracotomia, incluindo a colocação de um dreno torácico. Pode-se administrar furosemida se a gasometria for sugestiva de hipoxemia com relação à FIO2. A equipe também deve optar por manter esses pacientes no ventilador na fase pós-operatória imediata via tubo orotraqueal ou, caso se queira menos sedação, uma traqueotomia. É costume diminuir as infusões anestésicas durante o fechamento da parede corporal. Infusões de suporte e líquidos intravenosos (cristaloide, coloide, hemoderivados) são tituladas conforme necessário. Se disponível, um poupador de células pode ser útil para conservar o sangue. Ao se concluir a cirurgia, a equipe de cuidados críticos verifica e fixa novamente os cateteres, o tubo torácico etc., e,

então, o paciente fica sob os seus cuidados no pós-operatório.

Conclusão Ante a complexidade do processo e a natureza relativamente infrequente da realização de derivação cardiopulmonar no âmbito da medicina veterinária em nossos dias, é indispensável que haja comunicação entre as equipes de anestesia, perfusão, cirurgia e cuidados críticos, para maximizar a possibilidade de um resultado bem-sucedido.

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Introdução Marca-passos artificiais Modalidades de marca-passo Conduta anestésica Avaliação do paciente Implantação de marca-passo temporário Implantação de marca-passo permanente Considerações para anestesia Complicações Pacientes com marca-passo submetidos a procedimentos não cardíacos Conclusões Referências bibliográficas

Introdução Em geral, a anestesia e a cirurgia cardíaca podem ser descritas como sendo de alto risco, mas compensadoras. A implantação de marca-passo é um exemplo disso, porque nenhum outro grupo de pacientes apresenta um risco tão alto de assistolia súbita e morte, embora possa ter melhora significativa na qualidade de vida quando o procedimento é bemsucedido. O anestesista pode ter um impacto significativo na condução do risco peroperatório, mediante o entendimento do procedimento cirúrgico e das necessidades do cardiologista, da escolha dos fármacos e das técnicas que minimizam os efeitos sobre o ritmo e a função do coração, bem como tendo um plano de emergência para a possível ocorrência de bradicardia grave ou assistolia. Como a implantação de um marca-passo pode prolongar a expectativa de vida de muitos animais, é cada vez mais comum fazer procedimentos não cardíacos eletivos e de emergência em animais com marca-passo.

Desde o primeiro relato da implantação de marca-passo em um cão com bloqueio cardíaco completo,1 os marca-passos artificiais tornaram-se a pedra fundamental do tratamento de bradiarritmias em cães e, menos comumente, em gatos. Graças ao número crescente de implantações de marca-passo, há dois cenários comuns com que o anestesista pode-se deparar: (1) a anestesia para implantação de marca-passo em um paciente com uma bradiarritmia ou (2) a anestesia de um paciente com um sistema de marca-passo artificial funcional implantado previamente, que é submetido a um procedimento clínico ou cirúrgico não relacionado.

Marca-passos artificiais Os marca-passos artificiais permanentes transvenosos compreendem uma ou mais derivações e um gerador de pulsos (Figura 25.1). A derivação do marca-passo libera impulsos elétricos para o coração e serve como o eletrodo sensor para detectar atividade elétrica nativa. A derivação consiste em três partes: (1) o condutor (uma espiral metálica que conduz a corrente elétrica), (2) a derivação de isolamento e (3) um conector para a derivação. Na maioria das vezes, a inserção de uma derivação de um marca-passo transvenoso à superfície do endocárdio é conseguida por meio de fixação passiva (p. ex., denteada) ou ativa (p. ex., parafuso fixado ou helicoidal retrátil) das derivações (Figura 25.2). Muitas derivações incorporam um reservatório de esteroide, na tentativa de reduzir a formação de fibrose tecidual que, se ocorresse, poderia contribuir para limiares de estimulação inaceitavelmente altos.

Figura 25.1 Um gerador de pulso de câmara dupla (contendo aberturas atrial e ventricular) junto com uma derivação transvenosa de marca-passo. Esta derivação particular tem dois eletrodos atriais flutuantes, que marcam o ritmo atrioventricular (AV) sequencial em cães com bloqueio AV usando apenas uma única derivação de marca-passo.

A derivação do marca-passo é a ligação mais fraca do sistema comum de marca-passo artificial implantável. Ela tem a função passiva de liberar a corrente desenvolvida a partir do gerador de pulso para o coração e retransmitir sinais do coração para o gerador de pulso. A uma taxa de estímulo de 70 bpm, o coração contrai-se 36,8 milhões de vezes por ano. A respiração, junto com o movimento induzido pela contração ventricular e atrial e o fechamento da valva tricúspide, expõe as derivações transvenosas a estresses mecânicos profundos de flexão, torção e alongamento, que precisam ser combatidos. Apesar do aprimoramento da tecnologia da derivação, a falha relacionada com fratura do condutor, ruptura do isolamento ou deslocamento da derivação e falha do cabeçote continuam sendo complicações reconhecidas (Figura 25.3).2 O gerador de pulso contém a bateria e o circuito computadorizado que controla o tempo de envio dos impulsos elétricos para o coração, o limiar de sensação da derivação do marca-passo e a resposta à atividade elétrica percebida. A tecnologia do gerador de pulso progrediu com a incorporação de circuito avançado e microprocessadores que proporcionam parâmetros de marca-passo programáveis telemetricamente e uma abundância de dados diagnósticos para ajudar a monitorar e controlar as arritmias.3 Estes avanços permitiram o desenvolvimento de modalidades de marca-passo mais sofisticadas e fisiológicas.

Figura 25.2 A. As derivações denteadas (passivas) do marca-passo contêm pequenas ‘barbatanas’ de plástico que entranham dentro das trabéculas carnosas, melhorando a segurança da derivação a curto prazo. B. As derivações de fixação ativa têm um parafuso fixado ou helicoidal retrátil para penetrar no miocárdio e aderir a ele.

Figura 25.3 Radiografia de um cão que, ao exame de verificação, tinha perda da captura do marca-passo. A falha em marcar o ritmo teve relação com a quebra da derivação do marcapasso em sua junção com o cabeçote.

Modalidades de marca-passo Os marca-passos implantados em cães mais frequentemente empregam uma única derivação que marca o ritmo para o ápice do ventrículo (p. ex., o ventrículo direito no caso de uma única derivação transvenosa), independente da atividade atrial. Sistemas de marcapasso mais avançados podem empregar um marca-passo fisiológico de derivação única (p. ex., coordena a despolarização atrial nativa com estimulação ventricular),4 um sistema de derivação dupla para determinar o ritmo nos átrios e ventrículos, ou um sistema de três derivações para marcar o ritmo nos átrios, juntamente com a ativação simultânea dos ventrículos direito e esquerdo.5 As modalidades programadas de marca-passo descritas com maior frequência utilizam um código de cinco letras (Tabela 25.1). O sistema de código NBG é um projeto conjunto entre a North American Society of Pacing and Electrophysiology (NASPE) e o British Pacing and Electrophysiology Group (BPEG).

Embora alguns geradores de pulso mais modernos não se coadunem à descrição pelo código NBG, a maioria dos marca-passos implantados em pacientes veterinários emprega apenas as três primeiras das quatro letras. No entanto, com um aumento potencial na implantação de desfibriladores cardíacos em cães,6,7 a medicina veterinária pode vir a ter necessidade do código completo NBG de cinco letras. A primeira posição no código indica a câmara ritmada, a segunda indica a câmara sensibilizada, a terceira indica a resposta a despolarizações espontâneas e a quarta comumente descreve a modulação da frequência. Portanto, um marca-passo VVIR marca o ritmo e sensibiliza apenas o ventrículo. Em resposta a um impulso percebido, um marcapasso VVIR é inibido até que haja outro período de quiescência na câmara sensibilizada. Se nenhum impulso for detectado em um marca-passo VVIR no final de um intervalo de frequência mais baixa programável, será liberado um estímulo ventricular. A quarta posição, mais comumente um R, representa a modulação da frequência, em que um sensor de atividade (p. ex., acelerômetro, frequência respiratória, intervalo QT) é capaz de aumentar a frequência cardíaca programada durante a atividade. Um marca-passo VDD marca o ritmo apenas no ventrículo, mas o impulso é percebido no átrio e no ventrículo. A liberação de um impulso elétrico estimulante para o ventrículo é disparada por um impulso atrial percebido e é inibida por um impulso ventricular percebido. Um marca-passo DDD é capaz de perceber e marcar o ritmo no átrio e no ventrículo. Ritmo marcado biventricular implica simultaneidade do ápice ventricular direito e da parede ventricular livre esquerda. Tabela 25.1 Descrição do sistema de código NBG de cinco letras das modalidades de marcapasso. IV Funções

II Câmara

III Resposta a um

sensibilizada

impulso percebido

V = ventrículo

V = ventrículo

I = inibida

P = programável

P = passo (ritmo)

A = átrio

A = átrio

T = disparada

M = multiprogramável

S = shock (choque)

D = dupla (V e A)

D = dupla (V e A)

D = dupla (V e A)

C = comunicante

D = dupla (V e A)

O = nenhuma

O = nenhuma

O = nenhuma

I Câmara ritmada

programáveis/modulação da frequência

R = modulação da frequência O = nenhuma

V Função antitaquicardia

O = nenhuma

A maioria dos marca-passos é programada para descarregar apenas de acordo com a demanda (marca-passos sincrônicos). Entretanto, em raras ocasiões, os marca-passos podem ser programados (apenas temporariamente) para um modo de ritmicidade assincrônico (p. ex. VOO). Nessa modalidade, o ventrículo é estimulado a uma taxa fixa independente do ritmo subjacente. Dependendo do gerador de pulso, a colocação de um campo magnético forte sobre o gerador pode modificar a programação de sincrônica para assincrônica. Se a unidade instalada for um cardioversor desfibrilador implantável, a colocação de um ímã sobre o gerador, em geral, desativa a desfibrilação. O ritmo assincrônico pode aumentar a probabilidade de que o impulso do marca-passo venha a cair na onda T de um batimento espontâneo, causando um evento de R sobre T, que pode resultar em fibrilação ventricular. Reduz-se esse risco evitando a assincronia.

Conduta anestésica As indicações mais comuns para a implantação de um marca-passo em cães e gatos são bloqueio atrioventricular (AV) alto de segundo e terceiro graus, síndrome do seio sinusal (SSS) e parada atrial persistente. Em seres humanos, a implantação de um marca-passo por essas indicações, em geral, é realizada em ambulatório, com técnicas anestésicas locais, o que limita a necessidade de envolver um anestesiologista. Contudo, para facilitar a cooperação no caso de pacientes veterinários, a maioria dos sistemas de marca-passo artificial é colocada durante anestesia geral.8,9 Atualmente, não há evidência de que os anestésicos alterem o limiar de estimulação dos marca-passos;10 portanto, as considerações primárias ao se formular um plano anestésico são focadas (1) na utilidade de se colocar um sistema de marca-passo temporário e (2) na escolha dos anestésicos e das técnicas que não afetem adversamente o estado cardíaco subjacente do animal durante o procedimento de implantação.

■ Avaliação do paciente Os pacientes podem ter uma variabilidade considerável em sua frequência ventricular e no ritmo subjacente. Em geral, são realizados testes de resposta à atropina no início do atendimento ao paciente e eles dão orientações como o possível benefício do uso de anticolinérgicos. Gatos com bloqueio AV de terceiro grau têm frequências de escape ventricular que excedem aquelas observadas na maioria dos cães.11 A frequência cardíaca mediana relatada em 21 gatos com bloqueio AV de terceiro grau foi de 120 bpm (variação de 80 a 140).11 Na experiência do autor, gatos com bloqueio AV intermitente de alto grau (ao contrário do bloqueio AV de terceiro grau mantido) são os mais instáveis, em geral exibindo assistolia ventricular, presumivelmente relacionada com a supressão extenuante

de focos de escape ventriculares (Figura 25.4). A natureza intermitente do bloqueio AV também pode tornar o diagnóstico um desafio, pois a presença de ritmo sinusal ao exame não exclui uma causa arritmogênica intermitente para a atividade ‘semelhante à convulsiva’.12 Outros exames, como perfis bioquímicos e hemograma completo, também são úteis para ajudar a identificar alterações primárias ou secundárias, como insuficiência renal ou anormalidades eletrolíticas. É bom enfatizar que, nesses pacientes, não se deve colher sangue por punção da veia jugular. A formação de hematoma pode retardar ou impedir a colocação bem-sucedida de uma derivação transvenosa, em especial quando se emprega um marca-passo transvenoso temporário, situação em que, comumente, são usadas ambas as veias jugulares. Os pacientes com um marca-passo de derivação transvenosa já implantado nunca devem ter as jugulares puncionadas para injeção ou coleta de sangue, porque isso poderia resultar em dano à derivação.

■ Implantação de marca-passo temporário Apesar da frequência crescente de implantação de marca-passo, os tempos de anestesia e do procedimento continuam longos o bastante para que animais com bradiarritmias sintomáticas possam ficar instáveis com assistolia irreversível. Um relato recente de um centro veterinário com experiência em cardiologia revelou tempos médios de procedimento de 94,9 e 133,5 min e tempos médios de anestesia de 137,9 e 179,1 min para a implantação de sistemas de marca-passo de câmara única ou dupla, respectivamente.13 Portanto, seria prudente colocar um sistema de marca-passo temporário no evento de um foco de escape ventricular que se torna instável ou ocorre um período prolongado de parada sinusal.

Figura 25.4 ECG contínuo de derivação II (25 mm/s) de um gato que apresentou início agudo de atividade ‘similar à convulsiva’. Os episódios foram desencadeados por bloqueio atrioventricular (AV) intermitente mantido, com ausência de foco de escape ventricular estável. Nesse ECG, em particular, houve persistência de uma ausência de condução AV ou foco de escape ventricular estável por aproximadamente 24 s. O artefato no ECG foi produzido pelo movimento que acompanhou o episódio de síncope. Foi feita implantação de emergência de um marca-passo, e o gato sobreviveu sem recorrência de episódios por mais de 2 anos.

Usa-se mais frequentemente um método transvenoso ou transtorácico14 para conseguir um estímulo cardíaco temporário. Cateteres estimulantes ou eletrofisiológicos colocados por via transesofágica podem capturar os átrios, mas são menos adequados para a estimulação temporária em cães com bloqueio AV.15,16 Antes de iniciar o procedimento, administram-se antibióticos intravenosos, para diminuir o risco de contaminar a derivação, ocorrer endocardite vegetativa e flebite. O marca-passo transvenoso requer a colocação de um cateter introdutor na veia jugular (ou safena lateral) em sedação leve ou anestesia local. Se forem usados anestésicos locais (p. ex., lidocaína ou bupivacaína) em animais com um ritmo de escape, recomenda-se administrar a menor dose possível, por causa da inibição potencial dos canais miocárdicos de sódio e da supressão inadvertida do ritmo de escape. Pode-se usar orientação fluoroscópica para manobrar uma derivação de marca-passo temporário, via o cateter introdutor, através do átrio direito, da valva tricúspide e no ventrículo direito. Após o posicionamento apropriado, a derivação do marca-passo

temporário é conectada a um gerador de pulso externo temporário e o estímulo artificial pode começar. Isso permite o controle da frequência cardíaca durante a indução e previne alterações causadas pelo anestésico. O marca-passo transvenoso, em comparação com o transtorácico, tem a vantagem de estimular o miocárdio sem dor ou a musculatura esquelética torácica.14 As desvantagens incluem a habilidade técnica necessária para a colocação do cateter introdutor e a derivação (em especial se o paciente estiver apenas levemente sedado), o risco de perfuração ou infecção vascular/cardíaca, de deslocamento ou perda da captura ventricular pela derivação, sem que o foco de escape ventricular reassuma, ocasionando assistolia, além da necessidade de um gerador de pulso cardíaco externo e de a derivação temporária estar estéril. O marca-passo cardíaco transtorácico temporário, em geral, emprega um cardioversor desfibrilador externo com capacidade de gerar impulsos e um par de eletrodos transtorácicos aderentes descartáveis. Faz-se a tricotomia nos precórdios esquerdo e direito, coloca-se pasta condutiva na superfície dos eletrodos e as placas aderentes são colocadas nos lados esquerdo e direito do tórax, diretamente sobre o impulso precordial.14 Em geral, os eletrodos são fixados com bandagem elástica não aderente, para manter o contato cutâneo durante a contração muscular e a movimentação do paciente. Na maioria dos casos, faz-se a indução anestésica subsequente com anestésicos injetáveis de ação rápida e testa-se a captura ventricular. As desvantagens do marca-passo transtorácico temporário são a necessidade de um débito de corrente mais alto, em comparação com o marca-passo transvenoso, a necessidade também de anestesia geral, por causa da dor induzida por um débito de corrente mais alto, estimulação da musculatura esquelética durante o funcionamento no coração, o que pode tornar mais desafiadora a colocação do marca-passo permanente, o risco potencial de captura ventricular incompleta em cães muito grandes e a necessidade de um desfibrilador com capacidade de marcar o ritmo. Para evitar a estimulação da musculatura esquelética ao se usar um marca-passo transtorácico, o cardiologista pode testar a captura ventricular e, então, desativar o marca-passo temporário, a menos que se desenvolva bradiassistolia hemodinamicamente significativa. Como alternativa, podem ser administrados fármacos que bloqueiam a junção neuromuscular, desde que se disponha de métodos de ventilação controlada. Tais fármacos podem não abolir toda a atividade muscular, pois a corrente do marca-passo pode ser alta o suficiente para causar despolarização muscular direta. Os sistemas de marca-passo temporários não devem ser usados sem monitoramento cuidadoso concomitante do paciente. Se uma derivação de marca-passo temporário se deslocar da superfície endocárdica ou os eletrodos transtorácicos falharem em capturar o ventrículo, o monitor de ECG, em geral, ainda continuará registrando a espícula do marcapasso na ausência de estimulação miocárdica. A detecção de um complexo QRS após a

espícula do marca-passo e o monitoramento do pulso arterial permitem confirmar a contração cardíaca. Marca-passos temporários devem ser vistos como um auxílio para verificar se ocorre assistolia, não se confiando exclusivamente neles como substitutos do monitoramento minucioso do paciente.

■ Implantação de marca-passo permanente A implantação de um sistema de marca-passo permanente costuma ser realizada com anestesia geral. Os protocolos podem variar, mas o principal objetivo é manter a frequência cardíaca intrínseca até que o marca-passo possa ser ativado. Depois disso, a escolha do protocolo é o que menos importa. A técnica transvenosa mais comum envolve a identificação, o isolamento e a incisão da veia jugular. A derivação do marca-passo, em geral com a ajuda de um estilete e orientação fluoroscópica, é avançada através da veia cava cranial e do átrio direito, passando pela valva tricúspide e para o ápice do ventrículo direito. Costuma formar-se uma bolsa geradora de pulso no pescoço ou dorsalmente entre as escápulas e, se necessário, a derivação é afunilada sob a pele para conectar o gerador de pulso. Após a conexão/ativação do marca-passo permanente, em geral testa-se o limiar para assegurar boa captura ventricular, a derivação e o gerador são fixados no lugar e a(s) incisão(ões) é(são) fechada(s). Há técnicas alternativas para a colocação de derivações epicárdicas de marca-passo17,18 em casos de revisão ou implantação inicial em cães muito pequenos, gatos e filhotes caninos.

■ Considerações para anestesia O uso de anticolinérgicos deve ser considerado com cuidado, de acordo com o tipo de ritmo subjacente, a resposta esperada (porque muitos animais com bloqueio AV de alto grau não têm aumento significativo na frequência cardíaca) e as preferências do cardiologista. O uso de atropina ou glicopirrolato pode aumentar o ritmo sinusal em animais com bloqueio AV ou SSS que respondem ao tratamento. Se esses animais apresentarem uma resposta, podem desenvolver taquiarritmias quando a frequência cardíaca ultrapassar o limite superior do gerador de pulso. Embora isso não seja um problema para o paciente, pode dificultar a determinação da colocação adequada da derivação e se os ajustes do gerador de pulso são adequados para exercer sua função quando os efeitos do anticolinérgico acabarem. Os anticolinérgicos também podem causar um aumento inicial transitório no tônus vagal, que pode resultar em um agravamento temporário do ritmo subjacente antes que se observe qualquer resposta benéfica. A escolha do anestésico, em geral, incorpora classes que se acredita tenham efeitos mínimos ou passíveis de tratamento sobre a condução e a frequência cardíaca. Anestésicos dissociativos como a cetamina costumam causar aumento da frequência cardíaca em

decorrência do aumento da atividade do sistema nervoso simpático. Todavia, em animais submetidos à ativação máxima do sistema nervoso simpático, pode ocorrer depressão miocárdica significativa.19 A pré-medicação com benzodiazepínicos pode diminuir a dose necessária de anestésico, mas, em alguns animais, pode induzir excitação. Hipnóticos como o propofol, a alfaxalona e os barbitúricos têm sido usados com sucesso variável. A infusão de propofol é uma técnica que permite o controle da profundidade anestésica sem a sua depressão excessiva. Em toda administração intravenosa de fármaco, deve ser lembrado que animais com frequências cardíacas extremamente baixas, em geral, têm o débito cardíaco baixo e distribuição prolongada (início do efeito), com as doses resultando em concentrações plasmáticas mais altas. É necessária a administração mais lenta e cuidadosa, quando se está analisando o efeito. Têm sido usados opioides para sedação e analgesia antes da implantação de marcapassos. Seus efeitos são reversíveis com a administração de antagonistas específicos e, em geral, mínimos sobre a contratilidade miocárdica, porém a maioria, especialmente em doses mais altas, pode aumentar o tônus vagal e promover bloqueio AV. Os anticolinérgicos costumam minimizar esses efeitos. Os anestésicos inalatórios permitem o controle rápido da profundidade anestésica. Têm sido usados muitos marca-passos durante anestesia inalatória, mas os efeitos sobre as correntes de Ca2+ e outros fluxos iônicos, com efeitos sobre a condução, têm exigido algum cuidado para evitar a administração de inalatório até um marca-passo temporário ou permanente ser estabelecido. Após a anestesia, a sedação, em geral, é desejável para facilitar uma recepção suave e minimizar o risco de deslocamento da derivação. Agonistas do receptor adrenérgico α2 não são recomendados para colocação de marca-passo, mas a acepromazina, os benzodiazepínicos e os opioides sedativos foram todos bem-sucedidos.

■ Complicações Bradiarritmias graves ou hipotensão durante a implantação de marca-passo requerem tratamento rápido. O uso de agonistas do receptor adrenérgico β1, como o isoproterenol, a dobutamina, a dopamina ou a epinefrina, pode melhorar a dromotropia e estimular frequências de escape. Contudo, o uso rotineiro de dromotrópicos positivos também pode potencializar despolarizações ventriculares precoces disparadas mecanicamente, que podem resultar em taquicardia ou fibrilação ventriculares. Os fármacos e o equipamento devem estar prontos para administração, mas só devem ser usados se houver necessidade óbvia deles. Arritmias ventriculares durante a colocação de derivação costumam indicar que ela atravessou a valva tricúspide. O tratamento de despolarizações ventriculares precoces com

antiarrítmicos, como a lidocaína, em geral é reservado para os pacientes com arritmias graves, e nos quais não se possa confiar em um ritmo de escape ventricular para manutenção da vida.

Pacientes com marca-passo submetidos a procedimentos não cardíacos O anestesista costuma ser chamado para anestesiar pacientes com marca-passos para outros procedimentos de emergência e eletivos. É aconselhável consultar um cardiologista para avaliar a adequação dos parâmetros programados e a preservação da vida, a resposta esperada a complexos atriais, ventriculares ou ectópicos, a gravidade de disfunção miocárdica ou valvular e as recomendações para profilaxia pré-operatória com antibióticos. Se possível, a anestesia deve ser feita na mesma instalação onde está localizado o programador do marca-passo, de modo que possam ser feitas alterações na frequência do impulso, no limiar ou na sensibilidade do algoritmo, se necessário. Recomenda-se um registro ECG contemporâneo com o procedimento cirúrgico planejado antes da indução anestésica. Pacientes com marca-passos ventriculares de demanda que respondem à frequência (p. ex., VVIR) em geral têm um limite de frequência inferior ou abaixo de 80 bpm. Isso pode não ser adequado para manter a pressão arterial ante a vasodilatação com anestésico inalatório (p. ex., isofluorano). Em geral, é vantajoso aumentar a frequência mínima até um nível apropriado para a anestesia (p. ex., 120 bpm). Se a cirurgia também tiver alta probabilidade de causar movimentação significativa da parede torácica, pode ser necessário desativar a resposta, para evitar taquicardia inapropriada causada pelo marca-passo. Na maioria das circunstâncias, os marca-passos artificiais são incompatíveis com a ressonância magnética. Similarmente, os sinais de alta frequência que acompanham o eletrocautério podem causar inúmeras complicações, incluindo indução de arritmias, aumento da frequência no caso de marca-passos que respondem a ela, inibição do impulso ou reajuste elétrico. Portanto, o ideal é evitar o eletrocautério monopolar em pacientes com marca-passo, a menos que a documentação do gerador de pulso permita especificamente seu uso. Algumas precauções que podem ser úteis, caso não se possa evitar o uso do eletrocautério, incluem a reprogramação do marca-passo, usando-se surtos curtos e intermitentes no nível energético mais baixo, evitando o contato entre a sonda do eletrocautério e o marca-passo, colocando-se o eletrodo de retorno o mais distante do gerador de pulso, assegurando que a via da corrente não interseccione o gerador de pulso e usando um eletrocautério bipolar. A profilaxia antimicrobiana é importante em pacientes com marca-passo submetidos a

procedimentos associados à bacteriemia (p. ex., limpeza dentária). Há vários protocolos, mas o objetivo é reduzir o risco associado à semeadura bacteriana da derivação transvenosa, e a flebite e endocardite subsequentes, que podem requerer a remoção cirúrgica da derivação do marca-passo.

Conclusões A liberação de anestesia para os pacientes que precisem de um marca-passo implantado ou que já têm um pode ser um desafio. Entendendo-se melhor os procedimentos de implantação, a função dos marca-passos e as interações do anestésico e dos fármacos de suporte, o risco anestésico global pode ser diminuído.

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Introdução Avaliação pré-anestésica Eletrocardiografia Radiografia torácica Ecocardiografia Marcadores cardíacos com base no sangue Anestesia em condições específicas Condições de sobrecarga de volume Defeitos congênitos do desvio da esquerda para a direita Defeitos congênitos da direita para a esquerda Condições associadas à sobrecarga de pressão Doenças associadas à disfunção diastólica Doenças associadas a arritmias Doenças arritmogênicas que resultam em taquicardia Doenças arritmogênicas que resultam em bradicardia Hipotensão Suporte farmacológico Choque Referências bibliográficas

Introdução Em animais com suspeita de doença cardíaca, é preciso cuidado antes e durante a anestesia para se avaliar a capacidade do coração de: (1) fornecer um débito cardíaco e perfusão

tecidual adequados, (2) manter pressões venosas baixas e prevenir a congestão, além de (3) evitar arritmias. Os dados básicos anestésicos incluem a anamnese e o exame físico, com atenção particular para a ausculta cardíaca e pulmonar, a inspeção da veia jugular e a palpação dos pulsos arteriais periféricos. Os recursos diagnósticos, comumente considerados, incluem eletrocardiografia (ECG), radiografia torácica, ecocardiografia e medição não invasiva da pressão arterial. Recentemente, foi contemplado o uso de marcadores cardíacos específicos com base no sangue, como o peptídio natriurético N terminal do tipo pró-B (NT-proBNP) e a troponina I cardíaca (cTnI) como parte da avaliação pré-anestésica em animais com suspeita de cardiopatia. A decisão a respeito da maneira como anestesiar pacientes com doença cardíaca baseia-se na escolha e na interpretação apropriadas destes e de outros exames diagnósticos.

Avaliação pré-anestésica ■ Eletrocardiografia A eletrocardiografia é o melhor padrão para a avaliação de arritmias cardíacas. No entanto, na ausência de arritmias, a sensibilidade da ECG para detectar disfunção e doença cardíacas subjacentes é relativamente baixa. Com a ECG, devem ser avaliados a frequência cardíaca, o eixo elétrico médio (quando for o caso), o ritmo e os critérios para aumento de câmara cardíaca. O leitor deve consultar várias revisões excelentes sobre interpretação de ECG para obter mais informação.1–3 Os achados à ECG que mais comumente causam impacto na anestesia incluem anormalidades da frequência (bradicardia ou taquicardia) ou critérios para o aumento de câmara. Em gatos, ocasionalmente são detectadas anormalidades do eixo elétrico médio com doença estrutural subjacente, como miocardiopatia. As bradicardias de importância clínica incluem bloqueio atrioventricular (AV) nodal de segundo ou terceiro grau, parada ou bloqueio sinusal, bradicardia sinusal e, menos comumente, parada atrial. Em geral, para detectar a presença de bloqueio AV, parada/bloqueio sinusal e bradicardia sinusal, faz-se um desafio administrando-se agentes vagolíticos como atropina ou glicopirrolato. A resolução completa da bradicardia após o desafio costuma indicar que a bradicardia se deve a tônus vagal fisiológico alto em repouso, e a bradicardia que ocorre durante a anestesia pode ser tratada efetivamente com a administração repetida de atropina ou glicopirrolato. A resolução incompleta ou ausência de resposta ao desafio vagolítico, em geral, indica lesão ou doença do sistema cardíaco de condução, devendo-se fazer outros exames diagnósticos, como radiografia torácica, ecocardiografia, ECG seriada ou monitoramento ECG (Holter) ambulatorial por 24 h antes

da anestesia. Dependendo da resposta ao desafio vagolítico, alguns cães com respostas parciais podem ser anestesiados seguramente, desde que se escolha o anestésico apropriado, faça-se o devido monitoramento e/ou haja disponibilidade de um marca-passo cardíaco artificial temporário. A maioria das circunstâncias de bloqueio, parada ou bradicardia sinusal que faz parte de uma arritmia sinusal respiratória pronunciada é mediada vagalmente e representa pouco risco para a anestesia. Em contraste, a maioria dos casos de bloqueio AV de segundo ou terceiro grau e parada atrial indica a presença de cardiopatia primária ou distúrbios eletrolíticos ou acidobásicos graves e está associada a um aumento significativo do risco anestésico. Várias formas de bradicardia também podem estar presentes em pacientes com a síndrome do seio sinusal, nos quais podem ocorrer períodos intermitentes de bradicardia e taquicardia. Taquicardias clinicamente importantes incluem as supraventriculares ou ventriculares e a fibrilação ou o flutter atriais (FA). Também podem estar presentes taquicardia sinusal decorrente de dor, hipertireoidismo, insuficiência cardíaca congestiva, toxinas ou fármacos (p. ex., teofilina, terbutalina, teobromina). O impacto das taquiarritmias sobre a anestesia depende da velocidade, da frequência e da duração de tais arritmias. As taquiarritmias muito rápidas, frequentes e mantidas diminuem o tempo de enchimento diastólico e o débito cardíaco, enquanto aumentam a demanda miocárdica de oxigênio. Taquiarritmias como as supraventriculares mantidas ou ventriculares e o FA, em geral, estão associadas à cardiopatia primária clinicamente significativa, como doença degenerativa da valva mitral no cão ou várias formas de miocardiopatia em cães e gatos. Arritmias ventriculares também são comuns em cães com doença extracardíaca, em especial do abdome, como neoplasia esplênica ou hepática ou dilatação/vólvulo gástrico. Portanto, em animais com taquiarritmias, geralmente são usados outros recursos diagnósticos, como radiografia torácica, ecocardiografia, ultrassonografia abdominal e bioquímica sérica. Nos casos em que as arritmias parecem decorrentes apenas de causas extracardíacas, se a ecocardiografia revelar estrutura e função cardíacas normais, em geral a anestesia pode ser realizada com risco adicional mínimo.

■ Radiografia torácica É um recurso extremamente útil na avaliação de pacientes com doença cardíaca. As cardiopatias resultam em ativação das respostas neuro-hormonais que servem para aumentar a pré-carga cardíaca via retenção renal de líquido e sódio. A sobrecarga de volume resultante causa hipertrofia cardíaca excêntrica, cuja gravidade reflete o grau de lesão e atividade neuro-hormonal. Portanto, o tamanho radiográfico do coração é um marcador substituto excelente da gravidade da doença e do risco de insuficiência cardíaca congestiva. A avaliação do tamanho cardíaco radiográfico é confundida por variáveis como

a técnica radiográfica, o peso corporal do paciente, sua conformação torácica e a raça. Técnicas de mensuração padronizadas, como o tamanho cardíaco vertebral (TCV), são úteis para minimizar a variabilidade e aumentar o valor diagnóstico. O sistema do TCV foi revisto extensamente em outros textos.4–6 Em resumo, o eixo longo e o curto do coração são medidos a partir da projeção lateral direita ou esquerda e essas medidas são indexadas ao número de corpos vertebrais, começando do aspecto cranial da quarta vértebra torácica (Figura 26.1). A soma do comprimento e da largura vertebrais do coração representa o TCV. A variação do TCV em cães e gatos sadios é de 8,5 a 10,5 e 6,9 a 8,1 vértebras, respectivamente. Embora estas variações, em geral, sejam consideradas aplicáveis a uma ampla variedade de raças e idades, alguns relatos indicam variações ligeiramente diferentes, ainda que apenas dois dos estudos tenham incluído pelo menos 100 indivíduos (Tabela 26.1). Como um teste pré-anestésico, o TCV é útil para determinar a gravidade da valvopatia mitral degenerativa canina em pacientes geriátricos com o sopro sistólico esquerdo típico. Na experiência dos autores, independentemente da intensidade do sopro, cães com TCV < 11 a 11,5 correm baixo risco do desenvolvimento espontâneo de insuficiência cardíaca congestiva (ICC), enquanto aqueles com TCV > 11,5 a 12 correm maior risco. Junto com a inspeção das veias pulmonares e do padrão do parênquima pulmonar, o TCV ajuda a avaliar o risco de ICC induzida, secundária à administração de líquido (a 5 a 10 mℓ/kg/h) durante anestesia. Em outras espécies e doenças além da degenerativa da valva mitral em cães, os autores consideram o TCV um meio útil para avaliar o risco de ICC induzida ou espontânea em cães com miocardiopatia dilatada e gatos com miocardiopatia hipertrófica ou restritiva. Ante a suspeita de miocardiopatia em cães ou gatos, pode-se fazer uma avaliação detalhada da função sistólica e diastólica com a ecocardiografia, além do TCV.

Figura 26.1 Radiografia lateral direita de uma fêmea Toy Poodle castrada de 13 anos de idade, demonstrando a técnica de medição do tamanho cardíaco vertebral (TCV). O comprimento da silhueta cardíaca é medido de um ponto ventral à carina da traqueia até o ápice do coração, e a largura é medida ao longo da parte mais larga do coração, perpendicular ao seu eixo longitudinal. A borda ventral da veia cava caudal geralmente é usada como o ponto inicial para a medição da largura. As medidas de comprimento e largura são comparadas com o número de corpos vertebrais, começando-se a partir do aspecto cranial do quarto corpo vertebral. No caso em questão, o comprimento da silhueta corresponde a 6,2 vértebras e a largura, a 5, produzindo um TCV global de 11,2. Tabela 26.1 Tamanho cardíaco vertebral radiográfico médio relatado (DP) em vários estudos feitos com cães e gatos. Espécie/Raça

n

Média (DP)

Canina/Beagle7

19

10,3 (0,4)

Canina/Greyhound8

42

10,5 (0,1)

Canina/Whippet9

44

Canina/Rottweiler9

38

Comentários

11 (0,5)

Decúbito lateral direito

11,3 (0,5)

Decúbito lateral esquerdo

9,8 (0,1)

Canina/Cavalier King Charles Spaniel6

Canina/mestiça10

Canina/filhotes11

10

10,8 (0,49)

9,8 (0,6)

Decúbito lateral direito

9,5 (0,8)

Decúbito lateral esquerdo

10 (0,5)

3 meses

11

9,8 (0,4)

6 meses

6

9,9 (0,6)

12 meses

10,3 (0,6)

36 meses

63

Canina/Boxer12

20

11,6 (0,8)

Canina/Labrador Retriever12

25

10,8 (0,6)

Canina/Pastor-alemão12

20

9,7 (0,7)

Canina/Doberman12

20

10 (0,6)

20

10,6 (0,5)

Canina/Yorkshire Terrier12

22

9,7 (0,5)

Canina/mestiça4

100

9,7 (0,5)

Felina/mestiça13

50

Felina/mestiça5

100

Canina/Cavalier King Charles Spaniel12

7,3 (0,49)

Decúbito lateral direito

7,3 (0,55)

Decúbito lateral esquerdo

7,5 (0,3)

■ Ecocardiografia A ecocardiografia representa o padrão ideal para a avaliação clínica da estrutura e da função cardíacas. É menos útil que a radiografia torácica para tentar determinar a presença ou probabilidade de ICC, que se manifesta como edema pulmonar. A ecocardiografia fornece dados a respeito das dimensões das câmaras atrial e ventricular, da espessura das paredes ventriculares e do septo interventricular, dos padrões de fluxo sanguíneo através do coração e das partes proximais dos grandes vasos, da contratilidade miocárdica e da morfologia estrutural da valva (Tabela 26.2). A ecocardiografia deve ser feita por

indivíduos não apenas proficientes na aquisição de imagens, mas também com uma familiaridade adequada com a fisiopatologia das doenças cardíacas mais comuns, pois a interpretação dos dados derivados da ecocardiografia é necessária para avaliar o impacto de alterações sobre o risco anestésico. As medições dos animais são interpretadas usando-se variações de referência de animais sadios indexadas pelo peso corporal. As variações de referência mais acuradas utilizam índices indexados pelo peso corporal elevados à potência de 1/3, fornecendo uma única variação de valores para todos os pesos corporais (Tabela 26.3).14 Doenças que resultam em sobrecarga de volume (p. ex., hipertrofia excêntrica), como doença da valva mitral em cães, miocardiopatia dilatada (MCD) e persistência do canal arterial (CAP), acarretam aumento das dimensões da câmara diastólica, enquanto doenças que resultam em hipertrofia concêntrica, como a miocardiopatia hipertrófica concêntrica (MHC), a hipertensão sistêmica e a estenose subaórtica congênita, ocasionam aumento diastólico e sistólico da espessura da parede ventricular. Doenças que provocam diminuição da contratilidade, como a MCD, resultam em aumento sistólico das dimensões da câmara. A interpretação do ecocardiograma baseia-se em avaliação tanto subjetiva como objetiva. Graças às muitas peculiaridades raciais no que diz respeito à conformação do tórax e aos planos de imagem, os dados objetivos devem ser sempre comparados com a avaliação subjetiva do sonografista. De fato, a estimativa subjetiva da função cardíaca por ecocardiografistas experientes tem melhor correlação com a avaliação angiográfica do que muitos dos cálculos objetivos rotineiros.15 Portanto, as medições objetivas devem alinharse estreitamente com a avaliação subjetiva de um ecocardiografista treinado na morfologia e na função cardíacas, com as discrepâncias entre ambas, em geral, indicando erros de medição decorrentes de planos de imagem subótimos. Estudos ecocardiográficos costumam ser obtidos por meio de imagens através do tórax, mas também é possível obter imagens com uma sonda intraesofágica ou pela ecocardiografia transesofágica (ETE). A última, em virtude da grande proximidade com o coração, rende incidências altamente detalhadas do coração e dos grandes vasos, geralmente sendo usada em pacientes cuja conformação ou peso corporal impeça a obtenção de imagens transtorácicas de alta qualidade. A alta resolução e a acuidade visual das imagens da ETE facilitam os procedimentos de cateterismo cardíaco, como a oclusão de dispositivo de CAP ou a valvuloplastia com balão de uma estenose da valva pulmonar. A sonda de ETE consiste em uma haste flexível e direcionável (similar a um endoscópio), com um transdutor de ultrassonografia em arranjo de fase na ponta. A ETE biplana utiliza dois transdutores posicionados em ângulos retos entre si, enquanto a ETE multiplana utiliza um único transdutor, que pode ser girado no âmbito local para permitir a imagem ao longo de qualquer plano de 0o a 180o Em animais, a ETE é realizada com anestesia geral ou

sedação pesada e a sonda é inserida através do abre-boca na orofaringe e no esôfago do paciente, sendo posicionada sobre a base do coração, o que possibilita a obtenção de múltiplos planos de imagem do coração com o movimento entre os dois transdutores (biplana) ou girando-se o transdutor com a sonda no lugar (multiplana) (Figura 26.2). Há excelentes revisões da técnica e dos planos de imagem da ETE biplana em cães e gatos.16,17

■ Marcadores cardíacos com base no sangue O coração é um órgão endócrino ativo. No caso dos sistemas simpatomimético e de reninaangiotensina-aldosterona, o coração é um órgão-alvo terminal de atividade neurohormonal, enquanto, no caso do peptídio natriurético atrial do tipo B (PNA, PNB), o coração é uma fonte de produção neuro-hormonal. A estimativa do PNA, do PNB e do NTproBNP (um precursor do PNB) pode ajudar a diferenciar etiologia cardíaca versus respiratória de sinais respiratórios, detectar miocardiopatia oculta e fornecer informação sobre o prognóstico.18–21 No contexto de anestesia, é provável que os peptídios natriuréticos, além de marcadores de lesão do tecido cardíaco, como o cTn1, sejam mais úteis para ajudar a saber ao certo o risco de miocardiopatia oculta em gatos durante a indução pré-anestésica. Em populações selecionadas de gatos sob alto risco de miocardiopatia, como gatos adultos com sopro cardíaco, ritmo de galope ou arritmia, o ensaio com NT-proBNP detecta miocardiopatia oculta significativa com sensibilidade e especificidade moderadas.19,20 Valores elevados requerem exames diagnósticos adicionais, como a ecocardiografia, para se chegar ao diagnóstico definitivo e ajudar a formular as recomendações quanto à anestesia. Atualmente, não se recomenda o ensaio natriurético ou com troponina como parte da avaliação pré-anestésica antes de uma cirurgia eletiva de rotina (p. ex., castração), pois a baixa prevalência de miocardiopatia nessas populações terá muitos resultados positivos falsos. Tabela 26.2 Medições e cálculos ecocardiográficos comuns. Estimativa

Abreviatura(s) de uso comum

Ventrículo esquerdo no final da diástole Dimensão telediastólica do ventrículo esquerdo

DTDVE, dTDVE, VEd

Espessura da parede ventricular esquerda posterior

EPVEPd

Espessura do septo interventricular

ESIV

Ventrículo esquerdo no final da sístole

Dimensão telessistólica do ventrículo esquerdo

DTSVE, dTSVE, VEs

Espessura da parede ventricular esquerda posterior

EPVEPs

Espessura do septo interventricular

ESIV

Diâmetro da raiz aórtica

DAo

Diâmetro do átrio esquerdo

DAE

Encurtamento fracional [(DTDVE – DTSVE)/DTDVE] × 100%

EF%

Tabela 26.3 Limites superior e inferior do 95o percentil do intervalo para as constantes indexadas da fórmula ecocardiográfica em cães sadios. As constantes multiplicadas pelo peso corporal (PC em kg) elevado a uma potência exponencial fornecem uma variação de referência única para todos os pesos corporais das medidas indicadas. Medição

Limite do IC de 95%

Fórmula (PC em kg)

iDTDVE

1,35 a 1,73

iDTDVE = DTDVE × PC0,294

iDTSVE

0,79 a 1,14

iDTSVE = DTSVE × PC0,315

iESId

0,33 a 0,52

iESId = ESId × PC0,241

iESIs

0,48 a 0,71

iESIs = ESIs × PC0,240

iEPVEPd

0,33 a 0,53

iEPVEPd = EPVEPd × PC0,232

iEPVEPs

0,53 a 0,78

iEPVEPs = EPVEPs × PC0,222

iDAE

0,64 a 0,90

iDAE = DAE × PC0,345

iDAo

0,68 a 0,89

iDAo = DAo × PC0,341

Fonte: adaptada da referência 14. Reproduzida, com autorização, de Wiley.

Anestesia em condições específicas Ao anestesiar qualquer animal com uma doença cardiovascular, um objetivo primário é manter o débito cardíaco e a perfusão tecidual. No entanto, a maneira pela qual é possível

alcançar esse objetivo difere, dependendo de condição cardíaca subjacente. O débito cardíaco é o produto do volume sistólico e da frequência cardíaca, e diminuições em um ou outro desses parâmetros podem levar a um estado de baixo débito. Em contrapartida, frequências cardíacas rápidas, sejam de origem atrial (p. ex., FA) ou ventricular, podem levar a um estado de baixo débito, pois há diminuição dos períodos de enchimento diastólico e/ou da contribuição atrial (o ‘chute’ atrial) para o enchimento ventricular. Para determinar com exatidão as razões de uma diminuição no volume sistólico, é importante ter certeza se ela é devida a uma alteração na pré-carga, na pós-carga [aumento da resistência vascular sistêmica (RVS)] e/ou na contratilidade do ventrículo esquerdo. Todas essas variáveis são interdependentes. Por exemplo, o excesso crônico de pré-carga pode causar hiperdistensão ventricular e disfunção sistólica. A contratilidade miocárdica e o volume sistólico também podem ser afetados por causas indiretas, como efusão pericárdica, citocinas inflamatórias e agentes anestésicos.

Figura 26.2 Ecocardiografia transesofágica (ETE) em (A) um cão com estenose pulmonar congênita, mostrando abertura incompleta e espessura anormal dos folhetos da valva mitral, a partir da posição transversa da sonda (RVOT, trato de saída ventricular direito; Ao, aorta; PA, artéria pulmonar) e (B) um cão com estenose mitral congênita mostrando abertura incompleta dos folhetos da valva mitral e a partir da posição transversa média (LA, átrio esquerdo; LV, ventrículo esquerdo; RV, ventrículo direito; RA, átrio direito).

Lesões valvulares cardíacas e/ou defeitos septais acarretam alterações nas condições de carga do coração e a abordagem ao paciente muda de acordo com isso. Por exemplo, na regurgitação mitral, há sobrecarga de volume no ventrículo esquerdo e, na estenose aórtica, observa-se sobrecarga de pressão. Os mecanismos compensatórios diferem entre as

condições e podem incluir aumento da câmara, hipertrofia miocárdica, alterações no tônus vascular e na atividade simpática. Podem sobrevir alterações na complacência miocárdica e disfunção miocárdica crônica. A administração anestésica requer um entendimento das alterações nas condições de carga, de modo que os mecanismos compensatórios possam ser preservados, e os problemas, antecipados e evitados antes que ocorram.

■ Condições de sobrecarga de volume Insuficiência/regurgitação da valva mitral Fisiopatologia A regurgitação da valva mitral (RM) pode ser causada por incompetência primária dos folhetos valvares [p. ex., degeneração mixomatosa da valva mitral (DMVM), endocardite bacteriana, malformação congênita] ou ser secundária à dilatação do anel anular em doenças que causam hipertrofia excêntrica secundária à disfunção sistólica (p. ex., MCD). A DMVM é a causa mais comum de RM, tendo uma prevalência aproximada de 30% em cães de raças de pequeno porte com mais de 10 anos de idade. Qualquer que seja a causa inicial, a presença de RM induz mais hipertrofia excêntrica e dilatação anular, em um círculo vicioso no qual ‘RM acarreta mais RM’. A regurgitação mitral resulta em sobrecarga de volume do ventrículo e do átrio esquerdos. Com a incompetência da valva mitral, o efluxo do ventrículo esquerdo é dividido entre o trato de efluxo de alta pressão/baixa complacência através da aorta e a árvore arterial, e a via de efluxo de baixa pressão/alta complacência através da valva mitral incompetente no átrio esquerdo. Esse descompasso nas condições de pós-carga pode resultar em volumes de RM representando uma alta porcentagem do volume sistólico total. Essa chamada fração regurgitante pode chegar a 50 a 70% do volume sistólico total, esclarecendo o grau geralmente grave de sobrecarga de volume no ventrículo e no átrio esquerdos. A radiografia torácica é particularmente útil em cães com DMVM, de modo que o tamanho radiográfico do coração é proporcional à gravidade da RM. Em muitos casos de DMVM sem complicações, a inspeção radiográfica da silhueta cardíaca, dos vasos pulmonares e do parênquima pulmonar dá informação suficiente sobre a gravidade da doença e o risco de ICC, além de ajudar a orientar a necessidade de tratamento clínico crônico. Embora a carga de volume do ventrículo esquerdo esteja aumentada, a tensão sistólica da parede ventricular esquerda tem um aumento mínimo, pois a via de alta complacência permite que uma grande porcentagem do trabalho seja feita a baixa pressão. Portanto, na maioria das raças caninas de pequeno porte (peso corporal < 15 kg) com RM, a contratilidade cardíaca sistólica geralmente parece normal ou mesmo excessiva quando

avaliada pela ecocardiografia. Em cães de raças de grande porte, a disfunção secundária a RM é muito mais comum, por motivos pouco entendidos. Portanto, a ecocardiografia préanestésica para detectar disfunção sistólica, em geral, é mais valiosa em cães de raças grande porte que nos de raças de pequeno porte. A evolução temporal para o desenvolvimento de RM influencia a gravidade dos sintomas. Se a RM se desenvolver lentamente com o tempo, o átrio esquerdo compensará com dilatação gradual, e alguns cães com RM grave podem ser assintomáticos. Entretanto, se a RM ocorrer de forma aguda, como no caso de endocardite bacteriana ou ruptura aguda de cordoalhas tendíneas, a sobrecarga súbita de volume pode ocasionar um aumento rápido nas pressões atriais esquerdas e congestão pulmonar grave. O tratamento clínico crônico da RM envolve a redução da pré-carga (diuréticos, como furosemida e espironolactona), da pós-carga arterial [vasodilatadores, como os inibidores da enzima conversora de angiotensina (iECAs) e a pimobendana] e a manutenção da contratilidade sistólica adequada (inotrópicos positivos como a pimobendana). O início do tratamento clínico antes de anestesia eletiva deve ser considerado nos casos recémdiagnosticados de RM.

Considerações anestésicas O objetivo primário da anestesia no paciente com regurgitação mitral é manter o fluxo aórtico anterógrado enquanto se minimiza o fluxo regurgitante. O volume de fluxo regurgitante através da valva mitral está relacionado com o tamanho do orifício de regurgitação (que está relacionado com o tamanho do ventrículo), o tempo disponível para o fluxo retrógrado e o gradiente de pressão através da valva disfuncional.22 Pacientes com RM crônica compensada serão sensíveis a alterações nas condições de carga ventricular e a pré-carga, em geral, deve ser mantida durante a anestesia.23 Contudo, deve-se evitar a administração muito cautelosa de líquido, para que não haja distensão ventricular e alterações resultantes no fluxo regurgitante. Em alguns casos, a redução da pré-carga pode ser útil. As frequências cardíacas devem ser mantidas em uma taxa normal ou ligeiramente acima disso, para ajudar a manter volumes ventriculares esquerdos menores e minimizar a RM secundária à dilatação anular. A bradicardia também aumenta a duração da contração sistólica e o tempo disponível para o fluxo regurgitante. A maioria dos pacientes com RM beneficia-se bastante da redução da pré-carga. Com tal redução, as pressões sistólicas ventriculares esquerdas necessárias para a ejeção do ventrículo para a aorta e a vasculatura arterial diminuem, otimizando o fluxo anterógrado. Isso, por sua vez, diminui o gradiente de pressão do ventrículo esquerdo para o átrio esquerdo durante a sístole, além de diminuir também o fluxo regurgitante. A profundidade adequada da anestesia e os agentes anestésicos que promovem a dilatação arteriolar e a

manutenção da frequência cardíaca, em geral, são recomendados. Em contraste, a administração de fármacos que causam elevações acentuadas na pressão arterial sistêmica e na pré-carga (p. ex., agonistas do receptor adrenérgico α2) pode prejudicar o fluxo anterógrado, aumentar o fluxo regurgitante e causar deterioração rápida de pacientes com RM. Na RM inicial compensada, a contratilidade do VE pode estar preservada, mas pacientes com RM significativa podem beneficiar-se de suporte inotrópico com um fármaco como a dobutamina (Tabela 26.4). Em alguns casos, pode ser necessária medicação pré-anestésica para diminuir a ansiedade e o estresse do animal durante a manipulação do paciente, minimizando a liberação de catecolamina, taquicardia e aumento do trabalho miocárdico. O ideal é que os pacientes recebam oxigênio suplementar após a medicação sedativa, mas deve-se considerar o estresse da contenção para a administração de oxigênio. Se a sedação préoperatória for necessária, em geral agonistas do receptor de opioide são a classe de escolha, pois costumam causar depressão cardiovascular mínima, com a contratilidade ventricular esquerda, o débito cardíaco e a pressão arterial sistêmica sendo bem mantidos. Em animais sadios, os opioides causam alterações do comportamento que variam da sedação à excitação, mas, em pacientes deprimidos ou criticamente enfermos, os opioides, em geral, causam sedação. Os opioides podem causar bradicardia. Deve-se monitorar a frequência cardíaca e, se puder ser benéfico, administrar um anticolinérgico, como glicopirrolato ou atropina. Alguns animais com RM também podem ter hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca direita. O aumento do dióxido de carbono secundário à hipoventilação induzida por opioide pode elevar as pressões pulmonares e ser preocupante nos animais com hipertensão pulmonar. Pode-se usar uma combinação de agonista do receptor de opioide (p. ex., fentanila, oximorfona ou hidromorfona) ou agonista/antagonista (p. ex., butorfanol) e um tranquilizante benzodiazepínico (diazepam ou midazolam) para sedar pacientes para radiografias torácicas ou ecocardiografia. Essa combinação proporciona sedação com depressão cardiovascular mínima.24–26 A reversão pode ser conseguida com um antagonista do receptor de opioide, como o flumazenil. Tranquilizantes fenotiazínicos como a acepromazina em doses baixas podem ser benéficos em alguns pacientes com RM, porque acalmam esses indivíduos,27 diminuem a pós-carga e a incidência de arritmias. Todavia, só se deve usar acepromazina após consideração cuidadosa, pois um antagonista do receptor adrenérgico α1 pode não apenas diminuir a pós-carga, o que resulta em aumento do fluxo sanguíneo anterógrado, como também ocasionar venodilatação e diminuir a pré-carga. Em geral, uma indução titulada cuidadosamente é preferida no paciente cardíaco com monitoramento contínuo de parâmetros cardiovasculares. Embora não haja uma técnica melhor, uma dose alta de opioide com ou sem etomidato, alfaxalona ou dose baixa de

propofol, em geral, é defendida para a indução, no intuito de manter a função sistólica em pacientes com disfunção miocárdica grave.28–37 Pacientes com RM e disfunção sistólica mínima podem ser anestesiados com outros protocolos, usando-se propofol, alfaxalona ou etomidato (lembrar de evitar aumentos excessivos na resistência vascular sistêmica). A maioria dos agonistas de receptor de opioide, com a exceção da meperidina, não tem efeitos inotrópicos negativos nas doses de uso clínico. A administração por via intravenosa rápida de morfina pode causar liberação de histamina, venodilatação e hipotensão, pois essa via não é usada rotineiramente.38 A oximorfona, a hidromorfona, a metadona, a fentanila ou alguns dos derivados sintéticos mais novos desse último, como a remifentanila,39–41 em geral, são preferidos. Os agonistas do receptor de opioide µ, como a fentanila e seus análogos, embora relativamente isentos de efeitos cardiovasculares diretos, podem causar uma bradicardia significativa mediada vagamente, que resultaria em queda do débito cardíaco.42 A extensão da bradicardia depende da dose e da frequência da administração, e o uso de qualquer opioide em doses altas pode acarretar bradicardia excessiva. Alguns anestesiologistas preferem administrar anticolinérgicos como o glicopirrolato antes de usar opioides em dose alta durante a indução, para evitar oscilações extremas na frequência cardíaca. Outros fármacos adjuvantes geralmente usados incluem tranquilizantes benzodiazepínicos, como o midazolam ou o diazepam. Tabela 26.4 Fármacos inotrópicos e vasopressores, ligação ao receptor e variação posológica padrão para cães e gatos. Fármaco

α1

α2

β1

β2

Dose

Comentários Primariamente efeitos β em

0,01 a 1 µg/kg/min Epinefrina

5+

3+

4+

2+

doses mais baixas, aumentando os

0,02 a 0,2

efeitos α em

mg/kg, bolus

doses maiores Para parada cardíaca

Norepinefrina

5+

5+

3+

(0)+

0,01 a 0,1 µg/kg/min

Efeito β2 não observado clinicamente

Dobutamina

0(+)

0

4+

2+

1 a 20 µg/kg/min

Fenilefrina

5+

2+

0

0

0,2 a 2 µg/kg/min As ações são dependentes da dose Age primariamente sobre os receptores 1 de

Dopamina

1 a 5+

2+

3+

2+

1 a 3 µg/kg/min

dopamina na

5 a 10

vasculatura

µg/kg/min

renal e

> 10 µg/kg/min

esplâncnica para produzir vasodilatação Primariamente efeitos β Primariamente efeitos β Ação primária por um efeito

Efedrina

2+

+

3+

+

0,05 a 0,5 mg/kg

indireto. Efeitos diretos e indiretos (liberação de NE)

O etomidato é um agente de indução anestésica útil em qualquer animal com cardiopatia associada à má função sistólica.43 As pressões ventriculares esquerdas, aórtica média e o fluxo sanguíneo coronariano não apresentam alterações significativas em cães sadios que recebem até 2,5 mg/kg para indução. O etomidato não é arritmogênico e também pode ser útil em animais com anormalidades da condução cardíaca. Em geral,

evita-se a administração rápida de doses grandes de propofol, por causa dos efeitos cardiovasculares potencialmente profundos, incluindo vasodilatação, diminuição da contratilidade cardíaca e hipotensão. Contudo, uma dose baixa dada como infusão lenta pode ser útil como adjunto para ajudar na intubação e na manutenção da anestesia. A alfaxolona tem um índice terapêutico ainda maior e também pode ser usada para a indução em animais com cardiopatia, embora possam ser observados efeitos adversos após doses maiores administradas rapidamente. A manutenção da anestesia pode ser conseguida com um opioide e/ou infusão de propofol, com ou sem um agente inalatório. As infusões de etomidato não são recomendadas, em decorrência do potencial de hemólise associada a alta osmolalidade das formulações disponíveis comercialmente44 e também preocupações relacionadas com supressão adrenocortical prolongada. Uma única injeção de um bolus de etomidato na dose de 2 mg/kg reduz a resposta adrenocortical à anestesia e à cirurgia por 2 a 6 h.45 No entanto, infusões a longo prazo foram associadas a supressão adrenocortical prolongada e taxas de mortalidade mais altas em pacientes politraumatizados criticamente enfermos.46,47 Os anestésicos inalatórios mais comumente usados (p. ex., isofluorano, sevofluorano e desfluorano) tendem a preservar a contratilidade miocárdica em planos anestésicos leves. Pequenos decréscimos na RVS, acoplados a função sistólica adequada, podem reduzir a fração regurgitante e são objetivos em pacientes com RM anestesiados. A diminuição da pré-carga e da função sistólica associada a planos anestésicos profundos com agentes inalatórios não é recomendada; portanto, em geral, são defendidas técnicas anestésicas multimodais ‘balanceadas’. Geralmente, a medicação para doença cardíaca em pacientes que já a estejam recebendo continua (em especial diuréticos, bloqueadores do canal de cálcio, antiarrítmicos e inotrópicos) até o momento da cirurgia. Entretanto, a hipotensão pode ser mais pronunciada com a anestesia em pacientes que estejam recebendo inibidores da enzima conversora de angiotensina, como o enalapril. É sempre prudente ter agentes inotrópicos e venoconstritores imediatamente disponíveis para tratar a hipotensão intraoperatória, pois a administração de líquido, em geral, está contraindicada. Miocardiopatia dilatada Define-se miocardiopatia dilatada (MCD) como disfunção sistólica idiopática, acompanhada por dilatação excêntrica e sobrecarga de volume à medida que a geração cardíaca de volume sistólico anterógrado normal diminui. A dilatação ventricular esquerda resultante envolve a dilatação do ânulo da valva mitral, com a RM secundária resultante contribuindo ainda mais para a sobrecarga de volume. A MCD é comum em raças caninas de grande porte, em particular Doberman Pinscher, Wolfhound Irlandês e Dinamarquês, e

relativamente incomum em gatos após o reconhecimento da deficiência de taurina e a reformulação subsequente de dietas comerciais. A deficiência de taurina é observada ocasionalmente em cães, em particular, da raça Cocker Spaniel. A MCD predispõe a insuficiência cardíaca congestiva, além de arritmias ventriculares. Na maioria dos casos, a insuficiência cardíaca é do lado esquerdo (edema pulmonar), mas ocasionalmente pode ser no direito (ascite, efusão pleural). Arritmias ventriculares frequentes podem causar intolerância à atividade, síncope e morte cardíaca súbita. Costuma-se usar uma combinação de ecocardiografia, radiografia torácica e ECG para diagnosticar a gravidade do estágio da MCD. É comum fazer o monitoramento Holter para a triagem de cães em risco de batimentos ventriculares prematuros, que é um sinal precoce de doença. O tratamento crônico visa reduzir a pré-carga (diuréticos como a furosemida e a espironolactona), a pós-carga (IECAs, pimobendana) e aumentar a contratilidade (inotrópicos positivos como a pimobendana e a digoxina). A supressão de arritmias ventriculares é feita agudamente com lidocaína ou procainamida a taxa de infusão constante (TIC) e cronicamente com sotalol ou amiodarona. Em alguns casos, são usados betabloqueadores como antiarrítmicos ventriculares adjuvantes, porém, por causa de seus efeitos inotrópicos negativos, deve-se ter cuidado em animais com disfunção sistólica grave ou insuficiência cardíaca congestiva. Muitos casos de MCD são complicados ainda mais pelo desenvolvimento de FA, que é particularmente comum em Dinamarqueses, Mastiffs, Wolfhounds Irlandeses e outras raças caninas de grande porte com MCD. A taxa ventricular rápida associada ao FA aumenta a demanda miocárdica de oxigênio e reduz o débito cardíaco à medida que o tempo de enchimento diastólico diminui. Por isso, o tratamento do FA envolve a redução da condução nodal atrioventricular e a redução da frequência cardíaca. Os agentes de uso mais comum incluem a digoxina, os bloqueadores do canal de cálcio (p. ex., diltiazém) e betabloqueadores. Muitos cães com MCD inicial são assintomáticos. Cães idosos de raças de grande porte que tenham despolarizações ventriculares precoces (contrações ventriculares prematuras, CVPs) ocasionais antes ou durante a anestesia, que não se resolvem após a mesma, podem beneficiar-se do exame realizado por um cardiologista. Alguns casos de MCD oculta só são diagnosticados após serem notadas CVPs durante e após a anestesia, exigindo consulta a um cardiologista.

Considerações anestésicas São similares às relativas à RM, com o acréscimo de queda na função sistólica, insuficiência cardíaca congestiva e maior incidência de arritmias cardíacas. Além disso, cães com miocardiopatia, em geral, têm uma infrarregulação significativa de receptores

adrenérgicos β no coração, embora a afinidade deles não mude,48 o que torna esses animais mais resistentes ao tratamento com um inotrópico positivo. Cães com disfunção sistólica significativa provavelmente se beneficiam de suporte inotrópico (p. ex., dobutamina ou dopamina) durante a anestesia. Podem ser vistas arritmias ventriculares durante anestesia em animais com MCD. Antiarrítmicos como a lidocaína e a procainamida devem estar disponíveis, mas, em geral, são reservados para os casos em que a frequência de batimentos anormais cria pressão arterial significativa ou o débito cardíaco diminui. Embora geralmente desnecessário, o esmolol, um betabloqueador de ação curta, pode ser administrado por infusão, conforme indicado (bolus de ataque de 0,5 mg/kg, seguido por uma infusão de 0,01 a 0,2 mg/kg/min, para reduzir a frequência de concentrações ventriculares prematuras associadas à estimulação simpática). A dose pode ser ajustada, conforme necessário, para minimizar quaisquer efeitos inotrópicos negativos do uso de um betabloqueador. Em cães com MCD e FA simultâneos, pode-se considerar a eletrocardioversão (se o paciente for candidato) no início da anestesia. O aumento do enchimento ventricular após a ressincronização dos átrios e ventrículos pode melhorar o débito cardíaco. Como alternativa, durante a anestesia podem ser usados fármacos que reduzem a frequência sinusal e a condução através do nó AV, como a fentanila. Anticolinérgicos devem ser evitados em cães com FA, mas podem ser úteis para cães com MCD sem FA que tenham bradicardia em anestesia. Na dose de 5 a 40 µg/kg/h, a fentanila pode ser um anestésico efetivo em cães doentes, quando usado como agente primário em combinação com oxigênio e ventilação nos animais que não toleram anestésicos inalatórios. A remifentanila tem meia-vida de eliminação mais curta que a fentanila, com tempos de recuperação rápidos, qualquer que seja a duração da infusão, embora todo opioide seja adequado para uma técnica de infusão. O uso de remifentanila na dose de 0,25 a 0,5 µg/kg/min com propofol na dose de 0,2 mg/kg/min causa pouca alteração nas pressões arteriais médias em cães sadios, embora a frequência cardíaca diminua com doses crescentes do fármaco.41

■ Defeitos congênitos do desvio da esquerda para a direita Defeito do septo ventricular e persistência do canal arterial Tanto defeito do septo ventricular (DSV) como persistência do canal arterial (CAP) favorecem a ocorrência de desvio da esquerda para a direita, que acarreta sobrecarga de volume na circulação pulmonar e no coração esquerdo. À medida que a resposta fisiológica ao aumento da circulação pulmonar progride, as pressões pulmonar e ventricular direita podem aumentar, resultando em fluxo mínimo ou reverso (desvio da direita para a esquerda). A anestesia sem se considerar a escolha do fármaco e o tratamento da resistência vascular sistêmica (e da pressão arterial) do paciente e das pressões pulmonar e ventricular

direita pode resultar em fluxo reverso do desvio e deterioração rápida da condição do paciente. A avaliação ecocardiográfica cuidadosa antes da anestesia e o monitoramento perianestésico minucioso dos pacientes podem facilitar a administração anestésica naqueles com desvios cardiovasculares. Muitos DSVs em cães e gatos são relativamente pequenos e o volume do desvio não é suficiente para causar insuficiência cardíaca congestiva. Em contraste, a maioria dos animais com CAP terá insuficiência cardíaca esquerda no primeiro ano de vida se o defeito não for corrigido. O CAP é comum em cães e menos em gatos, enquanto o DSV é mais comum em gatos que em cães. Ambos os problemas geram sopros característicos que, em geral, permitem um diagnóstico presumível com base apenas nos achados ao exame físico. Em ambas as doenças, uma combinação de ecocardiografia e radiografia torácica facilita estabelecer um diagnóstico definitivo e também a avaliação do volume desviado e do risco de insuficiência cardíaca. Geralmente, a extensão da hipertrofia ventricular esquerda excêntrica e o grau de dilatação atrial refletem a magnitude do desvio. A extensão do desvio depende não apenas da área de corte transversal da lesão, como também das pressões relativas e da complacência dos componentes direito e esquerdo da circulação. Pressão e complacência baixas da circulação pulmonar e ventricular direita com relação à circulação sistêmica e ao ventrículo esquerdo promovem desvio da esquerda para a direita. Intervenções que aumentam a pressão do lado direito ou diminuem a do lado esquerdo reduzem a gravidade do desvio. Por isso, podem ser usados vasodilatadores arteriais sistêmicos para reduzir o volume do desvio, bem como se pode recorrer a intervenções cirúrgicas como a ligadura da artéria pulmonar, que aumenta a pressão no ventrículo direito.

Considerações anestésicas Em animais com DSV ou CAP, o grau e a magnitude do desvio do fluxo dependem das resistências relativas ao fluxo de saída. Com o desvio simples da esquerda para a direita, o fluxo sanguíneo pulmonar aumenta, e o ventrículo direito e a vasculatura pulmonar podem ter sobrecarga de pressão ou volume, podendo haver ainda algum grau de hipertensão pulmonar. Aumentos adicionais no fluxo sanguíneo pulmonar são evitados prevenindo-se aumentos na RVS. Além disso, manipulações que diminuem a resistência vascular pulmonar (RVP) (hipocapnia, alcalemia, ventilação espontânea, anestesia profunda) também podem aumentar a magnitude do fluxo do desvio da esquerda para a direita. Em muitos casos, a insuficiência cardíaca ainda não está presente, e o animal é relativamente jovem e ativo, podendo ficar excitado com a contenção. Praticamente qualquer agente anestésico que não seja capaz de alterar de maneira significativa a RVS pode ser usado com segurança para medicação pré-anestésica, indução ou manutenção da

anestesia. Devem ser evitados fármacos que aumentem significativamente a RVS, incluindo os agonistas do receptor adrenérgico α2 (p. ex., dexmedetomidina). Nos casos em que há algum grau de insuficiência cardíaca congestiva, as considerações são semelhantes àquelas em outros pacientes com sobrecarga de volume (ver anteriormente). Também se pode usar uma técnica de indução com base em opioide com tranquilizante benzodiazepínico e etomidato, alfaxalona ou propofol, seguidos por anestesia inalatória ou infusão de propofol ou combinação de fentanila/remifentanila e infusão de propofol.41 No entanto, o propofol pode resultar em alterações clinicamente significativas na direção do desvio cardíaco e dessaturação arterial, em decorrência de uma diminuição na RVS,49 que, em geral, depende da dose e da rapidez com que o propofol é administrado. As pressões diastólicas, em geral, são baixas nesses pacientes, por causa do desvio de sangue para a circulação pulmonar de menor resistência. Uma alteração característica na onda arterial pode ser vista com a ligadura da persistência do canal arterial, incluindo uma queda na pressão do pulso, elevação na pressão média e diastólica e reaparecimento de uma onda dicrótica (refletida) (Figura 26.3). A hipotensão pode ser pronunciada em alguns pacientes, em decorrência das baixas pressões diastólicas, e, em geral, é tratada com um inotrópico como a dobutamina (Tabela 26.4), que ajuda a manter a função miocárdica e a frequência cardíaca, ao mesmo tempo que impede aumentos na RVS. Entretanto, também é preciso evitar reduções significativas na RVS, em especial nos pacientes com hipertensão pulmonar significativa, em que os fluxos do desvio podem ser revertidos ante a dilatação arteriolar associada ao anestésico inalatório. Estes pacientes vão se beneficiar da administração de um vasoconstritor (p. ex., dopamina ou fenilefrina; ver Tabela 26.4) para a manutenção da RVS basal. Uma queda súbita na saturação arterial de oxigênio em decorrência da mistura venosa, conforme monitorada com um oxímetro de pulso ou pela gasometria arterial, pode ser um indicador precoce de reversão do desvio. Caso se pretenda fazer uma cirurgia em um animal relativamente jovem para reparo de defeito cardíaco congênito, é preciso considerar a maturação progressiva do sistema nervoso autônomo e as respostas cardiovasculares. Em filhotes caninos, a resposta vasoconstritora adrenérgica não se desenvolve completamente até após as 8 semanas de idade.50 Similarmente, embora a resposta cronotrópica seja aparente em 1 semana, a resposta inotrópica à estimulação simpática também não se desenvolve completamente até após 8 semanas de idade.51 Pacientes neonatais tipicamente têm uma frequência cardíaca mais alta, com pressão arterial e resistência vascular sistêmica mais baixas que adultos. Além disso, a resposta cardiovascular a agentes simpaticomiméticos pode ser menos pronunciada no paciente recém-nascido ou pediátrico que no animal adulto de uma espécie semelhante.52–54

Figura 26.3 Débito de um paciente monitorado durante a oclusão de persistência do canal arterial (CAP), mostrando o eletrocardiograma e a forma da onda da pressão arterial. Notar o aumento rápido na pressão arterial diastólica e o aparecimento de uma onda dicrótica (refletida) durante a diástole, imediatamente após a oclusão (seta). Essas alterações são características de diminuição do fluxo através da CAP e podem ser usadas para ajudar a identificar o vaso.

■ Defeitos congênitos da direita para a esquerda Tetralogia de Fallot e persistência do canal arterial reverso A tetralogia de Fallot (TF) e a persistência do canal arterial reverso (CAPr) são defeitos cardíacos congênitos comuns em cães e muito raros em gatos. A fisiopatologia de ambos os defeitos envolve desvio da direita para a esquerda e hipoxemia sistêmica. No caso do CAPr, há hipertensão pulmonar concomitante (HTP). A TF é causada por defeitos na formação conotruncal fetal, resultando em uma raiz aórtica dextroposicionada ou posicionada à direita, DSV, hipoplasia EP/pulmonar e hipertrofia ventricular direita concêntrica secundária. A presença de lesão pulmonar cria sobrecarga de pressão no ventrículo direito, que é suficiente para causar desvio dele para a esquerda através do DSV. A aorta dextroposicionada contribui ainda mais para a mistura de sangue não oxigenado na circulação sistêmica. O CAPr caracteriza-se por um grande ducto arterial cilíndrico e pelo desenvolvimento de HTP progressiva nos primeiros 6 a 8 meses de vida do animal. A HTP aumenta as pressões na artéria pulmonar o suficiente para ‘reverter’ o fluxo através do canal arterial e o desvio de sangue da circulação pulmonar para a sistêmica. Animais com TF ou CAPr, em geral, apresentam crescimento precário, intolerância à atividade, fraqueza, respiração ofegante e cianose. A ecocardiografia e a radiografia ajudam a estabelecer um diagnóstico definitivo e avaliar a gravidade da doença. As anormalidades à ECG comumente incluem desvio do eixo direito, anormalidades da condução interventricular, alterações do segmento ST e, ocasionalmente, arritmias ventriculares. O grau de hipoxemia pode ser avaliado pela oximetria de pulso ou pela gasometria arterial. A hipoxemia crônica estimula a produção de eritrócitos, e a policitemia é um componente importante da

fisiopatologia dos defeitos da direita para a esquerda. Os sinais clínicos em animais com TF ou CAPr, em geral, são decorrentes da hipoxemia e da policitemia, com a insuficiência cardíaca sendo muito rara em ambas as condições. Um hematócrito alto como de 70 a 75% não é raro, sendo comuns intolerância à atividade, disfunção de órgão e anormalidades da coagulação na vigência desses valores extremos. Usa-se a flebotomia periódica para manter o hematócrito em 65% ou menos. O equilíbrio entre as pressões dos lados direito e o esquerdo afeta a extensão do desvio, e intervenções que diminuem a resistência vascular sistêmica, como a administração de vasodilatadores arteriais, podem potencializar os sinais. São comuns sinais de fraqueza ou cianose durante a tentativa de fazer exercício, à medida que ocorre vasodilatação arterial sistêmica da musculatura esquelética do animal. Às vezes, prescrevem-se betabloqueadores não seletivos, como o propranolol, para os animais acometidos, na tentativa de limitar a quantidade de vasodilatação mediada pelos receptores β2-adrenérgicos durante atividade.

Considerações anestésicas Os objetivos da anestesia em pacientes com TF ou outros distúrbios com desvio reverso são manter a resistência vascular sistêmica e as pressões arteriais, minimizando, ao mesmo tempo, a ocorrência de alterações na RVP e nas pressões pulmonares. À medida que o desvio da direita para a esquerda aumenta, ocorre o mesmo com a dessaturação arterial de oxigênio. Pacientes com hipertensão pulmonar significativa podem ser sensíveis a alterações na pré-carga. Deve-se evitar a hipotensão secundária a hipovolemia ou vasodilatação, e, se ocorrer, tratá-la imediatamente. A medicação pré-anestésica com opioide intramuscular pode ser útil, porque o fato de o animal se debater e a estimulação simpática com a contenção podem aumentar o fluxo da direita para a esquerda. No entanto, tais fármacos devem ser usados com critério, pois a hipoventilação pode ocasionar hipercarbia e acidose respiratória, que podem aumentar a RVP e o desvio reverso. Nesses pacientes, podem ocorrer rapidamente hipoxemia e hipotensão. A pré-oxigenação antes da indução da anestesia é extremamente importante, não apenas para controlar a hipoxemia crônica subjacente que ocorre nesses animais, como também como um meio de diminuir a RVP. Outras manipulações que podem ajudar a diminuir a RVP incluem a redução do hematócrito para menos de 60% antes da anestesia e a hiperventilação com a manutenção de hipocarbia e alcalose respiratória relativas durante a anestesia. É preciso cuidado com a ventilação controlada, pois aumentos na pressão intratorácica com a ventilação mecânica ou o uso de pressão expiratória final positiva podem aumentar a RVP e a magnitude do fluxo do desvio da direita para a esquerda. A cetamina e o midazolam podem ser usados para indução, embora os pacientes com TF, em geral, tenham um componente dinâmico para a lesão estenótica, e aumentos na

frequência cardíaca possam exacerbar a obstrução do fluxo de saída pulmonar e reverter o desvio.23 Costuma-se usar uma técnica de indução com base em opioide com ou sem etomidato, ainda que devam ser evitados decréscimos significativos nas frequências cardíacas, em especial se estiver sendo usada fentanila ou remifentanila. As bolhas de todos os cateteres e entradas de injeção devem ser eliminadas, para evitar embolização sistêmica de ar. É preciso manter a resistência vascular sistêmica nesses pacientes, pois a hipotensão excessiva aumenta o fluxo da direita para a esquerda. A fenilefrina, um agonista do receptor adrenérgico α que causa vasoconstrição arterial e venosa, pode ser útil para reverter o desvio da direita para a esquerda durante a anestesia, embora possam ser empregados outros agentes pressores, como a dopamina.

■ Condições associadas à sobrecarga de pressão Estenose subaórtica e pulmonar A estenose subaórtica (ESA) e a estenose pulmonar (EP) são defeitos valvulares congênitos caninos que acarretam um aumento crônico na pressão sistólica no ventrículo esquerdo ou direito, respectivamente, com aumento resultante na tensão da parede e um aumento compensatório na espessura da parede ventricular ou hipertrofia concêntrica. O aumento na massa muscular ventricular e no trabalho miocárdico necessário para gerar aumento nas pressões sistólicas resulta em maior demanda para o fluxo sanguíneo coronariano e a liberação miocárdica de oxigênio. Na teoria, o risco resultante de isquemia é maior durante períodos de taquicardia e acarreta necrose miocárdica, fibrose de substituição e desenvolvimento de arritmias ventriculares. Em cães jovens com ESA grave, o risco de síncope ou morte súbita por arritmia é alto, enquanto o de insuficiência cardíaca congestiva costuma ser visto em cães muito mais velhos. A hipertrofia ventricular direita concêntrica, mesmo nos casos de EP grave, parece ser mais bem tolerada que a hipertrofia ventricular esquerda. A morte súbita em cães com EP grave é relativamente incomum, embora ocorram sinais clínicos, como intolerância à atividade ou síncope. Na experiência do autor, a insuficiência cardíaca congestiva, na forma de ascite, é mais comum em cães com EP. O manejo clínico crônico da ESA ou da EP, em geral, envolve betabloqueadores para reduzir a frequência cardíaca e a demanda miocárdica de oxigênio. A ecocardiografia é uma modalidade extremamente útil para avaliar a gravidade da lesão da ESA ou da EP e a extensão da hipertrofia concêntrica. O monitoramento com ECG e com ECG ambulatorial por 24 h (Holter) é útil para avaliar o ritmo cardíaco e detectar elevação ou depressão do segmento ST, sugestiva de isquemia miocárdica. Tanto na ESA como na EP, devem ser usados vasodilatadores arteriais com cautela, porque uma queda na pressão arterial aumenta o gradiente de pressão através da valva estenosada e pode ocasionar aumento do

trabalho miocárdico, hipotensão grave e queda na pressão de perfusão coronariana.

Considerações anestésicas Pacientes com ESA ou EP geralmente têm baixa complacência ventricular, sendo de importância crítica manter a pré-carga adequada nesses animais. A manutenção de um retorno venoso adequado assegurando um volume intravascular completo para encher a câmara ventricular não complacente ajudará a otimizar o enchimento diastólico e o débito cardíaco, embora se deva evitar sobrecarga de volume. Além disso, esses pacientes são dependentes da manutenção de um ritmo sinusal normal e do ‘impulso’ atrial para otimizar o enchimento ventricular. É preciso evitar taquicardia para limitar o déficit miocárdico de oxigênio. A pós-carga está elevada, mas relativamente fixa por causa da estenose no nível da valva. A vasodilatação e reduções no tônus vascular, em geral, são insuficientes para aliviar a pós-carga fixa de uma valva estenosada, mas, em vez disso, diminuem a pré-carga e a pressão de perfusão coronariana. Ao se tratar um paciente com ESA ou EP, é importante minimizar a hipotensão e tratála agressivamente à medida que se desenvolva. A correção do volume é a primeira etapa no tratamento da hipotensão nesses pacientes, seguida pelo uso de um vasoconstritor como a epinefrina (Tabela 26.4). A contratilidade costuma ser mantida, embora os agentes inotrópicos possam ser úteis em pacientes com ESA ou EP graves mais disfunção ventricular. A dopamina pode ser preferível à dobutamina, porque a primeira vai manter ou aumentar a RVS e pode ser mais efetiva para tratar a hipotensão associada a anestésicos inalatórios,55,56 enquanto a dobutamina mantém ou diminui a RVS, de modo que a pressão arterial média muda pouco, apesar de um aumento na contratilidade cardíaca.57–59 Em alguns pacientes com ESA ou EP, a obstrução também tem um componente dinâmico, que pode ser acentuado por reduções no tamanho ventricular, como ocorre com aumentos na frequência ou na contratilidade cardíaca ou diminuições na pré ou na pós-carga. Em pacientes com EP, aumentos na RVP podem ser minimizados mantendo-se uma FIO2 alta e uma PaCO2 baixa. A medicação pré-anestésica de pacientes com ESA ou EP pode diminuir a ansiedade do animal e o estresse durante sua manipulação, e ajudar a prevenir aumentos desnecessários na frequência cardíaca. Contudo, é preciso cuidado para assegurar um retorno venoso adequado (pré-carga) e um enchimento diastólico rápido. O ideal é que os pacientes devam receber oxigênio suplementar após a administração de qualquer medicação. Se for necessária sedação pré-operatória, os opioides, em geral, são os fármacos de escolha, porque causam depressão cardiovascular mínima, embora a hipoventilação possa ser uma preocupação naqueles com EP. Deve-se instituir o tratamento com antiarrítmicos para

manter um ritmo sinusal normal, conforme necessário.60

■ Doenças associadas à disfunção diastólica Fisiopatologia da miocardiopatia hipertrófica e da miocardiopatia restritiva A miocardiopatia hipertrófica (MCH) e a miocardiopatia restritiva (MCR) são miocardiopatias comuns em gatos, porém extremamente raras em cães. Ambas caracterizam-se por disfunção diastólica, ao contrário da MCD, que é primariamente uma doença decorrente de disfunção sistólica. A fisiopatologia da MCH envolve hipertrofia concêntrica idiopática do ventrículo esquerdo, aumento da demanda miocárdica de oxigênio, isquemia miocárdica e desenvolvimento de obstrução do trato de saída ventricular esquerdo (TSVE), devida ao movimento sistólico anterior (MSA) dos folhetos da valva mitral. A fisiopatologia da MCR envolve fibrose idiopática do músculo ventricular esquerdo, com resultante disfunção diastólica, na ausência de hipertrofia concêntrica apreciável. Portanto, embora o aspecto macroscópico do ventrículo esquerdo seja diferente na MCH e na MCR, a fisiopatologia subjacente que envolve o desempenho diastólico é similar. A disfunção diastólica resulta na impossibilidade do ventrículo de relaxar como deveria durante a diástole. O ventrículo esquerdo ‘rígido’ requer aumento da pressão para o enchimento apropriado e o aumento resultante na pressão atrial esquerda, mas a sobrecarga de volume predispõe à insuficiência cardíaca congestiva. Em gatos, a insuficiência cardíaca congestiva esquerda pode manifestar-se como edema pulmonar, efusão pleural ou ambos. Arritmias ventriculares decorrentes de isquemia suspeita e também o tromboembolismo sistêmico são comuns em gatos com MCH ou MCR. Em qualquer gato que tenha concentrações ventriculares prematuras inexplicadas durante o período pré-anestésico, é prudente fazer uma avaliação quanto à presença de miocardiopatia. A presença de MSA em casos de MCH é multifatorial e entendida incompletamente. Os mecanismos prováveis para o desenvolvimento de MSA incluem morfologia anormal de folheto mitral, hipertrofia do septo interventricular, desalinhamento do músculo papilar e do aparelho das cordoalhas tendíneas em decorrência de hipertrofia concêntrica, além de aumento nas taxas de fluxo através do TSVE estreitado, que ‘puxa’ os folhetos mitrais para o trato de saída. A MCH com obstrução do TSVE devida a MSA, em geral, é designada miocardiopatia hipertrófica obstrutiva (MCHO), que corresponde até a 50% de todos os casos de MCH. A presença de obstrução do TSVE é similar a animais com estenose subaórtica. A sobrecarga resultante na pressão ventricular esquerda estimula ainda mais a hipertrofia concêntrica e a maior demanda miocárdica de oxigênio. O tratamento da MCHO envolve reduções na contratilidade ventricular, na frequência cardíaca e no gradiente de pressão do trato de saída, que reduzem o MSA. Os agentes comumente usados

incluem betabloqueadores do canal de cálcio como o diltiazém. Hipertensão sistêmica secundária a doença renal crônica e hipertireoidismo são comorbidades comuns em gatos geriátricos com MCH ou MCHO. Vasodilatadores arteriais muito agressivos devem ser evitados, pois uma redução na resistência vascular sistêmica aumentará o gradiente de pressão através do TSVE, potencializará o MSA e aumentará a demanda miocárdica de oxigênio. O tratamento crônico da MCH, da MCHO e da MCR inclui a redução na précarga com o uso de diuréticos, o controle da frequência cardíaca com betabloqueadores ou bloqueadores do canal de cálcio e a antitrombose com ácido acetilsalicílico ou clopidogrel. Em geral, também são prescritos iECAs, mas devem ser usados com cautela, por causa do seu potencial de provocar vasodilatação arterial.

Considerações anestésicas A anestesia em gatos com MCH é voltada para otimizar o enchimento diastólico, mantendo frequências cardíacas relativamente baixas e evitando-se fármacos que possam aumentar a contratilidade cardíaca. A otimização da pré-carga e do enchimento ventricular pode ser útil. A redução da pós-carga pode agravar a obstrução, e quedas acentuadas na pressão arterial são mal toleradas. Diminuições na pressão aórtica contribuem para a perfusão coronariana inadequada e a isquemia miocárdica potencial. Em contraste, o aumento da pós-carga pode diminuir o MSA e a obstrução do trato de saída. Um estudo revelou resolução completa da obstrução dinâmica do fluxo de saída em gatos com MCH ou MSA que receberam medetomidina.61 Esta última, um agonista do receptor adrenérgico α2, causa vasoconstrição e aumento da RVS, ambos potencialmente desejáveis na vigência de MCH e obstrução do TSVE. Todavia, a função sistólica deve ser avaliada com cuidado antes da administração de agonistas do receptor adrenérgico α2 e, por fim, fármacos que possam ser titulados minuciosamente (p. ex., fenilefrina) podem ser a melhor escolha durante o período anestésico.62 A atividade inotrópica positiva pode aumentar a obstrução dinâmica do fluxo do trato de saída, além do consumo miocárdico de oxigênio. Cetamina ou tiletamina podem causar liberação descontrolada de catecolamina, taquicardia e aumento da contratilidade miocárdica e do consumo de oxigênio.35,63–65 Esses agentes também podem predispor a arritmias, razão pela qual são preferidos outros anestésicos. Doses baixas de um opioide como a fentanila, a metadona ou a oximorfona podem ser administradas como parte da técnica de indução. Quando se dispõe de um acesso venoso, em geral usa-se a indução com etomidato, que tem um efeito mínimo sobre a contratilidade cardiovascular, e um tranquilizante benzodiazepínico como o diazepam ou o midazolam. Qualquer que seja o protocolo anestésico, deve-se esperar diminuição da resistência vascular sistêmica em decorrência de uma queda na atividade do sistema nervoso simpático que acompanha a

perda da consciência e considerar as medidas contingenciais apropriadas antes da indução. Ocorre hipotensão com relativa frequência em gatos sadios anestesiados com agentes inalatórios. O suporte pressórico para gatos com MCH anestesiados, em geral, envolve o uso de vasopressores como a fenilefrina, um agonista do receptor adrenérgico α1 com pouca ou nenhuma atividade β. A fenilefrina aumenta a RVS, com pouco efeito direito sobre o miocárdio. Wiese et al.62 compararam os efeitos cardiorrespiratórios da fenilefrina e da dopamina em gatos com MCH sem obstrução do TSVE anestesiados com isofluorano. Ambos os agentes aumentaram a pressão sistêmica e arterial, embora apenas a dopamina tenha aumentado o índice cardíaco. Os níveis plasmáticos de cTn1 foram medidos como um marcador de lesão cardíaca e aumento na resposta à hipotensão, mas não foram diferentes entre os dois grupos. A fenilefrina pode ainda ser preferida nos casos com obstrução do TSVE. Efusão pericárdica O pericárdio encerra o coração na bainha de tecido fibroelástico e o espaço entre a superfície epicárdica do coração, e o pericárdio parietal normalmente contém um pequeno volume de líquido, que tem a finalidade de lubrificar o coração e proporcionar, assim, um ambiente sem fricção. Efusão pericárdica é o acúmulo anormal de grandes volumes de líquido no espaço pericárdico, que exerce forças compressivas externas sobre o coração. Usa-se a expressão tamponamento cardíaco para descrever situações em que o volume da efusão pericárdica é suficiente para diminuir bastante o enchimento cardíaco, ocasionando baixo débito cardíaco. No caso de efusão pericárdica, a disfunção diastólica que ocorre não se deve a uma anormalidade intrínseca do miocárdio, e sim à compressão externa e à restrição do enchimento diastólico do coração. As causas comuns de efusão pericárdica incluem neoplasia cardíaca e pericardite idiopática no cão, e insuficiência cardíaca congestiva e peritonite infecciosa felina no gato. Menos comuns são a pericardite infecciosa ou a pericardite urêmica. Os achados clínicos comuns em animais com tamponamento cardíaco incluem bulhas cardíacas abafadas, dispneia, fraqueza, colapso, palidez, hipotensão, taquicardia e insuficiência cardíaca direita (tipicamente ascite ou quilotórax). O ECG e a radiografia torácica podem revelar complexos QRS de baixa amplitude e alternância elétrica e uma silhueta cardíaca globoide, respectivamente. A ecocardiografia é particularmente útil para confirmar a presença de efusão pericárdica e detectar massas na base do coração. O hemangiossarcoma do átrio direito ou da aurícula ou o quemodectoma associado à raiz aórtica são dois tumores comuns associados à efusão pericárdica. O tratamento envolve pericardiocentese, que fornece alívio imediato e melhora no débito cardíaco. Animais com efusão pericárdica são muito sensíveis a alterações na pré-

carga e, por isso, a diurese não deve ser instituída de rotina, a menos que o animal tenha sobrecarga de volume, pois isso pode agravar o tamponamento, reduzir ainda mais o débito cardíaco e piorar os sinais clínicos. Nos casos com ascite grave, pode-se fazer a abdominocentese para melhorar a respiração e o conforto. Em geral, a efusão pericárdica crônica requer pericardiectomia cirúrgica, mas a decisão quanto a isso é influenciada pela etiologia da efusão.

Considerações anestésicas Na presença de tamponamento, as pressões intrapericárdicas determinam o retorno venoso e o ventrículo pode ficar pequeno e com subcarga, apesar de um aumento compensatório no enchimento ventricular direito e esquerdo para manter o enchimento cardíaco. O volume sistólico fica limitado e o débito cardíaco torna-se dependente de mecanismos compensatórios, inclusive a vasoconstrição periférica, para manter o retorno venoso, taquicardia e aumento da contratilidade. O objetivo da anestesia é selecionar agentes que preservem esses mecanismos compensatórios e mantenham o fluxo anterógrado. Devem ser administrados líquidos intravenosos antes da indução anestésica, para otimizar a pré-carga e manter as pressões de enchimento cardíaco. Bolus pequenos (2 a 5 mℓ/kg) de cristaloide ou coloide à indução, administrados para otimizar a pré-carga, podem controlar a venodilatação associada ao anestésico, ao mesmo tempo que evitam o agravamento da efusão pericárdica que pode ocorrer com tratamento prolongado com líquido. Fármacos que causam depressão miocárdica, bradicardia ou vasodilatação devem ser evitados. A cetamina, por causa dos seus efeitos simpaticomiméticos, pode ser útil para preservar a frequência cardíaca e a pressão arterial.63–65 No entanto, doses maiores podem induzir hipotensão nos animais que já estejam sob estresse simpático máximo ou criticamente enfermos.66,67 Pode-se usar uma técnica com opioide, embora possam ser necessários anticolinérgicos para preservar a frequência cardíaca. Qualquer que seja a técnica anestésica, em geral é benéfico usar uma abordagem multimodal com monitoramento cuidadoso e titulação do efeito do fármaco. Deve-se evitar qualquer manipulação que possa diminuir o retorno venoso. A ventilação controlada por pressão positiva com grandes volumes correntes finais pode diminuir de maneira significativa a pré-carga e o débito cardíaco. Como a toracotomia para pericardectomia geralmente é o tratamento cirúrgico para efusão pericárdica, deve-se usar ventilação com pressão positiva empregando volumes menores (pressão inspiratória máxima inferior) e uma frequência respiratória mais alta. A pericardiocentese pode estar indicada antes da indução anestésica em alguns animais com comprometimento hemodinâmico grave.

Doenças associadas a arritmias ■ Doenças arritmogênicas que resultam em taquicardia As taquicardias comuns e cardiopatias associadas incluem taquicardia ventricular (TV) [vista na miocardiopatia ventricular direita arritmogênica (MVDA) de Boxers, na miocardiopatia felina, na MCD e na ESA], FA (ver em DMVM e MCD), taquicardia supraventricular (TSV) (vista na MCD e na DMVM) e TSV mediada por via acessória em Labradores Retrievers. Comum a todas as taquicardias patológicas é o aumento na demanda miocárdica de oxigênio e a diminuição progressiva no tempo de enchimento diastólico. A frequência cardíaca exata em que a taquicardia vai de benéfica a prejudicial depende de muitos fatores, incluindo sua origem (i.e., sinusal versus ectópica), a espécie, a raça (relacionada primariamente com o tamanho do corpo), a função sistólica e diastólica subjacente do coração e a presença de hipertrofia excêntrica ou concêntrica. Em geral, frequências cardíacas ectópicas > 250 bpm em gatos e cães de pequeno porte e > 200 bpm em cães de grande porte são consideradas suficientemente taquicárdicas para exigir intervenção. Os achados clínicos associados à taquicardia incluem sinais de diminuição do débito cardíaco, como fraqueza, síncope, palidez, desorientação, hipotermia ou extremidades frias. A pressão arterial pode estar normal durante taquicardia e o débito cardíaco pode estar reduzido, mas isso se deve à constrição arteriolar compensatória. A anestesia com dilatação arteriolar subsequente pode resultar em hipotensão profunda, mesmo que a frequência cardíaca não diminua de maneira significativa. As taquicardias, em especial a TV, podem predispor a fibrilação ventricular e morte súbita. O tratamento é centrado em qualquer doença cardíaca subjacente ou insuficiência cardíaca e na administração de agentes antiarrítmicos específicos. Os agentes de uso comum para o tratamento agudo de arritmias ventriculares durante anestesia incluem a lidocaína, a procainamida e betabloqueadores parenterais de ação curta, como o esmolol. O tratamento agudo do FA ou da TSV inclui esmolol parenteral ou bloqueadores do canal de cálcio como o diltiazém. Para o tratamento crônico de arritmias ventriculares, geralmente emprega-se o sotalol ou a mexiletina ou ainda, menos comumente, a amiodarona, e o tratamento crônico do FA ou de arritmias supraventriculares é feito com digoxina oral, diltiazém e/ou betabloqueadores e, ocasionalmente, sotalol. Em decorrência do potencial de efeitos colaterais, em gatos é raro usar-se lidocaína ou procainamida. A eletrocardioversão de taquiarritmias pode ser apropriada em alguns pacientes e costuma ser realizada logo após a indução anestésica.

■ Doenças arritmogênicas que resultam em bradicardia As bradicardias comuns incluem bloqueio nodal AV de segundo e terceiro (completo)

graus, síndrome do seio sinusal (SSS) e parada atrial. A bradicardia é relativamente incomum em gatos, mas ocorre. Todos os casos de bradicardia detectados à ausculta durante o exame físico pré-anestésico devem ser avaliados adicionalmente com um ECG e outros exames diagnósticos, conforme indicado. A SSS é vista comumente em Schnauzers Miniatura, enquanto o bloqueio nodal AV costuma ser detectado em cães de raças de grande porte, como Labrador Retriever. A bradicardia pode ser detectada associada à cardiopatia estrutural subjacente, mas, em geral, ocorre isoladamente, e acredita-se que represente doença primária do sistema cardíaco de condução. Degeneração idiopática do nó sinusal, do nó AV e de outro tecido de condução costuma ser possível. Em alguns casos, suspeita-se de lesão inflamatória aguda do coração (i.e., miocardite). Pode ocorrer bradicardia secundária a anormalidades eletrolíticas como hiperpotassemia grave em casos de doença renal, hiperadrenocorticismo fora de controle, lesão de tecido mole e outras condições. A frequência cardíaca exata em que uma bradicardia passa a ter importância clínica depende da função cardíaca subjacente, da espécie e da raça do animal. Períodos de assistolia > 5 a 8 s costumam ser suficientes para causar fraqueza ou síncope. Bradicardia crônica com frequências cardíacas < 50 bpm geralmente está associada a intolerância à atividade, letargia, fraqueza ou síncope em cães. É preciso lembrar que as frequências cardíacas em repouso durante o sono podem ser relativamente baixas ou normais durante atividade normal. Entretanto, a frequência durante o sono pode ser um indicador melhor da frequência cardíaca aceitável do paciente durante anestesia. A qualquer momento que a pressão arterial fica dependente da frequência cardíaca durante anestesia, deve-se considerar uma intervenção para aumentar a frequência cardíaca, porque ela representa um ponto em que o volume sistólico não pode aumentar mais para manter o débito cardíaco. Em raras circunstâncias, ocorre insuficiência cardíaca congestiva decorrente de frequências excessivamente lentas. Na experiência do autor, a bradicardia sintomática crônica é rara em gatos, pois a maioria desses animais mantém frequências de escape ou próximas de 100 bpm, que são suficientes para manter uma qualidade de vida aceitável. O tratamento da bradicardia inclui a correção das anormalidades eletrolíticas subjacentes e suporte da frequência cardíaca mediante a administração parenteral ou oral de agentes parassimpatolíticos (p. ex., atropina, glicopirrolato, brometo de probantina) ou simpaticomiméticos (p. ex., isoproterenol, terbutalina, teofilina). Os exames diagnósticos tidos como o padrão, feitos em animais com bradicardia, incluem hematologia, ECG, ecocardiografia e radiografia. É comum determinar-se a influência do tônus vagal nativo sobre a bradicardia pelo ECG antes e após a administração de atropina, pressupondo que se possa diferenciar doença inicial ou leve do sistema de condução (como bloqueio AV de segundo grau intermitente assintomático) de tônus vagal alto em repouso ante uma resposta

anormal à atropina. Raramente, casos sintomáticos de bloqueio AV ou SSS demonstram uma resposta normal à atropina, indicando a presença de doença estrutural do sistema de condução. Nos casos em que a resposta ao tratamento clínico é fraca, pode-se colocar um marcapasso artificial. Considera-se a implantação de um marca-passo permanente transvenoso ou epicárdico em animais com bradicardia suficiente para causar sinais clínicos. Também se pode colocar um marca-passo artificial temporário transvenoso ou transtorácico durante o agravamento temporário de bradicardia relativamente benigna que pode ocorrer, por exemplo, durante anestesia. Considerações anestésicas O objetivo da anestesia no paciente com um distúrbio conhecido do ritmo cardíaco é evitar maior deterioração do ritmo. As arritmias devem ser avaliadas antes da anestesia, tanto em termos de sua estabilidade elétrica (ou ausência dela) como de suas consequências hemodinâmicas. Quaisquer anormalidades eletrolíticas devem ser corrigidas antes da indução. O estresse durante a contenção do animal deve ser minimizado o máximo possível. Doses muito baixas de acepromazina em combinação com um opioide podem ser úteis como medicação pré-anestésica em alguns animais com arritmias ventriculares. No caso de taquicardias de origem ventricular, fármacos como o propofol, a alfaxalona ou o etomidato, que exercem pouco ou nenhum efeito sobre a condução cardíaca, podem ser preferíveis para a indução. Também se pode usar um opioide e/ou benzodiazepínico como parte da técnica de indução. Pode-se administrar uma dose única de lidocaína antes da indução, para determinar a eficácia desse agente na supressão da arritmia ventricular e, em alguns casos, prosseguir a TIC por todo o procedimento, dependendo da gravidade da arritmia. Como uma alternativa, também se pode administrar procainamida por via intravenosa, que tem ação mais duradoura que a lidocaína. Fármacos como a cetamina, que podem causar liberação de catecolamina e aumento da frequência cardíaca, geralmente são evitados. Pode ser difícil diferenciar a TSV da TV. Nos pacientes com TSV conhecida, os fármacos vagomiméticos, como a fentanila ou um análogo dela como o remifentanila, podem ser úteis, pois podem causar uma diminuição acentuada na frequência sinusal mediada pelo nervo vago.68–70 Nesses pacientes, em geral, são evitados fármacos que aumentem a condução nodal AV (p. ex., anticolinérgicos). No caso de TSV grave, pode-se administrar esmolol por via intravenosa como dose de ataque e prosseguir com a TIC, embora o bloqueio do receptor β também possa acarretar efeitos inotrópicos negativos. No paciente com SSS ou bloqueio cardíaco, o objetivo da anestesia é prevenir o agravamento da bradicardia (p. ex., assistolia) com a administração de um fármaco. Uma

dose relativamente alta de atropina costuma ser administrada antes da anestesia, para evitar as consequências de um aumento súbito no tônus vagal. Cetamina/benzodiazepínico, propofol e etomidato podem ser usados para indução. Fármacos conhecidos como causadores de bradiarritmias, como os agonistas do receptor adrenérgico α2, devem ser evitados. Pode-se colocar um marca-passo artificial temporário transvenoso ou transtorácico antes da indução anestésica ou usar almofadas, conforme necessário. As frequências cardíacas podem diminuir bastante após a indução, com a queda relativa no tônus simpático. Se não tiver sido colocado um marca-passo temporário, infusões de dobutamina, dopamina ou isoproterenol71 devem estar à disposição antes da indução anestésica.

Hipotensão A pressão arterial sistêmica é dependente do débito cardíaco e da RVS, devendo ser mantida acima do nível mínimo necessário para manter a perfusão cerebral, coronariana e renal. Pressões arteriais médias inferiores a 65 a 70 mmHg, em geral, são consideradas inadequadas para manter um fluxo sanguíneo ótimo para os tecidos. Em pacientes com hipovolemia ou instabilidade hemodinâmica, os mecanismos neurais e neuro-hormonais podem aumentar a RVS e minimizar alterações aparentes na pressão arterial, enquanto diminuem o fluxo sanguíneo e a liberação de oxigênio para os tecidos. Pacientes que estejam compensando pelo aumento da RVS podem ter uma queda precipitada na pressão arterial após a indução anestésica. Determina-se o débito cardíaco pelo volume sistólico e pela frequência cardíaca, embora o volume sistólico também possa ser afetado por alterações na resistência vascular. Podem ser vistas diminuições no volume sistólico, secundárias à redução do retorno venoso (pré-carga diminuída), geralmente causadas por déficits subjacentes de líquido ou vasodilatação periférica (RVS diminuída), ocasionando um déficit relativo de líquido. Além disso, o volume sistólico pode estar diminuído, em decorrência de menor contratilidade miocárdica, de aumento da RVS (aumento da pós-carga) e/ou de arritmias cardíacas. A indução anestésica e as diminuições subsequentes na estimulação simpática podem acarretar reduções na frequência cardíaca, na pré-carga e na contratilidade cardíaca, todas capazes de afetar o débito cardíaco. Similarmente, a administração de opioides vagomiméticos (p. ex., fentanila) pode reduzir a frequência cardíaca e afetar a pressão arterial, embora eles costumem ser recomendados como anestésicos adjuvantes em pacientes com comprometimento cardiovascular, para reduzir a necessidade de anestésicos inalatórios. A duração da hipotensão é importante para determinar o prognóstico clínico final tanto

em pacientes cardíacos como não cardíacos,72 razão pela qual o reconhecimento precoce é importante. Os métodos para reconhecer a existência de hipotensão podem incluir o monitoramento de alterações na frequência e ritmo cardíacos, medindo-se quedas na pressão arterial abaixo de 60 a 65 mmHg e/ou avaliando-se alterações na perfusão tecidual. A taquicardia, em geral, é considerada uma resposta compensatória importante à perda de líquido/sangue e hipovolemia, embora também possam ser vistos aumentos na frequência cardíaca decorrentes de anestesia inadequada, hipercarbia, hipoxemia ou administração de fármacos (p. ex., anticolinérgicos). Além disso, o uso de fármacos vagomiméticos como a fentanila pode mascarar o aumento compensatório na frequência cardíaca em resposta a alterações na pré-carga. A pressão arterial pode ser medida usando-se técnicas não invasivas, incluindo ondas ultrassonográficas Doppler para o fluxo e dispositivos oscilométricos, ou por meio de medições diretas da pressão arterial. Em geral, usa-se a pressão venosa central (PVC) como um indicador do estado volumétrico no paciente. Contudo, uma revisão da literatura revelou uma relação muito fraca entre a PVC e o volume sanguíneo e também a incapacidade de uma alteração na PVC predizer a resposta hemodinâmica a um desafio com líquido.73 Alterações nos parâmetros relacionados com a oxigenação tecidual, como o lactato, o pH sanguíneo e déficit de base, bem como a saturação venosa central de oxigênio, estão sendo usadas com frequência cada vez maior para a avaliação da adequação da reanimação hídrica e inotrópica e/ou suporte pressórico. Em qualquer animal, deve-se identificar a causa subjacente de hipotensão e corrigi-la o mais rapidamente possível. Hipotensão é comum durante anestesia, por causa da reposição de líquido pré-operatória inadequada, falha na manutenção com perda intraoperatória de líquido e/ou sangue, e efeitos dependentes da dose de anestésicos sobre o débito cardíaco e a RVS. A administração rápida de grandes volumes de líquido cristaloide (p. ex., PlasmaLyte e solução de lactato de Ringer) tem um efeito mínimo no sentido de melhorar a pressão arterial durante hipotensão induzida pelo isofluorano em cães normovolêmicos, a menos que o plano anestésico também seja mais leve.74,75 Embora o débito cardíaco e o volume sistólico melhorem, não há alteração significativa na pressão arterial, em decorrência de decréscimos na RVS. A administração de coloide usando-se volumes relativamente grandes de hetamido (HES; amido hidroxietílico) ou dextrana 7074,76 pode aumentar o índice cardíaco e a pressão arterial em animais anestesiados. O processo mórbido subjacente, a avaliação de perdas em andamento e alterações no estado volumétrico, bem como o monitoramento estrito de alterações na PVC, nos sólidos totais e determinantes da oxigenação tecidual, todos devem ser usados para determinar a taxa e o tipo de líquidos administrados ao paciente. Taxas mais altas de líquido, em geral, são necessárias em pacientes emergentes com

déficits preexistentes ou perdas sanguíneas em andamento. Pressões sistólicas baixas (< 40 mmHg), alterações associadas à alta pressão arterial ou dificuldade para tolerar a ventilação com pressão positiva podem alertar o clínico quanto à presença de volume inadequado. Em alguns casos, pode ser preciso alterar a manutenção da anestesia de uma técnica inalatória para uma injetável, que causa menos depressão miocárdica e vasodilatação que a maioria dos inalatórios.

■ Suporte farmacológico Pode ser necessário se a hipotensão for grave e não responder à terapia hídrica ou às alterações na profundidade anestésica. Além disso, pacientes com doença cardiovascular podem não tolerar a administração de líquido. Os fármacos são selecionados para suporte cardiovascular com base na condição do paciente e no distúrbio hemodinâmico subjacente, na resposta fisiológica desejada, na farmacologia dos fármacos disponíveis e na experiência e na opinião clínica. Os principais efeitos incluem alterações na frequência cardíaca (cronotropismo), na contratilidade (inotropismo), na velocidade de condução miocárdica (dromotropismo), no ritmo e na vasodilatação ou vasoconstrição periféricas, o que influencia a pré-carga e a pós-carga. Por muitos anos, a escolha do agente era feita dependendo primariamente dos seus efeitos sobre a função miocárdica e a resistência vascular como determinantes da pressão arterial. Mais recentemente, também se voltou a atenção para as alterações na capacitância venosa e na pré-carga, bem como na distribuição do fluxo sanguíneo para os vários órgãos. Alterações no lactato sanguíneo, no pH e no déficit de base, em geral, são usadas clinicamente para ajudar a determinar que alterações estão ocorrendo no nível tecidual. Os fármacos usados para tratar a hipotensão foram comentados em outros capítulos.

Choque A prioridade terapêutica em pacientes com choque circulatório é a liberação de oxigênio para os tecidos. As sequelas da redução do débito cardíaco, da resistência vascular sistêmica e/ou do conteúdo sanguíneo de oxigênio incluem hipoxia tecidual, inflamação sistêmica e disfunção de órgãos. Para atingir essa meta, pode haver necessidade de reanimação com líquido, incluindo transfusão de sangue, e uso de vasopressores (Tabela 26.4), embora a estratégia ideal, incluindo a escolha do líquido para reanimação e os objetivos hemodinâmicos, ainda seja controversa tanto na literatura médica humana como veterinária. A seleção de índices-alvo para monitorar a resposta hemodinâmica ao tratamento mudou nos últimos anos. É relativamente fácil medir a pressão arterial e, em geral, ela é

usada como uma medição primária para a avaliação da gravidade do choque circulatório e da adequação da reanimação. A pressão arterial também é um critério importante, usado para distinguir síndrome séptica de choque séptico.77 Todavia, o monitoramento da pressão arterial tem sérias limitações, pois pressupõe que alterações nos valores da pressão arterial tenham relação direta com a alteração no fluxo sanguíneo (i.e., a RVS está inalterada). Nos estágios iniciais de hemorragia, mecanismos neuro-hormonais podem manter a pressão arterial quase normal (à custa da perfusão em tecidos selecionados) mediante o aumento da RVS. Shoemaker et al. foram os primeiros a introduzir o conceito de reanimação voltada para o objetivo na década de 1980, após notarem que os sobreviventes de procedimentos cirúrgicos de alto risco corriam um risco cardíaco maior e a liberação de oxigênio ocorria de acordo com o aumento da demanda, em comparação com os que não sobreviviam.78,79 Alterações na pressão arterial média foram decorrentes daquelas no índice cardíaco, e quando hipovolemia e baixo fluxo para os tecidos foram de magnitude suficiente para causar hipotensão grave, a condição circulatória em deterioração estava bem avançada.80 O tratamento precoce voltado para o objetivo, envolvendo a manipulação da pré-carga cardíaca, da pós-carga e a contratilidade para contrabalançar a liberação de oxigênio com sua demanda, foi utilizado em pacientes humanos com a síndrome da resposta inflamatória sistêmica como um meio de alentecer a progressão de sepse grave e choque séptico. Essa síndrome é um contínuo, com anormalidades circulatórias que incluem depleção de volume intravascular, vasodilatação periférica, depressão miocárdica e aumento das necessidades metabólicas teciduais causando um desequilíbrio entre a liberação sistêmica e a demanda de oxigênio. Alterações nos sinais vitais, na pressão venosa central e no débito urinário provaram ser indicadores fracos da reanimação hemodinâmica efetiva e não detectaram hipoxia tecidual. Mais recentemente, os pesquisadores escolheram alvos alternativos para monitorar o sucesso do tratamento,81 incluindo valores normalizados para a saturação venosa mista de oxigênio (como um substituto para o índice cardíaco como um alvo da terapia hemodinâmica), a concentração arterial de lactato, o déficit de base e o pH. Rivers et al.81 descobriram que, durante as primeiras 6 h de tratamento, não houve diferença significativa na frequência cardíaca média ou na pressão venosa central entre o tratamento precoce voltado para o objetivo e o tratamento de grupo padrão. A pressão arterial média foi mantida ≥ 65 mmHg em ambos os grupos com o uso de vasopressores, e a PVC foi mantida ≥ 8 mmHg com o uso de líquidos cristaloides. No entanto, pacientes nos grupos iniciais voltados para o objetivo receberam primeiro eritrócitos para manter um hematócrito ≥ 30% se a saturação venosa central de oxigênio (gás venoso da linha jugular central) caísse abaixo de 70% e, em seguida, receberam dobutamina para melhorar a contratilidade cardíaca se a saturação VA central de oxigênio permanecesse abaixo de 70%.

A escolha dos índices-alvo alternativos nos estágios iniciais do tratamento melhorou os índices de sobrevivência como a base para as recomendações feitas após a Campanha para Sobrevivência de Sepse em 2004 e 2008.82,83 As recomendações também incluíram dopamina ou norepinefrina como um vasopressor de primeira linha, embora também se possa usar vasopressina ou fenilefrina. Em termos do tipo e da quantidade de líquido usado para a reanimação, não foi possível encontrar uma prova definitiva na literatura recente que confirmasse a superioridade de um tipo de líquido com relação a outro para a reanimação hídrica no paciente com traumatismo agudo ou sepse.84–86 Uma vantagem importante que os coloides têm sobre os cristaloides é que eles podem induzir uma expansão plasmática mais rápida e persistente, em decorrência de um aumento maior na pressão coloidoncótica. Além disso, a reanimação com grandes volumes de cristaloides foi associada a edema tecidual e acidose metabólica hiperclorêmica. Entretanto, os cristaloides são mais caros e os achados de pesquisa não mostraram benefício na sobrevivência quando são administrados coloides. Em uma revisão de pacientes humanos criticamente enfermos87 com traumatismo ou queimaduras ou após cirurgia, não se encontrou evidência de que a reanimação com coloides diminuísse o risco de morte, em comparação com a reanimação com cristaloides. Em vez disso, há relatos frequentes de problemas na coagulação, um aumento no sangramento clínico e lesão renal aguda com alguns tipos de HES usados em seres humanos.88,89 Além disso, relatos recentes na literatura médica humana, incluindo o estudo VISEP (Efficacy of Volume Substitution and Insulin Therapy in Severe Sepsis),90 revelaram que pacientes que receberam HES para reanimação tiveram taxas de sobrevivência mais baixas e disfunção renal mais pronunciada que os reanimados com cristaloides. Perner et al.91 mostraram maior risco de morte (no 90o dia) em pacientes com sepse grave que receberam reanimação com líquido com HES a 6% em acetato de Ringer, em comparação com o paciente reanimado apenas com acetato de Ringer (ensaio 6S). A disfunção renal também foi mais pronunciada no grupo que recebeu HES. Não se sabe como esses achados se relacionam com a reanimação no paciente com choque séptico ou sangramento no período pós-operatório agudo, mas recentemente o HES foi retirado do mercado para seres humanos na Europa e atualmente está em revisão nos EUA. Outros coloides podem ser usados para reanimação. Sangue total, eritrócitos e plasma fresco congelado podem ser usados para expandir o volume intravascular e dar suporte coloidal. Além disso, a administração de sangue total ou eritrócitos pode restaurar a capacidade de transporte de oxigênio em pacientes que estejam com sangramento ou anêmicos por outras razões. O risco de administrar eritrócitos inclui reação à transfusão, e muitos pacientes são submetidos à tipagem ou prova cruzada antes da transfusão. Também tem sido usada albumina sérica humana (HSA, 25%) em pacientes caninos, com sucesso

bastante variável. Em pacientes humanos, o estudo SAFE não encontrou diferença nas taxas globais de mortalidade em pacientes de UTI tratados com albumina e solução fisiológica.92 Todavia, em um subgrupo de pacientes com lesão cerebral, o risco relativo foi mais alto naqueles do grupo tratado com albumina que no tratado com solução fisiológica. Um dos primeiros relatos retrospectivos sobre a administração de HSA em pacientes caninos e felinos criticamente enfermos93 revelou que a administração de uma média de 5 mℓ/kg aumentou os níveis de albumina e a pressão arterial sistêmica. No entanto, dois dos 64 cães desenvolveram edema facial e cinco animais morreram durante ou imediatamente após a transfusão. No caso de cães sadios que receberam HSA, três de nove deles desenvolveram edema facial e urticária dias após terem recebido a transfusão e dois desenvolveram hipertensão grave.94 Um dos nove cães teve uma reação anafilactoide grave 10 min após receber a infusão. Dois cães que receberam uma segunda infusão tiveram uma reação anafilactoide similar. Martin et al.95 descobriram que a administração de HSA resultou em formação de anticorpo tanto em pacientes sadios como criticamente enfermos, com o início sendo mais curto nos cães sadios. É interessante que dois dos 57 cães de controle também tiveram anticorpos anti-HSA, apesar de nunca terem recebido uma infusão. A albumina canina também está disponível no comércio nos EUA, embora de forma limitada. Ocorrem reações alérgicas com alguma regularidade, mas tendem a ser menos graves que as observadas com a HSA.

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27 Fisiologia, Fisiopatologia e Conduta Anestésica em Pacientes com Doença Respiratória

Introdução Definições Função respiratória em animais conscientes normais Controle da respiração Fatores mecânicos Ventilação pulmonar Volumes pulmonares Combinação intrapulmonar de sangue e gás Efeito da ventilação alveolar alterada Transporte de oxigênio Transporte de dióxido de carbono Função respiratória no animal anestesiado Obstrução da via respiratória Alteração anestésica do controle da ventilação Efeito farmacológico sobre o controle da ventilação Outras consequências pulmonares associadas à anestesia Alterações nas relações entre ventilação e perfusão durante anestesia Dispersão da ventilação-perfusão em condições normais Medida da incompatibilidade V/Q Efeito de alterações na posição Efeito da anestesia e diferenças entre as espécies Vasoconstrição pulmonar hipóxica (VPH) Volume residual funcional Parede torácica e alterações na mecânica pulmonar

Terapia com oxigênio e ventilação mecânica Efeitos fisiológicos da terapia com oxigênio Efeitos fisiológicos da ventilação mecânica Implicações clínicas da respiração alterada durante anestesia Seres humanos Cães e gatos Pequenos ruminantes e suínos Bovinos e equinos adultos Espécies exóticas Anestesia de animais com doença ou disfunção respiratória Doença ou disfunção respiratória da via respiratória superior Doença de via respiratória inferior e do parênquima pulmonar Conduta anestésica para o paciente com doença intratorácica ou da parede torácica Ventilação com um pulmão Referências bibliográficas

Introdução A manutenção da função respiratória adequada é um pré-requisito primordial para uma anestesia segura. A oxigenação tecidual inadequada pode levar à cessação aguda da função de órgãos vitais, em especial do cérebro ou do miocárdio, e a uma fatalidade anestésica. Elevações excessivas nas tensões arteriais de dióxido de carbono (CO2) [pressão arterial parcial de CO2 (PaCO2)] ou a hipoxemia moderada mantida podem provocar algum nível de disfunção orgânica, o que contribui para uma recuperação pós-anestésica aquém de ótima. Recuperação tardia da consciência, miopatia pós-anestésica em grandes animais e insuficiência renal, hepática ou cardíaca podem resultar de função respiratória inadequada durante a anestesia. Durante a anestesia geral, há sempre uma tendência das tensões arteriais de oxigênio [pressão arterial parcial de oxigênio (PaO2)] a serem menores do que as observadas nas mesmas espécies quando conscientes e respirando a mesma fração inspirada de oxigênio (FIO2).1–5 Também há uma tendência de a PaCO2 elevar-se acima dos valores de repouso em consciência, se o animal anestesiado estiver respirando espontaneamente, e a ocorrência

de aumentos na resistência da via respiratória, a menos que esteja sendo usada uma sonda endotraqueal. São observadas algumas diferenças, dependendo do esquema anestésico usado, mas a profundidade da anestesia, em geral, é mais um fator. Há diferenças entre as espécies e raças, algumas ilustradas neste capítulo. O posicionamento do animal durante a anestesia, o uso concomitante de fármacos e a magnitude da disfunção cardiorrespiratória pré-anestésica afetam a função respiratória. A disfunção respiratória durante anestesia geral e no período pós-operatório é causada pela ruptura de muitos mecanismos fisiológicos e, especialmente em grandes animais, um exagero de fatores anatômicos e mecânicos.1,4 Um entendimento da função respiratória relacionada com a anestesia requer consideração (1) do controle neural da respiração e seu efeito sobre a ventilação alveolar (VA); (2) da influência da anestesia sobre a via respiratória, a parede torácica e os volumes pulmonares; e (3) das alterações nas relações entre ventilação e perfusão (V/Q) durante a anestesia.2–5 Presume-se que os leitores já tenham um conhecimento razoável da fisiologia pulmonar básica, considerada em detalhe em outra parte.5,6 A revisão de Robinson é particularmente útil para os leitores ainda no curso de graduação.6 Muito da informação disponível sobre os efeitos da anestesia na respiração vem de estudos realizados com seres humanos e está resumida em uma revisão recente cujo nível de complexidade é adequado para quem esteja em um programa de treinamento para especialista.5 No entanto, há diferenças importantes na maneira pela qual os veterinários geralmente administram anestésicos a animais, em comparação com a anestesia de pessoas. Na prática veterinária, em geral são usados anestésicos intravenosos sem suplementação de oxigênio, pelo menos em condições de campo. Os relaxantes musculares de ação periférica são menos usados na anestesia veterinária e, em geral, usa-se a ventilação com pressão positiva intermitente (VPPI) na base da ‘necessidade’, não como rotina. Durante a anestesia geral com inalatórios, costuma-se usar oxigênio a 100% como fluxo diluente, ao passo que, na anestesia humana, é comum usar uma mistura 2:1 de ar, nitrogênio ou óxido nitroso com oxigênio. Cães e gatos têm sido usados com frequência para investigações do controle neural e das alterações mecânicas associadas à anestesia, mas geralmente em situações experimentais que diferem bastante da maneira como a anestesia é administrada a pacientes clínicos. Além disso, a variação de peso corporal e tamanho e, muitas vezes, adaptações fisiológicas exclusivas de animais domésticos e não domésticos submetidos à anestesia significam que a resposta respiratória à anestesia pode ser bem diferente daquela descrita classicamente em pessoas.

■ Definições Respiração é o processo total pelo qual o oxigênio é fornecido para as células corporais, e

usado por elas, e o CO2 é eliminado por meio de gradientes. Ventilação é o movimento de gás para dentro e para fora dos alvéolos. A necessidade ventilatória para a homeostasia varia com a necessidade metabólica dos animais e, portanto, de acordo com o tamanho do corpo, o nível de atividade, a temperatura corporal e a profundidade da anestesia. A ventilação pulmonar é levada a termo pela expansão e pela contração dos pulmões. Vários termos são usados para descrever os diversos tipos de respiração que podem ser observados: • • • • • • • • • • • •

Eupneia é a respiração comum, calma Dispneia é a respiração forçada Taquipneia é o aumento da frequência respiratória Hiperpneia é a respiração rápida e/ou profunda, indicando ‘super-respiração’ Polipneia é um tipo de respiração rápida, superficial, ofegante Bradipneia é a respiração lenta, regular Hipopneia é a respiração lenta e/ou superficial, indicando possivelmente ‘subrespiração’ Apneia é a cessação transitória (ou mais longa) da respiração Respirações de Cheyne-Stokes correspondem a aumentos na frequência e na profundidade respiratórias, seguidos por um breve período de apneia Respirações de Biot são sequências de respirações ofegantes, apneia e várias respirações ofegantes Respirações de Kussmaul são respirações regulares e profundas, sem pausa Respiração apnêustica ocorre quando um animal mantém uma respiração inspirada no final da inalação por um curto período antes de exalar.

Para descrever os eventos de ventilação pulmonar, o ar no pulmão foi subdividido em quatro volumes diferentes e quatro capacidades diferentes (Figura 27.1). Apenas o volume corrente e a capacidade residual funcional podem ser medidos em animais conscientes não cooperativos: • • •



Volume corrente (VT) é o volume de ar inspirado ou expirado em uma respiração Volume de reserva inspiratório (VRI) é o volume de ar que pode ser inspirado sobre e acima do volume corrente normal Volume de reserva expiratório (VRE) é a quantidade de ar que pode ser expirado pela expiração forçada após uma expiração normal Volume residual (VR) é o ar que permanece nos pulmões após a expiração mais forçada.

Outra expressão frequentemente usada é volume respiratório por minuto ou ventilação minuto (VEmin), que é igual ao VT vezes a frequência respiratória (f). Ocasionalmente, é bom considerar dois ou mais dos volumes mencionados juntos. Tais combinações são denominadas capacidades pulmonares: •







Capacidade inspiratória (CI) é o volume corrente mais o de reserva inspiratório. É a quantidade de ar que pode ser inalada começando após uma expiração normal e distendendo os pulmões até a quantidade máxima Capacidade residual funcional (CRF) é o volume de reserva expiratório mais o volume residual. É a quantidade de ar que permanece nos pulmões após uma expiração normal. De um ponto de vista mecânico, na CRF, a ‘puxada’ dos pulmões para dentro por causa de sua elasticidade iguala a ‘puxada’ para fora da parede torácica Capacidade vital (CV) é o volume de reserva inspiratório mais o volume corrente mais o volume de reserva expiratório. É a quantidade máxima de ar que pode ser expelida dos pulmões após o primeiro enchimento deles até sua capacidade máxima Capacidade pulmonar total (CPT) é o volume de reserva inspiratório mais o volume corrente mais o volume de reserva expiratório mais o volume residual, ou o volume máximo com que os pulmões podem ser expandidos com o maior esforço inspiratório possível (ou pela insuflação completa à pressão de 30 cmH2O na via respiratória quando um paciente está anestesiado).

Função respiratória em animais conscientes normais Do ponto de vista de um anestesista, é útil considerar o sistema respiratório em termos de seus componentes principais: o controle neural, o mecanismo de fole (parede torácica e diafragma), a via respiratória e o parênquima pulmonar (Figura 27.2). Alterações (1) do controle neural da ventilação por sedativos, opioides ou depressão anestésica; (2) da permeabilidade das vias respiratórias superiores ou inferiores pelo relaxamento muscular ou por espasmos musculares; ou (3) do mecanismo de fole do tórax por meio de paralisia neuromuscular, lesões expansivas no tórax ou uma alteração no formato, na localização ou na função do diafragma podem afetar de maneira apreciável a adequação da ventilação e a eficiência da troca de gases. No parênquima, a combinação aquém da ótima de gás fresco alveolar com sangue capilar pulmonar provocará alterações nos gases sanguíneos, em particular com relação à PaO2.

Figura 27.1 Volumes e capacidades pulmonares. Apenas o volume corrente e a capacidade residual funcional podem ser medidos em animais conscientes, pois as outras estimativas requerem a cooperação do indivíduo estudado ou anestesia geral.

Figura 27.2 Representação diagramática do controle neural, mecanismo de fole (diafragma e parede torácica), e a combinação de sangue arterial pulmonar e gás alveolar no pulmão. O volume corrente (VT), o espaço morto anatômico (VDanat) (em azul-escuro), a ventilação alveolar (VA) (em azul-claro) e pressões parciais inspirada (PI), alveolar (PA) e capilar final (PC’) representativas de oxigênio e dióxido de carbono também estão ilustradas. Ver explicação detalhada no texto. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

■ Controle da respiração Com o auxílio da circulação, a respiração regula o oxigênio, o CO2 e o íon hidrogênio no

ambiente da célula. A função respiratória é comandada pelos centros respiratórios centrais, por quimiorreceptores centrais e periféricos, reflexos pulmonares e input neural não respiratório. O controle da respiração foi descrito como um sistema integrado de retroalimentação (feedback).6 O ‘controlador’ neural central inclui grupos especializados de neurônios localizados no cérebro, no tronco cerebral e na medula espinal que governam tanto a ventilação voluntária como a automática mediante a regulação da atividade dos músculos respiratórios que, ao se contraírem, produzem ventilação, e suas alterações afetam as tensões dos gases sanguíneos e a concentração do íon hidrogênio. As tensões dos gases sanguíneos e as concentrações de hidrogênio são monitoradas por quimiorreceptores centrais e periféricos que enviam os sinais de volta para o controlador central, para que haja os ajustes necessários na ventilação. Mecanorreceptores nos pulmões e receptores de estiramento nos músculos respiratórios monitoram, respectivamente, o grau de expansão ou estiramento dos pulmões e o ‘esforço’ da respiração, levando informação de volta para o controlador central alterar o padrão da respiração. Também podem ocorrer ajustes para acomodar atividades não respiratórias, com a termorregulação e a vocalização. Geralmente, esse sistema complexo de controle produz uma associação de frequência e profundidade respiratórias mais apropriadas para a ventilação ótima com mínimo esforço da espécie em questão e que ajusta o fornecimento de oxigênio e a eliminação de CO2, de modo a manter a homeostasia (refletida pelos níveis estáveis dos gases arteriais) em uma ampla variação de condições ambientais e metabólicas. Sedativos, analgésicos, anestésicos e o equipamento usado para anestesia inalatória podem alterar profundamente a respiração e a capacidade de um animal manter a homeostasia celular. Considera-se a alteração do controle respiratório com agentes anestésicos e perianestésicos em mais detalhes adiante neste capítulo.

■ Fatores mecânicos A transferência de gases para e dos pulmões depende do desenvolvimento de um gradiente de pressão entre a atmosfera e os alvéolos, sendo modificada pela resistência ao fluxo entre essas duas regiões e a elasticidade dos pulmões e da parede torácica. Com a respiração espontânea, durante a inspiração, o esforço muscular ativo serve para aumentar a cavidade pleural mediante a expansão da parede torácica e a contração do diafragma (Figura 27.2). A pressão intrapleural é assim reduzida a um valor mais subatmosférico e um gradiente de pressão boca/narina-alveolar é estabelecido. Em contraste com a inspiração, a expiração normalmente é passiva e depende do retorno da parede torácica e dos pulmões à posição de repouso, ou seja, à CRF. O equino é uma exceção notável, porque a contração muscular abdominal desempenha uma parte da atividade expiratória normal, produzindo um modo bifásico de exalação.4,6 À medida que o espaço pleural diminui, as pressões intrapleural e,

consequentemente, alveolar aumentam, e o gradiente de pressão é revertido, de modo que o ar flui dos alvéolos para a atmosfera. Portanto, gradientes de pressão flutuantes entre a atmosfera e os alvéolos fazem o ar fluir para dentro e para fora dos pulmões. Os fatores que contribuem para esses gradientes de pressão e a medida de sua magnitude são conhecidos como mecânica pulmonar. Durante a ventilação artificial ou mecânica assistida ou controlada, também ocorrem gradientes de pressão atmosférica a alveolar, mas a pressão na boca é mais positiva que a alveolar à inspiração, daí a designação de ventilação com pressão positiva. Isso tem consequências circulatórias importantes, que serão consideradas em maiores detalhes adiante. Tanto os pulmões como a parede torácica conferem resistência elástica à expansão à inspiração. A relação entre o gradiente de pressão (P) e o aumento resultante de volume (V) em litros (ℓ) dos pulmões e do tórax é conhecida como complacência total (CT)5,7:

A relação da CT com a complacência individual dos pulmões (CL) e da parede torácica (CCW) é aditiva, porque os pulmões e a parede torácica estão arranjados concentricamente, e pode ser expressa como

Para medir a CT, é preciso conhecer o V e a pressão transtorácica (ou seja, a pressão no alvéolo menos a do ambiente). Em animais anestesiados, isso, em geral, é estimado medindo-se o volume inspiratório liberado de um ventilador que serve de fole ou bolsa respiratória, enquanto se registra a alteração na pressão da via respiratória (obtendo-se a alveolar) entre o final da exalação e o início da inspiração. Nos últimos anos, sistemas de espirometria automatizados que utilizam medidores de fluxo do gás em linha e a análise do gás corrente lateral tornaram viável o monitoramento da mecânica respiratória durante anestesia clínica, pelo menos quando se esteja usando ventilação mecânica.7 Esses sistemas de monitoramento requerem sensores de fluxo que permanecem precisos, apesar das alterações na umidade e no vapor d’água e que geram uma resposta linear sobre o VT que está sendo medido: daí a necessidade de sensores diferentes para animais pequenos, de tamanho médio e grandes. Os dispositivos de monitoramento, em geral, são capazes de fornecer alças de fluxo e volume ou pressão e volume no decorrer de cada volume corrente, ou valores sequenciais para a complacência e a resistência da via respiratória. Portanto, eles

fornecem dados comparativos úteis no esquema anestésico. Os valores de complacência que eles fornecem costumam ser uma medida da elasticidade combinada do pulmão e da parede torácica. A CT dinâmica é a alteração de volume dividida pela alteração de pressão transtorácica no ponto de fluxo de ar zero (final da inspiração) em um momento quando o fluxo de ar para dentro tiver sido rápido o suficiente para fatores dinâmicos influenciarem a distribuição do ar através do pulmão. Para fins práticos, a CT dinâmica é igual ao volume corrente dividido pela pressão máxima na via respiratória. A CT estática é determinada quando o influxo de ar precedente tiver sido lento o suficiente para que a distribuição através do pulmão esteja de acordo exclusivamente com a elasticidade regional. Em tais condições, a distribuição de gás para os alvéolos com taxas de enchimento mais rápidas e mais lentas é equivalente, e o resultado é o valor da CT estática (ou CL), em geral, maior do que o da CT dinâmica (CL). Para determinar a elasticidade do pulmão em si (CL), é preciso conhecer V e gradiente de pressão transpulmonar (ou seja, a pressão do alvéolo menos a do espaço pleural). A determinação acurada dessa medição é mais difícil. Na prática, o gradiente de pressão transpulmonar, em geral, é determinado usando-se um transdutor de pressão diferencial para determinar as alterações de pressão na boca (considerada igual à alveolar) e pleural simultaneamente. As alterações na pressão pleural são estimadas a partir de desvios na pressão esofágica intratorácica registrada com um cateter com balão na ponta. Os pulmões desenvolvem uma baixa complacência (ficam mais rígidos), com redução em seu volume ou atelectasia regional, como resultado de edema ou fibrose pulmonar e, no caso da CI dinâmica, com diferenças regionais na resistência da via respiratória. Se os pulmões e/ou a parede torácica estiverem menos complacentes (i. e., mais rígidos), então serão necessárias pressões transtorácicas mais altas para liberar um certo volume corrente. Anestesistas experientes, em geral, conseguem perceber essa alteração como um aumento da força necessária para espremer mecanicamente um volume ajustado da bolsa respiratória pela mão. Isso pode fornecer o primeiro indício de que um animal está desenvolvendo um problema expansivo no tórax ou no abdome (p. ex., acúmulo de ar ou sangue) ou que a extremidade da sonda endotraqueal ficou reposicionada em um brônquio principal e está insuflando apenas um pulmão. Para que o ar flua para os pulmões, também é preciso que se desenvolva um gradiente de pressão para superar a resistência não elástica (da via respiratória) ao fluxo de ar. A relação entre o gradiente através do sistema pulmonar (PL) e a taxa de fluxo de ar (geralmente expressa em litros por segundo, ℓ/s) é conhecida como resistência da via respiratória (RL) (expressa em cmH2O/ℓ/s):5–7

RL (cmH2O/ℓ/s) = ΔPL (cmH2O/ℓ/s) O calibre da via respiratória e a taxa e o padrão do fluxo de ar contribuem para o gradiente de pressão ao longo da via respiratória. De acordo com a lei de Hagen-Poiseuille para o fluxo laminar de gás através de um tubo, a resistência ao fluxo pode ser expressa como

O significado desta equação com relação à anestesia é mostrar que as alterações no diâmetro da via respiratória (ou do aparelho) podem afetar bastante a resistência ao fluxo de ar. Por exemplo, se o diâmetro da via respiratória diminuir 50% por causa do uso de uma sonda endotraqueal muito pequena, a resistência aumentará 16 vezes. Com taxas de fluxo mais altas que excedam a velocidade crítica do sistema, ou em face de alterações súbitas no diâmetro da via respiratória, o fluxo de ar não será mais laminar e se tornará turbulento. O significado de uma transição no fluxo de laminar para turbulento é ilustrado pelo fato de que, com taxas de fluxo aproximadamente críticas, a resistência ao fluxo aumenta cerca de 50% se ele ficar turbulento. A resistência na via respiratória é medida por uma variedade de métodos, a maioria deles envolvendo a determinação simultânea do fluxo de ar instantâneo com um pneumotacógrafo e da pressão transpulmonar (PL) com o uso de um transdutor diferencial. A resistência na via respiratória aumenta com a frequência respiratória e com o estreitamento da via respiratória pela contração reflexa dos músculos bronquiolares, com doença de via respiratória pequena em que há edema da parede da via respiratória e acúmulo de muco, com uma redução no volume pulmonar ou mediante a aspiração de material estranho. A resistência da via respiratória durante anestesia pode ser minimizada com o uso de uma via respiratória que seja o maior possível e em que alterações súbitas na direção ou no diâmetro sejam minimizadas. Aumentos na resistência da via respiratória inspiratória provocam de longe mais consequências que aumentos na resistência da via respiratória expiratória, pois a expiração normalmente é alcançada pelo recolhimento elástico do pulmão e da parede torácica, sem necessidade de trabalho dos músculos respiratórios. É por isso que há uma boa tolerância de níveis baixos (2 a 5 mmHg) de pressão expiratória final positiva (PEFP) se for empregada como um meio de evitar colapso alveolar ou como uma consequência do fechamento parcial de uma válvula pop-off para evitar colapso de uma bolsa respiratória.

■ Ventilação pulmonar O fator importante na ventilação pulmonar é a taxa em que o ar alveolar é trocado com o atmosférico. Isso não é igual ao volume da ventilação minuto porque grande parte do ar inspirado é usada para encher as passagens respiratórias, não os alvéolos, e não ocorre troca significativa de gases nesse ar (Figura 27.2). A frequência respiratória (f) e o volume de cada respiração, o volume corrente (VT), determinam a ventilação minuto (VEmin). A parte de cada VT que alcança apenas a via respiratória superior e a árvore traqueobrônquica preenche o espaço morto anatômico e é conhecida como volume do espaço morto (VDanat), o qual é razoavelmente constante. Portanto, a respiração lenta profunda é mais efetiva que a rápida superficial. Isso é especialmente verdadeiro durante anestesia geral e com VPPI. O volume ‘efetivo’, ou a parte do VT que contribui para a troca de gases, é o volume alveolar (VA), geralmente citado como ventilação minuto alveolar (VAmin). Há alguma mistura entre o gás no espaço morto anatômico e o gás alveolar, em decorrência do movimento criado pelos batimentos cardíacos.5 Essa ação de ‘mistura’ provavelmente explica por que os níveis da PaCO2 em geral não são todos aqueles elevados em cães de pequeno porte ou gatos com um padrão respiratório taquipneico muito superficial em que VT precisa estar perto do VDanat. É provável que isso também explique por que, em uma situação de emergência, a insuflação de 15 ℓ de oxigênio/min profundamente na traqueia em um equino apneico manterá valores de PaO2 na faixa de 50 a 60 mmHg (observação pessoal). Alvéolos não perfundidos não contribuem para a troca de gases e constituem o espaço morto alveolar (VDalv). Em animais saudáveis conscientes, o VDalv é mínimo, enquanto, durante anestesia geral, ele pode aumentar por causa da falha no débito cardíaco (Q) e/ou da pressão arterial na artéria pulmonar. O espaço morto fisiológico (VD) inclui o VDanat e o VDalv (Figura 27.2) e, em geral, é expresso como um valor minuto (VDmin) junto com o VAmin, ou a razão VD/VT. Em cães com traqueostomia não sedados que estejam respirando normalmente por uma sonda endotraqueal padrão, o VD foi de 5,9 mℓ/kg e a VD/VT foi de 35%.8 Essa razão é similar à encontrada em seres humanos, mas o valor do VD é maior, refletindo o aumento no VDanat em cães, com base no peso corporal. Durante anestesia com metoxifluorano e respiração espontânea, o VD aumentou muito pouco (cerca de 0,5 mℓ/kg), mas a VD/VT aumentou mais de 50% porque o VT diminuiu. Outros relataram resultados similares com outros anestésicos. Em espécies maiores, como equinos e bovinos, a razão VD/VT em animais conscientes é de cerca de 50%.9 Foram relatadas proporções maiores de espaço morto, mas é provável que tais valores reflitam um estado taquipneico ou falha do substrato ao subtrair o espaço morto acrescentado associado ao uso da máscara na coleta do gás. Em vacas não sedadas, o VD é de aproximadamente 3,7 mℓ/kg e, em equinos, de aproximadamente 5,2 mℓ/kg.9 Os valores da ventilação normal representativa, da gasometria sanguínea e acidobásica em uma variedade de espécies são fornecidos nas

Tabelas 27.1 e 27.2. Tabela 27.1 Frequência respiratória (f), volume corrente (VT) e ventilação minuto (V˙E) em várias espécies. Peso Espécie

corporal

n

Condiçõesa

médio (kg)

Camundongos

0,02

NE

0,032

NE

Despertos, em pronação Anestesiados

f

V˙T

V˙E Ref.

(respirações/min) mℓ

mℓ/kg mℓ/min mℓ/kg/min

163,4

0,15

7,78

24,5

1.239

10

109

0,18

5,63

21

720

10

Despertos, 0,113

NE

em pronação

85,5

0,87

7,67

72,9

646

10

0,305

NE

Despertos,

103

2,08

6,83

213

701

10

22

30

7,9

664

174

11

30

34

9,2

960

310

10

13

309

16,6

3.818

205

12

16,5

314

16,9

4.963

264

8

38

289

8,3

10.400

297

13

Ratos plet Não 3,8

4

3,7

NE

Gatos

anestesiados, plet Anestesiados Despertos, em pronação, traq crônica,

18,6

6

18,8

8

Cães

intubados Despertos, em posição quadrupedal, traq crônica, intubados Despertos,

Ovinos

32 a 37

4

em posição quadrupedal,

máscara Despertos, Caprinos

36,3

3

em posição quadrupedal,

13,6

470

12,9

6.313

174

14

26

483

10,4

11.900

256

15

17,6

602

12,6

10.540

221

16

13,1

209

15,9

2.731

208

17

máscara Despertos, em posição quadrupedal, máscara

Suínos

46,4

6

47,6

6

12,9

4

Despertos, em posição quadrupedal, máscara Despertos, em posição quadrupedal Despertas, em posição Holandesas, Vacas

517 Jersey, 405

quadrupedal, 7

máscara

23,7

3.676

7,1

85.977

166

9

11

Despertas,

28,6

3.360

8,3

94.870

234

18

26,7

403

15,1

10.290

385

19

em posição quadrupedal, máscara Com 4 a 6 semanas de

Bezerros

Hereford, 43 a 73

idade, em 8

posição quadrupedal, funda

Despertos, em posição quadrupedal, máscara Despertos, em posição

Equinos

402

6

483

6

quadrupedal máscara

11,8

4.253

10,6

49.466

123

9

15,5

4.860

10,1

74.600

154

10

10

7.300

15

79.000

163

21

19

1.370

9,3

26.380

180

22

Despertos, 486

15

em posição quadrupedal, máscara (alguns sedados) (máscara VD não removida) Despertos,

Pôneis

147

19

em posição quadrupedal, máscara

NE, não especificado. a

plet, pletismografia de todo o corpo; traq, traqueostomia.

Tabela 27.2 Valores dos gases sanguíneos arteriais e acidobásicos em várias espécies. Peso Espécie

corporal

n

Condições

(kg) Despertos, cateter crônico

pHa

PaCO2

PaO2

HCO3–

(mmHg)

(mmHg)

(mEq/ℓ)

Ref.

Ratos

0,207

10

0,305

8

Despertos, em pronação,

7,44

32,7

21,5

23

7,467

39,8

28,7

24

cateter crônico

Despertos, 3,1

NE

cateter

7,388

32,8

86

21

25

3,5

20

Despertos,

7,47

28,5

89,2

20,2

26

Coelhos cateter Não sedados, cateter crônico, em 2,5 a 5,1

8

pronação

7,41

28

108

18

27

3a8

10

Não sedados,

7,426

32,5

108

22,1

28

7,383

39

103,8

22,1

8

7,40

35

102

21

29

7,44

40,9

96

27,6

25

Gatos não contidos, cateter crônico Traq crônica, cateter, não sedados, em 18,8

8

12,2

22

Cães

posição quadrupedal Cateteres crônicos, decúbito lateral Despertos, cateter

33

NE

Não sedados,

Ovinos

24,5

11

em pronação,

7,48

33

92

24,1

30

7,46

36,5

101

7,45

35,3

94,5

24,1

16

7,45

41,1

87,1

27,6

15

7,39

40

81

24

31

7,37

42,8

93,6

23,6

32

alça carotídea

Não sedados, em posição quadrupedal

Caprinos

18

6

47,6

6

46,6

6

Não sedados, em posição quadrupedal, cateter

14

Não sedados, em posição quadrupedal Em posição quadrupedal, 31 a 57

4

48 a 66

20

Bezerros

não sedados, cateter aórtico Não sedados, cateter Despertas, não sedadas, em posição

517

7

quadrupedal

7,40

39,6

83,1

24,4

9

641

7

Despertas,

7,435

38,7

95,1

25,5

a

Vacas não sedadas, em posição quadrupedal

Despertos, Equinos

402

6

não sedados,

7,39

41,1

80,7

24,5

9

7,40

40

88,7

24,4

22

em posição quadrupedal Em posição Pôneis

147

19

quadrupedal, cateter aórtico

NE, não especificado. a

R. Warren e W.N. McDonell, observações não publicadas.

■ Volumes pulmonares As divisões do volume pulmonar são mostradas na Figura 27.1. A maioria desses volumes não pode ser medida em animais conscientes, porque isso requer a cooperação do indivíduo submetido ao teste. É possível obter as medidas do VT e da CRF em animais conscientes. A CPT, em geral, é estimada pela insuflação pulmonar a uma pressão acima de 30 cmH2O em animais anestesiados. Os valores da CPT são razoavelmente semelhantes entre as espécies domésticas, quando comparados com base no peso corporal, mas o volume total varia de menos de 2 ℓ em camundongos a mais de 45 ℓ em equinos e bovinos (Tabela 27.3). Esse fator e a variação no VT observada entre as espécies (Tabela 27.1) têm implicações significativas com relação ao projeto de aparelhos de anestesia inalatória adequados e a importância relativa de espaço morto acrescentado. Um litro de espaço morto no aparelho em um equino ou vaca saudável consciente constitui apenas uma pequena proporção do VT e tem pouco efeito sobre o VA ou os gases sanguíneos,38 ao passo que um espaço morto de meros 15 mℓ em um gato corresponde a 50% do VT e tem probabilidade de alterar a ventilação e os níveis de PaCO2. Nos mamíferos menores, praticamente todos os sistemas de máscara levarão a alguma respiração de CO2 durante anestesia, a menos que se use uma máscara frouxa com um sistema de fluxo através dela. O volume de gás remanescente nos pulmões no final de uma expiração normal (ou seja, a CRF) varia consideravelmente de acordo com a posição do diafragma, em particular, alterações. O timpanismo abdominal de qualquer fonte (p. ex., útero grávido perto do termo, distensão abdominal, obesidade ou tumor) tende a mover o diafragma para a frente e diminuir a CRF. Foram feitas poucas medições reais desse fenômeno com relação a animais, mas as consequências para a ventilação e a função respiratória durante anestesia são consistentes com uma diminuição na CRF.36,37

Tabela 27.3 Volumes pulmonares de várias espécies de mamíferos. Peso Espécie

corporal

CPT n

Condições

(kg) Camundongos

0,020

NE

Ratos

0,31

NE

Coelhos

3,14

NE

Gatos

3,7

4

Anestesiados Anestesiados, em pronação Anestesiados, em supinação

CRF

VR (mℓ/kg)

Ref.

mℓ

mℓ/kg

(mℓ/kg)

1,57

78,5

25

19,5

10

12,2

39,4

6,8

4,2

10

111

35,4

11,6

6,4

10

Anestesiados

17,8

33

Despertos, Cães

18,6

6

9,2

140

em pronação Não sedados,

2.090

112,4

1 ano de

53,6 44,8

16,7

12 34

idade Não sedados, Ovinos

24,5

4

em pronação, com sonda

45,3

30

49,6

15

39,4

35

endotraqueal Não sedados, em posição Caprinos

46,4

6

quadrupedal, com máscara facial Despertas, em posição

Vacas

517

7

quadrupedal

537

5

Anestesiadas, em pronação

45.377

84,5

31,9

16,1

35

Anestesiados, em pronação Despertos, em posição quadrupedal 485

36,3

36

Anestesiados, 402

6

394

4

450 a 822

6

Equinos

em pronação, com pulmão insuflado a 35 a 40

44.800

92,4

51,3

35

45.468

115,4

37,9

35

35,6

37

39,9

37

cmH2O, em jejum há 18 h Conscientes, em posição quadrupedal Conscientes, Pôneis

164 a 288

8

em posição quadrupedal

NE, não especificado.

■ Combinação intrapulmonar de sangue e gás A combinação do fluxo de gás alveolar e sanguíneo capilar pulmonar é influenciada por fatores gravitacionais e pela circulação na artéria pulmonar, sendo um sistema de baixa pressão. A pressão intrapleural é mais subatmosférica na parte mais superior do tórax que na mais inferior,39 em parte por causa do peso do pulmão no tórax. O tamanho alveolar é maior nas áreas mais superiores do pulmão e menor nas regiões ventrais. Como os alvéolos maiores são menos complacentes (menos distensíveis), expandem menos à inspiração, e o ar entra preferencialmente nos alvéolos inferiores mais complacentes, produzindo um gradiente vertical de ventilação em animais em posição quadrupedal respirando normalmente.40-42 Essa tendência pela ventilação ventral preferencial no pulmão pode estar associada ao movimento regional da parede torácica e diafragmático. Durante anestesia, a distribuição da ventilação torna-se mais desigual e pode até reverter, de modo que a parte mais superior do pulmão de um equino em decúbito lateral recebe a maior parte da

ventilação. Por muitos anos, acreditou-se que a gravidade fosse o determinante primário do fluxo sanguíneo pulmonar, produzindo um gradiente de perfusão vertical de fluxo sanguíneo com as regiões pulmonares inferiores sendo mais perfundidas, e tal situação ocorria tanto em animais conscientes como anestesiados e também em espécies bípedes e quadrúpedes.42,43 No entanto, investigações mais recentes sugerem que há outros fatores, como o padrão de ramificação da artéria pulmonar e diferenças regionais na resistência envolvida, e que o resultado final (em quadrúpedes em repouso) é que há uniformidade vertical considerável do fluxo sanguíneo dentro do pulmão, ou mesmo maior perfusão dorsal.4,44–46 A distribuição do fluxo sanguíneo pulmonar em animais anestesiados não é bem entendida e há achados conflitantes, dependendo dos métodos empregados e das espécies estudadas.44,47–50 A anestesista geral, além de uma alteração na posição do corpo, também causa alterações no débito cardíaco, alterações medicamentosas na resistência pulmonar e reatividade à hipoxia nos vasos pulmonares, bem como alterações no volume pulmonar e na pressão pleural regional. Esses fatores podem resultar em gravidade, tornando-se um fator significativo na distribuição do fluxo sanguíneo pulmonar, em especial em grandes animais que estejam em decúbito lateral e dorsal. Daí a importância de se considerar a gravitação histórica com base no modelo de fluxo sanguíneo. Os efeitos gravitacionais sobre a distribuição da perfusão pulmonar foram divididos comumente e descritos como um sistema de três ou quatro zonas.42,43 Em repouso, os alvéolos mais superiores podem ser minimamente perfundidos (Figura 27.3, zona I), com pressão alveolar (PA) maior do que as pressões na artéria (Pap) e na veia (Pvp) pulmonares. Na zona II, a Pap é maior do que a PA, e a diferença entre as duas é a pressão direcional para o fluxo sanguíneo na extremidade frontal dos capilares. A relação entre a PA e a Pap administra o fluxo através do aspecto terminal dos capilares. Na zona III, tanto a Pap como a Pvp excedem a PA, e os vasos ficam completamente distendidos, com a perfusão sendo determinada pela diferença de pressão entre a Pap e a Pvp. Na zona IV, o peso do pulmão aumenta a pressão intersticial até um ponto em que o fluxo sanguíneo é reduzido na direção daquele da zona II, ou menos. Esses fatores são importantes durante a anestesia porque o débito cardíaco, em geral, é reduzido e a Pap pode diminuir. Até a pesquisa recente citada anteriormente, pensava-se que, quando a posição do corpo era alterada e um animal ficava em decúbito, o fluxo sanguíneo pulmonar se realinharia ao longo de linhas gravitacionais consistentes com a nova posição do corpo.1,42,43 Entretanto, conforme explicado antes, essas relações não são necessariamente diretas, em especial nas espécies maiores, talvez por causa da grande diminuição na CRF que acompanha o decúbito e a geração de uma área maior na zona IV no tórax. A Figura 27.4 fornece uma ilustração da distribuição não gravitacional do fluxo

sanguíneo em um cão anestesiado com halotano, conforme medida pela injeção de microesferas radioativas, enquanto posicionado em decúbito dorsal (supinação) ou esternal (pronação).44 É evidente que há uma zona de baixo fluxo (zona IV) perto das partes mais dorsais e mais ventrais do pulmão, tanto na posição esternal como na dorsal do corpo, e que a parte dorsal do corpo recebe proporcionalmente mais fluxo sanguíneo que o aspecto ventral, qualquer que seja a posição do corpo. Ovinos e pôneis apresentaram achados similares.49,50 A Figura 27.5 mostra uma representação diagramática simplificada da ventilação alveolar alterada com relação à perfusão alveolar (V/Q). Um extremo é ter um alvéolo ou área perfundido(a) sem ventilação, de modo que o sangue não é oxigenado enquanto passa pela região.3 Outros extremos são o alvéolo ser ventilado, mas não perfundido, ou, alternativamente, não haver ventilação nem perfusão em alvéolo ou uma região. Em geral, a alteração de V/Q dentro do pulmão está em algum lugar entre esses extremos e caracteriza-se por alvéolos em todo o pulmão apenas relativamente subventilados ou subperfundidos, produzindo um aumento no gradiente de oxigênio alveolar-arterial. Como o CO2 é mais difusível através da membrana capilar alveolar, problemas de difusão e da V/Q comumente levam a uma diminuição dos níveis da PaO2 antes que haja uma alteração nos mesmos.

Figura 27.3 Ilustração diagramática das relações entre pressão e fluxo na artéria pulmonar (Pap), na veia pulmonar (Pvp), no espaço intersticial pulmonar (PINT) e alveolar (PA) no pulmão. Ver no texto uma explicação detalhada. Fonte: modificada da referência 43. Reproduzida, com autorização, de Taylor & Francis.

Figura 27.4 Fluxo sanguíneo pulmonar relativo por plano isogravitacional em um cão anestesiado com halotano enquanto posicionado em decúbito esternal (pronação) ou dorsal (supinação). Notar a similaridade do gradiente do fluxo sanguíneo em cada posição corporal e a redução do fluxo sanguíneo relativo nas seções mais superiores e mais inferiores em cada posição corporal. As barras de erro representam a heterogeneidade do fluxo dentro de planos isogravitacionais. Fonte: modificada da referência 44. Reproduzida, com autorização, de American Physiological Society.

É possível compensar a ausência de ventilação de partes do pulmão mediante o aumento da ventilação do restante do pulmão em termos de depuração do CO2, como ocorre com animais taquipneicos, pneumônicos. Contudo, o mesmo aumento da ventilação das áreas pulmonares ‘boas’ nunca compensará totalmente onde há captação inadequada de oxigênio. A curva de saturação da hemoglobina com oxigênio tem forma sigmoide (Figura 27.6) e a hemoglobina é quase completamente saturada com oxigênio a uma PaO2 de 90 a 100 mmHg. Consequentemente, um aumento da ventilação nas áreas ‘boas’ do pulmão não pode aumentar muito o conteúdo de oxigênio do sangue, mesmo que a pressão parcial de oxigênio alveolar (PAO2) aumente. O significado clínico disso é que muitos problemas pulmonares se manifestam como hipoxemia, em vez de hipercapnia.

■ Efeito da ventilação alveolar alterada Seja qual for o débito metabólico, a PaCO2 e o VA têm uma relação direta e inversa: se o VA

cair 50%, a PaCO2 dobra, ao passo que, se o VA aumentar 100% (ou seja, mediante VPPI), os níveis da PaCO2 cairão 50% assim que o equilíbrio for estabelecido (Figura 27.7). Tal conceito é importante porque explica como um anestesista experiente pode fazer aproximações razoavelmente boas sobre o nível resultante da PaCO2 que conseguirá quando um animal for colocado em um ventilador com determinados ajustes da f e do VT. Por exemplo, na maioria dos cães anestesiados com um peso corporal que corresponda à média da raça, a PaCO2 ficará perto de níveis eucapneicos quando a f for ajustada em 8 a 10 min e o VT em 15 a 20 mℓ/kg. Em equinos e vacas adultos anestesiados, um ajuste eucapneico comparativo seria f em 5/min e VT em 15 mℓ/kg. Ocorre hiperventilação quando o VA é excessivo com relação à taxa metabólica; como resultado, a PaCO2 está reduzida. A hiperventilação pode ser acompanhada ou não por um aumento na frequência respiratória, conhecido como taquipneia. Há hipoventilação quando o VA é baixo com relação à taxa metabólica e a PaCO2 sobe: a hipoventilação pode ser acompanhada por uma f lenta (bradipneia), normal ou rápida. Um nível diminuído de PaCO2 é conhecido como hipocapnia e um nível elevado, como hipercapnia, enquanto uma PaCO2 normal é eucapnia. A maioria das espécies comuns de mamíferos, mas nem todas, tem um nível de PaCO2 em repouso perto de 40 mmHg (Tabela 27.2). A hipercapnia e a hipocapnia causam acidose e alcalose respiratória, respectivamente, porque o CO2 no corpo está em equilíbrio dinâmico com o ácido carbônico (HCO3) e, por fim, com a concentração de hidrogênio (H+):

Figura 27.5 Ilustração esquemática da ventilação desigual e do fluxo sanguíneo. O alvéolo à esquerda é ventilado, mas não perfundido, e por isso é considerado espaço morto alveolar, enquanto o alvéolo à direita é perfundido, mas não ventilado, e, portanto, contribui para a mistura venosa ou o chamado desvio de fluxo. O alvéolo do centro é perfundido e ventilado igualmente, de maneira que teria uma razão V/Q de 1. Equações relevantes são mostradas, como as de números 1 a 4, para o cálculo da fração de mistura venosa (Q/Q), respectivamente. Fonte: referência 4. Reproduzida, com autorização, de Elsevier.

Figura 27.6 Curvas de dissociação do oxigênio da hemoglobina. A curva do meio representa a relação entre a pressão parcial de oxigênio e a porcentagem da saturação de hemoglobina à temperatura corporal normal e o pH sanguíneo, e mostra a pressão parcial arterial de oxigênio (PaO2) e a porcentagem da saturação à medida que o sangue passa através dos pulmões e tecidos. Os valores normais da PO2 do sangue venoso misto e da saturação de oxigênio são mostrados (v) junto com o valor da P50, que é a PO2 em que a hemoglobina de uma espécie em particular está 50% saturada com oxigênio. Há um desvio da curva de dissociação da hemoglobina para a direita com acidemia (p. ex., pH de 6,8) ou um aumento na temperatura, enquanto há um desvio para a esquerda com alcalemia (p. ex., pH de 7,6) ou uma temperatura corporal mais baixa. Os valores do conteúdo de oxigênio à esquerda representam o conteúdo sanguíneo de oxigênio que se esperaria se a concentração de hemoglobina fosse o nível teórico normal de 150 g/ℓ e a temperatura corporal e o pH também fossem normais.

a PaCO2 sobe: a hipoventilação pode ser acompanhada por uma f lenta (bradipneia), normal ou rápida. Um nível diminuído de PaCO2 é conhecido como hipocapnia e um nível elevado, como hipercapnia, enquanto uma PaCO2 normal é eucapnia. A maioria das

espécies comuns de mamíferos, mas nem todas, tem um nível de PaCO2 em repouso perto de 40 mmHg (Tabela 27.2). A hipercapnia e a hipocapnia causam acidose e alcalose respiratória, respectivamente, porque o CO2 no corpo está em equilíbrio dinâmico com o ácido carbônico (HCO3) e, por fim, com a concentração de hidrogênio (H+): CO2 + H2O ↔ H2CO3 ↔ H+ + HCO3– Acidemia e alcalemia são definidas como pH plasmático significativamente abaixo ou acima, respectivamente, do valor normal arterial ou venoso para a espécie em questão. Distúrbios metabólicos e acidobásicos concomitantes e a presença ou ausência de compensação pela excreção renal vão determinar o grau real de alteração do pH que acompanha a hipocapnia ou a hipercapnia. Durante anestesia geral, é muito mais provável que ocorram hipoventilação e hipercapnia em animais que estejam respirando espontaneamente, enquanto ocorrem com maior frequência hiperventilação e hipocapnia quando os volumes correntes são muito grandes em animais menores durante VPPI. A relação entre o VA e a saturação de oxigênio (e, por sua vez, o conteúdo de oxigênio do sangue arterial) não é linear por causa do formato sigmoide da curva de saturação da hemoglobina (Figura 27.6). Tal fator tem aplicações clínicas importantes para os anestesistas. Com um decréscimo de 50% no VA, a hemoglobina ainda mantém uma saturação de 80%, e o conteúdo sanguíneo real de oxigênio (se a concentração de hemoglobina for de 15 g/dℓ) terá caído apenas de 21,2 para 16,8 mℓ/dℓ (Figura 27.7). É provável que as mucosas de tal animal não estejam cianóticas nem ele tenha sinais cardiovasculares (taquicardia, bradicardia ou aumento/queda da pressão arterial) associados à insuficiência respiratória. Todavia, à medida que o nível do VA diminui mais, há uma queda aguda e potencialmente catastrófica no conteúdo de oxigênio, de modo que, com um VA correspondente a 40% do normal, a saturação de hemoglobina é de 50% e o conteúdo de oxigênio terá diminuído para 7,04 mℓ/dℓ. Essa hipoxemia pode perfeitamente ocasionar colapso respiratório súbito. O entendimento desse efeito não linear da deficiência do VA sobre o conteúdo de oxigênio ajuda a explicar por que um animal aparentemente “OK” sob uma anestesia geral intravenosa e respirando o ar ambiente pode parar subitamente de respirar ou entra em colapso cardiovascular sem qualquer alteração aparente na profundidade da anestesia.

Figura 27.7 Efeito da ventilação alveolar alterada sobre a saturação da hemoglobina, o conteúdo de oxigênio no sangue e os níveis arteriais de dióxido de carbono (PaCO2). À medida que a ventilação alveolar é reduzida à metade, o nível da PaCO2 duplica, ilustrando a relação inversa e direta entre a ventilação alveolar e a depuração de dióxido de carbono. Notar a diferença no conteúdo de oxigênio com anemia (hemoglobina de 10 g/100 mℓ, em vez de 15 g/100 mℓ) e o aumento agudo eventual na saturação da hemoglobina com oxigênio e no conteúdo de oxigênio à medida que a ventilação alveolar diminui para menos de 50% do valor normal. Ver no texto maior explicação.

A Figura 27.7 ilustra a inter-relação importante de um nível de hemoglobina inferior (p. ex., 10 g/dℓ) com o conteúdo sanguíneo de oxigênio com a homeostase da ventilação alterada. O conteúdo sanguíneo de oxigênio está reduzido para quase 7 mℓ/dℓ, com uma queda na hemoglobina de 15 para 10 g/dℓ, mesmo quando a saturação de hemoglobina é de 100%, ocorrendo conteúdos perigosamente baixos de oxigênio no sangue com mais depressão da respiração. Hipoxia refere-se a qualquer estado em que o oxigênio no pulmão, no sangue e/ou nos

tecidos é anormalmente baixo, resultando em função orgânica anormal e/ou dano celular. Hipoxemia refere-se à oxigenação insuficiente do sangue para satisfazer as necessidades metabólicas. Em animais respirando espontaneamente, a hipoxemia caracteriza-se por níveis de PaO2 abaixo do normal para a espécie. Os níveis de PaO2 em repouso nas espécies domésticas, em geral, variam de 80 a 100 mmHg nos animais despertos saudáveis (Tabela 27.2). Alguns clínicos consideram uma PaO2 abaixo de 70 mmHg (cerca de 94% de saturação da hemoglobina) como hipoxemia em animais ao nível do mar ou quase, embora o significado clínico dessa tensão de oxigênio sanguíneo varie, dependendo de fatores como a saúde e a idade do animal, a concentração de hemoglobina e a duração da tensão baixa de oxigênio com relação a uma taxa de metabolismo tecidual (p. ex., pacientes hipotérmicos correriam menos risco).

■ Transporte de oxigênio Em condições normais, o oxigênio é captado pelos alvéolos pulmonares e o CO2 é removido dele a uma taxa que é suficiente para manter a composição de gases. No pulmão, o gás é trocado através das membranas alveolares e capilares.4,6 A distância total pela qual a troca ocorre é inferior a 1 µm; portanto, ocorre rapidamente. Exceto com altos níveis de exercício, quase sempre se desenvolve equilíbrio entre o sangue nos pulmões e o ar nos alvéolos, e a pressão parcial de oxigênio (PO2) no sangue quase se iguala à PO2 no alvéolo. Embora a difusão de oxigênio através do espaço alveolar-capilar seja uma barreira teórica à oxigenação, raramente é um problema prático durante anestesia veterinária, a menos que haja edema pulmonar considerável. Há uma concentração relativamente em etapas ou gradiente de pressão parcial de oxigênio do ar ambiente para os vários tecidos do corpo: ar nasal = 160, ar alveolar = 100, sangue arterial = 90 a 95, líquido intersticial = 30, líquido intracelular = 10 e sangue venoso = 40 mmHg. Pouco oxigênio é perdido nos grandes vasos sanguíneos, e, normalmente, um gradiente contínuo de pressão está presente a partir do alvéolo para a célula tecidual. As composições alveolares médias normais dos gases respiratórios em seres humanos e na maioria das outras espécies para a respiração de ar e de oxigênio estão na Tabela 27.4. À temperatura corporal, o ar alveolar está saturado com vapor d’água, que tem uma pressão de 48 mmHg a 37°C. Se a pressão barométrica no alvéolo for 760 mmHg (ao nível do mar), então a pressão em decorrência do ar seco é de 760 – 48 = 712 mmHg. Sabendo a composição do ar alveolar, é possível calcular a pressão parcial de cada gás no alvéolo: O2 = (760 – 48) × 0,14 = 100 mmHg

CO2 = (760 – 48) × 0,056 = 40 mmHg N2 = (760 – 48) × 0,80 = 570 mmHg Tabela 27.4 Composição dos gases respiratórios durante a respiração e com 100% de oxigênio. Respiração de ar ou

Gás

Gás inspirado (%)

Gás expirado (%)

Gás alveolar (%)

Ar

Oxigênio

20,95

16,1

14

Ar

Dióxido de carbono

0,04

4,1

5,6

Ar

Nitrogênio

79

79,2

80

Oxigênio

Oxigênio

~100a

~94a

~95a

Oxigênio

Dióxido de carbono

~0a

4,1

5,6

Oxigênio

Nitrogênio

~0a

~0a

~0a

oxigênio

a

Valores aproximados, pois é incomum a porcentagem de oxigênio inspirado ser completamente de 100%, ou o gás

nitrogênio ser totalmente ‘eliminado’ dos pulmões e das reservas corporais. A pressão parcial de oxigênio nos pulmões ao nível do mar é, portanto, de aproximadamente 100 mmHg a 37°C a 38°C. Em tais condições, 100 mℓ de plasma vão manter 0,3 mℓ de oxigênio dissolvidos em solução. O sangue total, nas mesmas condições, manterá quase 21 mℓ de oxigênio por 100 mℓ de sangue, ou cerca de 60 vezes a quantidade no plasma; o CO2 é mantido de maneira semelhante no sangue. É evidente que o oxigênio e o CO2 no sangue são transportados em grande parte em combinação química com a hemoglobina. Nos mamíferos, a hemoglobina consiste em moléculas de quatro unidades. Cada unidade da molécula contém um heme, que é uma protoporfirina constituída por quatro pirróis com um íon ferroso (Fe2+) central. O oxigênio combina-se de maneira reversível com o íon ferroso proporcional à tensão de oxigênio. Na saturação completa, cada grama de hemoglobina se combina com 1,36 a 1,39 mℓ de oxigênio. Essa é a capacidade de transporte total da hemoglobina, ou quatro moléculas de oxigênio combinadas com cada molécula de hemoglobina. A capacidade da hemoglobina de se combinar com o oxigênio depende da PO2 no ambiente circundante. Varia muito até que ponto em que ela ficará saturada em várias pressões parciais de oxigênio (Figura 27.6). A

convenção é que, mesmo quando a ventilação é ineficiente ou o suprimento de oxigênio é escasso, como em altitudes elevadas, o grau de saturação ainda se aproxima de 100%. Por exemplo, embora seja provável que a hemoglobina não esteja completamente saturada até ser exposta a uma PO2 de 250 mmHg, a hemoglobina tem uma saturação aproximada de 94% quando a PO2 é de apenas 70 mmHg. Embora haja relativamente pouca alteração na saturação de hemoglobina entre 70 e 250 mmHg de PO2, ocorre uma alteração acentuada entre 10 e 40 mmHg, uma POv2 característica de tecidos em metabolismo ativo. Assim, à medida que a hemoglobina é exposta aos tecidos com pressão parcial de oxigênio nessa faixa, libera seu oxigênio para os tecidos. Quanto mais baixa a PO2 nesses tecidos, maior o rendimento de oxigênio da hemoglobina, o que é influenciado pelo pH do ambiente, pela PCO2 e pela temperatura – todos eles sendo mecanismos que protegem o metabolismo da célula. À medida que o pH diminui e a PCO2 e a temperatura local aumentam, seja qual for o valor da PO2, em especial na faixa de 10 a 40 mmHg, a hemoglobina libera rapidamente oxigênio para o ambiente à sua volta (Figura 27.6). Também é interessante notar que a natureza adaptou o ambiente relativamente pobre em oxigênio do feto, porque a hemoglobina fetal transporta uma porcentagem maior de oxigênio a uma pressão parcial mais baixa. Certos sistemas enzimáticos ajudam o oxigênio a se dissociar da hemoglobina, sendo o mais completamente estudado aquele que produz 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG), o qual facilita tal dissociação ao competir com o oxigênio pelo local de ligação. Um nível reduzido dessa enzima, como ocorre com o sangue armazenado para transfusão, aumenta a afinidade da hemoglobina pelo oxigênio e, portanto, age mesmo que a curva de dissociação esteja desviada para a esquerda. A tensão de oxigênio em que a saturação de 50% da hemoglobina é alcançada (P50) fornece uma medida comparativa da afinidade da hemoglobina pelo oxigênio, e esse valor varia entre as espécies. A P50 também está reduzida em pacientes com sepse e na intoxicação por monóxido de carbono, ao passo que se observou o inverso na anemia crônica. Como os tecidos requerem um determinado volume de oxigênio por unidade de tempo, a concentração de hemoglobina do sangue tem uma influência significativa sobre o conteúdo de oxigênio e sua liberação para os tecidos. Embora um aumento na PAO2 acima do normal cause apenas um pequeno aumento na capacidade de transporte de oxigênio pela hemoglobina, o plasma transporta oxigênio em uma quantidade diretamente proporcional à PO2 nos alvéolos. À pressão atmosférica normal, quando o animal está respirando ar a 38°C, 100 mℓ de sangue transportam 0,3 mℓ de oxigênio em solução. Se for administrado oxigênio puro, a PO2 nos alvéolos sobe de 100 para quase 650 mmHg. Assim, o oxigênio plasmático aumenta quase seis vezes, ou seja, de 0,3 para 1,8 mℓ por 100 mℓ de sangue. O resultado é um aumento de cerca de 10% no conteúdo de oxigênio no sangue, o que pode ter significado clínico em animais com

anemia grave. O nível de PaO2 também tem alguma importância, porque o oxigênio é transferido do sangue para os tecidos por difusão, e o processo ocorre a uma taxa proporcional à diferença na tensão de oxigênio entre o plasma e os tecidos corporais. Um conceito errôneo comum é o de que se pode melhorar a oxigenação de pacientes aumentando-se a pressão física (da via respiratória) com que o oxigênio é administrado. Exceto pelas câmaras hiperbáricas, a oxigenação de pacientes melhora não pelo aumento da pressão barométrica da mistura gasosa, mas pelo aumento da proporção de PO2 na mistura. Uma exceção aparente a isso é o uso temporário de uma pressão de insuflação aumentada para reexpandir alvéolos colapsados (manobra de recrutamento) durante anestesia prolongada, embora em tal circunstância a melhora na PaO2 se deva à melhora na combinação V/Q, não a um aumento da pressão de oxigênio em si. Com uma pressão alveolar positiva acima de 40 mmHg, a circulação capilar nos pulmões é inibida; portanto, não é prático administrar oxigênio a uma pressão de insuflação que ultrapasse esse valor. Durante anestesia, a melhor maneira de lidar com episódios de hipoxemia é reduzir o nível de anestésico inalatório na máscara ou bolsa respiratória, assegurando uma alta concentração de oxigênio inspirado, enquanto se institui VPPI com f, VT e pressão de insuflação (12 a 15 mmHg em pequenos animais e 20 a 25 mmHg em equinos e bovinos) normais. Animais saudáveis conscientes têm uma capacidade considerável de aumentar a taxa de fornecimento de oxigênio para os tecidos corporais e remover o CO2 dos mesmos, observando-se aumentos até de 30 vezes em cavalos durante exercício. O transporte de gás aumenta em equinos conscientes mediante um aumento de cinco vezes no débito cardíaco, um aumento de 50% na concentração de hemoglobina e um aumento de quatro vezes na extração de oxigênio do sangue através dos capilares da musculatura esquelética.6 A capacidade de aumentar o fornecimento de oxigênio é bem menor em espécies mais sedentárias. Durante anestesia geral, esses mecanismos adaptativos para aumentar o fornecimento sistêmico de oxigênio estão acentuadamente comprometidos. Não é provável que animais anestesiados sejam capazes de aumentar de maneira apreciável seu Vmin ou o débito cardíaco, o baço, em geral, está dilatado e incapaz de se contrair ante um aumento dos níveis de hemoglobina e um músculo fundamental (o miocárdio) não pode extrair uma proporção maior de oxigênio do sangue que segue pelos capilares em resposta a um aumento na demanda ou queda no fornecimento de oxigênio.

■ Transporte de dióxido de carbono Os níveis arteriais de CO2 são uma função tanto da eliminação do CO2 como de sua produção e, em circunstâncias normais, os níveis de PaCO2 são mantidos em limites

estreitos. Durante exercício intenso, a produção de CO2 aumenta enormemente, ao passo que, durante anestesia, a produção provavelmente diminui. A eliminação de CO2 depende do fluxo sanguíneo pulmonar (débito cardíaco) e do VA. Normalmente, a produção de CO2 é paralela com o consumo de oxigênio, de acordo com o quociente respiratório: R = VCO2/VO2. Embora o valor varie dependendo da alimentação, em geral R = 0,8 em condições estáveis. Graças aos sistemas sanguíneos de tampão, o transporte de CO2 para os pulmões por excreção ocorre com pouca alteração no pH sanguíneo. A importância dos pulmões na excreção desse ácido volátil é ilustrada pelo fato de que, em seres humanos, os rins eliminam 40 a 80 mEq de íons hidrogênio por dia, enquanto os pulmões eliminam 13.000 mEq por dia como CO2. Existe um gradiente de pressão de CO2, oposto àquele do oxigênio e muito menor, dos tecidos para o ar atmosférico: tecidos = 50 mmHg (durante exercício, pode ser maior); sangue venoso = 46 mmHg; ar alveolar = 40 mmHg; ar expirado = 32 mmHg; ar atmosférico = 0,3 mmHg; e sangue arterial = 40 mmHg (em equilíbrio com o ar alveolar). O dióxido de carbono é levado das mitocôndrias para os alvéolos de várias maneiras (Figura 27.8). No plasma, algum CO2 é transportado em solução (5%) e algum se combina com água e forma ácido carbônico, que por sua vez se dissocia em bicarbonato e íons hidrogênio (5%).3 A maior parte (cerca de 90%) do CO2 difunde-se para os eritrócitos, onde se liga à hemoglobina ou se transforma (de forma reversível) em bicarbonato e íons hidrogênio pela ação da enzima anidrase carbônica. A formação de bicarbonato nos eritrócitos é acompanhada por desvio de cloreto (o que é responsável por aproximadamente 63% do transporte total de CO2). A capacidade excelente de tamponamento da hemoglobina possibilita a ocorrência de alterações no conteúdo de íon hidrogênio durante esse processo, com alteração mínima no pH. Em circunstâncias normais, o pH do sangue venoso é de apenas 0,01 a 0,03 unidade mais baixo que o do sangue arterial. O dióxido de carbono também é transportado nos eritrócitos na forma de compostos carbamino. Aminoácidos e aminas alifáticas se combinam com o CO2 para formar compostos carbaminos instáveis. A hemoglobina é a principal proteína que age dessa maneira, embora muitas possam fazê-lo. A eficiência dessa reação é maior com a hemoglobina do que com o oxigênio ligado a ela. Portanto, à medida que a hemoglobina e o oxigênio se dissociam, a capacidade dela de transportar CO2 aumenta. Os mecanismos de transporte de CO2 e oxigênio estão integrados no sangue de pelo menos três maneiras: (1) a acidez do ácido carbônico produzida nos tecidos favorece a liberação de oxigênio sem uma alteração na tensão de oxigênio, enquanto a liberação de CO2 nos pulmões favorece a captação de oxigênio (efeito Bohr); (2) a liberação de oxigênio favorece a captação de CO2 e vice-versa no mecanismo carbamino; com a liberação de oxigênio, a hemoglobina torna-se um ácido mais fraco e fica mais capaz de

aceitar íons hidrogênio, facilitando, assim, seu efeito de tamponamento (efeito Haldane); (3) as duas formas ácidas da molécula de hemoglobina favorecem a dissociação porque há desvio de uma para outra; a captação de oxigênio favorece a perda de CO2 e vice-versa. Como a quantidade de oxigênio transportada pelo sangue depende da PO2 à qual o sangue está exposto, da mesma maneira o transporte de CO2 é afetado; no entanto, a curva de dissociação do CO2 é mais ou menos linear. Assim, em contraste com os efeitos mínimos sobre o conteúdo de oxigênio (Figura 27.6), a hiperventilação e a hipoventilação podem ter efeitos acentuados sobre o conteúdo de CO2 do sangue e dos tecidos.

Figura 27.8 Transporte de dióxido de carbono no sangue. O dióxido de carbono difunde-se dos tecidos para o plasma e os eritrócitos, sofrendo uma variedade de reações que resultam na produção de bicarbonato e íons hidrogênio, os quais são tamponados por proteínas no plasma ou pela hemoglobina, minimizando a alteração do pH. No pulmão, todas as reações mostradas nesta figura são revertidas. Fonte: referência 4. Reproduzida, com autorização, de Elsevier.

Função respiratória no animal anestesiado ■ Obstrução da via respiratória Em condições normais de consciência, a cavidade nasal, a faringe e a laringe são

responsáveis por mais de 50% da resistência total da via respiratória à respiração. Com o início da anestesia geral, a musculatura nasal alar e faríngea relaxa e, em planos anestésicos mais profundos, o reflexo da tosse é abolido. O efeito resultante é predispor os pacientes à obstrução da via respiratória. Isso é particularmente evidente em cães braquicefálicos que têm as narinas estenosadas, um palato mole alongado, ventrículos laríngeos laterais evertidos e/ou a traqueia hipoplásica. Nesses animais, o início da anestesia geral pode acarretar obstrução séria e potencialmente fatal da via respiratória, a menos que a traqueia esteja intubada. A experiência mostrou que é preferível fazer a intubação endotraqueal em todos os cães anestesiados, em parte para proteger contra obstrução da via respiratória superior, mas também para proteger contra possível aspiração de secreções ou refluxo de conteúdo gástrico proveniente do estômago. Contudo, é importante que a intubação endotraqueal seja feita sem causar qualquer traumatismo. Na maioria das espécies, o uso rotineiro de um laringoscópio reduz o traumatismo durante a intubação e também facilita um exame completo da cavidade orofaríngea, que é um componente da avaliação e da conduta com relação à via respiratória. Em muitas espécies de animais domésticos e de laboratório, a decisão de usar uma sonda endotraqueal baseia-se no benefício com relação ao custo, que precisa ser determinado de acordo com a espécie envolvida, o esquema anestésico empregado, a experiência do anestesista, a cirurgia planejada, a saúde do animal e a duração da anestesia. Em ruminantes, a intubação endotraqueal é necessária para todos, exceto quando são usados anestésicos de ação curta, como o diazepam na medicação pré-anestésica com dose baixa de cetamina em ovinos, bezerros e caprinos, que dura apenas cerca de 5 min. A razão primordial para intubação endotraqueal é proteger contra aspiração de conteúdo ruminal após regurgitação ativa ou passiva. Em suínos, a intubação endotraqueal é comparativamente difícil e requer experiência e cuidado, caso se queira evitar traumatismo. Os suínos têm inerentemente vias respiratórias pequenas e são mais propensos a desenvolver apneia que outras espécies domésticas. Apesar disso, na maioria das cirurgias rápidas (p. ex., reparo de hérnia ou criptorquidectomia), o equilíbrio entre risco e benefício é mais satisfatório sem a intubação do animal, bastando prestar o máximo de atenção à profundidade da anestesia e à característica da respiração e ao posicionamento da cabeça do animal para se minimizar a chance de obstrução séria da via respiratória. Na maioria das espécies, a melhor via respiratória é quando a cabeça é mantida em uma posição um tanto estendida; os suínos são incomuns pelo fato de que a melhor via respiratória é proporcionada com a cabeça em um ângulo normal com o pescoço. Se ocorrer obstrução significativa de via respiratória superior em qualquer espécie, e a profundidade anestésica não for excessiva, geralmente o animal desenvolverá um esforço respiratório exagerado, primariamente de caráter abdominal. A parede torácica pode

inclusive mover-se para dentro à inspiração (respiração paradoxal) se a obstrução da via respiratória for moderada ou grave. A única outra situação clínica que causa uma alteração sutil, mas distinguível, no caráter da respiração é a anestesia extremamente profunda. Isso, em geral, ocorre em um plano anestésico logo antes da cessação completa do impulso respiratório (apneia). Em roedores, como camundongos, gerbilos, hamsters e cobaias, bem como em coelhos, a intubação endotraqueal pode ser difícil, a menos que o anestesista tenha experiência com a técnica e equipamento especial. Nessas espécies, períodos mais prolongados e bem controlados de anestesia para fins experimentais podem necessitar de intubação endotraqueal. Procedimentos mais curtos na prática veterinária em geral podem ser realizados sem o uso de sonda endotraqueal. Uma máscara facial adequada e um sistema de administração não respiratória podem ser usados para administrar oxigênio (no caso de anestesia injetável) ou para a administração de um esquema de inalação de oxigênio usando um vaporizador de precisão. Quando o anestesista é capaz de fazer uma intubação endotraqueal não traumática e tem sondas de tamanho adequado (3 a 4 mm), é preferível intubar furões e coelhos, porque os planos anestésicos cirúrgicos causam depressão respiratória considerável e é muito mais fácil lidar com a apneia se uma sonda endotraqueal já tiver sido colocada. Há alguma controvérsia se sempre se deve colocar uma sonda endotraqueal em gatos para procedimentos curtos (p. ex., castração). Os gatos tendem a manter uma via respiratória permeável mais efetivamente que outras espécies, a menos que sejam usados fármacos (p. ex., éter) que aumentem a incidência de secreções e/ou laringospasmo, o qual é comparativamente raro quando se administra halotano, isofluorano ou sevofluorano por meio de máscara, ou quando se usa cetamina ou propofol com diazepam, acepromazina ou sedação com agonista do receptor adrenérgico α2 em dose baixa para anestesia injetável. Além disso, a intubação endotraqueal requer um nível de anestesia mais profundo que o necessário para procedimentos cirúrgicos mínimos ou diagnósticos. A ocorrência de laringospasmo é mais provável após anestesia quando a laringe foi traumatizada durante a intubação ou as sondas endotraqueais foram limpas com detergente ou desinfetante, após o uso em outros animais, sem serem enxaguadas adequadamente. Em uma revisão recente de vários estudos sobre a morbidade e a mortalidade de felinos durante anestesia, a incidência mais alta de mortalidade foi relatada no início do período de recuperação.51 A complicação foi comumente associada a obstrução pós-anestésica da via respiratória e traumatismo durante a inserção ou a manutenção de uma sonda endotraqueal. Em contrapartida, não há como negar as muitas vantagens associadas à intubação endotraqueal em gatos, da mesma maneira que em outras espécies. Tem-se uma via respiratória permeável imediatamente se o animal precisar de VPPI por causa de apneia ou insuficiência respiratória, o risco de

aspiração de conteúdo gástrico é bastante reduzido e é mais fácil eliminar os resíduos de gases se estiver sendo usado um anestésico inalatório. Em gatos, a dessensibilização laríngea com lidocaína pode ajudar a reduzir o espasmo e o traumatismo associados à colocação de uma sonda. A colocação de uma sonda endotraqueal deve basear-se em uma avaliação pré-anestésica do risco de comprometimento da via respiratória em cada paciente e dos potenciais benefícios de terem uma via respiratória patente. Se o paciente não for intubado, o anestesista deve assegurar-se de que dispõe de uma via respiratória de emergência e oxigênio, bem como de que a permeabilidade da via respiratória está sendo monitorada continuamente. Os livros de anestesia veterinária têm dado pouca ênfase na necessidade de se proporcionar uma via respiratória segura em equinos, principalmente porque a regurgitação nesses animais é muito rara. Embora seja verdade que técnicas anestésicas de campo de curta duração e injetáveis tenham sido executadas por muitos anos sem o uso de uma sonda endotraqueal, ocorre um número considerável de obstruções de via respiratória em equinos (Figura 27.9), primariamente porque as narinas deles não se abrem mais durante a inspiração. Portanto, a colocação de uma sonda endotraqueal pode ser considerada desejável na maioria das circunstâncias.52

Figura 27.9 Alterações no trabalho não elástico da respiração com o início da anestesia geral (tiobarbital) em um equino respirando espontaneamente. A alteração na pressão transpulmonar (via respiratória abrindo para balão esofágico) é mostrada na abscissa e a alteração no volume (volume corrente) é mostrada na escala ordenada. A área dentro das alças é uma medida do trabalho não elástico da respiração e um reflexo da resistência da via respiratória, bem como um pequeno componente da resistência tecidual. A alça acima à esquerda foi obtida do equino consciente respirando calmamente; a alça acima à direita foi obtida após 15 min de anestesia com o equino em decúbito lateral e respirando sem sonda endotraqueal colocada; a alça inferior à esquerda foi obtida após se ter colocado uma sonda de 25 mm no equino e a alça inferior à direita foi obtida assim que o equino estava em recuperação e com a sonda removida. Notar o grande aumento no trabalho não elástico da respiração durante anestesia até a inserção da sonda endotraqueal e a necessidade de gerar pressões negativas razoavelmente altas (10 a 15 cmH2O) antes que haja um volume apreciável de gás inspirado. Isso é indicativo de obstrução de via respiratória superior. Fonte: W.N. McDonell, observações não publicadas.

Essa tendência à obstrução de via respiratória aumenta quando um equino é anestesiado por mais de 1 a 2 h, especialmente se colocado em decúbito dorsal.53 Acredita-se que a

congestão passiva e a tumefação tecidual ocorram porque as estruturas nasofaríngeas ficam abaixo do coração em animais anestesiados e isso os predispõe à obstrução da via respiratória no período de recuperação, quando a sonda endotraqueal é removida. Como resultado, muitos anestesistas de equinos agora fixam uma via respiratória orotraqueal, nasotraqueal ou nasofaríngea durante o processo de recuperação, sempre que esses animais tiverem sido anestesiados por muito tempo (p. ex., mais de 30 a 45 min).54,55 Em termos clínicos, parece que assegurar uma via respiratória patente de diâmetro adequado enquanto um equino estiver tentando se levantar (e respirando com vigor) impede o pânico associado à obstrução parcial ou completa da via respiratória e resulta em uma recuperação mais controlada. Ainda são necessários estudos em ampla escala da morbidade e da mortalidade que tratem da questão sobre quando e onde se deve usar uma sonda endotraqueal durante anestesia veterinária de rotina, especialmente no contexto da prática.

■ Alteração anestésica do controle da ventilação O impulso respiratório e o ajuste em f, VT e VA são conseguidos em animais conscientes mediante um mecanismo regulador neural complexo. O ritmo respiratório origina-se no bulbo e é modificado por comandos dos centros cerebrais mais altos e pela atividade de quimiorreceptores, receptores pulmonares e da via respiratória. Os mecanismos de controle neural central regulam a atividade dos músculos respiratórios primários e acessórios, produzindo movimento de gás para dentro e para fora do pulmão e da árvore traqueobrônquica. Esses mecanismos de controle são descritos em detalhes em outra fonte de consulta.4,5,56 Embora certamente haja uma similaridade no mecanismo de controle entre as espécies, é importante lembrar que vários componentes podem assumir maior importância em espécies diferentes. Apesar de a informação detalhada citada antes ser importante para ajudar a entender as adaptações respiratórias a altitudes elevadas, doença e exercício, para o sucesso na conduta da anestesia clínica é suficiente um entendimento muito simplificado do controle da respiração (Figura 27.10). Em animais conscientes, VEmin e VAmin são determinados primariamente pela capacidade de resposta dos quimiorreceptores centrais aos níveis de PaCO2. Os quimiorreceptores centrais, localizados na superfície ventral do bulbo e banhados pelo líquido cerebroespinal, são extremamente sensíveis a alterações nos níveis de PaCO2 porque o CO2 é prontamente difusível no referido líquido e na célula quimiorreceptora central. É provável que as alterações na PaCO2 acabem sendo detectadas como uma alteração no pH dentro da célula quimiorreceptora. Essa resposta ventilatória ao CO2 em geral se apresenta como uma curva de resposta na qual se coloca VAmin ou VEmin contra a PaCO2, a pressão alveolar parcial de dióxido de carbono (PACO2), a pressão parcial de CO2 do volume corrente (PETCO2) ou o nível de CO2 inspirado (Figura 27.11A).

Um aumento na PaCO2 de 3 a 5 mmHg resultará em duplicação ou triplicação rápida do VAmin, em um esforço para trazer de volta a PaCO2 para os níveis da eucapnia. Essa resposta é um pouco menos sensível em equinos57,58 e muito menos sensível em mamíferos que vivem em tocas e mergulham.59 Nos ruminantes, o gás produzido no rúmen pode consistir em mais de 60% de CO2 e, quando é eructado, uma proporção significativa dele é inalada, contribuindo para um padrão respiratório cíclico.60 Uma queda no pH arterial também estimulará a respiração através de quimiorreceptores centrais e periféricos, conforme visto com acidose metabólica: tal resposta é mais lenta. Os quimiorreceptores centrais não respondem a alterações nos níveis da PaO2. Os quimiorreceptores periféricos, que estão localizados nos corpos carotídeo e aórtico, em geral têm uma participação significativa no impulso respiratório apenas quando os níveis da PaO2 caem abaixo de 60 mmHg.4,56 Isso está ilustrado na Figura 27.11B, aproveitada de um estudo sobre equinos conscientes.61 Como a FIO2 foi diminuída de 1 (100% de oxigênio inspirado) para menos de 0,16, não houve alteração no VEmin. Ante uma FIO2 de 0,16, a tensão do oxigênio alveolar (PAO2) seria de 60 a 65 mmHg ao nível do mar. Em ovinos, caprinos e pôneis, entretanto, a denervação do corpo carotídeo causa alguma hipoventilação, hipoxemia e hipercapnia, estimando-se que a atividade do receptor do corpo carotídeo seja responsável por até 30% do impulso respiratório em repouso do VA em bezerros ao nível do mar e até 40% em suínos miniaturas.17,62 Durante anestesia inalatória63,64 ou intravenosa65 em equinos, os níveis de PaCO2 aumentarão 5 a 10 mmHg se o gás inspirado for trocado de ar ambiente (21% de oxigênio) para uma mistura de 50% de oxigênio a uma de 90 a 100% de oxigênio. Isso pode ocorrer porque os quimiorreceptores periféricos são parcialmente responsáveis pelo estímulo para a ventilação em tais situações, com altos nervos de oxigênio praticamente bloqueando o estímulo. Apesar disso, a hipercapnia leve durante a administração de oxigênio é muito menos consequência da segurança anestésica que o grau de hipoxemia que pode ocorrer com a respiração de ar.

Figura 27.10 Diagrama esquemático do controle da ventilação em animais conscientes e anestesiados. No animal consciente, o nível de ventilação alveolar é determinado primariamente pelo nível de dióxido de carbono arterial (PaCO2; conforme percebido pelos quimiorreceptores centrais) e pelo nível do tráfego no tronco cerebral. Os centros apnêusticos e pneumotáxicos e os receptores de estiramento ajustam a relação entre o volume corrente e a frequência para que a ventilação alveolar necessária seja alcançada, em geral enquanto minimizam o trabalho da respiração. A anestesia geral (An) diminui o tráfego no tronco cerebral e a resposta do quimiorreceptor ao dióxido de carbono, ocasionando um aumento na PaCO2. Na maioria das espécies, os quimiorreceptores periféricos começam a influenciar o nível de ventilação alveolar se a PaO2 cair para menos de 60 mmHg. ΔpH, alteração no pH; SAR, sistema de ativação reticular.

Figura 27.11 A. Esta curva de resposta do dióxido de carbono de seis equinos mostra dados de pontos individuais, a linha de regressão e o ponto teórico de apneia. A ventilação minuto está colocada contra o dióxido de carbono corrente final. Permitiu-se que os equinos respirassem novamente CO2 a partir de um grande espirômetro preenchido com 30% de oxigênio. Fonte: dados modificados da referência 57. B. Uma curva de resposta ao oxigênio em equinos não sedados e em outros equinos sedados com acepromazina. A alteração porcentual na ventilação está colocada contra a concentração de oxigênio inspirado. Fonte: dados modificados da referência 61.

A atividade dos sistemas nervosos centrais e o nível do impulso ventilatório também são influenciados pelo nível geral de atividade do sistema nervoso central, em especial pelo tráfego através do sistema ativador reticular (SAR). Isso é evidenciado pela diminuição no VAmin e pelo pequeno aumento na PaCO2 que acompanham o sono, bem como pelo fato de que animais que estejam se exercitando comumente apresentam hipocapnia, mesmo que a liberação de oxigênio tecidual seja adequada. Os anestésicos fazem bom uso dessa ligação entre a atividade do SAR e o impulso respiratório usando um aumento da estimulação sensorial (flexão de membro, torção da orelha do equino, virada do corpo de um cão ou gato ou esfregação vigorosa da superfície corporal) para aumentar o impulso ventilatório durante a emergência da anestesia inalatória, acelerando, assim, a eliminação do fármaco inalatório e a recuperação. Os centros apnêusticos e pneumotáxicos, bem como os receptores pulmonares e das vias respiratórias, são os responsáveis primários pelo ajuste do equilíbrio entre a f e o VT para alcançar determinado nível de VAmin, em geral de modo a minimizar o custo de energia da respiração. Embora não se costume considerar que a função desses receptores seja muito influenciada pela ação de agentes anestésicos e perianestésicos, eles podem ter um papel parcial em algumas das diferenças entre espécies que vemos em resposta a um fármaco particular ou grupo de fármacos.56 Por exemplo, à medida que se aumenta a dose inalada de isofluorano, a f permanece estável ou aumenta em furões, enquanto diminui em ratos e coelhos.66,67 Em cães e gatos, conforme se aumenta a dose de um agente inalatório, a f em geral permanece constante ou aumenta,68,69 embora haja alguma variação na resposta de acordo com o fármaco.70 Em equinos, a f permanece mais ou menos constante quando se aumenta a dose de anestésicos inalatórios.71-73 A frequência respiratória, em geral, é menor com isofluorano, sevofluorano ou desfluorano do que com o halotano em uma dose equipotente, enquanto o VT é maior.71,73 Os barbitúricos geralmente diminuem a f e o VT quando sua dose é aumentada, ao passo que a resposta primária a doses crescentes de inalatório é a redução do VT (ou é uma exceção). Em ruminantes, a anestesia geral costuma estar associada a taquipneia e respiração muito superficial.74,75 Todas essas diferenças

poderiam muito bem originar-se de divergências entre as espécies e/ou os fármacos nos mecanismos centrais de desvio inspiratório-expiratório ou na atividade dos receptores pulmonares (de estiramento, de irritação e fibras C), mas a evidência disso é primordialmente especulativa. A atividade dos receptores de irritação na via respiratória, em especial nas regiões da laringe e traqueal, parece diferir de maneira acentuada entre as espécies. Por exemplo, equinos têm um reflexo laríngeo fraco, razão pela qual é mais fácil inserir uma sonda nasoendotraqueal quando estão conscientes, mesmo sem o auxílio de um anestésico local. Em contraste, suínos e gatos têm um reflexo laríngeo forte, sendo necessária anestesia razoavelmente profunda para facilitar a intubação endotraqueal, a menos que se faça a dessensibilização com um anestésico tópico. A resposta de cães é intermediária. Limiar apneico O limiar apneico é o nível de PaCO2 em que a ventilação se torna zero; ou seja, quando o esforço ventilatório espontâneo cessa (Figura 27.11A) por causa da perda do impulso respiratório central [p. ex., PCO2 baixa ou pH alto (com relação ao ponto de ajuste) nos centros respiratórios medulares]. Uma redução de 5 a 9 mmHg nos valores normais da PaCO2 por hiperventilação voluntária (uma pessoa consciente) ou por ventilação artificial de animais sedados ou anestesiados acarreta apneia. A distância entre o nível de repouso da PaCO2 e o limiar de apneia é relativamente constante (i. e., 4 a 6 mmHg), independentemente da profundidade anestésica.56,76 Os anestesistas veterinários usam o limiar apneico para controlar a respiração (i. e., abolir os esforços espontâneos) quando colocam um animal em um ventilador, ou para terem um campo cirúrgico temporariamente imóvel, sem a necessidade de usar relaxantes musculares. O fato de que a apneia se desenvolve com qualquer profundidade anestésica e qualquer anestésico quando os níveis da PaCO2 são reduzidos acentuadamente significa que a ‘ventilação assistida’ se transforma logo em ‘ventilação controlada’ assim que a hipercapnia é corrigida. Uma manifestação clínica comum dessa ideia é a ausência de eficácia quando o anestesista tenta diminuir os níveis de CO2 corrente final ‘ensacando’ o paciente intermitentemente. É possível conseguir melhora temporária, mas o animal ficará apneico assim que o limiar apneico for alcançado (o que geralmente é elevado a partir do ponto final desejado como 50 versus 40 mmHg). A respiração espontânea não retornará até que o limiar apneico seja transposto novamente, mas em um nível que, em geral, representa hipercapneia. Deve ser evidente que a ventilação controlada costuma ser uma estratégia mais efetiva para manter a eucapneia durante anestesia prolongada ou quando se usa um depressor respiratório. Outro aspecto clinicamente relevante do limiar apneico se relaciona com o retorno da ventilação espontânea no animal ventilado mecanicamente. As reservas corporais de CO2

precisam acumular-se para que os níveis normais de PaCO2 retornem na direção do nível do limiar apneico (que podem ser elevados a partir dos níveis conscientes em decorrência dos anestésicos) antes que a ventilação espontânea possa ser reassumida. Daí a duração necessária da apneia antes que o animal comece a ventilação espontânea ser proporcional à profundidade anestésica e também à magnitude da hipocapnia produzida durante o período de VPPI. Reconhecendo desse fato, a maioria dos anestesistas veterinários reduzirá tanto a concentração do anestésico inalatório como a frequência da respiração antes de tentar passar o animal da VPPI para a ventilação espontânea.

■ Efeito farmacológico sobre o controle da ventilação Os fármacos anestésicos e alguns perianestésicos alteram a resposta dos quimiorreceptores centrais e periféricos ao CO2 e ao oxigênio de maneira dependente da dose, conforme ilustrado nas Figuras 27.12 e 27.1356,76-81. Esse efeito farmacológico tem implicações clínicas importantes em termos de manutenção da homeostasia durante o período peroperatório. Também haverá uma diminuição de sinais externos em animais anestesiados com hipoxia ou hipercarbia e, talvez, durante o período de recuperação.82 Embora animais não sedados, em geral, demonstrem taquipneia óbvia e um aumento no VT ou no esforço respiratório em resposta a hipoxemia ou hipercapnia sérias, esses sinais externos de uma crise iminente podem estar ausentes ou bastante diminuídos em animais anestesiados. Felizmente, parece que a depressão relacionada com a anestesia da resposta do quimiorreceptor periférico à hipoxia não é tão acentuada em cães e gatos como nos seres humanos.79-81 Essa resposta não foi estudada em outras espécies. Fármacos inalatórios e injetáveis Todos os agentes anestésicos gerais atualmente em uso acarretam uma diminuição na resposta ao CO2, dependendo da dose.4,56,76 No caso dos agentes inalatórios de uso comum, a resposta ao CO2 é quase plana com uma concentração alveolar mínima (CAM) de 2.78,79 O input sensorial reduzido e a sensibilidade central ao CO2 causam uma queda acentuada no VAmin, em geral por meio de uma redução no VT relacionada com a dose e f sendo razoavelmente bem mantida. Ocorre um aumento proporcional na VD/VT, porque o VDanat é mais ou menos constante. Como resultado dessas alterações, os níveis da PaCO2 aumentam conforme a dose do anestésico é aumentada quando os animais estão respirando espontaneamente (Figura 27.13A).68,83,84 Em planos anestésicos leves (p. ex., uma concentração alveolar mínima de 1,2), a PaCO2 em geral permanece moderadamente elevada, porém estável, após muitas horas de anestesia, ao passo que, com altas concentrações ou em ruminantes, a PaCO2 aumenta progressivamente com o tempo. A magnitude da hipercarbia com doses equipotentes de agentes anestésicos inalatórios (e

intravenosos) varia com a espécie e o grau de estimulação cirúrgica (Figura 27.13B).84-87 Dentre os anestésicos inalatórios de uso comum, o halotano causa o menor aumento na PaCO2 durante respiração espontânea, enquanto, em doses equipotentes, o isofluorano, o sevofluorano e o desfluorano resultam em níveis um pouco mais altos e similares de PaCO2 na maioria das espécies.70-73,88 Em ruminantes, a magnitude da hipercarbia é maior com doses equipotentes de anestésicos inalatórios que em equinos, os quais exibem mais depressão respiratória que macacos e cães (Figura 27.13B). Clinicamente, suínos, furões e coelhos também parecem ser mais propensos à hipercarbia, enquanto focas que mergulham profundamente podem ficar totalmente apneicas durante níveis leves de anestesia ou se forem sedadas apenas com opioide.89 Durante cirurgia, o nível de depressão respiratória, em geral, é menor, e as diferenças entre os fármacos podem desaparecer. Por exemplo, em éguas prenhes em decúbito dorsal respirando espontaneamente cuja indução anestésica foi feita com xilazina e tiamilal sódico e mantida com halotano ou isofluorano para laparotomia cirúrgica, os níveis de PaCO2 aumentaram de 53,8 para 58,3 mmHg durante anestesia com halotano e foram de 60,7 a 63,5 mmHg durante anestesia com isofluorano. Não houve diferença significativa nos níveis da PaCO2 (ou da PaO2) com os dois agentes de 30 a 90 min, embora a f tenha sido menor (4 a 5/min) com o isofluorano do que com o halotano (8 a 10 min).90 Os barbitúricos, o propofol e as ciclo-hexaminas (cetamina, fenciclidina e tiletamina) também causam uma alteração similar na resposta ao CO2 relacionada com a dose que pode, no caso dos barbitúricos, prolongar de maneira considerável o período real de anestesia.91 Embora geralmente se considere que a cetamina não deprime tanto a respiração como os barbitúricos,77 a experiência clínica e estudos de pesquisa mostraram que doses clinicamente efetivas de cetamina podem induzir apneia em alguns indivíduos. A resposta típica a doses crescente de barbitúricos é diminuição tanto no VT como na f. Quando são usados anestésicos injetáveis antes dos agentes inalatórios, como é comum na anestesia veterinária clínica, os efeitos depressores da respiração de ambos os fármacos são, pelo menos, aditivos.56,91 Embora o controle da ventilação durante anestesia seja determinado primordialmente por uma capacidade de resposta central ao CO2 (ainda que reduzida), durante anestesia muito profunda com barbitúrico, o impulso ventilatório do CO2 pode desaparecer e tornarse hipóxico. A sensibilidade ao impulso hipóxico também é diminuída bastante por anestésicos gerais (pelo menos os inalatórios) de maneira relacionada com a dose (Figura 27.12).77-81 É interessante notar que, embora praticamente não haja resposta de quimiorreceptor periférico à PaO2 em níveis fisiológicos (80 a 110 mmHg) em animais conscientes, em equinos e patos anestesiados os níveis de PaCO2 são maiores a uma FIO2

de 1 do que de 0,3.63,92 Portanto, os altos níveis de oxigênio usados na maioria dos esquemas inalatórios poderiam contribuir um pouco para a depressão da ventilação ao mesmo tempo que ajudam a assegurar que o nível de oxigenação seja adequado.

Figura 27.12 Alteração na resposta da ventilação à respiração hipóxica de misturas gasosas em cães conscientes e durante 1, 1,5 e 2 níveis de concentração alveolar mínima (CAM) de anestesia com enfluorano, halotano e isofluorano. O valor (A) descreve a forma da resposta ventilatória hiperbárica hipóxica, de modo que, quanto maior o valor de A, maior a resposta à hipoxia. A determinação de A foi feita com adaptação da curva e uma regressão de menos quadrados de VE contra 1/(PAO2-3,5). Notar a resposta bastante reduzida no impulso hipóxico até mesmo com anestesia de 1 CAM dos três agentes e a resposta praticamente plana com 1,5 e 2 CAM. Fonte: referência 78. Reproduzida, com autorização, de Oxford University Press.

Figura 27.13 A. Influência da dose crescente de anestésico (múltiplos da concentração alveolar mínima, CAM) sobre os níveis arteriais de dióxido de carbono (PaCO2) em cães respirando espontaneamente anestesiados com enfluorano (Enf), metoxifluorano (Met), isofluorano (Iso) ou halotano (Hal). Fonte: dados compilados de uma série de estudos feitos por Steffey et al.68,83,84 B. Diferenças na PaCO2 com respiração espontânea e níveis crescentes de halotano (múltiplos da CAM) em bezerros (C), equinos (H), macacos (M) e cães (D). Fonte: dados compilados de uma série de estudos feitos por Steffey et al.85-87

Opioides Quando administrados isoladamente, os opioides desviam a curva de resposta ao CO2 para a direita com pouca alteração na inclinação, exceto em doses muito altas. Isso significa que o nível da PaCO2 em repouso poderia ser ligeiramente mais alto em um animal que estivesse recebendo uma dose terapêutica de um opioide para pré-medicação ou recuperação pós-operatória, mas que a resposta a um desafio maior com CO2 (do metabolismo, obstrução de via respiratória etc.) não será abolida. Clinicamente, quando são usados opioides em doses altas como parte de um esquema anestésico equilibrado, há um efeito aditivo da depressão do centro respiratório causada pelo opioide e pelo anestésico geral, podendo ocorrer hipercarbia considerável ou mesmo apneia.93,94 Além disso, os opioides µ em particular tendem a provocar respiração rápida e superficial em cães (especialmente antes da obtenção de um plano cirúrgico de anestesia),95 que pode interferir

na captação subsequente de um anestésico inalatório. Nas doses comumente empregadas para pré-medicação rotineira com opioide ou analgesia pós-operatória na prática veterinária, raras vezes se observa depressão respiratória significativa, pelo menos em termos de provocar hipercapnia.95-97 Podem ocorrer alterações no padrão da ventilação e podem variar de uma respiração rápida superficial com frequência ventilatória diminuída em decorrência de redução na apreensão. É interessante que a ventilação alveolar efetiva pode melhorar bastante quando são empregados analgésicos opioides para alívio da dor pós-operatória, especialmente em cirurgias torácicas.98 O uso pós-operatório de opioide foi implicado no desenvolvimento de uma incidência maior de atelectasia e hipoxemia pós-operatórias em pacientes humanos, em particular durante o sono.99 Evidência clínica sugere que a incidência de problemas similares em pacientes veterinários é rara, mas é uma área que requer mais estudo. A tendência histórica a se minimizar o uso de opioides para analgesia pós-operatória por causa do receio de problemas respiratórios sérios não se baseia simplesmente em fatos, conforme agora se sabe.100 Entretanto, alguns pacientes (p. ex., indivíduos com hipertensão intracraniana) podem ter depressão respiratória significativa; portanto, são aconselháveis observação cuidadosa e monitoramento da ventilação, em especial durante a recuperação. Há um efeito máximo e menos depressão respiratória associada aos agonistas/antagonistas opioides (p. ex., pentazocina, butorfanol, nalbufina e buprenorfina) quando usados em altas doses do que com os agonistas µ puros (meperidina, morfina e oximorfona).100,101 O uso da via epidural de administração ajuda a assegurar que haja uma depressão respiratória pósoperatória mínima com casos de alto risco.102,103 Tranquilizantes Os sedativos fenotiazínicos e benzodiazepínicos, em geral, reduzem a frequência respiratória, em especial se um animal estiver um tanto excitado antes da administração, mas não alteram de maneira apreciável as tensões arteriais dos gases sanguíneos.96,104,105 Foram realizados poucos estudos sobre o efeito desses fármacos sobre a resposta ao CO2, especialmente em animais. Equinos sedados com acepromazina (0,65 mg/kg IV) responderam de maneira semelhante, em termos de alteração do VEmin, a equinos não sedados até o nível de hipoxia ou hipercapnia ter sido bastante grave (FIO2 de 0,1 ou FICO2 de 0,06), momento em que a resposta diminuiu.61 Quando usado sozinho, o diazepam (0,05 a 0,4 mg/kg, IV) não provocou alterações significativas na PaO2 ou na PaCO2 em equinos.106 A natureza protetora da respiração que esses fármacos têm é tal que, quando são combinados com um anestésico geral cuja dose necessária é diminuída por causa disso, a ventilação é melhor do que quando se usa apenas um concentração mais alta equipotente do anestésico geral (barbitúrico ou inalatório). Essa pode ser uma das razões pelas quais os

tranquilizantes fenotiazínicos e benzodiazepínicos são amplamente empregados com fármacos pré-anestésicos na prática clínica. Sedativos e hipnóticos Os agonistas do receptor adrenérgico α2 causam um efeito mais complicado sobre a respiração. As doses clínicas habituais de xilazina e detomidina provocaram relaxamento laríngeo em equinos e alteraram a mecânica pulmonar (complacência dinâmica e resistência pulmonar).107,108 Parte desse efeito, mas nem todo, é causada pela alteração na posição da cabeça do equino com a sedação.109 Certamente, a magnitude da disfunção laríngea provocada pela sedação com um agonista do receptor adrenérgico α2 em equinos pressupõe esse tipo de sedação ao se fazer um exame diagnóstico da laringe. Embora a maioria dos estudos tenha falhado em demonstrar um aumento significativo nos níveis de PaCO2 após sedação de equinos com xilazina, detomidina ou romifidina,110,111 em geral observa-se um decréscimo de 10 a 20 mmHg na PaO2.107,109,110 Em ovinos, é evidente que doses clinicamente úteis de sedativos e outros agonistas do receptor adrenérgico α2 causam hipoxemia significativa, conforme ilustrado na Figura 27.14, sem provocar hipoventilação.112,113 Ovinos continuam eucapneicos ou ficam hipocapneicos em decorrência do estímulo hipóxico. Essa resposta está associada a taquipneia, falha na complacência dinâmica do pulmão (i. e., aumento na rigidez) e aumento na alteração máxima na pressão transpulmonar e na resistência pulmonar durante a respiração corrente.112-114 Essa resposta pode ocorrer até com doses subsedativas114 e a hipoxemia pode durar mais que o período de sedação.112,113 Ao exame histológico convencional e com a microscopia eletrônica, a resposta inicial parece estar associada à internalização da camada da superfície e à ativação dos macrófagos pulmonares intravasculares encontrados em ovinos (e possivelmente outros ruminantes).115 Aventou-se a hipótese de que essas células reativas liberem mediadores inflamatórios que levam ao início rápido de broncoconstrição e a um extravasamento do leito vascular pulmonar. Por 10 min, há evidência óbvia de edema e hemorragia intra-alveolares após doses sedativas de xilazina (Figura 27.15) ou medetomidina, e mesmo após a administração do agonista do receptor adrenérgico α2 não sedativo de ação periférica ST-91.115

Figura 27.14 Pressão parcial de oxigênio arterial (PaO2) em ovinos após administração de solução fisiológica, diazepam ou um agonista do receptor adrenérgico α2 em ovinos adultos sadios mantidos em decúbito esternal. Os valores basais (BL) e após 60 min são mostrados para solução fisiológica (¸), diazepam (£) (0,4 mg/kg), xilazina (¢) (150 µg/kg), romifidina (Δ) (50 µg/kg), detomidina (p) (30 µg/kg), medetomidina (®) (10 µg/kg) e o agonista do receptor adrenérgico α2 não sedativo ST-91 (o) (30 µg/kg). São mostradas as diferenças significativas (p ≤ 0,05) do tratamento com placebo para o diazepam (*) e todos os outros agonistas do receptor adrenérgico α2 (#). Notar o grau acentuado de hipoxemia com valores de PaO2 bem abaixo dos níveis venosos normais e também a persistência da hipoxemia em todos os 60 min. Isto ficou bem atrás da duração real da sedação com numerosos agentes. Fonte: dados modificados das referências 112 e 113.

Não está claro se essa resposta adversa também ocorre em outros ruminantes, em parte porque é difícil diferenciar o efeito de uma alteração na posição do corpo daquele decorrente do uso concomitante de outros fármacos. Em bezerros, observou-se que os níveis da PaO2 diminuíram de 88 para 55 mmHg após sedação com xilazina e, em caprinos, de 90 para 65 mmHg.116,117 Quando sete vacas saudáveis da raça Holandesa (Holstein) posicionadas em decúbito lateral (em uma mesa inclinável) receberam xilazina na dose de 0,2 mg/kg IV, os níveis médios da PaO2 diminuíram de 79 ± 4,5 (DPM) mmHg para 54,5 ± 2,7 mmHg em 5 min e 58,4 ± 2,6 mmHg 15 min após a administração de xilazina. Os

níveis de PaCO2 também aumentaram de maneira significativa de 34,9 ± 2 mmHg para níveis mais normais de 45 ± 2,1 e 45,6 ± 1,4 mmHg aos 5 e 15 min, respectivamente (R. Warren e W.N. McDonell, dados não publicados). A hipoxemia é um problema significativo quando cervos silvestres, bisões e vapitis são imobilizados com combinações de fármacos contendo agonistas do receptor adrenérgico α2 (ou opioides).118-120 O tratamento com oxigênio suplementar é recomendado e aumentará a PaCO2 para níveis mais seguros.120 Quando usados apenas em doses sedativas, os agonistas do receptor adrenérgico α2 exibem pouca evidência de depressão respiratória verdadeira em cães ou gatos sadios.121-125 Pode haver uma diminuição da frequência respiratória e talvez um pequeno aumento nos níveis da PaCO2, mas os da PaO2 são bem mantidos. Acredita-se que a cianose periférica que tem sido relatada em até um terço dos cães sedados com medetomidina seja causada pelo baixo fluxo sanguíneo (com aumento subsequente da extração de oxigênio) nos leitos capilares periféricos e pela dessaturação venosa, mais que por uma queda na saturação arterial.126 No entanto, é importante lembrar que a magnitude da depressão respiratória provocada por um agonista do receptor adrenérgico α2 aumentará (geralmente de maneira substancial) quando o agonista for administrado junto com outros sedativos ou agentes anestésicos. Vários estudos demonstraram com clareza que a medetomidina ou a dexmedetomidina elevam os níveis da PaCO2 e diminuem os da PaO2 para valores discretamente hipóxicos (i. e., 60 a 70 mmHg), quando combinadas com agonistas opioides µ ou κ, ou com propofol ou cetamina, nas doses clínicas em animais sadios. A diminuição nos níveis da PaO2 devese, em parte, a alguma hipoventilação e a um aumento na V/Q dispersa, conforme descrito na próxima seção. Portanto, recomenda-se administrar oxigênio por meio de máscara facial ou intubação endotraqueal sempre que forem usados agonistas do receptor adrenérgico α2 em combinação com outros sedativos ou anestésicos injetáveis.126 Isso é especialmente válido ao lidar com animais geriátricos ou doentes.

■ Outras consequências pulmonares associadas à anestesia Os anestésicos gerais, em particular os inalatórios, interferem na atividade ciliar nas vias respiratórias e na depuração do muco, tanto durante o período anestésico real como também no pós-anestésico.56 Não está totalmente esclarecido até que ponto tal efeito se deva ao anestésico em si, a alterações na umidade da via respiratória ou ao efeito da administração concomitante de oxigênio. A abolição, causada pelo anestésico, do ‘sinal’ fisiológico normal periódico associado à ventilação consciente e o efeito de alterações no volume corrente com a ventilação mecânica também podem ser fatores contribuintes. Há ainda uma redução na resistência do sistema pulmonar normal à infecção, o que pode ter

consequência no animal com deficiência imune ou se houver uma infecção pulmonar clínica ou subclínica subjacente.56

Figura 27.15 Histologia de pulmões de ovinos 10 min após a administração de (A) solução fisiológica intravenosa ou (B) xilazina na dose de 150 µg/kg. Notar o grau de hemorragia e edema alveolares presentes após a administração de xilazina. Eutanásia e fixação, conforme relatado em outro texto.115 Fonte: C. Celly, Ontario Veterinary College, University of Guelph, Guelph, Ontário, Canadá. Reimpressa com permissão de C. Celly. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Alterações nas relações entre ventilação e perfusão durante anestesia O início da anestesia geral1-5 ou, no caso de grandes animais, até mesmo uma alteração na posição corporal127-130 geralmente diminuem os níveis da PaO2 abaixo dos esperados para a concentração liberada de oxigênio inspirado. Tal alteração pode ocorrer mesmo sem hipoventilação e durante tanto a respiração espontânea como a controlada. A queda na

PaO2 é causada por alterações na razão entre ventilação/perfusão nos pulmões. Muito do que sabemos sobre esse fenômeno de alteração na troca de gases é derivado de estudos da resposta humana à anestesia, alguns experimentos em cães e muitos estudos sobre equinos anestesiados. Quando se observam os resultados coletivos, é óbvio que há diferenças importantes entre as espécies, embora a(s) razão(ões) dessas diferenças nem sempre seja(m) tão óbvia(s).

■ Dispersão da ventilação-perfusão em condições normais Para se entender como a anestesia altera as relações entre ventilação e perfusão (V/Q), primeiro é necessário apreciar a dispersão das razões V/Q no pulmão normal de animais conscientes e os mecanismos pelos quais a combinação regional de fluxo sanguíneo pulmonar e ventilação alveolar é otimizada.6,42,43 A Figura 27.16 é uma representação esquemática das relações V/Q em animais conscientes e anestesiados. A pressão intrapleural é mais subatmosférica nas partes mais superiores do pulmão que nas regiões pendentes adjacentes, por causa do ‘peso’ dos pulmões dentro da cavidade torácica.39,131 Em parte graças às diferenças na densidade pulmonar entre as espécies e em parte por aquelas na configuração da parede torácica, o gradiente vertical total da pressão intrapleural sobre todo o pulmão aparentemente não difere muito entre as espécies, apesar de grandes diferenças no tamanho e na altura pulmonares. Isso é fortuito, porque do contrário haveria uma tendência a uma discrepância muito maior entre o tamanho dos alvéolos mais superiores e o dos mais inferiores. O gradiente de pressão intrapleural significa que, em animais não anestesiados, os alvéolos mais superiores (A na Figura 27.16) são maiores do que os das regiões média e inferior do pulmão (C e D). Como a curva de pressão e volume do pulmão é sigmoide, os alvéolos maiores distendem-se menos ante qualquer alteração na pressão intrapleural durante a inspiração.3-5,132 Assim, os alvéolos mais pendentes (D) recebem proporcionalmente mais de um volume corrente inspirado, a menos que um processo mórbido (p. ex., obstrução crônica de via respiratória ou pneumonia) ou uma diminuição no volume pulmonar acarrete fechamento intermitente ou completo da via respiratória (E e F) ou atelectasia real (G). Ao mesmo tempo, há um gradiente vertical de fluxo sanguíneo pulmonar, porque a artéria pulmonar é um sistema de baixa pressão afetado pela pressão hidrostática.42,133 Alguns alvéolos podem não receber perfusão (A na Figura 27.16) e constituem um espaço morto alveolar, enquanto o alvéolo D recebe mais perfusão que o alvéolo B. Na maioria das espécies, o aumento da ventilação do alvéolo D não é suficiente para se adaptar à perfusão maior, e a razão V/Q do alvéolo D é de 0,7, em comparação com 1,7 no alvéolo B. Em geral, a dispersão seletiva das razões V/Q para a maior parte do pulmão normal em indivíduos em repouso é de 0,8 a 0,9.

Figura 27.16 Diagrama esquemático das relações entre ventilação e perfusão (V/Q) no pulmão e mecanismos primários pelos quais a mistura venosa e o gradiente alveolar-arterial [P(A-a)O2] aumentam durante anestesia. O gradiente de pressão pleural é mostrado com o aspecto dorsal do espaço pleural mais subatmosférico que na região pendente, o que pode até ser positivo com relação à atmosfera, se o volume pulmonar diminuir bastante. O influxo de gás é representado pela área não hachurada na árvore traqueobrônquica. Esse gás inspirado pode alcançar alvéolos que não estão sendo perfundidos (A), alvéolos perfundidos de maneira variável (B-D) ou chegar aos alvéolos de forma intermitente (E) por vias respiratórias que se abrem apenas mais tarde durante a inspiração. Alvéolos não ventilados (F) em geral ficarão atelectásicos (G), especialmente quando forem usados altos níveis de oxigênio inspirado. A área hachurada com pontos mais finos representa o fluxo de sangue venoso misto da artéria pulmonar e a área hachurada com pontos grossos representa o sangue oxigenado pós-capilar. O fluxo sanguíneo dos alvéolos com baixas razões V/Q (E), de alvéolos não ventilados (E, G), ou de áreas de desvio anatômico (H) vai contribuir para o efeito de mistura venosa e aumento do gradiente da P(A-a)O2. O efeito da mistura venosa de áreas com baixa V/Q é abolido quando são inaladas misturas ricas em oxigênio, mesmo que alvéolos mal ventilados tenham oxigênio suficiente para oxigenar o sangue que retorna.

Com base na evidência da distribuição por meio de radioisótopo, o gradiente vertical de

perfusão e ventilação é mínimo em cães em posição quadrupedal com o pulmão na horizontal,44,134 e a combinação de gradientes de perfusão e ventilação verticais em equinos conscientes é tal que há pouca diferença na V/Q em regiões pulmonares diferentes.45,135 Estudos mais recentes, usando o método de lavagem múltipla de gás inerte em equinos, sugerem que a dispersão das razões V/Q em equinos conscientes seja muito similar à observada em pessoas.136 Não foram identificadas regiões de V/Q baixa, mas foi observado um componente mínimo de desvio (menos de 3% do débito cardíaco). Observou-se uma área V/Q alta (constituindo 3 a 17% do total) cuja extensão foi correlacionada com pressões mais baixas na artéria pulmonar.136 Quando o sangue na artéria pulmonar flui através de canais vasculares não adjacentes aos alvéolos (H na Figura 27.16) ou passa por alvéolos não ventilados (G e F), o sangue não oxigenado passará do lado direito da circulação para o esquerdo, ocasionando uma PaO2 mais baixa. Em animais conscientes, se a ventilação pulmonar estiver diminuída, uma vasoconstrição local [vasoconstrição pulmonar hipóxica (VPH)] tende a desviar o fluxo sanguíneo para fora das áreas subventiladas do pulmão.56,133 Ocorre uma resposta de VPH quando a tensão alveolar cai para menos de 100 mmHg no pulmão normal, e a resposta é máxima quando a tensão do oxigênio é de aproximadamente 30 mmHg.56 Há uma diferença aparente na força da resposta de VPH à hipoxia pulmonar total em várias espécies,137 com base em estudos em altitudes elevadas e com pulmões excisados.138-140 Bovinos e suínos têm um reflexo forte, enquanto pôneis, gatos e coelhos apresentam uma resposta intermediária. Ovinos, cães e gatos exibem menos resposta. Contudo, parece que, em condições normais, as mesmas espécies com um reflexo pulmonar fraco são capazes de um desvio considerável no fluxo sanguíneo em resposta a áreas regionais de baixo conteúdo alveolar de oxigênio.137,140

■ Medida da incompatibilidade V/Q Quando a pressão barométrica, a concentração de oxigênio inspirado, a PaCO2 e o quociente respiratório são conhecidos, pode-se calcular a PAO2 usando uma forma da equação do ar alveolar (Figuras 27.2 e 27.5). A diferença entre esse valor e a PaO2 [i. e., o gradiente alveolar-arterial, P(A-a)O2] fornece uma medida conveniente e prática da eficiência relativa da troca de gases. Essa medida é usada comumente em estudos anestésicos. O valor da medida de P(A-a)O2 aumenta à medida que a FIO2 aumenta em qualquer situação da V/Q, sendo indispensável levar em consideração o nível da FIO2 ao fazer comparações. Na prática, a maioria das determinações de P(A-a)O2 é feita a concentrações de oxigênio de 21% ou próximas de 100%. Pode-se determinar a quantidade de mistura venosa ou fluxo de desvio pulmonar

obtendo-se o conteúdo venoso misto (na artéria pulmonar) e arterial de oxigênio junto com uma estimativa do débito cardíaco e calcular a PAO2.141 As expressões mistura venosa e desvio do fluxo não significam exatamente a mesma coisa, embora geralmente sejam usadas de maneira intercambiável na literatura, o que causa alguma confusão. Mistura venosa refere-se à magnitude da mistura de sangue venoso misto com o sangue pulmonar capilar terminal necessária para gerar a diferença observada entre a PO2 arterial e a capilar terminal.4,5 Presume-se que a PO2 capilar terminal seja igual à alveolar. A mistura venosa é uma quantidade calculada (i. e., uma proporção do débito cardíaco) e inclui o efeito da queda da PaO2 em áreas de baixa V/Q, da passagem do fluxo sanguíneo por áreas não ventiladas e do fluxo do desvio anatômico verdadeiro (fluxo sanguíneo venoso brônquico e pelas veias tebesianas). Quando o nível do oxigênio inspirado é alto, o sangue que passa por áreas de baixa V/Q estará oxigenado (Figura 27.16) e o gradiente da P(A-a)O2 e a determinação da mistura venosa são uma medida de todo o fluxo sanguíneo total que não contribui para a troca de gases, daí a expressão fluxo de desvio pulmonar. Notar que esse fluxo inclui tanto o do desvio anatômico como o que passa por alvéolos não ventilados ou colapsados. Caso a concentração de oxigênio inspirado e a PaO2 sejam conhecidas, e supondo-se que a extração de oxigênio arteriovenoso seja normal, pode-se usar um diagrama de isodesvio para ter uma estimativa conveniente e razoavelmente acurada da magnitude do fluxo do desvio pulmonar (Figura 27.17).142 A Figura 27.17 também ilustra a resposta deficiente, em termos de melhora da PaO2, que ocorrerá com o aumento das concentrações de oxigênio inspirado quando os fluxos ultrapassarem 30%.

■ Efeito de alterações na posição Muito poucos estudos abrangentes das consequências respiratórias de alterações na posição em animais domésticos conscientes foram completados por causa das dificuldades técnicas para prosseguir com eles em animais incapazes de cooperar. Em pacientes humanos conscientes posicionados em decúbito lateral, há proporcionalmente mais ventilação para a parte mais inferior do pulmão.143 Há uma queda leve na CRF, porém, em indivíduos com os pulmões normais e a confirmação corporal, há pouca alteração na PaO2. Cães conscientes posicionados em decúbito lateral esternal (pronação) e dorsal (supinação) não exibiram alteração na CRF conforme a posição (Figura 27.18).144 Ovinos não sedados,127 bovinos nas mesmas condições129,130 e pôneis também128 desenvolveram algum grau de hipoxia quando colocados em decúbito lateral, embora tal achado não estivesse presente em outro grupo de pôneis.145 Os níveis médios de PaO2 em bovinos adultos não sedados posicionados em decúbito dorsal ficam na faixa de 60 a 70 mmHg, com alguns animais tendo hipoxemia acentuada.129,130

Figura 27.17 Diagrama de isodesvio mostrando a relação entre a concentração de oxigênio inspirado, a pressão parcial de oxigênio arterial (PO2) e vários graus de mistura venosa ou desvio pulmonar. O fluxo do desvio é expresso como uma porcentagem do débito cardíaco, que varia de 0 a 50%. Presume-se que a diferença arteriovenosa (a-v) do conteúdo de oxigênio seja de 5 mℓ por 100 mℓ de sangue, refletindo um débito cardíaco normal. As faixas de desvio foram desenhadas de modo a incluir a variação da hemoglobina (Hb) e dos níveis da pressão parcial de dióxido de carbono arterial (PaCO2) mostrados. Notar que, com níveis mais altos do fluxo do desvio (30 a 50%), há pouca melhora nos níveis arteriais de oxigênio, mesmo quando a concentração do oxigênio inspirado é de 100%. Notar também que, se a concentração de oxigênio inspirado e a PaO2 forem conhecidas, é possível obter uma estimativa rápida da magnitude da mistura venosa ou do fluxo do desvio. Fonte: redesenhada da referência 142. Reproduzida, com autorização, de Oxford University Press.

Embora a evidência em animais conscientes seja principalmente circunstancial e escassa, parece que o determinante principal das tensões de oxigênio mais baixas é uma

diminuição no volume pulmonar (CRF) em animais em decúbito (Figura 27.19), conforme relatado em animais anestesiados.36,37 É interessante notar que, quando conscientes e sedados, elefantes com 1.400 a 4.000 kg moveram-se voluntariamente de uma posição quadrupedal para a de decúbito lateral. Os níveis da PaO2 só diminuíram de 96,2 para 83,8 mmHg (aos 10 min).146 Essa proteção relativa contra a hipoxemia posicional pode estar relacionada com diferenças anatômicas no parênquima pulmonar, na parede torácica e na adesão pulmonar à parede torácica.147 Em vacas e ovinos em posição quadrupedal, a distensão do rúmen e o aumento associado na pressão abdominal causam uma diminuição na PaO2 e, com pressões ruminais muito altas, há uma redução no VEmin e no débito cardíaco.148,149 Em quatro pôneis em posição quadrupedal (dois em jejum por 18 h e dois sem jejum), a CRF foi medida por diluição de hélio diminuída 13,4% (variação de 11,6 a 14,7%) após sedação com acepromazina na dose de 0,04 mg/kg administrada por via intramuscular. Em outro estudo, o jejum por uma noite aumentou a CRF de cinco pôneis em posição quadrupedal não sedados em cerca de 16%.37

■ Efeito da anestesia e diferenças entre as espécies Conforme dito antes, a sedação profunda e a anestesia geral comumente causam uma queda nos níveis da PaO2, mesmo em animais saudáveis. Parte dessa redução pode estar associada à hipoventilação (Figura 27.13), porém, mesmo quando os níveis de PaCO2 são eucapneicos, a PaO2 em geral está diminuída. A alteração na PaO2 induzida pelo anestésico está associada a aumentos na dispersão das razões V/Q, no gradiente da P(A-a)O2 e no nível da mistura venosa.2,4,5 No caso dos maiores mamíferos, há inclusive uma incompatibilidade nítida na V/Q.1,4,150 Em geral, observa-se que os gradientes da P(A-a)O2 estão sempre aumentados durante anestesia geral em equinos.1,151,152 Em um estudo de 160 casos clínicos, o aumento no gradiente da P(A-a)O2 foi consideravelmente maior nos equinos em decúbito dorsal do que naqueles em decúbito lateral e nos que estavam respirando espontaneamente versus os ventilados mecanicamente.153 Durante a anestesia intravenosa, equinos sadios posicionados em decúbito lateral e respirando ar de maneira consistente têm níveis de PaO2 na faixa de 60 a 70 mmHg e, dependendo da mistura de fármacos (ou do equino em questão), pode haver valores de PaO2 tão baixos como de 50 mmHg.65,154,155 Em equinos com doença pulmonar ou função cardiopulmonar deprimida (p. ex., anestesia), pode ser impossível manter níveis de PaO2 acima de 70 mmHg mesmo com 100% de oxigênio inspirado e VPPI.156 Pode-se observar a mesma resposta à administração de 100% de oxigênio em bovinos adultos.75 O decúbito em si não causa hipoxemia significativa em cães, gatos ou pessoas saudáveis e, no caso de mamíferos maiores, induz um aumento menor no gradiente da P(A-

a)O2

do que o observado após o início de anestesia. Quais os fatores que provocam alterações hipoxêmicas em animais anestesiados? A pesquisa sobre os efeitos respiratórios de anestésicos teve como foco sua influência sobre (1) o reflexo pulmonar hipóxico (VPH); (2) o volume pulmonar, a parede torácica e fatores pulmonares mecânicos; e (3) a distribuição resultante do fluxo regional pulmonar de sangue e gás.

Figura 27.18 Efeito de alterações na posição e da anestesia geral na capacidade residual funcional (CRF) em cães (C), bovinos (B), pôneis (P) e equinos (E). A CRF no estado consciente é mostrada pelo símbolo aberto e, no estado anestesiado, pelo símbolo fechado. Todas as medidas foram obtidas durante anestesia com barbitúrico. Notar que a CRF não se altera de maneira apreciável com mudanças na posição de cães anestesiados e diminui acentuadamente com o início da anestesia e o decúbito nas espécies de grande porte. Em equinos, a CRF é bem menor em decúbito dorsal ou lateral, em comparação com o decúbito esternal. Fonte: dados obtidos de vários estudos.35-37,144.

Figura 27.19 Capacidade residual funcional em um pônei (com peso de 273 kg) sedado com xilazina enquanto estava em posição quadrupedal (consciente), após ser posicionado em decúbito lateral esquerdo com peias (contenção) e depois da indução anestésica com tiopental (anestesiado). O estudo foi realizado duas vezes, uma após um período de 18 h de jejum e outra sem jejum. A CRF foi medida por diluição de hélio.173

■ Vasoconstrição pulmonar hipóxica (VPH) Parece que este mecanismo protetor importante para otimizar a V/Q no pulmão é impedido por muitos anestésicos. Em estudos realizados com pulmões excisados de cães, gatos e ratos, a maioria, senão todos, dos agentes inalatórios diminuíram a VPH, e nenhum dos agentes injetáveis examinados (narcóticos, barbitúricos, propofol e benzodiazepínicos) teve qualquer efeito detectável.133 A situação em animais intactos anestesiados é menos clara.56 Em cães anestesiados com pentobarbital e submetidos a hipoxia em um pulmão, 0,5 a 1,5% de halotano não alterou a resposta à hipoxia,157 enquanto o isofluorano a 1% aumentou o fluxo do desvio pulmonar para o pulmão hipóxico em 22%.158 Em outro estudo canino in vivo, a anestesia com sevofluorano ou desfluorano não alterou a vasoconstrição pulmonar associada à hipoxia pulmonar bilateral.159 Um efeito negativo similar sobre a VPH foi demonstrado com a anestesia com sevofluorano em leitões intactos.160 Não se sabe até que ponto a VPH é alterada pelos anestésicos inalatórios ou intravenosos em outras espécies. O resultado final da interferência induzida por qualquer anestésico na VPH seria aumentar a magnitude da redução da PaO2 com determinado nível de alteração na

distribuição intrapulmonar de gás, seja causada por redução do volume pulmonar, fechamento intermitente de via respiratória ou atelectasia regional. Com um animal respirando 100% de oxigênio e a VPH abolida, pode-se estimar que a PaO2 será de apenas 100 mmHg, com 30% do pulmão atelectásico, em comparação com um nível de PaO2 de mais de 400 mmHg e o mesmo grau de atelectasia e uma resposta intacta da VPH.140 Foram feitas poucas comparações controladas clinicamente relevantes dos gradientes de P(A-a)O2 usando-se anestesia intravenosa em comparação com a inalatória em pacientes veterinários. Em um estudo, a PaO2 foi mais bem mantida em equinos com uma infusão de xilazinacetamina-guaifenesina, em vez de halotano para manutenção,161 enquanto em outro estudo não houve diferença nos níveis da PaO2 ou a fração do desvio pulmonar foi básica quando se comparou a anestesia com romifidina-cetamina-guaifenesina e aquela com halotano.162 Em equinos anestesiados, há evidência de que a infusão pulmonar não aumenta linearmente da parte mais superior para a mais inferior do pulmão unicamente por causa da gravidade, mesmo que a VPH seja abolida.163,164 Demonstrou-se que o fluxo sanguíneo pulmonar dependente da gravidade de bovinos conscientes se altera quando eles são posicionados em decúbito esternal, lateral ou dorsal durante a anestesia com halotano.47 Houve uma redução no fluxo sanguíneo para as áreas pulmonares cranioventrais e um aumento proporcional no fluxo para as regiões dorsocaudais, independentemente da posição corporal. Demonstrou-se um padrão de fluxo sanguíneo pulmonar não gravitacional em pôneis anestesiados com pentobarbital.49 Pelo menos parte desse desvio do fluxo sanguíneo pulmonar das áreas pulmonares mais pendente de equinos poderia estar relacionada com a criação de uma zona IV de fluxo sanguíneo do volume pulmonar reduzido e um aumento na pressão do líquido intersticial (Figura 27.3). Esse tipo de desvio foi observado em pessoas com baixos volumes pulmonares165 e em cães quando as pressões do líquido intersticial estavam elevadas.166 Seja qual for a causa, em equinos em decúbito lateral, a redistribuição do fluxo sanguíneo pulmonar de fora da parte inferior relativamente não ventilada para a superior mais bem ventilada tem um efeito benéfico no sentido de reduzir a magnitude da mistura venosa.164 É importante notar que a redistribuição está longe de ser completa, e a mistura venosa ou o desvio de fluxos em equinos sadios geralmente excede 20% e, em equinos doentes em decúbito dorsal, pode ultrapassar 40% do débito cardíaco.

■ Volume residual funcional Em seres humanos em decúbito, a CRF diminui cerca de 0,5 ℓ com a indução da anestesia geral,132 o que corresponde a 15 a 20% da CRF normal. Os mecanismos subjacentes a essa redução na CRF continuam obscuros. Atelectasia, aumento do volume sanguíneo torácico ou abdominal e perda do tônus inerente no diafragma ao final de exalação parecem estar

envolvidos.99,132,143 Qualquer que seja a causa, há evidência de uma correlação entre as alterações na CRF e o gradiente de P(A-a)O2 após a indução anestésica.167 Foram demonstrados fechamento da via respiratória, atelectasia e regiões pendentes de tecido pulmonar mal aerado usando-se a eliminação de gás inerte e técnicas de tomografia computadorizada.2,5,168,169 Há pouca informação a respeito de alterações na CRF em cães e gatos, mas em um estudo bem controlado o início da anestesia geral não alterou a CRF de maneira significativa em cães em decúbito esternal, lateral ou dorsal (Figura 27.18).144 Tais cães eram mestiços de porte médio (13 a 28 kg) e os de grande porte talvez pudessem mostrar uma resposta diferente. Foram notadas diferenças nas razões V/Q durante anestesia entre cães das raças Beagle e Greyhound.170 Em cavalos e vacas, a diminuição na CRF com o início do decúbito e a anestesia geral pode ser acentuada, até de 50 a 70% (Figura 27.18). Isso foi demonstrado radiograficamente171,172 e medido diretamente por diluição em hélio37,173 e lavagem com nitrogênio.36 A alteração na CRF parece ter uma relação primária com a mudança de posição de uma postura ereta para o decúbito (Figura 27.19) e, pelo menos em equinos, é maior com o decúbito lateral ou o dorsal do que em pronação (Figura 27.18).36 Nos animais em decúbito lateral, o pulmão pendente mostra-se pouco aerado nas radiografias171,172 e tem uma CRF menor (conforme medida por diluição em hélio) (Figura 27.20). Estudos realizados com cintigrafia nuclear e tomografia computadorizada demonstraram com clareza que há muito menos ventilação do pulmão pendente em equinos em decúbito lateral durante anestesia.150,174 Essa redução no volume pulmonar inferior é acompanhada por atelectasia real (Figura 27.21) e pode ser influenciada pelo grau de obesidade ou pela conformação corporal.175 Altas concentrações de oxigênio no gás inspirado causarão mais atelectasia alveolar em equinos, conforme observado em seres humanos.2,5,65 A CRF de equinos anestesiados pode ser aumentada e o gradiente da P(A-a)O2 pode ser reduzido com o uso de PEFP alta (20 a 30 cmH2O).156,175,176 Se a magnitude da PEFP for introduzida, haverá uma diminuição acentuada no retorno venoso para o coração e no débito cardíaco. É provável que o mecanismo pelo qual a PEFP diminua o gradiente da P(Aa)O2 e a mistura venosa seja mediante o aumento total ou regional da CRF, com prevenção subsequente do fechamento intermitente da via respiratória que é representada no diagrama pelos alvéolos F e G na Figura 27.16. Moens et al. usaram uma sonda endotraqueal de lúmen duplo e VPPI diferencial (VT mais alto e PEFP de 10 a 20 cmH2O) para a parte mais inferior do pulmão de equinos razoavelmente grandes (com 420 a 660 kg de peso corporal) em decúbito lateral.177 Essa técnica aumentou os níveis da PaO2 em mais de 100% e diminuiu a perfusão do desvio pulmonar em 33%. Foram relatados efeitos benéficos similares com o uso da PEFP e ventilação mecânica positiva de áreas pendentes do pulmão

em equinos em decúbito dorsal (Figura 27.22).178,179 Com o início da anestesia geral e o posicionamento em decúbito lateral, os níveis da PaO2 foram elevados apenas cerca de 250 mmHg além dos esperados mais de 500 mmHg que ocorreriam se não houvesse problema com a troca de gás. Quando os equinos foram posicionados em decúbito dorsal, seu nível médio de PaO2 diminuiu para menos de 100 mmHg. A VPPI convencional de todo o pulmão melhora pouco a PaO2, enquanto a ventilação mecânica seletiva das áreas pendentes do pulmão com 20 cmH2O a restaura ao nível medido em decúbito lateral.

■ Parede torácica e alterações na mecânica pulmonar A evidência que implica alteração da parede torácica (incluindo o diafragma) e fatores da mecânica pulmonar como agentes causais no aumento da P(A-a)O2 durante anestesia, em geral, é conflitante. Certamente, há uma diferença na mecânica da parede torácica entre pessoas e cães durante anestesia geral.132 Parece que a maioria das raças de cães (e provavelmente gatos) tem uma parede torácica lateral mais complacente, que tende a contribuir relativamente pouco para o esforço inspiratório, em comparação com o diafragma, com doses clínicas da maioria dos anestésicos. Em todas as espécies, planos anestésicos perigosamente profundos costumam estar associados a flacidez da parede torácica e movimento paradoxal para dentro durante a inspiração (inspiração paradoxal). Se olharmos atentamente, esse mesmo tipo de respiração pode ser observado nos gatos, furões e outros pequenos mamíferos, mesmo com níveis leves de anestesia.

Figura 27.20 Capacidade residual funcional (CRF) dos pulmões esquerdo, direito e de ambos em um equino posicionado em decúbito dorsal e lateral direito e esquerdo. O equino foi mantido sob anestesia intravenosa estável e a CRF foi determinada por diluição de hélio usando-se uma sonda endotraqueal de lúmen duplo para separar os dois pulmões.173 Notar que a CRF do pulmão pendente diminui da proporção medida durante o decúbito dorsal e torna-se uma porcentagem pequena da CRF total, independentemente de qual pulmão está pendente.

Figura 27.21 Tomografia computadorizada transversa do tórax de um pônei durante anestesia com tiopental/halotano em decúbito lateral esquerdo (no alto à esquerda) e em decúbito dorsal durante respiração espontânea (no alto à direita), ventilação mecânica (embaixo à esquerda) e ventilação mecânica com PEFP de 10 cmH2O (embaixo à direita). Notar o surgimento de grandes áreas densas circuladas por uma linha branca em regiões pulmonares pendentes. O coração é visível como uma área branca no meio do tórax. Fonte: referência 164. Reproduzida, com autorização, de Wiley.

Em cavalos e vacas, com o início da anestesia e a movimentação para decúbito lateral, há evidência radiográfica de uma alteração acentuada na silhueta pulmonar bidimensional e na posição do diafragma.171,172 Em pôneis anestesiados com halotano, o contorno diafragmático moveu-se para a frente mais uniformemente em decúbito esternal (pronação) ou lateral, mas o desvio para a frente foi consideravelmente maior em decúbito lateral.171

Quando os pôneis foram posicionados em decúbito dorsal (supinação), o contorno diafragmático desviou na direção da coluna vertebral agora pendente. Com variações menores, as observações de Watney ao estudar bovinos de 315 a 400 kg foram muito semelhantes.172 A alteração na posição da silhueta diafragmática está bem de acordo com a redução na CRF notada por Sorenson e Robinson quando pôneis foram movidos de decúbito esternal para lateral ou dorsal.36 Em decúbito lateral, as áreas dorsais do diafragma moveram-se mais durante a inspiração que a área esternal mais ventral, embora o movimento crural mais superior tenha excedido o movimento crural mais inferior.180 Isso contrasta com pessoas despertas e anestesiadas em decúbito, cujas partes mais pendentes do diafragma são mais ativas.181 A atividade tônica da parede torácica lateral, em especial a proporcionada pelo músculo serrátil ventral em equinos, diminuiu bastante em equinos anestesiados, e postula-se que isso reduza a estabilização da parede torácica lateral.182

Figura 27.22 Níveis de pressão parcial de oxigênio (PaO2) (média ± DPM) em um equino em posição quadrupedal, desperto, respirando ar (FIO2 = 0,21) e durante anestesia em decúbito lateral (Lat) e dorsal, com altos níveis de oxigênio inspirado (FIO2 > 0,92). RE = respiração espontânea; VM = ventilação mecânica geral; VS = ventilação mecânica seletiva de regiões pulmonares pendentes com uma pressão expiratória final positiva (PEFP) de 20 cmH2O; * = significativamente diferente do valor quando desperto; # = significativamente diferente do

valor prévio. Fonte: referência 179. Reproduzida, com autorização, de Oxford University Press.

Embora geralmente se admita que o halotano e o isofluorano causem vasodilatação em seres humanos,56,183,184 a anestesia geral causa um aumento aparente no recolhimento elástico do pulmão.132 Em pôneis anestesiados, o halotano, o isofluorano e o enfluorano têm um efeito broncodilatador discreto,185 enquanto em vacas 186,187 e equinos em posição quadrupedal, o halotano não causa broncodilatação nas concentrações anestésicas.188 É difícil interpretar as medições da resistência pulmonar e da complacência durante anestesia, porque as alterações no volume pulmonar, em si, alteram esses valores,6,183 conforme demonstrado quando foram estudadas vacas que não estavam em jejum por um período de anestesia de 3 h.189 Todavia, parece que as alterações na parede torácica e no volume pulmonar têm uma participação muito maior na geração de gradientes maiores da P(A-a)O2 durante anestesia do que qualquer alteração verdadeira da mecânica pulmonar.

Terapia com oxigênio e ventilação mecânica Como dito antes, a sedação e a anestesia geral podem causar alterações profundas na função respiratória de um paciente, com a magnitude dependendo dos fármacos empregados, da espécie envolvida, da profundidade da anestesia, do procedimento cirúrgico e da saúde do animal. Mais preocupantes são as reduções significativas na troca de gás, que causam liberação inadequada de oxigênio para tecidos vitais e/ou prejudicam a remoção de CO2 do corpo. Portanto, é comum o suporte com oxigenoterapia e/ou ventilação mecânica, daí seu uso comum durante o período peroperatório na maioria das espécies veterinárias, para alterar a oxigenação de um paciente, sua ventilação e/ou o trabalho da respiração. Vários fatores fisiológicos e fisiopatológicos podem influenciar a magnitude da resposta a tal tratamento. Além disso, essas intervenções têm consequências fisiológicas que se estendem além dos resultados desejados. Como tal, antes de seu uso é importante que o clínico entenda os efeitos fisiológicos da oxigenoterapia e da ventilação mecânica, além de suas indicações e contraindicações.

■ Efeitos fisiológicos da terapia com oxigênio A fração de oxigênio inspirado pode ser aumentada acima de 0,3 mediante a administração de oxigênio no nível das narinas (máscara facial, forcado nasal), da nasofaringe ou da traqueia.190-192 Quando um paciente está conectado a um aparelho de anestesia com uma sonda endotraqueal vedada (com manguito) no lugar e o oxigênio é o único gás fresco fornecido, é possível a fração de oxigênio inspirado ultrapassar 0,95 em 5 a 20 min se o oxigênio for liberado nas taxas de fluxo recomendadas com base no circuito respiratório

em questão.193 O principal efeito fisiológico da suplementação de oxigênio e a principal razão para seu uso é aumentar a PaO2 do paciente, mas ela também pode ter impacto sobre a ventilação do paciente e a morfologia de seu pulmão. Em geral, a suplementação de gases inspirados com oxigênio, sozinha ou associada a suporte ventilatório, resulta em aumento no conteúdo de oxigênio alveolar do paciente, conforme descrito pela equação do gás alveolar (Figura 27.5). Quando a combinação de ventilação e perfusão dentro do pulmão é próxima do ideal, há desvios vasculares mínimos da direita para a esquerda e a membrana alveolarcapilar está normal, as pressões parciais de oxigênio alveolar e arterial de um paciente subirão proporcionalmente à concentração de oxigênio no gás inspirado (Figura 27.23).194 Cães e gatos saudáveis costumam ter níveis relativamente baixos de mistura venosa (menos de 10%) em decorrência do desequilíbrio na V/Q durante anestesia geral e, como consequência, a suplementação de oxigênio resulta em valores medidos da PaO2 próximos dos níveis teóricos da PAO2. Embora as frações de oxigênio inspirado sejam medidas raramente, relatos de estudos que avaliaram os efeitos respiratórios de anestésicos inalatórios ou injetáveis em cães e gatos respirando espontaneamente apenas oxigênio como o transportador ou gás inspirado revelaram níveis de PaO2 acima de 450 mmHg.68,70,83,195-199 Além disso, os níveis de PaO2 tendem a permanecer estáveis por tempo relevante em cães e gatos submetidos a anestesia geral. Embora o gradiente baixo de P(Aa)O2 nessas espécies levante a questão da necessidade de suplementação de oxigênio durante sedação forte ou anestesia geral, uma fração mínima de oxigênio inspirado de 0,3 ainda é recomendada para minimizar o risco de hipoxemia decorrente de hipoventilação e aumenta o desequilíbrio na V/Q com relação aos valores no animal consciente. A evidência que confirma essa recomendação inclui relatos de má oxigenação, conforme refletido por valores de PaO2 abaixo de 65 mmHg em cães sedados com algum dos agonistas do receptor adrenérgico α2 sozinho ou combinado com um opioide e também relatos de cianose e similarmente valores baixos de PaO2 durante indução anestésica com anestésicos injetáveis quando não se fornece oxigênio suplementar.104,200-202

Figura 27.23 Efeito protetor do aumento das concentrações de oxigênio inspirado com vários graus de hipoventilação e hiperventilação alveolar. Um nível normal de ventilação que gere eucapnia é mostrado na linha da abscissa como N, junto com metade da ventilação normal (1/2N) e o dobro dela (2N). Com 30% do oxigênio alveolar inspirado, os níveis da PO2 ficam acima de 100 mmHg, mesmo quando a ventilação alveolar é metade do normal. Fonte: modificada da referência 194. Reproduzida, com autorização, de Elsevier.

Em alguns animais que recebem suplementação com oxigênio, a PaO2 pode não aumentar proporcionalmente com a PAO2. Pacientes com doença do parênquima pulmonar costumam ter barreiras clinicamente significativas à difusão alveolar capilar, desequilíbrio de V/Q e aumento nas frações de desvio. Tais pacientes, em geral, têm aumentos menores do que os esperados na PaO2 associados à oxigenoterapia.203-206 Conforme discutido antes, o decúbito e a anestesia geral de pacientes animais grandes e adultos comumente causam desequilíbrio significativo da V/Q e desvio intrapulmonar de sangue. Assim, apesar do parênquima pulmonar normal antes da anestesia, esses pacientes têm uma resposta reduzida e variável à suplementação com oxigênio quando em decúbito. Equinos respirando ar ambiente enquanto estão em decúbito com um esquema anestésico intravenoso costumam apresentar valores da PaO2 na faixa de 50 a 70 mmHg durante a duração do decúbito. A insuflação traqueal (não a nasal ou nasofaríngea) de oxigênio com 15 ℓ/min geralmente resultará em valores da PaO2 acima de 90 mmHg (Figura 27.24). Durante anestesia inalatória com 100% de oxigênio como o gás transportador, equinos

sadios em decúbito lateral respirando espontaneamente têm valores de PaO2 que variam tipicamente de 300 a 350 mmHg; equinos em decúbito dorsal costumam ter níveis inferiores, variando de 200 a 300 mmHg.153 Ao contrário de cães e gatos, em que os níveis da PaO2 permanecem estáveis com o tempo durante anestesia geral com uma FIO2 > 0,95, no equino, os valores da PaO2 costumam diminuir com o tempo, em particular quando são posicionados em decúbito dorsal, ou se não tiverem ficado em jejum por pelo menos 12 h antes da anestesia.63,153,208-210

Figura 27.24 Pressão parcial média do oxigênio arterial (PaO2) em 12 equinos antes da anestesia (em posição quadrupedal), enquanto anestesiados com xilazina-cetamina em decúbito lateral respirando ar ambiente e após ficarem em posição quadrupedal na recuperação (•). Níveis comparativos da PaO2 em seis equinos também anestesiados com xilazina-cetamina, enquanto recebiam insuflação de oxigênio na dose de 15 ℓ/min na localização mesotraqueal (■). Notar o aumento nos níveis da PaO2 para mais de 90 mmHg com a administração de oxigênio. Fonte: dados das referências 155 e 207.

Embora a suplementação de oxigênio, em geral, seja administrada para reduzir o risco de hipoxemia, altas frações de oxigênio inspirado liberadas durante anestesia geral (em pacientes respirando espontaneamente ou ventilados mecanicamente) contribuem para o desenvolvimento de atelectasia em numerosas espécies, incluindo cães, gatos, ovinos, equinos e seres humanos.65,211-217 A absorção de gás alveolar, que é mais solúvel com conteúdo maior de oxigênio, é responsável pela perda de volume alveolar funcional. Se a atelectasia resultante da absorção for significativa, pode contribuir para um aumento no gradiente de P(A-a)O2. Conforme mencionado, em condições clínicas com duração

anestésica típica, os níveis de PaO2 tendem a ficar constantes em cães e gatos, implicando um impacto relativamente mínimo da absorção da atelectasia sobre a troca de gás nessas espécies. Em espécies maiores, como equinos, a contribuição da absorção de gases alveolares com relação ao desenvolvimento de atelectasia como uma consequência da compressão de alvéolos pelo conteúdo abdominal pode ser relativamente mínima, mas seu significado pode variar com a posição do corpo e o nível específico de oxigênio inspirado.64,218 Em seres humanos, a atelectasia atribuída a altos valores de FIO2 foi associada a maior incidência de hipoxemia pós-operatória e complicações respiratórias.219 A presença de atelectasia foi associada à progressão de lesão pulmonar em pacientes humanos e em numerosos modelos animais de experimentação de lesão pulmonar que receberam suporte ventilatório (ver adiante). Em espécies veterinárias, o significado clínico da atelectasia associada à anestesia sem hipoxemia no pulmão sadio de um paciente sem doença pulmonar preexistente ainda não foi determinado. Qualquer que seja o impacto sobre a criação ou progressão de lesão pulmonar, a presença de atelectasia pode afetar a qualidade das imagens torácicas e requerer consideração para a obtenção de imagens enquanto o animal está exposto a uma FIO2 mais baixa, ou após aplicação de estratégias ventilatórias específicas no intuito de manter o volume pulmonar.220 Em seres humanos, até recentemente, a administração de oxigênio a 100% por máscara facial antes e durante a indução da anestesia geral (p. ex., pré-oxigenação) era um procedimento relativamente padrão para aumentar o tempo de dessaturação de hemoglobina assim que o oxigênio era retirado, como ocorre durante intubação orotraqueal. No entanto, essa técnica agora está sendo questionada, porque mostrou resultar em um grau maior de atelectasia, em comparação com frações de oxigênio inspirado como 60 ou 80%.216 Embora a pré-oxigenação não seja um procedimento padrão na medicina veterinária, é recomendável em alguns casos nos quais se espera que haja um período prolongado a partir da indução anestésica para se obter uma via respiratória segura ou na vigência de doença respiratória. Em comparação com a situação na anestesia humana, quando se administra oxigênio por máscara facial a espécies veterinárias no contexto clínico, é improvável que os valores de FIO2 sejam maiores do que 0,8, a menos que se esteja usando uma máscara facial muito bem ajustada.191 Embora a oxigenação do paciente geralmente seja o foco quando se administra suplementação de oxigênio, também pode alterar o impulso ventilatório do paciente. Como já foi discutido, os anestésicos e vários pré-anestésicos alteram a resposta central e periférica ao dióxido de carbono e ao oxigênio. O efeito resultante de qualquer agente sobre o impulso respiratório pode variar, dependendo da fração de oxigênio inspirado. Em termos específicos, pacientes anestesiados respirando espontaneamente e recebendo suplementação de oxigênio podem ter um nível mais alto de PaCO2 que animais respirando

ar ambiente ou uma FIO2 < 0,5. Em particular, equinos anestesiados com halotano e recebendo uma FIO2 de 0,3 versus > 0,85 tiveram níveis significativamente mais baixos de PaCO2.63 Achados similares foram relatados em equinos submetidos a anestesia injetável.65 Cães que foram pré-oxigenados antes da indução anestésica também tiveram uma tendência a apresentar PaCO2 maior em comparação com aqueles que respiraram ar ambiente.19 A depressão dos mecanismos de controle respiratório por níveis altos de FIO2 ou alteração na afinidade da hemoglobina pelo dióxido de carbono com mudança na saturação de oxigênio foram sugeridas como mecanismos potenciais responsáveis por um grau maior de hipoventilação com suplementação de oxigênio em pacientes anestesiados.191,221 Toxicidade do oxigênio Há muito tempo se reconheceu que altos níveis de oxigênio inspirado (mais de 70%), quando administrados por períodos prolongados, causarão disfunção pulmonar e até mesmo a morte em animais de laboratório e domésticos previamente sadios. Há uma revisão recente dessa condição, agora denominada lesão pulmonar aguda hiperóxica.222 O início do dano pulmonar parece requerer valores de FIO2 > 0,7, gerando valores de PaO2 além de 450 mmHg e uma exposição ‘prolongada’, certamente maior do que o período geralmente associado à anestesia clínica veterinária. Portanto, parece que a toxicidade do oxigênio é mais um problema teórico que uma consideração real na anestesia veterinária, apesar do uso quase universal de 100% de oxigênio como gás transportador durante anestesia inalatória. Na situação de cuidado crítico, se for empregada ventilação mecânica prolongada, a abordagem geral consiste apenas em aumentar a FIO2 ao ponto em que os níveis da PaO2 fiquem na faixa de 90 a 100 mmHg com níveis de saturação da hemoglobina próximos de 90% ou mais. Com lesão grave do parênquima pulmonar em seres humanos, há discussão atual quanto a atingir algum grau de ‘hipoxia permissiva’.223,224 Entretanto, até o momento, não há ensaios clínicos substanciais que validem tal abordagem e, no contexto de cuidados intensivos veterinários, a abordagem provável ainda é visar à normoxia.

■ Efeitos fisiológicos da ventilação mecânica As estratégias atuais de ventilação mecânica usam pressão positiva para expandir o pulmão e promover a troca de gás. A liberação periódica de uma respiração com pressão positiva para a espontânea denomina-se ventilação com pressão positiva intermitente (VPPI), enquanto, com ventilação mecânica contínua ou convencional (VCM), o ventilador é ajustado para liberar um volume corrente respiratório em uma frequência pré-ajustada, independente dos esforços ventilatórios do paciente. O último modo é aquele mais comumente empregado de ventilação mecânica associada à anestesia.225-227

O uso de ventilação mecânica em um paciente anestesiado altera diretamente o conteúdo de gás inspirado do paciente, a troca de gás e o trabalho da respiração. Além disso, outros sistemas, dos quais o mais importante é o cardiovascular, sofrem um impacto significativo do suporte ventilatório, conforme vamos comentar em seguida. Os ventiladores para anestesia são projetados para ser compatíveis com sistemas de liberação de anestésico inalatório. Diferentes dos ventiladores para cuidados críticos, em que a FIO2 é controlada no nível do ventilador, quando se usa um ventilador designado para uso em conjunto com um aparelho de anestesia, o conteúdo dos gases inspirados é controlado no nível do aparelho de anestesia (fluxômetro). No contexto clínico do momento, em geral o oxigênio é o único gás transportador usado e os pacientes que recebem suporte ventilatório estão recebendo uma FIO2 > 0,95. Quando um paciente recebe esse nível de oxigênio inspirado durante suporte ventilatório, a PAO2 está em um nível similar, se não acima (por causa dos níveis de PaCO2 mais baixos), daqueles observados no paciente que respira espontaneamente com um nível de FIO2 equivalente. Em cães e gatos saudáveis que estejam recebendo suporte ventilatório com uma FIO2 > 0,95, os valores de PaO2 alcançam os níveis previstos pela equação do gás alveolar, tipicamente ultrapassando 450 mmHg. No caso de pequenos ruminantes sadios, bezerros e potros, os valores da PaO2 geralmente são de 350 a 450 mmHg.228 Como ocorre com a respiração espontânea, a PaO2 em alguns pacientes recebendo ventilação mecânica pode ser inferior à PAO2, pois o equilíbrio V/Q, o desvio intrapulmonar e o estado da membrana alveolar capilar podem ter impacto na eficácia da troca de gás. No equino adulto, se o suporte ventilatório é iniciado logo após a indução anestésica, a PaO2 em geral se mantém em níveis mais altos que se o animal fosse deixado ventilar espontaneamente por algum tempo após a indução da anestesia.153 Mesmo quando o suporte ventilatório é iniciado imediatamente após a indução anestésica, os valores da PaO2 variam de acordo com a posição do corpo, sendo menores em decúbito dorsal. Embora vários autores tenham relatado melhoras na PaO2 em equinos transferidos da ventilação espontânea para a mecânica, outros relataram respostas inconsistentes, com alguns equinos não exibindo melhora e outros mostrando uma diminuição na PaO2.179,210,229,230 Mais importante, assim que ocorrer hipoxemia no equino respirando espontaneamente, não há melhora consistente da oxigenação com a ventilação mecânica convencional.153 Em seres humanos com desequilíbrio da V/Q em decorrência da atelectasia secundária a doença pulmonar subjacente, estratégias com o ventilador que minimizam a hiperdistensão pulmonar e recrutam áreas atelectásicas do pulmão melhoram o desfecho para o paciente, em comparação com as estratégias ventilatórias tradicionais.5 Em termos específicos, as estratégias que empregam um volume corrente baixo e um grau variável de

PEFP que minimize a perda de volume alveolar e/ou recrute um pulmão previamente atelectásico são superiores às abordagens que usam volumes correntes maiores e PEFP baixa. A capacidade de medir as propriedades mecânicas pulmonares é útil para orientar o recrutamento pulmonar durante suporte com ventilador e é a chave para o sucesso da estratégia de baixo volume corrente no paciente com lesão pulmonar.231 Atualmente, acredita-se que uma redução no ciclo de abertura e fechamento das unidades pulmonares junto com forças de cisalhamento reduzidas entre o pulmão aerado e o atelectásico sejam os principais mecanismos responsáveis pela minimização da progressão da lesão pulmonar.232 Com base nesses achados, o foco do suporte com ventilador para o paciente humano com lesão pulmonar tem sido no recrutamento a longo prazo do pulmão, versus a maximização a curto prazo da oxigenação.231 Embora não haja grandes ensaios clínicos randomizados na medicina veterinária que confirmem a estratégia do recrutamento pulmonar com baixo volume corrente em pacientes com lesão pulmonar, a evidência em animais proveniente de trabalho experimental a confirma e, atualmente, ela é recomendada. No equino sem patologia pulmonar preexistente, mas com atelectasia por compressão associada à anestesia geral e ao decúbito, o uso de PEFP durante VMC tem efeitos razoáveis sobre a oxigenação, mesmo quando iniciada cedo no período anestésico.176,234,235 Contudo, quando a PEFP é usada com suporte inotrópico, a oxigenação pode melhorar.234,235 O uso de PEFP em combinação com manobras de recrutamento também mostrou potencial de aumentar os valores da PaO2 no equino.236 Infelizmente, se o paciente equino tiver um grau significativo de atelectasia, conforme evidenciado por hipoxemia, não se sabe se a oxigenação pode ter melhora significativa, qualquer que seja a estratégia ventilatória usada. No momento, o uso da PEFP com manobras de recrutamento pulmonar é viável em pequenos pacientes com ventiladores de cuidados críticos. Em contraste, a capacidade de recrutar áreas pulmonares colapsadas sem instituir outras alterações como a posição corporal ou o grau de timpanismo abdominal está limitada em animais grandes adultos no contexto clínico, por causa das limitações dos ventiladores atualmente disponíveis no comércio. Embora níveis específicos de PaO2 possam não ser alcançáveis pelas técnicas de manipulação para suporte ventilatório em grandes animais, os níveis da PaCO2 podem ser manipulados ajustando-se a frequência do ventilador ou o volume corrente liberado pelo ventilador em todas as espécies. A PaCO2 visada ou ótima sob anestesia geral varia, dependendo da espécie e da presença de doença subjacente, em particular condições com alterações associadas no pH do sangue arterial. Conforme será discutido, os efeitos colaterais cardiovasculares da ventilação com pressão positiva também são um fator nas recomendações quanto à PaCO2 visada. Em cães e gatos, os níveis recomendados de PaCO2 são próximos dos fisiológicos, com os valores recomendados visados de PaCO2 variando

de 35 a 45 mmHg. Em grandes animais, geralmente não se recomenda o esforço para manter a normocapnia, a menos que necessário por causa de doença neurológica ou para manter o pH sanguíneo > 7,2. O motivo para permitir uma PaCO2 acima do normal (hipercapnia permissiva) é para minimizar os efeitos cardiovasculares depressores diretos da ventilação com pressão positiva (discutidos a seguir) e para manter os efeitos estimuladores indiretos de aumentos moderados na PaCO2 sobre o sistema cardiovascular. Em um estudo no qual foram avaliados os efeitos cardiovasculares do suporte ventilatório em equinos anestesiados com halotano, uma estratégia ventilatória que resultou em normocapnia acabou tendo um impacto negativo maior sobre o débito cardíaco do que em equinos ventilados com uma estratégia que resultou em uma PaCO2 na faixa de 50 a 60 mmHg.237 É possível que isso se deva a um impacto reduzido sobre alterações na pressão intratorácica resultantes de pressões expiratórias finais mais baixas, ou seja secundário aos efeitos do CO2 sobre o sistema cardiovascular. Em condições experimentais, nas quais equinos foram ventilados com uma ventilação por minuto mínima e a PaCO2 foi ajustada alterando-se a concentração do O2 inspirado, níveis moderados de hipercapnia (PaCO2 = 80 mmHg) mostraram aumentar a pressão arterial sistêmica e o débito cardíaco, ao passo que a frequência cardíaca permaneceu nos níveis basais.238 Também é mais fácil e mais rápido restabelecer a respiração espontânea no final do período anestésico, quando a PaCO2 está elevada versus eucapnia ou abaixo dos seus níveis normais. Conforme discutido na seção intitulada Ventilação pulmonar, é a ventilação alveolar que determina a PaCO2, e não a ventilação por minuto. Como o espaço anatômico é constante, as estratégias ventilatórias que usam volumes correntes mais baixos vão requerer uma frequência respiratória mais alta ou ajuste da ventilação por minuto para manter os níveis visados da PaCO2. Por exemplo, cães da raça Beagle saudáveis ventilados com uma ventilação por minuto e volumes correntes variando de 6 a 15 mℓ/kg tiveram valores mais altos de PaCO2 quando receberam volumes correntes mais baixos.239 Ajustes na ventilação por minuto também podem ser necessários em pacientes com aumento do espaço morto fisiológico, como ocorre naqueles com aumento do desequilíbrio da V/Q, para atingir os níveis visados de PaCO2. Como na suplementação de oxigênio, a ventilação mecânica pode alterar a morfologia pulmonar. Em termos específicos, o uso de altos valores de FIO2 durante ventilação mecânica também pode levar ao desenvolvimento de atelectasia. Em um estudo recente, cães anestesiados com uma infusão de propofol e ventilados com um VT relativamente baixo (12 mℓ/kg) por 40 min tiveram valores médios de PaO2 próximos de 450 mmHg, com aumento da PaO2 média para 560 a 580 mmHg após um esquema de manobra de recrutamento alveolar (insuflação pulmonar a 40 cmH2O).220 Quando foi instituída PEFP de 5 cmH2O após a manobra de recrutamento alveolar, os valores da PaO2 permaneceram em

570 mmHg, indicando a utilidade de níveis baixos de PEFP em animais de estimação. Embora não haja dúvida de que o suporte ventilatório mecânico possa induzir lesão pulmonar quando são usadas estratégias que empregam volumes correntes excessivos, há pouca evidência de que a ventilação com volume corrente por curta duração em animais sem lesão pulmonar preexistente contribua para que ocorra lesão pulmonar. No animal com lesão pulmonar, recomenda-se ventilação com baixo volume corrente e pressões expiratórias finais que minimizem o colapso pulmonar.203,204 Um dos principais fatores a considerar quando se implementa o suporte ventilatório é o impacto da ventilação com pressão positiva sobre a função cardiovascular. Tanto a ventilação espontânea como mecânica alteram a função cardiovascular, porque modificam a pressão intratorácica e o volume pulmonar, o que, por sua vez, tem impacto direto sobre o sistema cardiovascular, por alterar a pré-carga, a pós-carga e/ou a frequência cardíaca.240-242 A ventilação também pode alterar o desempenho cardiovascular indiretamente, ao alterar os níveis da PaCO2 e da PaO2.237,238 O significado relativo dos efeitos diretos versus indiretos da ventilação sobre o sistema cardiovascular varia conforme a espécie e as condições de saúde do paciente. Em particular, pacientes hipovolêmicos são particularmente suscetíveis aos efeitos colaterais hemodinâmicos negativos associados ao suporte ventilatório.242,243 Embora não haja investigações clínicas detalhadas em pequenos animais, numerosos estudos experimentais nessas espécies e clínicos em equinos mostraram o potencial de impacto negativo do suporte ventilatório mecânico sobre o desempenho cardiovascular durante anestesia.73,230,244-246 Experimentos fisiológicos profundos com animais e também dados colhidos de pacientes humanos elucidaram muitos dos mecanismos responsáveis pela depressão cardiovascular associada ao suporte ventilatório com pressão positiva, recomendando-se ao leitor várias revisões excelentes.240,241,247 Dos efeitos associados à ventilação com pressão positiva e volume corrente fisiológico, aquele sobre a pré-carga ventricular direita é provavelmente o fator predominante que influencia o desempenho cardiovascular em pacientes com função miocárdica normal. Com a ventilação espontânea, o ar se move para os pulmões em decorrência de diminuição na pressão intrapleural e da criação de um gradiente de pressão negativa entre a boca ou as narinas e os alvéolos. Graças ao gradiente de pressão entre o sistema venoso periférico e o intratorácico, o fluxo sanguíneo para o tórax e o átrio direito aumenta. Com o aumento no fluxo, o volume sanguíneo atrial direito ou pré-carga aumenta. Como o último é o principal determinante do débito cardíaco em pacientes com contratilidade miocárdica normal, o volume sistólico e o débito cardíaco aumentam. Em contraste, com a ventilação com pressão positiva, a pressão intrapleural aumenta e durante a inspiração, ocasionando uma diminuição no retorno venoso e no débito ventricular direito. A magnitude da diminuição na pré-carga ventricular direita

depende do grau e da duração da alteração da pressão intrapleural. Em termos específicos, estratégias que resultam em um aumento maior na pressão intrapleural durante o ciclo respiratório, como aquelas em que se utilizam grandes volumes correntes, PEFP ou tempos expiratórios curtos, têm um impacto negativo maior sobre o retorno venoso e a pré-carga ventricular direita. Embora a pré-carga ventricular esquerda aumente inicialmente com a insuflação pulmonar por causa da compressão de capilares pulmonares, a pré-carga direita reduzida e o débito ventricular direito subsequente também reduzido, por sua vez, diminuem o volume atrial esquerdo ou pré-carga após vários batimentos cardíacos.248 Além do efeito sobre a pré-carga ventricular direita e esquerda, a liberação de uma respiração com pressão positiva também altera a pré-carga ventricular.240 À medida que o volume pulmonar aumenta, a resistência vascular pulmonar total também aumenta, secundariamente à compressão dos capilares intra-alveolares. Como a resistência vascular pulmonar é o principal determinante da pós-carga ventricular direita, a última também aumenta com aumentos no volume pulmonar acima da CRF. Ante a respiração com volume corrente normal, esse efeito é mínimo, porém o impacto pode ser clinicamente significativo quando os volumes pulmonares estão bem acima da CRF por grande parte do ciclo respiratório, conforme ocorre com manobras de recrutamento alveolar ou estratégias em que se usa uma PEFP alta. Durante ventilação espontânea e diminuições na pressão intrapleural, a pós-carga ventricular esquerda aumenta em decorrência de um aumento na pressão transmural da aorta. Acredita-se que o efeito da ventilação sobre a pós-carga ventricular esquerda seja mínimo em pacientes com função miocárdica normal. No entanto, naqueles com insuficiência ventricular esquerda, a ventilação com pressão positiva de fato pode melhorar a estabilidade hemodinâmica reduzindo a pós-carga ventricular esquerda. A frequência cardíaca muda com a respiração por causa das flutuações cíclicas na atividade do sistema nervoso autônomo sobre o coração, associadas à insuflação pulmonar. Contudo, as alterações são diferentes se o paciente estiver respirando espontaneamente ou recebendo suporte ventilatório. Em termos específicos, durante uma respiração inspiratória espontânea, o tônus vagal é reduzido e a frequência cardíaca aumenta, mas durante ventilação com pressão positiva, se os pulmões estiverem hiperinsuflados, conforme pode ocorrer durante ventilação com pressão positiva com volumes correntes excessivos, a frequência cardíaca diminui, devido ao aumento no tônus vagal e ao input simpático reduzido. É provável que a contribuição de alterações na frequência cardíaca para a redução do débito cardíaco observada com a ventilação com pressão positiva seja menor durante ventilação com volume corrente normal. Em contraste, se for liberado um volume corrente excessivamente grande, como durante uma manobra de recrutamento ou suspiro, a frequência cardíaca pode diminuir bastante ou temporariamente. Embora não haja ensaios clínicos comparando o impacto de estratégias de ventilação

diferentes sobre o desempenho cardiopulmonar em pequenos animais sadios como pacientes em anestesia rotineira, mostrou-se que a estratégia ventilatória específica empregada durante anestesia tem impacto sobre o desempenho vascular em equinos anestesiados. Em particular, no caso de equinos mantidos sob anestesia com halotano e posicionados em decúbito lateral, um modo ventilatório que visa à pressão com uma pressão inspiratória máxima de 20 cmH2O resultou em desempenho cardiovascular superior, em comparação com uma estratégia em que se usou uma pressão inspiratória máxima de 25 cmH2O.243 Como a ventilação por minuto não foi controlada nesse estudo, os equinos do grupo com pressão inspiratória máxima alta tiveram uma PaCO2 mais baixa, que também pode ter contribuído para débito cardíaco mais baixo medido. Consistentes com o achado de um efeito negativo maior de pressões inspiratórias máximas altas, há inúmeros estudos mostrando desempenho hemodinâmico reduzido em investigações experimentais de manobras para recrutamento alveolar, em particular na presença de hipovolemia.249-252

Implicações clínicas da respiração alterada durante anestesia A complexidade da resposta respiratória à anestesia em pacientes veterinários parece ser mais que um pouco assustadora para anestesistas novatos e profissionais de veterinária quanto à necessidade funcional sem o benefício do treinamento avançado apreciável na disciplina. Em parte, isso se deve à diversidade de espécies com que lidamos e à ampla variedade de fármacos e ambientes em que os veterinários acham que os animais precisam ser sedados, contidos quimicamente ou anestesiados. Nesta seção, resumimos as considerações clínicas mais importantes sobre a conduta respiratória baseada na espécie para pacientes típicos relativamente saudáveis. Essa visão geral se baseia em grande parte na experiência pessoal e em discussões durante anos com colegas acadêmicos e clínicos veterinários. Infelizmente, existem pouquíssimas pesquisas sobre a morbidade e a mortalidade de material de casos relevantes sobre os quais poderíamos basear conclusões mais objetivas. É importante lembrar que pode haver exceções a essas generalizações, com base na saúde inerente do animal que estiver sendo tratado, e porque a resposta anestésica em cada animal nem sempre é ‘típica’. Simplesmente não há alternativa segura além do monitoramento cuidadoso do sistema respiratório durante a anestesia.

■ Seres humanos Como muito de nosso conhecimento da fisiologia alterada na anestesia é derivado da literatura sobre pacientes humanos, é válido saber como a anestesia humana difere da

veterinária. Em pessoas anestesiadas, o espaço morto alveolar aumenta cerca de 70 mℓ e a mistura venosa constitui aproximadamente 10% do débito cardíaco, em comparação com 2 a 3% em indivíduos não anestesiados.5 Com esse grau de mistura venosa, uma concentração de oxigênio inspirado de cerca de 35% em geral restaura uma PaO2 normal (Figura 27.17). Portanto, o limite superior para o óxido nitroso ou o nitrogênio em uma mistura de oxigênio com óxido nitroso ou oxigênio com nitrogênio é comumente de 66%, razão pela qual se usa uma razão de 1:2 de O2 para NO2 ou de O2 para N2. Relaxantes musculares e doses comparativamente altas de opioides (em termos de ‘efeito’, não de miligramas por quilograma) são comumente incorporadas no esquema anestésico, de modo que é muito comum empregar VMC.3,5,7 O objetivo ao anestesiar pacientes ventilados, em geral, é induzir eucapnia ou hipocapnia. Antigamente isso era feito por causa de um aparente efeito de potencialização da dose do anestésico; agora é feito primordialmente para prevenir estimulação simpática com taquicardia e hipertensão resultantes, ambas perigosas em uma população de pacientes propensos a doença aterosclerótica. A eucapnia também minimiza o risco de elevação da pressão intracraniana ou intraocular, o que tem extrema importância em pacientes com traumatismo, idosos ou aqueles com doença ocular e/ou do sistema nervoso central. Quase sempre se usa alguma forma de proteção da via respiratória (sonda orofaríngea ou endotraqueal) e faz-se o monitoramento contínuo da pressão na via respiratória para assegurar que não haja desconexão inadvertida do circuito anestésico de um paciente paralisado que não possa respirar espontaneamente. O monitoramento do CO2 corrente final contínuo e da saturação da hemoglobina têm amplo emprego atualmente, mediante o uso da capnografia e da oximetria de pulso não invasiva, respectivamente.253 As razões para a maior utilização desses dispositivos de monitoramento são a atual relação positiva entre seu custo e sua efetividade, além da facilidade de uso, do fato de proporcionar proteção contra problemas médico-legais e ser um sistema de alarme precoce de insuficiência cardiorrespiratória que diminui a taxa de mortalidade associada à anestesia geral.254,255 No âmbito da anestesia humana, durante a última década houve um interesse considerável na relação entre misturas variáveis de oxigênio para pré-oxigenação e durante anestesia e o desenvolvimento de atelectasia pulmonar.216,217 A utilidade da PEFP e/ou de manobras para forçar a capacidade vital (suspiros ou expansão pulmonar proposital) está sendo avaliada e debatida em termos do efeito sobre a circulação de pacientes comprometidos, de sua eficácia e da duração do efeito.256-259 É provável que a possibilidade de aplicação desses achados varie entre as espécies, em especial aquelas cuja massa corporal difere muito daquela dos seres humanos, ou conforme a comunicação maior (p. ex., cães) ou menor (p. ex., ruminantes) entre alvéolos através dos ductos alveolares ou

poros de Kohn.137 Em particular, seria de grande interesse saber qual a FIO2 mais alta possível de se administrar durante anestesia geral em bovinos e equinos sem contribuir para atelectasia adicional além daquela provocada pelas alterações na CRF relacionadas com a posição.

■ Cães e gatos Em cães e gatos razoavelmente sadios, o gradiente de P(A-a)O2 e o grau de mistura venosa são menores do que em seres humanos, talvez porque nessas espécies os pulmões sejam menores ou pela diferença nas alterações na parede torácica durante anestesia,132 ou talvez por causa da circulação pulmonar colateral excelente nessas espécies.137 Um alto grau de ventilação colateral significa que um alvéolo, se não é ventilado por meio da via respiratória, pode receber a troca de gás através de passagens (poros de Kohn) que levam a outros alvéolos que estão sendo ventilados. Apesar da situação relativamente favorável a respeito do equilíbrio da V/Q nessas espécies, ainda se recomenda um nível mínimo de oxigênio inspirado de 30 a 35%. Nos primeiros minutos após uma indução com barbitúrico, a PaO2 pode estar tão baixa quanto 50 mmHg em cães saudáveis não ventilados,260 sendo menor a alteração em gatos.261 O grau de hipoxemia é um tanto menor após indução com cetamina, mas a mistura venosa ainda pode ser de 20 a 25% por alguns minutos após a indução.104,105 Animais obesos anestesiados profundamente, aqueles com distensão abdominal (p. ex., por prenhez ou obstrução intestinal) ou doença pulmonar ou lesões expansivas no tórax (p. ex., tumor, pneumotórax, hemotórax ou hérnia diafragmática) estão particularmente em risco. A suplementação com oxigênio é necessária para animais sedados muito profundamente, conforme os submetidos à anestesia geral (intravenosa ou inalatória). Como se pode ver na Figura 27.23, o aumento do nível do oxigênio inspirado também protege contra a hipoxemia causada por hipoventilação e, mais uma vez, geralmente se consegue proteção adequada com uma mistura venosa de 30 a 35%, isso porque manobras simples como colocar uma máscara facial com oxigênio em um paciente de alto risco antes e durante a indução ou o uso de um cateter nasal para fornecer oxigênio no período peroperatório são benéficas. Quando são usadas misturas de 100% de oxigênio com os anestésicos inalatórios comuns em cães e gatos sem doença cardiopulmonar séria, o nível da PaO2 arterial geralmente é de 450 a 525 mmHg, esteja o animal respirando espontaneamente ou sendo ventilado e qualquer que seja sua posição.68,83,262 Com tais níveis altos de oxigênio inspirado, em geral só ocorre hipoxemia com a desconexão do animal do aparelho de anestesia ou a colocação errada da sonda endotraqueal, parada cardíaca ou apneia total por mais de 5 min. Apesar disso, mesmo com tais níveis altos de PaO2, pode ocorrer hipoxia

tecidual se os níveis de hemoglobina forem baixos ou a circulação for inadequada (baixo débito cardíaco). Em geral, decide-se instituir ventilação assistida ou mecânica controlada (VMC) para prevenir ou tratar hipercapnia, não para obter oxigenação. Quase todos os cães e gatos que respiram espontaneamente exibem algum grau de hipoventilação e hipercapnia (PaCO2 de 45 a 55 mmHg). A importância clínica disso em casos não neurológicos está aberta ao debate. Cães e gatos não têm aterosclerose e, com os anos, centenas de milhares de cães e gatos foram anestesiados, com sucesso, na prática, respirando espontaneamente. De um ponto de vista prático, com anestésicos de curta duração (menos de 1 h de anestesia) em animais relativamente saudáveis, os aspectos importantes são assegurar que a via respiratória esteja patente, o animal seja oxigenado e não fique apneico; é provável que o desenvolvimento de níveis moderados de hipercapnia seja bem tolerado. A necessidade de aumentos na VPPI à medida que a profundidade da anestesia aumenta pode ser maior em certos tipos de cirurgia, como substituição do quadril, a menos que se use suplementação local (p. ex., opioide epidural ou anestésico local). Ela também aumenta quando são usados opioides como um componente principal do esquema anestésico, para pacientes obesos, neonatos, geriátricos ou neurológicos, com certas posições corporais (p. ex., reparo de hérnia perineal ou laminectomia dorsal), em operações prolongadas ou quando se está lidando com pacientes de alto risco. Algumas orientações relativas ao componente respiratório da anestesia para cães e gatos são mencionadas a seguir: • •







Quase todos os anestésicos em cães são mais bem administrados com sonda endotraqueal colocada no lugar e, em muitas situações, gatos devem ser intubados Uso de pelo menos 30 a 35% de oxigênio inspirado em todos os cães e gatos anestesiados, mesmo os que recebem associações injetáveis, ou quando sedados profundamente Hipoxemia é rara em cães e gatos que estejam respirando espontaneamente, se for uma mistura de oxigênio de aproximadamente 100%. No entanto, problemas de oxigenação que não são aparentes durante a anestesia podem tornar-se potencialmente fatais durante a recuperação, a menos que se prossiga com a suplementação de oxigênio Após um período prolongado de anestesia em gatos e cães de pequeno porte, e com anestésicos de duração mais curta em cães de grande porte com tórax profundo, é aconselhável insuflar os pulmões a 30 cmH2O de pressão na via respiratória (i. e., fazer o pulmão ‘suspirar’) periodicamente e no final da anestesia. O uso de PEFP com 5 cmH2O irá prevenir a maior parte da atelectasia por absorção Imobilidade prolongada e administração excessiva de líquido podem levar a um

aumento da mistura venosa e uma queda na PaO2, além daquela causada pela anestesia em si.263

■ Pequenos ruminantes e suínos Os ruminantes são especialmente propensos a desenvolver regurgitação e aspiração, junto com taquipneia e hipoventilação, durante anestesia geral.74,75 Para procedimentos mais curtos (45 a 60 min), hipoventilação e hipercapnia leves, em geral, podem ser ignoradas com segurança se for mantida uma suplementação adequada de oxigênio. Técnicas de sedação e analgesia local costumam ser utilizadas para anestesia, como um meio de manter uma via respiratória segura e a respiração adequada.264 Durante anestesia clínica em suínos, em especial se for usado um barbitúrico em uma situação de campo, é preciso muito cuidado para assegurar que a via respiratória esteja patente e não ocorra apneia. O grau de equilíbrio entre V/Q e a mistura venosa é intermediário nesses animais e de tal magnitude que praticamente todos os animais anestesiados respirando ar do ambiente terão níveis de PaO2 abaixo do normal. Ovinos em decúbito dorsal ventilados e anestesiados com pentobarbital e halotano desenvolveram atelectasia rapidamente nas regiões pulmonares pendentes.265 A magnitude dessa atelectasia foi muito menor do que a observada em pôneis.174 Doença pulmonar é comum em pequenos ruminantes e suínos, podendo ocasionar desequilíbrio de V/Q, além do induzido pela anestesia, diminuindo ainda mais os níveis da PaO2. A distensão abdominal causada pelo desenvolvimento de timpanismo ruminal ou, no caso de suínos, estômago cheio se somará ao grau de disfunção pulmonar. Durante anestesia inalatória com 100% de oxigênio, a PaO2 geralmente fica na faixa de 200 a 350 mmHg, bem dentro dos limites aceitáveis.85,228 Em ovinos respirando espontaneamente, alterações na posição corporal (decúbito dorsal e lateral direito e esquerdo) não parecem modificar a PaO2 de maneira apreciável, e o gradiente da P(A-a)O2 é razoavelmente constante quando os ovinos são virados a cada 3 a 5 min.228 A experiência clínica sugere que a situação é semelhante em caprinos e suínos. Seguem-se as diretrizes para conduta respiratória durante anestesia: •

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A anestesia geral em ovinos, caprinos e bezerros com o rúmen desenvolvido (i. e., por volta de 2 a 4 semanas de vida) requer a colocação de sonda endotraqueal para garantir proteção contra regurgitação e aspiração. É melhor fazer isso com todos os anestésicos, inclusive os de duração mais curta e os mais leves A intubação endotraqueal não é aconselhável para suínos, a menos que a operação seja complexa ou prolongada, ou o cirurgião esteja familiarizado com a técnica Durante anestesia intravenosa de animais mais comprometidos, a aplicação de máscara







facial ou a inserção de um cateter nasal ou traqueal para oxigênio e a insuflação de 2 a 5 ℓ/min de oxigênio ajudará a garantir que não ocorra hipoxemia A anestesia à base de cetamina é menos propensa a acarretar apneia ou depressão respiratória grave que a anestesia com propofol ou barbitúrico, mas isso pode ocorrer, de modo que é preciso haver suporte preparado para emergência A anestesia inalatória prolongada (por mais de 45 a 60 min) pode requerer VMC para evitar hipercapnia e pode ser necessária para manter um plano anestésico estável por causa do padrão respiratório taquipneico A hipercapnia leve a moderada é bem tolerada e a hipoxia grave é rara quando se usa anestesia inalatória com 100% de oxigênio. A combinação de timpanismo abdominal progressivo (mesmo em animais em jejum por até 24 h) e respiração rápida superficial tende a causar um aumento progressivo nos gradientes de P(A-a)O2. O suspiro periódico dos pulmões (a cada 10 a 15 min) insuflando-os a 30 cmH2O parece minimizar o aumento progressivo na mistura venosa e é particularmente aconselhável no final de uma operação, antes da extubação e do retorno à respiração de ar do ambiente. A colocação em decúbito esternal durante a recuperação beneficia a função pulmonar e, no caso de ruminantes, ajuda a proteger contra regurgitação e aspiração.

■ Bovinos e equinos adultos Bovinos189,266 e equinos1,152,208 adultos desenvolvem aumentos muito significativos nos gradientes da P(A-a)O2 e na mistura venosa quando são anestesiados e ficam em decúbito. Com base na concentração de oxigênio inspirado e nos níveis de PaO2, pode-se calcular que equinos anestesiados com halotano e respirando espontaneamente têm fluxo de desvio pulmonar de 20 a 25%, com uma redução de cerca 15% nos equinos ventilados.208 Esses equinos eram sadios, ficaram posicionados em decúbito lateral e não foram submetidos a qualquer cirurgia. Nos últimos 25 anos, outros relataram níveis de PaO2 e gradientes de P(A-a)O2 provenientes de muitos estudos realizados com equinos saudáveis que refletem os fluxos de desvio pulmonar de pelo menos a mesma magnitude.65,174,267 O grau de desequilíbrio V/Q é maior em decúbito dorsal que no lateral, em equinos maiores e talvez nos mais velhos.153,210,229,244,268,269 Os pesquisadores notaram de maneira consistente que a variabilidade real entre os níveis de PaO2 em equinos semelhantes aos quais foram administrados anestésicos similares é razoavelmente grande (Figura 27.25).64,209 As razões dessa variabilidade não estão claras, mas é provável que tenham relação com a conformação corporal e, talvez, o nível de distensão abdominal causada pela obesidade, por gases ou ingesta no intestino grosso. O gradiente de P(A-a)O2 em animais sadios em jejum geralmente não aumenta muito com o tempo,209,244 mas a PaO2 irá diminuir de maneira progressiva se a distensão abdominal aumentar. Isso ficou ilustrado com clareza em um

estudo interessante realizado com vacas alimentadas e não alimentadas, em que a ausência de jejum nas vacas antes da anestesia geral ocasionou um aumento progressivo na P(A-a)O2 e na resistência pulmonar, bem como uma diminuição na PaO2 e na complacência dinâmica (Figura 27.26A e B).189 De acordo com a Figura 27.17, quando um equino anestesiado (em geral durante cirurgia para cólica ou cesariana) inala 100% de oxigênio e tem um valor de PaO2 resultante inferior a 70 mmHg, é claro que mais de 50% do débito cardíaco está sendo desviado através dos pulmões sem contribuir para a troca de gás. Embora bovinos adultos também demonstrem gradientes de P(A-a)O2 razoavelmente grandes durante anestesia inalatória, a hipoxemia séria parece restrita a animais muito grandes, especialmente se tiverem sido posicionados em decúbito lateral. Doença pulmonar crônica e consolidação pulmonar são relativamente comuns em bovinos como sequela de doença respiratória juvenil. É surpreendente que tais animais não demonstrem grandes aumentos nos níveis de P(A-a)O2 durante anestesia inalatória, talvez porque o fluxo sanguíneo pulmonar também esteja diminuído nas áreas pulmonares não ventiladas.

Figura 27.25 Valores da PO2 arterial em oito equinos normais respirando espontaneamente e posicionados em decúbito dorsal enquanto anestesiados com isofluorano e recebendo 50 ou 100% de oxigênio. Notar os níveis baixos da pressão arterial parcial média (PaO2) em ambos os grupos, considerando os níveis de oxigênio inspirado e o amplo desvio padrão refletindo variação considerável na resposta dos equinos. No grupo que inspirou 50% de oxigênio, os níveis da PaO2 variaram de um baixo de 46 a um alto de 104 mmHg no período de 90 min de anestesia e 3/8 dos equinos ficaram hipóxicos (PaO2 ≤ 60 mmHg) em tal período. No grupo que inspirou 100% de oxigênio, os níveis da PaO2 variaram de 72 a 401 mmHg após 90 min de anestesia. Fonte: dados da referência 64. Imagem e detalhes relativos às diferenças individuais nos equinos fornecidos por Crumley e coautores e usados com permissão.

Figura 27.26 Alteração (A) na pressão arterial parcial de dióxido de carbono (PaCO2) e (B) na pressão arterial parcial de oxigênio (PaO2) em vacas respirando espontaneamente com e sem jejum prévio. Notar o maior grau de hipercapnia nos animais alimentados e a PaO2 progressivamente mais baixa. Essa alteração foi acompanhada por um aumento no gradiente alveolar-arterial de oxigênio [P(A-a)O2] e na resistência da via respiratória, bem como diminuição na complacência. É provável que tais alterações tenham estado associadas a uma redução no volume pulmonar a partir do desenvolvimento de timpanismo abdominal. Fonte: referência 189. Reproduzida, com autorização, da AVMA.

Quando bovinos adultos são posicionados em decúbito dorsal usando-se cordas para a contenção, com ou sem sedação (p. ex., derrubada), alguns ficam hipoxêmicos.129,130 Equinos anestesiados com as misturas injetáveis comuns por períodos breves no campo também comumente têm níveis de PaO2 na faixa de 55 a 65 mmHg.154,155 É admissível que a maioria dos animais anestesiados assim sobreviva sem efeitos adversos óbvios subsequentes. Isso é mais um crédito a favor da reserva de segurança inerente que os animais têm com relação ao fornecimento de oxigênio e das boas condições subjacentes de saúde da maioria dos pacientes que aos esquemas anestésicos em si. A insuflação nasotraqueal de oxigênio (15 ℓ/min) melhora bastante a questão de segurança durante a contenção e a indução anestésica em tais animais (ver Figura 27.24), sendo sempre desejável, caso as circunstâncias permitam. Algumas diretrizes relativas ao suporte ventilatório de bovinos e equinos adultos anestesiados incluem as seguintes: •

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A anestesia geral requer intubação endotraqueal em bovinos adultos, por causa do risco alto de regurgitação e aspiração, mesmo com jejum prévio. Há algum risco de regurgitação e aspiração quando bovinos são contidos em uma posição de decúbito com sedativos, incluindo a xilazina. A incidência de regurgitação, contudo, é razoavelmente baixa e a intubação rotineira de bovinos não anestesiados é impraticável A melhor maneira de obter uma anestesia mais demorada em equinos é com uma sonda endotraqueal colocada, o que também facilita a insuflação de oxigênio A insuflação de oxigênio com 15 ℓ/min, em especial se a ponta do cateter estiver posicionada na traqueia, em geral impede hipoxia grave em equinos e bovinos relativamente saudáveis durante a anestesia ou a recuperação. Essa taxa de fluxo abaixo da traqueia irá manter oxigenação suficiente para manter vivos animais apneicos por pelo menos 10 min270 Se a suplementação com oxigênio não for possível, é melhor posicionar bovinos e equinos adultos em decúbito lateral do que dorsal (se a cirurgia permitir escolher) Quando se pode instituir o jejum pré-operatório, é o ideal, porque melhora a ventilação











e a oxigenação após a indução anestésica Em geral, não é recomendável usar óxido nitroso em bovinos ou equinos posicionados em decúbito dorsal e, se for utilizado para suplementar a analgesia para cirurgia ortopédica em equinos em decúbito lateral, não deve ultrapassar uma concentração inspirada de 50% (p. ex., 4 ℓ de oxigênio para 4 ℓ de óxido nitroso) Os anestésicos gerais inalatórios cujo efeito dura mais de 45 min em bovinos quase sempre requerem VMC para prevenir elevações excessivas da PaCO2. Em equinos, nas operações que duram mais de 1 a 2 h costuma ser necessária VMC, se não for preciso antes. É bom lembrar que, em equinos em decúbito dorsal respirando espontaneamente, a hipoxemia arterial nem sempre melhora com o início da VMC, que na verdade pode diminuir a PaO2 e reduzir seriamente a liberação de oxigênio para os tecidos.153 Aumentos moderados nos níveis da PaCO2 de fato podem desencadear estimulação hemodinâmica sem efeitos adversos aparentes e parecem ser bem tolerados Embora teoricamente uma redução na FIO2 do habitual de cerca de 1 deva ocasionar menos colapso alveolar em andamento e atelectasia por absorção em equinos, experimentos realizados recentemente em que foram empregados 50% de oxigênio inspirado não melhoraram realmente o grau de desequilíbrio V/Q, e vários equinos que receberam 50% de oxigênio ficaram hipóxicos (PaO2 < 60 mmHg).64,218 Daí a recomendação atual ainda é utilizar 100% de oxigênio como gás transportador durante anestesia inalatória em equinos (e bovinos) O tratamento de níveis baixos de PaO2 com níveis altos de PEFP (20 a 30 cmH2O) é viável se o volume sanguíneo for adequado e se usar suporte inotrópico.234,235 Embora a ventilação pulmonar superficial com PEFP reduza a hipoxemia 178,179 experimentalmente, é difícil saber como utilizar isso clinicamente em animais que de fato precisam de tratamento É provável que o suspiro pulmonar periódico em bovinos e equinos adultos não seja prejudicial nem muito bom. A insuflação pulmonar total após o abdome ter sido descomprimido cirurgicamente, ou quando os animais são posicionados em decúbito esternal durante a recuperação, pode ser útil para restabelecer os níveis adequados da PaO2.

■ Espécies exóticas É muito difícil generalizar quanto à melhor maneira de otimizar a função respiratória durante anestesia para as diversas espécies de animais exóticos. Mesmo que não se usem rotineiramente, deve-se dispor de oxigenação suplementar e de meios para estabelecer uma via respiratória, se possível. A estimulação química da respiração (p. ex., com doxapram) ou a disponibilidade de antagonistas específicos do receptor podem salvar a vida dos

animais no caso de uma superdosagem inadvertida de anestésico, mas não devem ser empregadas como rotina na conduta anestésica nessas espécies. Em geral, o suporte respiratório é melhor com anestésicos dissociativos do que com propofol ou barbitúricos. Quanto maior a espécie, mais provável o decúbito e alterações na posição do animal interferirem seriamente na homeostasia cardiopulmonar, embora possa haver exceções (p. ex., elefantes). Em geral, é melhor manter grandes mamíferos terrestres em decúbito esternal do que lateral ou dorsal durante a contenção e/ou anestesia, a menos que tal posicionamento acarrete pressão excessiva sobre os membros por um período prolongado.

Anestesia de animais com doença ou disfunção respiratória ■ Doença ou disfunção respiratória da via respiratória superior Pacientes com doença ou disfunção da via respiratória superior podem ser levados a um veterinário para procedimentos que requeiram anestesia relacionada ou não com sua doença-disfunção de via respiratória. A síndrome obstrutiva de via respiratória em braquicefálicos, paralisia laríngea, colapso da traqueia, corpos estranhos e massas intraluminais são algumas das condições mais comuns das vias respiratórias que podem resultar em diminuição da função dessas vias. Embora menos comuns, as anormalidades extrínsecas à via respiratória (p. ex., massa ou abscesso extrafaríngeos) também podem gerar desafios relacionados com a conduta da via respiratória durante o período peroperatório. Embora a fisiopatologia das condições subjacentes que resultam em alterações na função respiratória precise ser considerada, a abordagem à conduta anestésica de pacientes com doença da via respiratória superior geralmente é similar, qualquer que seja a espécie, conforme delineado a seguir. Ainda que a escolha dos fármacos possa ser uma preocupação primordial, é provável que as medidas de suporte e os planos para conduta da via respiratória durante todo o período perianestésico tenha o maior impacto no desfecho para o paciente.272 Além das preocupações relacionadas com o paciente, o anestesista também precisa considerar o impacto do procedimento que está sendo realizado sobre sua capacidade de proporcionar a melhor assistência durante o período de anestesia. Por exemplo, o acesso à cabeça do paciente durante a avaliação da via respiratória superior e procedimentos subsequentes na mesma pode ser limitado. Isso tem impacto na capacidade de monitorar diretamente a via respiratória do paciente. Em geral, a consideração proativa das

complicações e desafios possíveis aumenta a preparação para lidar com circunstâncias e melhorar o desfecho para o paciente. Raças caninas braquicefálicas, inclusive Buldogues Ingleses e Franceses, Boston Terriers, Shih Tzus, Pequineses e Boxers, podem ou não ter doença respiratória sintomática acentuada em repouso. As anormalidades associadas à síndrome obstrutiva da via respiratória em raças braquicefálicas incluem narinas estenóticas, palato mole alongado, ventrículos laríngeos laterais evertidos, tonsilas evertidas, colapso laríngeo e traqueia hipoplásica.272-274 Em gatos braquicefálicos (Persas, Himalaios e Birmaneses), pode haver uma patologia similar. Qualquer que seja a espécie, as anormalidades da via respiratória superior resultam em uma redução no diâmetro dessas vias e um aumento associado na sua resistência. Para compensar o último, é criada uma pressão intratorácica negativa maior, de modo a gerar fluxo de ar inspiratório adequado. Além do aumento no trabalho da respiração, alterações na pressão dinâmica podem exacerbar ainda mais o colapso de estruturas da via respiratória superior para as passagens de ar e aumentar mais ainda a resistência da via respiratória. Nos casos graves, a disfunção da via respiratória esta associada a inflamação e edema dos tecidos faríngeos. Em animais braquicefálicos, pode haver anormalidades cardiovasculares e gastrintestinais, além daquelas no sistema respiratório. Em termos específicos, cães braquicefálicos exibiram um tônus vasovagal em repouso maior do que cães de outras raças, o que pode predispô-los a bradicardia.275 Além disso, cães com a síndrome obstrutiva da via respiratória braquicefálica também podem ter anormalidades funcionais e anatômicas do trato gastrintestinal, que podem predispô-los a regurgitação ou vômito no período peroperatório.274 Foi relatada uma taxa de complicação cirúrgica pós-operatória de cães braquicefálicos no período peroperatório tão alta como de 12%, com 5% desenvolvendo dispneia grave ou chegando ao óbito.273 Em termos gerais, as principais preocupações relacionadas com a anestesia do paciente que tem a síndrome da via respiratória braquicefálica são o surgimento de obstrução (parcial ou completa) da via respiratória a qualquer momento no período anestésico (desde a sedação pré-operatória até a recuperação total) e a predisposição para bradicardia e regurgitação.272 Foi descrita paralisia laríngea tanto congênita como adquirida em cães.276 Independentemente da etiologia, a condição caracteriza-se por comprometimento uni ou bilateral da abdução e da adução das cartilagens aritenoides e pregas vocais. Como na síndrome braquicefálica, a gravidade de sintomas associados à paralisia laríngea pode ser extremamente variável, com os sintomas em alguns cães limitados a um aumento no ruído inspiratório com o exercício, enquanto outros podem apresentar obstrução quase completa da via respiratória. Pode haver hipoxemia em cães acometidos moderada ou gravemente. Também pode haver pneumonia por aspiração à medida que a deglutição fica comprometida e, nos casos graves, pode desenvolver-se edema pulmonar. A presença de

doença respiratória subjacente, o potencial de obstrução da via respiratória e a aspiração durante a recuperação são as principais preocupações com a anestesia em pacientes com paralisia laríngea. A disfunção laríngea em equinos é um distúrbio relativamente comum das vias respiratórias e de etiologia desconhecida. Em geral, equinos maiores são acometidos unilateralmente do lado esquerdo. Foi descrita paralisia laríngea secundária a micose da bolsa gutural, traumatismo cervical, processos neoplásicos ou inflamatórios, embora essas condições sejam relativamente raras com relação à condição idiopática. Baixa tolerância ao exercício e aumento do ruído na via respiratória superior relacionado com o exercício são sinais clínicos típicos.277 Infelizmente, tanto os agonistas do receptor adrenérgico α2 como a acepromazina influenciam na pontuação da disfunção laríngea via endoscopia.278 A intubação raramente é difícil em equinos com paralisia laríngea unilateral, mas o anestesista deve estar preparado para usar uma sonda endotraqueal menor, de modo a minimizar o traumatismo às estruturas laríngeas durante a intubação em pacientes com sinais clínicos graves. O anestesista também deve estar preparado para extubar temporariamente o paciente no período intraoperatório, para permitir a visualização da posição aritenoides. Podem surgir pacientes para anestesia geral para a retirada de corpos estranhos ou massas luminais de dentro das vias respiratórias superiores. A presença e impacto de doença concomitante devem ser considerados antes da anestesia, além da abordagem cirúrgica e do procedimento. O último pode ter impacto na conduta da via respiratória, na liberação de oxigênio e na manutenção da anestesia. Anormalidades extrínsecas na via respiratória também podem criar um desafio para a conduta da via respiratória superior durante o período peroperatório. Por exemplo, doença da articulação temporomandibular ou massas orais podem prejudicar a capacidade do anestesista de visualizar a laringe adequadamente e fazer a intubação orotraqueal. Doenças extraorais como mucoceles da glândula salivar ou neoplasia também podem atrapalhar a capacidade de se conseguir a intubação orotraqueal com as técnicas tidas como o padrão. Segue-se uma abordagem geral ao paciente com doença/disfunção da via respiratória superior: •

Diagnóstico pré-anestésico. Uma anamnese detalhada e um exame físico abrangente devem ser feitos em todos os pacientes, com atenção particular para a função respiratória durante repouso e exercício. O plano diagnóstico subsequente deve ser adaptado ao paciente como indivíduo, considerando o potencial de doença concomitante e a necessidade de avaliação antes da anestesia. Por exemplo, no caso de paralisia laríngea em um cão, recomenda-se uma radiografia torácica para a triagem de



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pneumonia por aspiração e/ou a presença de massas intratorácicas, em particular em pacientes mais velhos. Além disso, um painel tireóideo e a estimativa de anticorpos do receptor de acetilcolina são recomendados para excluir miastenia gravis Preparação pré-operatória. Se houver anormalidades sistêmicas que possam influenciar a resposta à anestesia, devem ser corrigidas, se possível, antes da indução anestésica. Em particular, o estado de hidratação do animal deve ser normalizado. A hipoxemia deve ser tratada com oxigênio no pré-operatório Retirada padrão do alimento, em geral, é apropriada para pacientes com condições da via respiratória superior Sedação. Quando os pacientes são pequenos animais, os protocolos padrão devem ser ajustados em pacientes com doença significativa da via respiratória superior. A administração de agentes anticolinérgicos como parte do esquema de pré-medicação em pequenos animais com doença da via respiratória superior é um tanto controversa.272 Como o tônus vagal tende a estar elevado em pacientes braquicefálicos, a preferência pessoal é incluir um agente anticolinérgico quando são usados opioides para prémedicação nesse grupo de pacientes. A escolha dos agentes para pré-medicação mais uma vez está sujeita à preferência pessoal e às características individuais do paciente; entretanto, recomenda-se o uso de fármacos que implicam pouco risco de vômito (p. ex., buprenorfina em vez de morfina). Além disso, podem ser usados antieméticos profilaticamente para diminuir ainda mais o risco de vômito e aspiração. As opções incluem o uso de um opioide sozinho ou combinado com acepromazina. Embora os agonistas do receptor adrenérgico α2 sejam reversíveis, estão associados a relaxamento muscular considerável da via respiratória superior e depressão respiratória, além de seu potencial de induzir vômito quando usados em combinação com agonistas opioides µ. Portanto, seu uso não é recomendado em pacientes com obstrução significativa da via respiratória superior. Similarmente, a acepromazina em doses altas não é recomendada, por causa da duração prolongada de sua ação.

Em pacientes animais grandes, os agonistas do receptor adrenérgico α2 aumentam o trabalho da respiração, em decorrência de um aumento na resistência das vias respiratórias superiores, atribuído ao relaxamento dessas vias. Embora esses agentes ainda sejam usados rotineiramente em equinos com doença de via respiratória superior, o anestesista deve prestar atenção à posição da cabeça do paciente após a sedação, antes da indução anestésica e do estabelecimento de uma via respiratória, pois a queda da cabeça ou a hiperflexão do pescoço podem prejudicar o fluxo de ar. Após a sedação, todos os animais com doença de via respiratória devem ser mantidos em observação estrita. •

Deve-se fixar o acesso intravenoso nos pacientes assim que isso seja possível, para







facilitar uma intervenção em que o animal tenha uma deterioração aguda da permeabilidade de sua via respiratória Oxigenação e conduta relativa à via respiratória. Se o paciente não estiver indevidamente estressado, recomenda-se a pré-oxigenação em pequenos animais com doença de via respiratória, para aumentar o tempo de dessaturação no evento de que o tempo para fixar uma via respiratória seja prolongado.191 Caso se planeje fazer intubação orotraqueal em pequenos animais, deve-se dispor de um estilete e um laringoscópio com lâminas de tamanho variado, para facilitar a visualização direta. O anestesista também deve incluir no seu planejamento a disponibilidade de sondas endotraqueais de vários tamanhos. Quando a intubação orotraqueal não é viável ou desejada, devem ser consideradas alternativas. A insuflação de oxigênio via um cateter colocado na traqueia pode ser uma abordagem adequada em alguns casos. O uso de máscara laríngea ou um dispositivo de via respiratória supraglótica foi descrito em cães, gatos e coelhos, mas pode ser que tenha valor limitado, dependendo da patologia presente.279-281 A intubação orotraqueal também pode ser feita em qualquer espécie, com a ajuda de um endoscópio. Em grandes animais, a intubação nasotraqueal pode ser uma alternativa apropriada. A traqueostomia é um meio alternativo de fixar uma via respiratória em todas as espécies Plano analgésico. Se possível, é preciso evitar anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) antes da recuperação completa de pequenos animais que corram o risco de obstrução da via respiratória durante a recuperação, porque podem ser necessários corticosteroides no pós-operatório para diminuir o edema e a inflamação das vias respiratórias, em particular se a cirurgia tiver sido nelas. Como em todos os pacientes, deve-se adotar uma abordagem multimodal de analgesia, considerando técnicas com anestésicos locais, além de analgésicos sistêmicos Indução anestésica. Embora a escolha do agente injetável específico para indução da anestesia em pequenos animais com doença de via respiratória possa variar, dependendo da necessidade de avaliação da função laríngea, não se recomenda a indução com agentes inalatórios, em decorrência de sua duração prolongada. Uma exceção a isso pode ser quando houver dúvida sobre a possibilidade de intubar por causa da presença de patologia (p. ex., massa ou membrana na glote) e porque a apneia associada aos fármacos injetáveis poderia ser fatal. O uso de pré-medicações apropriadas pode facilitar bastante a indução com inalatórios nesses pacientes. A decisão quanto ao uso de técnicas inalatórias ou injetáveis baseia-se no paciente, no entendimento da patologia presumida e na análise do risco versus o benefício das diferentes opções. Em cães, estudos em que se avaliou a viabilidade de técnicas diferentes de indução com relação à possibilidade subsequente de avaliar a função

orofaríngea e laríngea mostraram que a combinação de cetamina e diazepam foi menos ideal que o propofol ou o tiopental, em decorrência da ausência de relaxamento muscular.282 É digno de nota ressaltar que, no estudo em questão, não se administrou um sedativo aos cães, o que pode ter contribuído para a ausência de relaxamento muscular. Um segundo estudo revelou que o tiopental foi superior ao propofol e à combinação de cetamina com diazepam para a avaliação do movimento laríngeo durante laringoscopia.283 Em grandes animais, as técnicas com base em anestésicos injetáveis consideradas o padrão geralmente são apropriadas. •







Manutenção da anestesia. Em geral, os anestésicos inalatórios são adequados para o protocolo de manutenção da maioria dos pacientes. Se a via respiratória não puder ser vedada com uma sonda endotraqueal de manguito, recomenda-se a manutenção com anestésico(s) injetável(eis) em uma taxa de infusão variável. O propofol é apropriado para pequenos animais, enquanto, nos grandes, uma mistura de cetamina com um agonista do receptor adrenérgico α2 e guaifenesina é uma alternativa comum à anestesia com base em inalatórios Ventilação. A resistência à respiração depende do diâmetro da via respiratória; portanto, se uma sonda endotraqueal menor do que o padrão ou um meio alternativo de fixar a via respiratória resultar em redução do diâmetro da via respiratória, o trabalho respiratório do paciente aumentará. Como resultado, haverá maior probabilidade de o paciente precisar de suporte ventilatório. Os meios para tal suporte devem estar preparados antes da indução anestésica. Isso pode envolver uma equipe adequada para fazer ventilação manual ou se ter um ventilador mecânico à disposição e preparado para ser usado Monitoramento. A capnografia é particularmente útil em pacientes com doença de via respiratória. Sua inclusão vai indicar a permeabilidade da via respiratória, detectar desconexões precoces e a adequação da ventilação. A capnografia é particularmente útil se o acesso do anestesista à via respiratória estiver reduzido. A oximetria de pulso também é um recurso valioso para o monitoramento no paciente animal pequeno com disfunção da via respiratória, em particular durante a fase de recuperação após extubação, quando o próprio animal precisa manter a permeabilidade de sua via respiratória e o risco de obstrução é maior Recuperação da anestesia. Antes da recuperação, deve-se fazer um exame abrangente da via respiratória. Restos e líquido na orofaringe devem ser removidos mediante aspiração ou esfregação delicada. Durante a recuperação, deve-se providenciar oxigênio durante o maior tempo possível. Isso, em geral, é feito por insuflação de oxigênio a



partir de uma fonte para grandes animais ou via circuito respiratório para os pequenos. Só se deve proceder à extubação depois que houver um reflexo de deglutição forte e o animal não tolerar mais a sonda orotraqueal. Como há o risco de obstrução da via respiratória, o anestesista deve estar preparado para anestesiar e intubar novamente o paciente, se necessário. A suplementação com oxigênio no período de recuperação, em geral, é benéfica e o uso temporário de uma tenda de oxigênio pode ser útil em animais que não aceitam a contenção Considerações pós-operatórias. O monitoramento pós-operatório intensivo deve ser adotado em pacientes com doença de via respiratória superior até que a consciência normal tenha retornado e o animal mostre oxigenação adequada com obstrução mínima da via respiratória. A pneumonia por aspiração é uma preocupação particular com a parte posterior de laringe e em raças braquicefálicas.276,284 O uso de analgésicos associados a um risco baixo de vômito, a administração de antieméticos e a detecção precoce com tratamento agressivo melhoram o resultado

■ Doença de via respiratória inferior e do parênquima pulmonar Animais com doença de via respiratória inferior podem precisar de anestesia para a obtenção de amostras destinadas ao diagnóstico ou à realização de procedimentos sem relação com sua doença pulmonar. As doenças mais comumente encontradas em pequenos animais incluem asma felina, pneumonia, massas pulmonares, contusões e atelectasia.272 Nos grandes animais, a doença pulmonar obstrutiva crônica em equinos adultos e a pneumonia em potros e bezerros são comuns. Como na disfunção de via respiratória superior, deve-se considerar a fisiopatologia de cada condição; porém, as principais preocupações durante o período perianestésico são similares. Uma abordagem geral ao paciente com doença de via respiratória inferior e do parênquima pulmonar é a seguinte: •



Diagnóstico pré-anestésico. No mínimo, deve-se fazer um exame físico abrangente imediatamente antes da anestesia nos pacientes com doença pulmonar. Hipoxemia, hipercarbia e déficits de hidratação predispõem o paciente a distúrbios eletrolíticos e acidobásicos, obrigando à estimativa das pressões parciais sanguíneas e dos gases, bem como dos eletrólitos, se possível, em particular no paciente sintomático que estiver para ser anestesiado. Em pequenos animais, deve-se considerar uma radiografia torácica préoperatória para ver a condição basal da doença do parênquima pulmonar antes da anestesia Preparação pré-operatória. Da mesma maneira que no paciente com doença da via

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respiratória superior, se houver anormalidades sistêmicas, deverão ser corrigidas antes da anestesia, se possível. Pode haver necessidade de oxigênio e, em alguns casos, de suporte ventilatório em sedação forte também antes da anestesia. Em pacientes com doença de via respiratória, a conduta clínica deve ser instituída e a condição do paciente otimizada antes da realização de procedimentos eletivos Retirada padrão periódica do alimento, em geral, é apropriada Sedação. Em pacientes equinos adultos com doença de via respiratória, os protocolos de sedação tidos como padrão são apropriados, pois os agentes sedativos usados tipicamente não comprometem a oxigenação e a ventilação, podendo de fato melhorar a mecânica respiratória. Em potros com pneumonia, em geral pode-se reduzir a dose de sedativos e titular seu efeito. Em ruminantes com pneumonia, geralmente são recomendadas alternativas aos agonistas dos receptores adrenérgicos α2, como os benzodiazepínicos, para evitar sedação profunda, hipoxemia e hipercarbia.

Em pacientes animais pequenos com doença reativa de via respiratória, a inclusão de um anticolinérgico no momento da medicação pré-anestésica pode ser vantajosa, em decorrência do seu efeito broncodilatador, embora seu uso seja controvertido. A acepromazina pode ser benéfica nesses pacientes, por causa de seus efeitos sobre a inibição da liberação de histamina. Devem ser evitados opioides com o potencial de aumentar a liberação de histamina, como a meperidina intravenosa. Se um paciente estiver hipoventilando antes da sedação, o anestesista deve ter extremo cuidado ao usar sedativos e analgésicos opioides antes da indução anestésica e do estabelecimento de uma via respiratória, por causa do potencial de agravamento da hipoventilação ou mesmo de apneia com esses agentes. Em tais casos, é prudente induzir a anestesia, primeiro, e acrescentar os analgésicos opioides ao protocolo antes de instituir o suporte ventilatório. •



Acesso intravenoso. Conforme na doença de via respiratória superior, o estabelecimento de um acesso intravenoso o mais cedo possível é recomendado para permitir intervenções, se necessário Oxigenação e conduta da via respiratória. Qualquer que seja a espécie, a préoxigenação é obrigatória em qualquer paciente com hipoxemia antes da indução anestésica, desde que a contenção necessária não cause desconforto inaceitável. Em tais casos, devem ser buscadas alternativas para a máscara ou o fluxo de oxigênio. Os planos para suplementar oxigênio e o equipamento disponível para fixar a via respiratória e maximizar a liberação de oxigênio devem estar disponíveis para o caso de serem necessários a qualquer momento do período peroperatório. O suporte ventilatório pode ser necessário para manter a oxigenação durante a anestesia. Em gatos com







doença reativa de via respiratória, pode-se usar lidocaína tópica antes da intubação e, assim, minimizar o risco de broncospasmo Plano analgésico. Como mencionado, se forem incluídos analgésicos opioides no plano de analgesia, deve-se considerar seu efeito sobre a ventilação. No paciente com ventilação inadequada antes da sedação, administração de opioide pode ser adiada até serem instituídas as medidas de suporte ventilatório antes da cirurgia. Se um paciente estiver recebendo corticosteroides, AINEs devem ser evitados. Indução e manutenção da anestesia. Em pequenos animais com doença reativa de via respiratória, a indução anestésica com cetamina ou propofol é recomendada sobre o tiopental ou a etomidina, em decorrência de seus efeitos broncodilatadores relativos. Os anestésicos dissociativos podem oferecer o benefício adicional de agir como simpaticomiméticos na maioria dos animais, o que também tende a aumentar o diâmetro das vias respiratórias inferiores mediante ativação indireta dos receptores adrenérgicos β2. Deve-se ter cuidado ao usar bloqueadores neuromusculares anticolinesterásicos, porque podem induzir broncoconstrição Ventilação. É comum ocorrer hipoventilação em todos os pacientes submetidos à anestesia geral; contudo, a ventilação inadequada pode ser mais profunda nos pacientes com doença respiratória inferior e/ou resultar em comprometimento da oxigenação, em particular com uma FIO2 baixa. Ao se instituir o suporte ventilatório em um paciente com doença do parênquima pulmonar, o objetivo deve ser minimizar a progressão da lesão pulmonar. Conforme discutido na seção intitulada terapia com oxigênio e ventilação mecânica, é possível conseguir minimizar a hiperdistensão pulmonar com estratégias de volume corrente baixo. Nos casos de lesão pulmonar grave, pode ser necessária PEFP para recrutar o pulmão e minimizar a atelectasia. Isso pode exigir o uso de um ventilador de cuidado crítico e, portanto, a manutenção da anestesia com agentes injetáveis.

Em pacientes com doença de via respiratória, uma estratégia ventilatória em que se usa um tempo inspiratório lento e um tempo expiratório longo permitirá a exalação total e vai prevenir o aprisionamento de ar. • •

Monitoramento. A capnografia, a oximetria de pulso e a análise da gasometria arterial são recomendadas no paciente com doença respiratória grave Recuperação. Antes da retirada completa do suporte ventilatório, deve-se verificar o monitoramento agressivo da adequação da ventilação com a capnografia e a análise dos gases sanguíneos. Similarmente, o oxigênio suplementar só deve ser retirado durante o monitoramento da oxigenação.

■ Conduta anestésica para o paciente com doença intratorácica ou da parede torácica Inúmeros fatores extrapulmonares podem influenciar a função respiratória de um paciente, inclusive a presença de ar ou líquido na cavidade torácica, uma ruptura na anatomia normal da parede torácica ou do diafragma (ferimento torácico penetrante ou uma hérnia diafragmática) ou rigidez excessiva na parede torácica em decorrência da distensão abdominal. Animais com doença do espaço pleural ou ruptura traumática da parede torácica ou do diafragma costumam ter doença concomitante do parênquima pulmonar. Além das estratégias citadas, a preparação pré-operatória deve incluir a remoção de líquido pleural ou ar antes da indução anestésica. Além disso, por causa do aumento do trabalho respiratório associado a doenças extrapulmonares, o anestesista deve estar preparado para fornecer suporte ventilatório imediatamente após a indução anestésica. Estratégias ventilatórias com volume corrente baixo minimizam o aumento nas pressões intratorácicas e os efeitos cardiopulmonares subsequentes do suporte ventilatório. Alguns pacientes com doença crônica do espaço pleural (p. ex., hérnia diafragmática crônica ou quilotórax) podem ter o lobo pulmonar danificado, o que será agravado pela reexpansão pulmonar rápida durante a cirurgia. A fisiopatologia da lesão causada por reexpansão pulmonar (i. e., edema causado pela reexpansão pulmonar) parece complexa, mas parece envolver alterações na integridade vascular, infiltração de células imunes e estresses mecânicos. Observou-se edema em alguns indivíduos no início do período pósoperatório, o que levou a várias recomendações, como limitar o volume da administração de cristaloides, o uso de coloides, a administração de diuréticos e de corticosteroides. Outros defenderam o uso de pressão mínima na via respiratória durante VMC e despertar o paciente sem tentar reexpandir os lobos pulmonares afetados, em vez de confiar na reexpansão gradual lenta durante o período de recuperação. Essa condição é vista tanto em pacientes humanos como veterinários e são necessários grandes ensaios clínicos para fornecer evidência definitiva nas melhores práticas de conduta.

■ Ventilação com um pulmão Na prática anestésica humana, a ventilação com um pulmão (VUP) tornou-se razoavelmente comum como um meio para facilitar a cirurgia, ao proporcionar melhor visualização do campo cirúrgico e isolar as comunicações brônquicas de lobos pulmonares doentes dos sadios durante a cirurgia. Isso se aplica a inúmeros procedimentos torácicos, incluindo cirurgias pulmonares, esofágicas, aórticas e mediastínicas. O potencial para o desenvolvimento de hipoxemia durante VUP em seres humanos, junto com os métodos de prevenção e tratamento desse problema, foi revisto um tanto recentemente.285 Uma fonte importante de hipoxemia está relacionada com colocação do bloqueador endobrônquico ou

sondas de lúmen duplo usado para separar os pulmões, ou seu deslocamento acidental durante o posicionamento do paciente para cirurgia. Por esse motivo, o exame inicial e a sua repetição para se verificar a posição da sonda com o endoscópio são altamente recomendados. Enquanto um pulmão é ventilado durante VUP, ambos os pulmões continuam a ser perfundidos, com a magnitude da perfusão do pulmão não ventilado dependendo de muitos fatores,285 que incluem o grau de colapso do pulmão não ventilado (que afeta a resistência pulmonar), a saúde prévia do pulmão não ventilado, o nível de comprometimento da função cardiovascular pelo anestésico, o esquema de ventilação utilizado e até que ponto o esquema anestésico empregado diminui a resposta de vasoconstrição pulmonar hipóxica (VPH) à hipoxemia local ou regional (ou seja, de um lobo pulmonar). A perfusão do pulmão não ventilado ou colapsado e sua inervação levam inevitavelmente a algum grau de desvio transpulmonar e comprometimento da oxigenação. Quando se usa um nível de FIO2 de 0,5, conforme é comum na anestesia humana, o desenvolvimento de hipoxemia é sempre uma possibilidade e o nível de oxigenação tem de ser monitorado de maneira diligente e contínua.285 A incidência de hipoxemia é maior quando pacientes humanos ficam em decúbito dorsal ou lateral esquerdo, em vez de lateral direito.285 A diferença no decúbito lateral ocorre porque o pulmão direito é maior (contém cerca de 55% do volume pulmonar total) do que o esquerdo (que contém 45%); portanto, se o pulmão maior ficar pendente e for ventilado, em geral isso melhora a oxigenação. É surpreendente que não haja evidência real de que as técnicas anestésicas intravenosas resultem em melhor oxigenação do que com os métodos inalatórios, ou que haja qualquer diferença real entre os vários anestésicos inalatórios quando utilizados em situações clínicas. Até recentemente, a anestesia com VUP não tinha uso amplo na prática veterinária. Com o avanço da instrumentação endoscópica e toracoscópica e dos métodos para animais de estimação, estão surgindo agora relatos sobre VUP na literatura.286-291 Em alguns desses relatos, usou-se uma guia metálica para inserir um bloqueador endobrônquico no pulmão não ventilado e em alguns relatos foram usadas sondas endotraqueais de lúmen duplo designadas para seres humanos. Houve uma avaliação recente de três dispositivos diferentes de lúmen duplo para uso em cães, inseridos com assistência toracoscópica às cegas e sua colocação sendo verificada por endoscopia.292 O estudo confirmou a importância da confirmação endoscópica da localização da sonda em cães, como ocorre em pessoas. A colocação inadvertida de um bloqueador endobrônquico inclinado também foi relatada.293 Como a abordagem cirúrgica em cães e gatos geralmente ocorre com o animal em decúbito lateral e o nível de FIO2 usado em geral será próximo de 1, é provável que o risco de hipoxemia séria durante VPU seja mínimo. Isso faz pressupor que a colocação da sonda

esteja correta, a profundidade da anestesia seja apropriada e a ventilação do pulmão pendente tenha sido feita adequadamente, de modo a manter a eucapnia e a expansão desse pulmão. O uso de um nível baixo de PEFP (3 a 5 cmH2O) durante a ventilação do pulmão pendente vai minimizar o desenvolvimento de atelectasia naquele pulmão. É provável que a necessidade de expansão cirúrgica determine se é preciso manter ou não alguma insuflação do pulmão mais superior não ventilado. A investigação dos efeitos cardiopulmonares da VUP com o tórax fechado foi realizada em cães sadios de experimentação anestesiados com isofluorano, com ou sem PEFP do pulmão ventilado pendente.294,295 Esses estudos revelaram que o fornecimento tecidual de oxigênio não foi significativamente diferente durante VPU versus a ventilação controlada do pulmão contralateral, apesar do grande aumento nos gradientes da P(A-a)O2 e presumivelmente no nível da mistura venosa. A manutenção do suprimento tecidual de oxigênio ocorreu porque o débito cardíaco foi mantido e o uso de 100% de oxigênio como gás inalatório transportador resultou em níveis de PaO2 durante VUP que foram altos o suficiente para produzir saturação quase completa da hemoglobina, apesar do aumento no gradiente da P(A-a)O2. A situação fortuita pode não ser o caso quando se usa VUP em animais doentes ou se o estado circulatório estiver comprometido. Portanto, o monitoramento contínuo do nível de saturação de oxigênio e das condições circulatórias é altamente recomendado.

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28 Fisiologia, Fisiopatologia e Conduta Anestésica de Pacientes com Doença Neurológica

29 Nocicepção e Dor

Introdução Anatomia do sistema nervoso Sistema nervoso periférico Sistema nervoso central Sistema nervoso autônomo Neurotransmissão neuromuscular Fisiologia/fisiopatologia do sistema nervoso central Metabolismo cerebral Fluxo sanguíneo cerebral Fluxo sanguíneo da medula espinal Anestesia geral Locais anatômicos de ação dos anestésicos Mecanismos das ações dos anestésicos Monitoramento e testes neurológicos Eletroencefalografia Potenciais evocados Índice biespectral® Índice Narcotrend® Entropia Índice de consciência Índice de estado cerebral Eletromiografia Manejo de estados patológicos selecionados do sistema nervoso Tumor cerebral, lesão cerebral traumática, hipertensão

intracraniana/elevação da pressão intracraniana Distúrbios convulsivos Lesão aguda da medula espinal Mielomalacia Miastenia gravis Modalidades avançadas de diagnóstico por imagem (mielografia, ressonância magnética) Referências bibliográficas

Introdução O organismo vivo está constantemente exposto a estímulos externos e internos.1 A transdução, a transmissão, a transformação (modulação), a tradução (percepção) e a resposta a estímulos constituem processos constantes que são fundamentais para a adaptação do organismo às mudanças de condições e para a sobrevivência diária.1,2 Todos esses processos necessitam do sistema nervoso especializado que, com o sistema endócrino, medeiam os ajustes e as reações do organismo ao ambiente tanto interno quanto externo.3 A anestesia geral foi definida como um estado reversível induzido por fármacos, que se caracteriza por amnésia, inconsciência, analgesia, imobilidade e relaxamento muscular.4-8 Para alcançar essas metas, os agentes anestésicos precisam alterar a função em várias partes do sistema nervoso. Os agentes anestésicos gerais, em sua maioria, exercem seus efeitos depressores ao atuar em diferentes locais do cérebro e da medula espinal, enquanto os principais alvos dos agentes anestésicos locais ou regionais consistem nos receptores sensitivos periféricos, nas fibras nervosas periféricas aferentes e eferentes e na medula espinal. Os adjuvantes anestésicos, como os agentes bloqueadores neuromusculares (ABNM) produzem paralisia da musculatura esquelética ao interferir na transmissão de impulsos na junção neuromuscular, enquanto os analgésicos podem impedir a transdução, a transmissão e a percepção de estímulos nocivos nos receptores periféricos especializados (nociceptores) e nas sinapses localizadas na medula espinal e em diferentes níveis do cérebro.

Anatomia do sistema nervoso O sistema nervoso pode ser dividido em duas partes principais: o sistema nervoso

periférico (SNP) (partes sensitiva e motora) e o sistema nervoso central (SNC), que inclui o sistema nervoso autônomo (SNA).1,3,9 O SNP e o SNC podem ser definidos, funcionalmente, como os sistemas neurológicos que, em conjunto, fazem com que o indivíduo seja capaz de responder de modo voluntário a sinais sensitivos conscientemente percebidos a partir do ambiente externo.10 A transmissão de sinais nos vários locais do sistema nervoso (i.e., do órgão dos sentidos para o neurônio, do neurônio para outro neurônio ou do neurônio para efetores) é mediada por neurotransmissores, como norepinefrina, epinefrina e acetilcolina.1

■ Sistema nervoso periférico O SNP é constituído por receptores sensitivos e órgãos sensoriais especializados que detectam o estado do corpo ou seu ambiente.10 É também constituído por fibras nervosas aferentes e eferentes que conduzem os impulsos entre receptores e órgãos sensoriais, várias partes do SNC e efetores periféricos (p. ex., músculo esquelético).

■ Sistema nervoso central Tradicionalmente, juntos o encéfalo e a medula espinal formam o SNC. O encéfalo é capaz de armazenar as informações, gerar pensamentos, criar ambição e determinar as reações em respostas a sensações. Neste último caso, os sinais originam-se nos núcleos motores e são transmitidos por meio dos tratos motores no SNC para a porção motora do SNP.9,10 O cérebro compreende o (1) telencéfalo (cérebro) com seus dois hemisférios (incluindo o rinencéfalo, o corpo caloso, o sistema límbico, o hipocampo, o ventrículo lateral, o terceiro ventrículo e o corpo amigdaloide), (2) o diencéfalo (incluindo o hipotálamo e o tálamo), (3) o mesencéfalo (incluindo o tegumento do mesencéfalo), (4) o metencéfalo (incluindo o quarto ventrículo, a ponte e o cerebelo) e (5) o mielencéfalo (incluindo o bulbo).1 O encéfalo e a medula espinal são recobertos por três meninges: a pia-máter (parte encefálica e parte espinal da pia-máter), a aracnoide (aracnoide encefálica e aracnoide espinal) e a dura-máter (dura-máter encefálica e dura-máter espinal), das quais a pia-máter está em contato direto com o encéfalo e a medula espinal, enquanto a dura-máter é a membrana mais superficial, parcialmente fundida com o endocrânio e o periósteo do canal vertebral.1,3 As três meninges formam espaços diferentes: o espaço subaracnóideo (entre a pia-máter e a aracnoide), o espaço subdural (entre a aracnoide e a dura-máter) e o espaço extradural ou epidural (entre a dura-máter e o ligamento amarelo no canal vertebral) (Figura 28.1).1,3,11 O espaço subaracnóideo é um espaço do SNC que contém líquido cerebrospinal (LCS). Embora se possa obter uma coleta do LCS em locais mais cranianos (espaço atlanto-occipital) ou caudais (espaço lombossacral), a administração subaracnóidea

(intratecal) de analgésicos e agentes anestésicos (p. ex., anestésicos locais e opioides) é realizada em pacientes veterinários, com mais frequência, nos espaços lombossacral, caudossacral ou intercaudal. O espaço epidural rico em vasos contém gordura e tecido conjuntivo e está localizado entre o saco dural (dura-máter) e o ligamentum flavum (ligamento amarelo).1,11 A barreira hematoencefálica (BHE) é uma separação anatômica e enzimática, que isola o sangue cerebral da maior parte do parênquima cerebral e LCS. Localiza-se no plexo coroide, nos vasos do parênquima cerebral, nos vasos subaracnóideos e na aracnoidemáter.12 A BHE é composta por células conectadas por zônulas de oclusão que restringem a difusão intercelular e, portanto, forçam a ocorrência de troca de solutos através das células. Normalmente, as zônulas de oclusão intercelulares impedem a passagem de quantidades pequenas a moderadas de epinefrina, norepinefrina, dopamina ou serotonina do sangue para o cérebro.13 Nessas circunstâncias, as catecolaminas circulantes não afetam significativamente a taxa de metabolismo cerebral de oxigênio (CMRO2). Entretanto, se houver aumento na permeabilidade da BHE (p. ex., hipertensão intracraniana, inflamação ou ruptura osmótica), a epinefrina e a norepinefrina podem penetrar no cérebro, onde irão aumentar reversivelmente a CMRO2.13 O LCS proporciona uma proteção hidromecânica ao SNC, desempenha um papel proeminente no desenvolvimento do cérebro e influencia o funcionamento neuronal por meio da regulação da homeostasia do líquido intersticial.14 O LCS é produzido sob o controle enzimático da anidrase carbônica, predominantemente pelo plexo coroide nos ventrículos laterais e no terceiro e quarto ventrículos do cérebro e distribui-se pelos ventrículos cerebrais, canal central da medula espinal e espaço subaracnóideo (Figura 28.2).14-16 Um pequeno volume de LCS é formado como subproduto metabólico do metabolismo no cérebro e na medula espinal.15 A velocidade de produção do LCS varia de 0,02 e 0,05 mℓ/min em gatos15 e cães,17 respectivamente, cerca de 0,40 mℓ/min nos seres humanos.16 Em comparação com o ultrafiltrado plasmático, o LCS caracteriza-se por concentrações mais altas de Na+, Cl– e Mg2+ e por concentrações mais baixas de glicose, proteínas, aminoácidos, K+, bicarbonato e fosfato, porém apresenta a mesma tonicidade.16 Os locais predominantes de drenagem do LCS incluem absorção por meio das vilosidades aracnóideas cranianas e espinais para dentro do sistema de fluxo venoso e por meio das bainhas dos nervos cranianos e espinais ou pela adventícia das artérias cerebrais para dentro do sistema de fluxo simpático.14 A dinâmica do fluxo e a pressão do LCS dependem, em grande parte, de vários fatores, como onda de pulso arterial, ondas respiratórias, postura do animal, pressão venosa jugular e esforço físico.14 A hipotensão arterial, uma redução da pressão de perfusão cerebral (PPC) ou uma elevação da pressão

intracraniana (PIC), por exemplo, irão reduzir a formação de LCS.16 Farmacologicamente, pode-se obter uma redução na formação de LCS pela administração de diuréticos (p. ex., inibidor da anidrase carbônica, furosemida), manitol e corticosteroides.16 Anestésicos como o enfluorano, a cetamina e o halotano, podem aumentar a formação do LCS, enquanto o isofluorano e a fentanila podem ser preferíveis para pacientes com volume aumentado de LCS.18-20

■ Sistema nervoso autônomo O SNA regula o ambiente interno do corpo e, portanto, pode ser definido, em termos funcionais, como o sistema neurológico que atua para manter a homeostasia. Os neurônios sensitivos transportam sinais para neurônios integrativos na medula espinal e do cérebro, que elaboram uma resposta apropriada, resultando em ativação dos órgãos efetores. Na maioria das vezes, o animal não tem consciência das ações do SNA. O SNA representa um grande segmento do sistema nervoso, que opera em nível subconsciente e que controla as funções viscerais dos órgãos internos. Os controles viscerais incluem a manutenção da pressão arterial, a motilidade e a secreção gastrintestinais, o esvaziamento da bexiga e a termorregulação. Uma das características mais notáveis do SNA é a rapidez e intensidade com que ele pode modificar a função visceral. Por exemplo, a pressão arterial pode aumentar o dobro de seu valor em 10 a 15 s.9,10

Figura 28.1 Corte transversal da medula espinal no canal vertebral. Observe o tecido adiposo e os vasos sanguíneos no espaço epidural. Fonte: referência 360. Reproduzida, com autorização, de John Wiley & Sons.

Figura 28.2 Circulação do líquido cerebrospinal nos humanos e primatas sub-humanos. Os mamíferos não primatas não apresentam a abertura mediana do quarto ventrículo (forame de Magendie). Fonte: referência 361. Reproduzida, com autorização, de John Wiley & Sons.

O SNA é controlado principalmente por centros localizados na medula espinal, no tronco encefálico e no hipotálamo. Além disso, partes do córtex límbico podem transmitir impulsos para centros inferiores e, portanto, influenciar o controle autônomo. Sinais aferentes que entram nos gânglios autônomos, na medula espinal, no tronco encefálico ou no hipotálamo podem desencadear respostas reflexas apropriadas de volta aos órgãos viscerais para controlar as suas atividades. Os sinais autônomos eferentes são transmitidos ao corpo por meio das duas grandes subdivisões do SNA: o sistema nervoso simpático e o sistema nervoso parassimpático.9,10 Sistema nervoso simpático O sistema nervoso simpático é constituído por duas cadeias simpáticas paravertebrais de gânglios localizados em cada lado da coluna vertebral, dois gânglios pré-vertebrais (gânglio celíaco e gânglio hipogástrico) e fibras nervosas que se estendem dos gânglios até as terminações nervosas nos órgãos internos. Os nervos simpáticos originam-se na medula espinal entre os segmentos T1 e L2 e passam inicialmente pela cadeia simpática e, em seguida, alcançam os tecidos e órgãos (Figura 28.3).9,10

Diferentemente das fibras nervosas motoras esqueléticas, que são constituídas por longos neurônios contínuos, cada nervo simpático é composto de dois neurônios em série, um pré-ganglionar e o outro pós-ganglionar. O corpo celular de cada neurônio préganglionar situa-se no corno intermediolateral da medula espinal, e sua fibra passa através de uma raiz nervosa ventral para o nervo espinal correspondente. Imediatamente após a saída do nervo espinal da coluna vertebral, as fibras simpáticas pré-ganglionares deixam o nervo e passam através do ramo branco para um dos gânglios da cadeia simpática. Em seguida, as fibras podem (1) fazer sinapse com neurônios pós-ganglionares no gânglio onde entram, (2) passar para cima ou para baixo na cadeia e fazer sinapse com um dos outros gânglios ou (3) estender-se por uma distância variável através da cadeia e, em seguida, através de um dos nervos simpáticos que se irradiam para fora a partir da cadeia, terminando em um dos gânglios pré-vertebrais. O neurônio pós-ganglionar origina-se em um dos gânglios da cadeia simpática ou em um dos gânglios pré-vertebrais. A partir dessas duas fontes, as fibras pós-ganglionares seguem o seu trajeto até os vários órgãos.9,10 Uma exceção à organização do sistema nervoso simpático em dois neurônios é a inervação da medula adrenal. As fibras nervosas pré-ganglionares seguem o seu trajeto sem fazer sinapse a partir das células do corno intermediolateral da medula espinal, pelas cadeias simpáticas, nervos esplâncnicos e, por fim, medula adrenal. Terminam diretamente em células neuronais modificadas, que secretam epinefrina e norepinefrina na corrente sanguínea. Essas células secretoras são análogas aos neurônios pós-ganglionares.9,10

Figura 28.3 Distribuição esquemática do sistema nervoso craniossacral (parassimpático) e toracolombar (simpático). As fibras pré-ganglionares parassimpáticas passam diretamente para o órgão que elas inervam. Seus corpos celulares pós-ganglionares estão localizados próximo à víscera inervada ou no seu interior. Essa distribuição limitada das fibras pósganglionares parassimpáticas é condizente com o efeito distinto e limitado da função parassimpática. Os neurônios simpáticos pós-ganglionares originam-se nos gânglios simpáticos pareados ou em um dos plexos colaterais não pareados. Uma fibra pré-ganglionar influencia numerosos neurônios pós-ganglionares. A ativação do sistema nervoso simpático produz uma resposta fisiológica mais difusa do que efeitos distintos. GI, gastrintestinal. Fonte: referência 362. Reproduzida, com autorização, de John Wiley & Sons.

Sistema nervoso parassimpático

As fibras do sistema nervoso parassimpático deixam o SNC por meio dos nervos cranianos (NC) III, VII, IX e X, pelos segundo e terceiro nervos espinais sacrais e, algumas vezes, por meio do primeiro e quarto nervos sacrais (Figura 28.4).9,10 Cerca de 75% de todas as fibras nervosas parassimpáticas encontram-se no nervo vago (NC X) e compreendem partes craniana, cervical e torácica.1 Os nervos vagos transportam fibras parassimpáticas para o coração, os pulmões, o esôfago, e o estômago e outras vísceras abdominais. As fibras parassimpáticas no NC III (nervo oculomotor) seguem o seu trajeto até os músculos esfíncteres da pupila e músculos ciliares do olho, as fibras no nervo craniano VII (nervo facial) seguem o seu trajeto até as glândulas lacrimais, nasais e submandibulares, enquanto as fibras do nervo craniano IX (nervo glossofaríngeo) seguem até a glândula parótida.9,10 Ambos os sistemas simpático e parassimpático apresentam neurônios pré-ganglionares e pós-ganglionares. Entretanto, as fibras parassimpáticas pré-ganglionares seguem o seu trajeto sem interrupção até o órgão onde os neurônios pós-ganglionares estão localizados na parede do órgão.9,10 Neurotransmissão do sistema nervoso autônomo A transmissão sináptica no SNC utiliza a acetilcolina (ACh) e a norepinefrina (NE) (Tabela 28.1).9,10,21,22 Toda a neurotransmissão simpática e parassimpática pré-ganglionar é colinérgica. Os neurônios parassimpáticos pós-ganglionares também são colinérgicos, enquanto os neurônios simpáticos pós-ganglionares são noradrenérgicos (algumas vezes denominados adrenérgicos) (i.e., liberam NE).9,10 A acetilcolina ativa dois tipos diferentes de receptores colinérgicos, os receptores muscarínicos (M)23 e nicotínicos (nAChR). No grupo dos receptores acoplados à proteína G, os receptores muscarínicos receberam muita atenção como possíveis alvos de alguns agentes anestésicos e analgésicos.24 Foi constatado que os receptores muscarínicos de ACh estão envolvidos em várias funções neuronais no SNC e no SNA.25 Estudos de clonagem molecular revelaram a existência de cinco subtipos de receptores muscarínicos (M1-5).26 Os receptores nicotínicos são encontrados nas sinapses entre neurônios pré- e pós-ganglionares de ambos os sistemas simpático e parassimpático.9 Os receptores nicotínicos de ACh pertencem a uma superfamília de canais iônicos regulados por ligantes, que desempenham um papel fundamental na transmissão sináptica em todo o SNC.27 Os receptores nicotínicos neuronais incluem muitos subtipos diferentes desenvolvidos a partir de uma variedade de combinações de subunidades nicotínicas. A diversidade estrutural e as localizações présináptica, axônica e pós-sináptica dos receptores nicotínicos contribuem para os vários papéis que esses receptores desempenham no SNC.27

■ Neurotransmissão neuromuscular

Os receptores nicotínicos também são encontrados nas membranas das fibras musculares esqueléticas, na junção neuromuscular.9 As fibras musculares esqueléticas são inervadas por grandes fibras nervosas mielinizadas, que se originam nos grandes neurônios motores dos cornos ventrais da medula espinal. Cada fibra nervosa normalmente se ramifica muitas vezes e estimula três a várias centenas de fibras musculares esqueléticas. A terminação nervosa faz uma sinapse, denominada junção neuromuscular, com apenas uma dessas junções para cada fibra muscular. As terminações nervosas ramificadas invaginam-se dentro da fibra muscular, porém situam-se totalmente fora da membrana plasmática. Toda a estrutura é designada como placa motora. Quando um impulso nervoso alcança a junção neuromuscular, ocorre liberação de ACh das terminações nervosas na fenda sináptica.9 Os receptores de ACh na membrana muscular são compostos de cinco subunidades de proteína, que formam um canal tubular através da membrana muscular. Quando moléculas de ACh fixam-se a uma das subunidades, uma mudança de conformação abre o canal, possibilitando um movimento predominante de íons Na+ para dentro da célula muscular, que está associado a uma corrente externa menor de K+ à medida que a membrana se torna progressivamente despolarizada.9,28 Um potencial de ação gerado na placa motora propaga-se através do sarcolema e pelas invaginações (túbulo T) dessa membrana, ativando finalmente o mecanismo contrátil pela liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático dentro do mioplasma, o denominado acoplamento excitação-contração.28,29

Figura 28.4 Vista ventral do cérebro e nervos cranianos de cão. Fonte: referência 360. Reproduzida, com autorização, de Wiley. Tabela 28.1 Efeitos selecionados da ativação simpática (norepinefrina, NE) e parassimpática (acetilcolina, ACh) do sistema nervoso. Estimulação simpática

Órgão

Transmissor

Estimulação parassimpática Efeito, tipo de receptor

Transmissor

Efeito

↑ Frequência cardíaca (β1 > β2) Coração

NE

↑ Contratilidade (β1 > β2 > α1) ↑ Condução (β1 > β2)

↓ Frequência cardíaca ACh

↓ Contratilidade ↓ Condução

Arteríolas

NE Contração/dilatação

Coronárias

Contração (α)

Contração (a, leve)

Vasodilatação

Contração/dilatação

Pulmões

Vasodilatação

(a/β2) Contração/dilatação

Vísceras abdominais



(a/β2) Contração/dilatação

Rins



(a/b) Contração/dilatação

Veias (sistêmicas)



(α1/β2) NE

Músculo bronquiolar

Contração (α1)

Relaxamento (β2)

Contração

Glândulas

Secreção ↑ (β2), ↓ (α) NE

ACh



ACh

↑ Secreção de muco

ACh

Glândulas lacrimais

(↑) Secreção

Glândulas salivares

↑ Fluxo sanguíneo

nasofaríngeas

Vasodilatação

(a/β2)

Cérebro

Glândulas

Vasodilatação

Contração/dilatação

Músculo esquelético

Cabeça

Vasodilatação

(a/β2)

Pele, mucosa

Pulmões

ACh

↑↑ Secreção

Músculos oculares

NE

ACh Contração (midríase)

Músculo radial (íris)

(α1)

Músculo esfíncter da

Contração (miose)

pupila

Músculo ciliar

Trato gastrintestinal

Relaxamento (para

Contração (para visão

visão de longe) (b)

de perto)

NE

ACh

Motilidade

↑ Motilidade (α1-2, β1-2)

↑ Motilidade

Músculos esfíncteres

Contração (α)

Dilatação

Secreção

Inibição (α)

↑ Secreção

Medula adrenal



ACh

Secreção de Epi, NE

↑, Aumento; ↓, diminuição; (↑), efeito menor; ↑↑, efeito importante; NE, norepinefrina; ACh, acetilcolina; Epi, epinefrina. Fonte: adaptada das referências 4,14, 15.

Fisiologia/fisiopatologia do sistema nervoso central ■ Metabolismo cerebral A função cerebral está intimamente relacionada com a perfusão e o metabolismo do cérebro.30 As principais características do metabolismo cerebral incluem: (1) altas demandas de energia celular, utilizando a energia do trifosfato de adenosina (ATP) obtida da oxidação aeróbica da glicose, (2) nenhuma reserva de oxigênio e reservas mínimas dos substratos glicose e glicogênio em relação à taxa de consumo, e (3) baixas concentrações de compostos contendo fosfato de alta energia. Todas essas características fazem com que o cérebro seja altamente dependente de um fluxo sanguíneo adequado para o fornecimento contínuo de oxigênio e glicose.12,31,32 A CMRO2 global média do cérebro humano desperto normal é de cerca de 3,0 a 5,5

mℓ/100 g/min.33-38 Aproximadamente 60% do oxigênio disponível são consumidos para sustentar o trabalho externo do cérebro, conforme representado no eletroencefalograma (EEG). Na ausência de trabalho externo (i.e., EEG isoelétrico), o cérebro normotérmico sadio continua consumindo cerca de 40% da energia normal e oxigênio.38 Esse metabolismo basal é necessário para manter a integridade neuronal e celular glial, incluindo as necessidades energéticas para a manutenção dos gradientes iônicos, biossíntese e transporte axônico.38 O estado metabólico basal pode ser reversivelmente produzido por doses mais altas de agentes anestésicos39,40 e por hipotermia.41 Com um nível cirúrgico de anestesia em pacientes humanos, foi constatada uma redução da CMRO2 em 36 a 45%, e apareceu um padrão de retardo e surto de supressão do EEG com aproximadamente 60% da CMRO2 normal.12 Os agentes anestésicos (p. ex., tiopental) podem proporcionar neuroproteção em estados patológicos associados a hipoxia cerebral, visto que eles reduzem a necessidade de O2.42 A diminuição da CMRO2 registrada com concentração crescente de anestésico em cães anestesiados é não linear para o halotano, o enfluorano e o isofluorano.43 O ponto que o declínio na taxa de CMRO2 diminui coincide com a mudança da voltagem do EEG na dominância do hemisfério cerebral posterior para anterior [concentração alveolar mínima (CAM) de aproximadamente 0,4] e indica perda de consciência (PC).43 Entretanto, a porção funcional e basal da CMRO2 será afetada diferentemente pelos anestésicos gerais e pela hipotermia. Enquanto doses crescentes de tiopental ou de isofluorano irão reduzir apenas a porção funcional da CMRO2 total, a hipotermia irá causar redução da CMRO2 tanto funcional quanto basal.38 Entre os agentes voláteis, o isofluorano tem algumas propriedades singulares, visto que ele pode produzir um padrão EEG isoelétrico em concentrações clinicamente relevantes.40 O isofluorano produz reduções da CMRO2 relacionadas com a dose; entretanto, uma vez alcançada a isoeletricidade do EEG e, portanto, a CMRO2 basal, aumentos adicionais na concentração de isofluorano não estão associados a elevações adicionais da CMRO2.40 À semelhança do tiopental, o perfil energético metabólico do cérebro permanece normal na isoeletricidade do EEG, sugerindo que o isofluorano em altas concentrações não apresentam efeitos tóxicos sobre a fosforilação oxidativa,40 tornando-o um anestésico relativamente seguro, mesmo no paciente com hipotensão.44 Os benzodiazepínicos, como diazepam e o midazolam, também podem ser usados para diminuir o fluxo sanguíneo cerebral (FSC) e a CMRO2.12,45-47 Embora a CMRO2 global seja relativamente estável, alterações regionais da CMRO2 ocorrem continuamente no cérebro dos organismos despertos.38 Por causa do acoplamento de CMRO2 e FSC, a ativação de uma região cerebral irá resultar em aumento tanto do metabolismo quanto do fluxo sanguíneo, enquanto podem ocorrer reduções simultâneas em

regiões não estimuladas.48,49 O resultado final será uma CMRO2 global estável, e qualquer aumento ou redução significativos da CMRO2 global no cérebro desperto devem ser considerados de origem patológica (p. ex., convulsão ou acidente vascular encefálico).38 Os agentes anestésicos voláteis, como o halotano, o enfluorano e o isofluorano, mas não os barbitúricos, etomidato ou midazolam, podem desacoplar a estreita relação entre FSC e CMRO2, resultando, assim, em aumento do fluxo sanguíneo, apesar de uma redução da CMRO2 relacionada com a dose.38,50 Além disso, os agentes anestésicos voláteis tendem a atenuar a autorregulação, e, em doses mais altas, pode haver perda da autorregulação, resultando em um FSC passivamente dependente da PPC.38,51,52 A taxa metabólica cerebral normal para o consumo de glicose (CMRglicose) aproxima-se de 4,5 mg/100 g/min.50 A taxa metabólica irá diminuir durante a anestesia, hipotermia e/ou a hipercapnia.50-54

■ Fluxo sanguíneo cerebral Em condições normais, o FSC global médio nos seres humanos situa-se na faixa de 45 a 65 mℓ/100 g/min.33-37 Na maioria das espécies de mamíferos, a circulação cerebral é formada por dois tipos gerais de artérias que irrigam os hemisférios cerebrais: os vasos condutores e os vasos penetrantes.12,55 As artérias condutoras são essencialmente vasos desprovidos de resistência e incluem as artérias carótida, vertebral, occipital e espinal, juntamente com seus ramos principais e menores.12,55 As arteríolas penetrantes ou nutrícias que penetram no parênquima cerebral em ângulos retos aos vasos de superfície são vasos de resistência e, portanto, constituem o local de autorregulação primária do FSC.1,12,55 Embora os vasos recebam inervação autônoma, o tônus neurogênico não é essencial para a regulação normal do FSC.12,55 Entretanto, existem diferenças anatômicas no suprimento sanguíneo do cérebro entre as espécies, que podem afetar o FSC e, portanto, o desfecho nos animais.42,56 Estudos conduzidos em gatos revelaram que a ampla abertura da mandíbula utilizando um aparelho tipo mordaça de retenção com mola pode aumentar o risco de déficit neurológico pósanestésico, cegueira cortical e déficits auditivos.57-60 Foi possível demonstrar que a abertura máxima da boca em gatos pode estar associada a uma ruptura do FSC e redução do fluxo sanguíneo direto para a retina e a orelha interna, mais provavelmente causada pela distensão da vascularização da artéria maxilar e músculos adjacentes, como os músculos temporal, masseter e pterigóideo.59,60 Autorregulação do fluxo sanguíneo cerebral A autorregulação do FSC refere-se a um processo multifatorial que mantém o FSC constante, apesar de mudanças na pressão arterial sistêmica e na PPC em uma ampla faixa de valores. A PPC é a diferença de pressão entre as artérias e veias cerebrais.42,61 A

autorregulação do FSC permite que o cérebro iguale o suprimento sanguíneo à sua demanda metabólica, tanto em nível regional quanto global.61 A autorregulação do FSC permanece habitualmente intacta durante níveis superficiais de anestesia geral, porém pode estar comprometida ou abolida durante a anestesia profunda.12 Os agentes anestésicos voláteis, em particular, tendem a atenuar a autorregulação até um ponto em que o FSC torna-se passivamente dependente da PPC.38,42,52 Os limites inferior e superior da autorregulação no paciente normotenso típico consistem em uma pressão arterial média (PAM) de cerca de 60 e 130 a 150 mmHg, respectivamente.38,42,62,63 Além desses limites, o FSC torna-se principalmente dependente do fluxo.12,61 Uma redução da PAM abaixo do limite inferior resulta em diminuição do FSC e aumento na diferença de oxigênio arteriovenosa.42 Com uma PAM de 40 mmHg, ocorrem sintomas de isquemia cerebral, incluindo comprometimento mental, hiperventilação e tontura.42 Com base na curva de autorregulação idealizada e em pacientes com vasos cerebrais normais, a PPC teoricamente pode diminuir em cerca de 30% antes que seja alcançado o limite inferior de autorregulação. Essa regra geral é clinicamente útil quando se planeja o manejo anestésico de um paciente hipertenso ou normotenso.12 Quando a PAM aumenta acima do limite superior de autorregulação, o fluxo sanguíneo excede a capacidade de contração da vascularização cerebral. Aumentos pronunciados do FSC provocam dilatação forçada das arteríolas, o que pode estar associado a uma ruptura da BHE e ocorrência subsequente de edema cerebral e/ou hemorragia.12,42 A constância do FSC é obtida por meio de uma resposta vascular ativa,42 tornando assim o FSC diretamente proporcional à PPC e inversamente proporcional à resistência vascular cerebral (RVC).12 Para o cálculo da PPC, a PIC média (melhor aproximação da verdadeira pressão venosa cerebral intracraniana) é subtraída da PAM (PPC = PAM – PICmédia).12 Um aumento na pressão de perfusão irá provocar contração arteriolar, enquanto uma redução da PPC é seguida de dilatação arteriolar. É mais provável que a autorregulação do FSC resulte de respostas miogênicas das células musculares lisas da parede arteriolar ao estiramento causado pela pressão transmural de distensão,42 e não da ativação das fibras nervosas autônomas dos nervos perivasculares.64,65 Embora as artérias na superfície cerebral e no interior do tecido cerebral sejam inervadas por uma rede de fibras nervosas simpáticas e parassimpáticas, não foi relatada nenhuma evidência de controle autônomo tônico sobre o tônus arterial da pia-máter.42,66,67 Além disso, as alterações do FSC observadas após a administração de angiotensina ou de trimetafana estão relacionadas com os efeitos dos fármacos sobre a pressão arterial sistêmica, e não sobre a vascularização cerebral.42 As veias cerebrais de paredes finas e sem válvulas drenam o sangue para seios da duramáter de paredes relativamente espessas.12 O local de entrada de uma veia cerebral em um

seio da dura-máter representa, do ponto de vista anatômico, um orifício relativamente fixo, enquanto fisiologicamente constitui uma resistência significativa ao fluxo. Na hipertensão arterial crônica, os vasos cerebrais adaptam-se à pressão de perfusão mais alta por meio de hipertrofia da parede do vaso, o que, por sua vez, desloca a curva de autorregulação para a direita.42,68 Por conseguinte, os pacientes com hipertensão crônica toleram uma pressão arterial alta muito melhor do que os pacientes normotensos. Entretanto, o deslocamento da curva de autorregulação para a direita também significa que o limite inferior é desviado para a direita, o que aumenta o risco de isquemia durante a hipotensão sistêmica.42 Por conseguinte, os pacientes com hipertensão crônica não toleram os mesmos limites inferiores aceitáveis (p. ex., PAM de 60 a 70 mmHg) para a pressão arterial em comparação com pacientes normotensos. Durante a hipotensão hipovolêmica, ocorre aumento da RVC. O consequente aumento do tônus vascular resulta em deslocamento da curva de autorregulação para a direita; subsequentemente, tanto o limite inferior da autorregulação do FSC quanto a menor pressão tolerada são aumentados.42 Por conseguinte, durante a hipotensão hemorrágica, observa-se o desenvolvimento de isquemia cerebral em uma pressão de perfusão mais alta do que na hipotensão farmacologicamente induzida, em que a RVC está diminuída. O FSC crítico é definido como o fluxo sanguíneo abaixo do qual ocorre isquemia cerebral. À medida que o FSC diminui ainda mais, um fluxo é, então, estabelecido abaixo do qual a função elétrica cortical é abolida.12 Em humanos com normotermia e normocapnia sob anestesia superficial, o limiar isquêmico crítico do FSC situa-se na faixa de 16 a 20 mℓ/100 g/min.42,69,70 Evidências EEG de isquemia cerebral invariavelmente ocorreram com um FSC regional (FSCr) abaixo de 10 mℓ/100 g/min, ocorreram habitualmente com um FSCr inferior a 15 mℓ/100 g/min e nunca ocorreram com um FSCr acima de 24 mℓ/100 g/min. Foi concluído que, durante a normocapnia e anestesia geral com halotano ou enfluorano, o FSCr crítico é de aproximadamente 15 mℓ/100 g/min.70,71 Com um FSC de cerca de 15 mℓ/100 g/min, as respostas eletrocorticais evocadas desaparecem por completo, e, na presença de um FSC ainda menor, de cerca de 6 a 10 mℓ/100 g/min, ocorrem efluxo maciço de K+ a partir das células lesionadas e influxo de Ca2+ dentro dessas células.30,69 Entretanto, o valor limiar isquêmico crítico do FSC pode variar com diferentes agentes anestésicos e condições.12 As variações na pressão parcial de dióxido de carbono arterial (PaCO2) exercem a influência mais profunda sobre a regulação do FSC.42 Embora a hipercapnia possa causar vasodilatação cerebral pronunciada, a hipocapnia extrema pode causar vasoconstrição cerebral até o limite da hipoxia cerebral isquêmica. Em torno do valor normal da PaCO2, o FSC modifica-se em cerca de 4%42 ou 2 mℓ/100 g/min51 para cada alteração de 1 mmHg na PaCO2.

A reatividade ao dióxido de carbono é mediada por variações do pH no LCS que circunda as arteríolas.72 O pH do LCS depende da tensão de CO2 livremente difusível e da concentração de bicarbonato do LCS. Essa dupla natureza do controle químico do LCS pela PaCO2 e pelo bicarbonato do LCS também constitui a base da paralisia vascular cerebral em associação com acidose láctica do tecido cerebral.42 As alterações do FSC induzidas pela PaCO2 parecem ajudar a homeostasia do pH no cérebro, visto que uma elevação da PaCO2 é seguida de aumento no FSC.42 Isso possibilita uma eliminação mais eficiente do CO2 produzido metabolicamente, atenuando, assim, a alteração da PCO2 e do pH teciduais.42 Além da manutenção da homeostasia da PCO2 e pH teciduais, as alterações do pH induzidas pelo CO2 no LCS no nível do tronco encefálico também irão afetar a ventilação pulmonar.42 O fluxo sanguíneo cerebral e a ventilação (ambos os quais alteram o pH extracelular do cérebro), além das alterações do bicarbonato induzidas metabolicamente, protegem o pH do tecido cerebral contra a acidose e a alcalose respiratórias agudas.42 O valor de induzir uma vasoconstrição cerebral leve por meio de hiperventilação durante procedimentos neurocirúrgicos é bem conhecido.42 A hiperventilação a longo prazo durante vários dias produz um estado de hipocapnia moderada; entretanto, em consequência da adaptação (normalização) do pH do LCS e, consequentemente, do FSC para um valor de PCO2 mais baixo, a vasoconstrição induzida por hiperventilação exerce um efeito limitado. A hipocapnia grave com valores de PaCO2 abaixo de 20 mmHg irá diminuir o FSC para um valor baixo a ponto de permitir que seja alcançado o limiar isquêmico para sustentar uma função neuronal normal; por conseguinte, não se recomenda a ventilação do paciente para valores de PaCO2 inferiores a 25 mmHg.42,73,74 As alterações moderadas da PaO2 durante a hipoxemia arterial moderada ou hiperoxemia arterial não exercem uma influência mensurável sobre o FSC.42 Não se observa a ocorrência de um aumento do FSC até que a PaO2 diminua para valores abaixo de 50 mmHg,75 que é o mesmo valor de PO2 abaixo do qual ocorre acidose láctica progressiva do tecido cerebral.76 Esses achados sugerem que, na hipoxia, o FSC é regulado pelo pH periarteriolar.42 A anoxia ou a combinação de anoxia e hipercapnia podem produzir vasodilatação cerebral pronunciada. Por conseguinte, essas condições podem provocar uma elevação fatal da PIC e deslocamento de massa (herniação cerebral) em pacientes com lesões intracranianas expansivas.42 A autorregulação do FSC pode ser abolida por traumatismo, tumor cerebral, hipoxia e estímulos nocivos, como hipoxia e acidose láctica.42,77,78 A vasodilatação ou até mesmo a paralisia vasomotora completa induzidas por ácido láctico podem facilmente anular a resposta constritora autorreguladora à elevação da pressão de perfusão. Nessas circunstâncias, qualquer elevação da PAM secundária à injeção intravenosa de agentes

vasopressores (p. ex., norepinefrina, angiotensina) irá aumentar o FSC e resultar em hiperperfusão cerebral.77,78 Os vasos cerebrais podem sintetizar prostaglandinas e prostaciclina PGI2.79 A prostaciclina é um vasodilatador, enquanto o tromboxano A2 é o mais potente vasoconstritor cerebral conhecido.79,80 Perfusão exuberante ou resposta paradoxal à PaCO2 A presença de condições patológicas, como parada cardíaca transitória, lesão cerebral traumática, tumor cerebral ou meningite, pode provocar perfusão cerebral inadequada e hipoxia, a qual, por sua vez, leva à acidose láctica tecidual grave, paralisia vasomotora e elevação da PIC.42,81 Pode ocorrer paralisia vasomotora nas áreas isquêmicas, ao redor de um tumor, em áreas de infarto ou distalmente a oclusões vasculares.50 Isso significa que a perda da autorregulação do FSC não irá se limitar ao centro das condições patológicas, mas também irá incluir áreas adjacentes com perfusão marginal.42,50 Em decorrência da perda da capacidade dos vasos de responder a mudanças na pressão de perfusão ou na PaCO2, o FSCr depende passivamente da pressão de perfusão. Nessa circunstância, a pressão de perfusão normal ou elevada pode produzir um fluxo sanguíneo que é “supernormal” em relação às necessidades metabólicas, constituindo um fenômeno denominado síndrome de perfusão exuberante.12,82,83 Se a RVC diminuir em regiões normais não isquêmicas do cérebro (p. ex., anestesia com isofluorano), o sangue pode ser desviado da área de paralisia vasomotora. Esse desvio é denominado síndrome do sequestro intracerebral.12 Por outro lado, um aumento da RVC em regiões cerebrais normais irá desviar o sangue para áreas de paralisia vasomotora, um fenômeno designado como síndrome de sequestro inverso ou de Robin Hood.

■ Fluxo sanguíneo da medula espinal À semelhança da circulação cerebral, o fluxo sanguíneo da medula espinal é mantido por meio de autorregulação dentro de certos limites da PAM (p. ex., 60 a 150 mmHg).84,85 A hipoxia produz vasodilatação que suprime tanto a autorregulação quanto os efeitos da PaCO2 sobre o fluxo sanguíneo da medula espinal.86 O fluxo sanguíneo da medula espinal em cães aumenta acentuadamente quando a PaO2 declina para 60 mmHg e alcança um valor máximo em uma PaO2 de 30 a 40 mmHg.86 Por outro lado, a hipercapnia provoca um aumento significativo no fluxo sanguíneo da medula espinal84-86 e suprime essencialmente a autorregulação.85 Embora a hipoxia e a hipercapnia aumentem acentuadamente o fluxo sanguíneo total da medula espinal, a distribuição do fluxo para substância cinzenta e a substância branca não é afetada por alterações da PaO2 e PaCO2, respectivamente.84 A substância cinzenta da medula espinal parece ser particularmente vulnerável ao dano

causado pela isquemia, por causa da taxa metabólica elevada dos neurônios e altas necessidades associadas de fluxo sanguíneo.84 Esta pode ser uma importante razão pela elevada incidência de paraplegia (0,9 a 6%) e taxa de mortalidade (9 a 22%) em consequência de reparo de aneurisma do segmento torácico da aorta nos humanos.87 A perda intraoperatória dos potenciais evocados somatossensoriais (PESS) tem sido utilizada para prever a perda de função da medula espinal em seres humanos.88 Por exemplo, a deterioração pronunciada e progressiva dos PESS em um paciente submetido a reparo de escoliose retornou a valores normais (de controle) quando foi interrompida a hipotensão deliberada.89

Anestesia geral Os termos sedação e hipnose descrevem estados de depressão mental, juntamente com diminuição da atividade motora, ansiólise, diminuição da excitabilidade com respostas incoerentes lentas a comandos verbais, analgesia e amnésia induzida por fármaco depressor.90-92 A sedação (termo algumas vezes empregado como sinônimo de hipnose)90 refere-se a um nível diminuído de reatividade (i.e., tempo de resposta longo) em consequência de concentrações sedativas (sub-hipnóticas) de um agente anestésico geral, enquanto a hipnose foi definida como a ausência de resposta a comandos verbais (em seres humanos).93 Os agentes anestésicos voláteis e injetáveis induzem sedação ou hipnose por meio de sua ação em diferentes subunidades do receptor de ácido γ-aminobutírico tipo A (GABAA): a ação nos receptores β2-GABAA produz sedação, enquanto a ligação aos receptores β3GABAA resulta em hipnose.93 Entretanto, nenhum anestésico isolado incorpora todos os atributos da anestesia geral (p. ex., sedação, hipnose, amnésia, analgesia) no mesmo grau, e, portanto, a anestesia geral pode ser definida como a ocorrência de amnésia e perda reversível da consciência em baixas concentrações de anestésico e como perda da resposta a um estímulo doloroso em concentrações mais altas de anestésico.8,90 A amnésia induzida por anestésicos (perda da memória, ausência de recordação) é principalmente anterógrada e pode ser avaliada pela formação de memória explícita (consciente) e implícita (inconsciente), respectivamente.90,93-96 Os dados disponíveis sugerem que a memória explícita parece constituir o alvo mais sensível dos anestésicos gerais inalatórios,97 e que muitos agentes anestésicos já produzem amnésia em concentrações bem abaixo daquelas necessárias para produzir perda de consciência.94,97 Em doses ligeiramente mais altas, os pacientes não conseguem responder a um comando e são considerados inconscientes, embora a ausência de resposta clínica não seja necessariamente sinônimo de inconsciência.91

A perda de consciência (PC) pode ser definida como a alteração reversível do estado de vigília e da função cognitiva do cérebro (p. ex., percepção do ambiente, pensamento, atenção e memória).98 Os principais parâmetros de avaliação usados em humanos para determinar o limiar da PC durante a indução de anestesia incluem a incapacidade do paciente de responder a estímulos não nocivos, como (1) cessação de contagem,90 (2) perda da resposta a comandos verbais,99 (3) supressão do reflexo ciliar,100,101 (4) ausência de resposta à chamada do nome da pessoa102 (5) liberação não inibida de um objeto na mão103 ou (6) ausência de resposta ao toque leve do ombro ou sacudida leve.104 Nos animais, a perda do reflexo de endireitamento (PRE) tem sido utilizada efetivamente como medida substituta da PC.105 Dados experimentais revelaram a existência de uma estreita correlação entre a PC em humanos e a PRE em roedores de laboratório (camundongos e ratos) ao longo de uma faixa de concentrações de anestésicos.105 A imobilidade, outra meta fundamental dos anestésicos, foi estabelecida por Eger et al., em 1965, como um padrão de potência anestésica,106 visto que a observação de um movimento grosseiro intencional em resposta a um estímulo nocivo supramáximo tem sido considerada como indicação de profundidade anestésica inadequada.107,108 A imobilidade refere-se à ablação de movimento espontâneo ou induzido por estímulo por agentes anestésicos gerais e é, principalmente, mediada por uma diminuição da excitabilidade dos neurônios espinais.93 O fato de que a necessidade da dose de anestésico para produzir imobilidade seja mais alta que aquela para produzir inconsciência sugere que a medula espinal e o sistema nervoso periférico são menos suscetíveis aos efeitos depressores da anestesia geral.109,110 A dose de propofol necessária para produzir imobilidade durante a incisão é mais de quatro vezes a dose que leva à inconsciência; por conseguinte, o propofol parece ser muito mais potente na produção de inconsciência do que de imobilização.97 Além disso, foi relatado que a relação das concentrações alveolares de anestésicos voláteis que produzem imobilidade, em contraste com a inconsciência, situa-se na faixa aproximada de 2 a 3.97,111 Em consequência, concentrações de anestésicos várias vezes maiores do que aquelas necessárias para produzir imobilidade têm sido usadas para definir o limite superior da faixa de concentração clinicamente relevante.112

■ Locais anatômicos de ação dos anestésicos Foi postulado que os anestésicos gerais atuam em múltiplos locais no SNC ao diminuir a transmissão da informação que ascende pela medula espinal até o cérebro.113 Os principais parâmetros finais da anestesia geral, como amnésia e inconsciência, resultam, com mais probabilidade, do impedimento da neurotransmissão pelos anestésicos em locais supraespinais, incluindo o tronco encefálico,114 o tálamo6,105 e o córtex cerebral.91,115-120 Os

primeiros estudos realizados revelaram que a estimulação elétrica direta da formação reticular do tronco encefálico (FRTE) em animais não anestesiados ou sob anestesia superficial levou à cessação da descarga sincronizada no EEG e sua substituição por um padrão de EEG de ondas rápidas e baixa voltagem (i.e., dessincronização). Essa resposta foi bloqueada durante níveis mais profundos de anestesia geral.121-123 Essas observações levaram ao conceito de um sistema ativador reticular ascendente (SARA) que se estende a partir dos núcleos colinérgicos do tronco encefálico [localizados na parte caudal da formação reticular do mesencéfalo (FRM)] e, em seguida, transmitido por meio dos núcleos talâmicos intralaminares até o córtex cerebral.124,125 Informações mais detalhadas sobre as características supraespinais da anestesia geral foram obtidas por diferentes técnicas de monitoramento funcional. Estudos sobre os efeitos cerebrais do tiopental,39 do halotano126 e do isofluorano40 revelaram uma redução dependente da dose da CMRO2 global e na atividade do EEG para o tiopental e o isofluorano. Concentrações crescentes de tiopental ou do isofluorano resultaram em diminuição da CMRO2 até a ocorrência de um padrão EEG isoelétrico ou um padrão EEG isoelétrico sobreposto com pontas, indicando uma profundidade anestésica extrema. Nem a administração contínua de tiopental nem um aumento na concentração de isofluorano afetaram ainda mais o padrão EEG ou a taxa metabólica. Diferentemente do acoplamento entre o EEG e as alterações metabólicas descrito para concentrações crescentes de tiopental e o isofluorano, a duplicação da concentração de halotano produziu uma redução relacionada com a dose na CMRO2, que não foi relacionada com a atividade elétrica cortical.126 Os efeitos do halotano foram examinados em cães cuja circulação sistêmica foi sustentada por circulação extracorpórea.126 O registro da atividade elétrica em diferentes locais supraespinais em caprinos anestesiados revelou que a aplicação de um estímulo nocivo (p. ex., clampeamento do dedo rudimentar) com CAM de isofluorano de 0,6 resultou em aumento da atividade elétrica registrado na FRM causal e rostral, tálamo rostral e córtex cerebral.127 O aumento da concentração de isofluorano para CAM de 1,1 e acima desse valor atenuou a resposta EEG em termos de manutenção de um padrão EEG de ondas lentas e alta amplitude. Esses dados sugerem que o isofluorano exerce seus efeitos supraespinais ao interferir na transmissão da informação sensorial por meio da FRM e do tálamo.127 Estudos EEG em roedores anestesiados também sugerem uma depressão do acoplamento sináptico entre as estruturas corticais128 e do hipocampo129 pelo tiopental e isofluorano, respectivamente. Mais recentemente, técnicas de monitoramento funcional, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET), revelaram que os anestésicos gerais produzem, em sua maioria, uma redução substancial da atividade neuronal no córtex cerebral,115 que foi associada a uma diminuição dependente da dose na taxa de metabolismo cerebral da

glicose (CMRglicose).116,117 Concentrações de anestésicos voláteis130,131 e injetáveis116 suficientes para produzir perda da consciência diminuíram o metabolismo cerebral em cerca de 40 a 58% em relação ao estado de vigília. Alterações na CMRglicose em áreas subcorticais, como o hipocampo, o tálamo, o mesencéfalo e o cerebelo, foram menos pronunciadas (48%) do que no córtex cerebral (58%).116 Diferentemente do isofluorano e do propofol, que causaram alterações metabólicas bastante uniformes pelas várias áreas subcorticais,130,131 a depressão da CMRglicose induzida pelo halotano foi mais pronunciada em áreas como o tálamo, o sistema límbico e o locus ceruleus (LC), enquanto o córtex somatossensorial dorsal e o córtex parietal foram menos afetados.132 Vários estudos sugerem que a medula espinal constitui o principal local anatômico onde os anestésicos causam predominantemente imobilidade133-135 e suprimem as respostas hemodinâmicas4 a estímulos nocivos. Os dados disponíveis indicam que o halotano, o enfluorano, o isofluorano, o sevofluorano e o desfluorano podem produzir imobilidade por mecanismos espinais diretos, como diminuição da excitabilidade do neurônio motor a, conforme indicado por uma depressão da onda F136-138 e/ou redução na atividade espontâneo do corno dorsal.139 Evidências adicionais de supressão das respostas de movimento mediada em nível espinal são fornecidas pelo fato de que nem a descerebração pré-colicular aguda135 nem a transecção da medula espinal torácica alta134 alteraram a natureza das respostas motoras de ratos anestesiados com isofluorano após clampeamento da cauda. Além disso, a ação do isofluorano sobre os neurônios moduladores de reflexos no bulbo ventromedial rostral (BVR) pode ser responsável, pelo menos em parte, pela imobilidade induzida pelo isofluorano.139-141 Os anestésicos também podem modular indiretamente o nível de consciência ao impedir a transferência centrípeta da informação somatossensorial em nível da medula espinal.113,125,142 Essa teoria é sustentada pelas observações de que a depressão cortical cerebral induzida por anestésicos pode ser intensificada pela supressão adicional da transmissão centrípeta de impulsos por meio da administração intratecal de bupivacaína143 ou bloqueio neuromuscular utilizando o pancurônio.144

■ Mecanismos das ações dos anestésicos Os mecanismos exatos pelos quais os agentes anestésicos produzem o estado de anestesia geral permanecem desconhecidos.96 Entretanto, a constatação de que fármacos estrutural e farmacologicamente diferentes produzem a mesma série de parâmetros finais clínicos (p. ex., sedação, amnésia, inconsciência e imobilidade) de maneira dependente da dose levou à suposição de que todos esses fármacos produzem o estado de anestesia pelos mesmos mecanismos. Em 1875, Claude Bernard formulou esta “hipótese unitária”.145 Em 1899, Hans Meyer relatou a correlação existente entre a potência anestésica e a lipossolubilidade

do clorofórmio.146 A observação de que a potência dos anestésicos estava correlacionada com a lipossolubilidade levou à hipótese de Meyer-Overton.105 Essa hipótese foi baseada na pressuposição de que os anestésicos atuam ao dissolver a bicamada lipídica das membranas dos nervos, modificando consequentemente as propriedades da membrana.105 Um mecanismo físico-químico inespecífico resultaria na perturbação das bicamadas lipídicas das membranas dos tecidos neuronais.105,147,148 Além disso, foi sugerido que a anestesia começava quando uma substância química alcançava determinada concentração molar nos constituintes lipídicos da célula, independentemente da estrutura do fármaco.149 Posteriormente, foi introduzida a hipótese de volume crítico (i.e., hipótese de expansão da bicamada lipídica150,151 ou hipótese da pressão lateral152) como mecanismo físico da anestesia geral. Foi sugerido que as moléculas de anestésicos, quando dissolvidas na bicamada lipídica, causavam modificação nas dimensões das membranas celulares e, portanto, impediam a condução dos impulsos neuronais. Essa hipótese foi sustentada pelos resultados de estudos em que aumentos na pressão atmosférica foram usados com sucesso para antagonizar os efeitos anestésicos dos agentes anestésicos líquidos e gasosos (i.e., reversão da pressão).151 Uma elevação pronunciada na pressão atmosférica (6.060 a 10.100 kPa) em animais anestesiados com uretano resultou em diminuição da profundidade anestésica, enquanto a redução da pressão atmosférica aprofundou o plano de anestesia.153 Mais recentemente, as teorias inespecíficas baseadas em lipídios para os mecanismos dos anestésicos foram gradualmente substituídas pela hipótese de que os anestésicos gerais atuam por meio de efeitos reversíveis sobre as proteínas integrais de membrana, particularmente sobre os canais iônicos regulados por ligantes e por voltagem no cérebro e na medula espinal.112,154,155 Essa hipótese é sustentada pela descoberta de que uma proteína desprovida de lipídios e solúvel, como a luciferase do vaga-lume, pode ser inibida competitivamente por uma variedade quimicamente diversa de anestésico simples em concentrações inibitórias (IC50) que refletem estreitamente as potências in vivo.156 Além disso, o achado de que isômeros com a mesma lipossolubilidade podem ter potências anestésicas diferentes157 não pode ser explicado por uma correlação entre a lipossolubilidade e a potência anestésica. Por fim, a descoberta da estereosseletividade dos anestésicos gerais (p. ex., propofol158 e isofluorano)159 tornou-se a evidência mais definitiva de que os anestésicos atuam predominantemente por meio de sua ligação direta às proteínas.160 Os agentes anestésicos voláteis halogenados exercem seus efeitos anestésicos ao aumentar os receptores de glicina e GABA inibitórios97 pela ativação de canais de K+ 2 P (domínio de dois poros) (p. ex., TREK, TASK, TRESK)161-163 pela inibição dos receptores de glutamato excitatório164 e/ou pela ação sobre os canais iônicos associados ao nAChR165 ou a receptores de serotonina do subtipo 3 (5-HT3).166

Diferentemente desse conceito de múltiplos locais das ações dos anestésicos proposto para os agentes anestésicos inalatórios, acredita-se que os anestésicos injetáveis (p. ex., propofol e etomidato) produzam sedação, hipnose e imobilidade predominantemente pela sua ação nos receptores de GABA inibitórios.93 O GABA é o neurotransmissor inibitório mais importante no cérebro dos mamíferos, e os receptores de GABA são encontrados em todo o SNC.97,157,160 O canal do receptor de GABA tipo A (GABAA) inibitório é considerado, há muito tempo, como principal alvo dos agentes hipnóticos.96,160,167-172 Além dos receptores de GABAA, outros receptores de canais iônicos de cloreto regulados por ligantes emergiram como alvos moleculares dos anestésicos locais, incluindo receptores de glicina, receptores de 5-HT3, receptores de nACh e receptores de glutamato ionotrópicos.97,112,160,173,174 Os três principais tipos de canais de receptores de glutamato ionotrópicos são os receptores de N-metil-D-aspartato (NMDA), 2-carboxi-3-carboximetil-4isopropenilpirrolidina (cainato) e ácido α-amino-3-hidroxi-5-metil-4-isoxazolepropiônico (AMPA),160,175 sendo os receptores NMDA conhecidos como um importante alvo da cetamina e, em menor grau, do isofluorano.176-179

Monitoramento e testes neurológicos O monitoramento neurológico durante a anestesia refere-se principalmente ao monitoramento da profundidade anestésica, mas também pode incluir a detecção e a avaliação de estados patológicos neurológicos (p. ex., convulsão ou isquemia cerebral) relevantes para o manejo anestésico do paciente. O monitoramento da profundidade anestésica baseia-se principalmente nos sinais clínicos e nos padrões de resposta reflexa, descritos pela primeira vez por Arthur E. Guedel para a anestesia com éter, há quase 100 anos.180 A mudança de uma abordagem com um único anestésico para um tipo de anestesia balanceada, juntamente com o notável progresso das técnicas cirúrgicas no decorrer desse último século, apoiou a transição para um monitoramento neurológico mais sofisticado. Essa transição também foi acelerada pelo reconhecimento das deficiências dos sinais clínicos usados para o monitoramento da profundidade anestésica (p. ex., pressão arterial, frequência cardíaca) para a detecção de consciência intraoperatória.181 Por conseguinte, dispositivos de monitoramento baseados no EEG tornaram-se parte integrante do monitoramento da profundidade anestésica em circunstâncias específicas nos campos da medicina humana e veterinária.

■ Eletroencefalografia A eletroencefalografia (EEG) é o registro da atividade elétrica espontânea do cérebro por

meio de eletrodos aplicados ao couro cabeludo.101,113,182 Tradicionalmente, a EEG tem sido registrada ao longo do tempo a partir de eletrodos colocados em posições padrão, de acordo com o sistema internacional 10-20.101,182,183 Os sinais elétricos de superfície representam a soma da atividade de milhões de neurônios no córtex cerebral101,184 e resultam de potenciais pós-sinápticos (PPS) excitatórios e inibitórios em grandes neurônios piramidais, localizados nas camadas inferiores (p. ex., camada V) do córtex cerebral.122,184,185 A amplitude e a frequência da EEG são moduladas por impulsos aferentes provenientes de núcleos talâmicos sensitivos específicos que atuam como comportas entre os receptores periféricos e o córtex e por epicentros no córtex cerebral.186 As bandas de frequência da EEG utilizadas para avaliação da profundidade anestésica são as bandas d (0 a 4 Hz), θ (4 a 8 Hz), a (8 a 13 Hz) e b (13 a 30 Hz).187,188 Na década de 1930, Hans Berger formulou a hipótese de que o aparecimento de ondas a na EEG podia representar eventos corticais cerebrais associados à consciência no homem desperto.189 Em geral, era aceito o fato de que a atividade EEG rítmica registrada no couro cabeludo associada à consciência fosse gerada a partir de neurônios marca-passo no SARA, e mediada e modulada por meio de conexões talâmicas.121,122,186,190,191 Esses neurônios marca-passo oscilam na faixa de frequência de 8 a 12 Hz e sincronizam a excitabilidade das células nas vias talamocorticais. Pequenas áreas corticais cerebrais também parecem atuar como epicentros a partir dos quais a atividade a se propaga por meio de redes neuronais corticais e gera o ritmo a que domina a EEG em repouso. No estado desperto, a consciência é mantida por uma atividade circulante entre o SARA, os núcleos intralaminares e o córtex cerebral.186 Uma estimulação sensorial adicional irá causar excitabilidade cortical, que se caracteriza por dessincronização dos osciladores a, com aparecimento de um ritmo mais rápido na faixa de frequência b (12 a 25 Hz).186,191-194 Em geral, a dessincronização descreve um desvio no padrão da EEG de uma atividade de ondas lentas e alta voltagem para uma atividade de ondas rápidas e baixa voltagem.121,122,195 Durante a indução e a manutenção da anestesia, a diminuição progressiva no conteúdo de frequência da EEG (retardo) será indicada por um desvio de um padrão de ondas rápidas e baixa voltagem para um padrão de ondas lentas e alta voltagem.114,196-198 As alterações dependentes da dose na atividade da EEG, juntamente com um aumento na profundidade anestésica, foram claramente demonstradas para muitos agentes anestésicos.114,196 À medida que a profundidade anestésica aumenta, o padrão da EEG predominante caracteriza-se por uma diminuição na atividade b e aumento concomitante na atividade tanto a quanto δ.199 Com a PC, ocorre anteriorização da EEG, que se refere a um aumento na atividade alfa e delta nas derivações anteriores em relação às derivações posteriores.6,199201 À medida que a anestesia se aprofunda ainda mais, a atividade EEG nas bandas de frequência teta e delta aparece inicialmente nas regiões centroposteriores, com propagação

anterior subsequente.201 Por fim, níveis muito profundos de anestesia geral são inicialmente indicados por períodos planos intercalados com períodos de atividade alfa e beta (padrão de supressão da explosão) (Figura 28.5), seguidos de perda completa da descarga elétrica (i.e., isoeletricidade ou silêncio elétrico).40,196,197 Tão logo se reduza a dose do agente anestésico, esses padrões são revertidos, e planos mais superficiais de anestesia são indicados por diminuição da amplitude e aumento da frequência (Figura 28.6). Ainda existe controvérsia quanto ao fato de a inconsciência induzida por anestésicos resultar ou não principalmente de ações anestésicas corticais ou subcorticais (talâmicas).119,202-204 Para diminuir a quantidade de dados da EEG tradicionalmente registrados no domínio do tempo, foi empregada uma análise da EEG processada por computador (p. ex., análise do espectro) para monitoramento EEG intraoperatório há mais de 30 anos.185,205-207 A velocidade de processamento dos dados possibilita uma avaliação de minuto a minuto da profundidade da anestesia.207,208 Por convenção, o termo potência tem sido utilizado como medida de amplitude, refletindo a origem da análise de Fourier na engenharia radioelétrica.186,207 Para resumir a informação mais relevante de uma amostra da EEG, foram planejadas medidas quantitativas derivadas da análise do espectro de potência.209 Essas variáveis EEG quantitativas (QEEG) incluem a frequência mediana da EEG (50%quantil; MF),210,211 a frequência da borda espectral (CEF) como o 80%,212,213 90%214 ou 95%-quantil,215,216 a potência total (mV2),188,217 a porcentagem de distribuição da potência total (potência relativa) nas bandas de frequência δ, θ, a e b5,211 e as relações das bandas de potência θ/δ, α/δ e β/δ210,217 derivadas da potência relativa. Correlações confiáveis entre as variáveis da EEG quantitativas e os sinais clínicos demonstram que certos aspectos da atividade elétrica do cérebro são sensíveis ao nível de consciência. Fornecem evidências clínicas práticas de que a consciência é um fenômeno neurobiológico, que pode ser objetivamente quantificado, de modo que a profundidade da anestesia possa ser analisada com segurança, utilizando variáveis eletrofisiológicas. Entretanto, essas variáveis fornecem relativamente poucas informações sobre os mecanismos subjacentes tanto à anestesia quanto à consciência.186

Figura 28.5 Registro de dois canais de EEG pelo monitor Narcotrend® durante a circulação extracorpórea hipotérmica em ovinos. A anestesia balanceada de plano profundo com isofluorano está indicada pelo (1) padrão de supressão da explosão da EEG na EEG análoga (duas curvas superiores), (2) estádio de Kugler ‘F0’ e (3) baixo índice de Narcotrend ‘10’.

Figura 28.6 Registro de dois canais de EEG do monitor Narcotrend® durante a circulação extracorpórea hipotérmica em ovinos. Um plano moderado de profundidade da anestesia está indicado por (1) um desvio do padrão de surtossupressão da EEG para um padrão de ondas rápidas e baixa voltagem na EEG análoga (duas curvas superiores), (2) estádio de Kugler ‘D1’ e (3) índice moderado do Narcotrend ‘53’.

Outro parâmetro utilizado com frequência na análise quantitativa da EEG é a relação de surtossupressão (BSR). O padrão de surtossupressão da EEG tem sido definido como uma atividade elétrica intermitente intercalada com silêncio ou como uma depressão quase completa da atividade elétrica cortical. A surtossupressão indica uma redução inespecífica (p. ex., traumatismo, fármacos, hipotermia) na atividade metabólica cerebral.185,218 A relação de surtossupressão foi calculada como a porcentagem de períodos isoelétricos que ocorrem durante determinado período de tempo.219 O espectro de potência calculado durante a anestesia pode ser exibido no conjunto espectral comprimido (compressed spectral array, CSA), em que a potência componente é representada graficamente como função da frequência (μV2/Hz) para cada época analisada (Figura 28.7).184,206,207 As amplitudes squared são representadas como histograma e, em

seguida, tornadas uniformes para ajudar na sua legibilidade. A análise das épocas da EEG é repetida continuamente sem perda dos dados primários, enquanto os espectros de potência resultantes são representados de modo sequencial ao longo do eixo y, e a faixa de frequências, ao longo do eixo x.206 Os picos e os vales no CSA representam bandas de frequência com potência mais alta e mais baixa, respectivamente. A análise do espectro de potência da EEG e a apresentação dos dados no formato CSA proporcionam uma identificação simplificada de pequenas alterações na EEG bruta complexa.207 O retardo da EEG durante a profundidade crescente da anestesia é indicado por um aumento da potência total, aumento da potência relativa nas bandas de frequência δ e θ e diminuição na potência α e β, bem como na MF e SEF. Essas alterações foram demonstradas em pacientes humanos e em animais para uma variedade de agentes anestésicos.188,210,213-215,220-222 Uma diminuição na concentração de anestésico irá reverter o retardo da EEG, e alterações subsequentes de planos mais profundos para planos mais superficiais de profundidade anestésica serão indicados por um desvio da potência da EEG das faixas de frequência menores (δ e θ) para mais altas (α e β) e por um aumento na MF e SEF. Estudos realizados em cães revelaram que a isoeletricidade da EEG pode ser obtida com uma concentração de isofluorano do ar expirado mais baixa em comparação com o halotano.40,126 Esses efeitos diferenciais sobre os dados da EEG também foram relatados em estudos realizados em equinos213,223 e em ratos.224 Com planos semelhantes de profundidade anestésica, conforme determinado por sinais clínicos ou múltiplas CAM, animais anestesiados com isofluorano apresentaram valores mais baixos de SEF, MF e/ou razão β/δ, porém medidas mais altas de amplitude do que aqueles durante a anestesia com halotano. Esses resultados sugerem que alguns agentes anestésicos, como o tiopental196 o isofluorano114 e o propofol225 causam supressão profunda da EEG, até mesmo com concentrações clinicamente relevantes, enquanto outros (p. ex., halotano)126 podem não fazê-lo. Uma importante aplicação no monitoramento da EEG intraoperatória é a identificação de respostas da EEG evocadas por estímulos cirúrgicos.226 Independentemente do local e do tipo de estimulação, os estímulos nocivos podem causar dessincronização da EEG, indicada pela substituição de atividade de ondas lentas e alta voltagem predominante por atividade de ondas rápidas e baixa voltagem e por aumentos na MF, SEF e na relação de bandas de potência (θ/δ, α/δ e β/δ).5,121,210,277-230 Essas alterações no padrão da EEG serão observadas durante planos inadequados de anestesia, porém serão deprimidas pela profundidade crescente da anestesia. A sincronização da EEG ou o despertar paradoxal constituem outra forma de ativação da EEG, que representa a alteração oposta na descarga cortical em resposta à estimulação

nociva (redução do EEG em lugar de aumento no conteúdo de frequência). O mecanismo desse padrão de ativação não está bem elucidado.181,209,231 O despertar paradoxal poderia ser falsamente interpretado como um nível profundo de anestesia ou de hipoxia cerebral e tem sido relatado em pacientes humanos anestesiados com isofluorano que foram submetidos a cirurgias urológica, abdominal ou ginecológica visceral,231,232 mas também no caso de diferentes estímulos nocivos aplicados durante a cirurgia ortopédica em ovinos anestesiados com isofluorano.233 Em resumo, a ocorrência de despertar EEG intraoperatório ou despertar paradoxal pode ser afetada pela profundidade da anestesia, pela intensidade e pelo tipo de estimulação nociva, por diferenças individuais e pela idade do paciente. A principal meta no monitoramento da EEG intraoperatória consiste na manutenção de um padrão de EEG de ondas lentas e alta voltagem, e em evitar alterações no padrão EEG em resposta a estímulos nocivos.

Figura 28.7 Registro de dois canais da EEG (formato CSA) durante a anestesia com halotano-fentanila-N2O-O2 para laminectomia em um cão. O formato CSA representa a redução da EEG e a ativação após a injeção intravenosa de propofol (1 mg/kg).

Em diversos estudos, foi possível demonstrar claramente uma estreita relação entre alterações no padrão da EEG e variáveis autonômicas simultaneamente registradas em

resposta a estímulos nocivos. A dessincronização ou a sincronização da EEG durante a anestesia foram associadas a alterações nos sinais clínicos, como midríase, hipertensão e/ou taquicardia.122,228,231-233-236 Entretanto, foi também relatada uma baixa correlação entre a EEG e as respostas hemodinâmicas a estímulos nocivos.212,217 Foi concluído que as respostas hemodinâmicas autonômicas poderiam estar mais estreitamente relacionadas com eventos neurofisiológicos no tronco encefálico ou na medula espinal, e não com eventos corticais.213 De modo semelhante, foi observada uma correlação fraca entre o EEG e a resposta de movimento à estimulação nociva em seres humanos218,237 e animais135,238 anestesiados com isofluorano. As respostas de movimento, porém sem alteração no padrão da EEG, podem ser produzidas por estímulos nocivos, levando à conclusão de que o cérebro reage mais sensitivamente ao isofluorano do que a medula espinal.127,181

■ Potenciais evocados Os potenciais evocados auditivos de média latência (PEAML)239 e os potenciais evocados somatossensoriais (PESS)240 foram recomendados para monitoramento da profundidade da anestesia. Os PESS representam sinais elétricos gerados pelo sistema nervoso após estimulação mecânica ou elétrica na periferia e ativação sequencial subsequente de estruturas neuronais ao longo das vias somatossensoriais.105 As respostas médias registradas a partir de áreas de recepção corticais primárias em resposta à estimulação elétrica de nervos periféricos aparecem como ondas negativas ou inflexões (negativa inicial [Ni segunda negativa (Ns)] sobrepostas a uma onda de positividade de superfície [positiva inicial (Pi), segunda positiva (Ps)].113 Para a maioria dos agentes anestésicos (com exceção do etomidato e do propofol), um aumento na profundidade da anestesia é indicado por um aumento da latência e por uma diminuição na amplitude das ondas Pi e Ni, enquanto o despertar está associado a uma diminuição da latência e aumento na amplitude.96,113,153 Os efeitos dos anestésicos sobre os PESS em humanos sustentam o conceito de que a transferência da informação através do tálamo está interrompida, sendo os núcleos inespecíficos mais afetados.105 Nem os PEAML nem as variáveis derivadas do EEG podem ser usados para prever a resposta de movimento à estimulação nociva, limitando, assim, o seu uso para monitoramento intraoperatório.237

■ Índice biespectral® O índice biespectral® (BIS®), à semelhança da MF e SEF, é um índice derivado do processamento de sinais da EEG bruta. Enquanto a MF e SEF obtêm informações de frequência do sinal da EEG,241 o BIS é composto de uma combinação do domínio do tempo, domínio de frequência e subparâmetros espectrais de ordem superior, e incorpora o grau de acoplamento de fase entre as ondas componentes.185,242-244 O BIS é um número

adimensional destinado a indicar o nível de consciência do paciente.244 O BIS varia de 100 (desperto) a zero (EEG) isoelétrico.245 Um BIS de 55 em humanos tem sido recomendado como limite superior passível de assegurar uma profundidade adequada de anestesia cirúrgica.244,246 Os estudos realizados demonstram uma diminuição dependente da dose nos valores do BIS com concentrações no ar expirado/doses crescentes de sevofluorano247 isofluorano248 e propofol.249 Quando se compara a confiabilidade da concentração de anestésico no ar expirado (CAAE) e do BIS para monitoramento da profundidade da anestesia em humanos, os dados revelam que o monitoramento com BIS não proporciona nenhum benefício em comparação com o monitoramento com a CAAE para evitar a vigília.244,250,251 Com alguns eventos conscientes ocorrendo aparentemente com valores de BIS abaixo do limite superior (p. ex., 55 a 60), não se recomenda a mudança da concentração de anestésicos voláteis baseando-se exclusivamente no valor do BIS.244 Diferentemente da CAAE, foi relatado que o BIS é significativamente mais acurado do que as concentrações-alvo ou medidas de propofol durante a sedação e a hipnose com propofol.103

Figura 28.8 Registro de dois canais de EEG do monitor Narcotrend® durante a circulação extracorpórea hipotérmica em ovinos. A anestesia balanceada de plano profundo utilizando isofluorano é indicada pelo (1) padrão de surtossupressão da EEG na EEG análoga (duas curvas superiores), (2) estádio ‘F0’ de Kugler e (3) baixo índice de Narcotrend ‘11’. As curvas preenchidas de amarelo (parte direita inferior) indicam a atividade EEG predominante na banda de frequência δ. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

À semelhança da correlação fraca relatada entre as alterações nas variáveis hemodinâmicas e os parâmetros EEG espectrais, vários estudos revelaram que as respostas hemodinâmicas à estimulação nociva não estão associadas a alterações concomitantes no BIS.252-255 Em resumo, os monitores da profundidade da anestesia derivados da EEG, como o BIS, destinam-se a suplementar a tomada de decisão clínica, mas não a suplantá-la.245

■ Índice Narcotrend® O algoritmo Narcotrend® baseia-se no reconhecimento de padrões da EEG bruta e classifica os traçados da EEG em diferentes estágios de ar (desperto) a F (surtossupressão/isoeletricidade) e em um índice Narcotrend (NI) adimensional, que varia de 100 (desperto) a zero (isoeletricidade).256 Ambos os métodos, isto é, BIS e NI, foram considerados igualmente efetivos no monitoramento da profundidade da anestesia durante a cirurgia de pacientes humanos.256-258 Uma comparação do NI com os estágios clínicos da anestesia durante a cirurgia cardíaca experimental em ovinos anestesiados com isofluorano revelou uma correlação significativa entre o NI e a profundidade crescente da anestesia, conforme definido pelos sinais clínicos.259 A informação mais valiosa pode ser obtida do NI durante a circulação extracorpórea e o período anestésico imediatamente após o desmame do animal da máquina coração-pulmão, quando os sinais clínicos raramente estão disponíveis (Figuras 28.8 a 28.11).

■ Entropia Os parâmetros da EEG baseados na análise do espectro de frequência (p. ex., MF, SEF) refletem apenas propriedades de sinais lineares e, portanto, podem ser de valor limitado.210,260,261 Os parâmetros da EEG não lineares (p. ex., entropia aproximada) podem enfatizar algumas características adicionais da EEG baseadas no comportamento caótico não linear exibido pelos sistemas neuronais.261-265 A entropia analisa a irregularidade, a complexidade e a imprevisibilidade dos sinais da EEG.266 Existem diferentes maneiras de computar a entropia de um sinal. No domínio do tempo, pode-se considerar a entropia aproximada263,264 ou entropia de Shannon,264,267 ao passo que, no domínio de frequência, pode-se computar a entropia espectral.268 Para otimizar a

velocidade de obtenção da informação a partir do sinal da EEG, é conveniente construir uma combinação das abordagens de domínio do tempo e domínio de frequência.266 A entropia de estado (SE) e a entropia de resposta (RE) constituem outro grupo de números adimensionais, que podem ser calculados utilizando o módulo M-Entropy do monitor de anestesia S/5TM. Um importante valor é separar a EEG da atividade eletromiográfica (EMG),265 visto que a composição de frequência da EEG e da EMG podem-se sobrepor na faixa de 30 a 50 Hz.269 A SE é calculada sobre a parte EEG-dominante do espectro (0,8 a 32 Hz), refletindo primariamente o estado cortical do paciente. A RE refere-se à atividade da faixa de frequência mais alta (0,8 a 47 Hz), que inclui ambas as partes EEG-dominante e EMGdominante do espectro.265,270 O propósito da SE é medir o estado cortical atual do paciente, ao passo que a RE, ao refletir a atividade da EMG, é considerada uma medida indireta da adequação da analgesia, visto que a atividade da EMG pode aumentar em consequência da estimulação nociceptiva intensiva e durante planos decrescentes de anestesia. À semelhança do BIS, a SE varia de 91 (despertar) a 0 (atividade EEG isoelétrica), enquanto a RE varia de 100 a 0. A faixa recomendada para ambos os parâmetros para indicar uma anestesia adequada é de 40 a 60.265,270 Sempre que houver aumento da SE acima de 60, deve-se aumentar a profundidade da anestesia; entretanto, quando a RE ultrapassa o limite superior em 5 a 10 unidades, deve-se considerar o uso de analgésicos adicionais, em lugar de aprofundar a anestesia.241 Em planos mais profundos de anestesia, quando a potência eletromiográfica é igual a zero, a RE torna-se igual à SE.

Figura 28.9 Registro de dois canais de EEG do monitor Narcotrend® durante a circulação extracorpórea hipotérmica em ovinos. A anestesia balanceada de plano moderado utilizando isofluorano é indicada pelo (1) padrão EEG de ondas rápidas e baixa voltagem na EEG análoga (duas curvas superiores), (2) estádio de Kugler ‘D2’ e (3) índice Narcotrend ‘46’. As curvas preenchidas de amarelo (parte direita inferior) indicam um desvio na atividade da EEG predominante da banda de frequência δ para bandas de maior frequência (α). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 28.10 Registro de dois canais de EEG do monitor Narcotrend® durante a circulação extracorpórea hipotérmica em ovinos. A anestesia balanceada de nível moderado utilizando isofluorano é indicada pelo (1) padrão EEG de ondas rápidas e baixa voltagem na EEG análoga (duas curvas superiores), (2) estádio de Kugler ‘D1’ e (3) índice de Narcotrend ‘53’. As curvas preenchidas de amarelo (parte direita inferior) indicam um desvio na atividade da EEG predominante da banda de frequência δ para bandas de maior frequência (α). (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 28.11 Registro de dois canais de EEG do monitor Narcotrend® durante a emergência da anestesia para circulação extracorpórea hipotérmica em ovinos. O estado quase desperto está indicado pelo (1) padrão de EEG de ondas rápidas e baixa voltagem na EEG (duas curvas superiores), (2) estádio de Krugler ‘B0’ e (3) índice de Narcotrend ‘92’, juntamente com (4) elevado índice EMG de ‘88’.

Em geral, os valores de entropia são apropriados para quantificar o efeito dos agentes anestésicos para a maioria dos agentes de indução intravenosos e anestésicos voláteis. Entretanto, observa-se um baixo desempenho durante a administração de cetamina e de óxido nitroso.265 Numerosos estudos261,272,273 mostraram consistentemente que a entropia de permutação pode ser usada para discriminar eficientemente entre diferentes níveis de consciência durante a administração de anestésicos.274 Uma medida de permutação múltipla, denominada entropia de permutação multiescala composta (CMSPE), pode ser usada para detectar, de maneira acurada, transições sutis entre níveis superficial e profundo de anestesia com sevofluorano. Isso não era possível quando se utilizava a entropia de

permutação de escala única.275

■ Índice de consciência O índice de consciência (IoC) é obtido a partir de uma combinação de dinâmica simbólica, razão β e taxa de supressão da EEG.270 O IoC varia de 0 a 99, em que 99 indica um paciente desperto, 80 está associado a sedação, enquanto a faixa de 40 a 60 é definida como o estado recomendado para a anestesia geral, e 0 indica a EEG isoelétrica. Tanto a SE quanto o IoC refletem o componente hipnótico da anestesia e mostram um considerável atraso de tempo para refletir o plano anestésico efetivo, o que pode representar uma limitação na detecção do despertar intraoperatório.

■ Índice de estado cerebral O Cerebral State MonitorTM (CSM) é outro monitor baseado no EEG, que é utilizado para medir a profundidade da hipnose durante a anestesia geral.276 Em resumo, não se dispõe, atualmente, de monitores baseados na EEG capazes de detectar de modo infalível o estado de vigília.276-278

■ Eletromiografia A eletromiografia é a medição da atividade elétrica no músculo.279,280 Os registros são efetuados com uma agulha inserida em um músculo. A análise das formas de onda e frequências de disparo de uma única unidade motora ou de múltiplas unidades motoras pode fornecer informações diagnósticas.279,280 As aplicações clínicas da EMG incluem o diagnóstico de distúrbios da medula espinal (p. ex., herniação de disco aguda), distúrbios de nervos periféricos (p. ex., neuropatias traumáticas, polineurite), distúrbios da junção neuromuscular (p. ex., miastenia gravis) e distúrbios musculares (p. ex., miotonia, polimiosite).281

Manejo de estados patológicos selecionados do sistema nervoso ■ Tumor cerebral, lesão cerebral traumática, hipertensão intracraniana/elevação da pressão intracraniana Em pacientes humanos com doença intracraniana, foram sugeridas as seguintes estratégias para avaliação peroperatória e proteção do cérebro durante intervenções neurocirúrgicas: •

Avaliação pré-operatória do estado neurológico do paciente, incluindo sinais de

• • • • •

depressão mental (sonolência, inconsciência), e tamanho e reação da pupila282 Documentação de sinais e sintomas de elevação da pressão intracraniana (p. ex., vômitos, papiledema, dilatação das pupilas)282 Medição da pressão arterial peroperatória para manter a PPC adequada282,283 Manutenção do estado de euglicemia ou de níveis ligeiramente elevados de glicemia (5,5 a 10 mmol/ℓ)282,283 Evitar a ocorrência de anemia peroperatória (Hb ≥ 9 a 12 g/dℓ), visto que a presença de baixos níveis de Hb tem sido associada a um resultado pós-operatório precário283-284 Possibilitar ou produzir hipotermia leve (32 a 35°C).282,285

O espaço intracraniano contém três componentes: o tecido cerebral (80 a 85%), o LCS (7 a 10%) e o volume sanguíneo cerebral (VSC) (5 a 8%), e a PIC representa a pressão produzida por esses três componentes no espaço intracraniano não distensível.16 De acordo com a hipótese de Monroe-Kelly, para que a PIC permaneça normal, um aumento de volume em qualquer um dos três componentes precisa ser acompanhado de uma redução em outro volume.16 Os tumores cerebrais expansivos, a lesão cerebral traumática (LCT) e a hemorragia subaracnóidea (HSA) podem causar paralisia vasomotora e elevação da PIC, com diminuição subsequente do FSC e comprometimento no aporte de O2.12,286 A PIC rapidamente crescente é indicada por hipertensão arterial, bradicardia e irregularidade respiratória (a “resposta vasopressora”) e, com frequência, leva à herniação cerebral, com compressão do tronco encefálico, inconsciência e morte subsequente.287 Esse fenômeno também é conhecido como reflexo de Cushing, efeito de Cushing, reação de Cushing, fenômeno de Cushing, resposta de Cushing, tríade de Cushing e lei de Cushing. Por conseguinte, a manutenção de um suprimento sanguíneo cerebral adequado pode ser considerada como o principal desafio nesses pacientes. Embora ainda exista alguma controvérsia relativa à PPC “ideal”288,289 e ao limite de pressão inferior para a autorregulação do FSC em pacientes com distúrbios cerebrais,290 foi recomendada manutenção da PPC acima de pelo menos 60289,291 a 70 mmHg.292 Além disso, tendo em vista que a PIC pode variar de 10 a 15 mmHg (normal)288 a aproximadamente 20 a 30 mmHg (anormal),288,292 pode ser necessária uma pressão arterial média acima de 80 mmHg para uma perfusão cerebral adequada. Outras medidas terapêuticas durante a elevação da PIC podem incluir as seguintes:12,288,289,293-301 • •

Sedação e analgesia adequadas Melhor drenagem venosa cerebral ao elevar a cabeça em um ângulo de 15 a 30o



• •

Infusão de manitol ou solução salina hipertônica. A solução salina hipertônica pode melhorar a hemodinâmica cerebral e a oxigenação tecidual do cérebro, porém deve ser utilizada com cautela, visto que pode causar acidose metabólica hiperclorêmica e comprometimento renal subsequente Indução de anestesia com tiopental, propofol ou etomidato Administração de um bloqueador neuromuscular (BN) de ação rápida antes da laringoscopia e intubação endotraqueal. Tanto o atracúrio quanto o vecurônio proporcionam um rápido início de ação. Pode-se obter também supressão das respostas hemodinâmicas à intubação/extubação endotraqueal e elevação subsequente da PIC por meio de injeção intravenosa de lidocaína.

Com frequência, a ocorrência de hipertensão arterial tem sido relatada durante a cirurgia intracraniana em humanos. Cerca de 60 a 90% dos pacientes submetidos à craniotomia necessitam de tratamento com medicamentos anti-hipertensivos302,303 para manter a pressão arterial sistólica (PAS) abaixo de 126 mmHg.286 Entretanto, por causa das várias desvantagens, incluindo meia-vida longa (p. ex., labetalol), efeito mínimo sobre a resistência vascular sistêmica elevada (p. ex., esmolol) e efeitos adversos sobre o volume sanguíneo intracraniano (p. ex., nitroprussiato de sódio, hidralazina), recomenda-se o uso cauteloso de medicamentos anti-hipertensivos nos seres humanos.303 Por outro lado, a indução de hipertensão arterial transitória é necessária para a oclusão de vasos (p. ex., clipagem temporária, clampeamento, vasospasmo) ou alteração da autorregulação cerebral em consequência de massa intracraniana, doença hipertensiva ou LCT.283 A hipotensão arterial sistêmica durante a anestesia pode resultar em redução da PPC e isquemia cerebral subsequente.286 Por conseguinte, o monitoramento peroperatório da pressão arterial é fundamental para a detecção e o tratamento de hipotensão/hipertensão. A pressão arterial deve ser medida antes da administração de fármacos (se possível) e usada como diretriz para o manejo intraoperatório. Além disso, a medição de alterações na saturação de oxigênio cerebral regional (rSO2), utilizando a espectroscopia quase no infravermelho, pode ser útil para a identificação de dessaturação do O2 cerebral (p. ex., diminuição da rSO2 em > 20% do valor basal). As medidas para prevenir a dessaturação podem incluir elevação da PAS e/ou aumento da fração de O2 inspirado.304 Após a ocorrência de LCT, o cérebro pode aumentar a sua atividade metabólica, que frequentemente constitui uma ramificação da liberação de glutamato e excitotoxicidade. Nessas circunstâncias, as concentrações de glicemia no paciente euglicêmico ou hipoglicêmico podem não permitir um aporte adequado de substrato para compensar o hipermetabolismo do cérebro.305 Em consequência, pode ocorrer uma crise metabólica, definida por diminuição simultânea do nível de glicose abaixo de 0,7 mmol/ℓ e aumento da

relação entre lactato e piruvato acima de 40 no líquido do microdialisado.306 Por conseguinte, as determinações frequentes da concentração sérica de glicose são importantes durante a neuroanestesia, visto que tanto a hiperglicemia quanto a hipoglicemia graves podem ter impacto profundo sobre o prognóstico do paciente após lesão cerebral.286,305,307

■ Distúrbios convulsivos A atividade convulsiva tem sido associada a aumentos acentuados na CMRO2, no FSC e no risco potencial de asfixia em pacientes com respiração espontânea.42 Essas alterações podem causar acidose láctica pronunciada do tecido cerebral,308 conforme indicado por uma elevação de seis vezes nos níveis teciduais de lactato depois de apenas 5 s de atividade convulsiva309 e perda subsequente da autorregulação do FSC.310 Aumentos na necessidade de energia do cérebro, pressão arterial, concentração de K+ no líquido extracelular (LEC) do cérebro e/ou osmolalidade do LEC foram discutidos como fatores que aumentam o FSC durante as crises convulsivas.42 É interessante assinalar que uma elevação da PO2 venosa cerebral indica que a utilização e produção aceleradas de ATP modificam o equilíbrio entre a degradação inicial (glicolítica) e final (oxidativa) da glicose, sugerindo que a hipoxia pode não constituir a causa predominante da acidose láctica.42 Embora a atividade convulsiva sob anestesia geral seja um fenômeno raro,311 os pacientes com história de crises convulsivas podem necessitar de anestesia para cirurgia eletiva ou de emergência.312 Nesses pacientes, as considerações pré-operatórias devem incluir a história de incidência de crises convulsivas (p. ex., frequência crescente), diagnósticos anteriores (p. ex., ressonância magnética para descartar a possibilidade de massas expansivas como causa das crises convulsivas) e informação sobre terapia com agentes antiepilépticos (AAE).312 Os AAE tradicionais exercem atividade anticonvulsivante ao (1) reduzir as correntes positivas de entrada reguladas por voltagem (Na+, Ca2+), (2) aumentar a atividade do neurotransmissor inibitório (GABA) ou (3) diminuir a atividade dos neurotransmissores excitatórios (glutamato, aspartato).312 Os AAE mais antigos (p. ex., carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, primidona) podem induzir as isoenzimas do citocromo P450 hepático, levando a uma redução na concentração plasmática de alguns fármacos (p. ex., amiodarona, propranolol, verapamil e pentobarbital).313 Em pacientes com história de epilepsia bem controlada, foi recomendada a continuação dos medicamentos antiepilépticos durante todo o período peroperatório.312 Foi observada a ocorrência de atividade de tipo convulsivo durante o uso de óxido nitroso (N2O) em gatos,312 com a administração de sevofluorano a crianças314 ou quando são utilizadas altas concentrações em associação com hipocapnia315 e enfluorano (homens e ratos).316,317 Evidências EEG e motoras sustentadas de atividade convulsiva também podem ser induzidas por estímulos auditivos em cães anestesiados, com concentrações de

enfluorano acima de uma CAM de 1. A atividade convulsivante tornou-se particularmente evidente durante a hipocapnia.318 Embora se tenha relatado a ocorrência de atividade convulsiva em um paciente durante a anestesia com isofluorano,311 tanto o isofluorano quanto o desfluorano foram recomendados para anestesia no estado de mal epiléptico refratário.319 Semelhantemente, os barbitúricos (tiopental, meto-hexital, pentobarbital) e o propofol estão bem estabelecidos como agentes para o tratamento do estado de mal epiléptico refratário.312,320-322 Embora se tenha relatado que todos os agentes produzem atividade excitatória (p. ex., mioclonia, opistótono), isso habitualmente não representa o início de uma crise convulsiva, e, durante a indução subsequente da anestesia com esses agentes em doses mais altas, eles atuam como anticonvulsivantes.323,324 À semelhança de outros agentes anestésicos intravenosos, a cetamina em baixas doses pode facilitar as crises convulsivas; entretanto, em doses adequadas para produzir anestesia, a cetamina exibe propriedades anticonvulsivantes em algumas espécies.325 Todos os benzodiazepínicos apresentam propriedades anticonvulsivantes potentes.326 Foi relatado que os opioides, como a fentanila, a alfentanila, a sufentanila e a morfina, iniciam crises generalizadas e/ou mioclonia após a administração de uma dose baixa a moderada, particularmente quando administrada por via intratecal em seres humanos.327-330 O estado de mal epiléptico é uma emergência médica comum associada a aumentos no metabolismo cerebral, no FSC, na liberação de catecolaminas, no débito cardíaco, na pressão arterial e venosa central e na frequência cardíaca.331 Essas alterações precisam ser rapidamente controladas, de modo a evitar a perda da autorregulação do FSC, bem como a ocorrência de hipoxemia cerebral, edema cerebral e hipertensão intracraniana.331 A anestesia com midazolam, propofol ou tiopental tem sido recomendada para o tratamento do estado de mal epiléptico, enquanto os opioides são habitualmente evitados.312 Em um estudo de humanos submetidos a ressecção cortical para o tratamento da epilepsia intratável, foi constatado que o propofol (2 mg/kg IV) diminuiu significativamente a frequência mediana de pontas interictais.332 Os autores concluíram que o uso do propofol em pacientes com epilepsia parece ser seguro.

■ Lesão aguda da medula espinal Recentemente, foi realizada uma revisão dos mecanismos e cuidados de emergência para o tratamento da lesão aguda da medula espinal em cães e gatos.333 As lesões da medula espinal são comuns em pequenos animais e, com frequência, estão associadas a um prognóstico sombrio, podendo levar à necessidade de eutanásia. O traumatismo inicial da medula espinal pode ser causado por herniação aguda de disco intervertebral, lesões vertebrais, lesões perfurantes ou lesões não traumáticas, como embolia de fibrocartilagem.

Com frequência, o trauma inicial é seguido de uma lesão secundária da medula espinal em consequência de alterações moleculares e bioquímicas associadas ao trauma inicial (p. ex., perda da autorregulação do fluxo sanguíneo medular, liberação excessiva de aspartato e glutamato, acúmulo intracelular de Ca2+, inflamação). O diagnóstico de lesão aguda da medula espinal baseia-se na história do paciente e no exame físico e neurológico.333 Outros exames complementares podem incluir radiografia e modalidades de imagem avançadas, como mielografia, tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM).333-335 O tratamento de emergência inicial das lesões de medula espinal deve concentrar-se na estabilização da função cardiovascular e respiratória do paciente, em um esforço de reduzir isquemia e hipoxia espinais, com progressão subsequente da lesão da medula espinal.333 Embora se possa obter uma rápida expansão do volume intravascular pela infusão de soluções cristaloides hipertônicas ou coloides sintéticas, as modalidades de tratamento mais específicas, incluindo o uso de metilprednisolona, polietilenoglicol, terapia com antioxidantes, antagonistas dos canais de cálcio, 21-aminoesteroides, antagonistas dos receptores de opiáceos, terapia com oxigênio hiperbárico e/ou hipotermia terapêutica, continuam controversas em medicina veterinária. Estas diversas medidas terapêuticas não conseguiram produzir de modo confiável melhora significativa dos resultados ou precisam de investigação adicional.333 As técnicas de cirurgia da medula espinal apresentam riscos inerentes, como sangramento, infecção e desenvolvimento de novos déficits neurológicos, como, por exemplo, paralisia dos músculos respiratórios, cegueira e lesões relacionadas com o posicionamento.286 A cirurgia da coluna cervical por uma abordagem ventral pode estar associada à lesão do nervo laríngeo recorrente causada por compressão direta do nervo durante a retração e/ou compressão cirúrgica dos ramos submucosos do nervo pelo tubo endotraqueal.

■ Mielomalacia A mielomalacia é uma necrose isquemia ou hemorrágica da medula espinal, que pode ocorrer como sequela de lesão aguda da medula espinal.336,337 Foi relatada a ocorrência de mielomalacia em cães, bovinos, caprinos e equinos.336,338,339 Em um caso, um cavalo Quarto de Milha foi submetido a anestesia com halotano para castração e retirada de um testículo retido.339 Após recuperação da anestesia, o animal foi incapaz de se levantar. No dia seguinte, ambos os membros posteriores socavam quando andava assistido. Os reflexos patelar e flexor estavam reduzidos bilateralmente, e não havia nem reflexo anal nem tônus da cauda. O animal morreu oito dias depois da cirurgia, e a necropsia revelou necrose simétrica bilateral e disseminada da substância cinzenta, mais proeminente nos cornos ventrais.338

A anoxia/hipoxia neuronais parecem constituir a principal causa de mielomalacia.340 Por conseguinte, numerosas condições, incluindo embolização, trombos, lesões expansivas (p. ex., protrusão do material do disco, tumor, abscesso), vasoconstrição pronunciada após hiperventilação excessiva, diminuição da pressão de perfusão espinal e/ou congestão venosa espinal, podem resultar em alterações histopatológicas descritas na mielomalacia.336,338,339

■ Miastenia gravis A miastenia gravis (MG) é uma doença neuromuscular causada por uma deficiência de nAChR pós-sinápticos funcionais na junção neuromuscular.341-343 A MG pode ocorrer como doença tanto congênita quanto adquirida em cães e gatos.341 Embora a forma adquirida da MG seja uma doença autoimune, caracterizada por autoanticorpos dirigidos contra os nAChR9,341,342 e, com frequência, associada a doença do timo (p. ex., timoma),343,344 a deficiência de nAChR na MG congênita não está associada a uma resposta autoimune.341 O número diminuído de nAChR provoca redução na capacidade da placa terminal neuromuscular de transmitir adequadamente os sinais nervosos, levando ao desenvolvimento de fraqueza neuromuscular e fadiga.342,344,345 Outros sinais clínicos em cães e gatos podem incluir fraqueza facial bilateral com diminuição dos reflexos palpebrais, acentuada fraqueza dos músculos esqueléticos nos membros pélvicos, incapacidade de retrair as garras, ventroflexão cervical e megaesôfago.342,344 Com frequência, a MG fulminante aguda em cães caracteriza-se pela ocorrência frequente de regurgitação e aspiração do conteúdo do trato gastrintestinal e desenvolvimento subsequente de pneumonia por aspiração. É também comum a ocorrência de rápida perda da força muscular, resultando em decúbito.346 Os resultados da EMG e dos testes de velocidade de condução nervosa nesses cães podem não revelar anormalidades. Os pacientes com megaesôfago secundário à MG frequentemente necessitam de anestesia geral por outras razões (p. ex., problemas dentários ou doença ortopédica). Esses pacientes devem ser considerados como de maior risco anestésico e necessitam de atenção especial para reduzir a aspiração. A intubação traqueal rápida, a aspiração esofágica frequente e o uso de antieméticos e agentes procinéticos (p. ex., maropitanto, ondansetrona, metoclopramida) foi recomendado, além de evitar medicamentos peroperatórios desnecessários associados a náuseas e vômitos. Em decorrência do menor número de nAChR normais, os pacientes com MG frequentemente apresentam uma resposta anormal aos ABNM. Mostram-se relativamente resistentes à succinilcolina (i.e., despolarização insuficiente) e muito suscetíveis aos agentes bloqueadores neuromusculares não despolarizantes.343 Foi recomendada redução na dose inicial de atracúrio e vecurônio em cães para aproximadamente um sexto a um quinto

da dose padrão.347,348 Quando se planeja uma anestesia em pacientes miastênicos, os sedativos e/ou analgésicos opioides devem ser utilizados com cautela, visto que os fármacos podem deteriorar, ainda mais, a função respiratória, e alguns podem aumentar o risco de náuseas e vômitos peroperatórios.343 Por outro lado, o estresse emocional, a dor ou a cirurgia podem induzir uma crise miastênica, que se manifesta como exacerbação dos sinais clínicos.349 Por conseguinte, indica-se uma sedação cautelosa, combinada com analgesia adequada (p. ex., agentes anti-inflamatórios não esteroides, anestesia regional ou bloqueio de nervos periféricos), monitoramento proativo e cuidados de suporte.343,344 A manutenção da dose diária de anticolinesterásico (p. ex., piridostigmina) no peroperatório em pacientes com MG tem sido questionada, particularmente tendo em vista que o fármaco pode interferir no metabolismo dos substratos da enzima colinesterase (p. ex., mivacúrio).350 Além disso, quanto mais grave a doença e mais alta a dose de piridostigmina em humanos, mais sensível o paciente aos ABNM não despolarizantes, como o vecurônio.351 Entretanto, se o bloqueio neuromuscular não for antecipado, deve-se considerar o uso de inibidores da colinesterase. A fraqueza musculoesquelética deve incentivar (ou exigir) uma ventilação com pressão positiva, com ou sem administração de ABNM.345 A intubação endotraqueal precoce em pacientes miastênicos é habitualmente possível sem a administração de ABNM,352 e qualquer uso de ABNM deve incluir um monitoramento neuromuscular minucioso [i.e., monitoramento da sequência de quatro (SDQ) de modo a assegurar uma recuperação completa (SDQ > 90%) no final da anestesia].343 O sugammadex, um agente seletivo de ligação dos ABNM, desenvolvido especificamente para a inativação do rocurônio por encapsulação do agonista, demonstrou produzir uma reversão mais rápida da paralisia muscular, sem complicações pós-operatórias.353

Modalidades avançadas de diagnóstico por imagem (mielografia, ressonância magnética) As complicações potenciais e o valor diagnóstico precisam ser considerados quando se analisam as modalidades de diagnóstico por imagem neurológica. Foram relatadas complicações após a mielografia, como bradicardia, assistolia, crises convulsivas, hipertermia, exacerbação de sinais preexistentes de disfunção do SNC, hiperestesia, vômitos e meningite asséptica (raramente). Além disso, pode ocorrer apneia transitória durante a injeção do meio de contraste no espaço subaracnóideo cervical, bem como recuperação anestésica prolongada e movimentos extenuantes dos membros.334,335 Essas complicações, além da capacidade relativamente precária de demonstrar alterações nos

tecidos moles, levaram a uma diminuição no uso da mielografia em medicina veterinária. A hiperosmolalidade e a quimiotoxicidade direta dos meios de contraste foram identificadas como fontes de neurotoxicidade com os meios mais antigos (p. ex., óleos iodados, fármacos iônicos iodados hidrossolúveis) e levaram a seu uso limitado na mielografia.335 Foram desenvolvidos meios não iônicos de segunda geração, incluindo ioexol e iopamidol menos neurotóxicos, que se tornaram os fármacos de escolha em mielografia veterinária. Além do uso de meios de contraste menos neurotóxicos, as complicações após a mielografia podem ser minimizadas por meio de punção subaracnoide cuidadosa, boa técnica asséptica, injeção lenta do meio de contraste, hidratação adequada do paciente e remoção do meio de contraste após a mielografia.335 Por causa do risco de convulsões pós-mielográficas, os fármacos que por si sós podem potencializar um aumento da atividade convulsiva, incluindo cetamina,354,355 N2O,312 enfluorano316,317 e sevofluorano em associação com hipocapnia significativa,315 devem ser evitados ou utilizados com cautela e substituídos por benzodiazepínicos,326 barbitúricos,320,321 propofol322 e isofluorano.319 Ao comparar a ressonância magnética (RM) com a mielografia em cães com suspeita de espondilomielopatia cervical (síndrome de Wobbler), três examinadores (100%) que avaliaram independentemente as imagens concordaram com a localização da lesão mais extensa nas imagens de RM, enquanto o consenso com o uso da mielografia foi de apenas 83%.356 Além disso, a RM forneceu informações sobre a localização das lesões, visto que ela possibilita o exame direto do diâmetro e do parênquima da medula espinal. A mielografia subestimou acentuadamente a gravidade da compressão da medula espinal em dois cães e não identificou a causa dos sinais em outro cão. Os autores concluíram que a mielografia pode identificar a localização da lesão na maioria dos pacientes, porém a RM parece ser mais acurada na previsão de local, gravidade e natureza da compressão da medula espinal. As vantagens diagnósticas da RM em relação à mielografia também foram relatadas para o diagnóstico de isquemia e infarto da medula espinal.357 Embora não tenha sido possível utilizar a RM para o diagnóstico definitivo de infarto da medula espinal, a técnica demonstrou ser efetiva para descartar a possibilidade de lesões extramedulares e sustentar um diagnóstico de infarto intramedular como causa dos sinais neurológicos agudos. As lesões assimétricas indicadas na substância cinzenta da medula espinal exibiram uma correlação com a localização clínica e lateralização em cada cão. Além disso, a mielopatia compressiva causada por extrusão do núcleo pulposo hidratado (ENPH) aguda revela aspectos característicos na RM, com material nuclear de intensidade de sinal hidratado imediatamente acima do espaço discal afetado.358 Quando a RM foi comparada com a radiografia para a detecção de fratura vertebral ou

subluxação em cães com suspeita de instabilidade vertebral, os dados revelaram a identificação da ruptura das estruturas de sustentação de tecido mole, compressão da medula espinal, edema e hemorragia intramedular na RM. Esses resultados levaram ao estabelecimento da RM como exame complementar pré-operatório preferido para a avaliação da estabilidade da coluna em cães com traumatismo de coluna e déficits neurológicos.359 Para o uso de RM em cães, foi sugerida uma medicação pré-anestésica com diazepam (0,23 a 0,32 mg/kg) ou indução imediata com propofol até obter o efeito desejado (até 8 mg/kg IV), seguida de manutenção da anestesia com isofluorano.357

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Introdução Dor e nocicepção Classificação da dor Fisiologia da dor Fisiopatologia da dor | Dor clínica Sensibilização Alterações periféricas Alterações centrais Dor crônica Modelos de nocicepção e testes analgésicos Limitações dos modelos animais atuais Modelos de dor passíveis de extrapolação Ensaios nociceptivos e de dor Testes fásicos de dor Medidas dos resultados Considerações éticas Medição dos limiares nociceptivos de retirada em animais de estimação Modelos de dor | Testes tônicos Tendências recentes na avaliação da dor em roedores Avaliação da dor clínica na medicina veterinária Quantificação da dor Medições objetivas da dor aguda Gradação da dor com base no comportamento Frequência e duração da avaliação da dor

Escolha do recurso de avaliação Dor crônica Expressões faciais de dor Resumo da metodologia para avaliação da dor Tratamento farmacológico da dor Agonistas do receptor adrenérgico α2 Locais de ação Receptores adrenérgicos α2 Receptores alternativos e sinergismo Anestésicos locais Canais de Na+ Fibras nervosas Receptores alternativos para anestésicos locais Antagonistas do receptor de N-metil-D-aspartato Efeito da via de liberação Locais de ação Estrutura e função do receptor de NMDA Efeitos antinociceptivos do antagonista de NMDA Metabólitos da cetamina Anti-inflamatórios não esteroides Locais de ação COX-1 COX-2 Leucotrienos e 5-lipo-oxigenase (5-LOX) Opioides Locais de ação Mecanismos de ação alternativos Analgésicos adjuvantes Corticosteroides Gabapentina e pré-gabalina

Antagonistas do receptor de neurocinina (NK) Antagonistas do receptor transitório potencial de vaniloide do tipo 1 (TRPV1) Modificadores não farmacológicos da dor Modalidades relacionadas com a temperatura Deformação tecidual Modalidades Atividades neuromoduladoras Neuromodulação periférica (mecanotransdução) Neuromodulação espinal Células da glia e citocinas Neuromodulação central Treinamento cinemático Estimulação do metabolismo e fluxo sanguíneo Espasmo muscular, pontos de disparo miofasciais e dor Imunomodulação Referências bibliográficas

Introdução A dor é uma experiência multidimensional complexa, que envolve componentes sensoriais e afetivos. Para leigos, ‘dor não é exatamente sobre como é sentida, mas como faz alguém sentir-se’, e são as sensações desagradáveis que causam o sofrimento que associamos à dor. A dor é uma experiência exclusivamente individual nos seres humanos, podendo a dor que um indivíduo sente por causa de uma lesão diferir muito da experimentada por outra pessoa, tanto em termos de sua intensidade como na maneira conforme é percebida e sentida. Isso fica evidenciado a partir de quase todos os relatos derivados de ensaios clínicos com um novo esquema de analgesia, mesmo quando fatores que possam causar confusão são bem controlados. Além disso, a natureza da dor é variável de acordo com muitas situações. As histórias de dor sentida em situações traumáticas ilustram com clareza que o tempo de evolução da dor e seu impacto sobre nossos sentimentos e como nos comportamos não estão ligados diretamente no tempo. Isso é bem explorado por Patrick Wall em Pain: the Science of Suffering (Dor: a Ciência do Sofrimento).1 Entre muitas ilustrações das complexidades da dor, ele descreve a experiência de Harry Beecher, um

oficial médico jovem que tratou tropas feridas em um hospital na frente de batalha em Anzio em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Perguntava-se aos soldados seriamente feridos recebidos no hospital por um período de 4 meses se estavam sentindo dor e se queriam algo para aliviá-la. Em 70% dos casos, a resposta a ambas as perguntas era ‘não’. Mais tarde, após o fim daquela guerra, ele fez as mesmas duas perguntas a um grupo de homens de faixa etária equivalente que tinham sido submetidos à cirurgia no Massachusetts General Hospital em Boston e 70% responderam ‘sim’ a ambas as perguntas. Ele concluiu que alguma coisa no contexto em que o dano tecidual ocorreu influenciou a intensidade da dor sofrida. A ausência de dor no início da evolução de algumas lesões traumáticas, em geral, é seguida por relatos de dor em 24 h; raramente há ausência de dor nesse período. O fenômeno bem conhecido de dor em membro fantasma revela a posição contrária – em uma grande porcentagem de pessoas submetidas a amputações, a dor é crônica na área do membro amputado, embora a cura seja completa. É óbvio que o início da doença e da dor como sua consequência é menos dramático e imediato que nas situações traumáticas que mencionamos antes e reflete os fatores desencadeantes mais comuns e as causas da dor em seres humanos. A natureza da dor é igualmente complexa em animais, embora seja provável que todos os aspectos de sua experiência e expressão não sejam idênticos. A fisiologia e a fisiopatologia da dor são notavelmente semelhantes e estão bem conservadas nas espécies de mamíferos, e a capacidade dos animais de sofrerem, como criaturas sensíveis, está bem estabelecida e inclusa nas leis em muitos países.

Dor e nocicepção É um desafio incluir os muitos atributos da dor como algo abstrato em uma definição. A definição oficial de dor da International Association for the Study of Pain (IASP) é: uma sensação e uma experiência desagradáveis, associadas a dano tecidual real ou potencial, ou descritas em termos de tal dano. Portanto, a definição descreve a dor em torno da experiência. A experiência consciente de dor desafia qualquer definição precisa anatômica, fisiológica e/ou farmacológica; além disso, pode ser sentida mesmo na ausência de estimulação nociva externa óbvia e modificada por experiências comportamentais, inclusive medo, memória e estresse. Nocicepção é o processo neural de codificar estímulos nocivos,2 cujas consequências podem ser comportamentais – um simples complexo motor de retirada ou comportamentos mais complexos para evitar tais estímulos – ou autonômicas (p. ex., elevação na pressão arterial). Embora a dor geralmente seja consequência de atividade nociceptiva, nem sempre é o caso (p. ex., elevação na pressão arterial em animais anestesiados durante estimulação intensa).

Classificação da dor De acordo com a mais simples, a dor pode ser classificada como aguda ou crônica; no entanto, a distinção entre esses estados nem sempre é clara. A dor aguda ocorre em grande parte em resposta a dano tecidual (geralmente agudo), que se resolve em um período de dias, ou possivelmente semanas. Um bom exemplo é o perfil de tempo que normalmente ocorre após um estímulo cirúrgico agudo.3 A dor provavelmente mais intensa nas primeiras 24 h após cirurgia declina gradualmente com o tempo, com a dor espontânea desaparecendo primeiro e a evocada depois. Em questão de semanas, a cicatrização tecidual se completa e a dor desaparece. Definir a dor crônica é mais arbitrário; é claro que se pode dizer que um animal com osteoartrite (OA) tem uma condição dolorosa crônica. Contudo, o ponto em que uma condição aguda se torna crônica (p. ex., mastite) é menos nítido. Na prática, tem-se usado um intervalo arbitrário de tempo desde o início da dor; por exemplo, a dor com mais de 3 meses de duração pode ser considerada crônica.4 A dor aguda, em geral, está associada ao dano tecidual, ou ameaça disso, e serve à função de alterar o comportamento do animal para evitar ou minimizar o dano e otimizar as condições em que a cura possa ocorrer. A intensidade da dor aguda varia de leve a excruciante. Ela costuma estar associada à cirurgia, ao traumatismo e/ou algumas condições clínicas. É evocada por alguma doença ou lesão específica e autolimitada. A dor crônica dura períodos mais longos e está associada classicamente a doença inflamatória ou uma condição degenerativa, ou ocorre após lesão ou dano a um nervo. Também representa a dor que persiste além da evolução esperada de um processo mórbido agudo. Não tem propósito biológico nem ponto final claro, e a evidência obtida a partir dos seres humanos indica que pode ter um impacto significativo sobre a qualidade de vida do indivíduo. Na medicina humana, a dor crônica foi descrita como a dor que persiste além do tempo normal de cura, ou uma dor persistente causada por condições em que não houve cura ou ocorreu remissão seguida por recorrência.2 Portanto, a dor aguda e a crônica são entidades clínicas diferentes, com a crônica podendo ser considerada um estado mórbido. Muitos animais sofrem de dor crônica prolongada e doença acompanhada por dor crônica. Durante a vida do animal, podem ocorrer exacerbações agudas do estado de dor crônica (inovações da dor) ou surgir novas fontes de dor independentemente (dor aguda ou crônica), comprometendo as estratégias efetivas de tratamento da dor. A percepção consciente da dor representa o produto final de um sistema de processamento neurológico complexo da informação, que resulta da interação de vias facilitadoras e inibidoras por todo o sistema nervoso central e pelo periférico. Existem vários tipos distintos de dor, que podem ser classificados como nociceptivos (ou dor fisiológica), inflamatórios e neuropáticos. A dor do câncer, em geral, exibe as

características tanto de dor inflamatória como da neuropática. A dor inflamatória normalmente contribui para a dor aguda pós-operatória, até a cicatrização da ferida. Ela tem início rápido e, em geral, a sua intensidade e duração estão relacionadas com a gravidade e a duração do dano tecidual. As alterações no sistema nociceptivo geralmente são reversíveis e a sensibilidade normal do sistema deve ser restaurada assim que o tecido cicatrizar. Entretanto, se a agressão nociva for grave, ou um foco de irritação em andamento persistir, então a dor persistirá, conforme é o caso em animais com doenças inflamatórias crônicas como a OA. Dor neuropática é aquela que se desenvolve após lesão a nervos periféricos ou ao sistema nervoso central (SNC). Segue-se uma pletora de alterações no sistema nervoso periférico, na medula espinal, no tronco cerebral e no cérebro, à medida que o nervo danificado dispara espontaneamente e desenvolve hiper-responsividade tanto a estímulos inflamatórios como àqueles normalmente inócuos (ver adiante). Em seres humanos, a dor neuropática manifesta-se comumente, por exemplo, como aquela em membro fantasma após amputação e na neuropatia pós-herpética. Portanto, é surpreendente que a dor neuropática não seja mais comumente descrita em animais, embora os clínicos estejam cada vez mais atentos ao seu potencial e ao reconhecimento da dor crônica. A dor persistente após cirurgia (dor pós-cirúrgica) permanece um problema em seres humanos, particularmente após cirurgia de grande porte, com uma minoria desses pacientes tendo dor crônica grave, em geral de natureza neuropática. O risco de dor pós-cirúrgica persistente em animais não foi quantificado, porém é provável que ocorra em alguns, com o potencial de ter um impacto adverso sobre a qualidade de vida. Há boa evidência, a partir de modelos de laboratório, indicando que a fisiopatologia dos diferentes tipos de dor, tais como a inflamatória, a neuropática ou a relacionada com o câncer, seja diferente entre si. Por exemplo, na dor inflamatória, foram relatados aumentos da substância P, do peptídio relacionado com o gene da calcitonina (PRGC, ou CGRP), da proteinoquinase Cγ e do receptor da substância P na medula espinal,5 com quedas significativas da substância P e do PRGC, e aumento da galanina e do neuropeptídio Y nos neurônios primários aferentes e na medula espinal de roedores com dor neuropática. Na dor relacionada com o câncer, não houve alterações detectáveis em qualquer desses marcadores em seus neurônios aferentes primários ou na medula espinal, embora tenham sido observadas outras alterações.

Fisiologia da dor A experiência consciente de dor aguda resultante de um estímulo nocivo é mediada por um sistema sensorial nociceptivo de alto limiar. Em animais sadios, dor ‘fisiológica’ é uma

designação usada para descrever a dor normalmente associada à presença de um estímulo potencialmente prejudicial. A fisiologia da dor foi revista em detalhes. Em suma, há estágios distintos na transmissão da informação nociceptiva e vias anatômicas nociceptivas também distintas.6 Os nociceptores representam as terminações livres de neurônios sensoriais primários. As fibras nervosas aferentes primárias que levam informação dessas terminações nervosas livres para sua localização central consistem em dois tipos principais: fibras C não mielinizadas e fibras A-δ mielinizadas. As fibras C não mielinizadas, ativadas por estímulos intensos, conduzem impulsos lentamente (cerca de 0,5 m/s) e, em condições normais, não têm descarga de fundo. Elas são amplamente polimodais, ou seja, respondem a modalidades diferentes de estímulo. Os limiares de estímulos das fibras C são mais altos que os de outros tipos de fibra sensorial aferente, requerendo, por exemplo, estimulação térmica nociva em temperaturas acima de 45°C para desencadear uma resposta.7 É importante notar que nem todas as fibras C são nociceptoras. Algumas respondem ao resfriamento e a impactos inócuos sobre a pele revestida por pelos.8 As fibras A-δ (do tipo I e do tipo II), em condições normais, transmitem informação tanto nociva como não nociva, ao passo que a informação sensorial não nociva é transmitida por fibras A-β mielinizadas. As fibras C não mielinizadas contribuem para a sensação de dor em ‘ardência lenta’, enquanto as fibras A-δ conduzem impulsos mais rapidamente e contribuem para a ‘pontada’ rápida da resposta de dor aguda. Também há uma população de chamados ‘nociceptores silenciosos’, que respondem ao calor, mas são mecanicamente insensíveis, provavelmente desenvolvendo sensibilidade quando mediadores químicos são liberados durante inflamação ou dano tecidual.9 As fibras C podem ser classificadas ainda como peptidérgicas (aquelas que liberam neuropeptídios, incluindo a substância P e o PRGC) e não peptidérgicas, que expressam o receptor neurotrofina c-Ret que é alvejado pelo fator neurotrófico derivado da glia. Os nociceptores também podem ser distinguidos de acordo com sua expressão diferencial de canais que conferem sensibilidade ao calor (TRPV1), ao frio (TRPM8), a um ambiente ácido (ASICs) e a uma variedade de irritantes químicos (TRPA1).10 Essas classes diferentes de nociceptores estão associadas a uma função específica na detecção de modalidades distintas de dor. Após traumatismo tecidual, ocorrem alterações nas propriedades dos nociceptores, de modo que as fibras A-β de grande diâmetro também podem transmitir ‘informação nociceptiva’. A ativação de receptores específicos e canais iônicos (presentes na maioria dos tecidos e órgãos) nas terminações nervosas periféricas não mielinizadas por estímulos químicos, mecânicos ou térmicos causa a iniciação de potenciais de ação que propagam o estímulo ao longo dos axônios das fibras nervosas aferentes primárias para os locais de sinapse no corno dorsal da medula espinal. Isso desencadeia a liberação de neurotransmissores,

incluindo glutamato e substância P, que ativam neurônios localizados na medula espinal. As fibras aferentes primárias que levam impulsos desses nociceptores periféricos podem ser divididas em dois tipos: fibras C não mielinizadas e fibras A-δ mielinizadas; as fibras A-δ fazem sinapse nas lâminas I e V da medula espinal e as fibras C em grande parte na lâmina II, também conhecida como substância gelatinosa. As fibras desses neurônios de segunda ordem projetam-se para várias áreas no cérebro, tanto ipso como contralateralmente com relação ao seu local de origem, incluindo a região cinzenta periaqueductal (CPA ou PAG) nos tratos espinomesencefálicos, bem como para a formação reticular (fibras espinorreticulares). Esse padrão de ativação fornece alças de retroalimentação (feedback) positivas e negativas pelas quais a informação relacionada com estimulação nociva pode ser amplificada ou diminuída. O input nocivo sensorial vindo da região da cabeça entra nos corpos celulares em repouso no gânglio trigeminal e daí a informação nociva é levada para o núcleo caudal (parte do complexo sensorial do trigêmeo). Os axônios descendentes de neurônios serotoninérgicos e noradrenérgicos provenientes do cérebro fazem sinapse com interneurônios inibitórios na medula espinal para modificar sua função e, em animais sadios, são considerados responsáveis pela ‘analgesia induzida pelo estresse’. Em estados dolorosos alterados, esse efeito pode ser impedido e pode haver desinibição local, com o potencial de aumentar a percepção da dor. Conforme mencionado antes, a informação de dor é transmitida para os centros cerebrais mais altos por meio de grandes tratos. O trato espinotalâmico, originário das lâminas I e V da medula espinal, projeta-se para o tálamo, o trato espinorreticular projetase para a formação reticular e o tálamo e o trato espinomesencefálico projetam-se para o mesencéfalo – a região CPA (PAG), o hipotálamo e o sistema límbico. A percepção de informação sensorial (processamento, integração e reconhecimento) ocorre em múltiplas áreas do cérebro. O sistema de ativação reticular (no tronco cerebral) desempenha um papel fundamental na integração da informação e nas respostas subjetivas à dor através de suas projeções para o tálamo e o sistema límbico, bem como nas respostas autonômicas, motoras e endócrinas. A CPA ou PAG é significativa na modulação inibitória descendente e facilitatória da informação nociceptiva por meio de suas conexões com a medula ventromedial rostral e a formação reticular medular. O tálamo libera informação para o córtex somatossensorial, que então projeta a informação para outras áreas, incluindo o sistema límbico. O córtex cerebral é o centro da experiência consciente de dor; ele exerce controle de cima para baixo e pode modular a sensação de dor. A dor central associada a uma lesão cortical ou subcortical, que não esteja associada a qualquer patologia detectável no corpo, pode ser muito grave. Considera-se que a dor consiste em três componentes: um sensorial-discriminatório (temporal, espacial, térmico/mecânico), um efetivo (subjetivo e emocional, que descreve o

medo, a tensão e a resposta autonômica, todos associados) e um avaliativo, que descreve a magnitude da qualidade (p. ex., pontada/contusa; leve/grave). É provável que qualquer experiência de dor de um mamífero tenha uma composição similar, embora nossa tendência seja focar apenas na intensidade da dor.

Fisiopatologia da dor | Dor clínica Demonstrou-se que procedimentos cirúrgicos de grande porte são acompanhados por uma sequência de eventos desagradáveis, que incluem dor, diminuição da função orgânica e permanência prolongada no hospital, apesar do uso rotineiro de analgésicos.11 Além disso, um potencial desfecho adverso e relativamente comum da cirurgia em seres humanos é o desenvolvimento de dor persistente ou crônica,12 que pode causar desconforto substancial em pacientes e tem efeitos adversos sérios sobre o estado psicológico, social e funcional, bem como na qualidade de vida.13 Não há dúvida de que o dano tecidual periférico resulta em maior ativação de nociceptores periféricos e um aumento na excitabilidade neuronal, que depende da atividade, induzindo sensibilização periférica e central.14 O sistema sensorial nociceptivo é um sistema plástico inerente e, quando ocorre lesão tecidual ou inflamação, a sensibilidade de uma região danificada é acentuada. Essas alterações contribuem para a hipersensibilidade pós-lesão, que se manifesta como um aumento da capacidade de resposta a estímulos dolorosos (hiperalgesia) e uma queda no limiar da dor de modo que estímulos não dolorosos podem tornar-se dolorosos (alodinia). Os marcos clínicos de sensibilização do sistema nociceptivo são hiperalgesia e alodinia. Hiperalgesia é uma resposta exagerada e prolongada a um estímulo nocivo, enquanto alodinia é uma resposta de baixa intensidade à dor, normalmente a um estímulo inócuo, como um toque ou pressão leve na pele. A hiperalgesia e a alodinia são consequências de sensibilização periférica e central.

■ Sensibilização A sensibilização periférica é o resultado de alterações no ambiente que banha os nociceptores terminais, em decorrência de lesão tecidual ou inflamação. Neurotransmissores e mediadores químicos liberados por células danificadas podem ativar diretamente o nociceptor ou sensibilizar os terminais nervosos, resultando em alterações de longa duração nas propriedades de nociceptores periféricos. Traumatismo e inflamação também podem sensibilizar a transmissão do nociceptor na medula espinal para produzir sensibilização central. Isso requer um período breve, mas intenso, de estimulação nociceptora (p. ex., uma incisão cirúrgica, input intenso após traumatismo tecidual ou lesão

nervosa). Como resultado, o limiar de resposta dos neurônios centrais diminui, suas respostas à estimulação subsequente são amplificadas e seus campos receptivos aumentam para recrutar fibras aferentes adicionais previamente ‘dormentes’ para a transmissão nociceptiva. Enquanto ocorre hiperalgesia primária na periferia, ocorre hiperalgesia secundária no SNC (e precede a sensibilização central a longo prazo).

■ Alterações periféricas Alterações mal adaptativas na expressão do canal iônico podem causar hiperexcitabilidade pós-sinalização de neurônios aferentes e seus axônios, resultando, assim, em dor.15 A atividade elétrica de neurônios aferentes primários é coordenada primariamente pela expressão e pela função de canais iônicos que definem o potencial de repouso da membrana, a iniciação do potencial de ação e a liberação do transmissor de seus terminais no corno dorsal.16 Eles incluem canais de sódio, de potássio e de cálcio, que funcionam de acordo com a voltagem, bem como canais de extravasamento e canais iônicos coordenados por ligando (p. ex., canal iônico sensível a ácido, canal receptor potencial transitório). Aqueles que foram implicados na sinalização da dor e fornecem alvos úteis para o desenvolvimento de novos analgésicos incluem, por exemplo, as isoformas NaV1.717 e NaV1.818 de canais de sódio comandados pela voltagem e os canais de cálcio do tipo T.15 Os canais de sódio comandados pela voltagem são responsáveis pelo disparo de potencial de ação em células excitáveis. São reconhecidos nove canais diferentes (NaV1.1 a NaV1.9), que compartilham uma estrutura geral comum, porém com perfis funcionais e farmacológicos diferentes. Os atuais bloqueadores dos canais de sódio inespecíficos usados como analgésicos estão com sua aplicação restrita para o tratamento da dor, porque inibem múltiplas isoformas de canal, incluindo aquelas que se expressam no cérebro e no coração, e, assim, induzem efeitos adversos. Até o momento, a pesquisa sugere que os canais de sódio NaV1.7, NaV1.8 e NaV1.9 parecem ser essenciais para a indução de sinais nos nociceptores periféricos, mas não são essenciais para a função de neurônios do SNC ou miócitos.19,20 O desenvolvimento de bloqueadores do NaV1.7 como agentes analgésicos potenciais está a caminho, com alguns resultados promissores.21 Os canais NaV1.8 foram ligados a neuropatias dolorosas em seres humanos, e estudos em roedores confirmaram a evidência de seu papel na dor neuropática.22,23 O NaV1.9 (inicialmente denominado NaN) expressa-se especificamente em neurônios do gânglio da raiz dorsal (GRD) e do gânglio trigeminal. Camundongos submetidos a nocaute do NaV1.9 exibem comportamento de dor inflamatória atenuado, sugerindo uma contribuição para a dor inflamatória.24 É necessário mais trabalho para elucidar as implicações do desenvolvimento de analgésicos visando a esses e outros canais iônicos periféricos.

Alterações centrais Muitos analgésicos usados atualmente têm um local espinal de ação, ressaltando o papel fundamental da medula espinal no processamento da dor. Os inputs nociceptivos podem desencadear um aumento prolongado na excitabilidade e na eficácia sináptica de neurônios nas vias centrais nociceptivas, o fenômeno de sensibilização central, que se manifesta como hipersensibilidade à dor (alodinia tátil, hiperalgesia secundária e acentuação da somação temporal). Estudos clínicos em uma variedade de estados mórbidos e lesões evidenciaram alterações na sensibilidade à dor em pacientes com fibromialgia, OA, distúrbios musculoesqueléticos, cefaleia, distúrbios da articulação temporomandibular, dor de dentes, dor neuropática, distúrbios de hipersensibilidade à dor visceral e dor pós-cirúrgica. A presença de hipersensibilidade em síndromes que se manifestam na ausência de inflamação ou uma lesão neural, junto com seu padrão similar de apresentação clínica e resposta a analgésicos de ação central, pode refletir uma fisiopatologia comum de sensibilização central.25 Muitos estudos em animais evidenciaram o desenvolvimento e a presença de hipersensibilidade à dor, incluindo em cães e gatos no pós-operatório26–28 e em muitas espécies animais com condições inflamatórias crônicas.29–33 Os mecanismos de sensibilização central foram estudados e envolvem uma variedade de interneurônios, ativação do receptor de N-metil-D-aspartato e influências descendentes do tronco cerebral, que podem ser tanto de natureza inibitória como excitatória. O disparo prolongado de nociceptores da célula C causa liberação de glutamato de dentro do corno dorsal da medula espinal, que age sobre os receptores ionotrópicos pós-sinápticos de glutamato [receptores do ácido N-metil-D-aspártico (NMDA) e do ácido α-amino-3hidróxi-5-metil-4-isoxazolpropiônico (AMPA)] e a família metabotrópica de receptores acoplados da proteína G (mGLuR).34 A liberação de glutamato pelos aferentes sensoriais age sobre os receptores do AMPA se o impulso for curto e agudo. No entanto, um estímulo repetitivo e de alta frequência das fibras C induz amplificação e prolongamento da resposta, mediante ativação do receptor do NMDA. Essa ativação acentuada do receptor do NMDA (p. ex., voltada para cima), facilitada pela liberação simultânea da substância P e do PRGC das fibras C,35 desempenha um papel nos estados de dor inflamatória e neuropática e resulta na ativação e na exacerbação de hiperalgesia secundária. Ocorrem alterações translacionais dos neurônios no corno dorsal da medula espinal,36 que podem contribuir para a transição de dor aguda persistente para dor crônica. Os receptores do NMDA também são necessários para via inibitória descendente do SNC na substância gelatinosa. Essa é a razão pela qual tal receptor desempenha um papel fundamental na indução e manutenção da dor. Todavia, por causa dos efeitos adversos dos fármacos atualmente disponíveis (cetamina, dextrometorfano e memantina) e da falta de

especificidade do receptor de NMDA do corno dorsal (subtipo NR2B), sua utilidade clínica é limitada, embora eles possam ser efetivos como parte de uma abordagem multimodal para o tratamento da dor crônica. Inflamação e lesão nervosa induzem alterações na transcrição nos neurônios do corno dorsal, que incluem a indução da ciclo-oxigenase 2 (COX-2), mediada, em grande parte, pela interleucina 1β.37 O SNC é um dos principais alvos para o controle da dor, pois a suprarregulação da expressão da atividade da COX-2 acarreta um aumento na sensibilização central e na hipersensibilidade à dor. Os produtos a jusante da atividade da COX-2 na percepção da dor estão ligados, em grande parte, aos efeitos da PGE2 sobre o SNC, a qual se liga aos subtipos EP1 ou EP3 do receptor de prostaglandina E nos neurônios sensoriais e induz uma gama de efeitos que reduzem o limiar para a ativação neuronal sensorial e aumentam a excitabilidade neuronal. Há um papel para os endocanabinoides na mediação das alterações centrais na atividade e na função neuronais.38 Os endocanabinoides, como as prostaglandinas, são derivados do ácido araquidônico; eles agem sobre os receptores de canabinoides (CB1 e CB2), que se expressam em todas as vias neuroanatômicas nociceptivas dos sistemas nervosos central (p. ex., PAG) e periférico (p. ex., nociceptores periféricos, células da raiz do gânglio dorsal). A ativação dos receptores reduz a liberação de neurotransmissores como o glutamato e eles estão envolvidos na modulação inibitória supraespinal descendente via o PAG e a medula rostral ventromedial.39 Os canabinoides têm propriedades antinociceptivas em modelos animais de dor aguda e exibem propriedades anti-hiperalgésicas e antialodínicas em modelos de dor neuropática. Há ligandos endógenos, a anandamida (ativa os receptores CB1 e CB2), o 2araquidonoilglicerol (2-AG) (ativa os receptores CB1 e CB2) e a palmitoiletanolamida (ativa os receptores CB2), que são produzidos nas células microgliais durante condições neuroinflamatórias. A COX-2 biotransforma a anandamida e o 2-AG em compostos prostanoides, razão pela qual, durante inflamação, quando a COX-2 está sub-regulada, os efeitos antinociceptivos dos endocanabinoides podem ser perdidos e seus metabólitos podem ter um efeito pró-nociceptivo. A ativação das células microgliais do SNC (funcionalmente equivalentes aos macrófagos periféricos) desempenha um papel central na dor.40 As células gliais são ativadas por substâncias liberadas dos terminais aferentes primários e dos neurônios de transmissão de segunda ordem (p. ex., óxido nítrico e prostaglandinas). As células gliais ativadas sub-regulam a ciclo-oxigenase 2 (COX-2) nas células do gânglio da raiz dorsal para produzir prostaglandina E2 e liberar outras substâncias neuroativas (citocinas), que aumentam a excitabilidade dos neurônios do corno dorsal e desempenham um papel no brotamento de axônios, na alteração da conectividade e na morte celular (p. ex., de

interneurônios inibitórios). Essa neuroplasticidade acarreta sensibilização central, com alterações no fenótipo dos neurônios do corno dorsal e em outros no SNC. Por isso é provável que a atividade persistente de células gliais desempenhe um papel no desenvolvimento de alguns estados de dor crônica.41

Dor crônica É discutível se o entendimento dos fatores associados à transição da dor aguda para crônica e das causas dos mecanismos associados a tal transição é crítico para o avanço de nosso conhecimento e nossa compreensão da dor. A dor crônica é responsável por um sofrimento imenso em seres humanos e espécies animais. O papel da dor aguda e da dor persistente como causas de dor crônica não está completamente evidenciado, mas é claro que há muitos fatores de risco associados que contribuem para essa progressão. Nos seres humanos, há um trabalho em andamento para identificar se alguns indivíduos têm uma propensão inerente maior do que outros para desenvolver sensibilização central e, se for assim, se isso aumenta o risco no desenvolvimento de condições com hipersensibilidade à dor e o desenvolvimento de dor crônica. As ligações entre dor aguda e crônica foram consideradas em uma revisão feita por Voscopoulos e Lema,39 que concluíram que a transição da dor aguda para crônica ocorre em etapas distintas, iniciadas pela presença de estímulos persistentes e intensos. Há uma forte evidência de que certos grupos de pessoas são mais vulneráveis ao desenvolvimento de condições dolorosas crônicas (para uma revisão, ver Denk et al.).42 Na maioria das condições, apenas uma proporção de pacientes terá dor crônica (p. ex., neuropatia diabética e dor crônica pós-cirúrgica).43,44 Parece haver uma variedade de fatores de risco, incluindo a genética, o gênero, a idade e eventos predisponentes, que podem estar associados a alterações da arquitetura neuronal e dos processos moleculares. É claro que uma história prévia de dor pode predizer o desenvolvimento futuro de dor, bem como eventos adversos na vida, como estresse e doenças depressivas. Um estudo feito com porcos recém-nascidos indicou que o estresse in utero pode alterar as respostas comportamentais imediatas dos leitões ao corte da cauda.45 O entendimento da vulnerabilidade genética em diferentes espécies animais ajuda a focalizar a pesquisa sobre a dor e as estratégias de prevenção.

Modelos de nocicepção e testes analgésicos Embora tenham sido feitos avanços significativos no entendimento básico do processamento e da modulação da dor nos últimos anos, ainda há grandes hiatos no nosso

conhecimento, em particular nos campos dos mecanismos anatômicos, bioquímicos e fisiológicos da dor. Ao mesmo tempo, a dor não aliviada em seres humanos continua sendo uma questão primordial de saúde, com aproximadamente 20% da população adulta nos países ocidentais sofrendo de dor crônica.46 Nos EUA, o custo anual em termos de tratamento médico e perda da produtividade em decorrência da dor é de 635 bilhões de dólares.47 A situação atual em animais quanto à adequação do tratamento da dor está menos bem documentada. Existem fármacos com eficácia comprovada para o tratamento da dor cirúrgica aguda em animais de estimação [p. ex., opioides e anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) liberados]. No entanto, com exceção dos AINEs, o repertório de fármacos aprovados para o tratamento da dor crônica (p. ex., aquela causada por doença articular degenerativa) em animais de estimação é muito limitado. A dor aguda e a crônica continuam a ser tratadas de maneira insuficiente em animais pecuários e espécies exóticas. É bem aceito que a pesquisa em animais é fundamental para um entendimento melhor da nocicepção e dos mecanismos da dor, bem como o desenvolvimento de analgésicos novos, tanto para seres humanos como para animais. Os estudos da dor em seres humanos geralmente enfocam a caracterização dos estados de dor, com poucos estudos investigando os mecanismos subjacentes da dor e, em seres humanos, os estudos são inevitavelmente limitados por restrições éticas. Embora, na espécie humana, o advento de técnicas avançadas de neuroimagem permita o estudo in vivo de padrões de atividade do SNC simultâneo ao autorrelato de percepção da dor, as considerações éticas que permeiam modelos induzidos de dor nos seres humanos são combinadas com as limitações tecnológicas atuais, o que significa que a neuroimagem não pode substituir a necessidade de modelos animais de dor.48,49 Além disso, a neuroimagem não tem resolução celular e sua resolução temporal é baixa; a ressonância magnética (RM) pode não distinguir entre níveis muito altos de atividade neuronal no cérebro (e, portanto, pode não ser sensível a intensidades diferentes de dor), porque o sinal dependente do nível sanguíneo de oxigênio (BOLD, de blood oxygen level-dependent) pode alcançar um teto. A neuroimagem não permite a interrogação de pequenas áreas do SNC, como o corno dorsal da medula espinal ou o sistema nervoso periférico, com alguma precisão, pois a técnica baseia-se na integração de sinais elétricos através de grandes regiões de amostragem, como o cérebro. Foram adotadas duas abordagens principais ao se estudar a dor em animais. A primeira consiste em estudar as respostas a estímulos nocivos breves (definidos como os que lesam tecidos normais ou ameaçam fazer isso) em animais inexperientes com relação a tais estímulos. Em outras palavras, estímulos nocivos fásicos breves térmicos, elétricos ou mecânicos são liberados para animais sadios e mede-se a magnitude necessária do limiar do estímulo para eliciar uma resposta (p. ex., teste do limiar nociceptivo), ou são estudadas alterações na atividade neuronal, no comportamento do animal ou nos sistemas corporais

durante a liberação do estímulo. A resposta a estímulos fásicos breves é comumente utilizada como a medida determinante no teste de um analgésico (i. e., como um componente integrante de modelos de dor), embora deva ser vista como tendo aplicabilidade limitada, em decorrência do estado de inexperiência prévia (normal) do sistema nervoso e da modalidade nociceptiva particular singular (p. ex., nociceptores térmicos), que difere da maioria das síndromes clínicas. A segunda abordagem consiste em induzir dor no animal liberando-se um estímulo nocivo tônico mantido que induz sensibilização periférica ou central e subsequentemente estudando os mecanismos da dor (p. ex., mediante o registro de alterações no comportamento ou na atividade neuronal) ou os testes com analgésicos. Neste capítulo, a expressão ampla ‘modelo de dor’ é usada com referência à segunda abordagem. Há um interesse em usar animais de estimação com condições mórbidas de ocorrência natural que causem dor (p. ex., OA espontânea em cães)50 para estudar os mecanismos da dor e avaliar a eficácia de analgésicos em seres humanos e animais. Entretanto, há desvantagens quando são usados indivíduos não humanos nos estudos com analgésicos, como a falta de retorno verbal sobre as ‘sensações’ de dor do paciente e a vulnerabilidade a vieses por parte dos observadores. Em qualquer modelo de dor, há três componentes distintos que precisam ser diferenciados.51 Primeiro, há o estudo do indivíduo (as variáveis incluem a espécie, a raça, o sexo e a idade); segundo, há o estímulo ou tipo de dano tecidual que é usado para iniciar a dor (p. ex., uma injeção de uma substância irritante em uma articulação versus a estimativa do limiar térmico); e terceiro, há a medida do resultado (p. ex., parâmetro de comportamento ou fisiológico) usada para o biomarcador substituto de dor. Recentemente, houve um interesse significativo na tentativa de melhorar os biomarcadores da dor em modelos animais com o reconhecimento de que pontos terminais tais como um abanar da cauda em resposta a um estímulo nocivo pode ser em grande parte reflexo e não um indicador de percepção cerebral mais alta. Isso tem relevância particular no desenvolvimento de modelos de dor para o desenvolvimento de fármacos analgésicos.

■ Limitações dos modelos animais atuais Apesar dos esforços significativos para a descoberta de fármacos analgésicos, houve sucesso limitado no desenvolvimento e na comercialização de novos analgésicos com eficácia e perfis aceitáveis de efeitos adversos em pacientes clínicos com dor. Os supostos novos analgésicos são submetidos à triagem e a testes pré-clínicos em modelos animais; portanto, é importante que o desempenho de um analgésico novo em modelos animais seja extrapolado com sucesso para o modelo humano de dor e pacientes clínicos. Embora os motivos para a falha de novos fármacos na interface pré-clínica e clínica sejam

multifatoriais, há concordância geral no sentido de que as limitações dos modelos animais atuais desempenham um papel principal no entrave do desenvolvimento de um analgésico.52 As limitações gerais reconhecidas de modelos animais de dor ocorrem no nível do animal de experimentação (indivíduo) e do ensaio de dor ou biomarcador usados para avaliar a dor. Animal de experimentação (individual) A maioria da pesquisa pré-clínica de dor é realizada em camundongos e ratos adultos jovens, sadios e intactos de laboratório de uma cepa específica. Embora isso seja útil como um método de triagem rápido e efetivo com relação ao custo para testes in vivo de moléculas candidatas, nem sempre pode ser extrapolado para a população clínica de pacientes com dor. Portanto, tem-se recomendado51 que os estudos da dor incluam grupos mais diversos e heterogêneos de animais de ambos os sexos e uma variedade de raças ou cepas. Ensaio nociceptivo Atualmente, dispõe-se de um grande número de ensaios nociceptivos (sobre a dor) que apontam para o modelo nociceptivo, inflamatório e neuropático de dor. Contudo, é imediatamente aparente que há uma discordância entre as alterações fisiopatológicas subjacentes induzidas em ensaios experimentais e a etiologia de condições clínicas dolorosas. Por exemplo, é comum fazer-se a ligadura de nervo como um modelo de dor neuropática, embora as doenças associadas a dor neuropática em seres humanos raramente resultem da ligadura completa ou compressão nervosa. Em geral, há anormalidades coexistentes que contribuem para a dor percebida, como a coexistência de neuropatia e inflamação. A maioria dos ensaios sobre dor não simula a complexidade dos estados clínicos de dor. Modelos induzidos de OA em ratos e camundongos, em geral, enfocam a articulação do joelho e são induzidos por inflamação estéril ou ruptura cirúrgica da articulação, levando a uma progressão rápida da OA que não considera o(s) efeito(s) do próprio envelhecimento sobre a dor percebida.53 Biomarcadores Até recentemente, a maioria dos biomarcadores de comportamento usados para medir o efeito de um analgésico em modelos animais baseia-se nos reflexos espinais evocados (p. ex., afastamento do membro a partir de um filamento de von Frey) ou comportamentos inatos como vocalização ou proteção que também podem ser observados em animais descerebrados.54 As respostas de retirada evocadas detectam hiperalgesia e alodinia (embora seja difícil distinguir as duas em animais) e, portanto, informam apenas sobre o

componente sensorial e discriminativo da dor, não sobre o componente emocional, que é crítico para a experiência de dor em seres humanos e animais, embora mais difícil de definir nos últimos. Ainda que muitos pacientes com dor neuropática crônica tenham hiperalgesia e alodinia, comumente relatam dor espontânea (i. e., não evocada) como o aspecto mais debilitante e desconfortável de sua condição.55 Portanto, a menos que sejam empregados biomarcadores que avaliam a dor espontânea em um ensaio, o efeito sobre a dor espontânea pode não ser detectado. Estão sendo desenvolvidos biomarcadores novos, sensíveis à dor espontânea, capazes de detectar alterações no comportamento associadas à emoção.

■ Modelos de dor passíveis de extrapolação Nos últimos anos, reconheceu-se a importância de abordagens translacionais na pesquisa animal, para fazer uma ponte entre a pesquisa básica com animais e a prática médica. Como tais, estão em andamento tentativas veementes para o desenvolvimento de ensaios e biomarcadores que possam ser extrapolados diretamente para modelos humanos experimentais de dor. Isso aumenta a probabilidade de que analgésicos efetivos em estudos pré-clínicos permaneçam eficazes em ensaios clínicos com seres humanos. Atualmente, há muito poucos ensaios que possam ser extrapolados, embora a aplicação intradérmica ou cutânea de capsaicina e o modelo de dor UVb sejam exceções notáveis. O uso de modelos de doença espontânea em animais de estimação é outra abordagem para melhorar a possibilidade de extrapolação dos ensaios sobre dor entre seres humanos e animais. Os estudos experimentais da dor em seres humanos baseiam-se em grande parte na psicofísica para quantificar a dor e, portanto, a eficácia de fármacos analgésicos, mas o autorrelato de dor é inerentemente subjetivo. Os biomarcadores usados comumente, como o reflexo de retirada (afastamento), também são vulneráveis à subjetividade do observador. Portanto, é comum uma variabilidade considerável dos resultados relatados entre pesquisadores e laboratórios. É evidente que, para melhorar os modelos de dor, são necessários biomarcadores objetivos extrapoláveis diretamente para seres humanos que reflitam a neurobiologia subjacente da dor percebida.

Ensaios nociceptivos e de dor Nas seções seguintes, o termo dor é usado para descrever todos os ensaios realizados em animais despertos; se o animal estiver anestesiado durante o ensaio, usa-se o termo nocicepção.

■ Testes fásicos de dor

Estímulos nocivos breves (fásicos) são amplamente usados para eliciar respostas destinadas ao estudo de vias nociceptivas e melhorar nosso entendimento da neurobiologia da dor em animais de experimentação, bem como para fins de analgesiometria (i. e., a medida de alterações nos biomarcadores para se estudar a ação dos fármacos analgésicos). Em termos gerais, o teste do limiar nociceptivo (em animais) e o sensorial quantitativo (TSQ) em seres humanos são designações usadas para descrever a aplicação de testes em que se utilizam estímulos fásicos breves. Os estímulos podem ser aplicados a animais que não os experimentaram ou àqueles com dor induzida, o que nos permite estudar as vias nociceptivas e a eficácia de um fármaco em animais normais e naqueles com a sensibilidade à dor alterada por causa da sensibilização central e/ou periférica. Para uma revisão completa dos testes fásicos de dor, ver Le Bars et al.56 Beecher57 foi um dos primeiros autores a definir critérios ideais para a produção de dor aguda experimentalmente, bem como algumas das características ótimas como as seguintes: •

• • • • • •

O estímulo é aplicado a uma parte do corpo onde as variações neuro-histológicas sejam mínimas, entre indivíduos diferentes, e o estímulo possa ser medido e associado diretamente às alterações que provocam dor Dados quantitativos podem ser colhidos em resposta a um dado estímulo em determinadas condições Há pouco dano tecidual no núcleo do limiar de dor, e o risco para o indivíduo é pequeno em altas intensidades Há uma relação entre a magnitude do estímulo e a intensidade da dor experimentada É possível fazer medições repetidas sem interferir nas subsequentes É fácil aplicar o estímulo e há um ponto terminal identificado com clareza O teste deve ser aplicável em seres humanos e animais.

Modalidades de estímulo Quatro modalidades de estimação nociva são comumente usadas nos testes nociceptivos fásicos agudos: elétrica, térmica, mecânica e química. As vantagens e desvantagens dessas diferentes modalidades usadas para gerar dor aguda são mostradas na Tabela 29.1. A estimação química é considerada em separado porque causa um estímulo nocivo mais lento, progressivo e inescapável. Os testes fásicos de uso comum em animais despertos estão descritos na Tabela 29.2 (estímulos térmicos), na Tabela 29.3 (estímulos mecânicos) e na Tabela 29.4 (estímulos elétricos). Local de aplicação do estímulo

Por motivos práticos, estímulos nociceptivos fásicos, em geral, são aplicados na pele para ativar nociceptores cutâneos, embora em alguns modelos também sejam aplicados em vísceras. A predominância de testes envolvendo nociceptores cutâneos reflete a facilidade de acesso à pele e a capacidade de estimular a pele com contenção mínima do animal. Em animais de laboratório despertos, geralmente usa-se a superfície plantar de uma pata posterior como local de estimação, porque é de fácil acesso para a aplicação de calor e estímulos mecânicos. Nesses animais, é importante estar atento às diferenças na sensibilidade cutânea entre a pele pilosa (encontrada na maior parte do corpo) e a glabra (o coxim plantar), pois isso altera a extrapolação dos testes de dor dos ratos para seres humanos.58 É comum usar-se a cauda como local de aplicação do estímulo nos testes de dor aguda em ratos (p. ex., estímulos nociceptivos térmicos). No entanto, a cauda também é essencial para termorregulação e o equilíbrio, o que pode influenciar o limiar de respostas medidas após estimulação.56 A estimulação nociva concomitante de mais de uma parte do corpo ao mesmo tempo recruta mecanismos inibitórios endógenos e confunde as medidas do limiar de resposta, de modo que é melhor evitá-la.59 Outra consideração é o potencial de estimulação repetida do mesmo local do corpo para causar sensibilização periférica e central, provocando assim uma redução no limiar com o tempo.

■ Medidas dos resultados Comportamento Animais de laboratório geram uma variedade de respostas comportamentais à liberação de estímulos nocivos fásicos classificados de acordo com as vias nociceptivas subjacentes que são ativadas. Os pontos terminais usados classicamente para cada ensaio serão detalhados a seguir, porém alguns comentários serão feitos aqui. Muitos testes fásicos baseiam-se na detecção de respostas motoras de retirada (afastamento); portanto, o comprometimento da função motora (p. ex., durante a administração de analgésicos que tenham efeitos concomitantes sobre a locomoção) confunde o limiar de resposta. É importante diferenciar respostas de retirada que sejam reflexas (determinadas predominantemente por mecanismos espinais) de comportamentos mais complexos como tentativa de fuga, evitação ou lambedura da parte do corpo onde o estímulo foi aplicado. A complexidade do comportamento de ponto terminal refletirá, até certo ponto, o recrutamento de mecanismos nociceptivos ou de dor subjacentes e, portanto, é comum que tenham uma sensibilidade diferente aos analgésicos.60 O ideal é que os comportamentos de ponto terminal usados nos testes nociceptivos sejam específicos, confiáveis, reproduzíveis e sensíveis à administração de analgésicos. Pontos terminais neurofisiológicos

As técnicas neurofisiológicas são cada vez mais importantes em estudos destinados a elucidar as vias ascendentes da dor e a representação cortical da dor.61–62 As técnicas que oferecem uma janela direta sobre a função do SNC, como a eletroencefalografia, dão uma visão única do processamento da dor e de como a ativação de vias nociceptivas resulta na percepção da dor em um animal consciente. O eletroencefalograma (EEG) registra a atividade elétrica cerebral a partir de eletrodos colocados em várias localizações no couro cabeludo (em seres humanos) ou na cabeça (em outras espécies).64 Ele consiste na soma da atividade elétrica de populações de neurônios juntos, com uma contribuição das células gliais. Os neurônios são células excitáveis com propriedades elétricas intrínsecas que resultam na produção de campos elétricos e magnéticos. Tais campos podem ser registrados a uma distância de suas fontes e são denominados ‘potenciais de campo distante’. Os campos registrados a curta distância de sua fonte denominam-se ‘campos próximos’ ou potenciais de campo local. A atividade registrada a partir da superfície do córtex é descrita como eletrocorticograma (ECoG), enquanto a atividade elétrica registrada a partir do couro cabeludo é o EEG. O EEG e o ECoG são ambos potenciais de campo distante. Um potencial evocado (PE) é gerado pelo registro do tempo de EEG ligado a um estímulo sensorial, como a apresentação de uma tonalidade auditiva. O cálculo da média do EEG em uma sequência de respostas permite extrair a atividade elétrica específica para o estímulo e apresentá-la em um gráfico de voltagem (amplitude) contra o tempo. Potenciais somatossensoriais evocados (PSEs) registrados a partir da dura-máter e de vários locais em animais em resposta a estímulos nocivos repetitivos são usados extensamente para estudar a dor e a analgesia. A Tabela 29.5 mostra as vantagens e limitações do EEG e dos PEs nos testes fásicos de dor. Tabela 29.1 Vantagens e desvantagens de diferentes modalidades de estímulo para estudar a dor aguda. Modalidade do

Características do

estímulo

estímulo

Vantagens

Desvantagens

1.

Quantificável

1.

Não é um estímulo natural

2.

Breve; início e fim controláveis

2.

Ativação indiscriminada de todos os

3.

Reproduzível

4.

Não invasivo

tipos de fibra (portanto as não seletivas A-δ e C) 3.

5.

Ativação direta de todas as fibras

Desvia dos mecanismos de transdução de nociceptores periféricos, o que

Desvia dos mecanismos de transdução dos nociceptores periféricos, portanto de uso limitado para o estudo dos

Elétrico

nervosas, desviando

pode ser vantajoso no estudo dos

assim dos mecanismos

mecanismos centrais de dor

de transdução no

6.

nociceptor periférico

7.

8.

mecanismos periféricos de dor 4.

Elicia um padrão sincronizado de

atividade neuronal que não replica

atividade neuronal que é suficiente

padrões de atividade que ocorrem nos

para gerar respostas reflexas

estados clínicos de dor

Respostas comportamentais

5.

magnitude do estímulo liberado – é

intensidade

preciso cuidado para padronizar o máximo possível a magnitude do

Extrapolado de seres humanos para

estímulo 1.

termossensíveis e

2.

A impedância do tecido determinará a

graduadas a estímulo de maior

animais

Ativação seletiva de 1. fibras cutâneas

Elicia um padrão sincronizado de

A temperatura da superfície cutânea pode ser medida facilmente, mas no

Estímulo natural

nível do nociceptor é mais difícil.

A maioria dos estímulos térmicos

Sensores colocados nos tecidos mais

Térmico: comentários

nociceptivas. A taxa de

libera frequências lentas de

profundos para medir a temperatura,

gerais

calor pode ser alterada

aquecimento de nociceptores e,

em geral, prejudicam a transferência

para ativar

portanto, ativa, seletivamente, fibras

de calor

seletivamente fibras A-

C; eficiente para revelar a atividade de

δ ou C

analgésicos opioides

2.

A hiperalgesia térmica é clinicamente menos problemática que a mecânica em pacientes com dor clínica

1.

As fontes de calor radiante convencionais, em geral, não têm potência para causar atividade neuronal sincronizada e, portanto, geram respostas reflexas

2.

Fontes de luz infravermelha nos comprimentos de onda gerados por fontes de calor radiante são mal

Fontes de calor

1.

radiante convencionais

2.

Térmico: fonte de calor

emitem luz no espectro

radiante

visível ou no

absorvidas pela pele Fácil de construir Seletivo; sem estimulação

3.

A variabilidade na magnitude do estímulo é determinada

concorrente de neurônios não nociceptivos (p. ex., neurônios

(a)

pelas propriedades de reflexão,

infravermelho

mecanossensíveis de baixo limiar)

transmissão e absorção da pele e

adjacente

o espectro eletromagnético emitido pela fonte de radiação (b)

pelas propriedades de condução da pele

(c)

pela temperatura inicial da pele

(d)

pela quantidade de energia calórica liberada para a superfície da pele

1. 1.

nociceptivos de baixo limiar, que Pode liberar uma inclinação de

exercem influência inibitória sobre os

aquecimento que cresce linearmente Receptores

com o tempo e pode ser controlada

Térmico: termodo de

termossensíveis por

precisamente

contato

meio das propriedades de condução da pele

2.

Ativação concomitante de nervos não

2.

mecanismos da dor A superfície do termodo, em geral, é plana e rígida, portanto não se adapta

Difícil de fixar em animais de

muito bem à superfície cutânea

laboratório, bastante usado em animais de estimação e pecuários

3.

A taxa de transferência térmica depende da qualidade do contato do termodo com a pele

Térmico: imersão em

1.

banho de água com

Rápido, embora não haja aumento instantâneo na temperatura da pele

termostato 1.

Absorção quase total da luz pela pele, qualquer que seja sua pigmentação ou a radiação a partir da superfície cutânea

2.

A energia térmica é mantida na superfície cutânea superficial, onde estão localizados os terminais nervosos termossensíveis, limitando o dano e, portanto, a dor em tecidos

mais profundos

Fonte de radiação infravermelha de

Térmico: laser de CO2

3.

1.

Caro para aquisição

É possível gerar um feixe altamente 2.

É preciso adotar precauções de

comprimento de onda

focado, com boa discriminação

segurança durante o uso (p. ex., as

longo

espacial

pessoas devem usar óculos protetores

Taxas muito rápidas de aquecimento

para evitar dano à retina causado pela

podem ser alcançadas, permitindo

luz do laser)

4.

início e fim rápidos do estímulo enquanto a temperatura visada é atingida 5.

Nenhum contato entre o laser e a pele é necessário, por isso não há ativação concorrente de nervos não nociceptivos mecanossensíveis

1.

Ativação de

Mecanorreceptores de baixo limiar

mecanorreceptores de

são sempre coestimulados, de modo

fibra A-δ e C (p. ex.,

que o estímulo não é específico

filamentos de von

1.

Hiperalgesia mecânica é uma dor 2.

Estímulos mecânicos convencionais,

crônica característica cardinal, de

por exemplo, os filamentos de von

A dor visceral pode ser

modo que o teste de sensibilidade

Frey, não permitem a liberação de

desencadeada por

mecânica tem relevância clínica

estímulos mecânicos breves com

Frey) Mecânico

início e fim rápidos

distensão mecânica (p. ex., distensão do cólon

3.

com balão)

Difícil de aplicar de maneira controlada em animais de laboratório

Tabela 29.2 Testes fásicos em que se utilizam estímulos térmicos.

Teste

Descrição breve

Espécies em

dos métodos,

que os

incluindo a

testes

Ponto final de

Ponto de

ativação de vias

costumam

comportamento

corte

nociceptivas e da

ser

dor

aplicados

Vantagens

Desvantagens

A cauda é o órgão predominante da termorregulação

Aplica-se calor radiante a uma

no rato

Balançar da cauda

pequena área da cauda; mede-se o

gerar o calor A emissão de calor

radiante e a

radiante pode ser

latência é curta.

controlada

Estará sujeito a

alterar a sensibilidade do ensaio. Uma célula fotelétrica, com cronômetro, desvia

controlados para

intensidade para

cauda’

latência para

e precisam ser

potência de alta

para balançar a

radiante)

balançar a cauda

quando se usa

balance, a ‘latência

ajustando-se essa

para o animal

reflexo espinal

antes que ela

da cauda (calor

afetam a latência

considerado um

tempo de reação

Teste de balançar

Os fatores que

Em geral

Roedores

controle por estruturas espinais

Simples de fazer Latência máxima (em geral estimada como sendo 4 a 5 vezes a observada em animais sem

Quando a

essa

frequência do

experiência)

aquecimento é

incluem:

Identifica com clareza a

um experimento

1.

resposta

A taxa de aquecimento

terminal; limita a (determinada pela variabilidade

potência da fonte

entre animais

de calor radiante)

em condições 2. experimentais

A área da cauda

controladas

proximal ou distal e

estimulada (lateral,

mais lenta, é

total)

provável que o ato

Propenso à

do animal de

habituação (i. e.,

balançar a cauda

aumento na

Ativação seletiva

envolva

latência) com

de fibras

estruturas neurais

intervalo

termossensíveis e

mais altas

encurtado entre

a lâmpada (fonte de calor) quando a cauda é retirada

nociceptivas

estímulos e aumento da intensidade do estímulo

Imersão da cauda

em um líquido quente para

Simples de fazer

produzir um aumento muito

Reflexos e

rápido e linear na

estruturas

temperatura da

neurais mais

cauda

altas geram o ponto terminal

Uma área maior da cauda é Teste de balançar

estimulada do que

do

Movimento súbito da cauda, que Roedores

da cauda

pode ser

no método do

(método da

calor radiante.

imersão)

Mede-se a latência

movimentos de

para o movimento

todo o corpo

comportamento Latência máxima (ver

A cauda é o órgão predominante da termorregulação no rato

Capacidade de alterar a

A latência será

temperatura da

modulada pela

água do banho e,

área de superfície

de retirada da

portanto, a

da cauda

cauda

sensibilidade do

estimulada

Pode-se usar um estímulo nocivo frio, em vez de quente

Macacos

associado a

anteriormente)

teste (p. ex., estudar analgésicos de eficácias diferentes)

Ativação seletiva de fibras cutâneas termossensíveis e nociceptivas Aplica-se calor radiante à superfície plantar de uma pata posterior. Mede-se

A temperatura

a latência para a

basal da pele irá

retirada da pata,

afetar a latência

uma célula

para a retirada

fotelétrica

cronometra o

Retirada

desvio da lâmpada

(afastamento) da

Teste de retirada

(fonte de calor)

(afastamento) da

quando a pata é

pata

afastada.

Roedores Cães

pata Resposta

Simples Latência

O animal se

máxima (ver

movimenta

anteriormente)

livremente, o

Denomina-se teste

comportamental

que o deixa

de Hargreaves

complexa

capaz de realizar

quando

as respostas de

combinado com

retirada

inflamação para

Com o animal movimentando-se livremente, o nível de fundo de atividade nos músculos flexores da perna varia com a posição do animal e isso pode alterar a

estudar

velocidade da

hiperalgesia

resposta de retirada

Ativação seletiva de fibras cutâneas termossensíveis e nociceptivas

Aplica-se uma fonte de calor a uma parte distinta do corpo do animal, por exemplo, a faixa

alguma contenção

coronária em

retirada para

para focar o calor

equinos, o flanco Calor radiante

É necessária Resposta de

em suínos. O calor

Equídeos Suínos

radiante pode ser gerado por uma

Cães

afastar a parte do corpo do estímulo, por exemplo,

na parte do corpo

Latência máxima (ver anteriormente)

Simples

selecionada A temperatura

fonte luminosa ou

levantamento da

basal da pele irá

um laser de CO2.

pata

afetar a latência

Ativação seletiva de fibras cutâneas termossensíveis e nociceptivas

para a retirada

Estimula todos os quatro membros e

O animal é

a cauda

colocado em um

simultaneamente,

espaço cilíndrico

portanto pode

fechado cujo

recrutar

assoalho consiste

Lambedura da

em uma placa

pata

mecanismos endógenos

metálica que é Vários pontos

temperatura constante (mais comumente por Teste da placa quente

um termodo)

Roedores

Outros

terminais de

comportamentos

comportamentos

complexos como

podem ter

Aves

fungar ou lavar-se

O tempo de reação

(adaptadas,

podem ser

(latência) para

por exemplo,

observados.

uma resposta

empoleiradas)

comportamental é medido

descendentes de

Salto

aquecida a uma

Respostas comportamentais complexas

Latência máxima (ver anteriormente)

sensibilidades diferenciais aos analgésicos (o que aumenta a sensibilidade do ensaio)

analgesia A complexidade das respostas comportamentais que varia entre os animais pode dificultar a definição de um ponto terminal

Ativação de fibras

integradas em

O tempo de

cutâneas

núcleo

reação diminui

termossensíveis e

supraespinal

com o aumento do teste no

nociceptivas,

mesmo animal, o

coativação de

que dificulta a

mecanorreceptores

obtenção de

de baixo limiar

níveis basais estáveis A natureza da resposta varia entre as espécies, o tempo da

Os termodos convencionais têm

resposta (precoce

Como a natureza

ou tardia) e o local

do ponto terminal

frequências baixas

de aplicação do

pode variar entre

(< 1°C/s) de

estímulo.

os animais, pode

aquecimento e

ser difícil O repertório de

ativam Termodo de contato fixado à pele do animal

seletivamente mais as fibras C

Equídeos

que as A-δ Gatos

sobre uma parte do corpo

A temperatura em

relativamente

que ocorre a

plana, para

resposta

garantir contato

comportamental é

mantido com a

a temperatura

mesma pressão

‘limiar’

Cães Aves Répteis

pontos finais

É relativamente

comportamentais

simples construir

pode ser

A temperatura

o equipamento

documentado,

máxima varia,

como, por

dependendo

exemplo, na

da espécie e do

torção da pele, na

tipo de

virada da cabeça,

termodo

movimento para

aplicado a um animal que esteja se movimentando livremente e é

tentar evitar o

bem tolerado

estímulo, Ativação de fibras

Pode ser

de aplicação do termodo, dependendo da espécie

do ambiente

membro).

de baixo limiar

Locais limitados

cutânea inicial e a

distal de um

mecanorreceptores

diferentes

a temperatura

aplicado na parte

coativação de

experimentadores

por fatores como

estímulo for

nociceptivas,

entre

limiar é afetada

perna (se o

termossensíveis e

dados entre eles e

A temperatura

levantamento da

cutâneas

comparar os

Ocorrem respostas reflexas e organizadas complexas

Ativação de uma gota de acetona ou spray de cloreto de etila em uma pata Frio (usado raramente nos testes fásicos em animais que nunca o

posterior para resfriamento localizado da pele Uso de banhos em água com gelo

Roedores

A resposta

Latência

comportamental

máxima (em

ao estímulo frio

geral estimada

(p. ex., retirada) é

como 4 a 5

tipicamente

vezes a

Respostas sensoriais anormais ao frio são uma característica

É difícil controlar a magnitude do estímulo frio, que

experimentaram,

(imersão da cauda

observada, como

latência em

comum de

é afetada pela do

mas de uso

ou da pata) ou de

o levantamento

animais sem

estados de dor

ambiente e pela

comum para

placas frias (p. ex.,

da pata, a latência

experiência

neuropática em

da pele do animal

avaliar dor

placa de

para erguê-la de

com relação ao

seres humanos

neuropática)

resfriamento de

uma placa fria)

frio)

Cães

Poltier) sobre a qual animal fica em posição quadrupedal

Tabela 29.3 Testes fásicos em que se utilizam estímulos mecânicos.

Teste

Descrição breve

Espécies

dos métodos,

em que os

incluindo a

testes

Ponto final de

ativação de vias

costumam

comportamento

nociceptivas e da

ser

dor

aplicados

Ponto de corte

Vantagens

Desvantagens

Os filamentos de von Frey são pelos plásticos de extremidade romba e vários diâmetros sobre aplicadores fixos. Eles são aplicados localmente (mais comumente na

Sistemas

superfície plantar de

manuais de

uma pata posterior

Resposta de

filamento de

em ratos) até se

retirada afastando

von Frey não

dobrarem, ponto em

do estímulo. Pode

empregam um

Fácil de

que exercem uma

ser acompanhada

‘ponto de corte’,

aplicar

pressão calibrada.

por

embora isso

Também podem ser

comportamentos

possa ser

Não existe um

Pode avaliar

protocolo tido como o ‘padrão ideal’, os dados gerados entre diferentes

usados para avaliar respostas a estímulos dinâmicos (p. ex., alodinia à von Frey

escovação)

Roedores Cão Equídeos

como lambedura

imposto pelo

hiperalgesia e

experimentos e

(p. ex., da pata)

experimentador

alodinia

laboratórios são

mecânicas

muito variáveis

em animais com dor inflamatória ou neuropática que surge da área

Da mesma forma

Bovinos

estimulada

existem dispositivos

Dispositivos automatizados permitem ter-se

(embora seja difícil distingui-las)

uma pressão

Há controvérsia apenas se a aplicação do estímulo elicia dor

pré-ajustada

Amplamente

ou sensações de

Registra-se o peso

máxima e

usado, há

nocicepção/mecânicas

eletrônicos de von

ou a pressão do

interromper a

grande

(p. ex., toque) apenas

Frey que fornecem

filamento de von

aplicação do

quantidade

uma escala contínua

Frey aplicado(a)

estímulo. Força

de dados de

de aplicação (p. ex.,

por um dispositivo

máxima (em

referência

astesiômetro

eletrônico

geral estimada

publicados

eletrônico)

necessário para

como de 4 a 5

eliciar a retirada

vezes a aplicada

automatizados e

O local de aplicação

Ovinos

A frequência da aplicação de força não é padronizada no teste de von Frey manual

em animais sem

em outros animais

experiência)

que não roedores é variável Fibras A-δ e C (dependendo do diâmetro do filamento), coativação de mecanorreceptor de baixo limiar Uma pata posterior é colocada entre um elemento fixo (p. ex., uma superfície

Limiar (em

ou ponto rombo) e

gramas) para o

um ponto rombo

aparecimento de

móvel que exerce

determinado

pressão controlada,

comportamento,

Imposto pelo experimentador, ele deve estar abaixo do nível em que a

Quando feito

Requer que o animal

Teste de RandallSelitto

em geral

que pode ser um

aplicação do

corretamente,

esteja contido em

reflexo de

estímulo causa

pode dar

uma posição não

um sistema de

retirada, com o

dano tecidual

leituras

natural, o que exige

contrapeso

animal

(em geral

reproduzíveis

treinamento e pré-

deslizante

contorcendo-se

estimada como

e confiáveis

habituação

ou vocalizando,

de 4 a 5 vezes a

dependendo do

aplicada em

protocolo

animais sem

proporcionada por

Rato

Predominantemente fibras A-δ, coativação de

experiência)

mecanorreceptor de baixo limiar

Calibradores de tensão são fixados com pinças rombas

Imposto pelo experimentador,

O animal é contido

ele deve estar

frouxamente, a

abaixo do nível

pinça é colocada em

em que a

Quando feito

aplicação do

corretamente,

Resposta de

estímulo causa

pode dar

retirada

dano tecidual

leituras

(em geral

reproduzíveis

estimada como

e confiáveis

torno da pata posterior e aplica-se Calibrador de tensão

uma força incremental até a pata ser retirada Predominantemente fibras A-δ (dependendo do tipo de sonda), coativação de mecanorreceptor de baixo limiar Foi descrita uma variedade de dispositivos.

Rato

de 4 a 5 vezes a aplicada em animais sem experiência)

A frequência da aplicação de força é variável, dependendo do experimentador, sendo necessário cuidado para haver padronização

Em geral, aplica-se força a uma parte do corpo com uma sonda ou outro instrumento de ponta romba que é avançada(o) contra a pele e tecidos, usando-se Dispositivos

dispositivos

mecânicos

pneumáticos que

usados em

podem ser

outras

controlados manual

espécies

ou eletronicamente

além de roedores

A ativação de fibra nociceptiva será

Resposta de retirada; é comum Cão Gato

aplicar os estímulos em um membro, por isso

Equídeos

o afastamento do

Galinha

mesmo é um ponto terminal comum

Os

experimentador,

dispositivos

ele deve estar

são fixados ao

abaixo do nível

animal de

em que a

modo a

aplicação do

permitir que

estímulo causa

ele se mova

O repertório de

dano tecidual.

livremente.

respostas

Latência

Bem

comportamentais

máxima (em

tolerados

pode mostrar que

geral estimada

pelos animais

sinaliza o ‘ponto

como de 4 a 5 vezes a força

A frequência

tipo de

aplicada em

de aplicação

instrumento/sonda;

animais sem

da força pode

é mais provável que

experiência)

ser controlada

determinada pelo

instrumentos pontiagudos ativem fibras A-δ, enquanto os de diâmetro maior e ponta romba ativem fibras C Coativação de mecanorreceptores de baixo limiar Tabela 29.4 Testes fásicos em que se utilizam estímulos elétricos. Descrição

Pode ser necessária

Imposto pelo

pré-habituação para que haja respostas que possam ser repetidas no mesmo indivíduo

terminal’ do teste, podendo levar a variabilidade entre experimentos diferentes

Teste

breve dos

Espécies

métodos,

em que os

Ponto final de

Ponto de

incluindo a

testes

comportamento

corte

ativação de

costumam

vias

ser

nociceptivas e

aplicados

Vantagens

Desvantagens

da dor Estímulos elétricos de

Sequência de respostas

intensidades

dependendo da

gradualmente

intensidade do

crescentes são

movimento

Aplicação

liberados em

reflexo/retirada,

de séries de

séries que

vocalização durante a

estímulos

duram centenas

estimulação, e

elétricos na

de

cauda e/ou

milissegundos,

persiste após o fim do

em uma

usando-se

estímulo. As respostas

pata

eletrodos

são organizadas em

subcutâneos ou

uma base hierárquica

via o assoalho de

dependente do nível

uma jaula em

de integração das vias

que o animal é

nociceptivas e de dor

Roedores

vocalização que

A estimulação concomitante

Intensidade

das patas e da

máxima da

cauda

corrente (estimada

Podem ser

em 4 a 5

eliciadas

vezes a

respostas

intensidade

comportamentais

em animais

Uso de choques isolados ou cadeias curtas de

vocalizações e

em que uma

mordedura dos

resposta

eletrodos que são

comportamental

organizados

definida é

Roedores

exibida (± latência para a

Macacos

hierarquicamente (ver anteriormente)

do piso) provavelmente

analgesia endógenos

comportamento, corrente limiar

liberada através

mecanismos de

experiência)

Sequência de torção, escape,

elétrica

recruta

sem a

colocado

Intensidade de

(estimulação

Intensidade máxima da corrente (estimada

Podem ser

em 4 a 5

eliciadas

vezes a

respostas

estimulação

resposta).

As vocalizações podem

intensidade

elétrica na

Estímulos são

ser registradas e

em animais

cauda

liberados via

analisadas

sem a

eletrodos

eletronicamente (p.

subcutâneos

comportamentais

experiência)

ex., espectro, tempo de reação, limiar para vocalização)

Alguma evidência indica que a maioria das fibras nervosas aferentes na polpa dentária são nociceptivas, permitindo Abertura reflexa

assim a ativação

dissináptica da boca,

seletiva de fibras

que pode ser

usando-se

registrada

estímulos elétricos. O Estimulação

paradigma

elétrica da

experimental

polpa

varia,

dentária

dependendo da fisiologia do dente que está

Roedores Cão Gato Macacos

eletromiograficamente a partir do músculo digástrico em animais despertos

Intensidade máxima da corrente (estimada em 4 a 5 vezes a

Coordena respostas

intensidade

comportamentais

em animais

como lambedura,

sem a

sendo

mastigação ou

experiência)

estimulado (i. e.,

alterações na

se é um em

expressão facial

erupção contínua, por exemplo, os incisivos de rato,

É fácil quantificar

Há polêmica

a resposta

sobre a

reflexa. Pode

seletividade do

revelar a

tempo elétrico

atividade de

para ativar

analgésicos não

fibras

opioides que não

nociceptivas

podem ser detectados pelo

Não é sensível

teste da placa

aos efeitos dos

quente

AINEs

ou tem crescimento limitado, por exemplo, gato e cão)

Reflexos nociceptivos de retirada (RNRs) são uma medida neurofisiológica estabelecida usada em modelos de roedores como medida direta da hiperexcitabilidade da medula espinal e, portanto, um biomarcador de sensibilização central.69,70 Também têm sido extrapolados para seres humanos, para quantificar a excitabilidade da medula espinal em pacientes com dor crônica, incluindo a causada por OA.71 O limiar de um RNR é definido como a magnitude do estímulo (p. ex., corrente elétrica) necessário para eliciar uma resposta eletromiográfica (EMG), lembrando que a sensibilização central causa diminuição nesse limiar. A somação temporal (amplificação da magnitude do sinal do EMG em resposta à estimulação nociva repetitiva) do RNR também é medida para sondar as alterações no processamento espinal nociceptivo. O uso dessas técnicas em roedores requer anestesia. Os limiares do RNR e a somação temporal foram medidos em cães e cavalos despertos usando-se estímulos elétricos e utilizados para caracterizar os efeitos antinociceptivos de analgésicos.72–78 O terceiro ponto terminal neurofisiológico importante usado nos testes fásicos de dor em animais de laboratório é o registro direto de atividade neuronal durante a aplicação de estímulo, por exemplo, registrado a partir de fibras sensoriais aferentes periféricas ou de neurônios do corno dorsal com o emprego de eletrofisiologia in vivo. Esses estudos, em geral, são realizados em anestesia terminal. Tabela 29.5 Vantagens e limitações das técnicas neurofisiológicas usadas para medir a dor em animais despertos. Técnica

Vantagens

Limitações Grandes quantidades de dados são geradas, o que pode

Flexível – o usuário pode manipular o

dificultar a interpretação

equipamento de registro para otimizar a

Os dados requerem processamento matemático

qualidade do sinal

complexo após sua coleta; portanto, não podem ser

Todos os dados do ECG são retidos e Eletroencefalograma

permitem uma análise abrangente e

simples

detalhada

interpretados imediatamente. A definição de um ‘ponto terminal’ para um estímulo crescente é, portanto, problemática

Os dados são registrados em tempo real, em vez do fornecimento de pontos de dados descontínuos

É necessário um entendimento básico do registro do ECG Eletrodos subcutâneos em forma de agulhas ou eletrodos superficiais, em geral, dão uma razão ruim entre sinal e ruído em animais despertos; a implantação dos eletrodos durais para registros com o animal desperto é invasiva É necessária uma média de sinal para gerar um PSE; portanto, é preciso repetir a aplicação de estímulos nocivos A amplitude do sinal do PSE é pequena em comparação

Potenciais evocados gerados a partir de

Potenciais evocados, por exemplo, potenciais somatossensoriais evocados (PSEs)

com o ECG ou o ruído elétrico

estímulos nocivos de alta intensidade dão

É necessária alguma habilidade com uma razão aceitável

informação específica sobre o

entre sinal e ruído

processamento neural de estímulos nocivos Os estímulos usados para gerar um PSE devem estimular A colocação visada de eletrodos em locais

apenas fibras nociceptivas ou o PSE irá incluir

intracerebrais específicos permite

componentes não nociceptivos. Isso é um desafio e só

identificar estruturas cerebrais envolvidas

tem sido conseguido com o emprego de calor radiante

no processamento neural da dor

gerado por lasers. Os potenciais evocados por laser

A interpretação da forma da onda do PSE é relativamente fácil

refletem predominantemente a atividade de fibras A-δ, em vez de fibras C Em decorrência das dificuldades para gerar um estímulo nocivo que está ligado ao tempo para permitir o registro do ECG, os PSEs são gerados mais comumente para calor (potenciais evocados por laser) ou apenas estímulos elétricos

■ Considerações éticas Sabe-se bem que os estudos em animais desempenharam, e continuam a desempenhar, um papel fundamental no avanço do conhecimento e do desenvolvimento de novas moléculas de analgésicos na pesquisa da dor. No entanto, a maioria dos estudos sobre a dor requer a liberação de estímulos dolorosos para o animal, e, portanto, estão associados a preocupações e limitações éticas que precisam ser respeitadas pela comunidade científica.

As diretrizes publicadas pelo IASP sobre o uso ético de animais na pesquisa da dor79 são atualizadas regularmente e constituem uma boa fonte de referência para quem trabalha nesse campo. Os pontos fundamentais das diretrizes com respeito à ética na pesquisa da dor estão resumidos da seguinte maneira: • •







Entender as questões morais e éticas e os argumentos associados ao uso de animais em experimentação Entender como projetar experimentos que minimizem o número de animais usados, maximizem as inferências e o registro de variáveis relevantes para a avaliação da dor experimentada por animais Saber como empregar um estímulo nociceptivo ou condição de intensidade e duração mínimas (testadas sobre o investigador, quando possível), de modo a encurtar a duração de um experimento, atendendo aos objetivos justificáveis e éticos da pesquisa Saber os motivos pelos quais animais não anestesiados devem ser expostos minimamente a estímulos nociceptivos dos quais não possam escapar, evitar ou interromper Saber os motivos pelos quais animais paralisados por meios farmacológicos são anestesiados ou tornados insensíveis mediante neurocirurgia.

Intensidade máxima do estímulo Todos os testes fásicos devem incorporar um estímulo de intensidade máxima que não é ultrapassado em qualquer teste e acredita-se que seja o limiar de intensidade para aquela modalidade de estímulo que é suficiente para causar dano tecidual duradouro. Isso é fundamental para realizar eticamente experimentos sobre dor em animais. É importante manter o bem-estar fisiológico do animal para assegurar a validade dos dados colhidos, pois o dano tecidual no local da estimulação induzirá sensibilização periférica e central que resultará em uma alteração na capacidade de resposta no teste de dor com o tempo. O intervalo de tempo entre a aplicação de cada teste repetido deve ser selecionado para evitar suprarregulação de vias nociceptivas. Esses fatores são particularmente importantes em testes que envolvem a administração de analgésicos, em que as respostas comportamentais ao ensaio podem ser ocultadas até que altas intensidades de estímulo sejam alcançadas.

■ Medição dos limiares nociceptivos de retirada em animais de estimação Nos últimos anos, foram publicados numerosos estudos em que foram utilizados limiares nociceptivos de retirada para investigar a eficácia analgésica de fármacos em animais de estimação80–84 e sondar a suprarregulação de processos nociceptivos em condições clínicas

que causam dor (p. ex., após cirurgia ou como resultado de doenças inflamatórias crônicas como a necrose do casco em ovinos).29,85–87 Sem dúvida, a medição de limiares nociceptivos de retirada para avaliar a eficácia de um analgésico tem inúmeras vantagens. Entretanto, o efeito de fatores que causam confusão precisa ser entendido para maximizar a qualidade dos dados coletados. Por exemplo, a temperatura do ambiente, a da pele e o nível de distração do animal podem afetar a medição dos limiares. Algumas vantagens da medição de limiares nociceptivos de retirada para quantificar a eficácia de um analgésico incluem as seguintes: • •



Ser aplicada a animais sem tal experiência para estudar o fármaco em teste nas espécies visadas Ser uma medida objetiva do efeito de um fármaco contra um estímulo nocivo padronizado, eliminando, assim, a variabilidade associada ao efeito medido do fármaco em modelo clínico de dor A metodologia é eticamente aceitável; um estímulo de intensidade máxima abaixo do nível exigido para causar dano tecidual previne dano duradouro.

Contudo, há várias limitações importantes associadas à medição de limiares nociceptivos de retirada que precisam ser considerados durante a interpretação dos dados: •

• •





A técnica baseia-se na detecção de um comportamento de ponto terminal que pode ser um reflexo (p. ex., torção cutânea) ou mais complexo (p. ex., movimento de todo o corpo afastando-se do estímulo). Ao medir respostas à administração de analgésico, é importante que a resposta de ponto terminal seja padronizada para reduzir a variabilidade nos dados colhidos É problemático relacionar uma alteração no limiar à eficácia clínica do fármaco com alguma certeza Em decorrência da necessidade de impor um estímulo de intensidade máxima, os dados são muito comumente censurados após a administração de um analgésico, de modo que as eficácias relativas de fármacos diferentes (em que a censura ocorre para mais de um fármaco) não podem ser determinadas Há um intervalo de tempo mínimo exigido entre testes subsequentes para prevenir sensibilização, que é problemática para estudos farmacocinéticos e farmacodinâmicos em que a estimativa frequente de limiares nociceptivos é vantajosa A medição de limiares nociceptivos de retirada em animais sem experiência permite medir o efeito analgésico do fármaco (p. ex., eficácia analgésica de opioides), mas não permite a avaliação dos efeitos anti-hiperalgésicos de fármacos como os AINEs, a menos que seja introduzido um foco inflamatório.

■ Modelos de dor | Testes tônicos Alguns modelos de dor induzem a dor criada por lesão tecidual ou nervosa e, portanto, eles estão associados à dor de média e longa duração. Modelos de doença de ocorrência natural de dor em animais são atraentes por causa da maior possibilidade de serem extrapolados para condições clínicas de dor em seres humanos; todavia, atualmente o número de condições em que há um modelo de dor espontânea bem caracterizado é limitado. Os modelos animais de dor devem satisfazer um número multidimensional de critérios de validade para serem considerados relevantes para a fisiopatologia humana, sendo fundamentais a validade facial, a mecanicista e a preditiva.88 A validade facial é a similaridade do que é observado no modelo animal com o humano, sendo considerada em termos de validade etológica (i. e., em comportamentos) e de biomarcador (i. e., a função do biomarcador está representando mecanismos neurobiológicos subjacentes). A validade mecanicista avalia a similaridade do mecanismo funcionando no modelo animal com o que se presume funcione a doença humana, referindo-se ao mesmo tempo ao mecanismo que é considerado causador de alterações em um biomarcador biológico e o mecanismo que é sensível à ação de agentes terapêuticos efetivos. A validade preditiva é o desempenho de um agente terapêutico no modelo animal, comparado com a eficácia terapêutica em pacientes clínicos. Sabe-se bem que os modelos animais atuais de dor não satisfazem completamente esses critérios. Modelos de dor induzida Foi desenvolvido um grande número de modelos de dor diferentes com o objetivo primário de aumentar nossa compreensão sobre o tratamento dos estados clínicos dolorosos. A maioria deles foi desenvolvida em roedores, mas alguns foram extrapolados para animais de estimação e pecuários. Os modelos de dor são amplamente divididos em inflamatórios ou neuropáticos, embora alguns mais novos desencadeiem mecanismos de dor inflamatória e neuropática, porque se sabe que muitas condições clínicas dolorosas em seres humanos têm tanto um componente neuropático como um inflamatório.89 Também foram desenvolvidos modelos de dor induzida para replicar algumas condições dolorosas em seres humanos, como a neuropatia diabética dolorosa e a neuralgia herpética.90–92 Usa-se um grande repertório de biomarcadores para ensaios de dor em modelos animais. Em termos amplos, esses biomarcadores podem ser classificados conforme envolvam (1) a medição de respostas fásicas a estímulos nocivos agudos em animais despertos (ver anteriormente); (2) medição das alterações no comportamento espontâneo; (3) avaliação do estado afetivo em testes de comportamento mais complexos; ou (4) medições conduzidas em animais anestesiados (p. ex., reflexos nociceptivos de retirada).

Modelos de dor inflamatória A maioria dos modelos de dor inflamatória envolve a injeção dos próprios mediadores inflamatórios ou de substâncias químicas que provocam uma resposta imune. As substâncias podem ser injetadas por via intradérmica ou subcutânea, intraperitoneal ou na cápsula articular. Os modelos comuns de dor inflamatória, suas vantagens e desvantagens são mostrados na Tabela 29.6. O reconhecimento de que a dor eliciada a partir de músculo tem características diferentes da dor cutânea levou ao desenvolvimento de modelos de dor muscular e hiperalgesia para o melhor entendimento dos mecanismos subjacentes ao desenvolvimento da dor muscular crônica. Os estímulos usados para eliciar a dor muscular incluem a injeção de solução fisiológica com pH baixo (5,2 a 6,9), carragenano (princípio ativo do musgo-de-irlanda), citocinas (p. ex., fator alfa de necrose tumoral e interleucina 6), óleo de mostarda, zimogênio e solução fisiológica hipertônica. Tabela 29.6 Modelos comuns de dor inflamatória cutânea. Nome

Descrição do modelo

Espécie

Biomarcador

Vantagens

Desvantagens

Injeta-se formalina a 0,5 a 0,15% (formaldeído a 37%)

A neurofisiologia

por via intradérmica (em roedores, na

Alteração em

superfície dorsal de

comportamentos

uma pata anterior). A

complexos

injeção inicialmente

(lambedura,

ativa nociceptores

levantamento da

(fase 1, 3 min após a

pata). A reação

injeção), a fase tardia

comportamental é

(fase 2, 20 a 30 min

bifásica,

Teste da

após a injeção)

acompanhando a

formalina

envolve um período

Roedores

natureza bifásica dos

de sensibilização

mecanismos

durante o qual

neurofisiológicos

ocorrem fenômenos

subjacentes que

inflamatórios

evocam dor

(incluindo edema da

Aplicação de testes

é bem entendida Bastante usado como ensaio de dor, dispõe-se de um grande banco de dados para descrever os efeitos de analgésicos diferentes no modelo de formalina A dor é de curta duração (1 a 2

Difícil quantificar os comportamentos relacionados com dor, portanto a avaliação do resultado pode ser variável entre experimentadores Apenas modelo de dor inflamatória de curta duração

fásicos de dor

pata). Considera-se

h), embora a inflamação

que as fases 1 e 2 Volume da pata

sejam desencadeadas

possa persistir

por mecanismos

por um período

periféricos; a fase 2

maior

envolve sensibilização central

Alterações no Roedores

O local de injeção

comportamento

(comumente

pode permanecer

associadas a dor

injetado por via

Modelo de dor

espessado por muito

inflamatória, em

intradérmica

bem

tempo, impedindo

geral menos bem

na pata)

estabelecido

que se repita o teste

definida que após

O carragenano é feito de polissacarídios sulfatados extraídos das sementes da alga marinha vermelha. É Carragenano

injetado para eliciar

injeção de formalina

inflamação localizada

Gatos, cavalos

mediante a indução

(modelos

de uma resposta

Aplicação de testes

teciduais em

imune e ativação de

fásicos de dor

jaula)

nociceptores

Não elicia uma

no mesmo local resposta imune

Difícil solubilizar;

sistêmica

substância espessa viscosa que pode dificultar a injeção

Volume da pata

Suspensão de Mycobacterium butyricum ou Mycobacterium tuberculosum mortos pelo calor em um adjuvante As doses usadas em

Roedores

Adjuvante

modelos de dor em

(comumente

completo de

roedor produzem

injetado por via

Freund (ACF)

inflamação cutânea,

intradérmica

que surge em

na pata)

minutos a horas e atinge o auge em 5 a 8 h, com duração de

Ver carragenano

Ver carragenano

Ver carragenano

aproximadamente 24 h, mas a hiperalgesia pode persistir por 1 a 2 semanas Elicia dor inflamatória ao ativar um receptor potencial transitório de canal de cálcio, da subfamília A (TRPA1), Óleo de

um canal iônico

mostarda

excitatório de

Roedores

Ver carragenano

Roedores

Ver carragenano

nociceptores aferentes primários. Em geral, aplicado topicamente na pele; os efeitos são de curta duração Um glicana das paredes celulares de Zimogênio

levedura; ativa nociceptores aferentes primários

Injeta-se uma suspensão de caolim SC; pode ser misturado com o Caolim

carragenano A duração da dor inflamatória é de cerca de 1 a 2 dias

Gatos Roedores

Aplicação de testes fásicos de dor

Modelo de dor bem estabelecido

Ver carragenano

Componente pungente de pimentas, que ativa o receptor potencial transitório do tipo vaniloide (TRPV1), um cátion

Pouca relação entre

termossensível nos

os mecanismos de dor

terminais

subjacentes após

nociceptores. Usada

capsaicina e estados

para estudar

Pode ser

inflamação

extrapolada

neurogênica e hiperalgesia. A injeção intradérmica Capsaicina

de capsaicina resulta em uma reação exacerbada

Modelo de dor Roedores Seres humanos

Aplicação de testes

bem

fásicos de dor

estabelecido; os

Área de exacerbação

mecanismos neurofisiológicos

clínicos dolorosos A aplicação repetida de capsaicina resulta em dessensibilização de nociceptores a ela e a outros estímulos nocivos (o que é reversível)

(inflamação

subjacentes

neurogênica),

estão bem

Em altas

alodinia e

descritos

concentrações, a

hiperalgesia nas

capsaicina causará

áreas a partir das

toxicidade neuronal

quais se estende

sensorial e morte

além do local de

celular

injeção A duração da hiperalgesia térmica e mecânica é dependente da dose, mas pode ser até de 24 h Desencadeia Aplicação de testes

mecanismos de

Invasiva

Incisão cutânea

fásicos de dor

Usa-se uma incisão cutânea cirúrgica

Roedores

para gerar

Alterações comportamentais

inflamação

associadas à dor inflamatória

dor inflamatória

Não pode ser repetida

que são

no mesmo animal

idênticos aos desencadeados

É preciso cuidado para

por traumatismo

garantir a assepsia

cirúrgico Animais que seriam submetidos à cirurgia de qualquer maneira,

Gatos

Cirurgia (p. ex., castração e ováriohisterectomia)

Animais submetidos à castração rotineira

Cães Equídeos

são recrutados para estudos sobre

Cervos (p. ex.,

analgesia

remoção dos

portanto está de Comportamento

acordo com os princípios

Aplicação de testes

experimentais

fásicos de dor

de redução

EEG e PE’s

Modelo de dor

chifres

clinicamente

aveludados)

relevante para permitir o estudo de

A magnitude do estímulo cirúrgico pode variar, dependendo de fatores do paciente e da habilidade do cirurgião Requer o recrutamento do caso (i. e., consentimento de proprietário)

mecanismos de dor e da eficácia de analgésicos

Exposição a uma

Pode ser

As características da

fonte luminosa de

extrapolada

pele afetarão a

UVb para causar uma Irradiação UVb

Ratos

magnitude da lesão

Aplicação de testes

Induz

fásicos de dor

induzida por uma

sensibilização

exposição

caracteriza por

central e

padronizada à

inflamação estéril

periférica

radiação UVB

queimadura localizada que se

Suínos

A artrite é uma das condições crônicas de saúde mais prevalentes e uma causa de incapacidade em seres humanos. Portanto, a dor da artrite há muito tempo é uma das principais áreas de pesquisa na ciência biomédica, dispondo-se de diferentes modelos animais de artrite para avaliação de dor articular e dos efeitos de analgésicos. Comumente a articulação do joelho (soldra) é estudada em modelos de OA, os quais incluem a OA espontânea em raças específicas de camundongos e cobaias, injeções intra-articulares de compostos para induzir inflamação articular ou ruptura cirúrgica da articulação. Os modelos comuns de artrite (OA e artrite reumatoide) e suas vantagens e desvantagens estão resumidos na Tabela 29.7. Os métodos comuns de avaliação de dor articular artrítica no joelho estão na Tabela 29.8, incluindo suas vantagens e desvantagens. Modelos de dor neuropática A dor neuropática caracteriza-se por anormalidades sensoriais como sensação anormal de desconforto (disestesia), hiperalgesia e alodinia. Foi desenvolvida uma bateria de modelos de dor neuropática em animais, na tentativa de simular a etiologia diversa das condições clínicas de dor neuropática em seres humanos. Esses modelos causam sofrimento substancial ao animal, tanto em termos da gravidade como da duração da dor. Como tais, pontos terminais predefinidos, em geral, são impostos e podem ser usados para indicar quando a eutanásia do animal é necessária. Esses pontos terminais costumam ser relativamente cruentos e relacionam-se com o estado geral de saúde do animal, por exemplo, perda de peso. Não há modelos de dor neuropática que possam ser extrapolados porque o dano nervoso necessário para causar essa dor é irreversível. Na Tabela 29.9 há uma visão geral das características de modelos de dor neuropática usados comumente, com suas vantagens e desvantagens. Até recentemente, era mais comum avaliar a dor neuropática nesses modelos mediante a aplicação de testes fásicos de dor e a avaliação do comportamento. Para uma discussão adicional, ver a seção Avaliação da dor clínica na medicina veterinária. Modelos de dor visceral A dor visceral, em particular a que surge do intestino, é um dos motivos mais comuns para que pessoas procurem assistência médica e uma área de necessidade clínica não atendida. Foram desenvolvidos modelos de dor visceral em animais para entender melhor a neurofisiologia subjacente das vias da dor visceral, bem como as desregulações da hipossensibilidade visceral que ocorrem nos distúrbios intestinais funcionais, como a síndrome do intestino irritável (SII). No entanto, é um grande desafio modelar a SII por ser um distúrbio funcional e, portanto, não ter uma patologia significativa que a justifique e em que se possa basear um modelo animal. Uma visão geral dos métodos usados para induzir

dor ou sensibilidade visceral em animais é fornecida na Tabela 29.10. Esses métodos são divididos de maneira ampla em estímulos fásicos que causam estimulação visceral transitória (p. ex., distensão colorretal) e métodos que causam dor tônica induzindo sensibilização de vísceras (p. ex., injeção de substâncias irritantes no peritônio ou sensibilização do intestino via instilação de substâncias irritantes no lúmen intestinal). Usase uma variedade de medidas diferentes do resultado para avaliar a dor visceral em animais, desde o comportamento em animais despertos aos reflexos evocados e respostas fisiológicas. Tabela 29.7 Modelos de osteoartrite e artrite reumatoide. Nome

Descrição do modelo

Espécie

Vantagens

Desvantagens

Início e progressão de

Doença bilateral da articulação OA espontânea

do joelho que envolve

em raças

degeneração da cartilagem,

específicas de

esclerose subcondral e cistos

cobaia, por

ósseos

doença previsíveis

precisam ser mantidas por um Cobaia

exemplo, Hartley albina

As raças de cobaia são caras e

A patogenia não é

Muitas

longo período antes que se

similaridades

desenvolvam as alterações

com a OA

graves da OA (até 2 anos)

humana na

completamente entendida

progressão da doença

OA espontânea em outros animais de

Ver acima, embora a progressão Hamster Ver acima

Ver acima Camundongo

laboratório

da doença seja mais rápida em animais com vida mais curta, como camundongos Dependendo do tamanho do

Traumatismo induzido cirurgicamente na articulação, causado pela criação de uma OA induzida cirurgicamente

Rato Camundongo

laceração em menisco ou meniscectomia. Ocorrem alterações progressivas na articulação do joelho com

Cobaia Cão

animal (espécie), a cirurgia Reproduzível.

pode ser um desafio técnico

Simula alterações

A progressão rápida das lesões

patológicas e a

após a cirurgia, portanto, é

dor na OA em

insensível na detecção de novos

seres humanos

compostos com efeitos

relativa rapidez após cirurgia

protetores contra o

Coelho

desenvolvimento de OA Induz degeneração da cartilagem por inibição da glicólise aeróbica, que destrói Injeção intra-

condrócitos. A fisiologia articular

articular de

caracteriza-se por necrose de

Pode ser induzida

A patologia

iodoacetato

condrócitos, resultando em

em muitas espécies,

induzida é

monossódico

diminuição da espessura da

comumente usada

similar à da OA

(IAM) no

cartilagem e fibrilação da

em ratos

humana

joelho

superfície dela, separação de sua

O desenvolvimento de alterações artríticas leva várias semanas

parte necrótica do osso subjacente e exposição do osso subcondral Desenvolve-se inflamação Injeção de caolim e carragenano

articular

na articulação, para provocar

rapidamente

uma monoartrite asséptica

que persiste

Monoartrite

dependente do uso, com dano à

inflamatória

cartilagem, inflamação da

(articulação do

sinóvia e exsudato de líquido

joelho)

sinovial. Outros irritantes que

Predominantemente

por semanas

Apenas simula a fase

rato e camundongo,

Grande banco

inflamatória aguda da OA

gato, primatas

de dados

humana

podem ser injetados incluem o

relacionado

zimosano e o adjuvante

com o uso do

completo de Freund (ACF)

modelo em animais de laboratório

Poliartrite induzida pela injeção de adjuvantes imunogênicos (p. ex., ACF). Bem

Artrite

O adjuvante, em geral, é

Predominantemente

reumatoide

injetado por via intradérmica ou

rato e camundongo

estabelecido e

A natureza sistêmica da artrite pode afetar a condição geral e o bem-estar dos animais, além de

subcutânea no coxim plantar ou

reproduzível

confundir a avaliação da dor

Ver acima

Ver acima

Ver acima

Ver acima

na base da cauda para gerar uma poliartrite

Artrite adjuvante imunogênica Artrite

induzida pela injeção

reumatoide

intradérmica de proteínas

Rato Camundongo

derivadas da cartilagem Artrite adjuvante não imunogênica induzida pela injeção de compostos que não contêm peptídios ligados ao Artrite

complexo de

reumatoide

histocompatibilidade principal,

Rato Camundongo

mas envolve ativação de células T, por exemplo, óleo mineral injetado por via intradérmica ou subcutânea Sinovite aguda Rato Injeção, no joelho, de cristais de urato monossódico dissolvido Artrite gotosa

em solução fisiológica ou ácido úrico ou suspensa em óleo mineral, para causar inflamação

Camundongo

gerada em questão de horas e que se resolve

Cão Galinha

aguda Gato

rapidamente (em 3 a 7 dias) Sem sinais de doença sistêmica

Comportamento Foram desenvolvidos pontos terminais de comportamentos específicos da espécie para quantificar a nocicepção visceral. O comportamento do rato foi graduado durante distensão

colorretal,93 em que se dá uma pontuação dependente de as respostas comportamentais estarem limitadas a um movimento breve da cabeça seguido por imobilidade (escore 1) ao arqueamento do corpo e levantamento de estruturas pélvicas (escore 4). Também se usa a hiperalgesia somática referida associada a um estímulo nocivo visceral como critério para a dor visceral, avaliado, por exemplo, pela aplicação de filamentos de von Frey ao abdome, com a pontuação das respostas comportamentais subsequentes. Por causa da prevalência de cólica como manifestação clínica de dor visceral no equino, são usados numerosos métodos para avaliar a dor visceral nessa espécie após distensão visceral. Os comportamentos de ponto terminal incluem a expulsão do balão do reto (distensão colorretal) associada a arqueamento do flanco94,95 e sinais de dor abdominal como bater as patas no piso, escoicear o abdome e levantar os membros posteriores após distensão duodenal.96 As contorções (i. e., contrações abdominais estereotipadas, movimentos de todo o corpo, torção dos músculos dorsoabdominais, redução na atividade motora e incoordenação motora) são evocadas em resposta à administração intraperitoneal de irritantes e usadas coletivamente como a medida do resultado do teste da contorção abdominal (roedores). Os movimentos são considerados respostas reflexas e quantificados em termos de sua frequência. Entretanto, a frequência de cãibras diminui espontaneamente com o tempo e, portanto, o teste da contorção não é usado para avaliar a duração da ação de analgésicos hipotéticos. O número de cãibras também é extremamente variável entre cada animal. Contração muscular abdominal Um ponto terminal comum nos estudos da nocicepção visceral em roedores é a contração dos músculos abdominais em resposta à distensão colorretal, em geral registrado com a eletromiografia tanto em animais despertos (mediante a implantação prévia das derivações da EMG) como anestesiados.97,98 Há uma correlação entre a pressão da distensão e o sinal eletromiográfico integrado ou o número de descargas em espícula durante o período de distensão. As respostas eletromiográficas nos músculos do pescoço também podem ser registradas como uma medida da resposta nociceptiva à distensão gástrica. Para evitar a implantação das derivações da EMG em músculos, a contração abdominal após distensão do balão pode ser detectada amplificando-se as alterações rápidas na pressão que são induzidas no balão. Respostas fisiológicas Em ratos despertos, a distensão visceral causa elevação na pressão arterial e taquicardia, enquanto, durante o sono ou anestesia em geral, observam-se uma resposta depressora e bradicardia (embora a magnitude dessa resposta seja modulada pelo anestésico usado).

Atividade neuronal A abordagem mais direta para avaliar os efeitos da distensão visceral é o registro da atividade neuronal de neurônios aferentes ou secundários em animais anestesiados durante estudos eletrofisiológicos agudos. Respostas neuronais mais demoradas também são avaliadas medindo-se a expressão de c-fos em áreas diferentes da medula espinal em resposta à distensão mecânica. Potenciais viscerais evocados após distensão colorretal são usados para avaliar a nocicepção visceral em ratos despertos.100.101 Modelos de doença de ocorrência natural O estudo de doenças espontâneas de ocorrência natural em animais tem grande potencial, porque a etiopatogenia subjacente da dor mais provavelmente replica os mecanismos que resultam em estados clínicos de dor em seres humanos. Com a exceção da OA espontânea em algumas espécies de cobaias e roedores, os modelos de doença espontânea são mais relevantes para grandes animais. A OA espontânea no cão é um modelo de uso comum e apropriado (embora talvez não seja o melhor) para extrapolação e estudos comparativos baseados no tamanho do animal, em sua anatomia, nos mecanismos de doença, nas similaridades clínicas e na resposta ao tratamento. A OA em cães ocorre como resultado de traumatismo, alterações degenerativas e uso excessivo, da mesma forma que em seres humanos.102 Também há interesse em explorar a OA de ocorrência natural em gatos como um modelo que possa ser extrapolado para seres humanos. No entanto, com a exceção da OA em cães, existem outros poucos modelos de doença de ocorrência natural em animais que sejam validados como modelos de dor passíveis de serem extrapolados para condições clínicas de dor em seres humanos. A dor do câncer ósseo (em cães)103 e a causada pela cistite idiopática em gatos104 são exceções notáveis. O uso de doenças de ocorrência natural em animais de estimação requer a disponibilidade de medidas validadas dos resultados para avaliação da dor (p. ex., Canine Brief Pain Intervention).103,105,106 Tal abordagem supera as considerações éticas associadas à criação de dor experimental em animais. Contudo, as limitações éticas incluem (1) restrições éticas impostas pelo estudo de cães de estimação e (2) falta de homogeneidade dos processos mórbidos. Os modelos de animais de estimação provavelmente são mais úteis como uma etapa intermediária para o estudo dos mecanismos da dor ou a eficácia de fármacos analgésicos que ficam entre os modelos pré-clínicos em roedores e os estudos experimentais em seres humanos. Tabela 29.8 Métodos comuns de avaliar a dor na articulação do joelho na artrite.

Nome

Descrição breve do

Espécies comuns

biomarcador

em que o resultado medido é utilizado

Vantagens

Desvantagens

A distribuição de peso entre as

Sustentação de peso nas patas posteriores

duas patas posteriores é medida

Requer contenção do

como a força exercida por cada

animal e não avalia a

membro posterior sobre uma

distribuição do peso

placa transdutora no piso durante determinado período. O peso sustentado em cada membro

Simples Roedores Pode ser extrapolada

posterior é expresso como a

nos quatro membros, como ocorre com a artrite do membro posterior

porcentagem do peso corporal. Um déficit na sustentação do

Medida indireta da

peso no membro acometido é

dor no joelho

tomado como indicador de dor Simples Não requer contenção Roedores A carga de peso é detectada

Cão

do animal, embora

É necessário que os

geralmente seja

animais se

necessária uma

movimentem, o que

Sustentação de

enquanto o animal está

peso em todas

caminhando nos quatro pares de

Avaliação de artrite

velocidade constante

pode ser afetado pela

as quatro patas

placas sensoriais de força sobre o

em outras

de caminhada para

motivação (e está

piso de uma passarela fechada

articulações em

facilitar a

integralmente ligado

galinhas, gato, cavalo

interpretação dos

à dor)

dados Pode ser extrapolada As escalas subjetivas são inerentemente variáveis e não Escalas subjetivas são Foram quantificados comportamentos estáticos e Análise da

dinâmicos usando-se escalas de

postura e da

gradação subjetivas

marcha

validadas

simples de usar e de

Pode ser difícil

Roedores

baixo custo

interpretar a análise

Animais maiores,

As técnicas de análise

incluindo cão, gato,

da marcha são

da marcha e é preciso que o animal caminhe a uma velocidade

A análise da marcha usa técnicas

cavalo, galinha

objetivas

constante. A vontade de andar é afetada

cinemáticas

Pode ser extrapolada

pela motivação (e está integralmente ligada à dor)

Dispõe-se de sistemas automatizados (p. ex., biotelemetria, caixas de atividade para roedores ou vídeo contínuo de comportamento e padrão de reconhecimento) Roedores Mobilidade espontânea

Acelerômetros montados em

Objetivo. Usa sistemas de velocidade

coleiras para rastrear o

Animais maiores,

automatizados e

movimento com o tempo ao

incluindo cão, gato,

simplifica a análise

longo de três eixos

cavalo, galinha

dos dados

Avaliação da vontade de fazer tarefas espontâneas, por exemplo, cães com vontade de subir escadas ou gatos pularem de uma superfície elevada Sensibilidade

Ver testes fásicos da dor (Tabelas

mecânica ou ao

29.2 e 29.3)

calor na pata Mede a sensibilidade O joelho é comprimido com uma Sensibilidade

pinça calibrada e equipada com

mecânica no

transdutores de força. A força

joelho

necessária para evocar uma

da articulação do Rato Camundongo

joelho que não é confundida pela pata posterior

retirada reflexa é medida Pode ser extrapolada

Requer contenção do animal

Ângulo de limiar

A tíbia é estendida até o animal

de contorção da

contorcer-se enquanto o fêmur é

extensão do joelho

Rato

Mede a sensibilidade da articulação do

Requer contenção do

mantido em posição; o ângulo de

joelho que não é

animal

extensão é então calculado

confundida pela pata posterior Vocalizações

Vocalizações evocadas pela compressão do joelho

ultrassônicas podem

Vocalizações audíveis e ultrassônicas são medidas que

dar uma indicação Rato

representam respostas nociceptivas e emocionais-

Camundongo

melhor de dor articular do que outras medidas de

afetivas, respectivamente

reflexos, como os

O uso de vocalizações não foi completamente validado em modelos de OA em roedores

limiares de retirada Medição de reflexos nociceptivos de retirada diante de estímulos elétricos e mecânicos em animais anestesiados para medir a suprarregulação das vias centrais de dor. Registro direto de neurônios do Medições

corno dorsal para mapear o

neurofisiológicas

tamanho do campo receptivo periférico e a atividade neuronal (limiar e frequência de disparo) em resposta a estímulos nocivos

Rato Camundongo

Permite investigações

Requer anestesia; os

detalhadas das

experimentos são

alterações

irrecuperáveis

neurofisiológicas que acompanham a dor causada pela OA

Um desafio em termos técnicos

e não nocivos aplicados no campo receptivo da célula Registro de disparo espontâneo em fibras nervosas sensoriais periféricas

Tabela 29.9 Exemplos de modelos comuns de dor neuropática, todos comumente induzidos

em ratos e camundongos. Alterações Nome

Descrição do modelo

comportamentais

Vantagens

Desvantagens

induzidas Modelos de lesão nervosa periférica A dor é produzida na ausência de qualquer input sensorial para a Transecção completa do nervo

Modelo anatômico

área

A transecção completa do nervo é

ciático no nível do meio da coxa,

Em geral observa-se

combinada com lesão do nervo

autotomia, embora

safeno para induzir de nervação

haja polêmica se isso é

completa do membro posterior.

uma indicação de dor

Questões éticas

Desenvolve-se um neuroma no

espontânea ou

graves associadas à

coto proximal do nervo

resultado de toalete

autotomia

incomum em seres humanos

excessiva na ausência de retroalimentação (feedback) sensorial

São suturados 3 a 4 pontos frouxos de seda em torno do Lesão por

nervo ciático

Autotomia leve a

As características

Desfecho variável

moderada, defesa,

clínicas correspondem

entre animais

lambedura excessiva e

à síndrome de dor

diferentes,

alteração na

regional complexa em

provavelmente,

constrição

A constrição do nervo ciático está

sustentação de peso.

seres humanos e o

associado ao aperto

crônica

associada a edema intraneural,

Essas características

modelo foi bastante

das ligaduras em

isquemia focal e degeneração

persistem pelo menos

usado para a pesquisa

torno do nervo e ao

valeriana

por 7 semanas após a

de dor espontânea e

tipo de material de

cirurgia

sensações anormais

sutura

Início imediato e duração prolongada de alodinia e

Ligadura parcial

Ligadura apertada de metade a

Defesa da pata e

do nervo ciático

um terço do nervo ciático com um

lambedura, não

único ponto

associada à autotomia

hiperalgesia paralelas com a dor em seres humanos com causalgia

É relativamente fácil criar o modelo cirúrgico, em O nervo tibial e o fibular comum

comparação com

são ligados com uma sutura

outros modelos, e tem

apertada, seguida pela axotomia

menor variabilidade

do nervo distal, o nervo sural

no grau de dano

permanece não danificado (daí o Lesão nervosa poupada

Permite alterações

modelo de lesão nervosa poupada)

Ver acima

investigacionais simultâneas tanto nos

Permite comparar a diferença nas

neurônios sensoriais

sensibilidades mecânica e

primários lesados

térmica de territórios cutâneos

como nos ilesos, de

não lesados adjacentes às áreas

modo que sua

desnervadas

contribuição relativa para a fisiopatologia da dor pode ser determinada As neuropatias humanas comumente são causadas por inflamação ou infecção, em vez de

Neurite inflamatória do ciático

Implanta-se um cateter em torno

traumatismo, e

do nervo ciático (sob anestesia),

ocorrem eventos

que é usado para se injetar

Ver acima

inflamatórios após

zimosano em ratos despertos

traumatismo. Esse

movimentando-se livremente

modelo pode imitar

melhor muitas condições humanas que causam dor neuropática

Alta reprodutibilidade associada a uma Manguito no nervo ciático

magnitude mais

Colocação de um manguito de polietileno em torno do nervo

Ver acima

ciático

consistente de lesão nervosa, em comparação com a ligadura do nervo ou a axotomia

Modelos de dor central Paraplegia grave e Modelo de queda de peso ou contusão

A medula espinal é exposta no

necrose segmentar

nível toracolombar e um peso

completa

Considerações éticas associadas à

constante colocado sobre ela para induzir lesão

paraplegia

Disestesia, dor espontânea e evocada As alterações patológicas progressivas

Lesão excitotóxica na medula espinal

Injeções intraespinais de aminoácidos excitatórios para simular elevações desses aminoácidos na lesão induzida

associadas à injeção Ver acima

lembram bastante as induzidas por lesão isquêmica e traumática da medula espinal Os números e tipos de fibras lesadas são

Hemissecção espinal

controlados em cada

A medula espinal é hemisseccionada com uma

Ver acima

animal

lâmina logo cranial a L1 Os lados lesado e intacto do animal são completamente separados

Modelos de neuropatia medicamentosa Os fármacos, em

Neuropatia medicamentosa

Induz neuropatia; as

geral, produzem

Injeção sistêmica de fármacos

características clínicas

efeitos concomitantes

que induzem neuropatia, como

são determinadas pelo

vincristina e cisplatina

tipo de nervo atingido

do animal que podem

pelo fármaco

confundir a avaliação

Não cirúrgico

sobre a saúde geral

da dor Modelos de neuropatia causada por doença O diabetes é induzido no animal,

Os animais

por exemplo, pela administração Neuropatia induzida pelo diabetes

Dependendo do

desenvolvem outros

de toxinas pancreáticas das

Induz uma neuropatia

modelo, é possível

desarranjos

células β, como a

periférica com sinais

replicar os sinais

metabólicos

estreptozotocina (STZ) ou o uso

associados de dor

clínicos associados à

associados ao

de animais transgênicos

neuropática

neuropatia diabética

diabetes que podem

em seres humanos

confundir a avaliação

(camundongos) com diabetes dos tipos I e II

da dor Demonstra os aspectos farmacológicos e

Pode induzir

Modelos de dor

O câncer ósseo é induzido, por

Causa alterações

do câncer, por

exemplo, pela inoculação de

comportamentais

exemplo, dor

células do fibrossarcoma

atribuídas a dor

do câncer ósseo

osteolítico no fêmur de raças

neuropática e

(cepas) específicas de

inflamatória

camundongo

neuroquímicos

alterações sistêmicas

distintos da dor do

no animal associadas

câncer, sugerindo o

ao crescimento do

acometimento de

tumor que podem

componentes

comprometer o bem-

inflamatórios,

estar e a avaliação da

neuropáticos e

dor

tumorigênicos na patogenia da dor

Tabela 29.10 Modelos comuns de dor visceral. Nome

Descrição do modelo

Vantagens

Desvantagens O desenvolvimento de dispositivos que causam distensão rápida (estímulo de onda ao quadrado) é um desafio; aumento mais comum do perfil de elevação da distensão.

Enchimento excessivo da bexiga

O tipo e a previsibilidade da

com líquido, distensão por pressão do cólon, do duodeno, do Distensão visceral

Tipo ‘natural’ de estímulo

esôfago ou do ureter. A distensão por pressão, em geral, é

A distensão mecânica é

controlada por um barostato

relativamente fácil de controlar

distensão predizem o desfecho, independentemente da pressão da distensão. A distensão repetida não resulta

(bomba controlada por

em hipersensibilidade visceral,

computador)

portanto não pode replicar a dor e a sensibilidade visceral elevada que ocorre em pessoas com doença intestinal inflamatória (DII)

Irritação química para induzir

Aplicação de irritantes químicos

hipersensibilidade

no cólon (p. ex., instilação de

do cólon antes de

ácido acético, óleo de mostarda,

É discutível se a irritação química Induz sensibilização periférica e

antes da distensão induz

central e aumenta as respostas à

alterações similares às alterações

distensão mecânica

funcionais que ocorrem em

distensão

terebintina, zimosano)

pessoas com DII

mecânica Irrigação crônica

A administração crônica de

da bexiga para

compostos causa alterações

induzir cistite

Instilação aguda ou crônica de

histológicas e neurofisiológicas na

usando-se

compostos que são irritantes

bexiga que são similares às

compostos como

conhecidos

alterações patológicas induzidas

óleo de mostarda

por condições clínicas que

e ciclofosfamida

resultam em cistite crônica O peritônio parietal recebe

Injeções

inervação somática, portanto o

peritoneais de

modelo causa dor visceral e

agentes irritantes,

somática.

por exemplo,

Modelo de dor bem estabelecido

ácido acético ou

A latência para se contorcer e

clorídrico,

duração são dependentes das

bradicinina, óleo

propriedades químicas do irritante

de mostarda

injetado Indução de dano pancreático

Modelos de dor

mediante a injeção sistêmica (IV)

Surgem alterações histológicas

aguda da

de dicloreto de dibutiltina;

que lembram a pancreatite aguda

pancreatite

injeção pancreática de capsaicina

em seres humanos

Quase não há modelos de pancreatite crônica

ou bradicinina

■ Tendências recentes na avaliação da dor em roedores Há uma tendência crescente na pesquisa clínica para o desenvolvimento de métodos melhores para avaliar a dor, mais que a nocicepção, em roedores, tentando-se assim registrar e ‘levar em conta’ o componente afetivo ou emocional da dor nas medições de dor. Embora essa área de pesquisa ainda esteja em seus primórdios, têm sido feitos esforços significativos para desenvolver novas medições do afeto em animais, muitas delas desenvolvidas a partir dos campos da etologia e da ciência do bem-estar animal. Alguns exemplos de novas abordagens para medir a dor em roedores são descritos a seguir. Paradigma da preferência de local

O paradigma da preferência de local (condicionada) é usado comumente para avaliar as propriedades afetivas/motivacionais de fármacos. O paradigma envolve o pareamento de um estado medicamentoso com ambientes que têm estímulos distintos (i. e., um lugar). Durante um período de aprendizado, o animal aprende a associar um ambiente a um tratamento e ao teste com o fármaco e um segundo ambiente ao tratamento de controle (p. ex., solução fisiológica). Subsequentemente, o local de preferência do animal é determinado permitindo-se que ele escolha um desses ambientes, com a escolha sendo feita quando ele não tiver recebido o tratamento medicamentoso. Esse paradigma é usado para avaliar o efeito de fármacos analgésicos em animais com dor crônica, com a justificativa de que os animais com esse tipo de dor devem mostrar preferência pelo ambiente que corresponde ao lugar onde é administrado um analgésico. Os testes de preferência de lugar requerem treinamento do animal e precisam ser realizados com cuidado para evitar fatores passíveis de confusão, por exemplo, assegurando-se que não haja fatores inerentes no ambiente de teste que possam induzir uma preferência por outro local além daquele do tratamento medicamentoso. Esse tipo de teste tem sido empregado para mostrar os efeitos analgésicos de classe diferentes de fármacos no modelo de dor inflamatória em ratos causada pelo adjuvante completo de Freund (ACF)107 e os efeitos analgésicos do butorfanol em galinhas com fraturas ósseas da quilha de ocorrência natural.108 Paradigmas de resposta operante São paradigmas comumente usados na farmacologia comportamental e foram adaptados ao estudo da eficácia analgésica de diferentes fármacos em roedores. O condicionamento operante baseia-se no treinamento de animais para que associem uma resposta particular ao recebimento de uma recompensa (p. ex., um torrão de açúcar) ou uma punição (p. ex., um choque na pata). Os paradigmas operantes permitem que o animal exerça controle sobre o resultado, uma das diferenças fundamentais entre o condicionamento operante e o de Pavlov, em que um resultado está associado a um estímulo sobre o qual o animal não tem controle. Um exemplo de paradigma operante é dar a um rato a chance de escolher entre receber uma recompensa (p. ex., leite condensado) ou evitar um estímulo doloroso aversivo.109–111 Para receber a recompensa, o animal precisa colocar o nariz através de uma abertura equipada com um termoeletrodo, de modo que o estímulo aversivo (p. ex., calor ou frio) seja obtido ao mesmo tempo que a recompensa. O comportamento de busca da recompensa é reduzido após inflamação periférica, observação que é revertida com fármacos analgésicos. Os paradigmas de comportamento operante permitem a observação de tipos mais espontâneos de comportamentos quando comparados com os estudos de estímulo evocado, mas requerem treinamento considerável e também um componente motivacional que podem complicar a interpretação do comportamento relacionado com a

dor. Avaliação de comportamentos espontâneos A quantificação de um comportamento espontâneo há muito tempo é reconhecida como um recurso útil para estudar a gravidade da dor e a eficácia de fármacos analgésicos em roedores.112 Todavia, a análise tradicional do comportamento é limitada por levar bastante tempo, razão pela qual apenas alguns comportamentos tendem a ser estudados por um curto período. O desenvolvimento recente de sistemas automatizados para quantificar comportamentos em roedores aumentou bastante a capacidade da análise comportamental no estudo da dor. Esses sistemas têm a capacidade de colher dados continuamente e de maneira padronizada, de modo que a variação e o erro são minimizados, para fornecer informação sobre o movimento de animais individuais e rastrear alterações complexas no comportamento. Portanto, eles oferecem a oportunidade de detectar alterações muito sutis no comportamento de animais individuais, tanto em termos de mobilidade como também de comportamentos interativos, como brincar, fazer ninho, acasalar e ficar na companhia de outros na jaula. Isso aumenta de maneira significativa a sensibilidade da avaliação do comportamento para detectar dor e os efeitos da administração de fármacos analgésicos. A vontade de escavar (ratos e camundongos) e a de construir ninhos na gaiola (camundongos) são usadas como bioensaios de dor em modelos experimentais de dor nessas espécies. Tais testes empregam o princípio de que os roedores são altamente motivados para exibir esses comportamentos em suas gaiolas se tiverem como fazê-lo (i. e., substrato para escavar e fazer ninho); portanto, quantificar a alteração da vontade de executar tais comportamentos constitui um meio de sondar alterações no estado afetivo após a indução de dor e a administração subsequente de fármacos analgésicos. O comportamento espontâneo de escavar em ratos é reduzido por lesão nervosa periférica ou dor inflamatória,113 efeito que é revertido pela administração de fármacos analgésicos, mostrando a utilidade desse ensaio no desenvolvimento de um fármaco desse tipo. Foram realizados estudos similares em camundongos sobre esse comportamento114–116 e a construção de ninhos.117 Expressão facial As emoções estão associadas a expressões faciais específicas em seres humanos e essa premissa pode ser extrapolada para animais, para quantificarmos as alterações na expressão facial como um biomarcador de dor. Langford et al.118 formaram o primeiro grupo a desenvolver formalmente uma escala de códigos faciais para a dor em camundongos [Mouse Grimace Scale (MGS)], desenvolvida mediante a captura de imagens da face de camundongos antes e após a indução de dor abdominal causada pela injeção intraperitoneal

de ácido acético. As unidades de ação facial que foram alteradas pela dor incluíram encolhimento das órbitas, proeminência do nariz, abaulamento das bochechas, alteração na posição das orelhas e das vibrissas. É importante notar que, após uma sessão formal de treinamento, os observadores puderam discriminar camundongos ‘com dor’ e ‘sem dor’ utilizando a MGS. Langford et al.118 aplicaram a MGS a camundongos que tinham sido submetidos a testes nociceptivos diferentes e verificaram que a MGS era sensível em alguns ensaios nociceptivos, mas não em outros. Estímulos nocivos de duração moderada (10 min a 4 h) tiveram maior propensão a associar-se a ‘dor facial’, enquanto estímulos nocivos muito breves (p. ex., testes fásicos de dor) e estados de dor neuropática não foram detectados pela MGS. Pode ser que isso reflita a natureza nociceptiva dos testes fásicos de dor, bem como o fato de que a dor de maior duração não é acompanhada por uma alteração persistente na expressão facial. É importante lembrar que a lesão química da ínsula anterior rostral, uma estrutura que é ativada pela dor em seres humanos e tem um componente emocional importante, causou atenuação da dor na face. As escalas de dor que se baseiam na expressão facial foram extrapoladas para outros animais de laboratório, incluindo ratos (Rat Grimace Scale),119 coelhos (Rabbit Grimace Scale)120 e equinos.121

Avaliação da dor clínica na medicina veterinária A avaliação da dor clínica continua sendo um tópico complexo e desafiador. A percepção da dor não é simplesmente uma função da detecção de estímulos que danificam o tecido (o componente sensorial), mas também uma função do indivíduo, tanto em termos fisiológicos como emocionais. É uma experiência pessoal única, difícil de avaliar em pacientes que não podem verbalizá-la. Ainda é discutível se os animais ‘sofrem’ de maneira diferente dos seres humanos. A falta de habilidade cognitiva para entender a razão pela qual a dor está ocorrendo pode, na mente de algumas pessoas, agravar o sofrimento em pacientes menos inteligentes e que não têm uma linguagem verbal. Em contrapartida, animais cujo cérebro é altamente desenvolvido são propensos a ter a capacidade de ‘pensar’ e podem ter alguma autoestima, o que piora a dor que sentem por causa do componente emocional.122 É provável que a dor em espécies animais mais evoluídas seja uma experiência complexa e multidimensional, dependendo da gravidade da agressão que ativa vias nociceptivas e do seu dano tecidual comensurável, de experiências prévias com dor e da posição social em um grupo, rebanho ou colônia. Cada animal tem necessidades analgésicas diferentes após procedimentos idênticos e podem exibir respostas endócrinas e comportamentais diferentes, que podem estar relacionadas com a idade e o gênero.123–128 Além disso, outros fatores estressantes129,130 ou experiências podem modular os comportamentos de dor. Evidências também sugerem que agressões nocivas prévias

modulam o eixo do estresse e vias antinociceptivas. O efeito sobre animais e seres humanos dos comportamentos de dor observados em outros também é digno de nota e, nas pessoas, é designado como ‘empatia’. Isso pode não ser esperado em outras espécies, mas foram mostrados paralelismos.131–133 Essas variações individuais estão bem documentadas e têm desafiado os pesquisadores ao desenvolverem métodos válidos e confiáveis para avaliação da dor. Os recursos para avaliação precisam se adaptar a essas diferenças individuais e tornar os esquemas de administração de analgésicos também adaptáveis aos indivíduos.134,135 Muitos pesquisadores têm usado medições objetivas dos comportamentos de dor baseadas no etograma após um estímulo nocivo para uma escala de dor.136 Além disso, os estudos em que se tentam quantificar ‘eventos comportamentais’ em vez de apenas registrar o tempo gasto fazendo ou não uma atividade revelam que isso é um indicador mais sensível para avaliação da dor, por exemplo, após a castração em cordeiros.137 Outros estudos avaliaram diferenças na atividade prevista e eventos comportamentais separadamente e combinados. Um estudo no qual se avaliou a dor após artroscopia em equinos revelou uma diferença significativa na atividade prevista entre aqueles submetidos à cirurgia e os que não o foram, indicada pelo tempo que levaram comendo, com posturas anormais e ficando na frente do estábulo.138 Nesse estudo, a atividade prevista e as posturas pareceram ser indicadores mais sensíveis de dor e é provável que sejam específicos da espécie e da agressão nociva. Os avanços na avaliação da dor requerem tempo e muita dedicação para melhorar o bem-estar dos animais. As atitudes voltadas para a avaliação da dor e seu tratamento mudaram muito nas últimas décadas, representando uma mudança no sentido de priorizar a analgesia para animais de estimação, pecuários e de laboratório, o que é importante tanto do ponto de vista ético como humanitário. A avaliação da dor é uma consideração importante na medicina veterinária por vários motivos. A observação e a avaliação de dor levam a um aumento do uso de fármacos analgésicos. Por fim, essa tendência deve resultar na prescrição mais apropriada de analgésicos que uma abordagem ‘de acordo com o tamanho’, que leva alguns pacientes a receberem um tratamento insuficiente para sua dor. O uso mais criterioso de analgésicos só é alcançado se os recursos usados para avaliação da dor forem bem projetados, validados e apropriados para o tipo de dor ou de procedimento. Em geral, os comportamentos de dor são sutis e o observador precisa ter prática para identificar esses sinais em espécies diferentes.139 Por fim, é importante treinar todos os profissionais de veterinária no uso dos recursos para avaliação da dor. É preciso conseguir tempo para treinamento e discussão, de modo a assegurar consistência, um processo para ouvir e obter ideias para melhorias. A avaliação da dor em pacientes hospitalizados e o registro de dados como um dos ‘sinais

vitais’ é uma etapa positiva. Os resultados de priorizar a avaliação da dor são consideráveis para muitos proprietários envolvidos no processo. A comunicação a eles ou cuidadores sobre esses recursos utilizados na prática otimiza o bem-estar do animal, reforça a ligação da pessoa com o animal e, por fim, melhora a relação do cliente com o profissional e a reputação do último. Entidades profissionais, governamentais e empresariais diversas, além de grupos de pesquisa, ajudam no treinamento para disseminar informações e fazendo versões eletrônicas de fácil acesso.140–145

■ Quantificação da dor É difícil quantificar a dor por ser a percepção de um processo fisiológico e emocional multidimensional. A quantificação da dor inclui sua intensidade, sua duração, sua frequência (constante ou intermitente ou associada a uma atividade ou fator estressante) e sua qualidade.146 Também é provável que alguns dos comportamentos identificados sejam similares ou idênticos aos exibidos quando o animal está estressado ou aflito por outros fatores que não alguma dor. Como discutido previamente, a dor, em geral, é descrita como aguda ou crônica. A dor aguda costuma envolver dano tecidual e comportamento para evitar lesão maior. A avaliação da dor crônica em seres humanos demonstra que há um componente emocional muito óbvio; depressão, raiva e medo são comuns e vale a pena discutir a qualidade de vida (QdV) do paciente, em vez de ter como foco apenas a intensidade da dor. Como os animais de estimação vivem mais, é provável que sofram de condições crônicas como a OA, doença metabólica complexa e câncer. A quantificação da dor e da QdV nesses indivíduos requer meios de avaliação distintos dos usados comumente para avaliar a dor aguda, de proteção ou fisiológica.147

■ Medições objetivas da dor aguda Variáveis fisiológicas A maioria dos estudos que avalia a dor em animais tem tido com foco a dor aguda. Numerosos estudos avaliaram a correlação entre parâmetros fisiológicos, como a frequência cardíaca, a frequência respiratória, o diâmetro da pupila, a pressão arterial e pontuações de dor aguda.148 Não foi surpreendente constatar que nenhum parâmetro fisiológico isoladamente é confiável para indicar a dor de maneira acurada.149,150 Esses parâmetros são afetados por muitos outros fatores, como medo e estresse, e, no máximo, podem contribuir para a avaliação da dor em escalas multifatoriais.151 Há um consenso geral de que as respostas fisiológicas têm uma correlação fraca com a dor, porém em um estudo em que foi investigada a laminite em equinos foram examinados o uso da frequência cardíaca, da sua variabilidade (VFC) e marcadores comportamentais e endócrinos na

avaliação da resposta ao tratamento. Embora haja uma correlação fraca entre os comportamentos de dor e as concentrações plasmáticas de cortisol e catecolaminas, os componentes de frequência baixa e alta da VFC mudaram significativamente com o tratamento e indicadores de comportamento, conforme medidos pela Obel Laminitis Scale.152 A VFC é um recurso útil para avaliar a dor em equinos, em conjunto com outros métodos; no entanto, conforme ocorre com outros parâmetros fisiológicos, a VFC é influenciada por muitos outros fatores. Outro estudo que avaliou escalas compostas de dor para a avaliação de dor ortopédica aguda em equinos revelou que as frequências cardíaca e respiratória eram apenas indicadores moderadamente específicos e sensíveis de dor ortopédica.153 A avaliação de sons intestinais mostrou especificidade boa a moderada, mas sensibilidade apenas fraca. É interessante que a pressão arterial não invasiva (PSNI), medida com um dispositivo oscilométrico colocado em torno da base da cauda, foi um indicador muito específico e sensível de dor ortopédica.105 Cortisol, endorfinas e proteínas da fase aguda no plasma Alterações nas concentrações plasmáticas de hormônios como cortisol, β-endorfinas e outras proteínas da fase aguda (PFAs) foram medidas como indicadores de dor. Demonstrou-se pouca correlação entre indicadores comportamentais e elevações nesses marcadores. De fato, o cortisol plasmático não demonstrou ser um biomarcador útil de dor em cães e gatos.154 É possível que esses biomarcadores tenham outros papéis, como o de categorizar a gravidade da doença, em vez de serem indicadores retrospectivos de dor.155 A gravidade de doenças inflamatórias como a mastite bovina pode ser graduada usando-se a PFA haptoglobina. O amiloide A sérico e o láctico medidos no soro e no leite também constituem proteínas diagnósticas da mastite clínica e subclínica.156 A relação entre a mastite inflamatória e a dor continua indefinida. Em equinos submetidos a procedimentos ortopédicos, demonstrou-se uma correlação entre as concentrações sanguíneas de cortisol e um escore composto de dor (ECD).153 Para cada unidade a mais de aumento no cortisol sanguíneo, o ECD aumentou 0,095 unidade, com os autores concluindo que o cortisol era um indicador específico e sensível de dor ortopédica.

■ Gradação da dor com base no comportamento Pacientes veterinários são incapazes de dizer o que sentem, razão pela qual os clínicos confiam em sistemas de gradação que dependem da avaliação subjetiva da dor feita por alguém que não os pacientes. As avaliações são realizadas pelo proprietário ou por um assistente do veterinário ou enfermeiro/técnico, e todos terão um grau de variabilidade, subjetividade e vieses ao avaliarem o paciente. A avaliação da dor é afetada por muitos fatores específicos do observador, como a idade, o gênero, a experiência clínica, o tempo

de graduação na faculdade de veterinária e, talvez o mais importante, a experiência pessoal com procedimentos ou condições dolorosas.157 Em 1985, Morton e Griffiths publicaram uma proposta para o desenvolvimento de escalas de dor validadas e consistentes.158 Atualmente, ainda há apenas um pequeno número de escalas validadas disponíveis baseadas em comportamentos específicos de dor. Sistemas de pontuações unidimensionais Tradicionalmente, a avaliação da dor aguda é realizada usando-se escalas unidimensionais simples para avaliar a intensidade da dor (Figura 29.1). Escala descritiva simples As escalas descritivas simples são escalas básicas e altamente subjetivas que tipicamente têm quatro ou cinco descritores. Esse tipo de escala não demonstra sensibilidade na detecção de alterações pequenas na intensidade da dor. Esse tipo de escala foi usado pela Colorado State University (CSU) e uma versão é reproduzida na Figura 29.2. Embora ainda não validada, sem dúvida representa um recurso útil e disponível amplamente para a avaliação da dor em gatos. Escala numérica de gradação (ENG) Usa números em vez de descritores para pontuação da dor. É um tipo de escala descontínua com peso desigual entre as categorias (o que, às vezes, acarreta uma análise estatística incorreta dos dados pesquisados). Geralmente é usada para dar uma pontuação a características individuais de comportamento em escalas multidimensionais. Foram usadas várias pontuações dessa escala em equinos após celotomia, para gerar uma pontuação geral de comportamento.159 Escala visual analógica Essa escala contínua simples é bastante utilizada e consiste em uma linha de 100 mm, ancorada em cada extremidade a nenhuma dor (0) e (100) à pior dor imaginável (causada pelo procedimento). O observador marca na linha um ponto que se correlaciona com a avaliação da dor. É necessário treinamento para reduzir a variação entre os avaliadores. Uma das questões bastante debatidas sobre a EVA é a linearidade da escala (p. ex., uma pontuação de 60 mm representa o dobro de uma dor de 30 mm?). É óbvio que isso é importante ao se determinar um teste estatístico apropriado para avaliar os dados gerados. Uma pesquisa demonstrou que aproximadamente 50% dos estudos envolvendo medições da EVA aplicavam parâmetros estatísticos.160 No entanto, outros pesquisadores defenderam o uso de estatística sem parâmetros para dados não lineares. O uso de intervalos de

confiança pode ajudar na interpretação dos dados da EVA, mas não resolve o problema da violação de suposições subjacentes do teste estatístico.160,161

Figura 29.1 A. Uma escala descritiva simples (EDS) consiste em uma escala com descritores da intensidade da dor. Os descritores podem ser uma única palavra descritiva ou sentenças mais detalhadas. B. Uma escala numérica de gradação (ENG) utiliza números em vez de descritores para graduar a dor. É uma escala descontínua e os números têm pesos diferentes. Nesse exemplo, 0 representa nenhuma dor e 10 representa a pior dor imaginável. C. A escala visual analógica (EVA) é uma escala contínua que consiste em uma linha de 10 cm, ancorada em ambas as extremidades a dois descritores verbais dos extremos da condição particular. Valores numéricos intermediários ou descritores verbais não são recomendados, porque estimulam a reunião das gradações em torno de números ou palavras.

Figura 29.2 Instruções para uso da Escala Aguda de Dor da CSU, que tem como objetivo primordial ser um recurso de ensino e que sirva para orientar a observação de pacientes clínicos. Essa escala não foi validada e não deve ser usada como uma gradação definitiva de dor. O uso da escala emprega tanto um período de observação como uma avaliação manual do paciente. Em geral, a avaliação começa com a observação sem interferência do paciente em sua gaiola a uma distância relativamente oportuna. Subsequentemente, aborda-se o paciente como um todo (sua lesão e todo o corpo) para avaliar a reação à palpação leve, observando-se indicadores de tensão muscular e calor, a resposta à interação etc. (1) A escala utiliza uma gradação de 0 a 4 com subdivisões em quartos como sua base ao longo de uma escala colorida visual para a progressão ao longo de uma escala de 5 pontos. (2) Visões realistas do artista de animais com vários níveis de dor e mais indícios visuais. Outros desenhos dão espaço para registrar a dor, o aquecimento e a tensão muscular; isso permite documentar áreas específicas de preocupação no prontuário clínico. Uma vantagem a mais desses desenhos é estimular o observador a avaliar toda a dor do paciente, além do foco na lesão primária. (3) A escala inclui sinais psicológicos e comportamentais de dor e também as respostas à palpação. Além disso, a escala utiliza a tensão corporal como um recurso para a avaliação, parâmetro não empregado por outras escalas. (4) Há uma consideração para não avaliar o paciente em repouso. De acordo com os autores da fonte, essa é a única escala que enfatiza a importância de adiar a avaliação em um paciente que esteja dormindo, ao mesmo tempo que prepara o observador para reconhecer aqueles que possam estar inapropriadamente atordoados por medicações ou um problema de saúde mais sério. (5) As vantagens dessa escala incluem a facilidade de uso com necessidade mínima de interpretação. Os descritores específicos de comportamentos individuais são fornecidos, o que diminui a variabilidade inerente do observador. Além disso, é fornecida uma escala para cães e uma para gatos. (6) Uma desvantagem dessa escala é a falta de validação por estudos clínicos comparando-a com outras escalas. Além disso, seu uso é limitado em grande parte e destina-se para casos de dor aguda. Fonte: Colorado State University: Veterinary Teaching College. © 2006 P.W. Hellyer, S.R. Uhrig, N.G. Robinson. Reproduzida, com autorização. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Estudos mostraram variabilidade significativa entre observadores em todas as três escalas citadas.162 Hewetson et al. investigaram o uso de uma ENG e de uma escala de gradação verbal para descrever a claudicação e encontraram 55 a 60% de variabilidade entre observadores com as duas escalas.163 A magnitude da variabilidade intraobservador foi similar, de 58 a 60%. Isso ressalta a natureza subjetiva do exame para claudicação e a variabilidade que ocorre quando são usadas essas escalas subjetivas. Quando um observador treinado faz todas as observações, a ENG passa a ser uma escala mais confiável. Lascelles et al. relataram o refinamento da EVA, que envolve uma avaliação dinâmica e interativa (ADI) do paciente.164,165 Numerosos estudos adotaram essa abordagem. Esse

componente adicional da EVA envolve observar o animal a certa distância, aproximandose e interagindo com ele em seguida e, por fim, palpando a ferida e a área em torno dela. Também foram investigadas EVAs para questionários visando à avaliação da dor e da claudicação em cães.166 Sistemas de gradação multidimensionais É contraproducente avaliar algo tão multidimensional e complexo como a dor com uma simples escala unidimensional, mas para seres humanos foram desenvolvidas e validadas escalas multidimensionais, que incorporam questões para avaliar o componente afetivo da dor e também sua intensidade (componente sensorial).167 Pode-se argumentar que a EVA combina ambos esses componentes da dor como um contínuo e o avaliador não precisa compartimentalizá-los, sendo assim uma medida um tanto holística. Outros argumentam que o contínuo da EVA representa um número grande indefinido de categorias que abrangem dimensões múltiplas duvidosas para o avaliador, mas mesmo assim útil quando se avalia a dor. Sempre que se tentar criar um recurso válido e rigoroso para avaliar a dor envolvendo comportamentos, é preciso conhecer os comportamentos normais e categorizá-los. Fox et al. identificaram uma lista abrangente de 166 comportamentos associados à ováriohisterectomia em cadelas. A incorporação de todos esses sinais possíveis em um recurso conciso e fácil de usar para avaliar a dor é uma tarefa desafiadora. A Escala Composta de Dor Glasgow identificou 279 expressões ou palavras associadas à dor em cães. Essa lista foi refinada, resultando em 47 descritores bem definidos, considerados com cuidado em sete categorias de comportamento.169 Bussières et al.153 elaboraram uma escala de dor baseada em uma ENG incorporando dados comportamentais e fisiológicos específicos da dor ortopédica em equinos (Figura 29.3). Os parâmetros fisiológicos incluíram a frequência cardíaca, a frequência respiratória, os sons intestinais e a temperatura retal. Os parâmetros de comportamento incluíram a aparência (i. e., relutância para se mover, inquietação, agitação, ansiedade e sudorese), escoicear o abdome, bater as patas ou esticar os membros e a postura (i. e., a distribuição do peso, o conforto, a movimentação da cabeça e o apetite). Esse esquema de avaliação também incluiu parâmetros de resposta ao tratamento: comportamento interativo e resposta à palpação da área dolorida. Foi elaborada uma lista para todos os parâmetros, para ajudar a dar uma pontuação de 0 a 3, com 0 sendo normal e 3 o mais distante disso; a pontuação máxima total é de 39. A possibilidade de repetição entre observadores foi boa com essa escala multifatorial de dor, que teve especificidade e sensibilidade também boas. Em suma, os indicadores comportamentais mais específicos e sensíveis de dor ortopédica em equinos foram a resposta à palpação, a postura e o bater as patas no solo (em menor extensão).170

Outro estudo que avaliou a dor em equinos após artroscopia usou videoteipe contínuo, começando 24 h antes e prosseguindo por 48 h após a cirurgia. Os ‘parâmetros de atividade’ foram registrados com base no comportamento geral e na postura do animal. A comparação dos parâmetros de atividade identificou uma diferença significativa entre casos cirúrgicos e equinos de controle na proporção de tempo gasto comendo, demonstrando posturas anormais e posicionamento na frente da baia. A fome, o tipo de forragem e a ‘ressaca’ pós-anestésica podem afetar o comportamento, em especial o nível geral de atividade, confundindo a avaliação. Os equinos ficaram mais inquietos após a cirurgia (i. e., levaram menos tempo em decúbito esternal), mas foi difícil detectar isso pela observação direta. Eles se locomoveram menos após a cirurgia, o que poderia ser considerado uma relutância para mover-se em decorrência da dor. Casos de cólica cirúrgica foram comparados com equinos submetidos à RM e com os que não receberam qualquer tratamento. O ‘tempo de orçamento’ foi calculado dividindose o tempo gasto exibindo cada comportamento pelo tempo total registrado. Os comportamentos registrados incluíram atividade, comportamentos de dor, locomoção e repouso. Em cada uma dessas categorias, há descritores adicionais. Após a cirurgia, os equinos gastaram muito menos tempo movimentando-se. Conforme esperado, pacientes pós-cirúrgicos demonstraram mais comportamentos de dor que os equinos de controle ou casos não cirúrgicos, mas a proporção do tempo total em avaliação foi pequena. Os investigadores concluíram que, após cirurgia abdominal em equinos, a locomoção reduzida foi um indicador potencial de dor, junto com elevação da concentração de cortisol e da frequência cardíaca.

■ Frequência e duração da avaliação da dor O tempo gasto avaliando o animal é importante porque exames curtos, esporádicos e superficiais ou apressados podem fazer com que comportamentos de dor passem despercebidos. Não há recomendações objetivas quanto ao tempo para se observar um animal, mas, em princípio, quanto mais, melhor. Em um estudo-piloto, Raekallio et al. identificaram os desafios de avaliar a dor em equinos.171 Neste estudo, os animais foram avaliados após artroscopia, usando-se um índice de gravidade total da dor pós-operatória (IGTDP). Esta escala composta consistiu em uma ENG para uma pontuação da dor, observações do comportamento, medições fisiológicas e de hormônios do estresse. Concluiu-se que houve uma correlação fraca entre as estimativas subjetivas e objetivas do comportamento, e que nenhum dos sinais comportamentais constituiu um indicador sensível ou confiável de dor pós-operatória. Pode ser que a falta de credibilidade desse estudo se deva ao pequeno número de equinos avaliados, ou ao tempo gasto observando-os (2 observações de 1 min, com um intervalo de 5 min entre elas, o que foi a média antes da

cirurgia e 2, 4, 6, 12, 24, 48 e 72 h após a mesma). Esses períodos podem ter sido muito curtos para a detecção de comportamentos associados à dor.172 A presença de uma pessoa observando o animal pode alterar comportamentos associados à dor. Um cão ou gato não incomodado pode preferir ficar encolhido no fundo da jaula, mas, quando o avaliador está presente, o paciente pode aproximar-se da frente da mesma para prestar atenção ou defender-se. Isso também pode acontecer com animais maiores; equinos podem interagir com um observador ou mostrar comportamento aversivo. Trabalho recente demonstrou o efeito placebo que a interação com o cuidador pode causar. É bom considerar esse impacto potencial ao avaliar a dor de maneira global.173

■ Escolha do recurso de avaliação Em um ambiente de prática comercial, o método escolhido para avaliação da dor deve ser usado de forma amigável. A Escala Composta de Dor Glasgow foi refinada para criar uma forma curta por essa razão e foi validada para avaliação da dor cirúrgica aguda em cães.174

Figura 29.3 Escala numérica multifatorial composta de gradação da dor para equinos (escala composta de dor em equinos, ECDE). Fonte: cortesia de Eric Troncy.

As escalas compostas validadas para dor aguda em gatos ainda estão em seus primórdios, mas vários estudos recentes mostraram que são promissoras.175,176 Os itens a serem avaliados precisam ser coletados e refinados para inclusão no questionário. As formas de avaliação precisam ser submetidas a um escrutínio (validade da face e do conteúdo), e a escala, a testes repetidos de confiabilidade e validade.3,177 A eficácia dos sistemas subjetivos de pontuação da dor em animais podem variar de acordo com o tipo de dor avaliada (p. ex., dor aguda ou crônica), a escala utilizada, os comportamentos escolhidos para avaliação (dinâmicos ou interativos) e o pessoal envolvido.178 Cavalariços, por exemplo, podem distinguir equinos após a cirurgia dos controles com mais sucesso que veterinários.138 Os cavalariços atribuíram pontuações maiores a esses cavalos, reafirmando a crença bem estabelecida de que o proprietário ou o cuidador são os melhores indivíduos para avaliar a dor, por estarem mais capacitados para detectar sinais sutis e desvios do comportamento normal. A experiência clínica, sem dúvida, também contribui para a confiabilidade da avaliação.179

■ Dor crônica Em 1986, a Association of Veterinary Teachers and Research elaborou diretrizes para a avaliação geral da dor.180 Essas diretrizes sugeriram que as observações sejam feitas por alguém que possa distinguir alterações sutis nas atitudes, no comportamento e na locomoção (em animais de estimação, em geral, é o proprietário), com a interpretação subsequente dos dados feita por uma pessoa com conhecimento e experiência na avaliação da dor (i. e., um veterinário). Três décadas depois, essa abordagem ainda está em voga; os recursos destinados à avaliação da dor crônica são muito dependentes de uma avaliação do proprietário, com a tomada de decisão sendo feita em conjunto com o veterinário. De fato, estudos recentes demonstram pouca correlação entre a avaliação do proprietário e a análise da placa de força quando se avalia a resposta ao tratamento na osteoartrite em cães.106 Isso não sugere que métodos de avaliação sofisticados sejam úteis, mas enfatiza que, aos olhos do dono, a eficácia do tratamento provavelmente inclui a QdV.181 Foram desenvolvidos vários recursos para a medição da dor crônica e da QdV em cães,147,182 até certo ponto elaborados a partir dos instrumentos existentes para medição da QdV em seres humanos. As avaliações da QdV ajudam na tomada de decisão quanto a intervenções terapêuticas dolorosas na necessidade de eutanásia.183,184 A QdV é um conceito abstrato usado na medicina humana que parece completamente apropriado quando

é aplicado ao bem-estar de animais.185,186 Como não existe um ‘padrão ideal’ para a avaliação da dor crônica com que comparar as escalas de QdV, foram criados testes psicométricos de várias escalas. A escala Liverpool para Osteoartrite em Cães (LOAD, de Liverpool Osteoarthritis in Dogs), o Índice Helsinki de Dor Crônica (HCPI, de Helsinki Chronic Pain Index) e o Inventário Canino Breve de Dor (CBPI, de Canine Brief Pain Inventory) foram avaliados comparativamente em 222 cães com OA.177 Houve correlações moderadas entre todos os instrumentos, implicando validade do construto para todos. Foram encontradas correlações significativas, porém fracas, entre as pontuações da LOAD e o ‘índice de simetria’ (calculado a partir da análise da plataforma de força para a força máxima vertical) e entre as pontuações do CBPI e o índice de simetria. O CBPI é um instrumento multifatorial, composto por uma pontuação da gravidade da dor, uma pontuação de interferência e uma de qualidade de vida geral. Estudos de Walton et al.177 e outros elaboraram um critério de validade para o CBPI, como também um estudo de Brown et al. que comparou o CBPI com a análise da placa de força.106 O HCPI é um índice único de dor crônica constituído por 11 itens.187 As alterações no HCPI correlacionam-se bem com alteração na QdV e alterações de mobilidade na EVA. Ele parece ser um método válido, confiável e resolúvel para avaliar a resposta ao tratamento da osteoartrite em cães. O critério de validade do HCPI baseia-se em uma correlação entre ele e a QdV, pontuação em uma EVA.188 É interessante o fato de que, quando se comparou a EVA com o HCPI usando a avaliação do proprietário de cães com artrite, a conclusão foi de que a EVA era um recurso precário para proprietários não treinados por causa da baixa validade da expressão facial (i. e., os proprietários podem não identificar o comportamento de seus cães como sinais de dor). A expressão facial na EVA só teve validade depois que os proprietários viram a dor diminuir e, em seguida, retornar (após o término de um esquema com AINEs). O HCPI não teve correlação com o índice de simetria a partir da análise da placa de força no estudo de Walton et al. Os motivos disso não foram esclarecidos, mas é provável que seja uma função do uso de palavras e do peso dado aos descritores. Um índice de dor musculoesquelética (IDME) em felinos é um questionário para o cliente que tem boa leitura, consistência e confiabilidade internas e é passível de repetição,189,190 mas não demonstrou responsividade ou critério de validade em testes subsequentes.191 A responsividade descreve se as alterações em um parâmetro podem ser detectadas após tratamento, de preferência em um projeto cego controlado por placebo. A ausência de responsividade pode resultar de muitos fatores, como um grande efeito placebo. Em um estudo recente, Gruen et al.192 usaram o IDME e medidas de resultado específicas do cliente (MREC) e conseguiram sobrepujar o efeito placebo demonstrando a recorrência de sinais clínicos após a suspensão do tratamento em comparação com placebo.

A validade de critério descreve se os resultados gerados têm correlação com outra medição validada. O IDME não mostrou validade de critério, mas teve correlação com a atividade medida por acelerometria.190 Essa ausência de correlação desafia a suposição de que a doença articular diminui a atividade e que gatos medicados com AINEs ficam motivados para aumentar a atividade. Alguns proprietários não se preocupam com o nível de atividade em si nos seus gatos idosos, e sim com outros indicadores potenciais de dor. Tais achados ressaltam a necessidade de incluir tanto termos ativos como não ativos para avaliar melhor a dor e a QdV em gatos. Existem versões desses recursos baseadas na internet, o que facilita o acesso e o registro por parte dos proprietários.193 Não há escalas multidimensionais para todas as espécies e, em alguns casos, elas podem não ser apropriadas. Até mesmo as escalas unidirecionais foram usadas para a dor crônica com algum sucesso. Por exemplo, Welsh et al. usaram a EVA e escalas simples descritivas para avaliar a dor da claudicação decorrente da ‘podridão (necrose) do casco’ em ovinos.194

■ Expressões faciais de dor A função da dor requer atenção e prioriza evitá-la, a recuperação e a cura; embora outros fatores possam ajudar a atingir esses objetivos, a comunicação efetiva da presença de dor é indispensável.195 Charles Darwin reconheceu que a dor poderia ser expressada na face de um animal.196 A expressão facial é usada como um meio para se reconhecer a dor em lactentes e outros seres humanos incapazes de verbalizar ou com algum comprometimento cognitivo.197 Pode ser que a exibição de expressões faciais específicas sejam benéficas em seres humanos e alguns animais, no sentido de obterem ajuda ou como um sinal de perigo, ao passo que, em algumas espécies, é mais provável que a sinalização facial franca se correlacione com vulnerabilidade. Em consequência, alguns animais podem ter-se adaptado aos seus ambientes e às circunstâncias no decorrer das eras, diminuindo suas expressões faciais.118,119,198,199 As expressões faciais associadas à dor em equinos foram avaliadas pela análise cinemática dos movimentos da face durante um estímulo doloroso breve.120 As expressões faciais em equinos submetidos a castração também foram descritas.121 A capacidade de diferenciar expressões causadas por estímulos dolorosos específicos e intensidades talvez possa melhorar a habilidade de proprietários e cuidadores de reconhecerem experiências dolorosas específicas.201 O contato ocular em seres humanos é particularmente útil para traduzir emoções.202 Leach et al. usaram um equipamento de rastreamento ocular para confirmar a suspeita de que os observadores, independentemente do gênero ou da experiência, passam a maior parte do tempo focados na face do animal quando avaliam a dor.203 A tecnologia envolvida

no rastreamento ocular automatizado tem sido utilizada para avaliar onde as pessoas focalizam a atenção durante muitas atividades, incluindo observar o quanto outros seres humanos são atraentes,204 dirigir um veículo205 e usar um computador ou avaliar páginas da internet (websites).206 A tecnologia do rastreamento ocular automatizado pode ser aplicada à observação do comportamento de um animal por seu cuidador. Leach et al.203 identificaram um viés no sentido de focalizar a face que leva a negligenciar outros indícios corporais associados a dor. Coelhos, por exemplo, exibem comportamentos e posturas de dor primariamente com o dorso e o abdome207 (p. ex., encolhimento do ventre, arqueamento do dorso, torção da pele ao longo da região dorsal), de modo que um viés voltado para a expressão facial pode resultar em não reconhecimento de dor. Similarmente, bezerros castrados exibiram postura anormal, marcha anormal e lambedura associada ao local cirúrgico.208 Além disso, os sinais costumam exacerbar-se e diminuir, indicando a necessidade de um tempo adequado de observação. Cordeiros castrados ou submetidos à caudectomia demonstram comportamentos associados predominantemente à área da cirurgia e à postura.209 Tais relatos simplesmente voltam a enfatizar a necessidade de se desenvolverem recursos compostos para avaliação da dor que sejam específicos das espécies. Em geral, concorda-se que o desenvolvimento de mensurações faciais para medir a dor específica das espécies deve melhorar a avaliação da dor em muitas das espécies de animais de estimação. Em conjunto com o desenvolvimento e a validação de recursos para avaliar a dor, também é importante enfatizar o treinamento apropriado e fazer auditorias do uso desses recursos. Presume-se que todas as pessoas que trabalham com animais automaticamente têm a habilidade de avaliar a dor neles e sua gravidade. Uma pesquisa dos métodos atuais usados para reconhecer dor, sofrimento e desconforto revelou que a maioria da pesquisa estabelecida usa métodos de avaliação subjetivos ou sistemas de pontuação que não estão validados (acreditando que sua avaliação da dor foi adequada).210 O treinamento deve acompanhar o uso de medições de avaliação da dor. O treinamento de pessoas antes que façam avaliações comportamentais como é feito com o escore EVA aumentou a porcentagem de cuidadores de animais que identificam a necessidade de tratamento com analgésicos.211 Medições funcionais que incluem avaliação em plataforma de força e plataforma sensível à pressão são usadas para estudar a claudicação em equinos, cães, gatos e ovinos. Esses métodos também podem ajudar na tomada de decisão clínica, por exemplo, durante a consolidação de fraturas ósseas. Dados experimentais confirmam o uso da análise da marcha em ovinos que se recuperaram de fraturas tibiais como uma alternativa não invasiva para avaliar a consolidação óssea.212 É mais difícil avaliar gatos com esses recursos,213,214 pois é um desafio maior fazer um gato caminhar sobre a placa. No entanto, a

função do membro após oniquectomia foi avaliada com essa tecnologia.215,216 O uso de dispositivos como monitores de atividade ou acelerômetros pode ser mais apropriado em gatos.217 A avaliação da atividade como um meio de avaliar a QdV geral de um indivíduo é potencialmente útil em cães e gatos. Esses dispositivos eletrônicos são fixados a uma coleira ou um arreio e indicam níveis de atividade que não costumam ser observados na presença de seres humanos. É necessário colocar esses dispositivos com cuidado, para evitar registros errôneos de atividade, como os movimentos quando o animal está comendo ou fazendo sua toalete. A comparação de dados do acelerômetro com os índices de comportamento associados à alteração da mobilidade será ainda mais esclarecedora.218,219

■ Resumo da metodologia para avaliação da dor A detecção acurada e localizada de dor continua sendo um desafio na medicina veterinária, por causa da ampla gama de alterações comportamentais sutis entre as várias espécies de animais avaliadas. Além de comportamentos específicos e alterações posturais, alterações sutis no tempo estimado podem ser representativas do tipo e da gravidade de uma dor. O reconhecimento de dor crônica em animais implica um desafio a mais para encontrarmos métodos melhores para avaliar a QdV geral de nossos pacientes.220

Tratamento farmacológico da dor Os fármacos têm sido a pedra fundamental e, em geral, a intervenção terapêutica de primeira linha no tratamento bem-sucedido de pacientes com dor.221

Agonistas do receptor adrenérgico α2 Os agonistas do receptor adrenérgico α2 exercem uma ampla variedade de efeitos sobre os sistemas corporais, incluindo o cardiovascular (CV), o respiratório, o endócrino, o gastrintestinal (GI) e o urogenital. O SNC é o local primário de ação dos analgésicos. A xilazina, a detomidina, a romifidina, a medetomidina e a dexmedetomidina são agonistas do receptor adrenérgico α2 disponíveis no comércio para uso veterinário e proporcionam analgesia em uma variedade de espécies.222–226 Entretanto, esses agentes não têm a mesma afinidade pelo receptor adrenérgico α2. Dentre eles, a dexmedetomidina é o receptor adrenérgico α2 mais seletivo, com uma afinidade de ligação seletiva pelos receptores α2:α1 amplamente relatada de 1.620:1, embora a fonte origina1 dessa seletividade realmente dê 1.620:1 como a razão de afinidade da medetomidina,227 fármaco que é um racemato dos estereoisômeros levomedetomidina e dexmedetomidina. Como a levomedetomidina é considerada um isômero inativo, é razoável extrapolar que os motivos de seletividade

sejam similares. Antes de incluir esses (ou quaisquer) fármacos no plano de tratamento da dor de um paciente, avalia-se o benefício versus o risco. Em equinos, a xilazina fornece alívio significativo da dor visceral e da somática, talvez até mais que os opioides ou os AINEs.228– 230 Bezerros submetidos a castração tiveram redução no cortisol sérico (um marcador fisiológico de dor) e comportamento melhor quando se administrou uma combinação de xilazina e cetamina em dose baixa antes do procedimento.231 Ocorreu antinocicepção em lhamas que receberam tiletamina-zolazepam quando se administrou xilazina ao mesmo tempo.232

■ Locais de ação Os receptores adrenérgicos α2 estão localizados no SNC,233 nos âmbitos periférico,234 espinal235 e supraespinal.236 Os agonistas do receptor adrenérgico α2 induzem antinocicepção por agirem tanto nos terminais pós-sinápticos de neurônios aferentes primários como por inibição direta de neurônios da medula espinal (provavelmente via receptores α2). A infiltração local induz analgesia, sugerindo que os receptores adrenérgicos α2 periféricos também medeiem ação analgésica.237

■ Receptores adrenérgicos α2 Os receptores adrenérgicos α2 foram descritos usando-se uma variedade de sistemas de classificação: de acordo com a localização (i. e., pré versus pós-sináptica), a resposta à ativação ou à inibição e à administração de um fármaco.238 Subtipos de receptores Os receptores adrenérgicos α2 podem ser classificados como subtipos α2a, α2b ou α2c. Parece que o mecanismo analgésico de ação é mediado pela ativação da proteína Gi dos canais de K+ dos subtipos α2a e α2c de receptor; a atividade analgésica do α2a é dependente da voltagem.235,239,240 Há uma alta concentração de receptores α2a no corno dorsal da medula espinal, onde a maior parte do efeito analgésico, mas nem todo, é mediada (ver anteriormente). A dexmedetomidina funciona preferencialmente nos receptores α2a,241 embora essa preferência seja menor (10 vezes) em comparação com sua ação em outros subtipos de receptores.242 Além do sinergismo (definido como maior do que a eficácia aditiva de um agente quando administrado junto com outro) entre classes de fármacos, também há sinergismo entre os subtipos α2a e α2c de agonistas dos receptores.243 Ocorre ainda sinergismo entre fármacos que atingem um único subtipo de receptor.244

■ Receptores alternativos e sinergismo

Sistema canabinoide Os agonistas do receptor adrenérgico α2 podem atingir receptores canabinérgicos para produzir nocicepção.245 Além disso, há alguma evidência de que ocorra sinergismo em camundongos entre receptores opioides µ, agonistas do receptor adrenérgico α2 e os receptores de canabinoides.246 Receptores muscarínicos Um trabalho que verificou o papel de receptores muscarínicos na dor neuropática sugere que possa ocorrer uma alteração no eixo noradrenérgico-colinérgico da medula espinal. Em um modelo de dor neuropática em rato, a exposição à dexmedetomidina resultou em aumentos na concentração de acetilcolina e diminuiu a hiperalgesia, sugerindo que a dexmedetomidina pode proporcionar algum benefício analgésico neste modelo.247 Receptores de opioides A evidência de agonistas do receptor adrenérgico α2 que favorecem a analgesia opioide é nítida na literatura sobre espécies de animais de estimação.80,248,249 Contudo, dispõe-se de muito pouca informação sobre a maneira como ocorre esse sinergismo, talvez por causa da complexidade da relação. Por exemplo, o sinergismo pode ser definido usando-se a análise isobolográfica;250 todavia, isso define as relações entre dose e resposta, não a interação subjacente do receptor. É claro que alguns agonistas opioides µ interagem com receptores adrenérgicos α2, com possível afinidade preferencial por certos subtipos de receptores (i. e., α2b e α2c).251 Certos estados mórbidos, como inflamação, podem favorecer a interação de agonistas do receptor opioide µ e as ações de agonistas do receptor adrenérgico α2,252 mas isso continua controvertido.253

Anestésicos locais Os únicos fármacos analgésicos que impedem a transmissão nociceptiva são os anestésicos locais, usados para facilitar uma variedade de procedimentos veterinários. Essa prevenção da nocicepção é tão efetiva que é possível substituir a sedação e um bloqueio local para anestesia em algumas situações.254 Quando comparado com técnicas analgésicas altamente efetivas, como a administração de um opioide e anestésico local no espaço epidural para procedimentos ortopédicos no membro posterior, o bloqueio nervoso apropriado tem vantagens, como menor retenção urinária e consumo reduzido de opioide no pósoperatório, ao mesmo tempo que proporciona um nível similar de analgesia.255 Os anestésicos locais são antinociceptivos porque causam bloqueio neuronal reversível da condução, impedindo assim a transmissão de estímulos nocivos para a medula espinal e o

cérebro. Além disso, os anestésicos locais podem exercer efeitos anti-inflamatórios dependentes da dose, em decorrência de alterações físicas (como a preservação da barreira endotelial), além de efeitos diretos sobre os mediadores da inflamação.256 Os anestésicos locais parecem tanto inibir a liberação de mediador pró-inflamatório como alterá-la através do mesmo mediador. Além disso, os anestésicos locais também parecem alterar todos os estágios de migração de leucócitos para os tecidos inflamados, e ainda podem reduzir a formação de radicais livres.257 Esses efeitos resultariam em menor nocicepção secundária à inflamação reduzida. Além da administração local (p. ex., bloqueio nervoso regional ou infiltração de tecido), examinou-se a administração sistêmica de anestésicos locais para analgesia. A lidocaína administrada por via sistêmica diminui a concentração alveolar mínima dos anestésicos inalados em muitas espécies, sugerindo um possível papel na modulação de estímulos nocivos. No entanto, cães conscientes testados com estimulação elétrica cutânea não mostraram alteração no limiar nociceptivo com uma variedade de dosagens de lidocaína administradas por via sistêmica.258 Contudo, certos procedimentos clínicos, como cirurgia intraocular, deram resultados diferentes.259 Um estudo de Smith et al.259 sugere que haja um benefício com o acréscimo de lidocaína no intraoperatório. Similarmente, o trabalho de Tsai et al. sugere que a administração sistêmica de lidocaína proporcionou analgesia comparável à causada pelo meloxicam em pacientes clínicas submetidas a ováriohisterectomia.260

■ Canais de Na+ A membrana neuronal tem um potencial de repouso entre –60 mV e –90 mV, que é mantido por transporte ativo de Na+ para fora da célula e de K+ para dentro. A membrana consegue isso com uma bomba de Na+/K+-ATPase. Como o K+ extravasa continuamente da membrana (via canais de extravasamento de K+), que é relativamente impermeável ao Na+, a membrana acaba ficando polarizada. Um estímulo nocivo abre os canais dependentes do contágio, permitindo um influxo maciço de Na+ que resulta na despolarização e na propagação do potencial de ação. Os anestésicos locais penetram na bainha de nervo, equilibram e ligam-se aos canais de Na+ dependentes da voltagem para inibir a alteração conformacional que de outra forma ocorreria em resposta aos estímulos nocivos. Isso impede o funcionamento do canal. Os anestésicos locais não afetam o potencial nem o limiar de repouso da membrana.

■ Fibras nervosas O tipo de fibra nervosa que é afetado faz a diferença para o bloqueio conseguido com um anestésico local. A mielinização, o tamanho, a distância dos estímulos e o limiar de

despolarização dos nervos periféricos variam. Os axônios responsáveis pela transmissão de estímulos nocivos em geral são pequenos, com fibras A-δ e C sendo responsáveis pelo volume da transmissão nociva. As fibras A-δ são mielinizadas, mas as fibras C não. Nas fibras nervosas mielinizadas, os canais de Na+ concentram-se nos nodos de Ranvier. Para evitar a transmissão de estímulos, acredita-se que seja necessário bloquear três nodos consecutivos. Embora logicamente faça sentido que o bloqueio de fibras nervosas menores ocorreria primeiro (secundário à maior liberação do fármaco para o tamanho do nervo), não é necessariamente verdade. Isso se deve à relação proporcional entre a velocidade de condução e a distância entre os locais de ação. Fibras maiores têm maior distância internodal e, portanto, requerem menos fármaco para proporcionar bloqueio que fibras nervosas mielinizadas menores, que têm uma distância menor entre os espaços internodais e, portanto, requerem mais fármaco para o bloqueio de todos os locais. Fibras pequenas não mielinizadas requerem a maior concentração do fármaco necessária para banhar essencialmente todo o nervo para que ocorra o bloqueio.261

■ Receptores alternativos para anestésicos locais Os anestésicos locais também bloqueiam canais de K+, embora tenham uma afinidade muito menor pelos canais de K+ dependentes da voltagem do que pelos de Na+.262 Os anestésicos locais bloqueiam ainda canais de Ca++,263,234 provavelmente por causa da similaridade estrutural entre os canais de Ca++ e de Na+. A modulação dos receptores de Nmetil-D-aspartato também pode contribuir para a ação antinociceptiva de certos anestésicos locais.265

Antagonistas do receptor de N-metil-D-aspartato A ativação do receptor de N-metil-D-aspartato (NMDA) é crítica no processamento da sinalização nociceptiva e, como resultado, os antagonistas do NMDA são únicos em sua habilidade de alterar a transmissão da dor. A cetamina tem uma gama de aplicações na modulação da dor, com uso relatado nos contextos de dor aguda, crônica, de queimaduras, do câncer e neuropática.266–270 Em geral, a cetamina é considerada um analgésico mais efetivo para a dor somática que para a visceral.271 Em pessoas, a dose de cetamina necessária para analgesia é muito menor do que a necessária para anestesia, em especial se for associada com um opioide.272 Essas doses baixas não pareceram efetivas em cães e gatos quando avaliados por métodos laboratoriais de avaliação da dor.78,84 Embora a efetividade da cetamina para a dor aguda seja questionável com base em estudos laboratoriais, há evidência clínica favorável ao seu uso quando é provável ocorrer hiperalgesia após dano tecidual.273

Em equinos, doses subanestésicas de cetamina, quando combinadas com tramadol, conferem analgesia em casos de laminite crônica,274 embora se recomende cautela quando houver preocupação com o tempo de trânsito GI.275 Há alguma evidência pré-clínica de que o enantiômero (S)-cetamina tenha mais efeitos analgésicos que a mistura racêmica,276 mas isso é difícil de provar em pacientes clínicos veterinários. A cetamina, em geral, é utilizada como um analgésico adjuvante e seu sucesso como analgésico depende do tipo de dor que o paciente esteja tendo.277 A cetamina pode ser um fármaco útil, pois geralmente há uma redução na quantidade de opioides de que um paciente precisa para o controle da dor quando a cetamina é incorporada ao esquema analgésico. Além disso, a ação da cetamina como um antagonista de NMDA pode combater a hiperalgesia induzida pelo opioide.278,279 Todavia, a cetamina não é isenta de efeitos adversos e, como outros fármacos analgésicos, seu uso deve basear-se em uma análise do risco e do benefício. A amantadina, antagonista de NMDA administrado por via oral, pode ter alguma utilidade no tratamento da dor crônica associada à artrite em cães, quando usada em conjunto com AINEs.280

■ Efeito da via de liberação Embora a administração sistêmica de cetamina para antinocicepção continue sendo mais comum, outras vias foram exploradas. Similarmente aos anestésicos locais, a cetamina pode produzir uma área de hipoalgesia localizada. De fato, há alguma sugestão de que a anestesia regional intravenosa possa ser melhorada com a administração de cetamina.281 Pacientes humanos relataram redução da dor pela radioterapia com a inclusão de cetamina tópica na mucosa oral ou cutânea.282 A cetamina também foi administrada por via epidural ou subaracnoide.283–285 Ela é bem absorvida a partir do espaço epidural, com o efeito tendo início rápido e curto, mas intenso (a diminuição da hiperalgesia pode demorar mais). A cetamina não é comercializada em uma formulação sem preservativo e não foram completados estudos abrangentes sobre sua toxicidade.

■ Locais de ação A cetamina parece ter efeitos periféricos, no corno dorsal da medula espinal,286 e supraespinais nos sistemas límbico e talamoneocortical.287 Os receptores de NMDA estão localizados nos neurônios aferentes secundários (pós-sinápticos).

■ Estrutura e função do receptor de NMDA O receptor de NMDA tem um canal iônico central dependente de ligando, circundado por cinco subunidades. Ele conduz múltiplos íons, inclusive cálcio, potássio e sódio.

Normalmente, o canal formado por essas subunidades é bloqueado pelo magnésio e não permite que os íons o atravessem porque a duração da despolarização é muito curta. No entanto, glutamato com glicina288 ativa o canal, em geral associado a input nociceptivo persistente. Essa ativação resulta na estimação de mensageiros secundários, processos enzimáticos e geração de óxido nítrico, entre outras substâncias, resultando em sensibilização central secundária a aumento da sensibilidade neuronal. Os antagonistas do NMDA funcionam por meio de ligação não competitiva do local da fenciclidina do receptor de NMDA e antagonizando os efeitos de neurotransmissores excitatórios. Pode ocorrer antagonismo como resultado da inibição da ativação do receptor, potencialização do ácido γ-aminobutírico (GABA) como um neurotransmissor inibitório e diminuindo a liberação pré-sináptica de glutamato.

■ Efeitos antinociceptivos do antagonista de NMDA Receptores de opioides Sem dúvida, o efeito analgésico da cetamina é mediado fortemente pela inibição do receptor de NMDA, mas não se pode excluir o efeito sobre o receptor κ de opioide.289 Receptores monoaminérgicos Há um envolvimento potencial do sistema do glutamato no mecanismo de ação antidepressiva do fármaco, sugerindo que os antagonistas do NMDA podem ser úteis no tratamento da depressão grave. A literatura sugere melhora de sintomas de dor em pacientes humanos quando são colocados sob tratamento com antagonistas do NMDA para sua depressão.290 O uso de fármacos monoaminérgicos no tratamento da dor humana é comum quando se trata a depressão como uma comorbidade comum da dor crônica (modulação do componente emocional da dor e desinibição). Canais de Na+ dependentes da voltagem e canais de Ca++ do tipo L Os canais dos íons Na+ e Ca++ no corno dorsal da medula espinal são bloqueados com concentrações clinicamente relevantes de cetamina quando aplicada por via intratecal.291 É provável que essa diminuição na excitabilidade neuronal também explique a eficácia da cetamina após sua administração epidural.292 Canais de K+ sensíveis ao ATP Os canais de K+ sensíveis ao ATP (KATP) são ativados mediante um aumento no monofosfato cíclico de guanosina (cGMP), via óxido nítrico (ON). A estimulação da via ON/cGMP/KATP está implicada como um dos mecanismos moleculares responsáveis pelos efeitos periféricos de antinocicepção observados prejudicados pela cetamina.293

Supressão de neutrófilos e citocinas A cetamina pode reduzir a inflamação mediante a supressão que induz na produção de neutrófilos por mediadores inflamatórios, redução na produção de citocina e alteração no recrutamento de células inflamatórias.294

■ Metabólitos da cetamina Estudos em ratos sugerem que a norcetamina, um metabólito ativo da cetamina, tem efeitos analgésicos.295 Todavia, isso não parece ser verdadeiro em bovinos, ressaltando mais uma vez a importância da pesquisa de um antinociceptivo específico da espécie.296

Anti-inflamatórios não esteroides Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) são usados tipicamente como fármacos de ação prolongada não controlados, tanto orais como injetáveis, no tratamento da dor. A força-tarefa da AAHA/AAFP sobre o tratamento da dor recomenda AINEs como as medicações padrão no período de recuperação após procedimentos eletivos.297 O dano a um fosfolipídio da membrana celular inicia a liberação ou síntese de mediadores inflamatórios que induzem nocicepção. Os AINEs inibem a produção da ciclooxigenase (COX) de moléculas pró-inflamatórias, a partir do ácido araquidônico, diminuindo tanto a formação de prostaglandina (PG) como a produção de tromboxano (TB). As isoenzimas COX são classificadas como COX-1 ou COX-2. Como uma generalização, a COX-1 é considerada uma enzima ‘constitutiva’. A COX-2 é mencionada como uma enzima ‘induzível’ (embora haja alguma evidência de ser constitutiva no cérebro e nos rins em algumas espécies) e desempenha um papel na indução da dor, da inflamação e da febre. A delineação entre constitutiva e induzível é uma supersimplificação; por exemplo, quando o tecido GI é lesado cirurgicamente, é provável que a COX-2 seja necessária para a cicatrização.298 Efeitos colaterais deletérios podem resultar da inibição das enzimas COX que desempenham um papel nas funções homeostáticas ou compensatórias básicas. No equino, a flunixina pode proporcionar uma analgesia pós-operatória mais duradoura que o carprofeno ou a fenilbutazona.299 A flunixina é interessante entre os AINEs de uso veterinário porque parece reduzir efetivamente a dor visceral.300 Como uma classe, em geral, os AINEs são mais úteis na dor somática ou tegumentar em que a inflamação seja um componente importante. Os AINEs são efetivos perifericamente e mostrou-se que a aplicação tópica de diclofenaco a 1% diminui a inflamação (especulando-se que isso diminuiria a dor) em equinos submetidos à perfusão regional em um membro.301 Em bovinos submetidos a descorna e castração, o ganho de peso médio diário pós-operatório

melhorou, e as concentrações de cortisol (usado como um marcador fisiológico) diminuíram quando foram incluídos salicilatos na água de beber, em comparação com bovinos submetidos aos mesmos procedimentos, mas que não receberam salicilatos.302 Pombos, quando recebem a dose apropriada, tiveram analgesia quantificável a partir da inclusão de AINE no seu plano de tratamento pós-operatório.303

■ Locais de ação Os AINEs produzem analgesia diminuindo a conversão inflamatória periférica do ácido araquidônico na enzima COX e, até certo ponto, reduzem a transmissão central da dor.

■ COX-1 Há evidência de que o mecanismo de ação para os efeitos antinociceptivos agudos dos AINEs no nível do cérebro seja mediado em parte por isoenzimas COX-1. Parece que prostaglandinas expressas nas estruturas do tecido neuronal alteram mais a nocicepção mediada pela fibra C que pela fibra A-δ. A expressão do mRNA da COX-1 é suprarregulada na medula espinal em modelos de dor pós-operatória, fornecendo maior evidência de que a COX-2 não é a única isoforma que contribui para a nocicepção espinal.305

■ COX-2 A inibição de isoenzimas COX-2 é benéfica para animais com dor de origem inflamatória. Acredita-se que a dor seja suprimida pela supressão da produção de prostaglandina E2 causada pelo AINE (mediada pela COX-2 induzida). Os nociceptores periféricos também são suprarregulados na presença de prostaglandina E2.306 Como a inibição da COX-1 está associada a muitos dos efeitos adversos dos AINEs, às vezes recomenda-se o uso dos que têm preferência pela isoenzima COX-2 ou são seletivos para ela. No entanto, deve-se mencionar que nenhum AINE disponível no mercado veterinário é isento de efeitos sobre a COX-1 (o envolvimento neuronal da COX-1 pode ser benéfico). Os efeitos adversos em alguns sistemas orgânicos podem ser minimizados quando isoenzimas COX-2 são atingidas. Deve-se notar que é improvável que AINEs seletivos ou preferenciais pela COX-2 forneçam analgesia superior à proporcionada por fármacos não seletivos ou não preferenciais;307 seu benefício primário é uma redução na ocorrência de alguns efeitos GI adversos específicos e sangramento reduzido associado à cirurgia.

■ Leucotrienos e 5-lipo-oxigenase (5-LOX) Os eicosanoides, que são mediadores lipídicos derivados do ácido araquidônico e liberados

pela membrana celular por fosfolipases, constituem a família à qual os leucotrienos pertencem. Os leucotrienos são liberados por lipo-oxigenases (um tipo de mediadores próinflamatórios) e dão uma contribuição mal definida para o processo nociceptivo (embora em seres humanos seu papel inflamatório na asma esteja bem caracterizado). Há alguma sugestão de que a inibição da 5-LOX suprima a alodinia mecânica e os próprios leucotrienos podem desempenhar um papel, no nível da medula espinal, na dor neuropática.308 No cão, a expressão de 5-LOX no osteossarcoma sugere que um inibidor duplo da 5-LOX e da ciclo-oxigenase (p. ex., tepoxalina) pode ser benéfico, além de proporcionar analgesia.30 As articulações caninas osteoartríticas também expressam 5LOX, sugerindo que atingir esse eicosanoide pode melhorar a analgesia em tal condição.310 A tepoxalina foi avaliada farmacologicamente no equino,310,312 mas não foram realizados estudos analgésicos. Usou-se tepoxalina em gatos313 e parece que ela tem um efeito analgésico.314 Na época da elaboração deste livro, a tepoxalina não estava mais sendo comercializada nos EUA.

Opioides Os opioides continuam sendo a classe primária de agentes farmacológicos no tratamento da dor grave aguda. Ao simular a ação dos opioides endógenos (i. e., encefalinas, endorfinas e dinorfinas) e ligar-se os seus receptores, ocorre modulação da dor. Os receptores de opioides utilizam a inibição da proteína G do AMP cíclico para alcançar seu efeito analgésico. Essa inibição leva a aumento na condutância do K+ (o que resulta em hiperpolarização do neurônio de segunda ordem) e na inibição dos canais de Ca++ dependentes da voltagem (portanto, a liberação de neurotransmissor do neurônio de primeira ordem diminui), resultando em menor neurotransmissão de estímulos dolorosos no sistema nervoso aferente sensorial.315,316 A inibição da liberação de outros neurotransmissores excitatórios como a substância P pode ocorrer pela ativação de receptores opioides periféricos.317 É importante notar que os opioides não alteram a condução de impulsos ou a resposta das terminações nervosas a estímulos nocivos. Os opioides são extremamente efetivos na modulação da dor, porque aumentam o limiar dela, mas não impedem a geração de estímulos nocivos, como o fazem os anestésicos locais e os AINEs. Os efeitos adversos importantes dos opioides, como hipertermia e disforia pósoperatórias em gatos,318 levam à necessidade de uma revisão prévia antes de seu uso. Devese mencionar que muitos efeitos adversos dos opioides diminuem quando um animal está com dor (ao contrário da pré-medicação em um animal que não foi submetido a um procedimento invasivo). Além disso, os opioides, em geral, têm uma alta margem de segurança e, se necessário, seus efeitos são reversíveis.

A hipoalgesia atribuída aos opioides não tem eficácia igual em todos os tipos de dor, e os resultados podem variar de acordo com o modelo de pesquisa usado para avaliar a eficácia e também conforme a espécie envolvida. Por exemplo, no gato, obteve-se analgesia visceral com butorfanol e nalbufina, mas, quando os mesmos fármacos foram testados contra um estímulo elétrico no gato, eles não foram tão efetivos.319 No equino, há resposta a estímulos nocivos térmicos e elétricos após a administração de morfina,320 e quando administrada por via epidural parece ser efetiva clinicamente nessa espécie.321,322 Na verdade, opioides como a remifentanila, que não alteram a concentração alveolar mínima (CAM) em gatos anestesiados, induzem um efeito hipoalgésico nos mesmos animais quando estão conscientes.3223

■ Locais de ação Os opioides funcionam no âmbito periférico, no espinal e no supraespinal em seus receptores estereoespecíficos, que ocorrem tanto em níveis pré como pós-sinápticos. Certos tecidos periféricos, como o articular (sinóvia) em cães e equinos, podem gerar receptores de opioides.324–326 A ação periférica dos opioides é mais profunda após um evento inflamatório no tecido articular ou periarticular, sugerindo ativação ou suprarregulação de receptores de opioides nos neurônios primários aferentes localmente.325 Portanto, a morfina intra-articular em parte é um analgésico adequado para condições como sinovite.327 O tecido da córnea gera receptores de opioides em várias espécies,328 tendo-se usado a aplicação tópica simultânea de tramadol e morfina para analgesia da córnea. É necessário avaliar mais a efetividade e a toxicologia das preparações oftálmicas que contêm opioide antes de se recomendar seu uso rotineiro prolongado.329,330 Os opioides causam inibição sináptica de neurônios de segunda ordem transmitindo informação nociceptiva no corno dorsal da medula espinal. A presença desses receptores na substância gelatinosa é responsável pelos efeitos analgésicos de opioides administrados por via epidural. A administração epidural permite que o opioide se difunda através da duramáter para o líquido cerebroespinal, que banha a medula espinal. A duração da ação dos fármacos lipofílicos como a morfina é mais prolongada por causa do tempo maior de residência. Embora haja muitos relatos de benefício da analgesia com opioide epidural em várias espécies,331–333 deve-se mencionar em particular a equina. Ainda que continue havendo algumas dúvidas sobre os eventos adversos associados ao uso sistêmico singular de todos os agonistas opioides µ como a morfina em equinos, seu uso epidural parece benéfico.321,334 No nível supraespinal, há uma ampla distribuição de receptores de opioides no córtex frontal, na amígdala, no córtex somatossensorial, no colículo e no cerebelo. Todavia, é provável que a distribuição varie bastante entre as espécies.335 Por exemplo, as espécies que

tendem a exibir comportamento excitatório em resposta a opioides (p. ex., gatos e cães) têm uma concentração mais baixa de receptores de opioides na amígdala e no córtex frontal que as espécies que costumam ficar sedadas (p. ex., seres humanos, cães e primatas).336 Isso pode explicar o amplo espectro observado de alteração mental em espécies diferentes após administração de um opioide específico. O dogma sugere que aves mostram mais expressão de receptor κ, e, portanto, é mais provável que respondam aos opioides com atividade agonista κ. No entanto, alguns estudos com antinociceptivos sugeriram que os agonistas opioides µ (p. ex., hidromorfona) também podem ser efetivos (aumento do limiar térmico) em algumas espécies de aves.337,338 O componente emocional da dor é mediado via sistema límbico, onde os opioides agem alterando o componente motivacional-afetivo da percepção (i. e., ajudando a tornar a dor mais tolerável). Em espécies não verbais, esses efeitos permanecem indefinidos, mas podem estar presentes em espécies socialmente avançadas como os primatas mais altamente evoluídos e mamíferos aquáticos (golfinhos e baleias). Classificação dos receptores de opioides Os receptores de opioides foram alvo de vários esquemas de classificação. Atualmente, a International Union of Basic and Clinical Pharmacology (IUPHAR) classifica os receptores de opioides como δ, κ, µ e nocicepção/orfanina FQ (NOP).339 Desses receptores, os principais envolvidos na modulação nociceptiva são o µ e o κ. O receptor δ não parece ter um papel na analgesia aguda, mas parece que há um benefício potencial no sentido de induzir a atividade agonista do receptor δ durante estados de dor crônica.340 O gene do receptor µ foi identificado e clonado, identificando-se os subtipos µ1 e µ2. Similarmente, foram descritos subtipos de δ (δ1 e δ2) e κ (κ1, κ2 e κ3). Até que se disponha de mais informação sobre a atividade específica de cada subtipo e sejam desenvolvidos agonistas seletivos clinicamente úteis para cada um, o interesse neles continua sendo principalmente acadêmico. A presença de subtipos específicos de receptores de opioides sugere a possibilidade de serem desenvolvidos mais fármacos seletivos com qualidades analgésicas desejáveis acompanhadas de menos efeitos adversos.

■ Mecanismos de ação alternativos Receptores monoaminérgicos O tramadol e seus metabólitos são agonistas relativamente fracos do receptor µ, mas o tramadol também exerce inibição da recaptação de norepinefrina e serotonina.343,344 A atividade µ do tapentadol é maior do que a do tramadol, com inibição proeminente da recaptação de norepinefrina e efeito mínimo sobre a serotonina. O tapentadol tem maior efeito opioide em seres humanos do que o tramadol porque penetra melhor no SNC. O

tramadol pode ser útil para a dor leve, em especial quando combinado com um AINE.345 O uso veterinário do tapentadol só foi examinado recentemente,346 mas pode vir a provar ser mais eficaz em algumas espécies. Receptores muscarínicos Os opioides podem causar inibição da liberação de acetilcolina das terminações nervosas, o que, além da analgesia, pode explicar alguns dos efeitos colaterais comuns de opioides (p. ex., estase GI, alterações pupilares). Receptores do NMDA Os receptores de opioides podem ser desacoplados das vias sinalizadoras a jusante após a atividade da proteinoquinase C, como resultado da ligação de aminoácidos excitatórios aos receptores do NMDA. A administração prolongada de opioides pode acabar resultando em redução da eficácia (i. e., tolerância).347 Por essa razão, sugeriu-se que a inclusão de cetamina ou metadona no tratamento, ambas com atividade antagonista do NMDA, pode amenizar o início de tolerância a opioide durante tratamento prolongado com esse fármaco.

Analgésicos adjuvantes ■ Corticosteroides Os corticosteroides são anti-inflamatórios que diminuem a dor de origem inflamatória. Eles estão disponíveis em uma grande variedade, incluindo as formas tópica, oral e injetável. A maioria dos veterinários escolhe um AINE para diminuir a inflamação em decorrência dos efeitos adversos sistêmicos que podem resultar da administração prolongada de um esteroide exógeno em dose alta (p. ex., poliúria e polidipsia, ulceração gastrintestinal, doença de Cushing iatrogênica). Local de ação Os efeitos anti-inflamatórios periféricos do glicocorticoides foram reconhecidos há anos. No entanto, o papel do eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenocortical na modulação da dor é menos bem entendido, especialmente nos animais de estimação. Há alguma evidência de que no rato há um componente central envolvido na ação antinociceptiva dos glicocorticoides.348

■ Gabapentina e pré-gabalina A gabapentina e a pré-gabalina são usadas comumente para tratar a dor de origem neuropática. Esses compostos neurofarmacêuticos são análogos estruturais do GABA,

embora seus mecanismos de ação não pareçam resultar de qualquer interação real de receptor GABAérgico. A gabapentina é amplamente usada para se tratar uma variedade de síndromes neuropáticas humanas, mas em animais não verbais a evidência é menos clara.349 Embora a pregabalina tenha sido submetida a avaliações farmacocinéticas em animais de estimação, há poucos dados confirmando que tenha eficácia analgésica em animais de estimação.350,351 Locais de ação O efeito analgésico da gabapentina e da pregabalina ocorre em locais de ação espinais e supraespinais. Receptores α2-δ associados a bloqueio de canais de cálcio dependentes da voltagem parecem ser responsáveis tanto pela ação supraespinal mais alta no SNC como pela inibição dos neurônios aferentes sensoriais no sistema nervoso periférico.352

■ Antagonistas do receptor de neurocinina (NK) Os receptores NK-1 são ativados pela substância P e estão distribuídos difusamente pelo corpo. Embora o envolvimento desses receptores na nocicepção ainda esteja sendo investigado, parece que alguns podem ter um papel na facilitação da dor e na hiperalgesia. Eles foram identificados no SNC e no sistema nervoso periférico. Embora o maropitanto seja usado primariamente como um antiemético, ele diminuiu a necessidade de anestésico em um modelo canino de nocicepção visceral, bem como a resposta nociva à manipulação ovariana, sugerindo um possível efeito analgésico.354 É necessário muito mais trabalho para se determinar se um efeito analgésico de significado clínico pode ser alcançado via antagonismo do receptor NK-1 no SNC e no sistema nervoso periférico.355,356

■ Antagonistas do receptor transitório potencial de vaniloide do tipo 1 (TRPV1) Os receptores TRPV1 são suprarregulados na inflamação e também em certas condições neuropáticas.357 Os estímulos nocivos, incluindo a capsaicina e o calor, são integrados no nível molecular por esse receptor. Enquanto os agonistas em locais do TRPV1 podem resultar em analgesia, o efeito inicial é excitação considerável, que pode resultar em dano neuronal e dor. As investigações sobre os antagonistas do TRPV1 mostraram benefícios em alguns estados dolorosos.358 Em um estudo realizado com cães saudáveis sem dor, os testes nociceptivos sugeriram analgesia superior com buprenorfina, em comparação com o ABT116 (um antagonista do TRPV1).359 Entretanto, em cães com sinovite induzida quimicamente, a analgesia ocorreu após o uso de ABT-116.360 Esses fármacos têm alguns efeitos adversos, incluindo hipertermia e diarreia.359 É necessária mais informação sobre as diferenças entre espécies, dosagens e alívio da dor com essa classe de fármacos, antes que

eles possam ser recomendados na prática clínica. Local de ação Os TRPV1 são canais de cátions não seletivos acionados por ligando, que contribuem para a regulação das concentrações intracelulares de cálcio e ocorrem difusamente em todo o corpo.

Modificadores não farmacológicos da dor A fisiologia forneceu uma base complexa e multifacetada da sensação nociceptiva e da modificação do sinal transmitido. A expressão ‘medicina física’ descreve técnicas e modalidades que interagem com processos fisiológicos do corpo para que exerçam efeitos sobre mecanismos intrínsecos de cura e a homeostasia. As técnicas da medicina física podem fazer a interface com a fisiologia endógena de várias maneiras via: • • • • • • • • •

Modalidades relacionadas com a temperatura Deformação tecidual Neuromodulação periférica Neuromodulação espinal Neuromodulação central Modulação cinemática Modulação do metabolismo e do fluxo sanguíneo Pontos de disparo de espasmo muscular e miofascial Imunomodulação.

■ Modalidades relacionadas com a temperatura Tanto temperaturas quentes como frias são detectadas por canais de potencial receptor transitório (TRP) ou neurônios aferentes nociceptivos.361 Subtipos diferentes de canais são ativados especificamente por alguns estímulos (dor quente ou fria) e suprimidos por outros (analgesia).362 O frio pode ser analgésico, causando diminuição da dor ao emitir sinais periféricos e espinais. Ele também reduz a migração de células inflamatórias para os tecidos lesados, diminuindo a inflamação. A vasoconstrição reduz as cascatas de dor (ambos os sistemas requerem um suprimento sanguíneo robusto para que haja amplificação), a formação de edema e a demanda de oxigênio, além da distensibilidade tecidual.363 O frio é utilizado com frequência em tipos agudos e inflamatórios de dor, bem como para diminuir uma lesão tecidual secundária atribuída a dano inflamatório.

O aquecimento pode aliviar a dor ou ser nocivo, dependendo da condição do tecido. Perifericamente, o aquecimento pode inativar e suprimir os canais de TRP.361 Centralmente, o calor exerce inibição competitiva dos sinais nociceptivos e libera neurotransmissores antinociceptivos no nível do tálamo, do córtex cerebral e da medula espinal.363 O calor aumenta a distensibilidade do tecido, o fluxo sanguíneo tecidual e o metabolismo. Ao aumentar o fluxo sanguíneo, o calor promove a formação de edema no tecido com lesão aguda. Contudo, ao aumentar a dilatação venosa com relação à arterial, o calor é útil para diminuir o edema estabelecido previamente. Junto com o frio, o calor reduz o espasmo muscular e, ao contrário do frio, também restabelece o fluxo sanguíneo para regiões hipóxicas (pontos de disparo miofascial). O aumento da temperatura tecidual também facilita a liberação de oxigênio ao desviar a curva de dissociação da oxihemoglobina em favor da descarga. Na dor aguda e inflamatória, o calor amplifica a sinalização da dor e está contraindicado, não sendo aplicado durante a fase inflamatória aguda da lesão, mas desempenha um papel importante a longo prazo na dor crônica e na fase de recuperação da lesão. Por causa dos efeitos de distensibilidade tecidual e desativação do ponto de disparo, o calor é um precursor importante do estiramento, manipulações de amplitude de movimento ou exercícios e massagem.

Deformação tecidual A deformação tecidual é um modulador de cicatrização intrínseca em tecidos moles como pele, músculo, ligamentos, tendões, fáscia, cartilagem e periósteo. Forma-se uma membrana integrada entre o músculo e a fáscia em todo o corpo, e esse complexo proporciona forças tênseis tanto ativas como passivas em todo o corpo.364 Alterações nas forças tênseis basais estão associadas a dor, e o estiramento desses componentes do tecido mole melhora a marcha, a dor mecânica e a inflamação local em roedores.365,366 Quando esse complexo de tecido conjuntivo é deformado, são liberados fatores do crescimento e uma variedade de proteínas e neurotransmissores.367,368 Fibroblastos no tecido conjuntivo frouxo respondem ao estiramento em questão de minutos, aumentando o ATP e as relações citoesqueléticas com células adjacentes.369 Essa cascata de eventos pode ocasionar alterações no processamento nociceptivo, nos processos metabólicos, na inflamação, no fluxo sanguíneo e na capacidade de cicatrização.370

■ Modalidades Usa-se uma gama de intervenções farmacológicas modernas já conhecidas para o tratamento da dor. Exemplos simples incluem várias formas de massagem (desde a extremamente superficial do tipo para linfedema até a tecidual mais profunda) e de

atividade como exercício, estiramento e movimento. Métodos mais complexos incluem mobilizações articulares, acupuntura e os que liberam o ponto de disparo. A pesquisa sobre acupuntura demonstra um impacto significativo das agulhas sobre a mecanotransdução no compartimento do tecido conjuntivo areolar.371 A rotação da agulha dispara disseminação de fibroblastos com aumento na área do corpo celular em 30 min de uma rotação de 720° Esse efeito é bloqueado pela inibição farmacológica da contração da miosina. A resposta citoesquelética dissemina-se por centímetros a partir do estímulo original e acarreta alterações na fosforilação, na expressão gênica, na síntese de proteína e no meio extracelular. Alterações cumulativas na contração de fibroblastos, na expressão gênica e no metabolismo validam a observação de que os efeitos da acupuntura se ampliam com o tempo e são persistentes.372,373 O tratamento com ondas de choque aplica os princípios de deformação tecidual para promover a cicatrização mediante o uso de ondas sonoras para distorcer tecidos profundos. A deformação desses tecidos, em especial na junção de tipos distintos de tecido (como osso com tendão, periósteo com osso e cartilagem com osso), promove a cura em articulações, lesões tendinosas profundas, ferimentos profundos, lesões nervosas e fraturas que não consolidam.374 A terapia com ondas de choque demonstrou exercer efeitos protetores sobre a cartilagem em um modelo de lesão cruzado em roedores, quando usada no início do processo degenerativo.375

Atividades neuromoduladoras As modalidades neuromoduladoras interagem com estruturas do sistema nervoso no intuito de restaurar a homeostasia. A neuromodulação modifica neurotransmissores na pele, ao longo de axônios, na medula espinal, com interneurônios, no cérebro e até mesmo nas estruturas de suporte da glia. Essas alterações podem ser tanto a curto prazo como de longa duração.

Neuromodulação periférica (mecanotransdução) Essa técnica utiliza uma tríade de componentes periféricos de dor e sensação: terminação nervosa, vasos sanguíneos (e células circulantes) e mastócitos. Quando uma agulha de acupuntura (ou outra forma de estimulação) é aplicada, os fibroblastos em torno da ferida são atingidos pela ponta da agulha e ocorre mecanotransdução. Os mastócitos liberam grânulos de peptídios mistos e neurotransmissores, incluindo peptídios opioides, bradicinina, serotonina e adenosina. A dilatação de capilares permite o recrutamento de células inflamatórias que liberam peptídios endógenos e outros neurotransmissores.

Populações de receptores são alteradas para aumentar as de receptores de canabinoides e de opioides ou terminações nervosas periféricas, e os canais transitórios de receptor potencial (TRP) sofrem alterações de subtipo. Interleucinas e prostaglandinas são alteradas na localização da entrada da agulha, promovendo mais atividades anti-inflamatórias e analgésicas (desde que o dano tecidual grave em si não seja causado pelo emprego dessa técnica).376

Neuromodulação espinal Pode ocorrer neuromodulação espinal alterando-se o meio de neurotransmissores, incluindo opioides endógenos, serotonina, norepinefrina, glutamato e citocinas, bem como mediante supressão da inflamação glial. Há muito se sabe que os inibidores da transmissão opioide reduzem a eficácia da analgesia induzida pela acupuntura.377 O acréscimo de impulsos elétricos altera o tipo de opioides liberados de segmentos da medula espinal, com baixa frequência (2 a 4 Hz) de liberação de endorfinas e encefalinas e alta frequência (100 a 200 Hz) de liberação de dinorfinas.378 Neurônios que liberam serotonina e norepinefrina e projetam-se para a medula espinal também estão implicados na neuromodulação associada à acupuntura e à eletroacupuntura. Vários compostos farmacológicos atingem esses sistemas receptores, e os dados clínicos confirmam que as doses dos fármacos [opioides, inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRSs), inibidores da recaptação de serotonina e norepinefrina (IRSNs)], em geral, são diminuídas quando eles são combinados com o uso de várias modalidades de acupuntura.376 O glutamato e seus receptores são inputs excitatórios importantes no nível da medula espinal. A fosforilação de receptores de glutamato é diminuída com a acupuntura e a inibição da ativação de receptores do NMDA foi sugerida a partir dos resultados de vários estudos.379

■ Células da glia e citocinas A acupuntura interfere na ativação das cascatas inflamatórias microgliais induzida por espécies reativas de oxigênio, diminuindo assim potencialmente a dor após lesão da medula espinal.377,380 Os opioides são ativadores da micróglia, e a acupuntura muda aquele padrão de ativação.377,380 A glia também é responsável por fatores neuropáticos. A estimulação elétrica e a acupuntura podem amplificar fatores de crescimento nervoso que se sabe serem capazes de influenciar a plasticidade e a sensibilização do SNC.381 Os fatores neuropáticos são liberados por inúmeros tecidos associados ao sistema nervoso periférico e ao central. Como mencionado anteriormente com a mecanotransdução

periférica, os fatores do crescimento liberados desses tecidos podem aumentar a cicatrização, modificar o meio químico e alterar o crescimento, a cicatrização e a plasticidade dos nervos. A acupuntura pode alterar muitos desses fatores em cada localização tecidual.382,383

Neuromodulação central A neuromodulação central serve para inibir a dimensão sensorial da dor. As estruturas supraespinais associadas à neuromodulação central a partir de tratamentos não farmacológicos incluem núcleos na via periaqueductal cinzenta (PAG)-núcleo arqueado magno-núcleo da rafe-espinal.384 Além das vias moduladoras rígidas centrais da dor, vários fatores ambientais e comportamentais influenciam o processamento da dor.385 Os dados traduzíveis mostram que roedores de laboratório também apresentam alterações de comportamento na sensação de dor.386 As modalidades da medicina física obviamente afetam a neuromodulação central.387 Isso pode aumentar os efeitos clínicos de várias técnicas da medicina física, embora também complique a interpretação das modalidades da medicina física em ensaios clínicos randomizados. Muitas modalidades de medicina física mostram evidência de melhora em comparação com nenhum tratamento ou com o tratamento farmacológico padrão, mas em geral não são melhores do que placebo.388 Extrapolar os achados experimentais das modalidades da medicina física continua a ser um desafio quando se tenta determinar os mecanismos fisiológicos e/ou psicológicos exatos associados aos resultados específicos de uma modalidade que podem ser confundidos por um efeito placebo significativo eliciado pela própria interação humana–animal (resultando em neuromodulação central).389

Treinamento cinemático O treinamento cinemático inclui tanto o de força como o de função, além de uma forma de neuromodulação, no intuito de melhorar a função neurológica e os resultados. O sistema nervoso é um sistema que depende do uso e, mediante treinamento e exercício em esteira e dispositivos de assistência, é possível conseguir recuperação significativa de uma lesão neurológica.390 Um animal pode apresentar-se em qualquer lugar com um contínuo desde dor mínima a extrema e minimamente a altamente funcional. A dor percebida e a função não se combinam necessariamente, o que aumenta a necessidade de se avaliar cada indivíduo separadamente, em vez de ter como foco uma abordagem às lesões nervosas baseada em um protocolo.391,392

Estimulação do metabolismo e fluxo sanguíneo A estimulação de processos metabólicos pode desempenhar um papel aumentando muitas das modalidades e terapias prévias mencionadas. Nos últimos anos, o tratamento a laser passou a ser uma técnica cada vez mais utilizada no armamentário da medicina física que está disponível para veterinários. O tratamento a laser contribui para a neuromodulação e a neuroproteção, além de ter o efeito de estimular o metabolismo e a respiração celular via energia luminosa.393 Ainda há várias questões não respondidas sobre o tratamento a laser (como se a luz pulsada é importante ou não, qual a dose necessária e com que velocidade ela deve ser administrada para ter efeito melhor), mas para condições dolorosas e feridas foi estabelecida uma boa quantidade de evidência clínica empírica.394

Espasmo muscular, pontos de disparo miofasciais e dor O espasmo muscular é um fator contribuinte tanto para a dor aguda como para a crônica. Uma porcentagem significativa de locais para pontos de acupuntura está associada a regiões que geram disfunção muscular e dor, como pontos de disparo miofascial, junções musculotendinosas e pontos motores musculares. As técnicas de acupuntura com agulha constituem uma prática padrão na fisioterapia (agulha seca), no tratamento de dor osteopática referida e na medicina desportiva.395,396 O uso de calor para desativar os pontos de disparo foi discutido na seção intitulada modalidades relacionadas com a temperatura. A massagem também ajuda a reduzir os pontos de disparo miofasciais, tendo-se criado uma variedade de técnicas para cuidar desse componente particular de uma experiência dolorosa. A tensão miofascial pode resultar de estímulos que surgem em outras localizações (como articulações, coluna vertebral, tendões), amplia a sensibilização à dor e pode danificar tecidos locais e regionais criando tração excessiva e persistente em articulações e espaços discais. Tais ações, por sua vez, podem contribuir para a degeneração e a ruptura de disco intervertebral, OA, tendinopatias e ruptura de ligamentos.397

Imunomodulação Dentre as modalidades de medicina física, a acupuntura e os exercícios são aquelas estudadas mais extensamente, por causa de seus efeitos imunomoduladores.397 Demonstrou-se que a acupuntura tem ações imunomoduladoras periféricas, como a modulação da citotoxicidade da célula destruidora natural e o equilíbrio de subtipos de célula T que podem favorecer a cicatrização versus variedades de lise. Além disso, a

acupuntura há muito tempo é reconhecida para modular a comunicação neuroimune mediada centralmente.398 As regiões específicas de atividade neuroimune incluem neurotransmissores periféricos (de opioides, canabinoides, serotonina, norepinefrina etc.) que ativam o sistema nervoso autônomo em um padrão espaço-temporal específico e eliciam respostas psicofísicas mensuráveis como analgesia, regulação de função visceral e função imune modificada. Esses neurotransmissores circulantes modificam a atividade de uma variedade de células imunes. O estado estável do sistema imune de um indivíduo pode alterar a via sinalizadora neural-imune. No âmbito central, a acupuntura e modalidades de exercício afetam o hipotálamo (e o núcleo motor dorsal do vago), que é o centro primário de modulação neuroendócrina-imune e também a regulação do sistema nervoso autônomo.399 A dor e os estados imunes estão intrinsecamente interligados e as camadas dessas relações estão sendo esclarecidas apenas gradualmente. A utilização de várias modalidades da medicina física pode alterar simultaneamente esses sistemas complexos e interdependentes.

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30 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doença Hepática

Introdução Anatomia e fisiologia normais Suprimento sanguíneo e organização estrutural Funções hepáticas Provas e monitoramento da função hepática Provas de função hepática e interpretação das enzimas hepáticas Alterações bioquímicas comuns associadas à patologia hepática Problemas de biotransformação e eliminação de fármacos na doença hepática Sedativos e anestésicos Agentes inalatórios Bloqueadores neuromusculares Fisiopatologia hepática e abordagem ao manejo anestésico Hepatite Considerações para procedimentos diagnósticos Sedação para biopsia guiada por ultrassom Considerações para cirurgia laparoscópica Laparotomia Colecistectomia e obstrução do trato biliar extra-hepático Neoplasia hepática Shunt portossistêmico Radiologia intervencionista Torção do lobo hepático Manejo da dor nas doenças hepatobiliares

Referências bibliográficas

Introdução O fígado apresenta localização central no corpo, entre o diafragma e as vísceras abdominais, onde recebe sangue proveniente da circulação porta. O sangue proveniente do trato gastrintestinal é rico em proteínas, gorduras e carboidratos, além de conter bactérias, fármacos e toxinas em potencial. Além de sua função mais evidente, isto é, a participação hepática na digestão (produção de bile, decomposição dos nutrientes e eliminação das bactérias da circulação porta), outras funções mais importantes para o anestesista incluem: a homeostasia da glicose no sangue, a produção de proteínas necessárias para a coagulação, a produção de albumina, a biotransformação e a excreção de fármacos e seus metabólitos e a excreção de produtos de degradação do metabolismo.

Anatomia e fisiologia normais O fígado é a maior glândula do corpo. Representa 1,5 a 4% do peso corporal total e é semelhante do ponto de vista anatômico e fisiológico entre as espécies. O fígado pode ser dividido em quatro lobos principais (lobo hepático direito, lobo hepático esquerdo, lobo quadrado e lobo caudado). Os lobos hepáticos direito e esquerdo podem ser ainda subdivididos em lobos lateral e medial separados. A maioria das espécies domésticas tem uma vesícula biliar, com a exceção do cavalo e do rato, nos quais a ausência de vesícula biliar é compensada por grandes ductos biliares. Em algumas espécies, o ducto biliar termina diretamente no duodeno (p. ex., caninos e bovinos), ao passo que, em outras, compartilha um ducto comum com o pâncreas (p. ex., gato, cavalo e pequenos ruminantes). Esse aspecto pode ser importante, visto que algumas doenças hepatobiliares também podem afetar o pâncreas dessas espécies.1 Outras diferenças anatômicas menos importantes estão além do objetivo deste capítulo.

■ Suprimento sanguíneo e organização estrutural A disposição das estruturas hepáticas está centralizada na veia cava caudal e na veia porta. O sangue que retorna da maior parte do trato gastrintestinal e do baço flui através da veia porta. A circulação porta é responsável pelo suprimento da maior parte do fluxo sanguíneo para o fígado. Um segundo suprimento sanguíneo provém da artéria hepática, que fornece sangue altamente oxigenado para ajudar a sustentar a função hepatocelular. Embora a veia porta transporte sangue com conteúdo de oxigênio menor do que a artéria hepática, ela desempenha um importante papel na oxigenação do órgão, em virtude do grande volume de

sangue fornecido. O sinusoide é a unidade funcional do fígado e está organizado ao redor da veia hepática, à semelhança dos raios de uma roda (Figura 30.1). O sangue da artéria hepática entra nos sinusoides diretamente ou por meio do plexo capilar peribiliar. Mistura-se com o sangue venoso porta na rede microvascular sinusoide de baixa pressão. Os hepatócitos sinusoidais podem ser divididos em três zonas diferentes, dependendo de sua localização (Figura 30.1). A área periporta, onde o sangue flui para dentro do órgão, é denominada zona 1, e os hepatócitos situados nessa região apresentam uma grande quantidade de mitocôndrias. Trata-se do local onde ocorre a maioria dos processos oxidativos. A zona 2 representa uma transição entre as zonas 1 e 3. A zona 3 localiza-se próximo às veias centrais (centrolobulares), onde o sangue sai do órgão e deságua na circulação central. Os hepatócitos localizados nessa região contêm uma grande quantidade de retículo endoplasmático liso e atividade enzimática microssomal e, portanto, desempenham um importante papel na desativação e metabolismo dos fármacos. O conhecimento desse arranjo é importante para prever as áreas hepáticas que serão mais afetadas por metabólitos tóxicos específicos. A ocorrência de elevação da pressão portal pode promover a neovascularização da rede vascular esplâncnica e o desenvolvimento de shunts portossistêmicos adquiridos. É necessária a atuação de mecanismos compensatórios para que o aumento do fluxo porta afete minimamente a pressão venosa porta. Vários mecanismos são responsáveis pela manutenção de uma pressão de perfusão sinusoidal adequada, enquanto mantêm uma baixa pressão venosa portal, incluindo baixa resistência basal, locais de resistência pré- e póssinusoidais distensíveis, vascularização hepática de alta complacência e resposta de tamponamento da artéria hepática (HABR).2 A HAB está associada à adenosina quanto ao mecanismo envolvido, visto que, à medida que o fluxo sanguíneo porta diminui, ocorre o acúmulo de adenosina, causando vasodilatação das arteríolas hepáticas adjacentes. Essa dilatação aumenta o fluxo sanguíneo arterial e mantém a perfusão hepática.2,3

Figura 30.1 Microanatomia do parênquima hepático. Zona 1, periporta; zona 3, centrolobular; zona 2, entre as zonas 1 e 3. Fonte: Michael J. Dark, Department of Infectious Diseases and Pathology, College of Veterinary Medicine, University of Florida, Gainsville, FL, EUA. Reproduzida, com autorização, de Michael J. Dark. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

■ Funções hepáticas O fígado desempenha numerosas funções, que afetam todos os sistemas do corpo (Boxe 30.1).4 Desempenha um importante papel na síntese e na degradação das proteínas, incluindo a albumina, as proteínas da coagulação e numerosos peptídios. Outras funções importantes incluem o armazenamento de glicogênio, o metabolismo dos nutrientes, a destoxificação e a excreção de produtos de degradação endógenos e xenobióticos. Homeostasia das proteínas Normalmente, a disponibilidade de proteínas plasmáticas é grande em relação ao consumo diário. A concentração de proteína está diminuída mais frequentemente na doença crônica ou em casos de perda grave. A albumina é a proteína mais abundante produzida pelo fígado e está envolvida em vários processos homeostáticos. De maneira notável, a albumina é um importante elemento que contribui para a pressão oncótica do plasma. Curiosamente, a produção de albumina é regulada (por retroalimentação) em parte pela pressão oncótica do plasma, além de sua concentração plasmática.5 A albumina também é uma importante proteína transportadora do plasma, que se liga a várias substâncias, incluindo alguns agentes anestésicos.

Vários fatores da coagulação, como fibrinogênio, protrombina, fatores V, VII, IX, X, XI, XII e XIII, pré-calicreína e cininogênio de alto peso molecular são sintetizados ou ativados pelo fígado.6 O fígado também é responsável pela síntese de proteínas que modulam a coagulação, como plasminogênio, inibidor do ativador do plasminogênio 1, α2antiplasmina, antitrombina e proteínas C e S. Além disso, realiza a carboxilação dependente de vitamina K da protrombina, dos fatores VII, IX e X e das proteínas C e S.7 Boxe 30.1 Principais funções do fígado.

Armazenamento e suprimento de nutrientes Pressão oncótica do plasma Metabolismo dos lipídios Metabolismo dos carboidratos Metabolismo das proteínas Albumina Proteínas da coagulação Citocinas Hematopoese fetal e extramedular Biotransformação e excreção biliar Remoção da amônia e produção de ureia Depuração das proteínas plasmáticas Fonte: adaptado de 4. Reproduzido, com autorização, de Wiley. Biotransformação e eliminação de xenobióticos Os sistemas enzimáticos envolvidos na biotransformação de substâncias estão geralmente localizados no fígado. Entretanto, outros tecidos, como os pulmões, os rins e o trato gastrintestinal, também exibem uma capacidade metabólica significativa para algumas substâncias. A via de administração e distribuição subsequente dos fármacos para os locais precisa ser considerada quando se administram sedativos, analgésicos e anestésicos.8 O metabolismo hepático de primeira passagem reduz significativamente a biodisponibilidade

de vários fármacos, particularmente após administração enteral e, em algumas espécies, retal. A biotransformação dos xenobióticos pode ser dividida em reações de Fase I (oxidação, redução ou hidrólise) e de Fase II (conjugação). A transformação de Fase I introduz um grupo polar (p. ex., OH– e NH2–) ao fármaco original. Com frequência, essas reações inativam os fármacos. Entretanto, a adição desses radicais funcionais pode resultar em metabólitos ativos de alguns fármacos ou causar a ativação de um profármaco. Um exemplo de profármaco é a codeína, que é catalisada pela CYP2D6 e O-desmetilada para formar a morfina. A atividade analgésica da codeína parece estar relacionada com a Odesmetilação do fármaco localmente no sistema nervoso central, explicando a baixa concentração plasmática de morfina após uma dose analgésica de codeína.7-9 O sistema do citocromo P450 (CYP) é o grupo mais importante de enzimas de metabolismo microssomais do corpo. Essas enzimas são encontradas em diversos tecidos, como o fígado, os rins e osintestinos, e são responsáveis pela oxidação e redução de xenobióticos e substâncias endógenas. Essas reações convertem compostos relativamente lipofílicos em metabólitos hidrofílicos para facilitar a sua eliminação pela urina ou bile. Essas reações ocorrem principalmente dentro das células, nos microssomos do retículo endoplasmático liso (i. e., enzimas microssomais). Os hepatócitos da zona 3 são os que apresentam maior conteúdo de enzimas do citocromo P450. Sua localização onde ocorre biotransformação é importante para prever a região onde o dano hepático será mais evidente quando um fármaco é metabolizado a substâncias tóxicas. Um exemplo é fornecido pela necrose centrolobular e colângio-hepatite grave observadas em alguns gatos após a administração de diazepam oral.10 Embora as mesmas famílias e subfamílias de enzimas P450 estejam presentes na maioria das espécies domésticas, diferentes enzimas podem ser encontradas em cada espécie. Além disso, a mesma enzima pode estar presente, mas pode atuar em uma variedade diferente de substratos, em comparação com os seres humanos.11 Por conseguinte, é problemático extrapolar doses, intervalos, efeitos e destino metabólico dos fármacos a partir de dados obtidos em seres humanos para espécies veterinárias sem dados clínicos confirmatórios. Existem distinções na atividade das CYP não apenas entre espécies, mas também entre diferentes raças e gêneros. Por exemplo, os Beagles apresentam maior atividade da propofol hidroxilase (CYP2B) do que os Galgos.12 Foi também descrita uma variabilidade de gênero em cães e gatos para diferentes famílias de CYP.13 As reações de Fase II são responsáveis pela maior hidrofilicidade de um fármaco, facilitando a sua excreção. Essas reações ocorrem principalmente no citosol. O gato doméstico tem uma capacidade reduzida reconhecida de formar conjugados glicuronídios com muitos xenobióticos (p. ex., propofol).14 Por conseguinte, quando são administrados

derivados fenólicos de baixo peso molecular a gatos, eles sofrem biotransformação lenta ou são biotransformados e eliminados por outros mecanismos.15,16 Defeitos no gene UGT1 A6 parecem ser responsáveis pela glicuronidação deficiente de alguns fármacos, como o paracetamol.17 Entretanto, os gatos possuem outras enzimas UGT que são capazes de biotransformar alguns outros xenobióticos.18 Alguns xenobióticos podem induzir a atividade da CYP e da glicuroniltransferase. A cetamina pode induzir ambos os tipos de enzimas, contribuindo para o desenvolvimento de sua própria tolerância em ratos.19 As mutações também podem afetar a eliminação dos fármacos. A ocorrência de uma mutação no cassete de ligação de ATP (ABC) no gene ABCB1 provoca uma deficiência no transportador de efluxo MDR-1 (proteína resistente a múltiplos fármacos, anteriormente glicoproteína P). A redução da atividade da proteína resulta em remoção diminuída de certos fármacos do cérebro para o sangue e do sangue para a bile na superfície hepatocelular em seres humanos.20,21 Isso pode estar relacionado com alguns efeitos adversos das ivermectinas e derivados semelhantes à morfina do cérebro para a circulação sistêmica em cães com mutação MDR-1.22,23 Nessas últimas duas décadas, foram publicadas numerosas informações sobre o metabolismo e a interação de fármacos específicos em espécies veterinárias.24 Entretanto, mais pesquisas são necessárias para caracterizar as CYP individuais em cada espécie e seus substratos. Respostas imune e inflamatória O fígado desempenha um importante papel na defesa do hospedeiro. As bactérias e toxinas que têm acesso à circulação porta são rotineiramente fagocitadas e processadas pelas células de Kupffer nos sinusoides.25 As células de Kupffer também removem mediadores inflamatórios e parecem desempenhar um importante papel ao limitar a extensão da resposta inflamatória.26,27 Entretanto, na presença de quantidades maciças de endotoxina, as células de Kupffer ativadas podem produzir radicais de oxigênio redutores e citocinas. Esses processos fazem com que as células Kupffer possam sinalizar os hepatócitos e as células endoteliais, modificando seus produtos de transcrição, além de recrutar neutrófilos circulantes. Essa resposta imunológica hepática pode ser responsável pela lesão hepatocelular observada em algumas doenças. A estreita interação da resposta inflamatória com a coagulação também desempenha um papel na patogenia da insuficiência hepática e da falência de múltiplos órgãos. Por exemplo, durante endotoxemia e hipoperfusão, as células hepáticas ativadas (células de Kupffer, hepatócitos e células endoteliais) promovem a inflamação, bem como um estado hipercoagulável.28

Provas e monitoramento da função hepática ■ Provas de função hepática e interpretação das enzimas hepáticas Com frequência são realizados exames bioquímicos antes da sedação e anestesia. É comum a presença de anormalidades nas concentrações de enzimas, porém é frequentemente difícil interpretar sua relação com o risco para o paciente. As concentrações séricas de alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST), fosfatase alcalina (ALP) e γglutamil transpeptidase (GGT) constituem as enzimas hepatocelulares mais comumente medidas nos perfis bioquímicos. O dano ao tecido hepatobiliar pode causar extravasamento celular, resultando em aumento na concentração plasmática de enzimas hepatocelulares. Todavia, essa elevação não indica necessariamente o grau de disfunção hepática. Isso é particularmente verdadeiro para as doenças hepáticas crônicas, nas quais a redução do número de hepatócitos em consequência de fibrose pode resultar em valores quase normais das enzimas hepáticas na presença de grave comprometimento da função. Além disso, a elevação das enzimas pode representar uma agressão celular, porém não se correlaciona com a interferência na capacidade de biotransformação dos fármacos usados para anestesia e manejo da dor. Os testes para o metabolismo de substratos, como ácidos biliares pré- e pós-prandiais ou eliminação do verde de indocianina, são indicadores mais adequados da função hepática.29 Em um estudo que avaliou a sensibilidade e a especificidade da amônia e dos níveis séricos de ácidos biliares em jejum para o diagnóstico de shunts portossistêmicos em cães e gatos, foi constatado que esses exames apresentam alta sensibilidade e especificidade em ambas as espécies.30 Em geral, observa-se a presença de baixas concentrações séricas de albumina, glicose e ureia na disfunção hepática; todavia, não são patognomônicas de doença hepática. A localização do fígado entre as circulações esplâncnica e sistêmica faz com que doenças de outros sistemas orgânicos tenham o potencial de comprometer o fígado, causando consequentemente um aumento das enzimas hepáticas circulantes. Além disso, várias enzimas são encontradas em tecidos extra-hepáticos (p. ex., AST no músculo esquelético), e a lesão desses tecidos pode ser falsamente interpretada como lesão hepática. A elevação das enzimas, embora seja altamente sensível de dano hepático, não é específica de lesão hepática.

■ Alterações bioquímicas comuns associadas à patologia hepática

A presença de disfunção hepática, independentemente de doença hepática primária, pode diminui a quantidade de vários fatores produzidos pelo órgão. Por conseguinte, se houver dúvida quanto à função hepática do paciente, devem-se solicitar um perfil bioquímico, um painel de coagulação e os níveis de ácidos biliares pré- e pós-prandiais. Deve-se obter um perfil da coagulação [p. ex., tempo de protrombina (TP) e tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPa)] em todos os pacientes com doença hepática que irão se submeter a um procedimento cirúrgico. Pacientes com hepatite crônica podem não exibir nenhum sinal clínico de coagulopatia, mas podem apresentar uma quantidade reduzida de fatores da coagulação e correr maior risco de coagulopatia depois de uma agressão, como cirurgia.31 A tipagem do sangue e uma reação cruzada podem ser justificadas se o perfil de coagulação estiver anormal ou se houver uma previsão de transfusão sanguínea. Pode-se utilizar plasma (fresco ou plasma fresco congelado) para suplementar os fatores da coagulação em pacientes com muitas anormalidades da coagulação. O fígado sintetiza várias proteínas plasmáticas, incluindo toda a albumina sérica. Como o fígado normalmente produz a albumina em um terço de sua capacidade, a hipoalbuminemia só é observada em casos graves de disfunção hepática ou de perda de proteína. A doença glomerular, as enteropatias perdedoras de proteína e a hemorragia são causas não hepáticas que devem ser descartadas na presença de hipoalbuminemia. A alfa e a betaglobulina são sintetizadas pelo fígado, e a sua concentração plasmática pode estar diminuída em caso de disfunção hepática. A redução da concentração plasmática de proteínas diminui a fração ligada de alguns fármacos, podendo resultar em alterações no volume de distribuição, na concentração plasmática e no efeito do fármaco. O fígado desempenha um importante papel na homeostasia da glicose. Pacientes com shunts portossistêmicos ou insuficiência hepática aguda frequentemente apresentam hipoglicemia ou correm risco de hipoglicemia clínica durante o período perianestésico. Os mecanismos da hipoglicemia na disfunção hepática incluem um ou uma associação dos seguintes mecanismos: diminuição da gliconeogênese, armazenamento diminuído do glicogênio e resposta diminuída ao glucagon. O monitoramento e a manutenção da normoglicemia devem ser uma prioridade durante a anestesia. Soluções de glicose (1 a 5%) podem ser administradas em associação com outros cristaloides isotônicos durante a cirurgia, quando necessário, para manter a normoglicemia.

Problemas de biotransformação e eliminação de fármacos na doença hepática ■ Sedativos e anestésicos

Os animais com doença hepática que necessitam de anestesia frequentemente estão, em certo grau, entorpecidos. Com frequência, a administração de um opioide é suficiente para proporcionar sedação e analgesia adequadas para procedimentos diagnósticos e cirúrgicos de pequeno porte. A hidromorfona, a oximorfona, a fentanila e a metadona são opioides agonistas completos que produzem boa sedação e analgesia. Em comparação com a morfina e a meperidina, apresentam algumas vantagens potenciais, visto que não estão associados a elevações nas concentrações plasmáticas de histamina e redução da pressão arterial após administração intravenosa.32-34 Diminuição da resistência vascular sistêmica possivelmente pode se refletir em redução do fluxo sanguíneo hepático e, subsequentemente, capacidade diminuída de eliminação dos fármacos ou maior agressão hepática.35 Os opioides com meia-vida de eliminação curta, como a fentanila, podem ser usados na forma de infusões de velocidade constante. É importante efetuar uma cuidadosa titulação da dose, visto que a meia-vida sensível ao contexto da maioria dos opioides usados em infusões de velocidade constante será mais longa do que em pacientes normais.36 A remifentanila é outro opioide com meia-vida de eliminação curta, que pode ser administrada como infusão intravenosa. A remifentanila é metabolizada por esterases plasmáticas e não sofre acúmulo após infusão de velocidade constante em seres humanos que apresentam doença hepática grave.37 Os sedativos usados em medicina veterinária podem ser classificados, em sua maioria, em três grupos: fenotiazinas, benzodiazepínicos e agonistas dos receptores α2-adrenérgicos. A acepromazina pode ser usada em pacientes com doença hepática, porém é necessário proceder a uma cuidadosa avaliação do paciente. A acepromazina provoca vasodilatação, em virtude de seu efeito antagonista nos receptores α1-adrenérgicos.38,39 A vasodilatação produzida pela acepromazina pode ser benéfica para aumentar o fluxo sanguíneo renal em cães anestesiados,40 porém não há verificação experimental de que o fármaco tenha o mesmo efeito sobre a circulação hepática. Quando um paciente apresenta redução da pressão oncótica intravascular (p. ex., hipoalbuminemia), pode haver hipovolemia e hipotensão, mesmo antes da sedação. Nesses casos, pode ser necessária uma associação de coloide (p. ex., hidroxietil amido) e terapia com líquidos cristaloides. A acepromazina também afeta a agressão plaquetária em cães, e o seu uso deve ser evitado na presença de anormalidades significativas da coagulação.41 Os benzodiazepínicos sedativos são frequentemente recomendados nos casos em que há doença significativa, visto que eles tendem a apresentar menos efeitos adversos cardiovasculares. Entretanto, seu uso em pacientes com doença hepática pode ser menos vantajoso. A doença hepática avançada pode resultar em encefalopatia hepática (EH), devido ao acúmulo de amônio, hiperatividade NMDA e diminuição do trifosfato de adenosina, entre outras causas.42,43 Nos seres humanos, o flumazenil antagonista

benzodiazepínico é frequentemente usado para minimizar os sinais clínicos associados à EH.44 O uso dos benzodiazepínicos em animais que apresentam EH é controverso, visto que podem exibir um aumento da resposta a esses fármacos, com consequente agravamento da EH.45 Na ausência de EH, os benzodiazepínicos podem ser utilizados com segurança em pacientes com doença hepática, embora a eliminação hepática provavelmente seja reduzida, e possam ocorrer efeitos prolongados.46,47 Os efeitos indesejáveis, como sedação prolongada, podem ser antagonizados pelo flumazenil, se necessário. A dexmedetomidina possui excelentes efeitos sedativos e analgésicos; todavia, pode estar associada a uma depressão cardiovascular significativa, caracterizada por diminuição do débito cardíaco em até 50%.48,49 Apesar disso, o fluxo sanguíneo hepático permanece inalterado em cães normais após a administração intravenosa de até 10 µg/kg, com base no método de microesferas radioativas.50 Foi constatado que a medetomidina e a dexmedetomidina diminuem a atividade das enzimas hepáticas in vitro. Pode-se especular que podem ter interações farmacocinéticas clinicamente relevantes, que seriam mais evidentes em animais com doença hepática. Entretanto, é provável que seu efeito poupador sobre doses de outros agentes anestésicos (interação farmacodinâmica) possa ser clinicamente mais relevante do que qualquer efeito direto sobre a capacidade metabólica do fígado.51 O antagonismo dos agonistas dos receptores α2-adrenérgicos pode acelerar a recuperação em animais com doença hepática e reduzir ao máximo o impacto do metabolismo comprometido sobre a duração do agonista dos receptores α2-adrenérgicos. Foram realizados numerosos estudos para avaliar os efeitos dos anestésicos inalatórios sobre a função hepática e o fluxo sanguíneo. Entretanto, relativamente poucos estudos examinaram o impacto dos anestésicos injetáveis. A cetamina parece causar uma diminuição modesta, em comparação com o tiopental e o etomidato.52,53 Foi constatado que o propofol mantém o fluxo sanguíneo hepático por meio de vasodilatação arterial em cães, e o tiopental parece ter efeitos semelhantes.54,55 Em um modelo de coelho de isquemia/reperfusão, o propofol demonstrou reduzir a lesão hepática de reperfusão, além da formação de radicais oxidativos.56,57 Como regra geral, a maioria dos agentes exerce efeitos diretos mínimos sobre o fluxo sanguíneo hepático se a pressão arterial sistêmica for mantida dentro dos limites normais. A depuração do propofol ultrapassa o fluxo sanguíneo hepático, sugerindo um local de metabolismo extra-hepático e tornando-o uma escolha razoável para pacientes portadores de doença hepática.58,59 Um estudo retrospectivo não constatou nenhum aumento na morbidade ou mortalidade de gatos com lipidose hepática que foram anestesiados com propofol para colocação de sonda alimentar.60 Entretanto, à semelhança da maioria dos agentes anestésicos, o propofol desempenha efeitos depressores cardíacos dependentes da dose e vasodilatadores sistêmicos, que, em outros casos, podem alterar o fluxo sanguíneo hepático.61

O tiopental é metabolizado pelo fígado e apresenta vários metabólitos ativos; a sua administração pode resultar em indução da atividade das enzimas microssomais.62,63 O término de seu efeito anestésico resulta principalmente de sua redistribuição para tecidos não alvo, sugerindo que o seu uso pode ser aceitável na forma de bolo único para indução. Foi demonstrado que o etomidato produz efeitos cardiovasculares mínimos, em comparação com o propofol durante a indução da anestesia.61 Entretanto, o etomidato encontra-se em um veículo à base de propilenoglicol. O propilenoglicol é uma molécula hiperosmolar, que pode causar ruptura dos eritrócitos.64 Como alguns pacientes que apresentam doença hepatobiliar podem ter bilirrubinemia e icterícia em consequência de obstrução biliar ou diminuição da conjugação hepática, a hemólise potencial causada pelo etomidato pode sobrecarregar ainda mais o fígado. Embora a hemólise não pareça ser significativa em cães normais após a administração de bolo único, as consequências clínicas em animais com doença hepática ainda não foram estudadas.65 A depuração do etomidato não pareceu ser alterada em pacientes humanos com cirrose hepática, em comparação com pacientes saudáveis, porém houve duplicação no volume de distribuição e na meia-vida de eliminação.66,67 Esse aumento observado no volume de distribuição pode ser explicado, em grande parte, pela correlação inversa existente entre a concentração plasmática de albumina e a ligação às proteínas, mas também pode resultar de uma ligeira redução nas propriedades de ligação da albumina na presença de cirrose hepática ou de insuficiência renal.68 O etomidato demonstrou inibir a síntese de cortisol por meio de inibição da 11β-hidroxilase, e seu uso geralmente não é recomendado na disfunção adrenal observada em pacientes sépticos.69 Embora um subgrupo de pacientes hepáticos evidentemente se enquadre dentro de um grupo de peritonite biliar séptica, foi constatado que uma proporção de pacientes humanos com doenças hepáticas agudas e crônicas não sépticas apresenta níveis de cortisol basais e estimulados mais baixos (síndrome hepatoadrenal).69-71 Além disso, quando foram realizados testes de estimulação de ACTH nesses pacientes, a presença do etomidato no protocolo anestésico aumentou a presença de insuficiência adrenal de 38 para 57%.69 A síndrome hepatoadrenal ainda não foi relatada na literatura veterinária; entretanto, é preciso ter cuidado no que concerne à presença de insuficiência adrenal concomitante quando se administra etomidato a pacientes com doença hepática. O etomidato é principalmente metabolizado por meio de hidrólise pela esterase no rato. Entretanto, essa via não parece desempenhar um papel significativo na degradação do fármaco em várias outras espécies estudadas, indicando, portanto, um metabolismo hepático.72,73 Sua razão de extração hepática é de 0,5 ou 50% do fluxo sanguíneo hepático, o que indica que a ocorrência de pequenas alterações no fluxo sanguíneo hepático ou na função do fígado terá apenas efeitos moderados sobre a depuração do etomidato.74 De modo geral, o etomidato parece ser um agente de indução satisfatório para o paciente com

doença hepática, em virtude de seu efeito cardiovascular mínimo, que preserva o fluxo sanguíneo sistêmico e hepático. Os anestésicos dissociativos, como a cetamina e a tiletamina, são escolhas razoáveis para a indução da anestesia com doença hepática. Entretanto, a coadministração de um benzodiazepínico (p. ex., zolazepam com tiletamina) pode resultar em efeitos prolongados nos animais que apresentam comprometimento da função hepática. Em cães, os anestésicos dissociativos são metabolizados principalmente pelo fígado; entretanto, pode-se esperar que o término do efeito seja minimamente afetado após a administração de uma dose única utilizada para indução, em virtude da redistribuição do fármaco para os tecidos muscular e adiposo.75 Um estudo realizado em ratos e um relatório em seres humanos mostraram que as infusões de cetamina causam lesão hepática após uso prolongado, particularmente quando repetidas com intervalo curto entre os tratamentos.76,77 Os autores do relatório em pacientes humanos recomendaram a determinação rotineira das enzimas hepáticas durante o tratamento crônico com uso de cetamina.76

■ Agentes inalatórios Os anestésicos inalatórios alteram o fluxo sanguíneo hepático de modo dependente da dose. Em geral, os agentes inalatórios comprometem os mecanismos autorreguladores (i. e., HABR) que normalmente mantêm o fluxo sanguíneo hepático total. Estudos realizados em cães mostraram que o isofluorano, o sevofluorano e o desfluorano mantêm melhor o fluxo sanguíneo hepático total, o suprimento de oxigênio e a razão aporte-consumo, em comparação com o halotano ou o enfluorano (Figura 30.2).78,79 Embora o sevofluorano e o desfluorano pareçam exercer o menor efeito sobre o fluxo sanguíneo hepático, é importante assinalar que, entre os agentes comumente usados (isofluorano, sevofluorano e desfluorano), esses efeitos são dependentes da dose. Em consequência, os esforços no sentido de reduzir a dose administrada terão um impacto significativamente maior do que a escolha do anestésico inalatório. O isofluorano é uma emulsão lipídica que demonstrou ter efeito protetor na lesão isquêmica/de reperfusão (IR) hepática quando injetado por via intravenosa em ratos. O mecanismo envolvido nessa proteção parece estar relacionado com a inibição das células de Kupffer.80 Por outro lado, outro estudo observou efeitos protetores do sevofluorano inalatório quando administrado antes, durante e após a lesão, porém não constatou nenhum efeito benéfico do fármaco administrado pela mesma via em um modelo murino de lesão IR.81 Talvez o pré-condicionamento com inalatórios possa ter efeitos benéficos durante a cirurgia hepática se for prevista a possibilidade de lesão IR.

■ Bloqueadores neuromusculares

A disposição dos fármacos bloqueadores neuromusculares (BNM) pode ser afetada pela presença de doença hepática. O vecurônio, o rocurônio e o mivacúrio apresentam volumes de distribuição aumentados, meias-vidas de eliminação prolongadas e duração prolongada dos efeitos em pacientes humanos com cirrose hepática.82-84 O atracúrio e o cisatracúrio sofrem eliminação independente do fígado (por hidrólise éster inespecífica ou eliminação de Hofmann) e apresentam farmacocinética e farmacodinâmica semelhantes em pacientes tanto saudáveis quanto portadores de doença hepática.85-87 Um estudo realizado para avaliar o cisatracúrio não encontrou nenhuma diferença no início e na duração de ação entre cães saudáveis e aqueles afetados com shunt portossistêmico.88

Figura 30.2 Efeito dos anestésicos inalatórios sobre o fluxo sanguíneo hepático total (FSHT) em cães Greyhound. As barras marcadas com * são significativamente diferentes (p < 0,05) de seu respectivo grupo de controle (cães despertos). As barras marcadas com § são significativamente diferentes (p < 0,05) dos valores de FSHT para o isofluorano e o sevofluorano, em níveis comparáveis de concentração alveolar mínima (CAM). Fonte: adaptada de 78,79. Reproduzida, com autorização, de Lippincott Williams & Wilkins and Springer.

Fisiopatologia hepática e abordagem ao manejo anestésico A doença hepática pode ter impacto significativo sobre a farmacocinética e a

farmacodinâmica dos fármacos, dependendo das funções hepáticas específicas alteradas e do grau de insuficiência. A avaliação pré-anestésica e a realização de exames complementares podem ajudar a definir o grau de comprometimento e fornecer informações sobre o modo pelo qual o plano anestésico deve ser modificado e o grau de aumento do risco anestésico.

■ Hepatite Os pacientes com hepatite aguda ou crônica podem apresentar sinais clínicos e anormalidades laboratoriais que podem estar correlacionados com o prognóstico. Em geral, os sinais clínicos e os resultados laboratoriais de pacientes com disfunção hepática são inespecíficos (p. ex., anorexia, diarreia, poliúria/polidipsia e fadiga). Além disso, pode-se observar a presença de icterícia, encefalopatia hepática e ascite, representando uma insuficiência hepática significativa ou doença de maior gravidade. A ascite constitui um fator prognóstico negativo em cães e seres humanos com hepatite.89,90 Curiosamente, um estudo realizado não encontrou relação entre os resultados dos parâmetros bioquímicos e a gravidade da doença hepática.91 Em outro estudo que investigou a hepatite crônica em cães Labradores Retrievers, foi demonstrado que 45% desses animais apresentavam hiperbilirrubinemia, enquanto 21% tinham hipoalbuminemia. Além disso, foi constatado que o prolongamento do TP e do TTPa, a trombocitopenia, a anorexia e a hipoglobulinemia estavam associados a tempos de sobrevida mais curtos.31 Outro estudo realizado em um único centro verificou que 57% dos pacientes com doenças hepáticas tinham pelo menos um parâmetro da coagulação anormal na apresentação. Além disso, a presença de cirrose além da hepatite crônica foi associada a anormalidades da coagulação mais graves entre todas as doenças hepáticas. As anormalidades da coagulação observadas nesse estudo foram, em sua maioria, relacionadas a uma diminuição na síntese dos fatores da coagulação, e não a um aumento no consumo desses fatores.92 Por conseguinte, a simples presença de doença hepática demonstrada por anormalidades bioquímicas, com ou sem sinais clínicos, deve ser levada em consideração pelo anestesista, independentemente do grau de anormalidade, visto que este último não se correlaciona com a gravidade da doença. Além disso, na hepatite crônica, as coagulopatias frequentemente estão ausentes, devido, provavelmente, a uma diminuição equilibrada nos fatores pró- e anticoagulantes. Todavia, na presença de um insulto, como cirurgia, pode ocorrer descompensação, podendo resultar em coagulopatia pós-operatória. Este evento é particularmente problemático em pacientes hipotensos, nos quais são utilizados grandes volumes de terapia com líquido para manter a perfusão. A expansão do volume dilui os fatores da coagulação circulantes, podendo causar descompensação e anormalidades clínicas.93,94

Considerações para procedimentos diagnósticos Pode haver necessidade de biopsia hepática para estabelecer a etiologia e o prognóstico da doença hepática. Podem ser obtidas amostras por meio de instrumentos de biopsia guiada por ultrassonografia, laparoscopia e laparotomia. A laparoscopia e a laparotomia também podem ser usadas para a visualização e a ressecção de neoplasia ou para reparo hepatobiliar. O conhecimento das implicações específicas de cada técnica pode ajudar o anestesista a prevenir, antecipar ou resolver possíveis problemas que possam surgir durante o procedimento.

■ Sedação para biopsia guiada por ultrassom As biopsias frequentemente podem ser realizadas com sedação apenas. Para essa técnica, o paciente precisa permanecer deitado, imóvel e sem reagir ao som ou à sensação de ativação do dispositivo. Existe uma probabilidade de ocorrência de sangramento após a biopsia, de modo que essa técnica não é recomendada para animais com anormalidades significativas da coagulação. Os sinais clínicos e resultados dos exames laboratoriais do paciente, além de seu comportamento e atividade mental, irão determinar a associação de fármacos e a seleção das doses. Com frequência, os benzodiazepínicos são utilizados em pacientes em estado crítico, em virtude de seus efeitos cardiovasculares mínimos, rápida eliminação e reversibilidade potencial. A administração de um opioide isoladamente ou em associação com midazolam (0,2 a 0,5 mg/kg IV ou IM) ou com dexmedetomidina (2 a 10 µg/kg IV ou IM) frequentemente é suficiente para facilitar a biopsia guiada por ultrassom em pacientes leve a gravemente obnubilados. Os opioides usados com mais frequência nessas associações são o butorfanol (0,2 a 0,4 mg/kg IM ou IV), a metadona (0,3 a 0,5 mg/kg IV), a hidromorfona (0,05 a 0,2 mg/kg IV ou IM), a oximorfona (0,05 a 0,2 mg/kg IV ou IM) e a fentanila (5 a 15 µg/kg IV). Embora habitualmente não seja necessário, pode-se administrar flumazenil para reverter os efeitos sedativos dos benzodiazepínicos. Quando se utiliza a dexmedetomidina, a administração de atipamezol habitualmente resulta em uma reversão rápida e completa da sedação e dos efeitos cardiovasculares. Na ausência de dor, pode-se administrar naloxona para melhorar o estado mental e a ventilação quando a sedação com opioides não é mais necessária nem desejável. O monitoramento durante a sedação é importante, devido às alterações imprevisíveis da farmacocinética e aos efeitos dos fármacos na presença de disfunção hepática, podendo ser aconselhável uma suplementação de oxigênio. Foi relatada a ocorrência de hipotensão vasovagal durante alguns minutos após a biopsia hepática percutânea.95 O monitoramento após o procedimento à procura de sinais de hemorragia (p. ex., coloração das mucosas, pressão arterial, hematócrito ou ultrassom repetido) é justificado quando há um risco

significativo de sangramento.

■ Considerações para cirurgia laparoscópica A laparoscopia é comumente usada para a biopsia hepática. Além da possibilidade óbvia de sangramento e da dificuldade na obtenção de hemostasia, essa técnica introduz um novo conjunto de problemas relacionados com a insuflação de gases dentro do abdome. A infusão de dióxido de carbono para distender o abdome e melhorar a visualização pode diminuir o retorno venoso cardíaco e comprometer a ventilação. O deslocamento cranial do diafragma pode tornar ainda mais difícil a manutenção de uma ventilação minuto adequada pelo animal com respiração espontânea e irá diminuir a capacidade residual funcional pulmonar. A ventilação com pressão positiva intermitente (VPPI) pode ser necessária para manter oxigenação e ventilação adequadas. A ventilação com pressão positiva pode ser realizada manualmente ou por meio de ventilador mecânico. O anestesista também deve monitorar a pressão intra-abdominal, que deve variar de 10 a 16 mmHg, com tolerância para diferenças entre espécies.96 Nos seres humanos, o pneumoperitônio foi associado a um aumento do fluxo sanguíneo hepático, contanto que a pressão intra-abdominal não ultrapasse 12 mmHg.97 Em cães, o pneumoperitônio pode causar elevações transitórias das transaminases hepáticas, que persistem por até 58 h após a desinsuflação. As elevações da ALT e da AST foram diretamente proporcionais à pressão intra-abdominal e à duração da insuflação.98 Foi constatado que a ventilação com pressão positiva diminui o fluxo sanguíneo hepático, provavelmente ao reduzir o retorno venoso e o débito cardíaco, de modo que o seu uso deve ser rigorosamente monitorado durante a insuflação abdominal.78 O monitoramento da pressão arterial é importante como prognosticador indireto da perfusão tecidual e avaliação do efeito da pressão intra-abdominal sobre o retorno venoso. Entretanto, deve-se assinalar que a insuflação abdominal frequentemente resulta em elevação da pressão arterial, que pode não representar um aumento da perfusão tecidual. Uma posição de Trendelenburg invertida pode ajudar a reduzir ao máximo o efeito da infusão de CO2 sobre a ventilação; entretanto, a posição do corpo é habitualmente determinada pela necessidade do cirurgião, a fim de assegurar uma visualização adequada. A capnografia, apesar de sua utilidade, pode ser enganosa, visto que a diferença entre ETCO2 e PaCO2 pode ser significativamente aumentada pelo desequilíbrio de ventilação/perfusão em alguns pacientes. A gasometria arterial pode indicar mais o estado de ventilação.

■ Laparotomia A laparotomia constitui a abordagem mais tradicional para a cirurgia hepatobiliar. Além dos problemas já mencionados com pacientes hepáticos (p. ex., hipoglicemia,

hipoproteinemia, coagulopatias e metabolismo diminuído dos fármacos), é preciso considerar as complicações universais associadas a qualquer episódio de anestesia geral e cirurgia abdominal aberta. A hipotermia (que pode exacerbar a coagulopatia) é comum nesses casos, e a temperatura corporal deve ser monitorada, devendo-se tomar medidas de suporte.

■ Colecistectomia e obstrução do trato biliar extra-hepático A obstrução biliar extra-hepática (OBEH) e a colecistectomia estão associadas a morbidade e mortalidade peroperatórias relativamente altas.99 Em um estudo, a elevação préoperatória da creatinina plasmática e a pressão arterial média baixa no pós-operatório foram associadas a um aumento da mortalidade, particularmente na presença de pancreatite e peritonite biliar séptica.100,101 Recentemente, foi demonstrada a ocorrência de hipercoagulabilidade em cães com OBEH de ocorrência natural por meio de tromboelastografia.102 Foi demonstrado que é preciso reavaliar a pressuposição mais antiga de hipercoagulabilidade em pacientes caninos com OBEH. Provavelmente, à semelhança dos seres humanos com OBEH, pode ocorrer hiper- ou hipocoagulação, cuja presença deve ser investigada para fornecer suporte ou tratamento adequados.103 Em um estudo realizado para investigar a associação da mucocele da vesícula biliar e endocrinopatias, cães com hiperadrenocorticismo tiveram uma probabilidade 29 vezes maior de apresentar mucocele biliar.104 Esses achados são importantes para o anestesiologista, visto que o hiperadrenocorticismo também está associado a estados de hipercoagulabilidade.105

■ Neoplasia hepática Além dos problemas descritos com as biopsias hepáticas laparoscópicas ou por meio de laparotomia, a hemorragia grave e descontrolada constitui uma complicação catastrófica durante e após ressecção de lobo hepático. Deve-se considerar a disponibilidade imediata de hemoderivados, incluindo plasma, concentrados de hemácias e sangue total. A tipagem sanguínea e a prova cruzada podem ser úteis para determinar os doadores apropriados para transfusão de emergência. Alguns tipos de neoplasia estão frequentemente associados a hemoabdome pré-operatório, e, nesses casos, pode ser necessária uma transfusão préanestésica, que irá melhorar o aporte de oxigênio aos tecidos durante a anestesia. A quantificação da perda de volume sanguíneo antes de obter a hemostasia pode ser útil para determinar a necessidade de transfusão, porém a cronicidade da perda sanguínea habitualmente resulta em consequências hemodinâmicas variáveis. Por conseguinte, as decisões quanto à necessidade de transfusão baseiam-se frequentemente em vários fatores, incluindo o hematócrito, a velocidade de perda sanguínea, a quantidade de sangue perdido e a estabilidade hemodinâmica.

O retorno venoso deve ser avaliado pelo anestesista [utilizando a pressão venosa central (PVC) ou ao avaliar o caráter da forma de onda da pressão arterial (PA)] durante a retração hepática, visto que existe a possibilidade de compressão dos principais vasos abdominais pelo cirurgião. A comunicação efetiva entre o anestesista e o cirurgião é extremamente importante para facilitar o diagnóstico de complicações hemodinâmicas importantes versus insultos temporários necessários para acesso cirúrgico. Em um estudo retrospectivo para avaliar os sinais clínicos, os achados diagnósticos e o prognóstico do carcinoma hepatocelular canino, a elevação da ALT e da AST foi associada a um prognóstico mais sombrio. Em geral, foi relatado que o resultado cirúrgico de lobectomias hepáticas para carcinoma hepatocelular é excelente, com mortalidade pósoperatória mínima quando os valores pré-operatórios não são acentuadamente alterados.106 As coagulopatias e o comprometimento da função hepática frequentemente constituem fatores problemáticos nesses casos cirúrgicos, e observa-se um agravamento do prognóstico à medida que aumenta a porcentagem de excisão da massa hepática. Não foram conduzidos estudos sobre os efeitos da anestesia geral e os tipos de anestésicos sobre os resultados cirúrgicos. Sabe-se que a anestesia geral provoca depressão cardiovascular e imune dependente da dose. Em uma tentativa de minimizar essas complicações, Yamamoto et al. relataram uma série de casos em que todos os pacientes foram submetidos a hepatectomia parcial apenas sob sedação e anestesia epidural. Após o acompanhamento de 10 pacientes humanos, foi concluído que as técnicas epidurais podem ser usadas para hepatectomias parciais, bem como para outras cirurgias de abdome.107

■ Shunt portossistêmico Os shunts portossistêmicos são definidos como vasos anormais que se estendem da circulação porta (p. ex., estômago, intestino, pâncreas e baço) até a circulação central (p. ex., veia cava ou veia ázigo) sem antes passar pelo fígado.108 O sangue que é desviado do fígado faz com que as substâncias normalmente metabolizadas no fígado (p. ex., amônia, ácidos biliares, ácidos graxos de cadeia curta) se acumulem na circulação sistêmica.109 Quando já existem shunts por ocasião do nascimento, o fluxo sanguíneo para o fígado é diminuído, e as substâncias hepatotrópicas não são efetivamente distribuídas. Em consequência, o fígado é incapaz de se desenvolver normalmente e, com frequência, apresenta um tamanho menor, com estrutura vascular intra-hepática anormal. Os pacientes com shunt portossistêmico podem apresentar sinais inespecíficos, como hipoglicemia, hipoalbuminemia, coagulopatias e resposta alterada a substâncias metabolizadas e excretadas pelo fígado.108-110 Foram relatadas hipoglicemia e recuperação prolongada da anestesia em cães com shunt portossistêmico congênito (SPSc).111 Muitos pacientes não são diagnosticados até serem anestesiados para esterilização cirúrgica aos 6 a

12 meses de idade e não conseguem se recuperar normalmente da anestesia. Foi formulada a hipótese de que a hipoglicemia refratária possa ser devida a uma insuficiência adrenal relativa, semelhante àquela observada na sepse. Em um estudo, não foi constatada diferença no teste de estimulação pré-operatório basal ou após ACTH entre cadelas saudáveis submetidas a ovário-histerectomia (OHE) e SPSc. Entretanto, 30% dos animais com SPSc apresentaram hipoglicemia pré-operatória e mais de 40% desenvolveram hipoglicemia dentro de 4 h após a cirurgia. Embora não se tenha observado uma resposta adrenal inadequada nessa população de cães com SPSc, os animais que apresentaram hipoglicemia refratária pós-operatória ou recuperação anestésica prolongada responderam habitualmente à administração de dexametasona (0,1 mg/kg, IV).111 A administração pósoperatória de acepromazina (0,05 mg/kg, IV) nesse estudo também pode ter contribuído para a recuperação prolongada observada nesses pacientes. A EH e as convulsões também podem ser observadas em casos de shunt portossistêmico.112 O flumazenil tem sido usado para melhorar o estado mental em seres humanos com EH, e foi formulada a hipótese de que compostos semelhantes a benzodiazepínicos intrínsecos são importantes nessa síndrome.113 Não foi verificado se ocorre uma melhora semelhante em animais com EH após a administração de flumazenil. Recentemente, foi constatada a elevação dos níveis plasmáticos de proteína C reativa (PCR) em cães com SPSc que apresentavam EH.112 Esses achados reforçam as semelhanças na patogenia da EH em seres humanos e em cães com SPSc, bem como a participação de um processo inflamatório em sua patogenia.112 Os fatores da coagulação produzidos pelo fígado podem estar presentes em níveis anormais em cães com SPS. Em um estudo prospectivo, a contagem de plaquetas, o volume globular e as concentrações dos fatores II, V, VII e X estavam mais baixos antes da cirurgia, e o TTPa estava prolongado em cães com SPS, em comparação com cães saudáveis. O perfil hemostático pós-operatório revelou alterações adicionais, como aumento do TP e diminuição nas concentrações dos fatores I, IX e XI. Entretanto, quando os valores hemostáticos pós-operatórios foram comparados com aqueles de um grupo de pacientes saudáveis submetidas a ovariectomia, apenas o TP e a contagem de plaquetas estavam significativamente diminuídos. Além disso, embora as atividades absolutas dos fatores II, V, VII e X estivessem mais baixas no grupo com SPS, as alterações percentuais relativas em relação aos valores pré-operatórios só foram diferentes para a contagem de plaquetas e a atividade do fator II.114 Embora os testes de coagulação in vitro de pacientes com SPS sejam comumente anormais, os sinais clínicos de distúrbios hemorrágicos são raros nesses casos durante e após atenuação do shunt.114 Foi relatada uma baixa mortalidade pré-operatória em cães e gatos submetidos a correção cirúrgica do SPS. Entretanto, os resultados pós-operatórios foram variáveis em

ambas as espécies, incluindo deterioração dos sinais neurológicos e morte dos pacientes.115118 É difícil determinar o papel desempenhado pela técnica anestésica nos resultados pósoperatórios. Muitos pacientes recuperam-se normalmente da anestesia e começam a exibir sinais de problemas dentro do mesmo período de tempo do fechamento esperado do shunt, indicando maior papel da alteração do fluxo sanguíneo na produção de sinais neurológicos e morte.

■ Radiologia intervencionista Essa técnica utiliza a fluoroscopia para guiar um cateter intravenoso até o local onde o vaso sanguíneo anômalo (shunt) une-se à circulação sistêmica. Um stent expansível é colocado na veia cava caudal próximo à inserção anormal. Esse stent irá impedir a perda das molas trombóticas implantadas no caso do shunt na circulação sistêmica, caso sejam desalojadas.119 O desafio para o anestesista é assegurar uma imobilização completa do paciente no estágio crítico de colocação do stent. Durante a anestesia geral, pode-se administrar um BNM para facilitar a imobilização, se houver disponibilidade de ventilação mecânica. O atracúrio e o cisatracúrio podem ser usados em bolos ou em infusões de velocidade constante para manter a paralisia. Em algumas situações, o cirurgião pode necessitar de parada inspiratória para diminuir o movimento abdominal do paciente durante os períodos críticos (p. ex., medição do vaso anômalo e colocação do stent). A hipotermia representa um problema comum, e é essencial utilizar uma almofada térmica radiotransparente. O monitoramento dos parâmetros cardiovasculares (PA e PVC) e respiratórios (ETCO2 e SpO2) é necessário para o anestesista e o cirurgião. O monitoramento invasivo da PA é ideal, porém não obrigatório, e a PVC pode ser medida por meio de conexão de um transdutor eletrônico estéril ao cateter jugular utilizado pelo cirurgião para colocar o stent. O cateter e a pressão venosa central irão ajudar a avaliar o volume sanguíneo do paciente e guiar a hidratação e também irão informar a pressão da veia cava abdominal ao cirurgião à medida que é avançado o cateter. À semelhança de outros pacientes hepáticos, pode ser necessário um suporte coloidal e inotrópico. O anestesista deve restaurar o volume vascular com cristaloides e coloides antes da administração de agentes inotrópicos. A dopamina (3 a 12 µg/kg/min) e a dobutamina (2 a 10 µg/kg/min) constituem-se nos agentes inotrópicos mais comumente usados em medicina veterinária e podem ser administradas a esses pacientes.

■ Torção do lobo hepático Foi descrita a ocorrência de torção de lobo hepático em cães, cavalos e gatos.120-122 O resultado é em grande parte favorável se o reconhecimento e a correção cirúrgica forem realizados precocemente. Os cães podem exibir sinais clínicos inespecíficos relativamente

leves, como elevação das enzimas hepáticas.120 À semelhança dos cães, os equinos apresentam sinais clínicos e resultados laboratoriais inespecíficos, incluindo acúmulo de líquido peritoneal, cólica, inapetência, letargia e elevação das enzimas hepáticas, o que torna o estabelecimento do diagnóstico difícil, resultando potencialmente em prognóstico sombrio.123,124 A remoção cirúrgica do lobo hepático constitui o tratamento habitual, e o manejo assemelha-se à ressecção de lobo hepático para neoplasia.

Manejo da dor nas doenças hepatobiliares Os opioides constituem a base da analgesia no período peroperatório. Nos seres humanos, a morfina pode causar espasmo do ducto colédoco devido à constrição do esfíncter de Oddi, o que aumenta o tamanho e a pressão na vesícula biliar. Esse efeito não foi demonstrado nem observado em animais.125 Como os pacientes com disfunção hepática podem necessitar de mais tempo para metabolizar os opioides, os efeitos desses fármacos podem ter uma duração significativamente mais longa do que no paciente saudável.126,127 São necessárias avaliações frequentes da analgesia para determinar os intervalos adequados de administração. A sufentanila, a alfentanila, a fentanila e a remifentanila são opioides de ação mais curta cuja farmacocinética é minimamente afetada pela doença hepática.126,128 A remifentanila, em particular, é rapidamente hidrolisada por esterases plasmáticas, resultando em alta depuração e rápida eliminação do fármaco. A meia-vida sensível ao contexto parece ser independente da dose ou da duração da infusão em seres humanos com graus variáveis de disfunção hepática.37,126,129 Se uma infusão contínua não for prática nem desejada, a administração intermitente de hidromorfona, morfina, buprenorfina, metadona e oximorfina tem sido usada, porém podem ser necessários uma dose reduzida ou um intervalo prolongado entre as doses. Os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) são comumente usados para o manejo da dor aguda e crônica em cães e gatos. Todos os AINEs têm o potencial de causar lesão hepática, seja de modo intrínseco (como é habitualmente o caso com o ácido acetilsalicílico e o paracetamol) ou de modo idiossincrásico (como tende a ser o caso com outros AINEs, incluindo agentes seletivos da COX-2). As reações tóxicas idiossincrásicas são raras, imprevisíveis e não estão relacionadas com a dose. Os sinais clínicos consistem em inapetência, vômitos e icterícia associada a elevações nos níveis séricos de enzimas hepáticas e bilirrubina. Deve-se investigar qualquer aumento inexplicado desses parâmetros bioquímicos após o início da terapia com AINE. Como não foi realizado nenhum estudo prospectivo em grande escala para avaliar os efeitos dos AINEs sobre a estrutura e função hepáticas em animais com doença hepática preexistente, não se sabe se essa prática é segura ou não. Além disso, os AINEs podem comprometer a coagulação e a hemostasia,

visto que afetam a formação do coágulo e a agregação plaquetária. Devido ao potencial de efeitos adversos, a administração de AINEs a pacientes com disfunção hepática, particularmente a pacientes com coagulopatias, deve ser evitada ou rigorosamente monitorada.

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31 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doenças Gastrintestinais e Endócrinas

Introdução ao sistema endócrino Pâncreas Pancreatite Glândulas adrenais Glândula tireoide Glândulas paratireoides Anatomia do trato gastrintestinal Efeitos dos agentes anestésicos sobre a função gastrintestinal Náuseas e vômitos Refluxo gastresofágico Esofagite e estenose esofágica Aspiração Motilidade gastrintestinal/íleo pós-operatório Condições gastrintestinais que exigem anestesia Laparotomia Megaesôfago Dilatação e vólvulo gástricos Hemoabdome Neoplasia intestinal Peritonite séptica Remoção de corpo estranho e outros procedimentos abdominais Referências bibliográficas

Introdução ao sistema endócrino Os hormônios são substâncias secretadas na circulação em quantidades muito pequenas para produzir um efeito biológico em órgãos ou células-alvo distantes. O sistema endócrino regula a secreção desses hormônios a partir de vários órgãos periféricos, sob o comando do hipotálamo (HPT), em associação com a hipófise. O hipotálamo é uma pequena área localizada na face ventral do diencéfalo, estendendo-se em cada lado do terceiro ventrículo, quase diretamente acima da faringe caudal. Além do controle endócrino do metabolismo, do crescimento e da reprodução, o hipotálamo ajuda a coordenar outros aspectos vitais da fisiologia dos mamíferos, incluindo o sistema nervoso autônomo, o comportamento, a emoção e a digestão.1,2 A hipófise localiza-se logo abaixo do hipotálamo ao qual está conectada anatomicamente pela haste infundibular. Possui dois lobos principais, que são distintos tanto na sua composição anatômica quanto na sua função. A adeno-hipófise (AH) ou hipófise anterior apresenta três áreas – a parte tuberal, a parte intermédia e a parte distal. Esse lobo atua como uma verdadeira glândula endócrina, produzindo e secretando hormônios direcionados para o pâncreas, a glândula tireoide, as glândulas adrenais, os órgãos reprodutores e o intestino. A secreção da AH é controlada por hormônios de liberação do HPT e por retroalimentação (habitualmente negativa) dos níveis séricos dos hormônios produzidos pelos tecidos-alvo, como tiroxina, cortisol e muitos outros. A neurohipófise (NH), também denominada hipófise posterior, é composta pela parte nervosa e haste infundibular. A NH não é uma glândula endócrina típica e, na realidade, constitui uma extensão do HPT, composta dos axônios dos neurônios localizados nos núcleos supraóptico e paraventricular do HPT que se estendem até a parte nervosa. Trata-se de neurônios neurossecretores, que não inervam as células da NH, mas liberam os hormônios produzidos no HPT (ocitocina e vasopressina ou hormônio antidiurético) dentro da circulação venosa da NH. A NH é principalmente um conduto entre o HPT e a circulação periférica.1,2 Uma exceção ao controle habitual da função endócrina pelo eixo hipotálamohipófise (EHH) é o paratormônio (PTH). Não há hormônios “de liberação ou estimulação” do PTH; com efeito, o PTH é secretado em resposta à concentração sérica de cálcio, conforme descrito na seção Glândulas paratireoides. Em pacientes com distúrbios endócrinos, o manejo da doença endócrina é tão importante quanto os aspectos mais usuais do manejo anestésico (p. ex., pressão arterial, função cardíaca, ventilação). Isso requer uma compreensão da fisiologia e da fisiopatologia da função endócrina, o que representa um desafio tendo em vista as complexas relações que existem entre o HPT, a hipófise e seus órgãos-alvo periféricos. Esse sistema coordena e mantém a homeostasia, além das funções globais de metabolismo, crescimento, reprodução

e digestão. Em resumo, o hipotálamo monitora os parâmetros homeostáticos e as concentrações séricas de numerosas substâncias e secreta hormônios “de liberação” ou “de inibição” dentro de uma circulação porta especial, que está conectada diretamente com AH, e/ou ativa neurônios que estimulam a secreção de hormônios na circulação periférica por meio da parte nervosa da NH. A AH secreta hormônios tróficos na circulação periférica, que estimulam as glândulas endócrinas-alvo a produzir e secretar outros hormônios, que afetam diretamente os tecidos/células-alvo. A função da NH difere daquela da AH, visto que ela secreta hormônios que afetam diretamente os tecidos-alvo, enquanto a AH produz hormônios que estimulam a produção de outros hormônios.1 Os hormônios são proteínas (corticotropina, hormônio do crescimento, insulina), peptídios (ocitocina, vasopressina), esteroides (glicocorticoides, mineralocorticoides, hormônios sexuais) ou aminas (dopamina, melatonina, epinefrina). As proteínas e os peptídios são inicialmente produzidos como grandes moléculas precursoras, que finalmente são clivadas a uma forma ativa e armazenadas em grânulos secretores nas células. Os hormônios esteroides são sintetizados a partir do colesterol, que é produzido pelo fígado. Esses hormônios não são armazenados, porém sintetizados e liberados de acordo com as necessidades. As proteínas e os peptídios são transportados na circulação dissolvidos no plasma, enquanto os hormônios esteroides e tireoidianos são transportados ligados a moléculas carreadoras específicas. Os hormônios precisam estar em um estado livre ou não ligado para interagir com uma célula-alvo, o que ocorre habitualmente por meio de dois mecanismos principais. Por serem lipofílicos, os esteroides atravessam as membranas celulares sem auxílio e interagem com estruturas dentro dos núcleos para alterar a função celular. Os peptídios e as proteínas não podem atravessar as membranas celulares; esses hormônios ligam-se a um receptor de membrana, desencadeando um sistema de segundos mensageiros, que ativa ou inibe atividades celulares para produzir determinado efeito biológico.1 A fisiologia e a fisiopatologia do pâncreas, da tireoide, das glândulas adrenais e das glândulas paratireoides são descritas adiante, seguidas de uma discussão do manejo anestésico dos distúrbios mais comuns desses órgãos observados em pequenos animais. Embora não seja uma lista completa, a Figura 31.1 fornece um resumo dos hormônios do sistema endócrino e seus efeitos.1,2

■ Pâncreas O pâncreas é uma glândula bilobada nodular, localizada no mesentério, no ângulo onde o duodeno une-se com o estômago (Figura 31.2). Em geral, são encontrados dois ductos pancreáticos no cão, enquanto o gato tem apenas um ducto. O ducto pancreático ou dorsal

drena o lobo esquerdo e une-se ao ducto colédoco antes de entrar no duodeno na papila maior do duodeno; o ducto ventral ou acessório drena o lobo direito no duodeno, na papila menor do duodeno. O gato possui apenas o ducto dorsal para drenar ambas as áreas.3 Diabetes melito As células beta do pâncreas secretoras de insulina constituem o tipo celular mais abundante das ilhotas de Langerhans, porém mesmo assim representam apenas uma proporção muito pequena da massa pancreática total em cães e gatos. Ocorre diabetes melito (DM) quando há secreção inadequada de insulina para controlar a hiperglicemia, porém os mecanismos fisiopatológicos envolvidos são diferentes em cães e gatos. A forma predominante de DM no cão é homóloga ao DM tipo 1 em seres humanos, sendo a hiperglicemia causada pela deficiência de insulina em consequência da destruição das células beta.4 Nos gatos, predomina um homólogo do DM tipo 2 humano. O diabetes melito tipo 2 resulta de resistência à insulina e exaustão final das células beta.5,6 Existem várias raças caninas que correm risco aumentado de DM, incluindo Terrier Australiano, Schnauzers miniatura e padrão, Samoieda, Poodles Miniatura e Toy, Terrier Cairn, Keeshond, Bichon Frisé e Spitz Finlandês.7 Não há predileção por raças felinas; entretanto, como os gatos apresentam principalmente a forma de diabetes tipo 2, a obesidade aumenta acentuadamente o risco de diabetes melito nessa espécie.8 O DM é diagnosticado com mais frequência em animais de meia-idade ou idosos, e, nos cães, observa-se uma predileção pelo gênero feminino. Em ambas as espécies, ocorrem sinais clínicos de DM, em virtude da incapacidade das células de utilizar os carboidratos como combustível metabólico e consequente hiperglicemia. Quando a concentração plasmática de glicose ultrapassa o limiar renal para a reabsorção tubular proximal de glicose do filtrado, ocorre glicosúria, causando diurese osmótica e os sinais clínicos comuns de poliúria e polidipsia. Outros sinais clínicos, que dependem da gravidade e da cronicidade da hiperglicemia, consistem em polifagia e perda de peso. As cataratas são comuns em cães com DM (Figura 31.3), e alguns gatos com DM crônico desenvolvem neuropatia periférica, que resulta em postura plantígrada (Figura 31.4). Nas formas graves de DM, como cetoacidose diabética (CAD) ou síndrome hiperosmolar, os pacientes podem estar em condição crítica, com sinais clínicos de vômitos, anorexia, desidratação grave, depressão, coma ou morte. Por isso, os animais com CAD não são bons candidatos à anestesia, embora raramente necessitem de anestesia para procedimentos diagnósticos ou cirúrgicos.

Figura 31.1 Resumo dos hormônios importantes do eixo hipotálamo-hipófise (EHH) e seus tecidos-alvo (pâncreas, tireoide, órgãos reprodutores e glândulas adrenais). Observe que as glândulas paratireoides e o paratormônio (PTH) não são afetados pelo EHH.1,2 (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 31.2 Anatomia dos ductos pancreáticos no cão e no gato. Fonte: adaptada de um desenho de Mr. Joe Smith, Department of Veterinary Anatomy, University College Dublin, Dublin, Ireland. Reproduzida, com autorização, de Joe Smith.

Figura 31.3 Esse Schnauzer Miniatura de 13 anos de idade teve cataratas maduras em ambos os olhos (OU), devido ao DM. O cão foi submetido a anestesia geral para remoção da catarata do olho direito (OD). A catarata madura ainda continua no olho esquerdo (OS), que pode levar a um segundo evento anestésico. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Figura 31.4 A postura plantígrada em um gato com DM é causada por neuropatia periférica. A postura em si pode não representar um fator passível de complicar a anestesia; entretanto, sugere a presença de diabetes crônico e/ou não controlado. Medidas seriadas da GS durante a anestesia, ± a administração de insulina/glicose, são justificadas no peroperatório. Fonte: Dr Todd Green, Department of Small Animal Medicine and Surgery, St George’s University, St George’s, Grenada. Reproduzida, com autorização, de Todd Green.

As características para o diagnóstico de DM consistem no achado de hiperglicemia e glicosúria. Os resultados do hemograma completo frequentemente são normais, porém ocorre algumas vezes leucocitose em pacientes com infecção concomitante, que é comum no DM e na CAD. Além da hiperglicemia, a análise bioquímica do soro pode revelar atividade elevada das enzimas hepáticas, hipercolesterolemia e, em pacientes desidratados, azotemia e distúrbios eletrolíticos, incluindo hipopotassemia, hipernatremia, hiponatremia, hipofosfatemia e hipercloremia. Em cães e gatos com CAD, a gasometria arterial revela uma baixa concentração de HCO3– e hiato aniônico elevado. Com frequência, o tratamento da CAD exige hospitalização e cuidados críticos, incluindo fluidoterapia intravenosa, infusão de velocidade constante (CRI) de insulina, e monitoramento intensivo do estado acidobásico, equilíbrio hídrico, glicose e eletrólitos.9 Entretanto, os pacientes com DM não estão, em sua maioria, em estado crítico por ocasião do diagnóstico e são tratados de modo ambulatorial.10 Tanto em cães quanto em gatos, a insulina constitui a base do tratamento. A variedade de preparações de insulina disponíveis

para uso em cães e gatos está mudando constantemente; todavia, no momento atual, os cães são tratados, em sua maioria, com NPH (protamina neutra Hagedorn) ou insulina lenta suína, enquanto os gatos são tratados com insulina lenta suína, insulina protamina de zinco e um dos análogos de insulina recombinante humana de ação longa, como insulina glargina ou insulina detemir. A dieta desempenha um papel no manejo do DM. Nos gatos, dietas com baixo teor de carboidratos e maior teor de proteínas têm sido recomendadas.11 Os agentes hipoglicemiantes orais têm sido defendidos para controlar a hiperglicemia em gatos diabéticos, porém o uso desses fármacos não é comum. O monitoramento do tratamento é um tanto controverso, porém as determinações das concentrações séricas de frutosamina podem ser usadas para indicar um controle a longo prazo da hiperglicemia. Embora as curvas de glicemia (glicose sanguínea, GS) seriada tenham sido tradicionalmente recomendadas para avaliar os efeitos da insulinoterapia, seu uso é questionado por estudos conduzidos tanto em cães quanto em gatos, mostrando a pouca confiabilidade das curvas de glicose na previsão do controle glicêmico.12,13 Manejo anestésico Quando cães e gatos com DM necessitam de anestesia para procedimentos médicos e cirúrgicos, esses procedimentos em geral não estão diretamente relacionados com o DM. Por exemplo, muitos cães diabéticos apresentam cataratas que exigem remoção por meio de facoemulsificação sob anestesia.14 Em condições ideais, apenas os pacientes com diabetes bem controlados devem ser anestesiados, visto que os pacientes com diabetes melito não regulado podem exibir flutuações acentuadas no nível de glicemia. Em pacientes precariamente controlados, a administração de insulina antes da anestesia pode resultar em níveis de glicemia imprevisíveis no peroperatório.12,15 A exceção a essa recomendação consiste em fêmeas não castradas com resistência à insulina que necessitam de ovário-histerectomia antes que a doença possa ser controlada.16 O monitoramento oportuno do nível de glicemia durante o período peroperatório e a intervenção adequada (p. ex., administração de insulina regular ou glicose) podem facilitar a prevenção de hiperglicemia e hipoglicemia de graus extremos durante o período peroperatório. Em cães diabéticos bem controlados, o nível de glicemia determinado em 1 h após a administração de insulina deve estar situado entre 150 e 250 mg/dℓ. De acordo com Feldman e Nelson,16 quando o valor se aproxima de 150 mg/dℓ, o cão diabético tem mais tendência a apresentar hipoglicemia no dia em que estiver em jejum. Por conseguinte, a insulina deve ser suspensa ou administrada com cautela a esses pacientes, e a GS deve ser rigorosamente monitorada. Uma concentração de GS nas primeiras horas da manhã superior a 300 mg/dℓ sugere um controle precário da glicemia; todavia, uma única medição não confirma esse quadro. Nesses casos, é mais provável que haja controle glicêmico

inadequado se a concentração de frutosamina for superior a 500 mg/dℓ.16 A anestesia para procedimentos eletivos deve ser adiada nesses pacientes. Apesar de sua rara necessidade, os pacientes com CAD não devem ser anestesiados, até que a concentração de GS diminua para menos de 400 mg/dℓ. Em pacientes com hiperglicemia e CAD, é essencial dispensar uma atenção meticulosa para o estado de hidratação, o estado acidobásico e a presença de desequilíbrios eletrolíticos, visto que a hiperglicemia pré-operatória pode contribuir para uma diurese hiperosmolar, com desidratação subsequente e hipotensão intraoperatória.14,17,18 Nesses pacientes, a fluidoterapia para corrigir as perdas de água e os desequilíbrios eletrolíticos deve ser instituída antes da anestesia. Para todos os pacientes com DM, os procedimentos anestésicos seletivos devem ser realizados o mais cedo possível pela manhã, após a primeira determinação da GS. Isso reduz a necessidade de um longo período de jejum e permite ao paciente retomar mais rapidamente suas atividades normais. Embora a administração continuada de insulina durante o jejum pré-operatório aumente potencialmente o risco de hipoglicemia, a atividade da insulina é importante mesmo durante o jejum, a fim de permitir a captação tecidual de nutrientes. Além disso, o estresse associado a anestesia e cirurgia provoca a liberação de hormônios, como corticosteroides e catecolaminas. Esses hormônios promovem a glicogenólise, a gliconeogênese e a cetogênese, os quais aumentam a necessidade de insulina. Por conseguinte, a administração de insulina peroperatória está indicada para prevenir a hiperglicemia grave e minimizar a formação peroperatória de cetonas.16 Embora as recomendações para o jejum pré-operatório possam variar, em geral os animais no dia anterior à cirurgia devem ser normalmente alimentados, e deve-se administrar a insulina de acordo com o esquema habitual. Os alimentos devem ser suspensos depois de 22 h. Na manhã da cirurgia, a GS deve ser determinada antes da administração de insulina, e esta deve ser administrada de acordo com a GS do paciente. As diretrizes são apresentadas na Tabela 31.1. Independentemente do protocolo recomendado para alimentação e administração de insulina, a comunicação entre o proprietário, o veterinário e o anestesista é importante, de modo que uma história bem definida de administração de insulina, esquema de alimentação e saúde do paciente seja compartilhada. Não há nenhuma contraindicação de fármacos para diabéticos. Entretanto, os fármacos com rápida eliminação ou cuja ação possa ser revertida permitem que o paciente diabético possa retomar a sua alimentação normal e esquema de insulina mais cedo após a anestesia.14,19 Foi relatado que o vecurônio, um bloqueador neuromuscular comumente administrado para produzir centralização do bulbo do olho e imobilização durante a facoemulsificação, apresenta uma duração de ação mais curta em pacientes com DM.20 O motivo disso ainda não foi elucidado, embora esse achado possa ter relevância clínica

mínima. Durante a manutenção anestésica de pacientes com DM, flutuações na concentração de GS são afetadas não apenas pela eficácia do manejo clínico atual, mas também pelo tipo e complexidade da cirurgia, administração pré-operatória de glicocorticoides e presença de infecção.21 Por conseguinte, independentemente da GS inicial, recomenda-se o monitoramento peroperatório frequente da GS a cada 30 a 60 min.14,15 Embora não se tenha definido a meta ideal da GS no período peroperatório, a administração de glicose tem sido recomendada, quando necessário para manter o nível de glicemia entre 150 e 250 mg/dℓ durante o período intraoperatório e continuada durante a recuperação anestésica até o paciente começar a alimentar-se. A glicose deve ser interrompida quando ou se a GS alcançar 250 mg/dℓ em cães ou 300 mg/dℓ em gatos, visto que esse nível tende a promover a glicosúria e a diurese.16,19 As infusões de glicose são formuladas pela adição da quantidade adequada de glicose a 50% a um líquido isotônico, como solução de lactato de Ringer (LRS) para obter concentração final de glicose a 1 a 5%, sendo variada, conforme a necessidade de cada paciente. Uma velocidade de administração de líquido intraoperatória de 5 a 10 mℓ/kg/h é habitualmente adequada. Se uma concentração de GS superior a 300 mg/dℓ persistir, pode-se administrar insulina regular IV ou IM em uma dose de 20% da dose habitual de insulina de ação longa do paciente. As doses subsequentes de insulina regular devem ser determinadas para evitar a hipoglicemia, e a dose deve ser ajustada com base no efeito da primeira injeção.16 Tabela 31.1 Diretrizes para o tratamento de pacientes diabéticos. Manhã da cirurgia – verificar a glicose pela manhã Dia anterior à cirurgia

GS < 100 mg/dℓ

Insulina

Esquema normal

Nenhum

Comentários

Jejum depois de 22 h

GS 100 a 200 mg/dℓ

GS > 200mg/dℓ

¼ da dose habitual

½ habitual da dose

pela manhã

pela manhã

Infusão de glicose 1 a

Infusão de glicose a 1

Suspender a glicose

5%a

a 5%a

até a GS < 150 mg/dℓ

GS, glicose no sangue. a

Isso faz parte do volume de líquido de manutenção da anestesia.

Fonte: modificada da referência 16. O diabetes melito constitui um fator de risco para hipertensão em cães, mas não em

gatos, e alguns podem estar tomando medicação para a pressão arterial. Muitos desses fármacos provocam vasodilatação e podem predispor o paciente à hipotensão durante a anestesia.21,22 Foi sugerido que os cães diabéticos que são submetidos a facoemulsificação têm mais tendência a desenvolver hipotensão do que cães não diabéticos. A incidência aumentada e a gravidade da hipotensão intraoperatória provavelmente têm tendência a ser atribuídas à hipovolemia em consequência da hiperglicemia e consequente diurese osmótica, e não à medicação sistêmica.17 Nos seres humanos, os efeitos cardiovasculares da neuropatia diabética autônoma são bem caracterizados e podem predispor esses pacientes a arritmias peroperatórias e hipotensão intraoperatória.21 Em medicina veterinária, um estudo realizado concluiu que houve diferenças no tônus vagal entre cães diabéticos e não diabéticos.23 Entretanto, ainda não foi documentado se essa condição está associada a hipotensão intraoperatória ou a outras complicações cardiovasculares em pacientes veterinários. Por essas razões, indica-se a aferição da pressão arterial.22 Hipoglicemia ou hiperglicemia grave podem resultar em recuperação anestésica prolongada, disfunção do sistema nervoso central e CAD. Vários dos sinais clínicos associados a essas complicações podem passar despercebidos até o final da anestesia.14 Embora tanto a hipoglicemia quanto a hiperglicemia sejam prejudiciais para o paciente diabético, não foi estabelecida uma meta peroperatória de GS associada a um resultado pós-operatório positivo em medicina veterinária. Em pacientes humanos não diabéticos em estado crítico, a hiperglicemia (> 180 mg/dℓ) tem sido associada a resultados adversos. Por essa razão, foi recomendado um controle estrito da glicemia (80 a 110 mg/dℓ). Entretanto, essa abordagem clínica tem sido associada a um aumento de episódios hipoglicêmicos e resultados potencialmente mais graves.24 Em diabéticos submetidos a cirurgia, a variabilidade da glicemia foi associada ao resultado; todavia, reduções crescentes na GS intraoperatória ou a euglicemia não reduziram consistentemente o risco e podem ter agravado a taxa de mortalidade pós-operatória.25,26 Por outro lado, a hiperglicemia intraoperatória grave está potencialmente associada a resultados piores no pós-operatório,25 embora pacientes hiperglicêmicos com diabetes tenham apresentado uma taxa de mortalidade pós-operatória mais baixa do que pacientes não diabéticos com hiperglicemia aguda.26 Por conseguinte, nos seres humanos, as recomendações de uma GS moderada de 140 a 180 mg/dℓ parecem ser mais razoáveis, além de evitarem a variabilidade da GS.27 Em medicina veterinária, essa recomendação não foi definida, porém parece razoável manter um nível de GS peroperatório entre 150 e 250 mg/dℓ com flutuações mínimas, como sugeriram Feldman e Nelson.16 No dia seguinte à cirurgia, o cão ou gato diabéticos podem habitualmente retomar o esquema habitual de administração de insulina e alimentação. Os pacientes que não estão se alimentando podem ser mantidos com infusão de glicose IV e injeções de insulina

regular administradas por via subcutânea a cada 6 a 8 h.16 Insulinoma O insulinoma refere-se a um tumor funcional das células beta do pâncreas, que secreta insulina de modo constitutivo e não responde a alterações da GS.28 A consequente hipersecreção de insulina leva a hipoglicemia crônica e sinais clínicos associados. Os tumores secretores de insulina são raros e ocorrem mais comumente em cães de meia-idade e idosos.28 São extremamente raros em gatos.29 Esses tumores, que quase sempre são malignos, tendem a ocorrer em ambas as extremidades do pâncreas, mais do que no corpo do pâncreas, e a maioria já metastatizou por ocasião do diagnóstico.28,30 Os sinais clínicos observados em animais com insulinoma resultam da hipoglicemia grave e prolongada e consistem em convulsões (sinal mais comum), colapso, fraqueza, tremores e ataxia, entre outros. Os achados ao exame físico de cães com insulinoma são habitualmente inespecíficos, embora a obesidade seja comum. Com a exceção da hipoglicemia, não existem marcadores para o insulinoma em exames de sangue e urina de rastreamento. O diagnóstico depende da demonstração de hipoglicemia em jejum com concentração sérica inapropriadamente alta de insulina. Embora antigamente recomendada, a razão insulina:glicose não é mais utilizada para o diagnóstico de insulinoma, em virtude de sua pouca acurácia diagnóstica. Quando há suspeita de insulinoma, a ultrassonografia e/ou a tomografia computadorizada (TC) do abdome estão indicadas para a identificação de tumor pancreático.31 Devem-se obter radiografias de tórax para rastreamento de metástases pulmonares, porém os resultados quase sempre são normais. Em geral, recomenda-se a remoção cirúrgica do tumor primário para ajudar a controlar a hipoglicemia, porém essa abordagem raramente é curativa, visto que é comum a ocorrência de metástases para os linfonodos e o fígado. Assim, a pancreatografia parcial melhora a sobrevida, e as taxas de sobrevida médias em cães variam de 7 a 42 meses, dependendo do estágio da doença e da resposta ao tratamento cirúrgico.30 Acredita-se que as taxas de sobrevida em gatos sejam consideravelmente menores. Além da cirurgia, a terapia clínica é necessária para evitar crises hipoglicêmicas em pacientes com insulinoma. É importante considerar que o tratamento da hipoglicemia com glicose intravenosa pode causar maior secreção de insulina e agravamento da hipoglicemia. Em uma crise hipoglicêmica, pode não haver nenhuma escolha, a não ser a administração intravenosa de glicose; é necessário proceder a um monitoramento frequente para identificar alterações imprevisíveis na concentração de GS. Foi relatado que a infusão intravenosa de glucagon ajudou a estabilizar as concentrações de GS em um cão com crise hipoglicêmica associada a insulinoma.32 A hipoglicemia pode ser de algum modo evitada pela ingestão de pequenas

refeições frequentes. Se essa estratégia for ineficaz, são administrados glicocorticoides para antagonizar os efeitos da insulina e aumentar a gliconeogênese. A prednisona é o tratamento mais comumente usado para o insulinoma, porém outros fármacos têm sido usados. O diazóxido é uma benzotiadiazida que diminui a secreção de insulina ao impedir o fechamento dos canais de K+-ATP na membrana plasmática das células beta, impedindo a despolarização da célula. Os efeitos colaterais gastrintestinais são comuns em cães aos quais se administra diazóxido. A estreptozotocina, uma nitrosureia que é tóxica para as células beta, tem sido usada em certas ocasiões para o tratamento clínico do insulinoma em cães.33 Outras opções de tratamento incluem o uso de análogos da somatostatina, porém esses fármacos não foram avaliados para uso em cães com insulinoma. Os pacientes portadores de insulinoma necessitam de manejo clínico antes da cirurgia para controlar os sinais clínicos e ajudar na estabilidade do paciente durante a anestesia.28 O jejum pré-operatório deve ser mantido por um período máximo de 8 h, e, durante esse período, a GS do paciente deve ser monitorada.34 Uma suplementação de glicose pode ser fornecida por via oral com o xarope de milho, ou por via intravenosa com solução de glicose a 2,5 a 5% caso sejam observados sinais clínicos.14 A concentração-alvo de GS deve ser de 50 a 60 mg/dℓ,14,35,36 embora animais com insulinomas frequentemente tolerem concentrações de GS em repouso de 30 a 40 mg/dℓ, sem sinais clínicos.18 A hipoglicemia pré-operatória também pode ser tratada com infusão intravenosa de glucagon, 5 a 40 ng/kg/min, após um bolus de 50 ng/kg IV,32,37 ou juntamente com uma infusão de baixa concentração de glicose.34 Manejo anestésico Os sinais clínicos de hipoglicemia podem ser mascarados pela anestesia geral e podem ser detectados somente após a recuperação do animal.21 A não ser que a concentração de GS seja monitorada, é pouco provável que a hipoglicemia seja identificada durante a anestesia,18,28 de modo que o aspecto mais importante do manejo anestésico do insulinoma consiste em monitoramento seriado da glicemia. No intraoperatório, a meta não é corrigir por completo a hipoglicemia, mas manter a concentração de GS na faixa capaz de prevenir os sinais clínicos associados à neuroglicopenia antes da anestesia.33,37,38 A GS deve ser determinada particularmente durante a manipulação do tumor, visto que isso pode levar a picos de insulina e hipoglicemia intraoperatórios.21 Deve-se evitar também a hiperglicemia, de modo que o tumor não seja estimulado a liberar quantidades excessivas de insulina, que podem ser resultar em hipoglicemia refratária.14,18,28,32,37,38 A fluidoterapia durante a anestesia deve ser gradualmente suplementada até que seja alcançado o nível-alvo de GS, em lugar de administrar grandes bolus de glicose ou solução de glicose altamente concentrada.36,37 Uma suplementação de glicose de mais de 5% habitualmente não é

necessária e não é recomendada.14 Para titular a velocidade de infusão de glicose, uma bolsa de solução cristaloide isotônica pode ser fixada a um equipo de infusão do tipo bureta, onde a solução cristaloide é misturada com glicose até a concentração desejada. A medição seriada (i. e., a cada 30 a 60 min) da GS permite ao anestesista diluir ou aumentar a concentração de glicose do líquido, quando necessário. Como alternativa, pode-se administrar uma infusão separada de glicose utilizando uma bomba de infusão ou fluxo por gravidade. O volume de outros líquidos administrados deve ser diminuído para manter a velocidade geral desejada e evitar a sobrecarga hídrica. O protocolo anestésico utilizado para pacientes com insulinoma deve levar em consideração a dor associada a uma cirurgia abdominal de grande porte, visto que a estimulação simpática resultante pode causar hiperglicemia, com potencial de estimulação do tumor e hipoglicemia de rebote.28 O manejo da dor pode ser obtido com a administração peroperatória de agonistas dos receptores opioides µ, quando necessário, tanto por via sistêmica quanto epidural. Embora os agonistas dos receptores α2-adrenérgicos produzam relaxamento muscular e analgesia e exerçam um efeito poupador do anestésico,38 eles não têm sido recomendados para manejo anestésico desses pacientes, devido a seu efeito inibitório sobre as células beta do pâncreas e supressão da concentração plasmática de insulina.28,34 Todavia, em um estudo recente, quando foi administrada uma dose de 5 µg/kg de medetomidina com a medicação pré-anestésica a pacientes com insulinoma submetidos a cirurgia, foi observada a resposta habitual das células beta do pâncreas aos agonistas dos receptores α2-adrenérgicos (i. e., diminuição da concentração plasmática de insulina). A medetomidina ajudou na manutenção da concentração de GS e diminuiu a quantidade de glicose utilizada durante a anestesia. Além disso, pacientes aos quais foi administrada a medetomidina tiveram uma pressão arterial mais estável durante a cirurgia, provavelmente como resultado de melhor analgesia.38 Parece que uma dose baixa de medetomidina (ou de outros agonistas dos receptores α2-adrenérgicos) pode ser vantajosa em pacientes com insulinoma, contanto que a GS seja monitorada, e a infusão de glicose seja ajustada de acordo. A pancreatite constitui a segunda complicação mais comum da pancreatectomia parcial em pacientes com insulinoma. Embora isso constitua principalmente uma complicação cirúrgica, a manutenção de uma perfusão adequada para o pâncreas durante o período peroperatório pode reduzir o risco. A manutenção de uma pressão arterial média (PAM) acima de 60 mmHg e a prevenção de hipoxemia são ideais.36 A determinação seriada da GS deve ser continuada no pós-operatório. Pode ocorrer hiperglicemia transitória devido à atrofia das células beta normais do pâncreas que permanecem; a administração de insulina pode ser necessária temporariamente até a estabilização da concentração de GS.28,36 Cães com metástases visíveis por ocasião da cirurgia ou com tumores primários parcialmente

ressecados tendem a apresentar sinais persistentes de hipoglicemia no pós-operatório. Outras complicações pós-operatórias potenciais incluem necrose duodenal devido ao comprometimento vascular, arritmias ventriculares e disfunção do sistema nervoso central em consequência da hipoglicemia prolongada.34,36,39

■ Pancreatite Ocorre pancreatite tanto em cães quanto em gatos quando as enzimas digestivas são ativadas nas células acinosas pancreáticas.40-42 Em geral, a causa não é conhecida em pacientes veterinários, embora a ingestão de refeições ricas em gordura, vários fármacos, traumatismo do pâncreas, isquemia pancreática, obstrução do ducto pancreático e infecção tenham sido implicados em cães. No gato, a causa da pancreatite pode ser ainda menos bem elucidada, porém a doença nos gatos é observada em associação a inflamação hepatobiliar e/ou doença inflamatória intestinal.40-42 As enzimas pancreáticas normalmente são mantidas em formas inativas, denominadas zimogênios, e são sequestradas em grânulos nas células acinosas. Quando os mecanismos de defesa estão sobrecarregados, esses zimogênios são ativados, e em consequência, ocorre autodigestão do pâncreas. A autodigestão leva à infiltração inflamatória do pâncreas e tecidos adjacentes. A pancreatite ocorre na forma aguda ou crônica. A pancreatite aguda é algumas vezes clinicamente muito grave; entretanto, tipicamente, não resulta em alterações crônicas do pâncreas, enquanto a pancreatite crônica é, com frequência, clinicamente vaga, sobretudo em gatos, porém resulta em alterações irreversíveis do pâncreas, incluindo atrofia e fibrose. A pancreatite acomete mais comumente cães e gatos de idade média e idosos.41,42 Os Schnauzers Miniatura são os que apresentam a maior taxa de pancreatite entre as raças de cães, com destaque também para o Pastor-de-shetland, o Yorkshire Terriere o Poodle.43 Não existe nenhuma predileção estabelecida da pancreatite por raças em gatos. A apresentação clínica da pancreatite varia de acordo com a gravidade e a condição de cronicidade. Tipicamente, cães com pancreatite exibem sinais de depressão, dor abdominal, febre, anorexia, vômitos e diarreia. A apresentação clínica é mais obscura em gatos. À semelhança de muitas doenças felinas, a anorexia e a letargia são comuns, tornando o diagnóstico difícil em alguns indivíduos. Os sinais clássicos de febre, dor abdominal e vômitos são muito menos comuns em gatos do que nos cães. Lesões extensas na parte média do abdome, que representam a inflamação do pâncreas e tecidos adjacentes, podem ser palpáveis em ambas as espécies. Nas formas graves de pancreatite, podem ocorrer complicações sistêmicas que causam risco à vida do animal, como síndrome de angústia respiratória, coagulação intravascular disseminada e arritmias cardíacas. Não existem achados na história ou no exame físico que sejam patognomônicos de

pancreatite tanto em cães quanto em gatos. O hemograma completo revela comumente leucograma inflamatório, algumas vezes com desvio para a esquerda e neutrófilos tóxicos. Observa-se um hematócrito aumentado em cães desidratados, ou pode-se verificar a presença de anemia leve associada à inflamação crônica. O perfil bioquímico do soro pode revelar evidências de desidratação com azotemia pré-renal, e pode-se observar uma atividade aumentada das enzimas hepáticas. A pancreatite está associada a hiperbilirrubinemia, devido a colestase intra-hepática ou pós-hepática, ocorrendo mais comumente em gatos do que em cães. Infelizmente, os testes da amilase e lipase séricas não têm nenhum valor no diagnóstico da pancreatite em ambas as espécies. Com frequência, é difícil confirmar o diagnóstico de pancreatite. No decorrer dessa última década, testes para a imunorreatividade da lipase pancreática tornaram-se disponíveis tanto para cães quanto para gatos.44-46 Embora esses testes tenham algumas limitações quanto à acurácia diagnóstica, eles são superiores aos exames previamente disponíveis e são particularmente úteis para diagnóstico quando associados a ultrassonografia do pâncreas e citologia do aspirado do pâncreas com agulha fina. O tratamento da pancreatite envolve cuidado de suporte e manejo da dor. A fluidoterapia agressiva é necessária para corrigir a desidratação e manter a perfusão adequada do pâncreas. Em geral, recomenda-se uma solução eletrolítica balanceada para esse propósito. Os pacientes com pancreatite que apresentam vômitos devem receber antes antieméticos injetáveis. A metoclopramida tem sido usada amplamente no tratamento dos vômitos em cães com pancreatite, porém alguns médicos questionam a possibilidade desse fármaco de diminuir a perfusão intestinal, e esse fármaco deixou de ser usado. A metoclopramida é menos efetiva como agente antiemético em gatos do que em cães. Os antagonistas 5-HT3 (p. ex., ondansetrona, dolasetrona) mostram-se efetivos no tratamento dos vômitos tanto em cães quanto em gatos. Como o maropitanto pode ter alguns efeitos desejados sobre a dor visceral e, por ser um antiemético efetivo em cães e gatos, pode constituir o agente antiemético de escolha na pancreatite.47-49 A alimentação representa um importante aspecto do tratamento da pancreatite. A recomendação tradicional de suspender a alimentação de pacientes com pancreatite deixou de ser usada nesses últimos anos, e a opinião atual prevalente é a de que a alimentação só deve ser suspensa se o paciente estiver com vômitos, e houver risco de pneumonia por aspiração. Isso é particularmente importante em gatos com pancreatite, devido ao risco de lipidose hepática caso a alimentação seja suspensa por longos períodos de tempo. Como os níveis plasmáticos elevados de lipídios, a obesidade e as refeições ricas em gordura têm sido associados a pancreatite, recomenda-se habitualmente uma dieta pobre em gordura. O plasma fresco congelado tem sido recomendado para uso em pacientes com pancreatite, porém estudos realizados em cães e pacientes humanos não demonstraram nenhum benefício.50 O uso de

antibióticos no tratamento da pancreatite é controverso. Tipicamente, a pancreatite não é uma doença bacteriana, embora possam ocorrer translocação intestinal de bactérias e sepse nos casos graves. Se houver suspeita de sepse, ou se o aspirado com agulha fina do pâncreas sugerir a presença de infecção, devem-se administrar antibióticos de amplo espectro. A pancreatite pode ocorrer após cirurgia de abdome em pacientes humanos51 e tem sido observada concomitantemente em cães com outras doenças, como diabetes melito, hiperadrenocorticismo, insuficiência renal, neoplasia, insuficiência cardíaca congestiva e distúrbios autoimunes.43 A pancreatite iatrogênica tem sido induzida por fármacos, incluindo corticosteroides, anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), organofosforados, diuréticos tiazídicos, sulfonamidas, tetraciclina, azatioprina, furosemida e estrogênio.52 Por conseguinte, é provável que animais com pancreatite aguda possam ser anestesiados por motivos não relacionados com o diagnóstico ou tratamento da pancreatite. A intervenção cirúrgica é realizada em pacientes com pancreatite necrosante aguda, abscesso pancreático, obstrução dos ductos pancreático/biliar ou evidências de infecção, neoplasia ou outras lesões expansivas, bem como naqueles que não respondem à terapia clínica. Técnicas endoscópicas, cirúrgicas ou laparoscópicas também podem ser usadas em pacientes com pancreatite para a colocação de tubos de enterostomia para nutrição enteral. A escolha dos anestésicos para uso em pacientes com pancreatite baseia-se, com frequência, em outros fatores de complicação, semelhantes aos que exigem laparotomia exploradora para doença gastrintestinal (GI). Alguns pacientes podem apresentar grave comprometimento na apresentação, porém a cirurgia habitualmente só é realizada após estabilização do paciente e, em geral, somente quando houve fracasso da terapia clínica. Muitos opioides estimulam a contração do esfíncter de Oddi, o que aumenta a pressão no ducto colédoco. Apesar desses problemas, e tendo em vista que a dor causada pela pancreatite é frequentemente intensa, e provavelmente já ocorreu contração do esfíncter, os opioides constituem a base da terapia analgésica tanto em seres humanos quanto em animais, visto que esses fármacos proporcionam a melhor analgesia.53-55 Se os vômitos forem frequentes, é prudente evitar a medicação pré-anestésica com agonistas dos receptores α2-adrenérgicos e opioides, como morfina ou hidromorfona; entretanto, os opioides podem ser utilizados durante a manutenção. Os profundos efeitos cardiovasculares, a hiperglicemia e a hipoinsulinemia observados com a administração de agonistas dos receptores α2-adrenérgicos também podem impedir o seu uso em pacientes com pancreatite. Não existe nenhuma escolha mais adequada bem definida para a indução da anestesia em pacientes com pancreatite. O propofol tem sido associado ao desenvolvimento de pancreatite em seres humanos,56 porém esse efeito não é relatado em cães nem em gatos. Uma avaliação retrospectiva do uso do propofol em 44 gatos com

lipidose hepática primária não revelou qualquer evidência de disfunção pancreática.57 O halotano não é recomendado em pacientes comprometidos, naqueles com doença hepática concomitante ou naqueles que apresentam arritmias cardíacas. Nesses casos, prefere-se a manutenção da anestesia com isofluorano ou sevofluorano. Em pacientes sem coagulopatia, dermatite ou sepse, a administração epidural de morfina proporciona um bom alívio da dor e pode ser usada além da administração intravenosa de outros opioides agonistas µ. Como sempre, o anestesista deve proceder a um monitoramento vigilante da profundidade anestésica, manutenção de volume vascular e perfusão adequados e prevenção da hipotensão e hipoxemia.

■ Glândulas adrenais As duas glândulas adrenais são de localização retroperitoneal, estando cada glândula em uma posição craniomedial em relação a cada rim. As glândulas adrenais são compostas de uma medula central e um córtex externo. Embora estejam localizadas anatomicamente em uma única glândula, essas áreas são distintas do ponto de vista funcional. A medula origina-se do tecido da crista neural do ectoderma embrionário, enquanto o córtex desenvolve-se a partir do mesoderma. A medula é densamente inervada por fibras simpáticas pré-ganglionares e considerada como parte do sistema nervoso autônomo. O seu principal tipo de célula, a célula cromafim, produz epinefrina e norepinefrina e é importante em circunstâncias de emergência e estresse.58 O córtex adrenal é um importante órgão endócrino, com três zonas distintas que secretam diferentes hormônios em resposta a vários estímulos. A zona mais superficial, a zona glomerular, secreta mineralocorticoides, principalmente aldosterona. Abaixo dessa área encontra-se a zona fasciculada, que secreta hormônios glicocorticoides, principalmente cortisol no cão e no gato. A zona mais profunda do córtex adrenal é a zona reticular, que secreta hormônios sexuais.59 Hipoadrenocorticismo A diminuição da função do córtex adrenal produz uma condição denominada hipoadrenocorticismo (HA) ou doença de Addison. Ocorre com mais frequência em cães e resulta habitualmente da destruição imunomediada do córtex adrenal.60,61 O HA também pode resultar da deficiência hipofisária de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) (raramente), ou pode ser iatrogênico, após tratamento para a síndrome de Cushing ou quando a terapia com esteroides em altas doses é subitamente interrompida. Em sua forma clássica, os cães apresentam complicações da deficiência tanto de aldosterona quanto de cortisol. Foi reconhecida uma forma da doença na qual são observados apenas sinais de deficiência de cortisol (denominada hipoadrenocorticismo “atípico”).62 A deficiência isolada de aldosterona é rara no cão, assim como qualquer forma de HA no gato.63 Os

glicocorticoides exercem múltiplos efeitos sobre a rede vascular, afetando a integridade endotelial, a permeabilidade vascular e a sensibilidade às catecolaminas. Em consequência, ajudam a manter a pressão arterial. A aldosterona estimula a reabsorção de sódio e de cloreto e a excreção de potássio no ducto coletor cortical dos túbulos renais. Como o sódio é acompanhado de água, esta também é reabsorvida, promovendo a expansão do volume plasmático.37 Entre as raças de cães, o Poodle Standard, o West Highland White Terrier, o Bearded Collie, o Nova Escócia Duck Tolling Retriever, o Dogue-alemão, o Rottweiler, o Cãod’água-português e o Leonberger têm predisposição ao HA, sendo o distúrbio mais comum nas fêmeas. A doença pode acometer cães de qualquer idade, porém a idade mediana é de 4 anos. Não existe nenhuma predileção conhecida por qualquer raça em gatos, porém a maioria é de meia-idade por ocasião do diagnóstico.63 A deficiência de glicocorticoides é responsável por muitos dos sinais clínicos de HA vagos, crônicos e que sofrem exacerbações e remissões, incluindo anorexia, letargia, vômitos, diarreia e perda de peso. A deficiência de mineralocorticoides leva a retenção de potássio e perda urinária de sódio e de água. Quando graves, essas alterações resultam em desidratação, azotemia, hipotensão, bradiarritmia cardíaca e colapso. Deve-se suspeitar de HA sempre que um paciente apresenta sinais clínicos GI vagos e/ou letargia. Os sinais da doença variam de leves a graves, e os pacientes que apresentam crise addisoniana aguda correm risco de morte. Os achados no hemograma completo podem incluir anemia, linfocitose ou eosinofilia. A ausência de leucograma de estresse em um paciente enfermo também deve levar o médico a suspeitar de deficiência de glicocorticoides.64 Os achados da bioquímica do soro incluem hiperpotassemia, hiponatremia, hipoalbuminemia, hipercalcemia leve e, nos pacientes desidratados, azotemia pré-renal.64 Apesar de a azotemia ser de origem pré-renal, a urina nem sempre é concentrada, devido à incapacidade de retenção do sódio, e é importante não pressupor a existência de uma causa renal primária de azotemia devido a uma baixa densidade específica da urina. O diagnóstico definitivo de HA requer a determinação das concentrações séricas de cortisol antes e depois de estimulação com ACTH.65 Foi relatado que o achado de uma concentração de cortisol basal normal ou alta possui alto valor preditivo negativo para o diagnóstico de HA, de modo que o teste de estimulação com ACTH nem sempre é necessário.66 Uma vez estabelecido o diagnóstico de HA, o tratamento está associado a um prognóstico satisfatório.67 Os cães e gatos em estado não crítico são tratados de modo ambulatorial com suplementação de mineralocorticoides e glicocorticoides. O tratamento com mineralocorticoides pode consistir em pivalato de desoxicorticosterona (DCP) injetável ou fludrocortisona oral. A fludrocortisona apresenta atividade glicocorticoide leve, e a suplementação com glicocorticoides nem sempre é necessária com esse fármaco. Pacientes

tratados com DCP também devem receber doses de manutenção muito baixas de prednisona. O tratamento de pacientes addisonianos muito enfermos e em crise adrenal requer fluidoterapia intravenosa com soro fisiológico e monitoramento dos eletrólitos. O tratamento com esteroides deve ser inicialmente suspenso enquanto se aguardam as provas de função adrenal. Tipicamente, os cães com crise addisoniana recuperam-se em um dia de tratamento, enquanto a recuperação é mais lenta nos gatos. Os cães e os gatos com HA agudo raramente necessitam de anestesia. A maioria dos pacientes com HA é submetida a anestesia para procedimentos cirúrgicos não relacionados com a doença e devem ter recebido previamente terapia clínica por ocasião da cirurgia.14,68 Em pacientes saudáveis, a produção de cortisol aumenta 5 a 10 vezes após uma cirurgia de grande porte. Os pacientes com HA apresentam uma resposta inapropriada ao estresse; consequentemente, devem-se ajustar as doses de glicocorticoides antes da cirurgia e da anestesia. Foram recomendados vários esquemas pré-operatórios de suplementação de glicocorticoides, além da terapia basal com esteroides, para pacientes humanos com HA, a fim de prevenir a ocorrência de crise adrenal e hipotensão refratária no período peroperatório.21 Não foram conduzidos estudos de suplementação com esteroides em cães submetidos à cirurgia; todavia, cães bem controlados com HA devem receber uma dose adicional de esteroide antes da anestesia, além da dose diária normal. As doses recomendadas de glicocorticoides incluem 0,1 a 2 mg/kg de fosfato sódico de dexametasona IV ou 1 a 2 mg/kg de succinato sódico de prednisolona IV, sendo a dose repetida, quando necessário.37,69 No pós-operatório são administrados glicocorticoides adicionais, quando necessário.19 Como alternativa, o teste de estimulação com ACTH realizado antes de procedimentos eletivos pode ser útil para orientar a necessidade de suplementação.14 Se pacientes com HA instáveis necessitarem de anestesia para procedimentos de emergência, precisam avaliados quanto a hiperpotassemia e hiponatremia, azotemia prérenal e hipovolemia, acidose metabólica e hipoglicemia. Todas essas anormalidades devem ser tratadas antes da anestesia. O hemograma completo e a bioquímica do soro são de grande utilidade quando houver suspeita de um diagnóstico de HA; o eletrocardiograma pode revelar evidências de hiperpotassemia quando as concentrações séricas estão > 5,5 mEq/ℓ, embora isso seja bastante variável.70 A reposição de volume deve ser realizada com administração intravenosa de líquido cristaloide isotônico, podendo constituir a única medida necessária para corrigir as anormalidades eletrolíticas e estabilizar o volume vascular e a pressão arterial. Caso a hiperpotassemia persista, particularmente na presença de arritmia ou bradicardia, a terapia específica pode ser justificada para diminuir o nível sérico de potássio. A Tabela 31.2 fornece as recomendações para o tratamento da hiperpotassemia.19,37,68

Manejo anestésico A escolha do protocolo anestésico no paciente com HA não é tão crítica quanto o manejo clínico peroperatório, e não se recomenda nenhum fármaco específico. Entretanto, deve-se evitar o uso de etomidato nessa população de pacientes, visto que o fármaco inibe a 11βhidroxilase, uma enzima necessária para a síntese de cortisol em cães e gatos, por 2 a 6 h após a administração.71,72 Como os pacientes com HA têm mais tendência a tornar-se hipotensos durante a anestesia, e como eles podem não responder normalmente às terapias habituais, deve-se administrar uma solução eletrolítica balanceada (p. ex., LRS) no intraoperatório, em uma velocidade de 5 a 10 mℓ/kg/h. Essa velocidade é ajustada, ou podem ser administrados bolus suplementares, dependendo do estado do paciente.18,19 Justifica-se um monitoramento frequente da pressão arterial nesses pacientes, e pode haver necessidade de suporte hemodinâmico com agentes inotrópicos positivos.18,21 Se for efetuada uma medida invasiva da pressão arterial, pode-se observar uma variação na amplitude da forma de onda da pressão sistólica, particularmente após ventilação com pressão positiva, quando o paciente apresenta hipovolemia. Tabela 31.2 Tratamento da hiperpotassemia. Tratamento

Dose

Mecanismo

Comentários Administrar uma dose de choque (90 mℓ/kg) em alíquotas, por exemplo,

Reposição com líquidos cristaloides

1/4 a 1/3 da dose total; reavaliar o

Volume necessário para o tratamento da

Diluição do K+ e diurese

hipovolemia

estado do paciente entre as doses; a concentração de K+ nos cristaloides de reposição balanceada é demasiado baixa para agravar a hiperpotassemia Não diminui o K+, protege temporariamente o coração e atua rapidamente

Gliconato de cálcio,

0,5 a 1,5 mℓ/kg

solução a 10%

durante 10 a 20 min

Cardioprotetor – aumenta o potencial limiar, restaurando a

Outras terapias para reduzir o K+,

diferença de potencial

monitoramento do ECG, diminuir a velocidade da infusão ou interrompê-la caso ocorram

arritmias 0,25 a 0,5 U/kg IV ou IM, com bolus de Insulina regular

glicose – 4 mℓ de glicose a 50% IV por

Início rápido. Monitoramento dos Estimula o transporte de glicose e de K+ para dentro das células

níveis de GS. Suplementação com glicose até dissipação do efeito da insulina

unidade de insulina Bolus de 0,5 a 1 mℓ/kg, Glicose

seguido de infusão de

Estimula a secreção endógena de

velocidade constante

insulina, mantém a GS após a

de solução de glicose a

administração de insulina

Trata também a hipoglicemia, que é comum no HA

2,5 a 5%

Bicarbonato de sódio

1 a 3 mEq/kg durante 30 min

Aumenta o pH – o K+ entra na célula em troca de hidrogênio para manter o equilíbrio eletroquímico

Início de ação mais lento, 1 h para a distribuição do bicarbonato

Fonte: modificado da referência 37. Hipercortisolismo O hipercortisolismo (i. e., hiperadrenocorticismo ou síndrome de Cushing canina) resulta das concentrações circulantes excessivas de cortisol.73 Em 80 a 85% dos casos de ocorrência natural, a doença resulta da secreção aumentada de ACTH por um adenoma corticotrófico da parte distal da hipófise, resultando em hiperplasia adrenocortical bilateral e secreção excessiva de cortisol [hipercortisolismo dependente da hipófise (HCDH)]. Menos comumente, o hipercortisolismo (HC) é causado por um tumor secretor de cortisol da glândula adrenal (HCA). A síndrome de Cushing iatrogênica é causada pela administração crônica de glicocorticoides. Foi também descrita uma forma “atípica” da síndrome de Cushing, na qual os sinais clínicos não estão associados a concentrações elevadas de cortisol, porém à secreção adrenal de hormônios sexuais. Há controvérsias quanto à existência real dessa síndrome.74 O cortisol em excesso leva aos sinais clínicos da síndrome da Cushing, incluindo alopecia de simetria bilateral, comedões, hiperpigmentação dérmica, atrofia dérmica e muscular, poliúria/polidipsia (PU/PD), polifagia, abdome pendular, hepatomegalia, respiração ofegante, hipertensão e letargia73 (Figura 31.5). Nem todos os cães com HC apresentam todos esses sintomas, porém a PU, a PD e os sinais dermatológicos são mais comuns. Quando os tumores hipofisários tornam-se grandes o suficiente, podem aparecer

sinais neurológicos, embora isso não seja comum. Em geral, a síndrome de Cushing espontânea ocorre em cães de meia-idade e idosos, porém é raramente observada em cães jovens. Não existe nenhuma predileção de gênero para a doença dependente da hipófise, porém os tumores adrenais podem ser mais comuns em fêmeas. Qualquer cão de raça pura ou de raça mista pode ser afetado, porém observa-se uma predisposição no Poodle, Boston Terrier, Pastor-alemão, Dachshund e Beagle. Os cães com HC exibem alterações inespecíficas no hemograma completo, mais compatíveis com uma resposta ao estresse – neutrofilia, linfopenia e eosinopenia.73 As anormalidades na bioquímica do soro de rotina consistem em aumento da atividade da fosfatase alcalina (devido à presença de uma isoforma induzida por esteroides no cão) em 90% ou mais dos casos, aumento da atividade da alanina aminotransferase, hipercolesterolemia e hiperglicemia.73 Tipicamente, o exame de urina revela baixa densidade específica, com ou sem proteinúria leve. A infecção concomitante do trato urinário é comum com cães com hipercortisolismo.75 Quando houver suspeita de HC, o diagnóstico é confirmado por um de vários testes de rastreamento disponíveis.76,77 O teste de estimulação com ACTH, o teste de supressão com dexametasona em baixa dose, a razão cortisol:creatinina na urina e a razão cortisol:creatinina na urina suprimida por dexametasona foram todos estudados. Nenhum desses testes é perfeito para diagnóstico, e o teste de rastreamento mais importante pode ser o índice clínico de suspeita, com base no histórico e sinais clínicos, por um médico experiente. Deve-se ter em mente que é comum a obtenção de resultados falso-positivos. Além dos testes de rastreamento para HC, recomenda-se também a realização de exames para diferenciar a causa do distúrbio. O teste de supressão com dexametasona em alta dose pode confirmar a doença dependente da hipófise, enquanto os tumores adrenais podem ser investigados pela ultrassonografia do abdome. O achado de baixa concentração plasmática de ACTH é compatível com um tumor adrenal, porém os ensaios com ACTH são de alto custo, e o hormônio é instável, de modo que é raramente medido. A TC ou a RM podem confirmar a presença de tumor hipofisário. Isso pode ser particularmente útil nos casos em que há suspeita de macroadenoma hipofisário, com base na presença de sinais neurológicos. Dispõe-se de vários protocolos de tratamento para o HC.78 Os pacientes com doença dependente da hipófise são tratados, em sua maioria, com mitotano ou trilostano.78,79 O mecanismo clássico do mitotano consiste em necrose das zonas mais profundas do córtex adrenal, com preservação da zona superficial produtora de mineralocorticoides. Outros mecanismos inibem a produção de esteroides, sem causar dano celular. O trilostano provoca inibição competitiva e reversível da 3β-hidroxiesteroide desidrogenase, uma enzima necessária para a produção de cortisol, aldosterona e androgênios no córtex adrenal.

Ambos os fármacos apresentam benefícios e desvantagens, porém são efetivos na maioria dos casos. Os tempos de sobrevida mediana para cães tratados com mitotano ou trilostano foram relatados em 708 e 662 dias, respectivamente.80 Ambos os fármacos podem causar crise addisoniana aguda. Além do manejo clínico, a ressecção cirúrgica de tumores por hipofisectomia transesfenoidal81 ou por adrenalectomia82 tem sido bem-sucedida. Cães com HCDH frequentemente necessitam de anestesia para outras doenças concomitantes,14 e aqueles com tumores adrenocorticais secretores de cortisol podem ser submetidos a adrenalectomia.68 Os cães com HCDH tratados com mitotano ou trilostano podem carecer de reserva adrenocortical funcional adequada e podem não processar adequadamente eventos anestésicos ou cirúrgicos estressantes. A reserva adrenocortical adequada é indicada por uma concentração de cortisol de 2 a 5 µg/dℓ após estimulação com ACTH.34 Pacientes com valores mais baixos devem ser tratados como na crise addisoniana iatrogênica, exigindo suplementação com glicocorticoides no pré-operatório, conforme discutido anteriormente, além disso, as concentrações de sódio e de potássio devem ser monitoradas nesses pacientes.14,19 Pacientes com ambas as formas de HC têm predisposição à hipertensão e à formação de trombos.83 A hipertensão deve ser tratada com agentes antihipertensivos (p. ex., inibidores da enzima conversora de angiotensina), juntamente com mitotano ou trilostano antes da cirurgia.14,19 O tratamento com trilostano por 3 a 4 semanas antes da cirurgia pode reverter as perturbações metabólicas do HC e minimizar o risco de complicações associadas à adrenalectomia.84 As metas da terapia consistem em concentração sérica de cortisol pós-ACTH entre 2 e 5 µg/dℓ e melhora dos sinais clínicos.34

Figura 31.5 A. Cão com HC. Observe a alopecia, a atrofia muscular dos membros posteriores e o abdome pendular. Fonte: Dr Stephen DiBartola, Department of Veterinary Clinical Sciences, The Ohio State University, Columbus, OH, USA. Reproduzida, com autorizaçao, de Stephen DiBartola. B. Abdome pendular devido a aumento da gordura abdominal, hepatomegalia e grande vesícula biliar, podendo comprometer a ventilação e a oxigenação em cães com HC durante a anestesia.

Os pacientes com HCA correm risco aumentado de eventos tromboembólicos [p. ex., tromboembolia pulmonar (TEP)] no peroperatório e podem estar recebendo terapia antitrombótica (incluindo heparina) antes da cirurgia. A medição regular do tempo de tromboplastina parcial ativado (TTPA) pode estar indicada para assegurar que o paciente esteja recebendo uma dose apropriada e não esteja correndo risco de sangramento excessivo durante a cirurgia. A meta consiste em prolongamento de 1,5 a 2 vezes do TTPA, porém sem ultrapassar esse valor.14,19,85-88 Quando houver suspeita de HCA, a extensão da invasão vascular local deverá ser determinada por ultrassonografia e/ou TC do abdome antes da cirurgia. Se o tumor estiver em estreita proximidade ou invadir a aorta ou a veia cava, devem-se efetuar uma tipagem sanguínea e/ou prova cruzada, e deve-se dispor de sangue ou concentrados de hemácias, visto que não é incomum a ocorrência de hemorragia intraoperatória excessiva.34,87 Outros sinais clínicos de HC, como PU/PD, também devem ser avaliados em todos os pacientes com HC, incluindo os que recebem terapia clínica. Os pacientes que continuam apresentando PU/PD podem sofrer rápida desidratação com restrição de água, o que deve ser considerado no preparo pré-operatório.14 Manejo anestésico Nenhum protocolo anestésico específico está indicado ou contraindicado para pacientes com HC, entretanto, esses pacientes podem não necessitar de sedação intensa, particularmente aqueles cuja doença não foi bem controlada. Alguns pacientes são geriátricos, e é comum a ocorrência de condição precária e letargia.14 O anestesista também deve considerar que muitos pacientes com HC necessitam de frequentes caminhadas de curta distância para promover o fluxo sanguíneo quando a trombose constitui um problema. Pode ser benéfico selecionar fármacos e doses que possibilitem a deambulação do cão em 4 h após a cirurgia.83 Se o HC não estiver bem controlado, a analgesia peroperatória deve ser proporcionada com opioides e anestésicos locais. Com frequência, evita-se o uso de AINEs nesses casos, devido ao risco potencial de ulceração GI em cães com alta concentração de cortisol endógeno.14,89 Cães com HC apresentam comumente hipoventilação durante a anestesia, devido a fraqueza dos músculos respiratórios, aumento da gordura abdominal, hepatomegalia e distensão da bexiga. A hipoventilação pode levar a acidemia respiratória e hipoxemia se não houver suplementação de oxigênio, particularmente durante a recuperação. O monitoramento da ventilação e da oxigenação por meio da mensuração do dióxido de carbono no fim da expiração (Et CO2), oximetria de pulso e/ou gasometria arterial é justificado em pacientes com HC. A pré-oxigenação pode estar indicada para pacientes com grande abdome pendular, e deve-se ter cuidado quando for posicionar o paciente em

decúbito dorsal para evitar o comprometimento da ventilação. Com frequência, há necessidade de ventilação com pressão positiva intermitente controlada nesses pacientes. O monitoramento direto da pressão arterial é útil em pacientes anestesiados para adrenalectomia, visto que existe um elevado risco de hemorragia rápida e excessiva.14,19 Após adrenalectomia, particularmente quando há/houve invasão da veia cava, os pacientes correm ainda maior risco de complicações tromboembólicas, particularmente durante a recuperação da anestesia. Os sinais clínicos são inespecíficos e altamente variáveis;90 entretanto, o início agudo de dispneia, taquipneia, cianose e colapso deve levar à suspeita de TEP. Em geral, a gasometria revela hipoxemia, hipocapnia e aumento do gradiente de oxigênio alveoloarterial. O tratamento é sintomático e deve ser instituído imediatamente, com aumento da fração de oxigênio inspirada e suporte cardiovascular, quando necessário.14 Deve-se administrar dexametasona (0,05 a 0,1 mg/kg IV) no pós-operatório a pacientes submetidos a adrenalectomia para prevenir o desenvolvimento de hipoadrenocorticismo. O sódio e o potássio também devem ser monitorados, e deve-se instituir uma terapia com mineralocorticoides se houver acentuada redução da razão sódio:potássio.34 Feocromocitoma O feocromocitoma (FEO) é um tumor secretor de catecolaminas, que se origina das células cromafins da medula adrenal. O feocromocitoma, que foi relatado em cães, gatos, seres humanos e outras espécies, pode ser maligno e localmente invasivo. Os sinais clínicos podem ser acentuados; todavia, com frequência, são intermitentes e paroxísticos, em virtude da liberação episódica das catecolaminas.68 Os sinais mais comuns consistem em fraqueza, colapso, taquipneia, taquiarritmia, hipertensão e convulsões.37 Ocorre também alguma sobreposição com os sinais clínicos de HC. Foi relatada a ocorrência concomitante de hiperadrenocorticismo e FEO, de modo que é necessário descartar a possibilidade de HC antes da cirurgia.91,92 Deve-se avaliar uma base de dados mínimas, consistindo em hemograma completo, perfil de bioquímica do soro, eletrocardiograma (ECG) basal, pressão arterial e radiografias de tórax. A avaliação básica é frequentemente normal ou pode revelar alterações relacionadas com a liberação de catecolaminas. Se houver também HC, as enzimas hepáticas podem estar elevadas, e pode-se obter um leucograma de estresse. Como a produção excessiva de catecolaminas é diagnóstica de FEO, utiliza-se a determinação dos níveis plasmáticos e urinários de metanefrinas para esse diagnóstico em seres humanos.21 A elevação da concentração de catecolaminas urinárias (CCU) em animais pode sustentar o diagnóstico, mas também pode ser causada pela excitação e por outros fatores. Embora seu uso seja promissor em medicina veterinária, a determinação de CCU ainda não está prontamente disponível,37 e o diagnóstico de massa adrenal é

estabelecido, com mais frequência, por ultrassonografia abdominal.93 A identificação de FEO pode ser efetuada por meio de biopsia, porém esta raramente é realizada, devido à dificuldade na obtenção de boas amostras e ao risco de hemorragia ou crise hipertensiva. Entretanto, os sinais clínicos de fraqueza episódica/colapso, arritmias etc. são altamente sugestivos. A origem, a arquitetura, a vascularização e o caráter invasivo da massa são mais bem determinados com TC ou RM. Esses exames também ajudam a determinar a viabilidade da remoção cirúrgica, além da provável necessidade de prova cruzada e transfusão sanguínea, embora toda vez que uma adrenalectomia é marcada, deve-se dispor imediatamente de hemoderivados.34,87,94,95 Foi relatado que o FEO invasivo afeta não apenas a veia cava, mas também a aorta, as veias renais e as veias hepáticas.37,95 Manejo anestésico O manejo pré-operatório é muito importante em pacientes com suspeita de FEO. Devido à ocorrência imprevisível de taquiarritmia e hipertensão, os pacientes com FEO são habitualmente considerados como de alto risco anestésico. A melhor abordagem utiliza manejo clínico prolongado para estabilizar o paciente antes da excisão cirúrgica do tumor. Com mais frequência, a terapia clínica consiste em bloqueio α com a meta de reduzir a hipertensão induzida por catecolaminas. A fenoxibenzamina, um antagonista dos receptores α1-adrenérgicos não competitivo e de ação longa, com alguma atividade nos receptores α2, é administrada mais frequentemente durante 1 a 2 semanas antes da cirurgia. Com frequência, o fármaco é iniciado com uma dose oral de 0,25 mg/kg, 2 vezes/dia; todavia, na maioria dos casos, é ineficaz. Por conseguinte, essa dose deve ser aumentada no decorrer das 2 semanas até 2,5 mg/kg, 2 vezes/dia, ou até que sejam observados sinais de hipotensão.34,37,87,95-98 Em cães com FEO, a administração pré-operatória de fenoxibenzamina não diminuiu a frequência nem a gravidade da hipertensão peroperatória, porém melhorou a taxa de mortalidade de 43 para 13%.96 Embora a fenoxibenzamina possa não normalizar a pressão arterial peroperatória, a diminuição da mortalidade peroperatória provavelmente está associada a uma redução da vasoconstrição e melhora do volume intravascular.96 Podem ocorrer taquicardias atriais e ventriculares e, com menos frequência, bloqueio atrioventricular com esses tumores.14,19,95,99 No pré-operatório, a taquicardia grave pode ser tratada com antagonistas dos receptores beta-adrenérgicos orais, como propranolol (0,2 a 1 mg/kg, a cada 8 h) ou atenolol (0,2 a 1 mg/kg, a cada 12 h). Entretanto, os melhores resultados são observados quando a terapia de α-bloqueio é instituída em primeiro lugar, visto que o bloqueio dos receptores β por si só pode levar a uma vasoconstrição mediada por receptores α sem oposição, exacerbando a hipertensão.14,21,39,68,95 A bradicardia reflexa de origem vagal, embora seja rara, pode ocorrer em cães com FEO, devido à hipertensão. O

manejo pré-operatório da hipertensão deve evitar a ocorrência de bradiarritmias. O bloqueio atrioventricular de terceiro grau em cães com FEO também foi relacionado a dano miocárdico e fibrose do nó atrioventricular, devido à exposição crônica às catecolaminas.99 Nessa situação, a avaliação da condição cardíaca constitui um importante determinante para a realização ou não de tratamento cirúrgico do FEO. A estimulação simpática crônica e a vasoconstrição observadas no FEO podem causar depleção do volume intravascular; o estado de hidratação deve ser avaliado e corrigido no pré-operatório.68,95 O controle dos fatores que estimulam a liberação de catecolaminas é importante no manejo anestésico de pacientes com FEO, incluindo medo, estresse, dor, hipotermia, calafrios, hipoxia e hipercarbia. Embora a maioria dos agentes anestésicos tenha sido usada com algum grau de sucesso, deve-se evitar a administração daqueles que exercem efeitos simpaticomiméticos ou vagolíticos, a fim de prevenir possíveis respostas adversas hemodinâmicas. Em geral, não se recomenda a administração de anticolinérgicos e cetamina. A morfina e o atracúrio também não constituem boas escolhas, visto que a liberação de histamina pode provocar a liberação de catecolaminas pelo tumor. Os tiobarbitúricos e o halotano devem ser evitados, em virtude de sua tendência a causar arritmias ventriculares, particularmente na presença de catecolaminas em excesso. A acepromazina pode complicar o tratamento para a hipotensão, particularmente quando paciente foi previamente tratado com fenoxibenzamina.14,21,34,95 Um protocolo anestésico adequado inclui medicação pré-anestésica com opioide que não promova a liberação de histamina, como oximorfona, hidromorfona, metadona ou fentanila, em associação com um benzodiazepínico e indução intravenosa com propofol, alfaxalona ou etomidato, a fim de facilitar a intubação endotraqueal.87,96,97 O isofluorano ou o sevofluorano são preferidos para manutenção da anestesia, em contraposição com o desfluorano, que pode causar estimulação simpática. Os agentes inalatórios devem ser suplementados com técnicas anestésicas balanceadas utilizando opioides potentes, como fentanila ou remifentanila.14,95,96 Múltiplos acessos intravenosos e eletrocardiografia contínua e monitoramento invasivo da pressão arterial durante a anestesia são úteis no FEO, a fim de identificar e tratar imediatamente as arritmias cardíacas e alterações abruptas da pressão arterial e controlar a perda sanguínea.19,68,95 Deve-se dispor de fármacos para o tratamento das complicações para administração imediata quando surgir uma emergência, particularmente durante a indução da anestesia ou a manipulação do tumor.91 O nitroprussiato de sódio, um vasodilatador direto, constitui o agente de escolha para o tratamento da hipertensão grave, em virtude de sua potência, rápido início e curta duração de ação. A fentolamina, um antagonista alfa-adrenérgico competitivo de ação curta e vasodilatador direto, quando administrada por via intravenosa, também constitui uma alternativa para o tratamento da

hipertensão durante a cirurgia.21,68,87,95,96 Durante a administração desses fármacos, a medição contínua da pressão arterial ajuda a encontrar a velocidade de infusão mais adequada para evitar a hipotensão. Em medicina humana, o sulfato de magnésio (MgSO4) também tem sido utilizado para o tratamento da hipertensão e das arritmias durante a anestesia. O MgSO4 inibe a liberação de catecolaminas pela medula adrenal e terminações nervosas periféricas, diminui a sensibilidade dos receptores alfa-adrenérgicos às catecolaminas, atua como vasodilatador direto e exerce efeitos antiarrítmicos.21,37 Embora essas medicações anti-hipertensivas tenham sido usadas com sucesso em pacientes com FEO, pode ainda ocorrer hipertensão durante a manipulação do tumor, de modo que se justifica o uso de uma técnica cirúrgica cuidadosa.21 As taquiarritmias são tratadas com lidocaína ou antagonistas β. O esmolol, que apresenta rápido início e curta duração de ação, controla prontamente a frequência cardíaca.14,21,37,68,95 A Tabela 31.3 fornece as doses dos fármacos para terapia antiarrítmica e suporte da pressão arterial. Tabela 31.3 Tratamentos para as complicações observadas durante a anestesia em pacientes com feocromocitoma.14,37,87,95 Problema

Fármaco

Dose

Comentários

Hipertensão

Nitroprussiato

0,1 a 10 µg/kg/min IV

Dilata as arteríolas e veias

Monitorar continuamente a PA, ajustar a velocidade, quando necessário; sensível à luz, cobrir a infusão Dose de ataque de 0,1 mg/kg Fentolamina

IV, com CRI de 1 a 2 µg/kg/min

Sulfato de magnésio

30 mg/kg durante 10 min

Bloqueio alfa-adrenérgico de ação curta

Também pode ajudar na arritmia ventricular

Dose de ataque de 2 mg/kg Taquiarritmia

Lidocaína

IV, com CRI de 50 a 75

Arritmia ventricular

µg/kg/min Dose de ataque de 0,1 a 0,5

Bloqueio β de ação curta; para

Esmolol

mg/kg IV, administrada

taquicardia sinusal ou

durante 1 a 2 min, com CRI de

supraventricular

50 a 70 µg/kg/min Vasoconstritores muito Hipotensão refratária

Fenilefrina

0,5 a 10 µg/kg/min IV

potentes – usar a menor dose efetiva; a FR pode diminuir

Norepinefrina

0,1 a 3 µg/kg/min IV

Vasopressina

0,5 a 2 mU/kg/min IV

PA, pressão arterial; CRI, infusão de velocidade constante; FR, frequência cardíaca. Para qualquer cirurgia envolvendo as glândulas adrenais, existe uma possibilidade significativa de perda sanguínea intraoperatória, particularmente no caso de tumores que acometem a glândula adrenal direita, em virtude de sua proximidade à veia cava caudal. Devem-se obter tipagem sanguínea e/ou prova cruzada antes da cirurgia, e deve-se dispor de concentrados de hemácias, plasma fresco congelado ou sangue total para reanimação volumétrica imediata, se necessário.14 Foi recomendada hipotermia induzida por resfriamento de superfície a uma temperatura de 32°C para pacientes com FEO que invade os grandes vasos,87,96 a fim de proteger os órgãos vitais do aporte reduzido de oxigênio durante a oclusão vascular temporária.100 A hipotensão intraoperatória e pós-operatória após excisão do tumor é comum. É multifatorial e surge em consequência de uma associação de diminuição imediata das concentrações de catecolaminas, vasodilatação devido ao bloqueio α residual causado pela fenoxibenzamina, comprometimento dos reflexos simpáticos e hipovolemia. O tratamento envolve a redução da concentração de anestésicos inalatórios, diminuição ou suspensão da fentolamina/nitroprusseto e expansão do volume com líquidos cristaloides ou coloides isotônicos; são necessários grandes volumes. Os agentes vasopressores (p. ex., fenilefrina, norepinefrina) e inotrópicos são usados no tratamento da hipotensão refratária, embora pacientes tratados com fenoxibenzamina possam ser menos responsivos à terapia vasopressora.14,19,21,68,95,101 O tratamento com um vasopressor não catecolamínico, como vasopressina, pode ser necessário para manter a pressão arterial adequada.101 Em caso de adrenalectomia bilateral, é necessária a terapia de reposição com glicocorticoides e mineralocorticoides. Além disso, a GS deve ser monitorada no pós-operatório, visto que pode ocorrer hipoglicemia quando as concentrações plasmáticas de catecolaminas diminuem subitamente. O ECG contínuo e a medida da pressão arterial devem ser mantidos

durante pelo menos 24 h no pós-operatório.21,95

■ Glândula tireoide A glândula tireoide tem dois lobos, um de cada lado da traqueia, que podem ser conectados por um istmo. Cada lobo é localizado distalmente à laringe, ventrolateralmente à traqueia e estende-se do quinto ao oitavo anel traqueal. A glândula tireoide é composta de numerosos folículos revestidos por células epiteliais, que produzam e secretam hormônio. Esses folículos atuam como área de armazenamento para os precursores dos hormônios tireoidianos. Intercalados entre os folículos, encontram-se agrupamentos de células parafoliculares ou C, que produzem calcitonina. As glândulas paratireoides também são encontradas em estreita proximidade à glândula tireoide.102,103 Hipotireoidismo O hipotireoidismo (HOT) ocorre principalmente no cão, no qual representa mais comumente uma doença imunomediada, causada pela infiltração linfocítica da glândula tireoide, com destruição final do tecido tireoidiano funcional.104 A atrofia idiopática da glândula tireoide, em que não se observa nenhum componente inflamatório, também foi descrita no cão como causa de HOT clínico.104 Como o hormônio tireoidiano é responsável pela manutenção do metabolismo basal, os sinais clínicos de HOT são causados por uma redução do metabolismo. Os sinais clínicos mais comuns do HOT, que são multissistêmicos e vagos, consistem em ganho de peso, queda dos cabelos, pele e pelagem secas e atividade diminuída.105,106 Muitos outros sinais clínicos, como pioderma, otite, convulsões, paralisia facial, paralisia da laringe e megaesôfago têm sido atribuídos ao HOT, porém a causa e o efeito não foram estabelecidos, e não há dados para sustentar o HOT como causa da maioria desses sinais. Nas formas graves de HOT, pode-se observar o desenvolvimento de mixedema. Ocorre mixedema quando quantidades anormalmente grandes de mucina acumulam-se na pele e em outros tecidos. O resultado consiste em pele edemaciada (sem cacifo, observada particularmente na cabeça). O coma mixedematoso é uma síndrome rara, caracterizada por mixedema, letargia grave, bradicardia, hipotensão, hipoventilação e hipotermia. Os cães de raças grandes podem ter mais tendência a desenvolver HOT. O Doberman Pinscher, o Dogue-alemão, o Setter Irlandês, o Setter Inglês e o Golden Retriever são frequentemente citados como raças predispostas. Não há predileção de gênero, e a doença é tipicamente diagnosticada em cães de meia-idade. As anormalidades hematológicas e bioquímicas mais comuns em cães com hipotireoidismo consistem em hipercolesterolemia, hipertrigliceridemia e anemia normocítica normocrômica leve.105-107 A confirmação do diagnóstico de HOT nem sempre é direta. Como qualquer doença concomitante e muitos fármacos estão associados a uma

diminuição das concentrações totais de tiroxina (T4), pode-se estabelecer um diagnóstico incorreto de HOT em cães se for baseado em triagem de rotina com T4 total. A determinação das concentrações séricas de T4 livre e tireotropina canina (cTSH) foi recomendada como estratégia mais acurada para o diagnóstico de HOT no cão, porém também existe uma considerável sobreposição dos resultados desses testes em cães com HOT em comparação com cães com doença não tireóidea.108-110 Os anticorpos circulantes contra a tireoglobulina podem constituir um marcador de tireoidite linfocítica.107 Anteriormente, o teste de estimulação com TSH era usado para o diagnóstico de HOT em cães, porém o custo e a falta de disponibilidade de TSH limitaram o uso desse teste. O tratamento do HOT é simples e envolve uma suplementação diária com L-tiroxina. Foi descrito o acompanhamento da determinação da T4 total cerca de 6 h após a administração do comprimido para monitorar o tratamento,105 porém pode fazer mais sentido monitorar o tratamento com base na resposta clínica e normalização das anormalidades hematológicas e bioquímicas. Manejo anestésico Os pacientes com HOT sem tratamento e inadequadamente tratados apresentam redução do metabolismo e podem recuperar-se mais lentamente da sedação ou da anestesia.19 Por conseguinte, justifica-se a estabilização do estado HOT com terapia de reposição hormonal antes de procedimentos eletivos.14 Deve-se obter um hemograma completo, devido à possível presença de anemia leve a moderada, embora na maioria dos casos a anemia não seja clinicamente significativa.111 O HOT grave (i. e., coma mixedematoso) é uma condição rara, e os pacientes acometidos não devem ser anestesiados, a não ser que exista uma situação de emergência que exija anestesia. Com frequência, observa-se a presença de bradicardia, hipotensão, hipoventilação, hipotermia e nível diminuído de consciência no coma mixedematoso, que podem complicar a anestesia.37,111 Em geral, os pacientes com HOT apresentam fraqueza muscular e, com frequência, uma constituição corporal fraca ou obesa, que compromete a ventilação e a oxigenação. Recomenda-se o posicionamento do paciente em decúbito esternal.112 O monitoramento contínuo da frequência e do ritmo cardíaco, da pressão arterial, da ventilação, da oxigenação e da temperatura é importante para o manejo anestésico desses pacientes. A bradicardia e a hipotensão devem ser tratadas com anticolinérgicos, fluidoterapia (cristaloides ou coloides sintéticos) e agentes inotrópicos positivos.14,37 Indica-se também o reaquecimento lento dos pacientes hipotérmicos, visto que isso também pode melhorar ou corrigir a bradicardia e a hipotensão. Os pacientes com coma mixedematoso podem necessitar de terapia de reposição hormonal intravenosa com L-tiroxina no pós-operatório.19,21 Nenhum anestésico específico ou fármaco adjuvante está contraindicado para cães com

HOT, e os estudos realizados demonstraram que as concentrações alveolares minimas (CAM) do halotano e do isofluorano em cães eutireóideos e hipotireóideos são clinicamente semelhantes.113,114 Entretanto, empiricamente, os cães com hipotireoidismo parecem apresentar uma necessidade reduzida de anestésicos. Essa impressão clínica pode ser em parte explicada não pelo estado da tireoide do paciente, mas pelo fato de que os cães com hipotireoidismo estão mais propensos à hipotermia. Muitos anestesistas frequentemente preferem o uso de fármacos de ação curta, que necessitam de metabolismo mínimo ou nenhum metabolismo, ou que são facilmente antagonizados. Em geral, os opioides e os benzodiazepínicos produzem sedação pré-anestésica adequada, particularmente no paciente idoso letárgico. Com frequência, o propofol e os agentes inalatórios são recomendados para indução e manutenção da anestesia, embora seja provável que a maioria dos agentes anestésicos tenha sido usada em pacientes com HOT sem qualquer aumento percebido no risco anestésico.14,19 Como o principal mecanismo envolvido na redução do débito cardíaco em pacientes com HOT consiste em diminuição da contratilidade miocárdica, deve-se evitar o uso de fármacos que diminuem diretamente a contratilidade, como o halotano.14,115 O isofluorano produz uma resposta cardiovascular semelhante (diminuição do débito cardíaco e da pressão arterial dependente da dose) em cães eutireóideos e hipotireóideos. Por conseguinte, o isofluorano é um anestésico apropriado para cães com hipotireoidismo, e, como em qualquer paciente, a depressão cardiovascular pode ser minimizada pelo uso de técnica anestésica balanceada.114 Hipertireoidismo O hipertireoidismo (HT) é um dos distúrbios mais comuns de gatos de meia-idade e idosos, que habitualmente é causado pela hipersecreção inadequadamente controlada de hormônio tireoidiano por nódulos da tireoide autonomamente hiperfuncionais.116 A causa desse distúrbio não é conhecida; entretanto, acredita-se que seja semelhante ao bócio nodular tóxico em pacientes humanos.117 Nos seres humanos com esse distúrbio, foram identificadas mutações ativadoras do receptor de TSH. Em raros casos, o HT pode ser causado por carcinoma da tireoide (1 a 2% dos gatos com tireotoxicose). O HT é incomum em cães e é observado em menos de 20% dos cães com carcinoma da tireoide.118 Diferentemente daquilo observado em gatos, os carcinomas de tireoide em cães são habitualmente grandes e invasivos. Os sinais clínicos do HT são causados pelo metabolismo geral patologicamente elevado, devido às concentrações excessivas e sustentadas de hormônio tireoidiano circulante.119 Em virtude da natureza da doença, os sinais clínicos são multissistêmicos. O hormônio tireoidiano em excesso provoca hipertensão, hipertrofia miocárdica, desnutrição celular crônica, estresse hepatocelular e diminuição do tempo de trânsito GI. A

tireotoxicose também está associada a um aumento na taxa de filtração glomerular, que pode mascarar uma doença renal coexistente subjacente.120 Os achados no histórico incluem perda de peso, polifagia, vômitos, diarreia, poliúria, polidipsia, hiperatividade e alterações comportamentais, que podem variar desde depressão até agressão. Os achados no exame físico consistem em estado corporal precário, taquicardia, sopro cardíaco, ritmo de galope, nódulos palpáveis da tireoide (unilaterais ou bilaterais) e pelagem desgrenhada (Figura 31.6).119 A anormalidade hematológica mais comum em gatos com HT consiste em eritrocitose leve (ou contagem de eritrócitos mais alta do que o normal esperado.119 A atividade aumentada da alanina aminotransferase constitui a anormalidade bioquímica sérica mais comum. Em virtude do catabolismo aumentado das proteínas, pode-se observar uma elevação leve ou relativa da concentração de ureia no sangue, sem aumento concomitante na concentração de creatinina. Tipicamente, aumentos tanto no nível de ureia quanto na creatinina indicam a presença de doença renal concomitante, o que complica o tratamento do HT.120 O exame de imagem do tórax (incluindo ecocardiografia) pode ser útil na avaliação da cardiomegalia ou insuficiência cardíaca congestiva associada ou, no caso de cães com HT, para investigar metástases pulmonares. A ultrassonografia do abdome pode ser realizada em gatos com hipertireoidismo para avaliar a arquitetura e o tamanho dos rins, embora provas renais adicionais possam definir melhor a função renal. O achado de uma concentração sérica elevada de tiroxina total (T4) confirma o diagnóstico na maioria dos casos,121 porém alguns gatos com HT apresentam concentrações normais de T4 total, devido à presença de doença não tireóidea concomitante ou devido a flutuações nas concentrações dos hormônios tireoidianos. Essa condição é designada como “HT oculto”122 e pode ser diagnosticada por vários métodos, incluindo determinação da T4 livre (que pode ser ligeiramente mais sensível do que a T4 total), determinação repetida da T4 total, cintigrafia da tireoide ou teste de supressão de T3.

Figura 31.6 A. Gato com HT, apresentando perda de peso e depressão. Esses sinais sugerem HT inadequadamente controlado, e a anestesia eletiva deve ser adiada. Fonte: Dr. Todd Green, Department of Small Animal Medicine and Surgery, St George’s University, St George’s, Grenada. Reproduzida, com autorização, de Todd Green. B. Palpação de nódulo da tireoide em um gato com HT. Fonte: Dr. Thomas Graves, College of Veterinary Medicine, Midwestern University, Glendale, AZ, USA. Reproduzida, com autorização, de Thomas Graves.

Existem três opções principais de tratamento para o HT felino. A terapia com iodo radioativo é considerada o tratamento de escolha, visto que não é invasiva, tem poucos efeitos colaterais e mostra-se efetiva na maioria dos casos.123 O tratamento clínico do HT felino com metimazol ou carbimazol é comum e também efetivo.124 Entretanto, os fármacos antitireoidianos frequentemente causam efeitos colaterais, como vômito, escoriação facial autoinduzida e anorexia. Os efeitos colaterais dos fármacos antitireoidianos que comportam risco à vida são incomuns e incluem trombocitopenia, agranulocitose e hepatopatia. A tireoidectomia cirúrgica é realizada menos comumente em gatos do que anteriormente, devido à maior disponibilidade de terapia com iodo radioativo, embora ainda seja usada em alguns casos.125 As complicações cirúrgicas consistem em hipoparatireoidismo iatrogênico, paralisia da laringe e HOT. Independente do tipo de tratamento, muitos gatos com HT desenvolvem insuficiência renal após o tratamento, e é importante que os gatos sejam cuidadosamente monitorados no período pós-tratamento.120 O tratamento do carcinoma de tireoide no cão depende do tamanho e do estágio do tumor.118 Os tumores pequenos e não invasivos podem ser tratados com cirurgia apenas; todavia, os tumores são, em sua maioria, volumosos, e podem não ser cirurgicamente ressecáveis. A radioterapia (com altas doses de iodo radioativo ou radiação de feixe externo) e a quimioterapia podem ser tentadas, porém o tratamento é raramente curativo. Muitos tumores da tireoide são altamente vasculares, e deve-se considerar a hemorragia no plano anestésico. A tempestade tireoidiana, descrita com síndrome de HT grave com manifestações exageradas e potencialmente fatais da doença, ocorre raramente em cães e gatos.126,127 O distúrbio não foi descrito em pacientes veterinários, porém consiste em taquicardia grave, febre, sinais GI e sinais do sistema nervoso central. Os fatores que precipitam a tempestade tireoidiana não estão bem elucidados, e o distúrbio é comumente diagnosticado em casos graves de HT de longa duração e previamente não diagnosticado. Os achados laboratoriais não são diferentes da apresentação típica do HT, com a exceção das concentrações extremamente altas de hormônio tireoidiano. O tratamento envolve o uso de fármacos antitireoidianos para diminuir a síntese de hormônio, o uso de iodo (iodeto de potássio oral,

hipodato oral ou iodeto de sódio intravenoso) para inibir a secreção dos hormônios tireoidianos, tratamento da hipertermia, fluidoterapia para corrigir a desidratação, manejo da insuficiência cardíaca, quando presente, bloqueio beta-adrenérgico para taquiarritmia e corticosteroides para inibir a conversão periférica de T4 no hormônio ativo T3. Manejo anestésico A tentativa de tornar o paciente com HT eutireóideo por ocasião do evento anestésico é dificultada para diminuir a probabilidade de taquicardia, hipertensão e aumento do trabalho miocárdico sob anestesia. Por conseguinte, deve-se obter um painel da tireoide no préoperatório de todos os pacientes com história conhecida de HT para confirmar um estado eutireóideo. Se os níveis de T4 total e T3 livre estiverem acima da faixa de referência, indica-se o tratamento com carbimazol ou metimazol por 6 a 12 semanas para minimizar as complicações anestésicas (p. ex., arritmias) e cirúrgicas.128 Nos casos de emergência, esses pacientes devem ser estabilizados antes da anestesia, conforme descrito na seção anterior. É necessário proceder a um exame completo do sistema cardiovascular em gatos com HT, visto que é comum a presença de miocardiopatia hipertrófica concomitante. No exame físico, pode-se detectar a ocorrência de ritmo de galope, arritmia (p. ex., taquicardia ventricular) ou sopro sistólico. A medida da pressão arterial e as provas de função renal devem ser realizadas no pré-operatório desses gatos.22 Muitos gatos com HT são tratados com fármacos anti-hipertensivos.22 São utilizados antagonistas dos receptores beta-adrenérgicos, como, por exemplo, atenolol, para fazer oposição à atividade adrenérgica aumentada observada na HT, que está associada a hipertensão e taquicardia.21,129 O anlodipino ou um inibidor da enzima conversora de angiotensina (ECA) também podem ser administrados pelos seus efeitos anti-hipertensivos a gatos com hipertireoidismo.129 Todos esses fármacos produzem vasodilatação significativa e podem contribuir para a hipotensão intraoperatória. As metas da anestesia em gatos com HT consistem em evitar aumentos no consumo de oxigênio do miocárdio, hipertensão, taquicardia e arritmias. O estresse também deve ser evitado antes da anestesia. A acepromazina ou os benzodiazepínicos associados a opioides também podem ser incluídos na medicação pré-anestésica.130 A acepromazina diminui a sensibilidade do miocárdio às catecolaminas e bloqueia os receptores alfa-adrenérgicos; por conseguinte, pode ajudar a diminuir a ocorrência de arritmias induzidas pelas catecolaminas e reduzir a hipertensão. Entretanto, seu uso deve ser evitado quando o paciente está recebendo medicação anti-hipertensiva ou apresenta miocardiopatia. Os opioides são desejáveis, visto que geralmente diminuem a frequência cardíaca e o consumo de oxigênio do miocárdio. Os anticolinérgicos não devem ser rotineiramente administrados de modo preventivo, visto que o bloqueio parassimpático pode levar a um aumento no

consumo de oxigênio do miocárdio e aumento da arritmogenicidade. Os anticolinérgicos (de preferência glicopirrolato) podem ser administrados com cautela na presença de bradicardia e hipotensão. A indução pode ser realizada com propofol, alfaxalona ou etomidato. Na ausência de cateter intravenoso, a indução pode ser realizada com anestésicos inalatórios (isofluorano ou sevofluorano) por câmara, dependendo do temperamento do gato. É importante ter em mente que o estresse associado a essa técnica, particularmente em um gato sem medicação pré-anestésica ou agressivo, pode ser prejudicial. Deve-se evitar o uso de cetamina, visto que esse fármaco estimula o débito simpático e pode causar elevação da frequência cardíaca e redução do enchimento ventricular.14,19,130 Para a manutenção anestésica, pode-se utilizar qualquer um dos agentes anestésicos inalatórios potentes. É de suma importância estabelecer e manter uma profundidade anestésica adequada para evitar respostas exageradas do sistema nervoso simpático.21 O aumento da taxa metabólica observado em pacientes com hipertireoidismo aumenta a demanda de oxigênio e de glicose, bem como a produção de dióxido de carbono. Por conseguinte, esses pacientes são mais propensos a hipoxemia e hipercarbia quando a ventilação está comprometida. Os parâmetros cardiovasculares (incluindo pressão arterial e ritmo cardíaco) e respiratórios devem ser rigorosamente monitorados, e deve-se controlar a ventilação, quando necessário.19 A miocardiopatia causada pelo HT em gatos é habitualmente concêntrica, o que diminui a complacência ventricular e o tamanho da câmara, resultando em disfunção diastólica. Em gatos com miocardiopatia, as metas do protocolo anestésico consistem em otimizar o enchimento ventricular pela prevenção de estresse, mantendo frequência cardíaca normal a baixa.131,132 Ao manter uma pré-carga satisfatória e um intervalo diastólico normal, obtém-se melhora do enchimento ventricular, fluxo sanguíneo miocárdico e função ventricular.19 À semelhança dos gatos com HT apenas, a sedação em gatos com miocardiopatia está indicada na maioria dos casos, e deve-se evitar o uso de fármacos que resultam em estimulação simpática (p. ex., cetamina, óxido nitroso, desfluorano). Embora a acepromazina diminua a sensibilidade do miocárdio às catecolaminas, a vasodilatação e a redução da resistência vascular sistêmica em gatos com disfunção diastólica podem resultar em hipotensão. Em gatos com HT que apresentam miocardiopatia obstrutiva hipertrófica, a acepromazina pode aumentar o gradiente através do trato de saída do ventrículo esquerdo, agravando a obstrução. Por conseguinte, deve-se evitar a administração de acepromazina. Os agonistas dos receptores alfa-adrenérgicos (medetomidina ou dexmedetomidina) podem ser usados como alternativas da medicação pré-anestésica em gatos estressados com obstrução dinâmica do trato de saída do ventrículo esquerdo, contanto que a função sistólica não esteja reduzida.132

Embora seja uma situação rara, os pacientes com HT sem tratamento ou inadequadamente tratados podem desenvolver tempestade tireotóxica no período pósoperatório. Esse distúrbio manifesta-se por aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, arritmias cardíacas, febre e choque.19 O monitoramento da frequência e do ritmo cardíacos, da pressão arterial e da temperatura corporal deve continuar durante toda a recuperação. Neoplasia de tireoide Nos cães, os tumores da tireoide são, em sua maior parte, não funcionais e não secretam hormônios tireoidianos em excesso. Em geral, esses tumores consistem em carcinomas, que podem invadir localmente os tecidos adjacentes – laringe, traqueia, músculos cervicais, nervos e esôfago. Com frequência, ocorrem também metástases pulmonares.111 Em geral, os cães com tumores da tireoide apresentam uma grande lesão expansiva na região ventral do pescoço (Figura 31.7). Os sinais clínicos estão associados ao tamanho do tumor e ao dano secundário dos tecidos cervicais. Os sinais clínicos comuns consistem em comprometimento/obstrução das vias respiratórias, dispneia, tosse, vômitos, disfagia, anorexia e perda de peso.19,111 O diagnóstico baseia-se na biopsia da massa e nas concentrações séricas dos hormônios tireoidianos. Além disso, podem ser obtidas radiografias do tórax para identificar as metástases pulmonares.111 A TC ou a RM do pescoço podem ser úteis para demonstrar anormalidades anatômicas do tecido neoplásico e adjacente.19 O principal tratamento para o carcinoma de tireoide em cães consiste na excisão do tumor se houver nenhuma metástase pulmonar. A radioterapia pode ser efetiva no controle dos tumores que não podem ser excisados por completo.111 Manejo anestésico A manutenção de uma via respiratória desobstruída pode representar o maior desafio no manejo anestésico de cães com grandes tumores da tireoide. Qualquer obstrução de via respiratória no paciente desperto será exacerbada com sedação e anestesia até que um tubo endotraqueal seja introduzido com sucesso através da obstrução. A obstrução pode ser causada por compressão mecânica ou lesão de nervo, devido à invasão dos tecidos adjacentes pelo tumor. O edema e a hemorragia também podem comprometer a respiração durante a recuperação.19 Qualquer histórico de intolerância deve ser investigado ao exercício ou angústia respiratória. Deve-se realizar um exame físico completo do pescoço, com observação rigorosa do esforço respiratório. Os sedativos potentes, como agonistas dos receptores alfa-adrenérgicos, apesar de serem extremamente úteis para acalmar cães excitáveis, também podem provocar intenso relaxamento da musculatura cervical e podem

exacerbar qualquer obstrução de via respiratória. Se o paciente deve beneficiar-se dos efeitos tranquilizantes dos agonistas dos receptores alfa-adrenérgicos, o anestesista não deve deixá-lo sem assistência após a administração do fármaco, e os fármacos de indução e o equipamento de intubação devem estar prontamente disponíveis caso ocorra obstrução das vias respiratórias. Recomenda-se também a pré-oxigenação quando o paciente a tolerar. A indução da anestesia deve ser obtida rapidamente sem excitação. Por esse motivo, uma técnica anestésica intravenosa (p. ex., propofol) constitui-se em um método preferido, em lugar de indução com anestésicos inalatórios por máscara. Uma história pré-operatória de dispneia e/ou intolerância aos exercícios é preditiva de possível obstrução das vias respiratórias durante a indução da anestesia, e a intubação endotraqueal pode ser difícil. Dispositivos de traqueostomia devem estar disponíveis caso não seja possível a intubação orotraqueal. Como alternativa, pode-se realizar a intubação orotraqueal com auxílio com um broncoscópio de fibra óptica, que também pode ser usado para avaliar o grau de obstrução traqueal. Se a massa da tireoide for volumosa, um tubo endotraqueal reforçado pode ajudar a prevenir a obstrução do tubo. No intraoperatório, quando indicado, devem-se administrar analgésicos, como opioides (p. ex., fentanila, hidromorfona, metadona) e AINEs. Em caso de obstrução das vias respiratórias, tanto os opioides quanto os agonistas dos receptores alfa-adrenérgicos podem ser prontamente revertidos. Entretanto, é preciso ter cautela quando se administram AINEs de modo preventivo. Como a tireoidectomia pode causar hemorragia grave, alguns AINEs podem reduzir a função plaquetária, resultando em comprometimento da hemostasia. Além disso, o comprometimento da autorregulação renal pelos AINEs pode resultar em lesão renal pós-operatória se a hipovolemia for grave.

Figura 31.7 A. Embora as massas volumosas da tireoide sejam mais comuns em cães, os gatos algumas vezes podem ser diagnosticados com essa doença. Grandes massas expansivas podem estar associadas a angústia respiratória antes da anestesia e podem representar um desafio para intubação endotraqueal. Fonte: Dr. Robert Sherding, Department of Veterinary Clinical Sciences, The Ohio State University, Columbus, OH, USA. Reproduzida, com autorização, de Robert Sherding. B. Grande massa na face ventral do pescoço, comprimindo a traqueia. Pode ocorrer obstrução da via respiratória durante a recuperação, devido ao edema e à hemorragia. Fonte: Dr. Stephen Birchard, Circle Veterinary Speciliaty and Emergency Hospital, Carmel, IN, USA. Reproduzida, com autorização, de Stephen Birchard. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

As complicações pós-operatórias da tireoidectomia incluem hemorragia local e edema com compressão da traqueia, lesão unilateral ou bilateral do nervo laríngeo recorrente e lesão ou remoção inadvertidas das glândulas paratireoides.21,111 A extubação traqueal deve ser realizada com a antecipação de complicações e suprimentos para reintubação imediata.21 Se possível, a extubação deve ser adiada até que o paciente esteja consciente e alerta. Um anestésico intravenoso, um laringoscópio e tubos endotraqueais ou dispositivos de traqueostomia devem estar disponíveis em caso de obstrução das vias respiratórias, devido à formação de hematoma na parte ventral do pescoço ou paralisia laríngea. Caso ocorra obstrução da via respiratória, o paciente deve ser novamente anestesiado, deve-se estabelecer uma via respiratória pérvia, e deve-se iniciar a oxigenação e a ventilação. A causa da obstrução deverá ser investigada. Por exemplo, a ferida cirúrgica deve ser examinada, e o paciente pode retornar ao centro cirúrgico se um hematoma for palpado, e os vasos hemorrágicos devem ser fixados para aliviar a obstrução da via respiratória. Recomenda-se também a determinação do cálcio ionizado no pós-operatório após tireoidectomia bilateral para identificar qualquer lesão ou perda da função das paratireoides. A observação à procura de sinais clínicos de hipocalcemia, como rigidez ou tetania, deve continuar durante pelo menos 48 h no pós-operatório. Por fim, sempre que for colocado um curativo no pescoço após cirurgia, deve ser examinado e monitorado rigorosamente para qualquer efeito sobre a ventilação.

■ Glândulas paratireoides Os cães e os gatos têm quatro glândulas paratireoides, duas incorporadas ao polo cranial de cada lobo da glândula tireoide e duas externas à glândula. A estrutura das glândulas paratireoides difere acentuadamente daquela da glândula tireoide, com células densamente agrupadas em torno dos vasos capilares.102 O paratormônio (PTH) é produzido e secretado

pelas glândulas paratireoides em resposta às concentrações de cálcio. O PTH é muito efetivo no aumento dos níveis séricos de cálcio por meio de três mecanismos principais: o PTH (1) estimula a atividade dos osteoclastos para a reabsorção óssea, (2) estimula a absorção de cálcio do trato gastrintestinal (GI) por meio da forma ativada da vitamina D (produzida nos rins) e (3) desestimula a excreção de cálcio na urina.133 Quando são produzidas quantidades excessivas de PTH, ocorre calcificação dos tecidos moles, com consequente disfunção das estruturas ou órgãos afetados. Hiperparatireoidismo O hiperparatireoidismo primário (HPTP) é um distúrbio incomum de cães de meia-idade e idosos, porém é muito raro em gatos.134-136 Na maioria dos casos, o HPTP é causado por um adenoma benigno singular de uma glândula paratireoide extracapsular. Esses adenomas são pequenos e habitualmente não são palpáveis no cão, mas podem ser palpáveis no gato. Os adenocarcinomas de paratireoide são muito raros. A discussão que se segue concentrase no HPTP no cão. Os adenomas das paratireoides secretam paratormônio (PTH) de modo autônomo, causando hipercalcemia. Em muitos casos de HPTP, o diagnóstico é estabelecido após a investigação de achado acidental de hipercalcemia, visto que a maioria dos cães com HPTP não apresenta sinais clínicos. Entre os cães que exibem sinais clínicos de hipercalcemia, a PU/PD e os sinais de inflamação do trato urinário inferior são mais comuns.136 Tipicamente esses sinais são discretos e resultam diretamente da hipercalcemia. O diagnóstico de HPTP requer a demonstração de hipercalcemia ionizada, concentração sérica de fósforo baixa ou normal baixa e concentração inapropriadamente alta de PTH. Convém assinalar que uma concentração normal de PTH na presença de hipercalcemia é inapropriada e indica HPTP.137 A investigação diagnóstica do HPTP também pode incluir ultrassonografia da área cervical ventral para identificar um adenoma de paratireoide. Cálculos contendo cálcio e infecções associadas do trato urinário são bastante comuns em cães com HPTP, de modo que a ultrassonografia do sistema urinário, o exame de urina e a cultura bacteriana da urina também constituem componentes importantes da investigação diagnóstica.136 Uma vez diagnosticado, o HPTP é mais frequentemente tratado por meio de paratireoidectomia cirúrgica, que é curativa. Foram descritas outras formas menos invasivas de tratamento, incluindo ablação percutânea guiada por ultrassom utilizando calor ou etanol.138 A determinação intraoperatória do PTH, cuja meia-vida sérica é de aproximadamente 2 min, tem sido usada para indicar cura cirúrgica.139 A complicação mais comum do tratamento consiste em hipocalcemia pós-operatória, que se desenvolve com a retirada do tecido secretor de PTH, visto que as glândulas não adenomatosas remanescentes sofrem atrofia em consequência da hipercalcemia crônica. Não existe nenhuma previsão

conhecida da hipocalcemia pós-operatória, de modo que as concentrações de cálcio ionizado devem ser cuidadosamente monitoradas no período pós-operatório.140 Os sinais clínicos de hipocalcemia consistem em anorexia, prurido facial, sinais GI e sinais neurológicos. O tratamento pós-operatório da hipocalcemia requer a administração de calcitriol e suplementação de cálcio. Nesses casos, ocorre retorno da função normal das paratireoides, porém a duração necessária do tratamento é imprevisível. Manejo anestésico A base da preparação pré-anestésica de cães com HPTP consiste na avaliação das concentrações séricas de cálcio e tratamento dos pacientes sintomáticos. A anestesia deve ser adiada nos pacientes quando o nível de cálcio total (tCa) é superior a 15 a 16 mg/dℓ (3,75 a 4 mmol/ℓ), visto que a maioria dos cães apresenta sinais clínicos quando o tCa ultrapassa essa concentração.19 A administração intravenosa de cloreto de sódio a 0,9% (100 a 125 mℓ/kg/dia) constitui a terapia básica para diminuir o tCa em cães sintomáticos com HPTP.141,142 Os cães com HPTP também podem apresentar depleção de volume, devido aos vômitos e à poliúria; esses pacientes devem dispor de água até que a medicação pré-anestésica seja administrada e se faça a reposição dos déficits hídricos existentes. Uma vez obtida a normovolemia do paciente, podem-se administrar furosemida, esteroides, calcitonina e/ou bifosfonato para diminuir ainda mais a concentração de cálcio, se necessário (Tabela 31.4).21,141,143 Nos casos em que ocorre hipercalcemia potencialmente fatal [tCa > 18 a 20 mg/dℓ (4,5 a 5,0 mmol/dℓ)], o bicarbonato de sódio, administrado por via intravenosa na forma de bolus lento, irá diminui o cálcio ionizado ao promover a ligação do cálcio à albumina.141 Embora estudos recentes não tenham conseguido prever se a presença de níveis séricos elevados de cálcio ionizado no pré-operatório está associada a hipocalcemia pós-operatória, alguns autores recomendam o tratamento pré-operatório de cães por via oral com metabólitos ativos da vitamina D, com base no pressuposto de que uma hipercalcemia préoperatória de maior magnitude [cálcio total > 14 a 15 mg/dℓ (3,5 a 3,75 mmol/dℓ)] resulta em atrofia mais grave das glândulas paratireoides remanescentes.141 O calcitriol prepara o intestino para uma absorção aumentada de cálcio141 e pode ser iniciado 4 a 5 dias antes da paratireoidectomia.34 O monitoramento cuidadoso do cálcio sérico e dos sinais clínicos deve ser mantido durante esse período antes da cirurgia, e a terapia com calcitriol deve ser suspensa se houver agravamento da hipercalcemia. A hipercalcemia crônica pode causar doença renal crônica (DRC) em alguns cães;21,144 entretanto, o diagnóstico definitivo de DRC pode representar um desafio, com base na baixa densidade específica da urina (DEU) e azotemia, devido aos efeitos diuréticos da hipercalcemia. A presença ou suspeita de DRC é outro motivo para manter um estado de

hidratação adequado antes da anestesia.34 Não existem agentes anestésicos ou técnicas especificamente indicados para cães com hiperparatireoidismo primário submetidos a tratamento cirúrgico eletivo. A manutenção da hidratação e do débito urinário deve continuar durante a anestesia, de preferência com uma solução cristaloide isotônica sem cálcio (p. ex., NaCl a 0,9%, Plasmalyte 148 ou Normosol R) em pacientes com nível elevado de cálcio ionizado. A presença de letargia no préoperatório pode indicar que as necessidades anestésicas intraoperatórias do paciente podem estar diminuídas. Pode-se esperar que a hipercalcemia antagonize os efeitos dos relaxantes musculares não despolarizantes;21 entretanto, esses agentes raramente são administrados a pacientes submetidos a paratireoidectomia. O ECGT deve ser monitorado rigorosamente quanto a bradicardia, prolongamento do intervalo PR, complexo QRS alargado e encurtamento do intervalo QT, embora essas anormalidades provavelmente sejam apenas observadas em animais gravemente acometidos.141,143 A análise periódica dos gases sanguíneos é justificada para monitorar os eletrólitos e o estado acidobásico, particularmente quando se administra bicarbonato de sódio para controlar a hipercalcemia. Tabela 31.4 Tratamento para a hipercalcemia em cães com hiperparatireoidismo.141,143 Tratamento

Dose

Comentários A expansão do volume dilui o Ca2+ sérico; Na+

Soro fisiológico a 0,9%

90 a 120 mℓ/kg a cada 24 h IV

extra nos túbulos renais ↓ reabsorção de Ca2+ ↑ perda de Ca2+ na urina

Furosemidaa

2 a 4 mg/kg a cada 8 a 12 h IV ↓ reabsorção no osso

Prednisona

1 a 2 mg/kg a cada 12 h VO

↓ absorção intestinal

Dexametasona

0,1 a 0,2 mg/kg a cada 12 h IV

↑ excreção na urina

Calcitonina

4 a 6 UI/kg a cada 8 a 12 h SC

↓ atividade dos osteoclastos Inibe a reabsorção óssea mediada pelos

Pamidronato

1,3 a 2 mg/kg em 150 mℓ de NaCl a 0,9% IV

osteoclastos

durante 2 a 4 h ↑ captação de Ca2 pelo osso

Bicarbonato de sódio

1 mEq/kg IV lentamente até 4 mEq/kg

↑ ligação do Ca2+ à albumina Apenas em situações de emergência

↑, aumento; ↓, diminuição. a

Nem todos os diuréticos são úteis, por exemplo, evitar o uso de tiazídicos: eles causam acidose, o que aumenta o Ca2+

ionizado. Após paratireoidectomia, existe o risco de hipoparatireoidismo agudo, devido à atrofia das glândulas paratireoides remanescentes. Esses cães necessitam de monitoramento frequente à procura de hipocalcemia nas primeiras 48 h do pós-operatório.19,141 Um cateter intravenoso central é útil para a obtenção frequente de amostras de sangue e pode ser colocado durante a recuperação. A hipocalcemia na ausência de sinais clínicos habitualmente não necessita de tratamento, a não ser que o nível sérico de cálcio total seja < 6 mg/dl (< 1,5 mmol/ℓ).141 A intervenção também é necessária quando as concentrações de cálcio total ou ionizado tendem a diminuir subitamente.34 Esses cães devem ser monitorados quanto à ocorrência de excitação ou ansiedade, tremores musculares e tetania. Se for constatado o aparecimento de sinais clínicos, deve-se administrar cálcio intravenoso lentamente para seu efeito por meio de um acesso intravenoso separado. Administra-se uma dose de ataque de solução de gliconato de cálcio a 10% (9,3 mg de cálcio/mℓ), 0,5 a 1,5 mℓ/kg (50 a 150 mg/kg) IV, durante 10 min, seguida de infusão de 5 a 15 mg/kg/h (0,05 a 0,15 mℓ/kg/h). A frequência cardíaca deve ser rigorosamente monitorada durante a infusão de cálcio. Se a frequência cardíaca diminuir acentuadamente, ou se houver desenvolvimento de bradicardia absoluta, a infusão deve ser interrompida e, em seguida, reiniciada em velocidade mais lenta depois de alguns minutos. O encurtamento progressivo do intervalo QT no ECG também deve indicar a necessidade de uma velocidade mais lenta de infusão de cálcio. A terapia com calcitriol oral e os suplementos de cálcio também são continuados ou iniciados no pós-operatório.34 A hemorragia e o comprometimento das vias respiratórias sempre constituem um problema quando a cirurgia é realizada em torno da laringe/traqueia, mas pode ser menos comum com esse procedimento, visto que os tumores das paratireoides habitualmente não são muito volumosos. Se for colocado um curativo, deve ser examinado e monitorado rigorosamente quanto aos efeitos sobre a ventilação.

Anatomia do trato gastrintestinal O trato GI de pequenos animais é um tubo contínuo formado por várias camadas, com variação no seu tamanho, formato e função para cada órgão. Inclui a orofaringe, o esôfago,

o estômago, o intestino delgado, o cólon e o reto. O fígado, o trato biliar e o pâncreas exócrino também fazem parte do trato GI; entretanto, em virtude do importante papel desempenhado pelo fígado na homeostasia (p. ex., metabolismo, excreção, síntese de fatores da coagulação e produção de albumina), a função e a doença hepáticas são discutidas em um capítulo separado (ver Capítulo 30). A parede intestinal tem quatro camadas principais (de dentro para fora): a mucosa, a submucosa, a muscular com duas camadas de músculo liso (uma camada circular interna e uma camada longitudinal externa) e a serosa. As camadas musculares do esôfago constituem uma exceção a essa estrutura básica. Todo o esôfago do cão apresenta músculo estriado, ao passo que o gato, o cavalo, o porco e os primatas apresentam músculo estriado nos dois terços proximais e músculo liso na porção distal, incluindo a junção esofagogástrica. A composição do epitélio especializado da camada mucosa varia em cada órgão, porém todos os órgãos desempenham funções digestivas, secretoras e absortivas, além de fornecer proteção imune e vigilância. A contração das camadas musculares mistura e transporta a ingesta em todo o trato GI. A camada serosa externa é uma membrana delgada, constituída por células secretoras que produzem e secretam líquido seroso. Esse líquido lubrifica a superfície, facilitando a motilidade ao diminuir o atrito devido ao contato com ele mesmo e com outros órgãos abdominais.145,146 O sistema nervoso entérico (SNE) tem componentes extrínsecos e intrínsecos, ambos supridos por impulsos parassimpáticos (PS) e simpáticos do sistema nervoso autônomo. O componente intrínseco (PSM) inclui os plexos mioentérico e submucoso. O plexo mioentérico, que está localizado entre as camadas musculares circular e longitudinal, controla a motilidade intestinal. O plexo submucoso, encontrado entre a submucosa e a camada muscular circular interna, coordena o movimento do epitélio luminal. Outros plexos menores também são encontrados nas camadas musculares e submucosa. O SNE extrínseco consiste na inervação parassimpática para o trato GI superior e inferior por meio do vago e dos nervos pélvicos, respectivamente, e na inervação simpática por meio dos segmentos espinais T1-L3. Ambas as fibras nervosas aferentes e eferentes estão contidas nos mesmos nervos. Os neurônios PS pré-ganglionares têm fibras longas, que fazem sinapse com os gânglios dos plexos mioentérico ou submucoso no trato GI. Enquanto as fibras do PSM pré-ganglionares fazem sinapse com gânglios imediatamente fora do trato GI, os neurônios do PSM pós-ganglionares seguem o seu percurso no próprio trato GI e fazem sinapse com os plexos intrínsecos e diretamente em receptores do intestino. A acetilcolina (ACh) é o neurotransmissor liberado por todas as fibras préganglionares. Os neurônios PS pós-ganglionares podem utilizar a ACh ou vários peptídios, como a substância P (SP), o peptídio intestinal vasoativo (VIP), o neuropeptídio Y (NPY) ou o peptídio de liberação da gastrina (GRP). Os neurônios do PSM pós-ganglionares

liberam norepinefrina. Além dos receptores colinérgicos, adrenérgicos e peptidérgicos, muitos outros tipos de receptores são encontrados no trato GI, que modificam a atividade secretora, endócrina e muscular. Os receptores de opioides µ e δ, vários tipos de serotonina e histamina são apenas alguns deles.145-147 A motilidade intestinal depende de dois padrões principais de atividade muscular: os complexos motores migratórios (CMM) observados em jejum e um padrão digestivo, que começa quando o alimento entra no estômago. Os CMMs são observados em cães e seres humanos, porém a motilidade em gatos é controlada por um padrão de complexos migratórios em ponta, que é ligeiramente mais fraco do que o CMM. As células intersticiais de Cajal, que estão localizadas no plexo mioentérico, são células marca-passo especializadas, que criam e mantêm os CMMs. Estas são as denominadas “ondas lentas” de despolarização que se propagam através das junções comunicantes entre as células musculares lisas ao longo de grandes segmentos do intestino, mas que permanecem abaixo do limiar de despolarização para contrações propulsivas. Essa atividade fornece uma função de manutenção muito efetiva para o intestino, movendo o líquido residual, o muco, as bactérias e os restos celulares aboralmente durante o período interdigestivo. Com a chegada do bolo alimentar, a atividade elétrica aumenta, e o padrão digestivo começa. Os esfíncteres e os segmentos do intestino no trajeto do bolo alimentar relaxam para possibilitar a sua entrada, enquanto outros segmentos sofrem contração de maneira segmentar e propulsiva. A ingesta é misturada e movimentada ao longo do trato GI utilizando os músculos circulares e longitudinais, respectivamente. Ocorre também inibição por retroalimentação ao longo do trato para “brecar” o intestino, proporcionando um contato mais prolongado e mais completo para digestão. Os padrões tanto digestivo quanto interdigestivo são controlados pelo sistema nervoso parassimpático, sendo a ACh e a SP responsáveis pela contração, enquanto o VIP e o óxido nítrico produzem relaxamento. O impulso simpático é principalmente inibitório e é observado durante períodos de estresse, excitação, ansiedade, medo ou dor. Numerosos neurotransmissores e hormônios estão envolvidos na iniciação e no processamento da fase digestiva, afetando a motilidade, a secreção, a digestão, a absorção e o fluxo sanguíneo.145,147-149

Efeitos dos agentes anestésicos sobre a função gastrintestinal Nos pacientes saudáveis, os efeitos da maioria dos agentes anestésicos sobre o trato GI são habitualmente de curta duração, visto que a função normal retorna com o declínio dos níveis dos fármacos. Alguns agentes adjuvantes podem ter ações ligeiramente mais longas, e a decisão quanto a seu uso deve ser tomada com uma compreensão do problema GI

primário, da presença de doença preexistente ou concomitante ou disfunção orgânica e dos efeitos da cirurgia, visto que esses fatores podem obscurecer e/ou complicar os efeitos dos agentes anestésicos. Os efeitos prolongados no período pós-operatório têm o potencial de afetar os resultados, particularmente em pacientes ruminantes e equinos, nos quais a distensão e a cólica constituem riscos significativos após anestesia e cirurgia. As anormalidades fisiológicas observadas durante a anestesia podem produzir sinais de disfunção GI e podem ser confundidas com os efeitos diretos dos fármacos anestésicos. Essas anormalidades consistem em desidratação, hipovolemia, hipotensão, anemia, anormalidades das proteínas e eletrólitos, distúrbios do equilíbrio acidobásico, hipoxia, disfunção miocárdica, hipotermia e alterações no tônus do sistema nervoso autônomo. Os pacientes com vômitos podem apresentar alcalose, em virtude da perda de H+ e Cl–, porém finalmente desenvolvem acidose, com perda significativa de volume e/ou isquemia tecidual. À semelhança de todos os pacientes, a avaliação pré-anestésica e o tratamento de quaisquer anormalidades no estado do paciente são necessários para minimizar os efeitos da anestesia e maximizar o potencial de um resultado positivo. Os efeitos da cirurgia que podem afetar significativamente a função GI peroperatória (e, algumas vezes, o manejo anestésico) incluem manipulação/manuseio de massas intestinais e/ou abdominais, hemorragia e correção do problema GI subjacente (p. ex., reperfusão do estômago após desrotação cirúrgica de dilatação e vólvulo gástricos). O cirurgião deve trabalhar em conjunto com um anestesista para minimizar os efeitos tanto da cirurgia quanto da anestesia sobre a função GI peroperatória. Os efeitos dos agentes anestésicos sobre o trato GI incluem alterações na produção de saliva, náuseas, vômitos, íleo, regurgitação, refluxo gastresofágico (RGE), constipação intestinal, secreção reduzida de líquidos digestivos e aerofagia (associada à respiração ofegante). Embora se observe uma considerável sobreposição dos efeitos da maioria dos fármacos (p. ex., os opioides, os agonistas dos receptores α2-adrenérgicos, os anticolinérgicos e os inalatórios reduzem a motilidade), alguns efeitos tendem a ser mais específicos (p. ex., os anticolinérgicos reduzem o volume de saliva, porém aumentam a viscosidade). O íleo pode resultar em tímpano, particularmente se a produção microbiana de gás continuar em uma elevada taxa, conforme observado em pacientes ruminantes e equinos. Nos pequenos animais, alguns sugerem que isso poderia ser um fator contribuinte para a rara ocorrência da dilatação gástrica ou dilatação e vólvulo gástricos (DVG) observadas em cães no pós-operatório. A doença concomitante ou crônica pode complicar o quadro clínico. Por exemplo, diabéticos podem apresentar gastroparesia e esvaziamento gástrico tardio em consequência de neuropatia autônoma150 e podem ter mais tendência a desenvolver refluxo, esofagite e/ou vômitos no pós-operatório. O estresse da doença e da hospitalização também

predispõe os pacientes à disfunção GI, particularmente ulceração gástrica e diarreia. Se os agentes anestésicos forem a causa primária de disfunção GI em pacientes, muitos desses sinais (p. ex., íleo, náuseas, vômitos) devem desaparecer de modo relativamente rápido após cessação da administração dos fármacos. Se persistirem ou se forem graves, justificase uma avaliação adicional do paciente para assegurar que não exista outra causa (p. ex., corpo estranho GI, DVG ou ulceração GI). As complicações perianestésicas mais significativas associadas à disfunção GI incluem aspiração pulmonar e/ou esofagite após vômitos, regurgitação ou RGE e íleo pósoperatório (IPO). A aspiração pode causar pneumonite, pneumonia e hipoxemia grave, podendo resultar em parada cardíaca. A esofagite, apesar de ser comum após anestesia, pode resultar, quando grave ou não tratada, em estenose do lúmen esofágico, podendo culminar em vômitos persistentes, regurgitação, disfagia, perda de peso e debilitação. O IPO afeta acentuadamente o conforto do paciente após a cirurgia e também pode afetar o resultado. O IPO está associado a maior incidência de náuseas e vômitos, cicatrização deficiente da ferida, ingestão oral e mobilidade tardias, aumento no risco de complicações respiratórias e de outros sistemas e maior permanência no hospital, com maiores custos.151,152

■ Náuseas e vômitos A náuseas e os vômitos constituem efeitos adversos comuns dos agentes anestésicos, particularmente em pacientes humanos. Os mecanismos subjacentes do vômito são complexos, visto que vários mecanismos eméticos resultam em vômito. Uma via humoral é estimulada por substâncias transportadas pelo sangue que afetam a zona de gatilho quimiorreceptora (ZGQ), enquanto uma via neural ativa o centro do vômito (CV). Ocorre vômito quando o CV é diretamente estimulado por um ou mais de vários neurotransmissores. A histamina, a acetilcolina, a dopamina, a serotonina (5 HT e 5 HT3) e a neurocinina-1 (NK-1 ou substância P) são neurotransmissores importantes no CV. Os receptores de dopamina, serotonina e α2-adrenérgicos são encontrados na ZGQ. Localizada fora da barreira hematencefálica (BHE), a ZGQ é sensível a baixos níveis de agentes eméticos na circulação. O impulso do córtex cerebral (ansiedade, antecipação), o aparelho vestibular (cinetose) e a lesão local do trato GI também estimulam diretamente o CV. A irritação e o dano da mucosa ou a distensão dos tecidos GI resultam em vômitos por meio da liberação de serotonina e/ou estimulação dos receptores aferentes vagais.148,153-156 Embora muitos opioides estejam associados a uma alta incidência de vômito (p. ex., morfina e hidromorfona), foi também relatada uma ação antiemética. Acredita-se que esse efeito ocorra quando números aumentados de receptores de opioides são estimulados no CV, assim como opioides muito lipofílicos (fentanila e congêneres) ou quando

administrados por via intravenosa, particularmente em doses mais altas (butorfanol). Este também pode ser o motivo pelo qual o vômito é observado principalmente após a primeira dose de opioides, enquanto a sua ocorrência torna-se rara com doses subsequentes.157,158 A incidência de vômito associado a agentes anestésicos é variável e depende de espécie, fármacos usados, dose, momento e via de administração, presença ou ausência de for e problemas clínicos concomitantes. A aerofagia e a deglutição repetida de sangue e de saliva (particularmente após procedimentos odontológicos) também podem aumentar significativamente o risco de vômito durante a recuperação. Embora os cães e os gatos ocasionalmente possam apresentar vômitos durante a recuperação, a maioria dos casos ocorre com medicação pré-anestésica nessas espécies. Por ser um processo ativo, o vômito habitualmente não ocorre durante a manutenção da anestesia cirúrgica, porém pode ser observado durante planos superficiais ou durante a intubação, visto que o reflexo do vômito em cães e gatos só é abolido no Estágio III/Plano 2.159 Os anestésicos inalatórios constituem uma causa significativa de náuseas e vômitos pós-operatórios (NVPO) em seres humanos,160 porém a incidência parece ser muito menor em espécies veterinárias. Em certas ocasiões, observa-se a ocorrência de vômito na indução com propofol161 e etomidato,162 quando usados isoladamente em cães e na recuperação após infusão contínua de propofol.163 Um estudo clínico que comparou a incidência de efeitos adversos em cães mantidos com propofol versus isofluorano após indução com propofol relatou uma incidência muito baixa de vômitos ou ânsia de vômito, com 4/91 no grupo do isofluorano e 1/58 no grupo do propofol. Entretanto, foi observada uma incidência surpreendentemente alta de hipersalivação nesses cães durante a recuperação, em pouco mais de 20% de ambos os grupos. Não foram observados outros sinais sugestivos de náuseas, e não parecia que os cães estivessem com dor. Os autores não identificaram uma causa para a salivação.164 Outro estudo relatou a ocorrência de salivação em 7/40 (17,5%) e de vômito durante a recuperação em 6/40 (15%) quando o propofol foi usado para indução após quatro protocolos de medicação pré-anestésica diferentes. A maior parte (12/13) consistiu em cães que não receberam acepromazina. O único cão ao qual foi administrada acepromazina apresentou vômitos e tinha sido anestesiado para gastroscopia.165 Não foram usados anticolinérgicos nesses estudos. Os agonistas dos receptores α2-adrenérgicos e os agonistas dos receptores opioides µ provocam vômitos em cães e gatos.157,166-171 A incidência de vômitos parece ser clinicamente mais comum com doses mais altas e, em geral, é maior em gatos do que em cães. Não foi relatada a ocorrência de vômitos com infusões contínuas de doses muito baixas de dexmedetomidina ou de medetomidina em cães e gatos saudáveis.172-174 Existe uma diferença mínima na incidência de vômitos entre os diversos agonistas dos receptores α2-adrenérgicos em cães e gatos; entretanto, observa-se uma diferença significativa com

opioides distintos. A morfina, a meperidina e a hidromorfona (particularmente em gatos) e, em menor grau, a oximorfona estão associadas a um risco maior de vômitos. O vômito é muito menos frequente com a fentanila e seus derivados, enquanto é raro com a metadona, o butorfanol e a buprenorfina.157 O vômito também é menos frequente com a administração de doses mais baixas e quando os pacientes estão em jejum antes de sua administração. A acepromazina (ACP) exerce efeito antiemético leve por meio de antagonismo da dopamina na zona de gatilho quimiorreceptora. Seus efeitos anti-histamínicos também podem contribuir quando se administra concomitantemente morfina ou meperidina.175,176 Outros fármacos administrados durante anestesia podem causar vômitos. Até 75% dos cães aos quais foi administrada uma dose muito alta de lidocaína (200 µg/kg/min) na forma de infusão contínua durante a anestesia com sevofluorano apresentaram vômitos durante a recuperação. Quando a dose foi reduzida (50 µg/kg/min), não ocorreram vômitos no pósoperatório.177 Por outro lado, foi observada uma redução das náuseas e vômitos em seres humanos tratados com CRI de lidocaína para cirurgia abdominal.178,179 Terapia antiemética A metoclopramida é um antagonista dos receptores de dopamina (D2) centrais, que tem sido usada durante muitos anos como agente antiemético em cães. Além disso, exerce efeitos pró-cinéticos sobre o estômago, o duodeno e o jejuno e apresenta algumas ações nos receptores muscarínicos e serotoninérgicos (antagonista 5-HT3/agonista 5-HT4) em doses mais altas. O grupo dos antagonistas da serotonina (p. ex., ondansetrona, dolasetrona, palonosetrona) e o antagonista NK-1 maropitanto demonstraram ser úteis para prevenir ou diminuir os vômitos causados por agentes quimioterápicos,180,181 agonistas dos receptores α2-adrenérgicos182 e opioides.183,184 A dexametasona é um agente antiemético efetivo em seres humanos para o tratamento profilático de NVPO.185,186 Seu uso diminui a frequência de vômitos induzidos pela xilazina em gatos, porém são necessárias altas doses.187 Os efeitos anti-inflamatórios, antiimunes e endócrinos e GI adversos provavelmente impossibilitam o seu uso rotineiro como antiemético profilático em pacientes veterinários. Foi constatado que os benzodiazepínicos, as fenotiazinas e a butirofenonas exercem efeitos antieméticos nos seres humanos. O droperidol era antigamente usado com frequência em pequenos animais como sedativo, particularmente em associação com fentanila. O droperidol é considerado um antiemético altamente efetivo em seres humanos; todavia, o risco de arritmias cardíacas impediu o seu uso por algum tempo.185 Os efeitos adversos, como sedação, excitação e efeitos extrapiramidais, e a disponibilidade de melhores alternativas impedem o uso rotineiro das butirofenonas como fármacos antieméticos em medicina veterinária.

■ Refluxo gastresofágico O RGE ocorre comumente em cães e gatos sob anestesia geral, e a sua incidência varia de 0 a 66% dos casos. Numerosos estudos investigaram a ocorrência de RGE em muitas condições e com numerosos agentes anestésicos (Tabela 31.5).188-203 A doença do refluxo gastresofágico (DRGE) é uma síndrome comum em seres humanos, nos quais é relatada em 5 a 20% dos adultos, podendo alcançar até 40% em algumas áreas.204,205 Os mecanismos do refluxo na DRGE incluem pressão anormalmente baixa do esfíncter esofágico inferior (EEI) e aumento na frequência e duração do relaxamento transitório do esfíncter esofágico inferior (RTEEI). Os RTEEIs são eventos normais que ocorrem para eliminar o gás formado no estômago; são observados com mais frequência após a ingestão de alimentos. Os RTEEIs não ocorrem durante a anestesia geral em cães e seres humanos ou durante o sono profundo em seres humanos.204,206-208 Tabela 31.5 Protocolos anestésicos, procedimentos e outros fatores associados à incidência de regurgitação ou RGE em cães, exceto quando especificamente assinalado.188-203 Incidência aumentada de RGE

Incidência diminuída de RGE

Acidez gástrica

Jejum de curta duração, 3 h versus 10 h

Procedimentos abdominais

Infusão de metoclopramida em alta dose

Procedimentos ortopédicos

Meperidina versus morfina, porém com sedação deficiente

Exames de imagem

Diazepam versus atropina/propionilpromazina

Maior com propofol versus tiopental

Nenhuma diferença

Morfina, ↑ também com doses mais altas

Decúbito ou inclinação da cabeça

Medetomidina versus acepromazina/opioide

Halotano versus isofluorano versus levofluorano

Cães idosos, cães mais doentes (ASA ≥ 3)

Vômitos após medicação pré-anestésica

Duração mais longa da anestesia Jejum prolongado

Jejum padrão (17,3 h) versus curto (4,7 h)

ML versus tubo endotraqueal (filhotes de gatos) Seres humanos:

Outros fatores

Estômago cheio

Os cães com refluxo precoce apresentam regurgitação mais frequente

Final de gravidez

Alteração da consciência

ML (alguns tipos)

O jejum prolongado aumenta a acidez gástrica Jejum de curta duração (3 h) e metade do volume de alimento enlatado ↑ pH gástrico, nenhuma diferença de volume

ML, máscara laríngea para acesso da via respiratória. Embora o mecanismo específico do RGE induzido por anestésico não esteja bem esclarecido, ocorre refluxo quando a pressão intragástrica é igual ou ultrapassa a pressão do esfíncter esofágico inferior (PEEI), e há perda da pressão de barreira (PB) normalmente entre as duas áreas.204,206,207,209 As pressões intra-abdominal e intratorácica também contribuem para a PEEI e a incidência de RGE. O EEI é, na verdade, um esfíncter funcional, isto é, uma área de maior pressão intraluminal logo acima da cárdia, criada pelo arranjo circular das camadas musculares na parte distal do esôfago, em combinação com os pilares do diafragma. Permanece em um estado de contração tônica até relaxar o esfíncter esofágico superior e/ou ondas de contrações peristálticas em nível mais alto no esôfago. A posição anatômica da parte distal do esôfago em relação ao pilar direito do diafragma resulta em uma orientação angular ao estômago, o que também contribui para o fechamento efetivo do EEI e a prevenção do fluxo retrógrado do conteúdo em condições normais. É preciso que haja relaxamento do pilar do diafragma e do EEI para que ocorra RTEEI em pacientes despertos.204,206,207,209 Embora seja principalmente controlado pelo sistema nervoso parassimpático, numerosos neurotransmissores e hormônios estão envolvidos na regulação do tônus do EEI (Tabela 31.6).145,208 A DRGE clínica é muito menos comum em cães e gatos do que nos seres humanos, porém foi identificada em ambas as espécies. As raças braquicefálicas podem ter predisposição à DRGE.211 É provavelmente subdiagnosticada, visto que os casos leves podem não resultar em sinais clínicos.212,213 Foi demonstrado que numerosos fármacos anestésicos e medicamentos adjuvantes, incluindo sedativos, analgésicos, agentes de indução, inalatórios e anticolinérgicos, diminuem a PEEI em seres humanos, cães e gatos, predispondo os pacientes sob anestesia geral ao RGE (Tabela 31.7).209,214-222 Embora um grupo não tenha encontrado nenhuma diferença,188 outros identificaram maior incidência de refluxo com jejum pré-operatório de longa duração em cães. O RGE é

mais frequente com procedimentos intra-abdominais e ortopédicos em cães191-194 e ocorre mais frequentemente em cães do que em gatos. Os vômitos associados à medicação préanestésica antes da anestesia foram associados a um aumento do RGE em cães.196,197 Todavia, a ocorrência de RGE sob anestesia é variável e imprevisível. Apesar das numerosas investigações, o mecanismo do RGE observado com a anestesia geral não foi comprovado. Deve ocorrer perda da pressão de barreira entre a parte distal do esôfago e a cárdia,204,206,207,209 porém não foi esclarecido o que desencadeia especificamente esse fenômeno. O aumento do tônus da PEEI com uma alta dose de metoclopramida administrada continuamente diminuiu a incidência, porém não impediu totalmente a ocorrência de refluxo em cães.202 Tabela 31.6 Neurotransmissores e hormônios que afetam a pressão do esfíncter esofágico inferior (EEI).145,208 Diminuição do tônus do EEI

Aumento do tônus do EEI

Óxido nítrico e nitratos

Prostaglandina E

Peptídio intestinal vasoativo

Agonistas dos receptores muscarínicos M2, M3

Nicotina

Gastrina

Agonistas beta-adrenérgicos

Substância P

Dopamina

Agonistas alfa-adrenérgicos

Colecistocinina

Prostaglandina Fα

Secretina

Motilina

Peptídio relacionado com o gene da calcitonina Adenosina Tabela 31.7 Efeitos dos agentes anestésicos, analgésicos, sedativos, medicações adjuvantes e outros fatores sobre a pressão do esfíncter esofágico inferior em cães, gatos e/ou seres humanos.209,214-222 Diminuição da PEEI

Aumento da PEEI

Nenhuma alteração

Agentes inalatórios

Acetilcolina

Óxido nitroso*

Anticolinesterases

Atropina, glicopirrolato

Metoclopramida

Acepromazina

Domperidona

Óxido nitroso*

Dexmedetomidina (altas doses) Dexmedetomidina Xilazina Benzodiazepínicos Morfina Meperidina Remifentanila Oximorfona Fentanila-droperidol Antidepressivos tricíclicos Propofol (altas doses) Tiopental Propofol

Alfaxalona Cetamina# Xilazina/cetamina# Agonistas beta-adrenérgicos Nitroprussiato

Propranolol Estimulantes alfa-adrenérgicos

Bloqueadores dos canais de cálcio Aminofilinas

Metoprolol

Succinilcolina Atracúrio Pancurônio Bloqueio neuromuscular (BNM) residual

Reversão do BNM com neostigmina e Vecurônio (pequeno aumento)

glicopirrolato

Edrofônio Neostigmina Bloqueadores de histamina 2 (H2B)

Cisaprida

Histamina

Cimetidina, ranitidina

Antiácidos

Inibidores da bomba de prótons (IBP)

Pressão cricoide Gravidez Obesidade Acidificação gástrica Hérnia de hiato ↑ Pressão gástrica ou abdominal Máscara laríngea para acesso da via respiratória Decúbito dorsal versus lateral Mudança de lateral para dorsal

*Resultados divergentes sobre o óxido nitroso. #

A cetamina diminuiu a PEEI em comparação com valores no animal desperto, porém permaneceu muito mais alta do

que aquela com outros fármacos. A maioria dos casos de RGE relacionada com anestesia em cães ocorre bastante cedo após a indução, habitualmente antes de 30 min. A escolha da medicação pré-anestésica desempenha um papel, conforme demonstrado por doses mais altas de morfina, que causaram mais RGE do que doses menores.197 A estimulação da faringe também pode

constituir um fator, visto que ela diminui as pressões esofágicas tanto superior quanto inferior. A estimulação faríngea mínima produziu relaxamento do EEI em mais de 50% do tempo em gambás anestesiados com pentobarbital.223 O estímulo subliminar da faringe produz contração do músculo longitudinal do esôfago e relaxamento do EEI em seres humanos.224 É interessante assinalar a observação de RGE em 50% de filhotes de gato com uso de ML versus 14% com tubo endotraqueal.200 Talvez a combinação de estimulação faríngea na indução e depois, associada aos efeitos de múltiplos agentes anestésicos durante a transição para níveis mais profundos de anestesia, seja significativa; todavia, isso não explica os episódios de refluxo que ocorrem posteriormente durante a anestesia, nem aqueles na ausência de intubação endotraqueal.195 Muitos fatores provavelmente estão envolvidos. Os fatores desencadeantes específicos podem ser múltiplos e variáveis de acordo com os pacientes, os fármacos utilizados e outras circunstâncias. Apesar da alta frequência de RGE detectada com o uso de monitoramento do pH ou de impedância em cães e gatos, a incidência de regurgitação visível (i. e., drenagem oral de líquido) é muito menor. Em um estudo de grande porte de 4.257 cães em uma clínica de referência, ao longo de um período de 2 anos, a regurgitação foi visualmente confirmada em apenas 27 animais ou 0,63% dos casos, com maior risco para cães de grande porte e procedimentos ortopédicos.192 Foi observada a ocorrência de regurgitação em 75 ou 1,3% de 5.736 cães em outro estudo de grande porte,193 em que foi observado um risco maior com estado da ASA de ≥ 3, procedimentos abdominais e/ou exames de imagem, longa duração da anestesia ou animais de maior porte. Os cães anestesiados para todos os tipos de procedimentos apresentaram regurgitação em menos de 1% dos casos, embora se tenha identificado a ocorrência de RGE em 16,3 e 17,4% dos casos em duas outras pesquisas.189,191 Cães anestesiados para procedimentos ortopédicos (após a administração de diferentes medicações pré-anestésicas e anestésicos injetáveis e inalatórios) tiveram regurgitação em 0 a 16,7% das vezes, quando foi identificada a ocorrência de RGE em 25 a 63% dos casos.194,197,198,201 Nos gatos, a regurgitação foi relatada em 2% e 0% dos casos, com incidência de RGE de 14 e 22,5%.195-200 A prevenção do RGE em cães anestesiados foi tentada com antagonistas dos receptores H2, inibidores da bomba de prótons (IBP) e fármacos pró-cinéticos. Embora a famotidina aumente o pH gástrico de modo mais confiável do que a ranitidina, o pH não é mantido de modo tão satisfatório com antagonistas dos receptores H2 do que com IBP.225,226 O omeprazol (OME), administrado no pré-operatório a 47 cães, diminuiu o número de episódios identificados de refluxo ácido (4 com OME versus 13 no grupo de controle); todavia, como o pH esofágico mais baixo foi o único meio utilizado para a identificação do refluxo, alguns episódios de refluxo podem ter sido omitidos.227 Foi demonstrado que a metoclopramida isoladamente diminui a incidência de RGE, porém não impediu por

completo a sua ocorrência em cães. Esse efeito só foi observado quando a metoclopramida foi administrada por infusão contínua em alta dose.202 A metoclopramida e/ou a ranitidina por via intravenosa antes da anestesia, seguidas de infusão de metoclopramida, não diminuíram a incidência de RGE em cães anestesiados para ovário-histerectomia.228 Um estudo recente em 61 cães, utilizando monitores tanto de impedância quanto de pH, verificou que, embora o esomeprazol isoladamente tenha aumentado o pH, a adição de cisaprida diminuiu significativamente a incidência de refluxo de 8/21 com placebo para 2/18 no grupo de associação.229 O efeito de vários tratamentos paliativos para o RGE foi examinado em 10 cães com regurgitação sob anestesia.230 A remoção do líquido do refluxo do esôfago por aspiração não modificou significativamente o pH esofágico, a lavagem com água corrente aumentou o pH para > 4,0, e a infusão de um pequeno volume de bicarbonato de sódio aumentou o pH para > 6,0, um efeito que durou de 1,5 a 3 h. A terapia tópica não impediu o refluxo adicional e pode não ajudar se houver refluxo não ácido; entretanto, pode ser útil em caso de refluxo ácido para reduzir o risco ou a gravidade da esofagite. A aspiração e a lavagem podem ser úteis nos casos de grande volume de regurgitação. O jejum prolongado tem sido associado a um risco aumentado de refluxo e pH gástrico mais baixo em cães anestesiados.188,189 O volume gástrico não foi significativamente diferente e o pH foi mais alto em cães que ingeriram alimento enlatado em metade de sua necessidade energética diária e permaneceram em jejum por 3 h, em comparação com aqueles que tiveram um jejum de 10 h.199 À luz das evidências apresentadas anteriormente, talvez seja o momento de considerar a recomendação de menor duração do jejum para pacientes veterinários que irão se submeter a procedimentos anestésicos eletivos. As diretrizes usadas pela American Society of Anesthesiologists (ASA) para o jejum em seres humanos recentemente tiveram a sua duração diminuída tanto para adultos quanto para crianças. É permitida a ingestão de líquidos claros por até 2 h antes da anestesia, de líquidos tipo leite por até 4 a 6 h e de refeição leve por até 6 h em todos os pacientes.231 Embora a prevenção do RGE seja difícil, o monitoramento vigilante para identificar o momento de sua ocorrência e a intervenção apropriada irá minimizar as complicações. As recomendações quanto ao manejo incluem as seguintes: •

• •

Observar os pacientes após medicação pré-anestésica, particularmente com sedação profunda e fármacos que causam vômitos (p. ex., morfina, agonistas dos receptores α2adrenérgicos) Obter rapidamente uma via respiratória segura após indução O tubo endotraqueal (TE) deve ser: ° De tamanho correto

• • • • •

° Lubrificado adequadamente ° Inflação adequada do manguito Verificar mais uma vez a colocação do tubo e a inflação do manguito, particularmente em caso de transporte, posicionamento Manter a cabeça inclinada para baixo para incentivar a drenagem do RGE, evitando as vias respiratórias Ter os suprimentos disponíveis para aspiração, limpeza da faringe, esôfago Em caso de vômito – abaixar a cabeça Recuperação ° Examinar a faringe antes da extubação ° Lavar o esôfago quando ocorre RGE de grande volume ° Extubar com manguito parcialmente inflado Posicionar o animal com a cabeça/nariz para baixo, mais baixos do que o ombro ° durante todo o tempo.

■ Esofagite e estenose esofágica Pode ocorrer esofagite quando a mucosa esofágica é exposta a substâncias cáusticas por períodos prolongados e/ou quando os mecanismos de defesa esofágicos (MDEs) estão comprometidos ou sobrecarregados. Os MDEs incluem uma barreira superficial de muco/bicarbonato, zônulas de oclusão entre as células epiteliais e capacidade de tamponamento intracelular e intersticial, que depende do fluxo sanguíneo. A falta de eliminação do conteúdo esofágico por meio de deglutição intermitente também constitui um fator nos pacientes anestesiados. A saliva proporciona diluição, bicarbonato para neutralizar o ácido e volume para limpar o lúmen do esôfago. Foi demonstrada uma resistência a 30 min de exposição a ácido; entretanto, a pepsina, a tripsina, os sais biliares e, possivelmente, outras substâncias irritantes/cáusticas podem ser tão importantes quanto os ácidos no dano ao esôfago.204,212,232 As revisões da doença esofágica em pequenos animais fornecem a seguinte lista de causas de esofagite e/ou estenose esofágica: RGE, vômitos e/ou regurgitação, ingestão de corpos estranhos ou substâncias cáusticas (incluindo alguns medicamentos, como a doxiciclina), distúrbios de motilidade, anormalidades congênitas ou anatômicas (p. ex., hérnia de hiato), traumatismo, neoplasia e infecção.213,233-235 Estudos retrospectivos examinaram a incidência, os fatores de risco e o resultado da esofagite ou estenose em cães e gatos.194,236-241 Em muitos casos, um episódio de anestesia geral representou um fator de risco significativo, presumivelmente causado por RGE relacionado com a anestesia. Leib et al.213 identificaram 18 de 28 (64%), Adamama-Moraitou et al.239 encontraram 13 de 20

(65%) e Kushner e Shofer240 relataram 25 de 30 (83%) pacientes com estenose esofágica diagnosticada pouco depois de anestesia geral. Nesses relatos, a taxa de mortalidade global foi, respectivamente, de 21, 30 e 30%. Foi observado maior risco de esofagite em pacientes anestesiados para procedimentos intra-abdominais, particularmente ovário-histerectomia.239 Acredita-se que a manipulação das estruturas abdominais aumente a pressão gástrica versus PEEI, que é ainda mais reduzida pelos agentes anestésicos. Foi sugerido que os níveis de progesterona em fêmeas não castradas contribuem para a diminuição da PEEI; entretanto, um estudo de pressão de barreira e RGE em cadelas anestesiadas quatro vezes durante diferentes fases de seu ciclo reprodutor não demonstrou nenhum efeito dos níveis hormonais sobre a pressão de barreira ou a incidência de RGE ou de esofagite.242 Diferentemente daquilo observado em cães, um estudo de doença esofágica em gatos durante um período de 7,5 anos constatou que a anestesia só esteve envolvida em um de 33 casos.236 Foi relatada uma incidência muito baixa de disfunção esofágica pós-anestésica quando todos os casos apresentados para anestesia foram examinados retrospectivamente. Foram identificados 25 pacientes com estenose esofágica após anestesia no decorrer de um período de 10 anos em uma instituição (0,1% dos casos),240 e ocorreram três casos de esofagite e 10 casos de estenose esofágica (com um total de 13 casos, representando 0,07% do número total de casos) no curso de 8 anos em outra instituição.241 A taxa de mortalidade associada às complicações esofágicas foram, respectivamente, de 30 e 23%. Ocorreram vômitos e regurgitação no pós-operatório na maioria desses pacientes ou em todos eles. Além disso, foi observada a ocorrência de perda de peso e tosse crônica em alguns cães (Figura 31.8).241 Embora a disfunção esofágica após anestesia seja rara, trata-se de uma complicação devastadora, visto que a mortalidade é frequente e elevada. Qualquer paciente no pósoperatório que apresente vômitos, regurgitação, náuseas, salivação, disfagia e/ou anorexia deve ser monitorado rigorosamente. Os pacientes com sinais persistentes de disfagia, vômitos e/ou regurgitação devem ser submetidos a uma avaliação completa para doença esofágica.

Figura 31.8 Os pacientes com estenose esofágica podem estar debilitados, devido a disfagia e pneumonia por aspiração.

■ Aspiração Pode ocorrer aspiração do conteúdo GI no peroperatório após RGE, vômitos e/ou regurgitação. Além disso, pode ocorrer durante a sedação profunda, que compromete os reflexos normalmente protetores das vias respiratórias. As complicações respiratórias após aspiração consistem em hipoventilação e/ou hipoxemia, pneumonite, pneumonia bacteriana e, algumas vezes, parada cardíaca. A extensão da patologia das vias respiratórias depende do volume e do tipo de líquido aspirado. Foram identificadas três fases de dano: o estágio 1 é imediato – devido ao dano tóxico direto do epitélio. Dependendo do volume de material aspirado, o resultado final consiste em atelectasia, diminuição da complacência, desequilíbrio de ventilação/perfusão e diminuição da oxigenação. Segue-se o estágio 2 em 4 a 6 h – uma reação inflamatória que provoca pneumonite. Se não for grave, essa lesão pode regredir. O estágio 3 é observado quando as bactérias invadem o tecido lesionado, produzindo pneumonia por aspiração.243-245 O reconhecimento precoce e a intervenção são de suma importância para limitar a gravidade da pneumonia por aspiração e sua mortalidade associada. Os sinais de aspiração incluem desde um estado “silencioso”, sem qualquer anormalidade aparente, até obstrução

evidente das vias respiratórias após regurgitação visível do conteúdo gástrico. Pode-se observar a ocorrência de dessaturação de oxigênio inexplicada, taquipneia, dispneia ou padrões respiratórios irregulares, anormalidades auscultáveis e palidez das mucosas. Devese administrar oxigênio (100%), e o paciente deve ser imediatamente posicionado com a cabeça para baixo para drenagem. A aspiração das vias respiratórias é necessária em caso de aspiração de líquido. A broncoscopia pode ser necessária quando houver aspiração de matéria particulada. A terapia com broncodilatadores e a ventilação mecânica com pressão expiratória final positiva podem ser necessárias para melhorar a oxigenação. Em geral, não se recomenda o uso de antibióticos profiláticos para os casos de pneumonite, devido ao potencial de emergência de bactérias resistentes.243,244,246 Devido à ocorrência de colonização bacteriana posteriormente no processo, os antibióticos são recomendados apenas para os casos de infecção confirmada, particularmente em pacientes saudáveis nos demais aspectos. Entretanto, os pacientes com obstrução GI ou que recebem terapia crônica com antiácidos podem representar uma exceção, devido à presença potencial de microrganismos entéricos no líquido de refluxo.243,244,246 Um recente estudo multicêntrico de porte muito grande avaliou todos os casos de anestesia em seis instituições veterinárias no decorrer de um período de 11 anos para determinar a incidência e os fatores de risco da pneumonia por aspiração após anestesia ou sedação em cães.247 Os critérios incluíram evidências radiográficas ou de necropsia de pneumonia por aspiração em 72 h após sedação ou anestesia geral. Foi realizada uma análise multivariada de numerosos fatores relacionados com o paciente, o procedimento e o anestésico em 240 cães identificados, juntamente com 488 controles. A incidência de pneumonia com aspiração variou significativamente entre as instituições, de 0,04 a 0,26%, com uma incidência global de 0,17%. De 12 cães aos quais foi administrada apenas sedação, três desenvolveram pneumonia por aspiração. A análise multivariada revelou uma associação dos seguintes achados com a pneumonia por aspiração relacionada com anestésicos: fatores dos pacientes – megaesôfago e doença respiratória neurológica preexistente – cirurgia das vias respiratórias superiores, endoscopia, toracotomia, laparotomia e neurocirurgia; e episódios anestésicos – regurgitação durante e após a anestesia e administração intravenosa de hidromorfona na indução. Alguns fatores foram significativamente associados à pneumonia por aspiração, porém não permaneceram após a análise multivariada [razão de chances (OR) < 2]. Incluem gênero masculino e escore da ASA crescente do paciente, idade e peso corporal. O uso de infusão contínua de analgésicos e agentes anestésicos foi associado a maior incidência de pneumonia por aspiração (OR de 1,8) quando administrada durante a anestesia, mas não quando usada no pós-operatório. Apesar de sua baixa ocorrência, o megaesôfago é que apresenta a maior OR, 22,3, seguido da cirurgia das vias respiratórias superiores, com OR de 9,2. Não foi

identificada nenhuma raça específica. A hora do dia, a extubação durante a anestesia e o uso de anticolinérgicos, ventilação com pressão positiva e analgesia epidural não foram associados à pneumonia por aspiração. Foi observada a ocorrência de regurgitação em apenas dois casos de pneumonia por aspiração. Quarenta e seis dos 240 cães (19,2%) foram submetidos a eutanásia ou morreram antes de ter alta. Entretanto, não foi possível identificar qualquer associação da morte com a pneumonia por aspiração com base nos dados disponíveis, de modo que a mortalidade não foi determinada.247 Outro estudo tipo caso-controle retrospectivo examinou a ocorrência de pneumonia por aspiração em 48 h após anestesia em cães anestesiados para reparo de doença de disco intervertebral. Os fatores de risco significativos para a pneumonia por aspiração pósoperatória consistiram em tetraparesia pré-anestésica, lesão cervical, exame de RM, mais de um procedimento anestésico, duração mais longa da anestesia e vômitos ou regurgitação pós-anestésicos.248 Distúrbios neurológicos e respiratórios preexistentes, megaesôfago, vômitos/regurgitação peroperatórios e anestesia foram consistentemente identificados em pacientes veterinários com pneumonia por aspiração.248-251 Embora a incidência de aspiração seja baixa, os fatores predisponentes são comuns, e a pneumonia por aspiração está associada a um alto risco de mortalidade. É necessário proceder a um monitoramento vigilante para sinais de aspiração, particularmente tendo em vista que os casos são, em sua maioria, subclínicos, à semelhança do RGE e da esofagite. Indica-se sempre o manejo peroperatório para prevenir essas complicações com intervenção adequada o mais cedo possível.

■ Motilidade gastrintestinal/íleo pós-operatório Algumas espécies parecem ser particularmente sensíveis aos efeitos dos agentes anestésicos sobre a motilidade GI (p. ex., coelhos, cavalos, ruminantes e seres humanos). As náuseas, os vômitos e o íleo pós-operatórios são muito comuns em seres humanos. O íleo pós-operatório (IPO) é um dos motivos mais comuns de hospitalização prolongada em seres humanos.151,152,252 Apesar de ser mais comum após cirurgia GI, é também observado depois de outros procedimentos intra-abdominais em seres humanos e com muitos tipos de cirurgia em equinos. O IPO está associado a uma taxa aumentada de mortalidade após cirurgia de cólica em equinos,253 enquanto a cólica em geral e a impactação cecal, em particular, constituem complicações potencialmente graves observadas após anestesia de rotina e cirurgia em equinos e podem estar associadas ao desenvolvimento de íleo.254 Os coelhos são propensos à estase GI após situações estressantes.255,256 Outros animais pequenos (p. ex., cão e gato) certamente sofrem do comprometimento da motilidade normal durante a anestesia; entretanto, os problemas clínicos relacionados são menos

comuns ou, talvez, identificados com menos frequência. Numerosos pesquisadores usaram o cão como modelo para a investigação do IPO, porém existem poucos relatos específicos sobre a incidência observada em pacientes clínicos. De fato, o IPO é raramente discutido em livros de cirurgia ou artigos de cirurgia abdominal em pequenos animais. Com o advento de protocolos multimodais intensivos de manejo da dor, a possibilidade de afetar a motilidade aumentou. A função intestinal é temporariamente eliminada ou comprometida pela maioria dos agentes anestésicos/analgésicos, incluindo anticolinérgicos, opioides agonistas µ, agonistas dos receptores α2-adrenérgicos, inalatórios, óxido nitroso e agentes de indução, além da cetamina.153,155,157,257-263 A xilazina e a medetomidina podem inibir a motilidade do estômago, do intestino delgado259,260 e do cólon261 durante horas no cão. Os fármacos anticolinérgicos reduzem profundamente a motilidade GI na maioria das espécies.264-270 Os efeitos dos opioides sobre a motilidade são numerosos. Os agonistas µ administrados sistemicamente retardam o esvaziamento gástrico, aumentam o tônus dos esfíncteres e afetam de modo variável a contração do músculo liso intestinal. A motilidade propulsiva é inibida, e as contrações segmentares são intensificadas, particularmente no cólon; a absorção aumenta, enquanto a secreção é reduzida. A constipação intestinal constitui uma complicação frequente com o uso de opioides sistêmicos, devido aos efeitos confinados sobre o transporte de líquidos e o tempo de trânsito prolongado.157,263,271 Por outro lado, com a administração epidural de morfina, a motilidade GI retorna mais rapidamente tanto em cães quanto em seres humanos.272,273 Após anestesia geral em seres humanos, a motilidade geralmente retorna em primeiro lugar no intestino delgado, em seguida no estômago e, por fim, no cólon, o que pode levar 5 dias ou mais.274 Em cães de laboratório com íleo, houve recuperação inicial da motilidade da parte distal do intestino e cólon, seguida do intestino proximal e do estômago.275 Uma pesquisa recente examinou o efeito da laparoscopia e da anestesia prolongada com sevofluorano sobre a motilidade propulsiva e o tempo de trânsito em cadelas anestesiadas para ovário-histerectomia.276 Após administração oral, um sensor sem fio mediu continuamente a pressão intraluminal, o pH e a temperatura à medida que percorreu o trato GI. Foram registradas as pressões máxima e média criadas pelas contrações gástricas e do intestino delgado e sua frequência, e foram calculados um índice de motilidade e um tempo de trânsito ou esvaziamento. A frequência de contração não foi diferente daquela observada em controles (cães despertos); entretanto, alterações na motilidade foram observadas rapidamente, em 20 min após a indução. Houve diminuição significativa do índice de motilidade e das amplitudes média e máxima de contração tanto do estômago quanto do intestino delgado. Os tempos de esvaziamento gástrico e trânsito do intestino delgado foram prolongados, com valores médios de 49 e 11,5 h e valores máximos de 59 e 14 h,

respectivamente. Não foi identificado nenhum outro efeito da laparoscopia sobre a motilidade; entretanto, como foi realizada em todos os cães, não ficou bem esclarecido que efeitos específicos a laparoscopia pode ter tido sobre a função GI. Em todos os cães, foram administradas hidromorfona e cefalexina para recuperação, o que também pode ter afetado os resultados no pós-operatório, particularmente no caso do opioide. Os resultados desse estudo, que mostraram uma redução na força de contração intestinal, inibição da motilidade propulsiva e tempo prolongado de esvaziamento gástrico e trânsito no intestino delgado, fornecem uma excelente informação para uso no planejamento de futuros estudos e avaliação de pacientes clínicos. O mecanismo do IPO é multifatorial, com componente neurais, hormonais, inflamatórios e farmacológicos, porém a resposta inflamatória observada na muscular externa é considerada a causa mais importante e, provavelmente, a causa primária do IPO prolongado.149,263,274,277 A ativação do sistema nervoso simpático inibe a motilidade muito cedo após a incisão cirúrgica, porém esse efeito é de curta duração, sem outro insulto para o trato GI. A manipulação do intestino estimula uma resposta inflamatória local na muscular por meio de ativação dos macrófagos residentes, que é proporcional à intensidade do dano intestinal. Segue o influxo de outros leucócitos, e a liberação de mediadores inflamatórios é estimulada. Ocorre também inflamação peritoneal cirurgicamente induzida, o que contribui para os efeitos locais e sistêmicos observados. O IPO é ainda exacerbado pelos efeitos dos agentes anestésicos sobre a motilidade, bem como pela presença ou desenvolvimento de peritonite e sepse.149,152,263,274,277-279 Numerosas intervenções foram tentadas nos seres humanos para reduzir ou melhorar a incidência do IPO. Nenhuma delas eliminou por completo o íleo; todavia, com algumas intervenções, observaram-se melhora no conforto do paciente, menor duração da hospitalização e melhores resultados (Tabela 31.8). Tabela 31.8 Recomendações para prevenção do íleo pós-operatório em seres humanos.149,152,252,258,272-274,279,280,320,321 Fluidoterapia – orientada para a meta, restrita (evitar o excesso de volume) Evitar o soro fisiológico, usar uma solução balanceada ± Manutenção do fluxo sanguíneo intestinal e oxigenação

coloides Prevenção, tratamento imediato da hipotensão Prevenção, tratamento dos baixos níveis de proteínas, albumina

Protocolos de preservação de opioides sistêmicos Epidural torácica com local – bloqueio do influxo simpático Analgesia peroperatória

Morfina epidural – menos inibição da motilidade AINEs – inibidores da COX-2 – redução da inflamação, cetorolaco Infusão de lidocaína – anti-inflamatório, IPO menos grave/de menor duração Minimizar a manipulação do intestino Laparoscopia sempre que possível – menos inflamação, IPO de menor duração

Técnicas cirúrgicas O hélio é melhor – o CO2 promove infecção por meio de acidose tecidual O ar efetivamente estimula a inflamação Nutrição enteral e deambulação o mais cedo possível; evitar sondas nasogástricas Terapia com laxativos para tratamento, prevenção da Cuidados pós-operatórios

constipação intestinal Antagonistas opioides periféricos – alvimopam, metilnaltrexona Antagonistas serotoninérgicos HT4 – cisaprida, mosaprida

Condições gastrintestinais que exigem anestesia Muitos pacientes que necessitam de anestesia para doença GI são pacientes de emergência e/ou em estado crítico. A avaliação pré-anestésica completa e o preparo antes da anestesia ajudam a minimizar as complicações; entretanto, isso nem sempre é possível em pacientes de emergência extrema. As recomendações para uma investigação básica incluem hematócrito, proteína total, ureia, creatinina, fosfatase alcalina sérica (SAP), alanina

aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST), bilirrubina, albumina, eletrólitos e dióxido de carbono total. A análise dos gases sanguíneos e o lactato são importantes em pacientes enfermos. Outros exames complementares apropriados para o problema e disponíveis devem ser realizados, como radiografias ou ultrassonografia do abdome. As diretrizes gerais para o manejo da anestesia em procedimentos abdominais assemelham-se às recomendações para outras doenças. É importante preservar o aporte de oxigênio aos tecidos por meio da manutenção do fluxo sanguíneo e evitar a hipoxemia. Deve-se dispensar uma atenção adicional para complicações previsíveis (p. ex., endotoxemia após reperfusão do intestino lesionado ou arritmias cardíacas durante a esplenectomia) e os tratamentos adequados planejados. Por fim, a administração de medicamentos adjuvantes para manejo da dor, o rápido retorno da função GI e a limitação dos efeitos adversos, como náuseas e vômitos, podem melhorar os cuidados do paciente.

■ Laparotomia O plano para uma laparotomia exploradora frequentemente varia mais com a condição do paciente do que com o problema GI primário. Alguns pacientes são saudáveis (p. ex., gastropexia), e o seu manejo assemelha-se ao de outros procedimentos abdominais eletivos (p. ex., ovário-histerectomia). Outros pacientes podem estar gravemente enfermos e necessitam de laparotomia como intervenção para salvar sua vida. Os déficits hídricos e as anormalidades eletrolíticas devem ser corrigidos tanto quanto for razoavelmente possível antes da indução. Alguns pacientes podem ter disfunção orgânica preexistente, que pode ou não estar relacionada com o motivo da laparotomia exploradora. A cetamina, particularmente na forma de infusão contínua, deve ser usada com cautela em pacientes com disfunção renal, particularmente nos gatos, visto que esses animais excretam o fármaco e seus metabólitos em grau significativo na urina. O tiopental também deve ser usado com cautela ou evitado em pacientes debilitados e naqueles com disfunção hepática grave. Seu uso também deve ser evitado em galgos. Tanto o tiopental quanto o propofol podem sensibilizar o miocárdio a arritmias associadas às catecolaminas e devem ser usados com cautela em pacientes com arritmias ou doença cardíaca preexistente, ou quando existe uma alta probabilidade de arritmias, como DVG ou massas esplênicas. O etomidato mostra-se útil para pacientes com disfunção miocárdica preexistente (p. ex., baixa contratilidade) que estão saudáveis nos demais aspectos, visto que esse fármaco exerce efeitos mínimos sobre a função cardiovascular. Uma dose de midazolam ou diazepam, de 0,2 mg/kg, imediatamente antes da injeção de etomidato melhora o relaxamento muscular e facilita a intubação. Entretanto, o etomidato não é recomendado para pacientes humanos muito doentes, particularmente aqueles com sepse,281,282 visto que foi relatada a ocorrência

de insuficiência suprarrenal e maior mortalidade em pacientes sépticos após indução da anestesia com etomidato.283 Alguns autores consideram que o uso de uma dose única pode não ser prejudicial; entretanto, recomenda-se uma pesquisa adicional. Não se recomenda a indução com inalatórios para pacientes com doença GI, particularmente aqueles com vômitos. A medicação pré-anestésica com benzodiazepínico e opioide mostra-se útil antes da laparotomia exploradora. O midazolam ou o diazepam com a hidromorfona, a oximorfona ou a fentanila (ou seus congêneres) são titulados por via intravenosa para o efeito. Para evitar por completo os fármacos de indução tradicionais em pacientes comprometidos, são administradas doses adicionais da associação benzodiazepínicoopioide até que a intubação seja possível. A bradicardia e a depressão respiratória são algumas vezes significativas após altas doses dos opioides usados para indução, de modo que as preparações para intubação e ventilação devem estar prontas para uso. Como alternativa, uma dose baixa de cetamina frequentemente possibilita a intubação após medicação pré-anestésica. A fentanila é facilmente continuada como infusão após a indução. O isofluorano, o sevofluorano ou o desfluorano são preferidos para a manutenção da anestesia para laparotomia exploradora, em comparação com o halotano, visto que este último sensibiliza o miocárdio às arritmias e diminui em maior grau o fluxo sanguíneo para os tecidos. Não se recomenda o óxido nitroso, visto que ele sofre difusão no trato GI, causando distensão. Os efeitos cardiovasculares e respiratórios de todos os inalatórios são mais pronunciados em pacientes debilitados, e é comum a ocorrência de hipotensão e hipoventilação. Devido à depressão cardiovascular preexistente, os pacientes doentes frequentemente necessitam de níveis mais baixos de anestésico inalatório. A regulagem dos vaporizadores deve ser mantida o mais baixo possível para minimizar a hipotensão, e, em certas ocasiões, é necessário suspender o anestésico inalatório, seguido de manutenção com agentes injetáveis, para manter a pressão arterial na presença de sepse grave. Quando a profundidade da anestesia é inadequada, sedativos ou analgésicos adicionais são administrados de modo intermitente ou na forma de CRI. A infusão contínua fornece um nível mais constante de administração do fármaco e pode reduzir o nível necessário do anestésico inalatório. A infusão é titulada para o efeito, juntamente com a regulagem do agente inalatório para ajustar a profundidade da anestesia. A morfina ou a fentanila, a lidocaína e/ou a cetamina são administradas como infusões intravenosas em cães;284-286 a lidocaína não é atualmente recomendada para uso em gatos.287 Em pacientes sem hipovolemia não corrigida, sepse, coagulopatia ou dermatite na área lombossacral, a administração epidural de um anestésico local, com ou sem morfina, também pode fornecer analgesia intra e pós-operatória. A fluidoterapia deve ser continuada durante a anestesia; o tipo de líquido e a velocidade

necessária irão variar, dependendo do estado do paciente. Se a hipotensão persistir apesar da correção do déficit de volume, os agentes inotrópicos, como a dobutamina e/ou a dopamina, podem aumentar o débito cardíaco e melhorar a pressão arterial. Os vasopressores podem ser necessários quando a diminuição da resistência vascular sistêmica constitui um componente significativo da hipotensão. A efedrina é um agente simpaticomimético, que pode ser administrada na forma de bolus; é efetiva principalmente para reduções leves e transitórias da pressão arterial. Com mais frequência, a fenilefrina, a norepinefrina, a vasopressina e a epinefrina são administradas como infusões e tituladas para o efeito. Esses fármacos são potentes vasoconstritores, que devem ser usados na menor dose efetiva para minimizar a isquemia tecidual, apesar da melhora da pressão arterial. O monitoramento deve continuar durante toda anestesia e na recuperação. Os parâmetros comumente avaliados incluem sinais de profundidade da anestesia, frequência cardíaca e respiratória, coloração das mucosas e tempo de enchimento capilar, temperatura, pressão arterial e eletrocardiografia. A aferição direta da pressão arterial é preferida para a maioria das laparotomias, visto que as alterações da pressão podem ser rápidas e graves. A oximetria de pulso e a capnografia possibilitam uma avaliação contínua e em tempo real da ventilação e troca gasosa e são comumente usadas. A gasometria arterial é utilizada para documentar o estado respiratório e metabólico e para avaliar periodicamente o sucesso da terapia. A determinação do lactato proporciona uma estimativa indireta da perfusão tecidual e do estado de oxigenação.288 As alterações do lactato surgem posteriormente em relação às alterações do metabolismo tecidual, porém têm algum valor na avaliação da terapia e do prognóstico de pacientes com distúrbios metabólicos graves (p. ex., DVG). Embora monitores do débito cardíaco (DC) sejam menos disponíveis, o conhecimento do DC é de grande utilidade na avaliação do estado cardiovascular de pacientes críticos. Quando não se dispõe da medida do DC, a variação na forma de onda da pressão arterial durante a ventilação mecânica pode indicar a presença de hipovolemia (Figura 31.9). Uma atenção rigorosa para a perda de volume e para as ações do cirurgião durante a laparotomia ajuda a evitar o comprometimento hemodinâmico, permitindo ao anestesista antecipar e tratar os problemas em tempo hábil. Por exemplo, a função cardiovascular é acentuadamente afetada pela perda de sangue ou remoção de grandes volumes de derrame e com a manipulação de grandes massas; a manipulação e a liberação do intestino isquêmico levam à liberação de numerosos mediadores inflamatórios, que causam vasodilatação e, possivelmente, disfunção cardíaca (Figura 31.10). O manejo da dor pós-operatória é importante para o conforto e o resultado de pacientes com doença GI. Os opioides são mantidos na forma de bolus intermitentes por via intravenosa ou intramuscular ou na forma de infusão contínua. As infusões de lidocaína

e/ou de cetamina também são bastante efetivas. A lidocaína causou náuseas e vômitos em cães quando administrada na forma de infusão de alta velocidade,177 porém está associada a resultados melhores em seres humanos após cirurgia abdominal,178,179 e em cães com DVG.289 Em geral, são necessárias doses mais altas de analgésicos nas primeiras 24 h do pós-operatório. Essas doses devem ser diminuídas o mais rápido possível, de modo que a alimentação enteral possa ser instituída e para minimizar a incidência de íleo. As infusões de baixas doses de agonistas dos receptores α2-adrenérgicos em pacientes com alta necessidade de analgésicos ou disforia dos opioides são úteis, porém seus efeitos adversos cardiovasculares devem ser cuidadosamente considerados em cada paciente.

Figura 31.9 O monitoramento de pacientes anestesiados para laparotomia inclui ECG, pressão arterial, oximetria de pulso e capnografia. O monitoramento não invasivo do débito cardíaco (DCNI) é muito útil nos casos críticos. Esse paciente parece estar passando muito bem, com valores normais da pressão arterial, frequência cardíaca, CO2 término-respiratório,

saturação de oxigênio e débito cardíaco. Entretanto, uma variação gradual na onda de pressão sistólica indica a possível presença de hipovolemia.

Figura 31.10 Torção mesentérica em um Pastor-alemão com início agudo de desconforto abdominal e depressão extrema. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Os AINEs são usados com frequência em pacientes humanos, ruminantes e equinos após cirurgia GI, com complicações mínimas.290-293 Todavia, os cães e os gatos são relativamente sensíveis aos efeitos colaterais GI dos AINEs, como ulceração e hemorragia.294-296 Embora possam ser úteis em pacientes saudáveis anestesiados para procedimentos eletivos, como gastropexia, pode ser melhor evitar os AINEs em pacientes com doença GI, comprometimento renal, hipotensão, doença hepática, coagulopatia e outras condições passíveis de serem exacerbadas pela administração de AINE.

■ Megaesôfago O megaesôfago é raro em gatos, porém não é incomum em cães. A causa mais comum observada em gatos é a disautonomia, uma disfunção adquirida dos gânglios autônomos, que leva à disfunção GI. Foi relatada a presença de megaesôfago idiopático congênito em

cães e em alguns gatos. Acredita-se que seja um defeito da inervação sensitiva vagal, na qual não ocorre peristaltismo do esôfago, devido à dilatação causada por um bolus alimentar não detectado.212,297 O megaesôfago adquirido é, com frequência, causado por obstrução mecânica. As causas mais comuns consistem em anomalia do anel vascular, estenose esofágica, hérnia de hiato, tumor, granuloma e corpos estranhos. Com o passar do tempo, a dilatação do esôfago proximal à lesão torna-se irreversível. O megaesôfago idiopático constitui a causa mais comum da forma adquirida em cães adultos, nos quais a perda da motilidade esofágica normal resulta finalmente em dilatação. Alguns casos de megaesôfago adquiridos são secundários ou associados a outras condições patológicas. A neuropatia periférica, a paralisia da laringe, a miastenia gravis, a esofagite grave, o envenenamento por chumbo, a miosite do lúpus e a dilatação gástrica crônica ou recorrente, com ou sem vólvulo, foram associados a um risco aumentado de megaesôfago em um estudo retrospectivo de 44 cães. Nesses animais, o megaesôfago não foi associado a hipotireoidismo.297-300 Os pacientes com megaesôfago podem ser anestesiados para exames complementares ou tratamentos, como endoscopia, eletromiografia, velocidade de condução nervosa, biopsia de músculo e nervo, TC para lesões expansivas, bougienage, remoção de corpo estranho e correção de anomalia do anel vascular. O megaesôfago também pode constituir uma doença concomitante em pacientes anestesiados para procedimentos não relacionados, como odontologia. O RGE, a regurgitação e a aspiração constituem os principais problemas quando se anestesiam pacientes com megaesôfago. O jejum prolongado não é necessário nem aconselhado, visto que a dismotilidade e a dilatação impedem o esvaziamento completo do conteúdo esofágico, e foi observada uma incidência aumentada de RGE com jejum prolongado em cães normais.189,190 Alguns pacientes com doença crônica podem estar magros ou debilitados em consequência de desnutrição, e alguns podem estar desidratados se forem incapazes de manter uma ingestão adequada de líquido. Muitos apresentam episódios repetidos de pneumonia por aspiração e correm maior risco de hipoxemia peroperatória. Esses pacientes devem ser estabilizados antes da anestesia com líquidos intravenosos e tratamento adequado para pneumonia. Um anestesista dedicado é muito importante para pacientes com megaesôfago, visto que há necessidade de manejo da via respiratória e monitoramento constante à procura de vazamento do conteúdo esofágico. A aspiração do conteúdo esofágico deve ser realizada imediatamente após intubação e logo antes da suspensão da anestesia, a fim de reduzir o risco de aspiração. O decúbito esternal e a elevação do pescoço com o nariz direcionado para baixo também podem ajudar a diminuir a incidência. Se houver regurgitação, é necessário baixar imediatamente o nariz e a cabeça para possibilitar a drenagem. Recomenda-se uma pré-oxigenação para pacientes com pneumonia ativa; é necessário proceder a uma contenção cautelosa desses pacientes

para evitar a agitação e o estresse excessivo. Os agentes anestésicos devem ser escolhidos com base no estado do paciente, e a rápida indução intravenosa e intubação são necessárias para estabelecer uma via respiratória protegida o mais rápido possível. Recomenda-se também evitar os fármacos que provocam vômitos, como alguns opioides (p. ex., morfina ou hidromorfona) e agonistas dos receptores α2-adrenérgicos.

■ Dilatação e vólvulo gástricos A síndrome da DVG é uma doença aguda que comporta risco à vida, observada com mais frequência em cães adultos de raça grande ou gigante, particularmente aqueles com conformação torácica profunda. Entretanto, pode ocorrer também em cães de pequena raça e filhotes, e foi até mesmo relatada em gatos com hérnia diafragmática coexistente.299,300 As taxas de mortalidade de 33,3 a 60%,299,301 observadas na década de 1980 e até mesmo antes, melhoraram, porém ainda permanecem altas. Estudos recentes relataram taxas de mortalidade de 10 a 26,8%.289,302-304 A diminuição da mortalidade provavelmente está associada a progressos na terapia clínica, particularmente reanimação hídrica, descompressão do estômago, sempre que possível, e intervenção cirúrgica precoce. A mortalidade está correlacionada com a extensão do dano ao estômago e órgãos circundantes, presença de arritmias cardíacas no pré ou pós-operatório, hipotermia e hipertermia na apresentação, desenvolvimento de insuficiência renal aguda no pósoperatório, hipotensão a qualquer momento durante a hospitalização e duração do início até a apresentação ou cirurgia e intervalo de tempo decorrido entre a apresentação e a cirurgia.302-305 A lesão de reperfusão também foi implicada como fator significativo associado a mortalidade na síndrome de DVG.306 A DVG é sempre uma emergência. O fluxo sanguíneo para o estômago e órgãos adjacentes está comprometido, e ocorre obstrução da veia cava caudal e veia porta, diminuindo acentuadamente o retorno venoso ao coração e provocando choque hipovolêmico grave. A distensão do estômago também causa restrição da ventilação ao interferir na excursão diafragmática. Os sinais clínicos iniciais da DVG consistem em inquietação e ansiedade, seguidas de hipersalivação, vômitos e/ou ânsia de vômito e distensão do abdome. Por fim, observa-se o desenvolvimento de depressão, fraqueza e dispneia se a distensão não for aliviada. Os vômitos, a salivação e o sequestro de íons hidrogênio e cloreto que ocorrem com a obstrução pilórica causam inicialmente alcalose metabólica. Posteriormente, há desenvolvimento de acidose metabólica secundária aos efeitos da isquemia, com aumento na produção de lactato e liberação de mediadores inflamatórios. Além disso, pode-se observar o desenvolvimento de endotoxemia com o dano ao sistema porta. Ocorre lesão de reperfusão quando a isquemia é revertida com descompressão/desrotação gástrica e restauração do volume de líquido.

A hidratação intravenosa e a descompressão gástrica devem ser iniciadas o mais rápido possível. A avaliação laboratorial basal deve incluir volume globular (VG), sólidos totais (ST), eletrólitos, creatinina e estado acidobásico. O perfil da coagulação e o lactato venoso são úteis para avaliar o prognóstico e orientar a terapia; todavia, em geral, não devem adiar a intervenção cirúrgica se o proprietário quiser prosseguir, independentemente dos resultados. A necrose gástrica provavelmente está presente quando mais de um teste hemostático está anormal e quando o nível de lactato está acentuadamente elevado na apresentação e/ou não diminui significativamente com a reanimação hídrica,307-310 indicando um resultado precário.309,310 A radiografia para diferenciar a dilatação da dilatação e vólvulo deve ser adiada até que a reanimação cardiovascular esteja completa ou bem adiantada. A equipe, o equipamento e os suprimentos anestésicos devem estar prontos antes da chegada do paciente com DVG, de modo que a intervenção cirúrgica possa ser iniciada o mais cedo possível. A terapia de emergência padrão tem consistido na administração de doses de choque (80 a 90 mℓ/kg) de solução cristaloide através de cateteres de grande calibre, utilizando as veias cefálica, safena e/ou jugular (Figura 31.11). Entretanto, a implementação de diretrizes de reanimação dirigidas para metas para obter parâmetros clínicos apropriados, em lugar de um volume específico, evita a hipervolemia e o edema tecidual e pode melhorar o resultado.281,282,311,312 Os parâmetros clínicos que devem ser monitorados consistem em frequência cardíaca, pressão arterial, coloração e perfusão das mucosas, oxigenação tecidual e atividade mental. O VG, os ST ou as proteínas totais, os gases sanguíneos e a saturação de oxigênio do sangue venoso devem ser medidos, quando necessário. O uso de soluções cristaloides balanceadas certamente é efetivo; entretanto, obtém-se uma reanimação mais rápida e de maior duração com a adição de pequenos volumes de solução salina hipertônica (SH) a 7,5%, 2 a 4 mℓ/kg durante 15 min, ou coloides, 5 a 10 mℓ/kg durante 30 min. Como alternativa, administra-se uma combinação de coloide e SH, 4 a 6 mℓ/kg. Foi constatado que o uso simultâneo de SH e coloide melhora o estado cardiovascular em casos de DVG tanto experimentais quanto clínicos.313,314 A ausculta torácica, seguida de eletrocardiografia, deve ser realizada logo após a apresentação, visto que as arritmias cardíacas são comuns na DVG e devem ser identificadas e tratadas antes da indução da anestesia. Em geral, são de origem ventricular, mas ocorrem também fibrilação atrial e taquicardia sinusal (Figura 31.12).315 Em alguns casos, pode não haver necessidade de agentes antiarrítmicos, visto que a arritmia tem consequência cardiovascular mínima, ou a correção de hipovolemia, hipoxemia, hipercarbia, estado acidobásico e/ou anormalidades eletrolíticas levam à resolução. O tratamento da taquicardia ventricular pode ser necessário quando as extrassístoles são numerosas ou multifocais, quando a frequência sustentada é muito alta (> 160 bpm),

quando as extrassístoles são muito precoces, visto que pode ocorrer um fenômeno “R sobre T” e sempre quando o estado hemodinâmico é afetado pela arritmia. A lidocaína é administrada lentamente IV, em bolus de 1 a 2 mg/kg, seguido de infusão de 25 a 100 µg/kg/min.316 O tratamento pós-operatório das arritmias cardíacas pode ser necessário. A lidocaína em CRI para arritmias também constitui um adjuvante útil da anestesia, visto que ela diminui as necessidades anestésicas em cães em até 37 a 43%.177,317 Os resultados de um estudo recente que utilizou a lidocaína de modo preemptivo em cães com DVG mostraram um número significativamente menor de casos com arritmias cardíacas, menos comprometimento renal e menor tempo de hospitalização, em comparação com um grupo de controle histórico.289 A lidocaína também demonstrou ter numerosos efeitos antiinflamatórios318-320 e pode ter efeitos pró-cinéticos.178,321-323

Figura 31.11 Um Dogue-alemão com DVG sendo preparado para anestesia e cirurgia. Foram colocados dois cateteres intravenosos, um em cada veia cefálica; as derivações do ECG estão fixadas para monitorar o ritmo cardíaco. Observe a salivação e a aparência deprimida desse cão.

Figura 31.12 Taquicardia ventricular observada no pós-operatório de um cão anestesiado para correção da DVG.

A lavagem gástrica pode ser necessária durante a correção da DVG. As considerações para esse procedimento assemelham-se àquelas da endoscopia GI superior e megaesôfago. O vazamento do conteúdo gástrico é comum, e pode ocorrer deslocamento do tubo endotraqueal. A cabeça deve ser inclinada para baixo para ajudar a direcionar o conteúdo gástrico para longe da faringe. A faringe deve ser examinada, e deve-se remover qualquer líquido ou resíduos que possam ter vazado ao redor da sonda nasogástrica antes da recuperação. Apesar de muita pesquisa direcionada para os efeitos da lesão de isquemia-reperfusão e sua prevenção ao tratamento, poucas terapias foram incluídas na prática clínica. Pode ser útil evitar a hiperoxia, visto que já se observou maior lesão após reperfusão em pacientes mentidos com níveis de PaO2 mais altos do que o normal.324 Foi constatado que a inibição da formação de radicais de oxigênio com antioxidantes e agentes quelantes do ferro, como a desferroxamina, reduziu a lesão de reperfusão em cães com DVG.306,325

■ Hemoabdome As causas de hemorragia na cavidade peritoneal podem ser traumáticas ou não traumáticas. O trauma deve-se, com mais frequência, a lesões por impacto com veículos motorizados ou objetos penetrantes. Os órgãos abdominais, a vascularização e/ou a parede do abdome podem ser afetados. Os órgãos parenquimatosos maiores, com o fígado e o baço, são frequentemente acometidos. As lesões não traumáticas incluem hematoma ou neoplasia de órgãos abdominais, deslocamento ou torção de órgãos e anormalidades da coagulação (p. ex., toxicidades de rodenticidas). A neoplasia é muito comum, particularmente em cães. Foram relatadas lesões expansivas do fígado, do baço, do mesentério e das glândulas

adrenais, sendo o baço o mais comumente afetado. O hemangiossarcoma é a neoplasia identificada com mais frequência tento em cães quanto em gatos, que habitualmente afetam o baço ou o fígado. O prognóstico a longo prazo é sombrio,326-328 porém uma alta porcentagem de cães com hemoperitônio sobrevive à anestesia e à cirurgia e recebe alta. Uma investigação retrospectiva de hemoperitônio atraumático espontâneo em 65 gatos verificou que 46% eram portadores de neoplasia abdominal e 54% tinham doença não neoplásica; a necrose hepática e a coagulopatia foram responsáveis por quase metade destes últimos casos. Apenas oito dos gatos (12,3%) sobreviveram até a alta.329 A hemorragia no abdome pode ser gradual ou súbita e pode rapidamente comportar risco à vida para o paciente. Os sinais clínicos assemelham-se à perda de sangue de qualquer causa, com sinais progressivos de choque hipovolêmico – taquicardia crescente, mucosas pálidas, pulsos fracos, atividade mental diminuída etc. A hipotermia é observada em cães e é comum em gatos na apresentação. Algumas vezes, observa-se também a ocorrência de distensão abdominal, onda de líquido palpável, dor abdominal e coloração subcutânea no umbigo e escroto. A radiografia pode revelar perda do detalhe abdominal, com aparência de “vidro moído”. A ultrassonografia revela a presença de líquido livre e pode demonstrar massa ou doença metastática. Pode ser necessária uma lavagem peritoneal diagnóstica com menores volumes de perda sanguínea ou quando não há disponibilidade de ultrassonografia.326,328 As considerações anestésicas para pacientes com hemoabdome consistem em comprometimento respiratório potencial associado a grandes massas ou volumes de líquido exercendo pressão sobre o diafragma, hipovolemia, anemia e qualquer disfunção orgânica que possa estar presente. De modo ideal, o paciente é estabilizado antes da cirurgia com líquidos intravenosos ou transfusão sanguínea. Entretanto, alguns preferem repor as perdas dos eritrócitos após interrupção da fonte de hemorragia se a velocidade da perda for grande. Não há necessidade de corrigir todo o déficit eritrocitário no pré-operatório; entretanto, o paciente deve ser tratado na tentativa de obter uma normovolemia e um VG ≤ 30% em cães ou 20% em gatos, visto que o aporte de oxigênio é habitualmente adequado acima desses níveis. Um VG mais baixo é frequentemente tolerado durante a anestesia; todavia, em geral, está associado a perda de sangue lenta ou crônica, e não a hemorragia aguda. O volume de perda sanguínea prévia ou atual precisa ser estimado e reposto antes que a hipovolemia afete gravemente o débito cardíaco. Com frequência, é difícil estimar a perda, e as técnicas empregadas incluem pesagem das esponjas e toalhas que absorveram sangue, monitoramento do volume de líquido de lavagem usado e cálculo do volume de sangue líquido coletados em garrafas de coleta de aspiração. Os cristaloides são usados para reposição do volume, pressupondo que tenha

permanecido um número adequado de eritrócitos para manter o aporte de oxigênio. O volume específico necessário não é conhecido e depende da velocidade de perda; entretanto, são recomendados vários múltiplos do volume perdido (p. ex., 3 vezes a perda em caso de hemorragia aguda até 8 vezes para uma perda gradual que afete o volume intracelular). Quando o volume intracelular é afetado, a reposição pode ser realizada mais lentamente do que quando há hemorragia aguda. Os coloides constituem uma reposição racional para perda de plasma e são administrados em uma razão mais próxima de 1:1 se o VG e os níveis de proteína estiverem adequados. Perdas acima de 20 a 30% do volume sanguíneo total do paciente devem ser repostas com sangue total, plasma ou coloide e concentrados de hemácias ou substitutos de hemácias, como Oxuglobin®, para assegurar um aporte adequado de oxigênio. A autotransfusão pode ser útil em alguns casos, porém não é recomendada na presença de peritonite séptica, ruptura urinária e lesões neoplásicas. Os ST ou níveis totais de proteínas devem ser mantidos em mais de 4 a 4,5 g/ℓ, se possível. As medidas seriadas do VG e ST são úteis para determinar a eficácia da terapia e a velocidade da perda sanguínea, tendo em mente que haverá hemodiluição, e que os coloides irão interferir nas leituras do refratômetro. Com frequência, a resposta à restauração do volume e ao aumento da capacidade de transporte do oxigênio (p. ex., normalização da frequência cardíaca e da pressão arterial) constituem diretrizes mais úteis para a hidratação durante a anestesia. O nível de lactato constitui um indicador útil de aporte de oxigênio aos tecidos, visto que aumenta na presença de hipovolemia grave e diminui com a melhora do volume, da função cardiovascular e da perfusão.288 Embora uma rápida reposição de volume seja algumas vezes necessária em pacientes extremamente hipovolêmicos, grandes volumes podem causar hipocoagulabilidade (p. ex., coagulopatia dilucional). A fluidoterapia intravenosa direcionada para a meta utiliza bolus de menor volume, com reavaliação intermitente do estado cardiovascular. Os parâmetros finais de reanimação recomendados consistem na obtenção de pressão arterial e frequência cardíaca aceitáveis e melhora dos sinais clínicos.327 A rápida evacuação do sangue e a manipulação dos órgãos ou de grandes massas abdominais podem causar instabilidade hemodinâmica significativa (Figura 31.13). O sequestro de parte do volume sanguíneo nos tecidos exteriorizados e/ou a redistribuição do volume sanguíneo afetam o débito cardíaco e a perfusão periférica. Em seres humanos anestesiados para cirurgia abdominal, foi relatada uma síndrome de taquicardia, hipotensão e hiperemia cutânea, denominada “síndrome de tração mesentérica.203,330 Essa síndrome não foi descrita ou talvez não tenha sido investigada em animais, porém acredita-se que a liberação de prostaciclina, histamina e outras substâncias vasoativas provoque as flutuações do estado hemodinâmico quando uma tensão é aplicada sobre a vascularização mesentérica.

As arritmias cardíacas são comuns na presença de massas esplênicas e outros tipos de neoplasias funcionais (p. ex., feocromocitoma). As contrações prematuras ventriculares e as taquicardias são observadas com mais frequência em cães. A causa é incerta, e, com frequência, é difícil eliminar essas arritmias até que a massa tenha sido removida. Outras causas comuns de arritmia com anestesia consistem em fatores predisponentes, como hipovolemia, hipotensão, hipoxemia, hipercarbia e anormalidades eletrolíticas.

Figura 31.13 A manipulação de grandes massas abdominais pode afetar acentuadamente a estabilidade cardiovascular sob anestesia. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte)

■ Neoplasia intestinal O linfoma, o carcinoma, o leiomioma e os tumores estromais gastrintestinais (GIST) são tipos comuns de neoplasias encontradas no trato GI de cães e gatos. O linfoma é a

neoplasia intestinal mais comum no gato. Em geral, os gatos com linfoma GI são negativos para o vírus da leucemia felina e o vírus da imunodeficiência felina, diferentemente de outros tipos de linfoma. O linfoma GI também é comum em cães, e a maioria origina-se de células T. Foi relatada uma predisposição ao carcinoma intestinal em Pastores-alemães e gatos Siameses. A neoplasia esofágica é rara em pequenos animais. Observa-se a ocorrência de carcinoma de células escamosas (CEE), fibrossarcoma, osteossarcoma e leiomioma. Quando ocorre em gatos, existe maior probabilidade de CEE. Foi relatada a infecção por Spirocera lupi como causa de fibrossarcoma, osteossarcoma e outros sarcomas indiferenciados. O melanoma é observado no esôfago e é mais comum em raças caninas com mucosas pretas. Tumores neuroendócrinos (ou carcinoides) raros originam-se das células enterocromafins encontradas na mucosa do trato GI. Anteriormente denominados APUDomas (captação e descarboxilação de precursores amínicos), os carcinoides são raros em animais. A síndrome carcinoide ocorre em certas ocasiões em seres humanos; um relato de taquicardia ventricular e melena em um Boxer foi associado a carcinoide intestinal.331 A serotonina, a histamina, a substância P, várias cininas, catecolaminas e prostaglandinas são apenas algumas das substâncias químicas secretadas pelos tumores carcinoides. Em geral, essas substâncias são transportadas até o fígado e metabolizadas; entretanto, se tiverem acesso à circulação ou ao lúmen do intestino, ocorrem sinais clínicos de instabilidade hemodinâmica e disfunção pulmonar e GI. Podem ocorrer arritmias, hipotensão ou hipertensão, vasodilatação, broncospasmo, diarreia e hipersecreção de líquido intestinal. A anestesia para esses tumores deve evitar o uso de fármacos que estimulem a liberação de histamina, como morfina, atracúrio e succinilcolina. Em seres humanos, a dopamina, a efedrina, a epinefrina, a norepinefrina, a histamina e o isoproterenol foram associados a episódios de carcinoide. O pré-tratamento com anti-histamínicos e antagonistas da serotonina pode ser benéfico. Receptores de somatostatina são encontrados em alguns tumores carcinoides; a octreotida, um análogo da somatostatina, é usada para diminuir a secreção de serotonina e outras substâncias. Isso tem minimizado os sinais clínicos em seres humanos e permitiu o uso de simpaticomiméticos sob anestesia.203,332 Em geral, os sinais clínicos da neoplasia GI refletem a área acometida; entretanto, são também observadas síndromes paraneoplásicas com alguns tumores. O mal-estar, a perda de peso e a anorexia podem constituir os únicos sinais. Os vômitos, a diarreia e a melena também são comuns nas lesões gástricas e do intestino delgado. A regurgitação é frequente na presença de doença esofágica. Ocorrem tenesmo, hematoquezia e constipação intestinal com lesões do reto. Nas neoplasias GI, ocorrem também dor, hemorragia, obstrução, perfuração e intussuscepção abdominais.333-337

As anormalidades laboratoriais mais comuns observadas nas neoplasias do trato GI consistem em anemia, hipoproteinemia e aumento da fosfatase alcalina e da ureia. A anemia é frequentemente moderada, microcítica e hipocrômica, devido à perda crônica de sangue, mas também pode ser normocítica e normocrômica. A enteropatia perdedora de proteína é comum e provoca hipoproteinemia, devido à hipoalbuminemia. O nível de ureia aumenta na perda sanguínea intraluminal crônica, devido à reciclagem da proteína.338 A palpação abdominal pode sugerir a presença de neoplasia. As lesões são identificadas com mais frequência por meio de radiografia e ultrassonografia. Aspirados e/ou biopsias necessários para o diagnóstico definitivo são frequentemente obtidos em pacientes conscientes com orientação do ultrassom; todavia, endoscopia e/ou laparotomia sob anestesia geral são algumas vezes necessárias. As síndromes paraneoplásicas (SPNs) são causadas pela secreção de substâncias que afetam tecidos distantes do tumor primário. As possíveis síndromes com neoplasia GI são numerosas, porém nem todos os pacientes apresentam sinais de SPN. A hipercalcemia da neoplasia maligna ocorre no linfoma, é comum no adenocarcinoma de glândulas apócrinas, porém é menos frequente no adenocarcinoma GI. A secreção de PTH ou de um peptídio relacionado com PTH provoca mobilização do cálcio do osso, resultando em nível sérico aumentado de cálcio e, por fim, mineralização dos tecidos, particularmente do rim. A hipoglicemia com leiomioma/leiomiossarcoma e linfoma pode resultar da secreção de insulina; todavia, com frequência, deve-se ao uso excessivo de glicose pelo tumor e à interferência na gliconeogênese e na glicogenólise. Observa-se a ocorrência de trombocitopenia e/ou coagulopatia no hemangiossarcoma, linfoma e tumores de mastócitos. A liberação de histamina dos tumores de mastócitos e gastrinomas pode levar a ulceração e hemorragia gástricas. A liberação de histamina também pode ocorrer sob anestesia, causando vasodilatação e hipotensão. A osteopatia hipertrófica é observada em tumores esofágicos, e acredita-se que seja causada pelo aumento do fluxo sanguíneo periosteal.331 O manejo anestésico de pacientes com neoplasia GI assemelha-se àquele descrito para a laparotomia, com atenção para a hipoproteinemia e a terapia das síndromes paraneoplásicas. O plasma e/ou coloides são úteis quando o nível de proteína total é de < 4,5 mg/dℓ ou a albumina é de < 2,0 mg/dℓ. A infusão de albumina humana tem sido usada, porém foram observados efeitos colaterais graves, incluindo morte, em alguns cães.339-343 A hipercalcemia pode causar tremores ou fraqueza musculares e arritmias. A correção da hipercalcemia em animais que apresentam sinais clínicos provavelmente é benéfica antes da anestesia; todavia, a correção habitualmente não é necessária em animais assintomáticos com hipercalcemia mínima. A terapia para diminuir os níveis de cálcio de modo relativamente rápido antes da cirurgia consiste em diluição por meio de líquidos

intravenosos utilizando cloreto de sódio a 0,9%, que também estimula a excreção renal, diurese com furosemida e calcitonina para inibir a atividade osteoclástica no osso. Além disso, podem-se administrar glicocorticoides; os bifosfonatos são usados no manejo a longo prazo (ver seção anterior, Hiperparatireoidismo).124 A glicose deve ser monitorada em pacientes com GIST, e deve-se administrar glicose, quando necessário, para manter o nível sérico de glicose acima de 80 mg/dℓ. Os pacientes com tumores de mastócitos devem ser pré-medicados com antihistamínicos; recomenda-se evitar o uso de fármacos que estimulem a liberação de histamina, como morfina e meperidina. A hemorragia é comum em pacientes com neoplasia, particularmente quando os tumores são volumosos, e o manejo é descrito anteriormente, na seção Hemoabdome.

■ Peritonite séptica Vários autores fizeram uma revisão da peritonite séptica em cães,344,345 em gatos346-349 ou em ambos.350-355 A peritonite séptica é classificada em localizada ou difusa e primária ou secundária, dependendo da extensão da doença e da fonte de infecção, respectivamente. A peritonite secundária é mais comum em cães, devido à perfuração ou ao vazamento do trato GI. As causas de peritonite séptica secundária incluem corpos estranhos, úlceras perfurantes, ruptura devido a obstrução intestinal, lesões isquêmicas, abscesso ou infecção de órgãos abdominais, lesões neoplásicas, traumatismo causado por impacto com veículo motorizado e feridas de mordidas ou outras lesões penetrantes. As causas iatrogênicas incluem deiscência de incisões cirúrgicas, punção inadvertida do intestino, vazamento ao redor de sondas de alimentação e contaminação do espaço peritoneal na cirurgia. Na peritonite séptica primária, não é possível identificar uma fonte de infecção intraabdominal. Esse tipo é mais comum em gatos.347,349,351,355,356 Embora seja ligeiramente variável, a taxa de mortalidade relatada em pequenos animais com peritonite séptica continua elevada (31 a 64%), apesar dos progressos no reconhecimento e na terapia.304,345,348,349 Os pacientes com peritonite secundária tratados cirurgicamente apresentam taxas de sobrevida mais altas do que aqueles que recebem tratamento clínico ou aqueles com peritonite primária.348,353 A peritonite preexistente, os baixos níveis de albumina e proteína e a hipotensão intraoperatória também constituem fatores de risco para a peritonite séptica pós-operatória e a morte.345 Os sinais clínicos mais comuns em cães e gatos consistem em anorexia, letargia e vômitos. Observa-se também a ocorrência de diarreia e dor abdominal em cães; a dor é vaga e inaparente nos gatos. Na maioria dos casos, os sinais de sepse estão relacionados com a gravidade da contaminação abdominal. Diferentemente dos cães, observa-se frequentemente a presença de bradicardia e hipotermia em gatos com sepse.346,347,349 O

diagnóstico é sugerido pelo histórico e exame físico. As radiografias e a ultrassonografia do abdome podem revelar uma lesão específica, com ou sem derrame em casos com peritonite secundária.357 O pneumoperitônio é diagnóstico de vazamento intestinal ou infecção por bactérias formadoras de gases.350,352,356,357 Um infiltrado séptico observado na citologia do derrame peritoneal ou do líquido da lavagem confirma o diagnóstico. Com frequência, o lactato está aumentado no soro e/ou no líquido abdominal. A presença de lactato peritoneal e a comparação do nível sérico de lactato com o lactato peritoneal foram diagnósticos em ≥ 90% dos cães, porém não foram acurados nos gatos.358 Embora os fatores identificados com o prognóstico possam variar, a hipotensão, a hipoalbuminemia e a hiperlactatemia estão mais consistentemente associadas à mortalidade.334,347,349,353-355,358,359 Os pacientes com peritonite representam alguns dos casos de maior desafio para a anestesia. Embora alguns pacientes possam ter diagnóstico confirmado de peritonite antes da laparotomia, alguns procedimentos são diagnósticos, além de terapêuticos. Deve-se efetuar uma avaliação completa do paciente para estimar a gravidade do comprometimento cardiovascular, visto que, com frequência, esses pacientes são muito sensíveis aos efeitos depressores dos agentes anestésicos e provavelmente apresentam a síndrome de resposta inflamatória sistêmica (SRIS). A SRIS pode ocorrer com qualquer insulto grave, incluindo traumatismo, hemorragia e infecção. A sepse é a presença de SRIS em resposta à infecção, mais frequentemente bacteriana, embora também possam ocorrer infecções fúngicas e por protozoários. A sepse pode evoluir para sepse grave com disfunção orgânica, perfusão deficiente e hipotensão; a síndrome de disfunção de múltiplos órgãos (MODS) também é observada em pacientes gravemente afetados. Ocorre choque séptico quando a hipotensão persiste após reanimação hídrica adequada. A fisiopatologia da sepse e do choque séptico é complexa, envolvendo numerosas vias na tentativa do organismo de restaurar o aporte de oxigênio aos tecidos vitais. Em resumo, a sepse começa quando microrganismos e/ou suas toxinas têm acesso à circulação. A explicação clássica envolve a liberação de endotoxina pelos microrganismos gramnegativos e de exotoxinas ou peptidoglicanos pelos microrganismos gram-positivos. A ativação dos leucócitos resulta em liberação do fator de necrose tumoral α, interleucinas 1, 6 e 8 e numerosos outros mediadores pró-inflamatórios, que incluem leucotrienos e prostaglandinas, o potente vasodilatador óxido nítrico, radicais de oxigênio, fator ativador das plaquetas e outros. O dano ao endotélio microvascular provoca perda de controle da permeabilidade, e observa-se também o desenvolvimento de coagulopatia. Para manter o equilíbrio homeostático, o corpo gera uma resposta anti-inflamatória. Inicialmente, observa-se um estágio “hiperdinâmico” (em cães) com aumento do débito cardíaco, taquicardia, vasodilatação (mucosas de cor vermelho-brilhante) e redução do enchimento capilar. Quando os efeitos pró-inflamatórios sobrepujam a resposta anti-inflamatória,

ocorre colapso cardiovascular com vasodilatação e disfunção miocárdica contínuas, hipoperfusão, diminuição do enchimento capilar, mucosas azuladas ou pálidas, obnubilação e hipotermia. O resultado final consiste em choque séptico e disfunção de múltiplos órgãos.360-363 O TGI desempenha um importante papel na geração da SRIS e da sepse, mesmo quando a serosa intestinal está intacta, e a fonte primária está localizada em outra área. A inflamação causa lesão da função de barreira do revestimento mucoso GI, possibilitando a absorção de fatores não microbianos dentro do sistema linfático, que finalmente drena para o sistema venoso por meio do ducto torácico. A SRIS continuada é intensificada, e pode haver desenvolvimento de disfunção/angústia respiratórias e falência de múltiplos órgãos por essa via. Acredita-se também que ocorra translocação de bactérias e seus produtos através dos linfáticos, e não do sistema porta, porém isso não é necessário para o desenvolvimento da SRIS e da MODS.364,365 A identificação precoce de SRIS/sepse é vital para obter um resultado positivo. A SRIS é um diagnóstico clínico, porém os sinais nem sempre são evidentes nos animais, particularmente nos gatos. Nos seres humanos, as anormalidades associadas à SRIS consistem em taquicardia, taquipneia, leucocitose ou leucopenia e hiper ou hipotermia. As diretrizes sugeridas para a identificação da SRIS em cães e gatos incluem pelo menos dois dos parâmetros da Tabela 31.9. Antes da anestesia, os pacientes com SRIS/sepse devem ser estabilizados por meio de reanimação hídrica vigorosa e uso de vasopressores e/ou agentes inotrópicos, quando necessário, para corrigir a hipotensão, melhorar a perfusão, manter o aporte de oxigênio aos tecidos e impedir a disfunção orgânica. A terapia guiada por metas com parâmetros clínicos de reanimação hídrica demonstrou ser mais bem-sucedida do que doses de choque específicas ou volumes de líquido.366-370 O uso das diretrizes da Campanha de Sobrevivência à Sepse (Surviving Sepse Campaign, SSC) em seres humanos melhorou significativamente a mortalidade. Uma atualização recente das diretrizes humanas foi divulgada em 2012;281,282 as diretrizes veterinárias são semelhantes.356,368,371,372 De acordo com as diretrizes das SSC, além da melhora dos sinais clínicos, as metas da terapia de reanimação devem ser alcançadas em 6 h após a admissão do paciente (Tabela 31.10). Recomenda-se a coleta de amostras para hemoculturas antes da administração de antibióticos de amplo espectro, que idealmente devem ser administrados na primeira hora. Os esforços para identificar a fonte infecciosa devem ser iniciados o mais cedo possível. O nível de lactato deve ser determinado na admissão e acompanhado de modo intermitente para avaliar a resposta à terapia. Recomenda-se também a determinação da SCVO2; entretanto, isso requer o cateterismo da artéria pulmonar, porém a veia cava cranial é uma alternativa aceitável.373 O lactato pode substituir a SCVO2 como estimativa do aporte de

oxigênio quando não houver disponibilidade de cateterismo central. Tabela 31.9 Parâmetros para SRIS/sepse no cão e no gato.366,367,371 Parâmetro

Cão

Gato

Frequência cardíaca (batimentos/min)

> 120

< 140 ou > 225

Frequência respiratória (respirações/min)

> 40 ou PaCO2 < 30 mmHg

> 40

Temperatura (°C)

< 38 ou > 40

< 37,8 ou > 40

Leucograma, leucócitos/µℓ

> 18.000 ou < 5.000

> 19.000 ou < 5.000

Tabela 31.10 Metas da terapia para a sepse.280-282,370,373 Pressão arterial média (PAM)

> 65 mmHg

Saturação de oxigênio venoso central (ScvO2)

> 70%

Pressão venosa central (PVC)

8 a 12 mmHg

Débito urinário

> 0,5 mℓ/kg/h

Uma metanálise recente do uso de hetamido (hidroxetilamido) em pacientes humanos sépticos forneceu evidências de lesão renal aguda (LRA) e maior mortalidade.374,375 O uso de cloreto de sódio a 0,9% pode causar acidose metabólica hiperclorêmica,376 de modo que uma solução eletrolítica cristaloide balanceada constitui a primeira escolha para a fluidoterapia em seres humanos. Recomenda-se a infusão de albumina na presença de hipoalbuminemia/hipoproteinemia, embora o uso de albumina humana em cães não seja isento de risco significativo, incluindo morte.339,343 São administrados vasopressores quando os pacientes permanecem hipotensos após reanimação hídrica. A norepinefrina constitui o fármaco de primeira escolha nos seres humanos, seguida da epinefrina e, em seguida, vasopressina. A dopamina e a fenilefrina não são recomendadas em seres humanos, porém não foi observada nenhuma diferença com o uso de vários vasopressores em animais.368,371 Os vasopressores são vasoconstritores muito potentes; devem ser administrados na menor dose efetiva para evitar a isquemia e mascaramento da hipovolemia persistente. Os agentes inotrópicos são úteis quando houver suspeita ou identificação de disfunção miocárdica; com frequência, são necessários durante a anestesia para compensar os efeitos depressores dos agentes inalatórios. Ocorre

insuficiência adrenal relativa na sepse.377 Como os corticosteroides são necessários para uma resposta adequada à terapia com vasopressores, recomenda-se a administração de doses fisiológicas a animais e seres humanos que ainda estejam hipotensos após a reposição de volume e terapia com vasopressores.281,282,377-379 Em alguns pacientes sépticos, observa-se também a presença de hiperglicemia ou hipoglicemia. Recomenda-se a manutenção de níveis normais de glicose em seres humanos. A escolha dos anestésicos e o manejo para pacientes com peritonite séptica assemelham-se àqueles descritos anteriormente para a laparotomia exploradora e a DVG. A necessidade posológica é acentuadamente reduzida em pacientes sépticos, e são utilizadas associações de baixos níveis de inalatório com agentes intravenosos e medicamentos adjuvantes (p. ex., lidocaína), com titulação para o efeito nas doses efetivas mais baixas.380 Uma atenção rigorosa para os sinais clínicos e as medidas de oxigenação e perfusão é sempre necessária nos pacientes anestesiados, porém o manejo anestésico pode afetar diretamente o resultado nos pacientes sépticos. As sugestões para monitoramento também foram descritas anteriormente; a determinação do débito cardíaco, quando disponível, é altamente recomendada em pacientes sépticos. Métodos não invasivos, que utilizam os monitores NICO ou LIDCO, demonstraram ser confiáveis em cães de maior porte e podem ajudar acentuadamente na avaliação da terapia nesses pacientes muito doentes. No pós-operatório, é provavelmente necessário continuar o suporte cardiovascular, de modo que os monitores devem ser mantidos no local. A oxigenação deve ser avaliada rigorosamente na recuperação (em particular quando o paciente passa para o ar ambiente), a fim de identificar os pacientes que necessitam de suporte com oxigênio. Os gases sanguíneos, os eletrólitos, a glicose e o lactato também devem ser determinados para reavaliar o estado do paciente e ajudar a determinar a necessidade de terapia de suporte no pós-operatório.

■ Remoção de corpo estranho e outros procedimentos abdominais As considerações anestésicas para obstrução intestinal, remoção de massas abdominais ou corpos estranhos, biopsia de lesões expansivas e/ou intestino e colectomia assemelham-se àquelas para a laparotomia exploradora geral discutidas anteriormente. Com mais frequência, a hemorragia está associada à remoção de grandes massas abdominais, conforme já descrito; entretanto, pode ocorrer com dissecção de aderências ou tecido fibroso contido em lesões intestinais. A remoção de corpos estranhos e outras lesões do intestino delgado ou do intestino grosso pode ser direta, porém perfuração e vazamento GI constituem um problema. O procedimento pode ser de longa duração, visto que pode haver necessidade de dissecção meticulosa das lesões e ressecção e anastomose do intestino. Os

pacientes com vazamento prévio do conteúdo intestinal ou bile irão apresentar peritonite e também podem ter sepse.

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32 Fisiologia, Fisiopatologia e Manejo Anestésico de Pacientes com Doença Renal

33 Considerações Anestésicas para a Terapia Renal Substitutiva 34 Considerações Anestésicas Durante a Prenhez e no Recém-nascido

Introdução Anatomia e fisiologia normais Anatomia do sistema urinário Função fisiológica Provas e monitoramento da função renal Caninos e felinos Equinos Ruminantes Lesão renal aguda/insuficiência renal aguda Etiologia e patogenia Manifestações clínicas e diagnóstico Doença renal crônica Etiologia e patogenia Manifestações clínicas e diagnóstico Estadiamento da doença renal crônica Outros diagnósticos e tratamentos Agentes anestésicos e doença renal Manejo anestésico de pacientes com doença renal Tratamentos adjuvantes para pacientes com doença renal Manejo anestésico de pacientes com obstrução uretral Manejo anestésico de pacientes com ruptura da bexiga urinária e uroabdome Oligúria e lesão renal aguda pós-anestésicas

Referências bibiográficas

Introdução A arte e a ciência da medicina veterinária continuam avançando a passos largos e, em consequência dos progressos nas terapias que prolongam a vida, os médicos estarão se deparando com números cada vez maiores de pacientes idosos e pacientes com várias doenças que irão necessitar de cuidados continuados. O rim é um órgão comumente associado à doença [i. e., doença renal crônica (DRC)] em pacientes geriátricos. Além disso, pacientes com doenças agudas são tratados mais intensivamente do que outrora, e o que se espera é que os médicos sejam mais versados em técnicas atualizadas para a prática de uma medicina de qualidade. As doenças renais em animais apresentam diversas prevalências de acordo com a espécie, sendo os pacientes felinos representados em maior número. De fato, até 20% dos gatos serão afetados com DRC durante a sua vida, e, em gatos com menos de 15 anos de idade, 31% apresentam evidências de doença renal.1 Os pacientes equinos e ruminantes têm uma prevalência global muito menor de doença renal do que os gatos e, portanto, serão discutidos com menos detalhes neste capítulo. Embora a prevalência total de doença renal em cães seja menor que a dos gatos, a idade avançada também desempenha um papel. Entre cães com DRC azotêmica, 45% têm mais de 10 anos de idade.2 À semelhança dos gatos e dos cães, a prevalência de DRC em equinos aumenta com a idade. Cavalos com mais de 15 anos de idade apresentam uma prevalência de 0,23%, que aumenta para 0,51% em garanhões com mais de 15 anos de idade.3 Os veterinários certamente irão anestesiar animais com doenças renais no decurso regular de sua prática diária. Por conseguinte, é fundamental que o veterinário que administra anestesia tenha uma compreensão de fisiologia e fisiopatologia renais e conheça os efeitos dos sedativos, analgésicos e anestésicos sobre o rim.

Anatomia e fisiologia normais Um panorama detalhado e completo da anatomia e fisiologia do sistema renal está além dos objetivos deste capítulo, de modo que o leitor deve consultar livros de anatomia e fisiologia médica para descrições mais detalhadas.4-6

■ Anatomia do sistema urinário Em sua anatomia macroscópica, o sistema urinário pode ser dividido nos rins, ureteres, bexiga e uretra. O rim pode ser ainda subdividido em córtex, medula e pelve renal. A pelve

renal consiste, essencialmente, na porção expandida proximal dos ureteres, que transportam a urina dos rins para a bexiga urinária. Entre as diferentes espécies, são observadas várias diferenças anatômicas nos rins. Os cães, os gatos, os equinos e os pequenos ruminantes possuem rins unilobares, que contêm uma crista renal ou reservatório na pelve renal que coleta a urina e a libera na parte proximal da uretra. Além disso, estruturas semelhantes a glândulas na parede da pelve renal do cavalo secretam uma substância mucosa, que é responsável pela natureza turva e espumosa da urina normal do cavalo. Os suínos e bovinos têm rins multilobares, que contêm papilas renais (extensões medulares ou pirâmides) que deságuam em cálices os quais, em seguida, desembocam na pelve renal. O formato macroscópico do rim é bastante semelhante, visto que a maioria das espécies apresenta rins de formato clássico com superfície lisa e dois polos. As exceções são o rim direito do cavalo, que tende a ser cordiforme, e os rins lobulados das espécies bovinas, devido à fusão incompleta dos lobos renais. Os ureteres são tubos revestidos de músculo liso que transportam a urina dos rins até a bexiga. A bexiga urinária pode ser anatomicamente dividida em corpo e colo da bexiga ou região do trígono. O corpo da bexiga consiste em uma parede muscular distensível de três camadas, que pode acomodar a urina que chega para armazenamento e eliminação posterior. Isso permite uma acentuada variação no formato, tamanho e posição da bexiga na pelve e no abdome. A uretra é um tubo muscular que conecta a bexiga aos órgãos genitais, possibilitando o trânsito da urina da bexiga até o ambiente externo. Existem variações anatômicas da uretra, com base no gênero e na espécie. No nível histológico, o rim pode ser anatomicamente descrito pela sua unidade funcional, o néfron (Figura 32.1). Existem dois tipos de néfrons, os corticais e os justamedulares, com base na sua localização no córtex e na medula. O néfron é composto de um corpúsculo renal, constituído por um glomérulo e cápsula de Bowman, e do túbulo renal, constituído pelo túbulo contorcido proximal, alça de Henle, túbulo contorcido distal e ducto coletor.

Figura 32.1 Anatomia e função fisiológica de cada porção do néfron. Fonte: DiBartola SP. Applied renal physiology. In: DiBartola SP, ed. Fluid, Electrolyte, and Acid-Base Disorders in Small Animal Practice, 3rd edn. St. Louis, MO: Saunders Elsevier, 2006; 26-44. Reproduzida, com autorização, de Elsevier.

■ Função fisiológica Fisiologicamente, os rins desempenham um importante papel na regulação hidreletrolítica e acidobásica, bem como na remoção de produtos de degradação e secreção de hormônios. As principais funções dos rins consistem em filtração, reabsorção e secreção. Para realizar essas funções, os rins recebem cerca de 25% do débito cardíaco por meio das artérias renais, que se ramificam diretamente a partir da aorta caudal. Essa porcentagem elevada do débito cardíaco é necessária para facilitar a filtração e pelo fato de o rim ter uma alta atividade metabólica (i. e., apresenta uma taxa de consumo muito alta de oxigênio e substratos). Até mesmo a isquemia renal a curto prazo pode levar a lesão e insuficiência renais agudas. O fluxo sanguíneo renal (FSR) é regulado por controle extrínseco nervoso e hormonal e por autorregulação intrínseca. A vascularização renal é altamente inervada por

fibras constritoras simpáticas, que se originam nos segmentos da medula espinal entre T4 e L1. Os rins carecem de fibras vasodilatadoras simpáticas e de inervação parassimpática. Os receptores de dopamina na rede vascular e nos túbulos renais ajudam a regular a vasodilatação e o fluxo sanguíneo. Existem dois tipos conhecidos de receptores de dopamina, DA-1 e DA-2. Ambos os receptores foram identificados em cães, ratos, coelhos e outros animais. Acreditava-se que os gatos não tivessem receptores de dopamina renais; entretanto, em 2003, foi identificado um receptor semelhante a DA-1, que é considerado diferente dos receptores encontrados em ratos, cães ou seres humanos.7 A autorregulação intrínseca do FSR é demonstrada por um fluxo constante quando a pressão arterial média varia de 80 a 180 mmHg. Quando a pressão arterial média encontra-se nessa faixa, o rim é capaz de controlar o fluxo sanguíneo por meio de alteração da resistência nas arteríolas aferentes glomerulares. Embora não se conheça o mecanismo exato envolvido na autorregulação renal, o fenômeno protege os capilares glomerulares durante a hipertensão e preserva a função renal durante a hipotensão. Além da autorregulação renal, forças extrínsecas (p. ex., neurais, hormonais e farmacológicas) e intrínsecas (p. ex., doença renal) podem causar alterações do FSR. As catecolaminas constituem os principais reguladores hormonais do FSR. A epinefrina e a norepinefrina causam alterações do FSR que dependem da dose. As doses baixas elevam a pressão arterial e aumentam o FSR por meio de um aumento do débito cardíaco, enquanto doses mais altas provocam uma redução do FSR por meio de aumento da resistência vascular. O sistema renina-angiotensinaaldosterona também representa um importante regulador do FSR (ver adiante). Além disso, as prostaglandinas desempenham um importante papel na regulação do FSR. As prostaglandinas (PG) E2 e I2 (prostaciclina) produzem vasodilatação no rim. A geração de PGE2 e PGI1 ocorre por meio da suprarregulação das enzimas ciclo-oxigenases; em particular, a enzima ciclo-oxigenase (COX-2) desempenha um papel altamente constitutivo e protetor. A enzima COX-2 é encontrada principalmente na mácula densa, mas também pode estar em outras áreas do córtex e da medula. Durante estados de baixo fluxo sanguíneo ou hipotensão, a PG derivada da COX-2 promove natriurese, liberação de renina e vasodilatação das arteríolas aferentes para preservar o FSR. Embora os rins recebam uma alta porcentagem do débito cardíaco, o fluxo sanguíneo não exibe uma distribuição uniforme pelos rins. O córtex renal recebe a maior parte do sangue (90 a 95%), de modo que a medula apresenta hipoperfusão e hipoxia relativas. Essa estratégia de fluxo sanguíneo dicotômico aumenta ao máximo as atividades dependentes do fluxo nas áreas do rim especializadas na filtração de alta eficiência. A filtração ocorre no glomérulo, que consiste em uma rede de capilares especializados encapsulados em uma estrutura epitelial, denominada cápsula de Bowman. A pressão hidrostática impulsiona a filtração plasmática através do glomérulo para dentro dos túbulos

contorcidos proximais. Os capilares possibilitam apenas a filtração de líquido, proteínas muito pequenas e eletrólitos, de modo que, com exceção da albumina e das proteínas maiores, o filtrado glomerular é muito semelhante ao plasma na sua composição (Tabela 32.1). Os capilares glomerulares são compostos por uma única camada de células endoteliais, com pequenas fenestrações que proporcionam a superfície de filtração. Abaixo dessas células, encontra-se uma membrana basal acelular composta de diversas proteínas, como o colágeno, que fornecem uma base para as células epiteliais e que também atuam como membrana com carga, possibilitando ou limitando a passagem de partículas com cargas, como a albumina. A taxa de formação do filtrado ou taxa de filtração glomerular (TFG) é um parâmetro mensurável, que pode ser avaliada clinicamente para determinar a função de excreção renal. A TFG é expressa em mililitros de filtrado glomerular por quilograma de peso corporal formado por minuto (mℓ/kg/min). O fluxo sanguíneo para dentro do glomérulo para filtração encontra-se sob pressão e é regulado pelas arteríolas aferentes (pré-glomerulares) e eferentes (pós-glomerulares). A quantidade de filtrado formada é diretamente relacionada com a pressão através dos capilares, e essa pressão pode ser descrita matematicamente pela equação de Starling: Q = Kf [(Pc – Pi) – σ (ΠC – Πi)] na qual Q é o movimento efetivo de líquido através dos capilares; Kf é o coeficiente de filtração (que depende da permeabilidade e do comprimento da superfície de filtração), Pc é a pressão hidrostática capilar, Pi é a pressão hidrostática intersticial, σ é o coeficiente de reflexão ou filtração, Πc é a pressão oncótica capilar e Πi a pressão oncótica intersticial. Quando medida na extremidade arteriolar aferente do glomérulo, a pressão de filtração efetiva é de cerca de 10 mmHg, resultando em efluxo efetivo. Quando medida na extremidade arteriolar eferente do glomérulo, a pressão de filtração efetiva é de cerca de 0 mmHg, resultando em ausência de efluxo efetivo. À semelhança do FSR, a TFG é mantida por um sistema de autorregulação. O sistema renina-angiotensina-aldosterona é particularmente importante para a TFG e também desempenha um papel no FSR. Quando a pressão arterial e a perfusão renal subsequente diminuem, ocorre liberação de renina pelas células justaglomerulares especializadas. A renina é então responsável pela transformação do angiotensinogênio (produzido pelo fígado) em angiotensina I, que subsequentemente é convertida em angiotensina II (AT-II, um potente vasoconstritor) pela enzima conversora de angiotensina (ECA) produzida pelo endotélio vascular (principalmente dos pulmões, mas também do endotélio de outros órgãos). A AT-II eleva diretamente a pressão arterial por meio de contração do músculo liso nas arteríolas, mas também exerce múltiplos efeitos endócrinos e parácrinos. Localmente nos rins, a AT-II ativa a captação de sódio nos túbulos do néfron, promovendo

a retenção de líquido e aumento do volume sanguíneo. Nas glândulas adrenais, a AT-II aumenta a liberação do hormônio esteroide aldosterona, que também promove a conservação de sódio, a eliminação do potássio e um aumento na retenção de líquido e pressão arterial. Na hipófise, a AT-II aumenta a liberação de vasopressina (anteriormente conhecida como hormônio antidiurético), que aumenta a reabsorção de água nos rins por meio da inserção de canais de água (aquaporina-2) na membrana dos túbulos distais dos néfrons. A vasopressina também apresenta propriedades vasoconstritoras diretas por meio de receptores V acoplados à proteína G no endotélio vascular. Além disso, a AT-II induz a liberação intrarrenal das prostaglandinas vasodilatadoras, a PGE2 e a prostaciclina, que se opõem aos efeitos vasoconstritores da AT-II, impedindo, assim, a ocorrência de resistência vascular intrarrenal excessiva e isquemia local. Um segundo sistema intrínseco, denominado retroalimentação tubuloglomerular, também contribui para o sistema autorregulador que ajuda a manter a TFG. Um grupo distinto de células epiteliais no túbulo contorcido distal (TCD), a mácula densa, estabelece contato com o glomérulo entre as arteríolas aferentes e eferentes como parte do aparelho justaglomerular (AJG). Existem osmorreceptores nas células da mácula densa, que percebem uma diminuição das concentrações de sódio no lúmen tubular e que iniciam uma cascata de eventos que levam à liberação de renina pelas células justaglomerulares. De modo alternativo, concentrações aumentadas de cloreto de sódio resultam em uma cascata de eventos indefinidos, que suprimem a liberação de renina e levam à produção de fatores vasoativos (óxido nítrico, trifosfato de adenosina, prostaglandinas), que reduzem a TFG e promovem a conservação de água livre. O líquido filtrado que sai do glomérulo entra, em seguida, nos túbulos contorcidos proximais (TCP). A principal função dos TCP consiste em reabsorver a maior parte do filtrado; de fato, mais de 60% das substâncias filtradas sofrem reabsorção no TCP. O transporte através da membrana dos TCP para dentro dos tecidos intersticiais e, em seguida, no espaço vascular ocorre por meio de transporte tanto ativo quanto passivo, em que a fase passiva é determinada pelas forças de Starling. Os íons filtrados no glomérulo (Na+, K+, Ca2+, Cl–, HCO3–) são reabsorvidos, em sua maior parte, no TCP, de modo que o filtrado que sai do TCP e que entra na alça de Henle apresenta níveis mais baixos de eletrólitos do que o plasma. A água acompanha passivamente a reabsorção ativa dos eletrólitos, de modo que a osmolalidade do líquido tubular assemelha-se àquela do plasma em ambas as extremidades do TCP. As proteínas orgânicas de baixo peso molecular (insulina, glucagon, paratormônio etc.) que foram filtradas também são ativamente reabsorvidas no TCP. A secreção de substâncias também ocorre no TCP. Os produtos de degradação iônicos orgânicos são eliminados por secreção no filtrado e incluem substâncias exógenas ligadas às proteínas que não são filtradas no glomérulo, como, por

exemplo, endotoxinas, antibióticos e agentes anestésicos e analgésicos, como morfina e cetamina, bem como produtos de degradação endógenos, como sais biliares, uratos e prostaglandinas. A secreção do TCP é excepcionalmente importante para a remoção de produtos de degradação endógenos nas aves e nos répteis. Nos mamíferos, um dos principais produtos de degradação do metabolismo do músculo é a ureia, que é livremente filtrada no glomérulo; entretanto, o ácido úrico é o produto de degradação do metabolismo do músculo nas aves e nos répteis. O ácido úrico não é filtrado no glomérulo, e a sua remoção depende de mecanismos ativos no TCP nessas espécies. Tabela 32.1 Principal atividade e composição do filtrado no glomérulo. Estrutura do néfron

Principal atividade

Composição do filtrado

Comentários Filtrado desprovido de

Glomérulo

Filtração do plasma

Isotônico

células, contendo apenas líquido, eletrólitos e pequenas proteínas

Túbulo contorcido proximal

45 a 55% do filtrado são reabsorvidos

Ramo descendente da alça de

25 a 40% da H2O filtrada são

Henle

reabsorvidos

90% do HCO3– são Isotônico

reabsorvidos, e o filtrado torna-se ácido

Hipertônico

Reabsorção de H2O por osmose Transporte ativo por meio da

Ramo ascendente da alça de

Principal área de reabsorção

Henle

de solutos

Túbulo contorcido distal

Ducto coletor

5% do filtrado são reabsorvidos

Hipotônico

Na+-K+-ATPase, células impermeáveis à H2O

Menos de 10% da H2O Hipotônico

originalmente filtrada estão presentes

Reabsorção de 0,5 a 10% da

Hiper-, iso ou hipotônico

Sob a influência da arginina-

H2O

(urina)

vasopressina

Em seguida, o filtrado remanescente penetra no ramo descendente da alça de Henle

(RDAH). A atividade metabólica no RDAH é mínima, e ocorre pouco ou nenhum processo de transporte ativo. Ocorrem reabsorção de água pura e dragagem mínima de solutos à medida que o filtrado percorre o RDAH em direção ao ramo ascendente (RAAH) altamente ativo ou porção espessa da alça de Henle. O RAAH constitui uma das partes do túbulo e de todo o rim que apresenta maior atividade metabólica. O endotélio é simples cuboide, com numerosas mitocôndrias que fornecem a energia necessária para o transporte ativo de alta capacidade. O filtrado é ainda modificado, visto que a maior parte da reabsorção de eletrólitos na alça de Henle ocorre no RAAH. Pode-se encontrar uma concentração abundante da bomba de Na+-K+-ATPse na superfície luminal dos túbulos, que é responsável pelo transporte ativo de Na+, K+ e Cl– para dentro da célula e fora do filtrado. Outros íons, como Mg2+ e Ca2+, seguem o seu percurso ao longo de uma via paracelular seletiva para cátions no interstício. Particularmente no caso do K+, a hiperpotassemia pode resultar em patologia da condução elétrica, e, por conseguinte, existem canais de K+ tanto apicais quanto basolaterais para aumentar a secreção dentro do filtrado para remoção final na urina. Em virtude da alta atividade metabólica do RAAH, esse segmento apresenta alta demanda de substratos, como oxigênio, e, por conseguinte, sensibilidade aumentada à lesão durante a hipoxemia ou a hipotensão. Além disso, vários medicamentos podem exercer seus efeitos tanto terapêuticos quanto patológicos no RAAH. Por exemplo, a furosemida atua como diurético ao inibir as bombas de Na+-K+-ATPse e ao impedir a reabsorção de eletrólitos e líquidos, enquanto os antibióticos aminoglicosídios, como a gentamicina, podem inibir a síntese de proteínas e resultar em necrose tubular aguda no TCP e no RAAH. O RAAH é impermeável à água, de modo que o filtrado que entra no TCP é hipotônico; isso explica, de fato, o modo pelo qual o rim forma uma urina diluída na ausência de ADH. Depois do RAAH, o filtrado hipotônico altamente modificado entra nos túbulos contorcidos distais (TCD). Ocorre reabsorção de eletrólitos e água, modificando ainda mais o filtrado. Entretanto, a secreção de K+ e H+ é de suma importância no TCD. Como a maior parte do HCO3– sofreu reabsorção no TCP, apenas uma quantidade muito pequena de HCO3– permanece, de modo que tanto o K+ quanto o H+ precisam ser ativamente bombeados para dentro do lúmen para corrigir um desequilíbrio entre íons de cargas negativas e positivas. Isso pode resultar em competição entre o K+ e o H+ pela sua secreção e, com frequência, constitui a razão pela qual a hiperpotassemia está associada a acidemia. Por fim, o filtrado entra no ducto coletor, onde pode ser mais uma vez modificado antes de ser classificado como urina. As células tubulares do ducto coletor devem ser impermeáveis à água quando o paciente está hiperidratado e permeáveis à H2O durante a desidratação. Essa função é desempenhada pelas ações do hormônio vasopressina [hormônio antidiurético (ADH)]. Quando existem estados de desidratação, a vasopressina é

liberada da neuro-hipófise, estimulada pelo aumento da osmolalidade plasmática, e alcança os rins, onde induz a translocação e a inserção de canais de água, denominados aquaporina2, nas células do TCD e do ducto coletor. Em seguida, a água sofre reabsorção, resultando em urina mais concentrada. Curiosamente, agonistas α2-adrenérgicos, como a xilazina, bloqueiam os receptores de vasopressina localizados nos ductos coletores, impedindo a reabsorção de água. Esse efeito pode ser observado clinicamente, visto que os animais eliminam grandes quantidades de urina diluída após sedação com um agonista α2adrenérgico, podendo resultar em agravamento da desidratação nos animais com equilíbrio hídrico negativo. Após a sua saída do ducto coletor, o filtrado é considerado como urina, que é então recolhida na pelve renal e transportada até a bexiga pelos ureteres para armazenamento e eliminação.

Provas e monitoramento da função renal ■ Caninos e felinos Exames bioquímicos As concentrações de ureia no sangue e de creatinina sérica (CS) fornecem um índice bruto da TFG. Tendo em vista que a concentração de CS é influenciada por menos variáveis extrarrenais, e a creatinina não é reabsorvida pelos túbulos renais, ela constitui melhor índice da TFG do que a concentração de ureia. Entretanto, a sensibilidade de concentrações elevadas de ureia e CS constitui um problema; a azotemia que ocorre em consequência do comprometimento da função renal só é detectável quando cerca de três quartos dos néfrons em ambos os rins se tornam não funcionais. Essa proporção pode ser ainda mais alta em cães e gatos com doença renal progressiva crônica, devido à hipertrofia compensatória dos néfrons remanescentes. É possível melhorar a avaliação da função renal pelo uso da concentração de SC seguindo três diretrizes/recomendações. (1) Interpretar as concentrações de CS à luz das influências pré-renais (p. ex., estado de hidratação, débito cardíaco e massa muscular) e pós-renais (p. ex., uropatias obstrutivas e ruptura do sistema urinário) potenciais. (2) Considerar o uso de faixas de referência mais estritas. A International Renal Interest Society (IRIS) recomendou que valores de CS de 1,4 a 1,6 mg/dℓ sejam considerados como limite superior da normalidade para a maioria dos cães e gatos, respectivamente. As exceções provavelmente incluem cães com musculatura desenvolvida, como Greyhounds, que podem apresentar concentrações normais mais altas de CS. (3) O monitoramento longitudinal das concentrações de CS no mesmo paciente facilita a detecção de um declínio da função renal, mesmo quando os valores da CS

permanecem nos limites normais. Por exemplo, uma concentração de CS que aumenta de 0,6 a 1,2 mg/dℓ com o passar do tempo pode indicar uma redução de ≥ 50% da função renal (pressupondo que não tenha ocorrido alteração da massa muscular, e que o estado de hidratação seja normal). A determinação da densidade específica da urina é frequentemente usada para avaliar a função tubular renal; entretanto, à semelhança da ureia sanguínea e da CS, essa medida da função renal não é sensível nem específica. Nos cães, diminuições na capacidade de concentração da urina são apenas detectáveis quando aproximadamente dois terços dos néfrons tornaram-se não funcionais. Nos gatos, acredita-se que essa proporção seja maior; não é raro que gatos com azotemia renal (com perda de mais de três quartos dos néfrons) mantenham a capacidade de produzir uma urina hiperestenúrica. Além dessa falta de sensibilidade, influências não renais podem comprometer a capacidade de concentração da urina (p. ex., concentrações diminuídas de ADH e doenças/distúrbios sistêmicos que podem diminuir a capacidade de resposta dos rins ao ADH, como hipercalcemia e hiperadrenocorticismo). Como alternativa dos exames padrões clinicopatológicos, a detecção e a quantificação das enzimas urinárias (enzimúria) têm sido usadas para o reconhecimento precoce de nefrotoxicidade em cães. Como as enzimas séricas em sua maioria não são filtradas pelo glomérulo, em virtude de seu alto peso molecular, a enzimúria pode constituir uma indicação de extravasamento ou necrose tubular renal. Várias enzimas originam-se de organelas celulares específicas e, portanto, podem atuar como marcadores de lesão de locais específicos. Por exemplo, a γ-glutamil transpeptidase (GGT) origina-se da borda em escova das células tubulares proximais, enquanto a N-acetilglicosaminidase (NAG) é uma enzima lisossômica. A enzimúria habitualmente precede em vários dias a ocorrência de azotemia e a diminuição da capacidade de concentração da urina associada à lesão nefrotóxica dos túbulos proximais. Foi demonstrado que as razões GGT-creatinina e NAG:creatinina na urina refletem de modo acurado a excreção de GGT e de NAG na urina de 24 h em cães, quando determinadas antes do início da azotemia.8 Por conseguinte, devese considerar a determinação das razões basais de GGT:cretatinina e NAG:creatinina na urina em todos os cães aos quais se administram fármacos potencialmente nefrotóxicos. Um aumento de duas a três vezes nos valores da razão GGT:cretatinina ou NAG:creatinina acima do valor basal sugere uma lesão tubular clinicamente relevante. Deve-se interromper a terapia farmacológica se isso ocorrer. A proteinúria é outro achado clinicopatológico que ajuda a estabelecer um diagnóstico de doença renal. A proteinúria renal pode estar associada a um aumento da filtração através das paredes capilares glomerulares lesionadas (i. e., proteinúria glomerular) e/ou diminuição da reabsorção pelas células epiteliais tubulares (i. e., proteinúria tubular). As

lesões tubulares em pacientes com lesão renal aguda/insuficiência renal aguda (LRA/IRA) podem resultar em proteinúria; entretanto, a proteinúria renal está mais comumente associada a DRC. A sensibilidade da proteinúria renal como marcador de DRC é alta, particularmente se forem monitorados ensaios de albuminúria específicos de espécies e/ou razão proteína:creatinina urinária. A especificidade da proteinúria para a presença de doença renal é relativamente baixa. É necessário descartar a possibilidade de causas pré- e pós-renais de proteinúria. A proteinúria de origem renal é persistente (diversas avaliações realizadas com intervalos de 7 a 14 dias devem ser positivas) e está associada a sedimento urinário normal/inativo. Depuração renal e taxa de filtração glomerular Tendo em vista a falta de sensibilidade da ureia sanguínea, da CS e da densidade específica da urina, pode-se determinar a TFG para obter informações mais acuradas sobre a função excretora renal, particularmente antes do início da azotemia renal persistente, quando há suspeita de doença renal precoce. A depuração renal é a taxa com que uma substância é totalmente removida de determinado volume de plasma. As substâncias utilizadas para medir a depuração renal precisam ser livremente filtradas pelo glomérulo (sem ligação às proteínas) e não devem ser afetadas por reabsorção ou secreção tubular, nem por metabolismo em outra parte do corpo. Além disso, a substância empregada precisa não alterar a função renal. A depuração renal da inulina constitui o método padrão de referência para a determinação da TFG; entretanto, é difícil medir a inulina no plasma e na urina. Por outro lado, é relativamente fácil determinar a depuração renal da creatinina que, portanto, é mais prática. A depuração renal da creatinina endógena pode ser calculada multiplicandose a concentração de creatinina na urina pela taxa de produção de urina e, em seguida, dividindo-se o produto pela concentração de CS:

Por exemplo, se a concentração urinária de creatinina for de 60 mg/dℓ, a produção de urina for de 3 mℓ/min, e a concentração de CS for de 1,8 mg/dℓ, 100 mℓ de plasma são depurados de creatinina por minuto. Esse valor é dividido pelo peso corporal do animal em quilogramas e expresso em mililitros por minuto por quilograma. É importante observar que fatores pré-renais e pós-renais, bem como lesões do parênquima renal, irão influenciar a TFG. A principal desvantagem das determinações da depuração renal é a necessidade de

coleta programada de urina. Do ponto de vista prático, os estudos de depuração plasmática são menos invasivos e consomem menos tempo. Por exemplo, foi constatado que a depuração plasmática do ioexol, um agente de contraste radiográfico iodado, fornece uma estimativa confiável da TFG em cães e gatos. A depuração plasmática do ioexol é realizada, em condições ideais, em pacientes bem tratados e com jejum de 12 h antes do exame. O ioexol (Omnipaque 240 mg I/mℓ, GE Healthcare, Princeton, NJ, EUA) foi administrado por via intravenosa, em uma dose de 300 mg de iodo/kg de peso corporal; em seguida, são coletadas amostras de sangue em 2,3 e 4 h após a injeção IV de uma veia separada. O soro de cada amostra de sangue é separado (é necessária uma quantidade de cerca de 1,5 mℓ de soro por amostra) e, em seguida, transportado resfriado ou congelado ao laboratório de referência especializado (p. ex., Diagnostic Center for Population and Animal Health, Toxicology Section, Michigan State University) para medição e cálculo da TFG. A cintigrafia renal com ácido dietilenotriaminopentacético marcado com Tc99m também possibilita a medição da TFG e está disponível em várias universidades dos EUA e em grandes centros de referência. Trata-se de um método rápido e não invasivo que não exige a coleta de urina e tem a vantagem de possibilitar uma avaliação quantitativa da função renal. As desvantagens desse procedimento incluem a sua disponibilidade limitada, exposição do animal a radioisótopos, necessidade de descarte do radioisótopo e correlação mais precária com a depuração de inulina, em comparação com a depuração plasmática do ioexol. Medida do débito urinário A medida do volume de urina produzida é mais frequentemente utilizada para ajudar a determinar as necessidades de líquido de manutenção de cães e gatos com LRA/IRA. Esses pacientes podem exibir grandes variações em sua produção de urina, incluindo desde oligúria e anúria até poliúria. Uma das principais metas da terapia com líquidos em pacientes com LRA/IRA consiste em induzir e manter uma diurese. Os líquidos administrados devem ser calculados para igualar o volume urinário mais outras perdas, incluindo perdas insensíveis (p. ex., perda de água pela respiração) e perdas contínuas (p. ex., perda de líquido nos vômitos ou na diarreia). As perdas insensíveis são estimadas em 20 mℓ/kg/dia. O débito urinário é quantificado a intervalos de 6 a 8 h (cuja determinação é, com frequência, mais bem obtida por meio de cateter urinário de demora ou intermitente), e efetua-se a reposição do volume obtido juntamente com a perda insensível durante um período de tempo subsequente equivalente. O volume de perda de líquido em consequência de vômitos e/ou diarreia é estimado, e ele deve ser acrescentado às necessidades de líquido de 24 h do paciente. As perdas ou os ganhos de líquidos também podem ser estimados

indiretamente ao pesar o paciente 2 a 3 vezes/dia na mesma balança. Biopsia renal A biopsia e a avaliação histopatológica do tecido renal constituem um instrumento diagnóstico e prognóstico valioso. Deve-se considerar a realização de biopsia renal se houver dúvida quanto ao diagnóstico (p. ex., glomerulonefrite por imunocomplexos versus amiloidose em cães com proteinúria), se for possível modificar o tratamento com base nos resultados (p. ex., confirmação e cultura na pielonefrite bacteriana), ou se houver possibilidade de mudança do prognóstico com base nos resultados (p. ex., evidências de lesão tubular reversível em um cão ou gato com necrose tubular aguda). É necessário estabelecer um diagnóstico específico para a implementação do tratamento direcionado na maioria dos animais com doença renal, e, para se obter um diagnóstico específico, é preciso realizar com frequência uma biopsia. Além disso, o prognóstico para animais com doença renal é mais acurado se for baseado em três variáveis: (1) a gravidade da disfunção, (2) a resposta ao tratamento e (3) os achados histopatológicos renais. A biopsia renal só deve ser considerada após a realização de exames menos invasivos e avaliação da coagulação/hemostasia. As contraindicações para biopsia renal incluem rim solitário, coagulopatia, hipertensão sistêmica grave e lesões renais associadas ao acúmulo de líquido (hidronefrose, cistos e abscessos renais). Além disso, a biopsia renal não deve ser realizada por médicos inexperientes ou em animais que não estão adequadamente contidos. Podemse obter amostras de biopsia renal percutânea utilizando a técnica em buraco de fechadura ou sob orientação laparoscópica ou do ultrassom. Com frequência, a melhor maneira de obter uma amostra consiste em laparotomia quando ambos os rins podem ser visualizados, visto que, nesse caso, a ocorrência de hemorragia após a biopsia pode ser acuradamente avaliada e tratada, e pode-se assegurar a obtenção de uma amostra adequada. Deve se fazer a biopsia na região cortical do rim para se obter um número adequado de glomérulos na amostra e evitar os nervos renais e principais vasos sanguíneos na região medular. A maioria dos animais apresenta hematúria microscópica por 1 a 3 dias após a biopsia, e a hematúria franca não é rara. A hemorragia grave, que ocorre em menos de 1% dos casos, resulta quase sempre de uma técnica incorreta. Quando possível, devem-se utilizar técnicas imunofluorescentes ou imuno-histoquímicas e microscopia eletrônica para maximizar a informação obtida da amostra de biopsia. A comunicação com o patologista do laboratório antes da realização da biopsia ajuda a determinar os fixadores a serem usados para maximizar a utilidade da amostra de biopsia.

■ Equinos À semelhança dos pequenos animais, a CS constitui o índice comumente utilizado para

avaliar a função renal (TFG). Como no caso dos pequenos animais, a expectativa é de que as elevações da CS associadas a lesões renais sejam observadas apenas quando cerca de 75% dos néfrons estiverem não funcionais; a medição da CS no estágio inicial da doença renal tem pouco valor. A determinação da ureia sanguínea como única prova de função renal em equinos tem valor diagnóstico mínimo. Nos cavalos, a ureia é absorvida após filtração nos ductos coletores, de maneira dependente da velocidade, com base na velocidade de movimento do líquido. À medida que a velocidade do líquido e o volume aumentam no ducto coletor, ocorre menor reabsorção de ureia, e, à medida que a velocidade do fluxo diminui, maior quantidade de ureia é reabsorvida, independentemente da taxa de filtração da ureia. Por conseguinte, a fluidoterapia em equinos com doença renal pode reduzir a ureia, mas não de uma maneira capaz de refletir melhora da TFG. Por não ser reabsorvida, a CS é mais comumente utilizada como prova de função renal em equinos. A azotemia, a elevação da CS e a ureia sanguínea podem ainda ser classificadas em origem pré-renal, renal e pós-renal. O uso da razão ureia:CS foi descrito para caracterizar a azotemia em equinos e separar as formas aguda e crônica de insuficiência renal. Teoricamente, a razão é mais elevada na azotemia pré-renal, em virtude da reabsorção aumentada de ureia devido a desidratação e baixa taxa de fluxo tubular, em comparação com a azotemia secundária à doença renal intrínseca. Em cavalos com insuficiência renal aguda, a razão ureia:CS é inferior a 10:1, ao passo que, na doença crônica, pode-se esperar uma razão superior a 10:1.9 A TFG também pode ser medida em equinos, fornecendo uma avaliação quantitativa da função renal; entretanto, a medição do débito urinário representa um desafio nos cavalos, devido à inviabilidade de um cateter de urina de demora para a coleta de urina. Deve-se considerar também a determinação das concentrações séricas de eletrólitos no plano diagnóstico de equinos com doença renal. Com frequência, os níveis de Na+ e Cl– estão diminuídos em equinos com doença renal, enquanto o nível de K+ pode estar elevado, diminuído ou normal. A hiperpotassemia é observada mais frequentemente em estados patológicos associados a obstrução do fluxo urinário ou ruptura da bexiga, com uroperitônio subsequente. O nível sérico de Ca2+ também deve ser monitorado, visto que os equinos com LRA frequentemente apresentam hipocalcemia, enquanto aqueles com DRC têm, com frequência, hipercalcemia. Devem-se obter amostras de urina de cavalos com suspeita de doença renal para exame de urina completo, incluindo exame do sedimento. De modo semelhante a pequenos animais, a densidade específica deve ser medida, juntamente com exame microscópico à procura de células, cilindros e cristais. A borda em escova das células tubulares proximais é rica em enzimas que desempenham um papel na atividade metabólica do endotélio. A determinação da concentração urinária de GGT tem sido usada, como razão com a

creatinina urinária (CU), a fim de estabelecer e monitorar a extensão do dano tubular agudo. Uma razão GGT:CU acima de 100 UI/g é considerada clinicamente importante, porém valores mais baixos devem ser interpretados com cautela, visto que pode ocorrer liberação de GGT dos túbulos proximais com insultos mínimos, que podem ser clinicamente irrelevantes. A fração de depuração dos eletrólitos pode ter maior utilidade diagnóstica do que a GGT urinária para a ocorrência de dano tubular agudo.9 Os néfrons, como grupo coletivo, trabalham para conservar mais de 99% dos íons Na+ e Cl– filtrados no cavalo normal (a suplementação de sais ou a fluidoterapia intravenosa irão aumentar artificialmente a quantidade de eletrólitos excretados na urina e, portanto, complicar a utilidade dos cálculos da fração de depuração). Aumentos na fração de depuração podem constituir um indicador de lesão tubular precoce. Amostras de soro e de urina são coletadas simultaneamente, e são determinados os níveis de Na+, Cl– e creatinina. Utilizando a equação seguinte, pode-se determinar um valor de depuração para o sódio e o cloreto:

em que ClA/ClCr é a razão da fração de depuração, [A] é o eletrólito A medido (Na+ ou Cl–) e [Cr] é a concentração de creatinina. A biopsia renal guiada por ultrassom é facilmente realizada em equinos, e o uso de um instrumento de biopsia com agulha minimiza os riscos (hemorragia, penetração no intestino e peritonite). A biopsia e a histopatologia podem identificar o tipo de lesão, a sua localização e gravidade e fornecer uma orientação para o prognóstico.

■ Ruminantes Muitos dos mesmos procedimentos diagnósticos realizados em pequenos animais e equinos podem ser usados nas espécies ruminantes. Entretanto, por questões econômicas, as provas de função renal limitam-se, com frequência, aos achados nos exames bioquímicos de rotina e tiras reagentes para exame de urina.

Lesão renal aguda/insuficiência renal aguda ■ Etiologia e patogenia Os rins são altamente suscetíveis aos efeitos da isquemia e substâncias tóxicas, em virtude de suas características anatômicas e fisiológicas singulares. Por exemplo, o grande fluxo sanguíneo renal (aproximadamente 20% do débito cardíaco) resulta em aporte aumentado

de substâncias tóxicas ao rim transportadas pelo sangue, em comparação com aquele de outros órgãos. O córtex renal é particularmente sucessível a substâncias tóxicas, visto que ele recebe 90% do fluxo sanguíneo renal e contém a grande área de superfície endotelial dos capilares glomerulares. No córtex renal, as células epiteliais do túbulo proximal e do ramo ascendente espesso da alça de Henle são mais frequentemente afetadas por isquemia e lesão induzida por tóxicos, devido às suas funções de transporte e alta taxa metabólica. As substâncias tóxicas perturbam as vias metabólicas que geram ATP, e a isquemia rapidamente pode causar depleção das reservas celulares de ATP. Com a consequente perda de energia, a bomba de sódio/potássio (Na+/K+) falha, resultando em edema e morte das células. Ao absorver água e eletrólitos do filtrado glomerular, as células epiteliais tubulares podem ficar expostas a concentrações cada vez mais altas de substâncias tóxicas no lúmen tubular. As substâncias tóxicas que são secretadas ou reabsorvidas pelas células epiteliais tubulares (p. ex., gentamicina) podem acumular-se em altas concentrações nessas células. De modo semelhante, o sistema multiplicador por contracorrente pode concentrar substâncias tóxicas na medula. Por fim, os rins também desempenham um papel na biotransformação de muitos fármacos e substâncias tóxicas. Isso resulta habitualmente na formação de metabólitos, que são menos tóxicos do que o composto original; todavia, em alguns casos (p. ex., oxidação do etileno glicol a glicolato e oxalato), os metabólitos são mais tóxicos do que o composto original. As duas principais causas de LRA/IRA consistem em lesão tóxica e isquêmica. Com frequência, os insultos tóxicos aos rins podem ser causados por agentes terapêuticos, além das substâncias nefrotóxicas mais bem conhecidas, como etileno glicol e antibióticos aminoglicosídios. De modo semelhante, podem ocorrer insultos isquêmicos ao rim no ambiente hospitalar, em associação com anestesia e cirurgia, ou com o uso de agentes vasodilatadores ou anti-inflamatórios não esteroides (AINEs).10 A anestesia prolongada com administração inadequada de líquidos em animais idosos com DRC subclínica preexistente constitui uma causa frequente de isquemia renal e LRA/IRA no ambiente hospitalar. Os rins normais são capazes de manter pressão de perfusão renal adequada por autorregulação, contanto que a pressão arterial média ultrapasse aproximadamente 60 a 70 mmHg. Essa autorregulação pode estar comprometida em pacientes com DRC preexistente, particularmente durante a anestesia. O declínio resultante do fluxo sanguíneo renal e da pressão de perfusão pode afetar adversamente a TFG e o aporte de oxigênio e nutrientes às células epiteliais tubulares metabolicamente ativas. Ocorre edema das células tubulares secundário à atividade diminuída da bomba de Na+/K+, devido à extração osmótica de água do espaço extracelular, o que, por sua vez, pode causar diminuição na quantidade de água do plasma. As consequências da diminuição da água plasmática na rede vascular renal consistem em agregação dos eritrócitos e congestão e estase vasculares, que tendem a

potencializar e perpetuar o fluxo sanguíneo glomerular diminuído e o aporte reduzido de oxigênio e nutrientes. Na IRA, ocorrem disfunção e redução da filtração glomerular nos néfrons individuais, em consequência de uma associação de obstrução tubular, vazamento retrógrado (backleak) tubular, vasoconstrição arteriolar renal e diminuição da permeabilidade dos capilares glomerulares. Especificamente, pode ocorrer condensação de resíduos celulares no túbulo, causando obstrução do fluxo do filtrado através do néfron. De modo alternativo, o edema intersticial pode provocar compressão e obstrução dos túbulos renais. Ocorre fluxo retrógrado backleak (i. e., reabsorção anormal de filtrado), devido a uma perda da integridade das células tubulares, de modo que o filtrado glomerular pode passar do lúmen tubular para dentro do interstício renal e, subsequentemente, na rede vascular renal. O fluxo retrógrado (backleak) tubular é aumentado pela obstrução tubular e elevação da pressão intratubular proximal à obstrução. A reabsorção diminuída de solutos e de água pelos segmentos tubulares proximais danificados resulta em maior aporte de solutos e de líquido ao néfron distal e à mácula densa em muitos néfrons, causando constrição da arteríola aferente glomerular. Os mediadores exatos dessa vasoconstrição não são conhecidos, porém o fator natriurético, o sistema renina-angiotensina e o tromboxano podem estar envolvidos. Uma diminuição na permeabilidade na parede dos capilares glomerulares também resulta em redução da filtração glomerular. A permeabilidade diminuída dos capilares glomerulares que ocorre na IRA frequentemente persiste após correção da vasoconstrição e do fluxo sanguíneo renal. A lesão tubular aguda que leva ao desenvolvimento de IRA apresenta três fases distintas: (1) iniciação, (2) manutenção e (3) recuperação. Durante a fase de iniciação, as medidas terapêuticas que reduzem o insulto renal podem impedir o desenvolvimento de IRA estabelecida. Nessa fase de iniciação, os túbulos individuais estão lesionados, porém a função renal global permanece adequada. O dano tubular agudo antes do desenvolvimento de IRA é sugerido pela existência de células epiteliais tubulares renais e cilindros celulares ou granulares no segmento urinário. A fase de manutenção caracteriza-se pelo desenvolvimento de lesões tubulares e disfunção dos néfrons (i. e., azotemia renal e déficit concomitante na concentração da urina). Embora as intervenções terapêuticas durante a fase de manutenção possam salvar a vida do paciente, elas habitualmente têm pouca capacidade de diminuir a gravidade das lesões renais estabelecidas, de melhorar a função ou de acelerar a recuperação. Na fase de recuperação, ocorre reparo das lesões renais, e observa-se melhora da função. A lesão tubular pode ser reversível se a membrana basal tubular estiver intacta e houver células epiteliais viáveis. Embora novos néfrons não possam ser produzidos, e não possa haver reparo dos néfrons com dano irreversível, a hipertrofia funcional dos néfrons sobreviventes pode compensar adequadamente a

diminuição no número de néfrons. Mesmo se a recuperação da função renal for incompleta, pode haver restabelecimento de uma função adequada.

■ Manifestações clínicas e diagnóstico Os sinais clínicos de LRA/IRA frequentemente são inespecíficos e consistem em letargia, depressão, anorexia, vômitos, diarreia e desidratação; em certas ocasiões, pode-se observar hálito urêmico ou úlceras orais. Deve-se suspeitar de um diagnóstico de IRA se houver desenvolvimento agudo de azotemia e se esta estiver associada a isostenúria persistente ou concentração mínima da urina. Desidratação e azotemia pré-renais superpostas a uma incapacidade de concentrar a urina (p. ex., doença de Addison, hipercalcemia ou uso excessivo de furosemida) inicialmente simulam a insuficiência renal; entretanto, nesses casos pré-renais, a reposição de volume resulta em resolução da azotemia. A insuficiência renal aguda ocorre em várias horas ou dias após a exposição ao insulto. Os sinais clínicos e achados clinicopatológicos característicos associados à IRA incluem aumento ou edema dos rins, hemoconcentração, bom condicionamento corporal, sedimento urinário ativo (p. ex., cilindros granulosos, células epiteliais renais) e hiperpotassemia e acidose metabólica relativamente graves (particularmente na presença de oligúria/anúria). Os sinais clínicos no animal com IRA tendem a ser graves em relação aos observados em um animal com DRC e com grau semelhante de azotemia. Os achados na ultrassonografia renal de cães e gatos com IRA são habitualmente inespecíficos, com córtex renal difusamente normal a ligeiramente hipoecoico. Em animais com nefrose por oxalato de cálcio associada à injeção de etileno glicol, o córtex renal pode estar muito hiperecoico. A estimativa do índice de resistência (IR) com Doppler nas artérias arqueadas renais revela um valor aumentado em muitos cães com IRA; todavia, esse método de avaliação precisa ser mais extensamente correlacionado com as alterações histopatológicas renais antes que se possam estabelecer conclusões sólidas sobre os méritos do IR. As amostras de biopsia renal de cães e gatos com IRA revelam degeneração das células tubulares proximais, incluindo desde tumefação turva até necrose, com edema e infiltração de células mononucleares e leucócitos polimorfonucleares no interstício. A nefrotoxicidade associada ao etileno glicol e a melanina frequentemente está associada a cristais intratubulares. Embora a IRA induzida por substâncias tóxicas possa não ser diferenciada na histopatologia da IRA causada por isquemia em todos os casos, os achados histológicos renais frequentemente são úteis para estabelecer um prognóstico. As evidências de regeneração tubular (p. ex., células epiteliais basofílicas e planas com tamanho irregular dos núcleos, figuras mitóticas e alta razão entre núcleo e citoplasma) e o achado de membranas basais tubulares geralmente intactas constituem achados prognósticos satisfatórios, que podem ser observados em apenas 3 dias após o insulto. Por outro lado,

sinais de prognóstico sombrio incluem grande número de cilindros granulosos, necrose tubular extensa e mineralização e fibrose do interstício, com ruptura das membranas basais tubulares. Além das alterações histopatológicas renais, o grau de comprometimento funcional e, ainda mais importante, a resposta à terapia devem ser considerados na formulação do prognóstico.

Doença renal crônica ■ Etiologia e patogenia Diferentemente da LRA/IRA, é habitualmente difícil determinar a causa da DRC. Em virtude da interdependência dos componentes vasculares e tubulares do néfron, o parâmetro final de dano glomerular ou tubular irreversível é o mesmo. Existe uma heterogeneidade morfológica entre os néfrons dos rins com doença crônica, e as alterações incluem desde atrofia grave e substituição fibrosa do tecido conjuntivo até hipertrofia acentuada. As alterações histopatológicas não são específicas do processo, e, por conseguinte, a causa subjacente é habitualmente desconhecida. Entretanto, estudos recentes demonstraram que os distúrbios glomerulares primários constituem uma importante causa de DRC em cães. Como a filtração glomerular total está uniformemente reduzida, a DRC pode ser considerada como uma única entidade patológica, embora muitas vias distintas possam levar a esse parâmetro final. A fisiopatologia da DRC pode ser considerada em nível tanto orgânico quanto sistêmico. Em nível renal, a alteração patológica fundamental observada consiste em perda dos néfrons e diminuição da TFG. Por sua vez, a TFG reduzida resulta em elevação das concentrações plasmáticas de substâncias que normalmente são eliminadas do organismo por excreção renal. Foi constatado que muitas substâncias se acumulam no plasma de pacientes com DRC. Acredita-se que a constelação de sinais clínicos, conhecida como síndrome urêmica, ocorra, pelo menos em parte, em consequência do aumento nas concentrações plasmáticas dessas substâncias. Os componentes da síndrome urêmica incluem desequilíbrio do sódio e da água, anemia, intolerância aos carboidratos, distúrbios neurológicos, distúrbios do trato gastrintestinal, osteodistrofia, incompetência imunológica e acidose metabólica. Além da excreção de produtos de degradação metabólicos e da manutenção do equilíbrio hidreletrolítico, os rins também atuam órgãos endócrinos e catabolizam vários hormônios peptídicos. Por conseguinte, os distúrbios hormonais também desempenham um papel na patogenia da DRC. Por exemplo, a produção diminuída de eritropoetina e calcitriol em animais com IRC contribui para o desenvolvimento de anemia arregenerativa

e hiperparatireoidismo, respectivamente. Por outro lado, a diminuição do metabolismo e da excreção leva a um aumento das concentrações de paratormônio e gastrina, o que contribui para o desenvolvimento de hiperparatireoidismo e gastrite, respectivamente. As alterações fisiopatológicas que ocorrem na DRC são produzidas, em parte, por mecanismos compensatórios. A osteodistrofia da DRC ocorre secundariamente ao hiperparatireoidismo, que se desenvolve em uma tentativa de manter concentrações plasmáticas normais de cálcio e de fósforo. De modo semelhante, a TFG dos néfrons hipertrofiados intactos aumenta em animais com DRC, em uma tentativa de manter uma função renal adequada. Entretanto, a proteinúria e a glomerulosclerose nesses néfrons individuais, que levam a um dano e perda adicionais de néfrons, podem constituir consequências dessa hiperfiltração.

■ Manifestações clínicas e diagnóstico Diferentemente da LRA/IRA, a DRC desenvolve-se ao longo de um período de vários meses ou anos, e, com frequência, os sinais clínicos são relativamente leves para o grau de azotemia. Os sinais característicos da IRC consistem em história de longa duração de perda de peso, polidipsia/poliúria, condicionamento corporal precário, anemia arregenerativa e rins pequenos e de formato irregular. Em geral, o diagnóstico de DRC baseia-se em uma associação de anamnese, exame físico e achados clinicopatológicos compatíveis. As radiografias simples podem confirmar a presença de rins de tamanho pequeno em pequenos animais, porém a sua obtenção não é habitualmente viável em equinos e ruminantes de maior porte. Em geral, a ultrassonografia renal revela um córtex renal difusamente hiperecoico, com perda do limite corticomedular normal. O aumento da ecogenicidade cortical resulta da substituição dos néfrons irreversivelmente lesionados por tecido conjuntivo fibroso. Os exames radiográficos e a ultrassonografia também podem ajudar a identificar ou a excluir causas potencialmente passíveis de tratamento de DRC, como pielonefrite e urolitíase renal. A biopsia renal não é rotineiramente realizada em animais com DRC, a não ser que haja dúvida quanto ao diagnóstico. As preparações histopatológicas renais revelam alguma associação de perda dos túbulos com substituição por fibrose e mineralização, glomerulosclerose, atrofia glomerular e focos de células mononucleares (pequenos linfócitos, plasmócitos e macrófagos) no interstício, em associação à substituição por tecido conjuntivo fibroso.

■ Estadiamento da doença renal crônica Uma vez estabelecido o diagnóstico de DRC e resolução de qualquer azotemia pré-renal com administração de líquidos (i. e., estabilização da doença), o estadiamento da doença renal pode ajudar o médico a concentrar seus esforços diagnósticos e terapêuticos. A

Tabela 32.2 foi desenvolvida pela IRIS como guia para estadiamento da DRC de caninos e felinos. As concentrações séricas de creatinina precisam ser sempre interpretadas levando em consideração a densidade específica da urina e os achados do exame físico do paciente, a fim de descartar a possibilidade de causas pré-renais e pós-renais de azotemia. Os estágios da DRC são ainda classificados com base na presença ou na ausência de proteinúria e hipertensão sistêmica (Tabela 32.3). O diagnóstico clássico de insuficiência renal com base na azotemia renal (azotemia persistente sobreposta a uma capacidade de concentração da urina) diz respeito à DRC nos estágios 2-4. A DRC de estágio 1 (DRC não azotêmica) pode ser diagnosticada em gatos e cães com proteinúria persistente de origem renal, déficit na concentração de urina, devido à doença do parênquima renal, aumentos na concentração de creatinina sérica com o passar do tempo (mesmo quando os valores permanecem na faixa normal), palpação renal anormal ou achados no exame de imagem dos rins.

■ Outros diagnósticos e tratamentos Em geral, a abordagem diagnóstica de um paciente após identificação e estadiamento da DRC concentra-se em três áreas: (1) caracterização da doença renal, (2) caracterização da estabilidade da doença renal e da função renal e (3) caracterização dos problemas do paciente associados à redução da função renal. Outra definição da doença renal (além de um banco de dados mínimo padrão) poderia incluir quantificação da proteinúria, determinação da pressão arterial, cultura de urina, exame de imagem dos rins e, possivelmente, biopsia renal. A estabilidade da função renal pode ser avaliada pelo monitoramento seriado das anormalidades identificadas durante a avaliação inicial da doença renal. Esse monitoramento sempre deve incluir perfis de bioquímica do soro seriados, exames de urina, quantificação da proteinúria [p. ex., razão proteína:creatina urinária (PCU)] e determinação da pressão arterial, mas pode também incluir culturas de urina de acompanhamento e ultrassonografia. A caracterização da doença renal e sua estabilidade são mais importantes nos estágios iniciais da DRC, quando o tratamento adequado tem maior probabilidade de melhorar ou de estabilizar a função renal. A caracterização das sequelas clínicas do paciente torna-se mais importante nos estágios mais avançados da DRC, quando os sinais clínicos tendem a ser mais graves. Nos estágios mais avançados da DRC, os esforços diagnósticos (e terapêuticos subsequentes) devem ser direcionados para a anorexia, os vômitos, a acidose, a depleção de potássio, a hipertensão e a anemia etc., que podem afetar adversamente a qualidade de vida do paciente. Tabela 32.2 Sistema de estadiamento da DRC pela IRIS para gatos e cães. Concentração sérica de creatinina (mg/dℓ)

Estágio 1 DRC não

Estágio 2 Azotemia

Estágio 3 Azotemia

Estágio 4 Azotemia

azotêmica

renal leve

renal moderada

renal grave

Gatos

< 1,6

1,6 a 2,8

2,9 a 5,0

> 5,0

Cães

< 1,4

1,4 a 2,0

2,1 a 5,0

> 5,0

Animal

Tabela 32.3 Subestadiamento da DRC pela IRIS para proteinúria e hipertensão em gatos e cães. Parâmetro

Classificação

Razão proteína:creatinina urinária < 0,2 (gatos e cães)

Não proteinúrica

0,2 a 0,4 (gatos), 0,2 a 0,5 (cães)

Proteinúria limítrofe

> 0,4 (gatos), > 0,5 (cães)

Proteinúria

Pressão arterial sistólica (mmHg) < 140

Normotensa

140 a 160

Hipertensa limítrofe

> 160

Hipertensa

À semelhança da abordagem diagnóstica para a DRC, a abordagem terapêutica também deve ser individualizada para o estágio da doença do paciente. Por exemplo, os tratamentos específicos para cálculos renais ou pielonefrite bacteriana, bem como nos tratamentos destinados a retardar a progressão da doença renal (os denominados tratamentos renoprotetores), são de grande valia nos estágios mais iniciais da DRC. Os tratamentos renoprotetores incluem modificação da dieta com o objetivo de reduzir as concentrações séricas de fósforo e inibidores da ECA destinados a normalizar a pressão arterial sistêmica e pressão sanguínea intraglomerular e diminuir a proteinúria. Nos estágios mais avançados da DRC, o tratamento tende a ser direcionado para melhorar os sinais clínicos do paciente associados ao declínio da função renal.

Agentes anestésicos e doença renal A doença e a lesão renais podem resultar em alterações da farmacocinética e farmacodinâmica dos fármacos administrados durante período perianestésico. Muitos dos fármacos (ou seus metabólitos) utilizados comumente apresentam certo grau de metabolismo e/ou excreção renais (p. ex., cetamina, benzodiazepínicos e alguns opioides), e as possíveis alterações nos parâmetros farmacocinéticos devem ser consideradas no plano anestésico desses pacientes. Além disso, as comorbidades associadas às doenças renais, incluindo azotemia, distúrbios do equilíbrio acidobásico, desequilíbrio dos eletrólitos, desidratação, anemia, coagulopatia, hipertensão e encefalopatia, devem ser consideradas, devendo-se efetuar mudanças adequadas na escolha dos fármacos e da terapia. Com frequência, a azotemia está associada a uma redução do pH plasmático e também pode diminuir a ligação dos fármacos administrados às proteínas plasmáticas, resultando em concentrações mais altas do fármaco livre ativo e risco aumentado de sobredose relativa. Entretanto, o significado clínico desse efeito pode ser de menor importância. Em geral, podem-se observar efeitos dos anestésicos sobre o FSR, visto que todos os agentes anestésicos tendem a diminuir a taxa de filtração glomerular. Os agentes anestésicos podem afetar diretamente o FSR ou podem alterar indiretamente a função renal por meio de alterações nas atividades cardiovascular e/ou neuroendócrina.11 Os sedativos e os analgésicos apresentam efeitos variáveis sobre o FSR e a TFG, e seu uso geralmente está relacionado a efeitos de fármacos individuais sobre o débito cardíaco e o tônus vasomotor. A maioria dos anestésicos causa redução da TFG em consequência da diminuição do FSR (Tabela 32.4). Os anestésicos que alteram a liberação e as concentrações sistêmicas de catecolaminas podem exercer efeitos variáveis sobre o FSR e, portanto, sobre a TFG e a função renal. Por exemplo, a administração intramuscular de uma associação de medetomidina e butorfanol aumentou a TFG em cães saudáveis, o que não ocorreu com uma associação de medetomidina, butorfanol e atropina.12 Entretanto, em outro estudo, a medetomidina diminuiu significativamente a TFG em cães saudáveis, enquanto uma associação de xilazina, cetamina e halotano ou propofol não afetou a TFG.13 O conhecimento dos efeitos adversos dos fármacos usados no período perianestésico é essencial; com frequência, são os resultados da ampliação desses efeitos colaterais na doença renal que representam o maior risco para esses pacientes. Os tranquilizantes fenotiazínicos (p. ex., acepromazina) produzem hipotensão dependente da dose por meio do antagonismo dos receptores alfa-adrenérgicos vasculares. As fenotiazinas também podem antagonizar os receptores de dopamina e, portanto, podem impedir aumentos induzidos pela dopamina no FSR durante a cirurgia. Entretanto, o FSR e a TFG não se modificam significativamente na hipotensão leve, o que pode conferir efetivamente uma

proteção à função renal após a administração de acepromazina em baixa dose.14 Além disso, o uso de fenotiazinas como agente de pré-condicionamento renal reduziu a lesão histopatológica dos rins sujeitos a isquemia e reperfusão.15 Em contrapartida, um estudo relatou variações significativas da pressão arterial sistêmica e dos parâmetros de perfusão no ultrassom renal após uma dose relativamente alta de acepromazina (0,1 mg/kg) e concluiu que esse fármaco deve ser evitado em pacientes com nefropatia. Foi recomendada uma dose relativamente baixa de acepromazina (0,01 a 0,02 mg/kg) em pacientes com doença renal estável, em que o uso de dopamina não é planejado.16 O uso da acepromazina provavelmente deve ser restrito a pacientes com doença renal estável e compensada, enquanto a sua administração deve ser evitada em pacientes com crises agudas e nos quais a manutenção de uma pressão de perfusão adequada durante a anestesia representa um problema. Tabela 32.4 Efeitos dos anestésicos sobre o fluxo sanguíneo renal (FSR) e a taxa de filtração glomerular (TFG). Fármaco

FSR

TFG

Isofluorano

Ligeira redução

Redução

Sevofluorano

Ligeira redução

Redução

Tiopental

Nenhuma alteração

Nenhuma alteração ou ligeira redução

Cetamina

Aumento

Redução ou nenhuma alteração

Propofol

Nenhuma alteração

Nenhuma alteração

Etomidato

Nenhuma alteração

Nenhuma alteração

Fonte: adaptada de Green AS, Grauer GF, 2007. Renal disease. In: Tranquilli WJ, Thurmon JC, Grimm KA, eds. Lumb and Jones’ Veterinary Anesthesia and Analgesia. 4th edn. Ames, IA: Blackwell Publishing, 2007; 915-919. Reproduzida, com autorização, de Wiley. Os agonistas α2-adrenérgicos, como a dexmedetomidina e a xilazina, podem exercer efeitos depressores significativos dependentes da dose sobre a frequência e o débito cardíacos e podem aumentar a resistência vascular sistêmica. Pode-se esperar que esses efeitos reduzam o FSR e, subsequentemente, a TFG; de fato, em um estudo no qual foi usada uma infusão de velocidade controlada de curta duração, foi constatado que a

dexmedetomidina diminuiu o FSR em até 30%.17 Entretanto, há evidências de que a medetomidina em associação com anticolinérgicos e opioides exerce efeitos mínimos sobre a TFG em cães.12 Além disso, a dexmedetomidina pode ser protetora para os rins na isquemia e na lesão por reperfusão. A dexmedetomidina reduziu a atividade metabólica e demonstrou ter efeitos antioxidantes em coelhos submetidos a isquemia renal e lesão por reperfusão experimentais.18 Para pacientes que correm risco de lesão renal aguda devido à hipoperfusão, o uso de dexmedetomidina pode ter algum benefício, porém a administração de agonistas α2-adrenérgicos é acompanhada de diurese profunda. O mecanismo é provavelmente multifatorial, incluindo inibição da liberação de vasopressina, inibição da formação de cAMP nos rins, redistribuição dos receptores de aquaporina-2, inibição da liberação de renina, aumento do peptídio natriurético atrial, inibição da atividade simpática renal, diurese osmótica devido ao aumento dos níveis plasmáticos de glicose e inibição da reabsorção tubular de sódio.19 É interessante assinalar que esses mecanismos diferem quanto à sua importância entre agentes agonistas α2 e entre as espécies.19 Por exemplo, a xilazina exercem maior efeito diurético do que a medetomidina em cães, e a medetomidina diminuiu os níveis plasmáticos de AVP, o que não ocorreu com a xilazina.20 A produção aumentada de urina diluída pode ser prejudicial em pacientes com obstrução do trato urinário pós-renal ou desidratação e hipovolemia.21,22 Os benzodiazepínicos constituem uma classe de fármacos comumente usados em medicina veterinária, principalmente pelas suas propriedades sedativas leves e como relaxantes musculares. O diazepam e o midazolam exercem efeitos mínimos sobre o débito cardíaco, a resistência vascular sistêmica e a pressão arterial. Em consequência, o seu uso provavelmente tem pouco impacto sobre o FSR e a TFG. Entretanto, os benzodiazepínicos, à semelhança da maioria dos agentes anestésicos injetáveis e analgésicos, ligam-se às proteínas no plasma, e, em consequência, o seu uso em pacientes azotêmicos pode estar associado a maior quantidade de fármaco livre ativo. Uma redução da dose inicial é provavelmente justificada em pacientes com doença renal aguda ou que apresentam acidose grave, azotemia ou hipoproteinemia. Os pacientes com doença estável podem não necessitar de nenhum ajuste na dose. Além disso, em pacientes com lesão renal aguda, o midazolam pode apresentar redução de seu metabolismo hepático. Por meio de um mecanismo desconhecido, à medida que a gravidade e a duração da lesão renal aguda aumentam, a atividade da CYP3A, uma enzima associada ao sistema P450 no fígado, diminui, retardando o metabolismo e prolongando o efeito de fármacos como o midazolam.23 O diazepam e o lorazepam não são hidrossolúveis e, portanto, são associados ao propilenoglicol para injeção. O propilenoglicol pode induzir lesão e necrose das células tubulares renais proximais, particularmente quando presente em fármacos administrados na forma de infusão.24-26 O midazolam é hidrossolúvel e é fornecido em uma solução aquosa;

por conseguinte, pode ser um benzodiazepínico mais apropriado para uso em pacientes com doença renal significativa. Os protocolos de anestésicos e analgésicos para pacientes com doença renal frequentemente são elaborados com base no uso de opioides.16 Os opioides produzem sedação e analgesia, com impacto mínimo sobre o débito cardíaco e, portanto, o FSR dos pacientes.27 Entretanto, deve-se assinalar que a farmacocinética dos opioides pode ser alterada em pacientes com doença ou insuficiência renal.28 Os opioides de ação mais longa com metabólitos ativos, como a morfina e a meperidina (petidina), devem ser usados com cautela, visto que os metabólitos apresentam uma depuração tardia. Nos seres humanos, foi recomendado evitar o uso de morfina, meperidina e dextropropoxifeno em pacientes com disfunção renal, a fim de evitar a ocorrência de narcose prolongada.29 Entretanto, as diferenças entre espécies no metabolismo da morfina podem reduzir o risco desses fármacos em animais. A farmacocinética de buprenorfina, alfentanila, sufentanila e remifentanila, pelo menos em pacientes humanos com disfunção renal, exibe pouca modificação. A fentanila, administrada em dose única, exibe pouca alteração no seu perfil farmacocinético; entretanto, podem ocorrer acúmulo tecidual significativo e efeitos prolongados com a sua infusão contínua.29 A remifentanila é um opioide de ação curta, que sofre metabolismo completo no plasma e, embora um metabólito, GR90291, possa se acumular em pacientes com insuficiência renal, não produz efeitos opioides significativos. Por conseguinte, a remifentanila é um dos opioides mais recomendados para uso em pacientes humanos com disfunção renal.30 Os médicos também devem estar cientes do fato de que os opioides podem causar retenção urinária quando administrados sistemicamente ou como injeção epidural. Os agentes anestésicos injetáveis também podem exercer um efeito sobre os parâmetros renais. Os tiobarbitúricos aumentam a resistência vascular sistêmica, porém diminuem a resistência vascular renal sem alteração efetiva no FSR. Um sério problema relacionado com os barbitúricos é a alteração da farmacodinâmica associada a essa classe de fármacos em pacientes com doença renal. Os barbitúricos (assim como muitos outros fármacos) ligam-se altamente às proteínas, e essa ligação pode estar alterada em estados de azotemia grave. Já está bem documentado que os animais com azotemia apresentam uma ligação diminuída do tiopental às proteínas e correm maior risco de sobredose relativa quando se administra esse fármaco.31,32 Além disso, o sistema nervoso central de animais com azotemia é mais suscetível aos efeitos do tiopental quando medidos pelo eletroencefalograma.33,34 Acredita-se que isso ocorra devido a compostos endógenos alostéricos que intensificam os efeitos do tiopental que normalmente são inibidos em animais sem azotemia. Provavelmente, a melhor prática consiste em evitar o uso de tiopental em pacientes com azotemia ou com doença renal; todavia, se necessário, devem-

se reduzir as doses totais. A cetamina (e, provavelmente, a tiletamina) aumenta o FSR e a resistência vascular renal.35 Embora possa haver um aumento no FSR, a administração de cetamina pode resultar em distribuição anormal do fluxo sanguíneo no rim. Além disso, à medida que se aumenta a dose de cetamina, a atividade nervosa simpática dos rins aumenta, o FSR diminui e ocorre aumento da resistência vascular renal.36 A cetamina também inibe diretamente as proteínas transportadoras de dopamina no rim, porém a relevância clínica disso não está bem esclarecida.37 A cetamina e seus metabólitos são altamente dependentes da excreção renal. Em gatos, foi relatado que a maior parte do fármaco é excretada em sua forma inalterada, de modo que o seu uso deve ser evitado em gatos com insuficiência renal.38 Todavia, a cetamina é de fato metabolizada a norcetamina, um metabólito de primeira etapa, no fígado dos gatos; entretanto, diferentemente do que ocorre em outras espécies, a norcetamina não é metabolizada subsequentemente.39 A ligação da cetamina às proteínas é de 53%, e pode-se esperar níveis mais elevados do fármaco livre em animais com azotemia, embora o aumento do fármaco possa ser clinicamente insignificante.40 Curiosamente, em seres humanos após abuso a longo prazo, foi relatado o desenvolvimento de duas síndromes envolvendo o sistema urinário, a cistite ulcerativa induzida por cetamina e a vesicopatia induzida por cetamina.41,42 O propofol é um dos agentes de indução mais comumente usados na anestesia tanto humana quanto veterinária. O propofol produz uma redução da pressão arterial dependente da dose e da taxa de administração. Entretanto, em doses moderadas a baixas, o propofol tem efeitos mínimos sobre o FSR e a TFG e, com frequência, é usado para a indução da anestesia em pacientes com doença renal.43,44 Em ovinos, o propofol tem causado alterações hemodinâmicas menores no FSR, que não foram consideradas clinicamente importantes,45 e a TFG não foi significativamente afetada em cães aos quais foi administrado propofol em doses clinicamente usadas.13,46 Em pacientes humanos com doença renal crônica e uremia, a farmacocinética do propofol foi semelhante àquela de pacientes de controle saudáveis,47 e a recuperação da anestesia com propofol não foi diferente daquela observada em controles.48 O propofol é considerado um agente adequado para indução e anestesia intravenosa total em pacientes humanos com uremia, embora possam ser necessárias doses reduzidas.49 O etomidato é um agente anestésico conhecido pelos seus efeitos mínimos sobre a frequência cardíaca, a pressão arterial e o débito cardíaco. Foi também constatado que o etomidato não exerce efeitos significativos sobre a função renal e o débito urinário de ratos anestesiados.50 À semelhança do propofol, o etomidato não afeta significativamente a TFG em cães.47 Todavia, à semelhança do diazepam, o propilenoglicol é usado como solvente na maioria das preparações de etomidato.

Os anestésicos inalatórios podem causar hipotensão sistêmica, particularmente durante a profundidade excessiva da anestesia, o que pode resultar em isquemia renal secundária à redução do FSR e da TFG. Isso resulta de um dos principais efeitos colaterais dos anestésicos voláteis potentes, a vasodilatação periférica. Os anestésicos inalatórios também deprimem a contratilidade miocárdica e o débito cardíaco de maneira dependente da dose. Além disso, os anestésicos inalatórios também tendem a diminuir o FSR e a TFG de modo dependente da dose. Os planos superficiais de anestesia inalatória preservam a autorregulação renal do fluxo sanguíneo, enquanto os planos profundos estão associados a depressão da autorregulação e a reduções do FSR. Embora o isofluorano tenha efeitos diretos menores sobre o FSR, ele diminui a TFG e o débito urinário.51 O sevofluorano, embora não esteja bem estudado, parece exercer efeitos semelhantes aos do isofluorano sobre o FSR.52 Entretanto, quando em contato com absorventes de dióxido de carbono, o sevofluorano sofre degradação a uma substância nefrotóxica, denominada composto A. Foi constatado que o composto A provoca dano permanente aos rins de ratos, porém não foi demonstrada a ocorrência de problemas em seres humanos com insuficiência renal ou em cães com função renal normal.53,54 O desfluorano não exerce nenhum efeito sobre o FSR em concentrações de até duas vezes a concentração alveolar mínima (CAM), porém ele diminui a resistência vascular renal em concentrações acima de 1,75 CAM.55 Na maioria dos pacientes humanos e, com muita probabilidade, nos animais, os efeitos dos anestésicos inalatórios sobre a função renal são revertidos no término da anestesia. Entretanto, alguns pacientes podem não readquirir a capacidade de regular a produção de urina por vários dias.56 Qualquer paciente que apresente oligúria pós-anestésica deve ser imediatamente avaliado quanto à possibilidade de LRA. Conforme assinalado previamente, a COX-1 e a COX-2 são necessárias para o funcionamento normal do rim saudável. De fato, dessas duas enzimas, a COX-2 pode ser mais importante para o desenvolvimento renal e a preservação do FSR e da TFG, particularmente durante a hipovolemia.57 Os AINEs exercem seus efeitos por meio da supressão dessas enzimas, reduzindo a produção de prostaglandinas pró-inflamatórias. Infelizmente, os AINEs também suprimem a produção de prostaglandinas necessárias para funções constitutivas. Os AINEs que suprimem preferencialmente a COX-2 podem ser mais prejudiciais para a função renal do que os AINEs de perfil mais misto em pacientes com doença renal.57 Em cães saudáveis, o uso de carprofeno ou meloxicam peroperatório não resultou em efeitos adversos nem em alterações da função renal.58 Além disso, em cães submetidos a correção de fratura traumática, a administração de carprofeno peroperatório não produziu nenhum efeito adverso clinicamente relevante. Todavia, mesmo em pacientes saudáveis, o uso de AINE pode resultar em lesão renal fatal em cães e gatos.59,60 O uso de AINEs em qualquer paciente com evidências de LRA ou DRC deve ser evitado, a não ser

que necessário para manutenção da qualidade de vida. Nesses pacientes, é essencial obter um consentimento informado do proprietário, bem como realizar um monitoramento muito rigoroso do paciente. A anestesia e o estresse associado à cirurgia podem causar a liberação de aldosterona, vasopressina, renina e catecolaminas. Por conseguinte, o FSR e a TFG (e, portanto, a produção de urina) geralmente estão diminuídos durante a cirurgia de qualquer paciente. De fato, com a fluidoterapia intravenosa adequada (10 mℓ/kg/h) durante a anestesia, cães com função renal normal terão um débito urinário inferior à faixa habitual de 1 a 2 mℓ/kg/h em animais despertos.61 Além disso, esses cães terão evidências de retenção hídrica, que regride com o passar do tempo depois da anestesia. Essa diminuição do débito urinário pode constituir um mecanismo compensatório normal que ocorre durante a atividade metabólica reduzida dos rins ou durante um período em que os rins estão trabalhando para conservar os solutos e líquidos durante agressões ao corpo. Por conseguinte, recomenda-se o uso de parâmetros adicionais, e não apenas do débito urinário, como indicador de equilíbrio hídrico e função renal em animais anestesiados.61

Manejo anestésico de pacientes com doença renal Em pacientes com doença ou disfunção renais suspeitas ou comprovadas, deve-se proceder a um exame físico completo, exame bioquímico, medição da pressão arterial basal e avaliação da função renal antes de qualquer evento anestésico. Além disso, as doenças renais frequentemente são acompanhadas de disfunção de outros sistemas orgânicos, e isso deve ser considerado em qualquer plano anestésico. A terapia concomitante com fármacos também deve ser considerada e incorporada no plano anestésico. Por exemplo, gatos com hipertireoidismo podem apresentar doença renal crônica, hipertensão e miocardiopatia hipertrófica. Os agentes anti-hipertensivos e antiarrítmicos podem resultar em resposta aumentada do paciente a fármacos que afetam o sistema nervoso central, levando a uma sobredose relativa. A estabilização pré-anestésica de pacientes com doença renal pode ser de importância mais crítica para um resultado bem-sucedido do que os agentes anestésicos administrados. De modo geral, os parâmetros mais importantes para um paciente com doença renal consistem no estado de hidratação e no volume de sangue circulante. A manutenção do FSR e da TFG por meio de hidratação adequada irá reduzir a probabilidade de maior lesão renal e irá preservar a função renal.62 A hidratação demonstrou ser efetiva no tratamento da lesão renal e constitui uma boa estratégia para prevenir a progressão da doença renal de estágio mais avançado.63 Podem-se administrar líquidos intravenosos antes da cirurgia a pacientes com azotemia para obter uma hidratação e diurese normais. Se a azotemia for

grave e se for acompanhada de anormalidades eletrolíticas ou desequilíbrios acidobásicos, a hospitalização do paciente e a diurese podem ser realizadas várias horas antes da anestesia. Pacientes anêmicos submetidos a anestesia e procedimentos com potencial de perda sanguínea devem receber uma transfusão de hemácias se o hematócrito for inferior a 18 a 20%. Uma vez considerado estável, o paciente pode ser anestesiado. Foi recomendado um plano que utilize agentes anestésicos e analgésicos com efeitos mínimos sobre o débito cardíaco, a pressão arterial e a perfusão.16 A medicação pré-anestésica em pequenos animais pode ser obtida com uma associação de opioides e benzodiazepínicos, e a indução da anestesia pode ser realizada com propofol, tiopental, etomidato e associações de benzodiazepínicos e dissociativos ou benzodiazepínicos e opioides (Tabela 32.5). É importante lembrar que todos esses agentes anestésicos podem causar certo grau de redução do FSR e/ou da TFG, e recomenda-se que esses fármacos sejam usados para obter “o efeito”. A anestesia pode ser mantida com isofluorano ou sevofluorano. Além disso, as infusões de velocidade constante que usam agonistas opioides, como remifentanila ou fentanila, para redução dos anestésicos inalatórios irão reduzir os efeitos colaterais dependentes da dose dos anestésicos inalatórios e podem melhorar o FSR e a TFG. Em cavalos adultos, a medicação pré-anestésica sem um agonista α2-adrenérgico é impraticável; por conseguinte, o uso de doses reduzidas e a associação com butorfanol podem possibilitar uma sedação adequada. Pode-se efetuar uma indução com associação de benzodiazepínico e cetamina ou benzodiazepínico e tiopental. A administração de uma dose reduzida de cetamina ou de tiopental pode limitar os efeitos adversos do agente de indução sobre o FSR e a TFG. Em cavalos de menor porte ou pôneis, pode-se utilizar o propofol como agente de indução. Recomenda-se uma fluidoterapia intravenosa continuada durante todo o período de anestesia, a fim de manter o volume de líquidos e a hidratação. Inicialmente, o líquido intravenoso pode ser administrado em uma velocidade de 20 mℓ/kg na primeira hora e, em seguida, em uma velocidade de 10 mℓ/kg/h se o paciente não tiver doença cardíaca, hipoproteinemia ou anemia grave. A escolha do líquido intravenoso baseia-se nos dados eletrolíticos e acidobásicos do animal. Em geral, os animais com insuficiência/falência renal leve a moderada que estão bem preparados para a cirurgia ou anestesia podem receber uma reposição hídrica intravenosa cristaloide. Se houver possibilidade de obstrução do trato urinário, ou se o paciente apresentar anúria, os líquidos intravenosos devem ser usados com cautela para evitar a sobrecarga hídrica até que a obstrução ou a anúria sejam corrigidas. Tabela 32.5 Exemplo de plano anestésico para um pequeno animal com doença renal.

Fármaco

Dose

Via de administração

Butorfanol

0,2 a 0,4 mg/kg

Intramuscular

Hidromorfona

0,1 a 0,2 mg/kg

Intramuscular

Morfina

0,1 mg/kg (gatos)

Intramuscular

0,25 a 1,0 mg/kg (cães)

Intramuscular

0,2 a 0,4 mg/kg

Intramuscular

4 a 6 mg/kg (para o efeito)

Intravenosa

1 a 2 mg/kg (para o efeito)

Intravenosa

1 a 2% (para o efeito)

Inalatória

2 a 3% (para o efeito)

Inalatória

0,005 a 0,02 mg/kg/h

Infusão intravenosa

0,005 a 0,02 mg/kg/h

Infusão intravenosa

Medicação pré-anestésica Opioide de escolha:

Midazolama Indução: Propofol ou Etomidato Manutenção: Isofluorano ou Sevofluorano Adjuvantes para a manutenção: Remifentanila ou Fentanila Tratamentos de suporte:

Reposição hídrica cristaloide (lactato de Ringer, Normosol-R ou Plasma-Lyte A)

10 a 20 mℓ/kg na primeira hora 5 a 10 mℓ/kg/h depois Dose de ataque de 500 mg/kg

Manitol (solução a 20 a 25%)b Infusão de 1 mg/kg/min a

Em gatos e cães saudáveis, o midazolam pode provocar um comportamento agressivo ou excitável e pode ser retirado

do plano. b

O manitol tende a sofrer cristalização em temperatura ambiente e deve ser aquecido antes de sua administração e

fornecido através de um filtro. O monitoramento vigilante do paciente ajuda o anestesista a identificar a ocorrência de hipotensão, arritmias, hipoxemia ou hipoventilação passíveis de ter um impacto negativo sobre a função renal. O eletrocardiograma (ECG) contínuo pode detectar alterações na atividade elétrica cardíaca, que podem estar associadas a anormalidades eletrolíticas, como hiperpotassemia. A pressão arterial (PA) deve ser medida para detectar hipotensão sistêmica e diminuição da pressão de perfusão renal. A aferição indireta da PA pode ser realizada facilmente com uma técnica oscilométrica ou Doppler; entretanto, prefere-se o cateterismo arterial direto, visto que fornece uma medida mais acurada e imediata. Além disso, podem-se obter amostras para gasometria arterial do cateter arterial. A PA média deve ser mantida acima de 70 a 80 mmHg. Em pacientes que apresentam hipertensão quando examinados antes da anestesia, pode ser necessária a manutenção de uma PA média mais próxima a níveis pré-anestésicos para preservar a perfusão renal. A oximetria de pulso (SPO2) pode ser usada para detectar rapidamente uma dessaturação da hemoglobina e alertar o anestesista quanto ao potencial de diminuição do aporte de oxigênio aos tecidos. A medição contínua do dióxido de carbono término-respiratório (ETCO2) pode ser usada para detectar hipoventilação e a necessidade de ventilação assistida. O dióxido de carbono arterial em excesso pode resultar em acidemia, que pode exacerbar a doença renal aguda.64 A gasometria arterial periódica pode ser útil para acompanhar as tendências no pH, conteúdo de oxigênio e eletrólitos. Pode-se proceder a um monitoramento avançado, particularmente em animais em estado crítico. A pressão venosa central (PVC) pode ser medida por meio de cateter jugular como medição indireta do volume sanguíneo, a fim de calcular a velocidade de administração dos líquidos intravenosos. A PVC normal deve estar situada entre 3 e 5 cmH2O em cães e gatos. Se houver elevação da PVC acima de 10 cmH2O, a administração de líquido deve ter a sua velocidade reduzida ou deve ser

interrompida. Se a PVC cair em resposta à interrupção dos líquidos, estes podem ser reiniciados em uma velocidade mais lenta. Uma PVC elevada de mais de 10 cmH2O indica função miocárdica inadequada ou sobrecarga de volume. A determinação do débito cardíaco pode fornecer indicações acerca da pré-carga, do volume sistólico, da resistência vascular sistêmica e da resposta do paciente a agentes inotrópicos e pressores que podem ter um efeito sobre o FSR e a TFG.

■ Tratamentos adjuvantes para pacientes com doença renal Durante o período perianestésico, a manipulação farmacológica da fisiologia cardiovascular e renal pode ser benéfica em pacientes com doença renal. As infusões de dopamina (1 a 20 µg/kg/min) há muito tempo são consideradas úteis para melhorar a função miocárdica e o débito cardíaco. Em pacientes humanos com doença renal, doses mais baixas de dopamina (2 µg/kg/min) (p. ex., renais) demonstraram aumentar o débito urinário, porém não melhoraram o resultado global em comparação com a fluidoterapia intravenosa.63 Em cães, são administradas doses baixas (1 a 3 µg/kg/min) para promover o FSR e a TFG, porém faltam estudos para demonstrar o seu benefício. Existem controvérsias a respeito do uso da dopamina para melhorar a função renal em gatos. Continua havendo dúvidas sobre o fato de os gatos terem ou não receptores de dopamina apropriados nos rins, e a administração de dopamina em dose baixa não demonstrou ter um efeito diurético nos gatos.65 De fato, infusões de dopamina de 10 a 100 µg/kg/min podem aumentar o débito cardíaco sem alterar a TFG, o que sugere que a diurese é devida a uma diminuição da reabsorção tubular e que os receptores de dopamina não parecem desempenhar nenhum papel no FSR ou na TFG em gatos.66 Doses de dopamina acima de cerca de 10 µg/kg/min podem causar vasoconstrição renal alfa-adrenérgica e diminuição do FSR, e a sua administração deve ser evitada. A dobutamina (2 a 20 µg/kg/min) é um agente inotrópico alternativo para uso durante a anestesia. A dobutamina pode aumentar o débito cardíaco e potencialmente elevar a pressão arterial, sem ações vasoconstritoras e dopaminérgicas significativas. A furosemida também foi investigada durante a anestesia de pacientes com disfunção renal. Por ser um diurético de alça, a furosemida diminui a atividade metabólica dos túbulos renais; entretanto, foi constatado que a infusão de furosemida resulta em níveis elevados de creatinina em pacientes humanos anestesiados, e o seu uso não é recomendado.63,67 O manitol, um diurético osmótico, possui vários efeitos potencialmente benéficos sobre o rim. O manitol é filtrado livremente e não é reabsorvido pelos rins, de modo que ele atua como agente osmótico nos túbulos renais, bem como na circulação sistêmica. A administração de manitol pode induzir dilatação das arteríolas renais, diminuição da

resistência vascular e viscosidade sanguínea e remoção de radicais livres de oxigênio.68 É possível melhorar o fluxo sanguíneo renal em gatos pela administração de uma dose de ataque intravenosa de manitol (500 mg/kg) e, em seguida, infusão de velocidade constante (1 mg/kg/min) durante o período anestésico.69 Na LRA, o manitol induziu redistribuição do fluxo sanguíneo sistêmico para os rins e aumentou o fluxo urinário.70 Em um modelo experimental de hipoxia em rins de coelho, o manitol diminuiu o edema das células tubulares e impediu a ocorrência de hipertensão intratubular proximal, resultando na melhora do fluxo sanguíneo.71 O manitol deve ser usado com cautela em pacientes que estão recebendo outros diuréticos, como a acetazolamida, visto que o uso excessivo pode resultar em insuficiência renal aguda hiponatrêmica.72 O fenoldopam é um agonista dos receptores dopaminérgicos no receptor DA-1, que apresenta propriedades vasodilatadoras renais. O fenoldopam não exerce nenhum efeito sobre os receptores DA-1 ou α que podem causar vasoconstrição e resultar em diminuição do FSR e da TFG. De fato, o fenoldopam aumenta o FSR e pode ajudar a preservar a função renal. Foi constatado que o fenoldopam diminui a creatinina e melhora a função renal em seres humanos, em uma dose de 0,1 µg/kg/min, em comparação com a infusão de dopamina, podendo ser efetivo na redução da hipoperfusão renal.73 Em cães, o fenoldopam, administrado em uma dose de 0,8 µg/kg/min, resultou em uma concentração plasmática no estado de equilíbrio dinâmico de 20 ± 17 ng/mℓ. A frequência cardíaca e a pressão arterial sistólica não foram afetadas pela infusão em nenhum dos cães.74 Entretanto, em um modelo canino de rabdomiólise, a administração de fenoldopam diminuiu a depuração de creatinina e aumentou a gravidade da lesão renal.75 Em gatos saudáveis e despertos, o fenoldopam, na dose de 0,5 µg/kg/min, aumentou o débito cardíaco apenas depois de 6 h de infusão e aumentou a excreção de sódio. Além disso, a administração de fenoldopam teve um efeito bifásico sobre a TFG, com redução nas primeiras 6 h e, em seguida, aumento subsequente.76

Manejo anestésico de pacientes com obstrução uretral As espécies que comumente apresentam obstrução e correção de obstrução uretral incluem gatos, cães, ovinos e caprinos; todavia, os equinos e bovinos também podem ser afetados. Com frequência, os pacientes com obstrução uretral apresentam anormalidades metabólicas e acidobásicas. Essas anormalidades consistem em hiperpotassemia, azotemia, acidemia, hiperfosfatemia, hiperglicemia, hipocalcemia, hiponatremia e hipocloremia. A hiponatremia e a hipocloremia frequentemente estão associadas a extravasamento da urina na cavidade abdominal, e qualquer paciente que apresente essas anormalidades deve ser

examinado quanto à possibilidade de ruptura uretral ou da bexiga. A hiperpotassemia representa, talvez, o maior problema e deve ser abordada imediatamente. Em geral, os pacientes que apresentam concentrações séricas de potássio acima de 5,5 a 6,0 mEq/ℓ não devem ser anestesiados até que os níveis de potássio possam ser normalizados. Em geral, observam-se anormalidades do ECG na presença de concentrações de potássio superiores a 7 mEq/ℓ. Anormalidades no ECG em determinada concentração plasmática também podem estar relacionadas com a cronicidade da alteração, sugerindo que o ECG pré-anestésico pode ser valioso toda vez que houver anormalidades do potássio. O potencial de repouso da membrana do músculo cardíaco depende da permeabilidade e da concentração extracelular de potássio (Figura 32.2). Durante a hiperpotassemia, ocorre elevação do potencial de repouso da membrana (parcialmente despolarizada), e há menos canais de sódio disponíveis para participar no potencial de ação. À medida que aumenta a concentração sérica de potássio, a repolarização ocorre mais rapidamente, e a automaticidade, a condutividade, a contratilidade e a excitabilidade estão diminuídas. Essas alterações produzem a aparência ECG clássica de uma onda T apiculada com prolongamento do intervalo PR, progredindo para complexos QRS largos e perda das ondas P. A hiperpotassemia crônica leve pode não exigir tratamento antes da anestesia. Se for instituído um tratamento para a hiperpotassemia crônica, o nível sérico de potássio deve ser reduzido gradualmente para permitir que o potássio intracelular tenha tempo para restabelecer gradientes de concentração transmembrana fisiológicos. Se a hiperpotassemia for aguda, ou se forem observadas anormalidades do ECG, o tratamento de ser iniciado antes da indução da anestesia. O tratamento mais rápido para os efeitos cardíacos associados à hiperpotassemia consiste em cloreto de cálcio a 10% (0,1 mg/kg IV). O cálcio aumenta o potencial limiar da membrana, resultando em aumento da condução e contratilidade miocárdicas. Como a concentração sérica aumentada de potássio faz com que o potencial de repouso seja menos negativo (parcialmente despolarizado), o aumento do potencial limiar induzido pelos íons cálcio restabelece temporariamente o gradiente normal entre os potenciais de repouso e limiar. Deve-se ter em mente que a administração de cálcio não irá afetar a concentração sérica de potássio, de modo que seus efeitos são de curta duração. Os esquemas para diminuir a concentração sérica de potássio por meio de desvio do potássio para dentro das células incluem administração de bicarbonato e infusão combinada de glicose e insulina (Tabela 32.6). Como a acidemia favorece o movimento extracelular de potássio e agrava a hiperpotassemia, a ventilação com pressão positiva intermitente pode ser necessária para prevenir a hipercapnia induzida pelo agente anestésico e acidose respiratória.

Figura 32.2 Relações entre as concentrações extracelulares de potássio e cálcio e o potencial de repouso (PR) e o potencial limiar (PL). Um potencial de ação é gerado quando há despolarização suficiente para alcançar o PL. O aumento do potássio extracelular irá resultar em PR elevado (menos negativo), enquanto o aumento do cálcio extracelular irá resultar em elevação do PL.

Em alguns pacientes, a cistocentese percutânea pode ser realizada às cegas ou com orientação da ultrassonografia para drenagem da urina e redução do desconforto do paciente, embora a lesão e a ruptura da bexiga e a laceração da aorta representem uma preocupação.77 Deve-se instituir fluidoterapia intravenosa para corrigir a desidratação e as anormalidades acidobásicas e eletrolíticas. Uma vez estabilizado o paciente, a anestesia pode ser administrada com um protocolo semelhante ao da Tabela 32.5 em pequenos animais e pequenos ruminantes e com protocolos padrões para pacientes de maior porte. Em cavalos com obstrução uretral, foi relatada a ocorrência de ruptura da bexiga durante a infusão da anestesia, presumivelmente devido a um aumento na pressão do compartimento abdominal com o decúbito.78 A uretrosotomia perineal pode ser realizada em cavalosmachos usando sedação e anestesia epidural para aliviar a obstrução. A fluidoterapia intravenosa desprovida de potássio tem sido considerada como tratamento de escolha para animais com obstrução uretral. Todavia, particularmente em gatos, em comparação com o soro fisiológico (NaCl 0,9%), a solução de lactato de Ringer é a melhor escolha, visto que os animais apresentam uma duração diminuída dos desequilíbrios metabólicos e eletrólitos após alívio da obstrução.79 Em gatos com obstrução uretral leve ou parcial, pode ser necessária apenas sedação para facilitar a passagem de um cateter uretral e aliviar a obstrução. Nesses casos, após administração de líquidos e estabilização, pode-se usar opioide para analgesia, seguido de doses subanestésicas de propofol (0,25 a 1,0 mg/kg IV) para sedação. Deve-se fornecer

oxigênio suplementar durante a sedação com propofol. Em gatos-machos, a administração intrauretral de 4 mℓ de atracúrio diluído (0,5 mg/mℓ) aumentou significativamente a probabilidade e reduziu o tempo necessário para a remoção da obstrução.80 Outra abordagem consiste no uso de administração epidural coccígea com anestésico local, como a lidocaína, para reduzir a dor e o desconforto durante e após a desobstrução da uretra.81 Entretanto, a administração intravesical de lidocaína e bicarbonato de sódio não tem nenhum efeito benéfico e não reduz a taxa de recorrência ou a gravidade dos sinais clínicos em gatos com obstrução uretral.82 Tabela 32.6 Opções de tratamento para pacientes com hiperpotassemia. Tratamento

Dose

Uso

Cloreto de cálcio

0,1 mg/kg IV

Eleva o potencial limiar

Aumenta a liberação de Glicose a 50%

1 a 2 mℓ/kg IV

insulina endógena para impulsionar o K+ para dentro das células

Insulina regular

Bicarbonato de sódio

0,25 a 1 U/kg IV

1 a 2 mEq/kg IV

Impulsiona o K+ para dentro das células

Comentários Administrar lentamente. Atua de modo temporário.

Diluir para uma solução a 5 a 10% para reduzir o dano osmótico

Administrar com glicose e monitorar o nível de glicemia para evitar a hipoglicemia

Aumenta o pH para produzir

Monitorar a ventilação; a

troca de H+ intracelular por

retenção de CO2 pode resultar

K+

em agravamento da acidemia

Os cuidados pós-anestésicos cuidadosos desses pacientes são essenciais, visto que é comum a ocorrência de diurese prolongada após o alívio da obstrução. Pode-se esperar um débito urinário de mais de 2 mℓ/kg/h em cerca de 46% dos gatos nas primeiras 6 h de tratamento, o que exige maior velocidade de administração dos líquidos, que deve ser gradualmente reduzida depois de alguns dias.83 Em ovinos ou caprinos com obstrução uretral, pode ser necessária sedação ou anestesia para protrair o pênis e examinar o processo uretral, um dos locais mais comuns de obstrução uretral nessas espécies. A estabilização pré-anestésica para correção dos desequilíbrios acidobásicos e hidreletrolíticos deve ser realizada de modo semelhante ao

mencionado anteriormente para pequenos animais. Os agonistas dos receptores α2adrenérgicos, como a xilazina, devem ser evitados, em virtude de seus efeitos diuréticos.84 Um benzodiazepínico em associação com um opioide pode fornecer sedação adequada para o exame inicial, particularmente em animais com dor. A anestesia pode ser induzida com propofol, benzodiazepínico-associativo ou máscara com anestésico inalatório. Além disso, pode-se realizar uma anestesia adjuvante com administração epidural de anestésico local.

■ Manejo anestésico de pacientes com ruptura da bexiga urinária e uroabdome O uroabdome, que é definido como a urina na cavidade peritoneal, pode ocorrer em qualquer espécie animal. Nos pequenos animais, o uroabdome é mais comumente causado por traumatismo veicular, mas também pode resultar de ruptura dos ureteres, da bexiga ou da uretra em consequência de obstrução ou neoplasia, ou de lesão iatrogênica. Em animais de grande porte, o uroabdome está mais comumente associado a obstrução uretral; entretanto, em potros no período neonatal, é mais comumente observado em machos, e acredita-se que ocorra quando o potro passa pelo canal do parto com bexiga cheia ou em consequência de infecção umbilical e necrose do úraco.85 Em qualquer espécie, é importante reconhecer que o uroabdome não é uma emergência cirúrgica. A correção da azotemia pós-renal e das anormalidades do equilíbrio acidobásico e dos eletrólitos é de suma importância, e a correção cirúrgica habitualmente pode ser adiada por várias horas até que o paciente esteja estabilizado.86 As anormalidades comuns consistem em hiponatremia, hipocloremia e hiperpotassemia. Ocorre desenvolvimento de hiponatremia e hipocloremia em consequência da diluição devido ao excesso de água livre que não pode ser excretada, e observa-se o desenvolvimento de hiperpotassemia devido ao excesso de potássio que não consegue ser excretado face à liberação das reservas intracelulares, particularmente durante a acidose.87 Recomenda-se a terapia de reposição hídrica e eletrólitos, e a hiperpotassemia pode ser tratada, conforme indicado anteriormente. A abdominocentese pode ser realizada para remover o acúmulo de urina e reduzir a azotemia e as cargas de potássio. A creatinina do líquido peritoneal pode ser comparada com a creatinina sérica, e a obtenção de uma razão acima de 2:1 confirma a presença de uroperitônio. Após a normalização das anormalidades séricas do paciente e, em particular, a redução do potássio, o animal pode ser anestesiado de acordo com os protocolos anteriormente descritos para correção cirúrgica.

Oligúria e lesão renal aguda pós-anestésicas A diminuição do débito urinário e a LRA constituem complicações importantes que podem

surgir após anestesia, incluindo desenvolvimento de doença renal incidental, além de progressão aguda para DRC. A oligúria pós-anestésica (< 0,5 mg/kg/h), que pode ocorrer em pacientes após anestesia prolongada, bem como após procedimento cirúrgico de grande porte, deve levar à consideração e à avaliação das causas de oligúria ou LRA.88 Pode-se esperar algum grau de oligúria em pacientes que apresentam perda de líquido ou de sangue, bem como secundariamente à resposta do córtex adrenal ao estresse. Em pacientes humanos, foi documentada a liberação aumentada de aldosterona e vasopressina nas primeiras 24 h após a cirurgia. Esses aumentos resultam em reabsorção aumentada de sal e de água, com consequente redução da produção de urina. Entretanto, essa oligúria deve ser temporária e, em geral, não dura mais do que 24 h. As causas patológicas da oligúria e LRA pós-anestésicas podem ser divididas em categorias pré-renal, renal e pós-renal.88 As causas pré-renais incluem hipotensão e hipovolemia. As causas renais consistem em necrose tubular aguda (isquemia e reperfusão) e nefrite intersticial aguda (toxicidade farmacológica devido a AINEs, antibióticos ou diuréticos). As anormalidades pós-renais podem resultar de obstrução física ao fluxo de urina. São recomendadas técnicas destinadas a prevenir a oligúria e a LRA pós-anestésicas, particularmente nos pacientes de alto risco. O monitoramento fisiológico dos sinais vitais para identificação de hipotensão e diminuição da perfusão inclui coloração das mucosas, tempo de enchimento capilar, aferição da pressão arterial, oximetria de pulso ETCO2 e eletrocardiografia. As técnicas de monitoramento avançadas, como medições da PVC e do débito cardíaco, podem ser justificadas em pacientes em estado crítico. A administração de líquidos intravenosos para manter ou expandir o volume intravascular constitui a base da terapia para prevenção da LRA.88 A terapia coloidal, como o uso de hidroxietil amido, pode ser benéfica para manter a expansão vascular; entretanto, há algumas evidências de que possa causar nefrotoxicidade.89 Conforme assinalado anteriormente, o uso de manitol pode ser adequado para manutenção do FSR e da TFG durante a anestesia em casos com alto risco de oligúria ou LRA pós-anestésicas. As técnicas para manter uma pressão arterial média superior a 60 a 65 mmHg em pequenos animais e cavalos e ruminantes de menor porte e superior a 70 a 75 mmHg em cavalos adultos e ruminantes são de suma importância para a perfusão adequada dos rins. O nível aceitável de hipotensão depende da pressão arterial basal, e pode ser necessário manter a pressão arterial média em níveis mais altos nos pacientes com hipertensão crônica.90 Em pacientes humanos, recomenda-se que a pressão arterial média seja mantida dentro de 20% dos valores basais no estado desperto, visto que esse valor está dentro da faixa de queda da pressão arterial durante o sono.88,91 O uso de agentes inotrópicos ou técnicas de preservação anestésica (redução da CAM) para obter essas pressões desejadas deve constituir uma prática padrão para pacientes com

condições que predisponham à LRA. O manejo do paciente pós-anestésico no qual se diagnostica a ocorrência de oligúria ou LRA deve começar com a identificação da causa. As causas reversíveis, como obstrução, hipotensão e hipovolemia, devem ser excluídas ou corrigidas. A aferição da pressão arterial e a fluidoterapia intravenosa podem ser úteis. Se for estabelecida a origem renal da oligúria (em lugar de pré- ou pós-renal), devem-se efetuar provas de função e exames complementares, conforme descrito anteriormente. O tratamento da oligúria e LRA pós-anestésicas consiste em líquidos intravenosos e eletrólitos. A administração de diuréticos e agentes vasoativos é controversa. A dopamina tem sido tradicionalmente utilizada em pacientes com oligúria e LRA. Foram usadas doses mais baixas, de 1 a 3 µg/kg/min, para aumentar o FSR, a TFG, o débito urinário e a excreção de sódio e para diminuir a resistência vascular renal em várias espécies.92 Nos seres humanos, a terapia com dopamina em baixas doses para pacientes com disfunção renal resultou em melhora transitória do débito urinário e dos níveis de creatinina; entretanto, não foi constatada nenhuma melhora na mortalidade nem nos resultados a longo prazo.93 O uso de diuréticos, como a furosemida, tampouco conseguiu produzir qualquer melhora nos resultados clínicos e pode até agravar a lesão renal.88 Em pacientes hipovolêmicos, a furosemida pode aumentar a nefrotoxicidade de outros fármacos ao prolongar o tempo de contato nos túbulos renais.94 Os diuréticos podem ser úteis em pacientes que desenvolvem edema pulmonar e sobrecarga hídrica em consequência da LRA.95 Conforme assinalado anteriormente, o manitol pode exercer efeitos benéficos em pacientes com LRA e também pode ser utilizado em pacientes com sobrecarga de volume e edema pulmonar. Após identificação da oligúria e LRA pós-anestésicas e tratamento das condições reversíveis, a meta da terapia consiste em minimizar o dano renal contínuo ou a longo prazo. Pode ser necessário o monitoramento a longo prazo da função renal.

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Introdução Transplante renal Introdução Considerações pré-operatórias Conduta anestésica Diálise peritoneal Introdução Seleção de casos Procedimentos e equipamento da diálise peritoneal Hemodiálise Introdução e seleção de casos Procedimentos de hemodiálise intermitente e equipamento Depuração (clearance) dos fármacos (agentes anestésicos) na diálise Conclusão Referências bibliográficas

Introdução Os rins são responsáveis por numerosas funções biológicas essenciais, como a remoção de produtos finais nitrogenados do sangue, a retenção de solutos, proteínas e células sanguíneas, a manutenção do equilíbrio acidobásico, a regulação dos níveis eletrolíticos e da eritropoese e o controle da pressão arterial sistêmica. A lesão renal aguda (LRA) e a doença renal crônica (DRC) constituem entidades clínicas comuns, que estão associadas a um comprometimento da função renal. Dependendo da etiologia e da cronicidade, os

pacientes apresentam sinais clínicos, como vômito, diarreia, ulceração oral, anorexia, perda de peso, polidipsia e alterações do débito urinário, como poliúria, oligúria ou anúria. Com frequência, os pacientes também podem apresentar distúrbios eletrolíticos e do equilíbrio acidobásico (p. ex., hiperpotassemia, acidose metabólica) e/ou sobrecarga de volume. Para aliviar esses graves sinais clínicos, melhorar a qualidade de vida e prolongar o tempo de sobrevida nesses pacientes, as terapias renais substitutivas recentemente tornaram-se populares como opções de tratamento para o controle dos sinais clínicos de uremia em cães e gatos. As terapias renais substitutivas incluem tanto técnicas extracorpóreas (hemodiálise e hemofiltração) quanto intracorpóreas (diálise peritoneal e transplante renal). Embora essas terapias estejam associadas a aspectos financeiros, éticos e emocionais consideráveis, elas foram evoluindo de entidades clínicas não tradicionais e de uso raro para opções terapêuticas progressivas e mais frequentes para animais de companhia com comprometimento renal. Neste capítulo, são discutidos inicialmente os princípios singulares utilizados no manejo anestésico crítico de cães e gatos submetidos a transplante renal, seguidos de uma descrição das técnicas de diálise específicas.

Transplante renal ■ Introdução Em meados da década de 1950, Guild et al. realizaram o primeiro transplante renal bemsucedido em gêmeos idênticos humanos.1 Entretanto, somente nessas últimas décadas é que o transplante renal ganhou popularidade em medicina veterinária clínica como tratamento para animais de companhia com DRC. As taxas de morbidade e de mortalidade associadas ao transplante renal diferem significativamente entre cães e gatos. Por exemplo, o período de sobrevida médio para pacientes caninos clínicos é variável, e os relatos incluem desde 18 dias2 até 8 meses.3 Por outro lado, o tempo de sobrevida médio em felinos clínicos varia de 360 a 613 dias, e 59 a 65% dos pacientes ainda permanecem vivos depois de 6 meses, e 41 a 45% depois de 3 anos.4-6 As razões exatas pela menor taxa de sucesso no transplante renal de cães em comparação com os gatos não estão totalmente esclarecidas. Entretanto, a acentuada resposta imune do hospedeiro que ocorre em cães exige a administração de terapia imunossupressora potente para prevenir a rejeição, aumentando, assim, a possibilidade de eventos adversos.7-9 De modo coerente com essa hipótese, uma análise retrospectiva de 26 transplantes renais em cães mostrou que 8 de 12 cães submetidos à necropsia morreram de eventos tromboembólicos.2 O tromboembolismo está associado à imunossupressão (entre outros fatores) e é descrito como uma complicação no transplante

de humanos, porém é raramente observado em gatos.9,10 Embora a idade crescente em pacientes tanto caninos quanto felinos também seja identificada como um importante fator de risco para o aumento da mortalidade após transplante tanto em cães quanto em gatos,2,6 a azotemia pré-operatória grave, a hipertensão e a doença cardiovascular também estão associadas a um aumento da mortalidade exclusivamente em gatos.6 Por conseguinte, embora o transplante renal pareça ser um tratamento promissor para a DRC em cães e gatos, a seleção discriminante dos pacientes e a avaliação do risco pré-operatório podem aumentar a sobrevida dos receptores de transplante renal.

■ Considerações pré-operatórias Muitos pacientes com DRC que chegam para transplante renal apresentam anormalidades eletrolíticas e do equilíbrio acidobásico. Outras comorbidades, como hipertensão e doença cardiovascular, também são frequentes e estão associadas a maior taxa de mortalidade pósoperatória em pacientes felinos.6 O tratamento peroperatório desses distúrbios pode reduzir as taxas de complicação; por conseguinte, os pacientes devem receber tratamento clínico antes do transplante, e devem-se corrigir os problemas coexistentes na medida do possível. Devem-se obter um hemograma completo e exames bioquímicos do soro, visto que a magnitude da elevação dos níveis sanguíneos de ureia e de creatinina está associada a um aumento da mortalidade em gatos,6 mas não em cães.2 Além disso, é necessário obter um exame e cultura de urina, tipagem do sangue, radiografias de tórax e abdome, ultrassonografia cardíaca e abdominal e medições da pressão arterial sistêmica para avaliar quaisquer morbidades preexistentes e garantir tipos sanguíneos compatíveis. O preparo préoperatório do paciente inclui a colocação de cateter venoso central de lúmen duplo ou triplo para administração crônica de soluções eletrolíticas balanceadas, de modo a corrigir as anormalidades eletrolíticas e do equilíbrio acidobásico, medir a pressão venosa central (PVC) e facilitar a coleta de amostras de sangue (Figura 33.1). A terapia imunossupressora também pode ser instituída, e tanto a hemodiálise quanto a diálise peritoneal podem ser realizadas antes do transplante (ver adiante). Pode-se administrar também uma transfusão de hemácias, ou pode-se instituir uma terapia de reposição de eritropoetina para aumentar a capacidade de transporte do oxigênio, se o paciente apresentar anemia grave (PVC < 20%). O ponto de disparo para a administração de transfusão a pacientes com doença renal crônica frequentemente é mais baixo do que aquele para pacientes mais sadios, por causa dos mecanismos compensatórios associados à doença crônica; por conseguinte, os pacientes devem ser avaliados de modo individual.

Figura 33.1 Exemplo de um tipo de cateter intravenoso de lúmen triplo inserido na veia jugular direita de um gato. Esses cateteres devem ser colocados no pré-operatório, na sedação, utilizando a técnica Seldinger e, subsequentemente, são usados para monitoramento da PVC, fluidoterapia, administração de sangue e coleta de amostras de sangue no peroperatório. Podem ser também utilizados para técnicas de hemodiálise.

■ Conduta anestésica A meta final do período anestésico é proporcionar anestesia, analgesia e relaxamento muscular aceitáveis para o paciente, sem comprometer a função renal remanescente ou a função do novo enxerto. Por conseguinte, o plano anestésico inclui agentes que produzem depressão cardiovascular mínima, que não são diretamente nefrotóxicos e que dependem minimamente dos rins para a sua excreção. Controle do doador de rim Os doadores de rim são fornecidos pelos clientes ou são adotados pelo proprietário do receptor antes de qualquer procedimento cirúrgico. São animais jovens e sadios com

funções cardiovascular e renal normais, de modo que os procedimentos anestésicos para a retirada do rim são habituais e escolhidos com base na disposição e necessidades anestésicas do doador em particular. Todavia, a acepromazina é usada com frequência no pré ou intraoperatório para promover a dilatação da vasculatura renal por meio de bloqueio dos receptores α1-adrenérgicos,11,12 e são administrados frequentemente agonistas dos receptores opioides μ como agentes analgésicos adjuvantes. Controle do receptor de rim A anestesia do receptor de rim é realizada de maneira semelhante à de outros pacientes com DRC. Entretanto, os receptores apresentam desafios singulares ao aceitar um novo rim (enxerto) que foi retirado de um doador e conservado em condições hipóxicas por vários minutos a horas (Figura 33.2A) (para técnicas microcirúrgicas e de armazenamento, ver referências 2, 13-16). Embora poucos agentes anestésicos de uso atual sejam diretamente nefrotóxicos, muitos alteram a função renal por meio de redução do débito cardíaco, da pressão arterial sistêmica, do estado neuroendócrino e do fluxo sanguíneo renal (FSR), o que irá afetar subsequentemente a taxa de filtração glomerular (TFG). A resposta de estresse à cirurgia pode liberar aldosterona, vasopressina, renina e catecolaminas endógenas, que podem aumentar a resistência vascular renal e, subsequentemente, reduzir a TFG.17-19 Por conseguinte, os objetivos do período anestésico consistem em reduzir o estresse do paciente e em manter a pressão arterial sistêmica (e, portanto, a TFG) o tanto quanto possível pelo uso de agentes anestésicos com depressão cardiovascular mínima.

Figura 33.2 Transplante renal intraoperatório. A. Rim de doador (seta) colocado no abdome do receptor após armazenamento extracorpóreo. Observe a coloração pálida do rim armazenado, visto que as anastomoses ainda não estão concluídas nessa fotografia. B. Rim de doador (seta) após anastomose da artéria e veia renais e aplicação de clorpromazina na artéria renal. Observe a coloração rosada (perfundida) do rim em comparação com o rim em

(A). Fonte: Dr Jon H. McAnulty, Department of Surgical Sciences, School of Veterinary Medicine, University of Wisconsin, Madison, Wisconsin, EUA. Reproduzida, com autorização, de Jon McAnulty. (Esta figura encontra-se reproduzida em cores no Encarte.)

Os agentes anestésicos e analgésicos devem ser escolhidos de acordo com o estado fisiológico e características de cada paciente, visto que o paciente de transplante é único. Não existe nenhum protocolo universal que possa ser utilizado para todos os pacientes. Entretanto, é comum utilizar uma medicação pré-operatória com uma associação de fentanila, um agonista dos receptores opioides μ, e um benzodiazepínico, visto que nem a fentanila nem os fármacos da classe dos benzodiazepínicos afetam substancialmente a função cardiovascular (Tabela 33.1).20-23 Por exemplo, a fentanila ou um análogo da fentanila (incluindo sufentanila, alfentanila e remifentanila) e o midazolam são frequentemente administrados por via intravenosa para facilitar a indução da anestesia, proporcionar analgesia e reduzir a resposta de estresse à cirurgia. A fentanila é vantajosa, visto que apresenta uma duração de ação relativamente curta, o que facilita ajustes rápidos; além disso, não libera histamina e é minimamente excretada (< 10%) em sua forma inalterada pelos rins.24-26 Embora outros opioides, como a hidromorfona, possam ser aceitáveis para uso como analgésicos, não se recomenda a morfina. A administração de morfina aumenta os níveis plasmáticos de histamina, o que pode estar associado à hipotensão sistêmica.24 Além disso, a morfina 6-glicuronídio é um produto metabólico ativo da morfina nos cães e nos seres humanos, e a eliminação tardia em pacientes com insuficiência renal pode prolongar os efeitos do fármaco.27-31 Embora os gatos tenham baixos níveis de glicuroniltransferase, e a morfina sofra um tipo diferente de reação de conjugação nessa espécie, a farmacocinética da morfina é ligeiramente semelhante àquela observada em cães e seres humanos, porém as taxas de depuração podem ser ligeiramente mais lentas.32-34 Por conseguinte, não se recomenda habitualmente a administração de morfina a receptores felinos de rim, quando se dispõe de outros opioides. De modo semelhante, os agonistas α2-adrenérgicos, como a dexmedetomidina, devem ser evitados, visto que eles reduzem o débito cardíaco, com aumento na resistência vascular sistêmica.3540 As fenotiazinas tampouco são recomendadas como medicação pré-anestésica de rotina, visto que a sua administração pode resultar em menor resistência vascular sistêmica e pode diminuir potencialmente a pressão arterial em cães e gatos tanto conscientes quanto anestesiados por meio de bloqueio periférico dos receptores alfa-adrenérgicos.12,41,42 Tabela 33.1 Agentes anestésicos/analgésicos comumente usados para receptores de terapia renal substitutiva. Agente

Dose/Via de administração

Medicação préanestésica/Sedativos/Analgésicos Midazolam

0,05 a 0,20 mg/kg IV, IM

Diazepam

0,05 a 0,2 mg/kg IV

Fentanila

2 a 5 μg/kg IV

Hidromorfona

0,05 a 0,1 mg/kg IV, IM

Oximorfona

0,05 a 0,1 mg/kg IV, IM

Propofol

2 a 8 mg/kg até obter o efeito desejado IV

Benzodiazepínicos

Opioides

Agentes de indução Agentes de manutenção

Isofluorano Inalatórios

Sevofluorano

Doses mínimas necessárias

Desfluorano Opioides

Fentanila

2 a 20 μg/kg/h IV

Buprenorfina

20 a 40 μg/kg IV, TM, IM

Fentanila

1 a 4 μg/kg/h IV

Analgésicos pós-operatórios

Opioides

A indução anestésica é efetuada com a administração lenta de pequenas doses de propofol, visto que o fármaco é rapidamente metabolizado tanto pelo fígado quanto por meios extra-hepáticos, e o FSR e a TFG são minimamente afetados (Tabela 33.1).43,44 Embora seja metabolizada significativamente no fígado, a cetamina é, em geral, evitada, visto que o seu metabólito ativo, a norcetamina, é excretado de modo inalterado pelos rins45 e pode contribuir para os efeitos prolongados do fármaco em animais com função renal diminuída. Se houver necessidade de cetamina como medicação pré-anestésica ou agente de indução (p. ex., em decorrência do comportamento do animal ou da falta de alternativa), as doses devem ser reduzidas o máximo possível por meio de sua associação com agentes de coindução apropriados. O etomidato não é habitualmente recomendado, visto que,

embora tenha efeitos cardiovasculares mínimos, ele induz supressão adrenal, que, em alguns estudos, foi associada a um aumento da mortalidade pós-operatória em seres humanos em estado crítico.46,47 Durante a manutenção da anestesia (Tabela 33.1), a maioria dos anestésicos inalatórios reduz a TFG (isofluorano, sevofluorano, desfluorano), e deve-se procurar reduzir os níveis e manter a pressão arterial sistêmica.44,48 Por conseguinte, é comum utilizar uma infusão de fentanila ou outro análogo da fentanila em velocidade constante durante todo procedimento cirúrgico, a fim de reduzir os níveis inalatórios e aumentar a antinocicepção.49-51 Embora tenha havido uma preocupação quanto ao fato de que o sevofluorano possa não ser seguro para uso na IRA ou na DRC, por causa da produção do composto A potencialmente nefrotóxico (pelo menos em espécies de roedores) e fluoreto inorgânico, não foi demonstrada a ocorrência de efeitos adversos em pacientes clínicos, e o fármaco pode ser administrado a estes pacientes, assim como o isofluorano e o desfluorano.48,52-54 Em seres humanos, tem sido utilizada a anestesia regional empregando anestésicos (bupivacaína) e opioides em técnicas de anestesia espinal, epidural ou combinações de anestesia espinal-epidural (CAEE).55-58 A técnica de CAEE é considerada uma alternativa segura e útil para anestesia geral em pacientes nos quais a anestesia geral pode ser difícil, como aqueles com patologia pulmonar significativa ou instabilidade cardiovascular. Embora a resposta do estresse na vasculatura renal provavelmente seja diminuída quando se utilizam anestésicos locais nessas técnicas e, portanto, possam promover um aumento do fluxo sanguíneo renal para o enxerto, não foi constatada nenhuma diferença significativa no tempo ou na duração da anestesia, nas condições cirúrgicas, na estabilidade hemodinâmica ou na função renal pós-operatória precoce quando a técnica de CAEE foi comparada com a anestesia geral com agentes inalatórios.55,56 Na atualidade, essas técnicas não são comumente utilizadas em pacientes veterinários, em decorrência da preocupação relacionada com as complicações neurológicas que ocorrem após injeção neuraxial em pacientes heparinizados e imunossuprimidos. O monitoramento anestésico intraoperatório é fundamental para o manejo do risco de pacientes submetidos a transplante renal e inclui oximetria de pulso, capnometria, eletrocardiograma e temperatura corporal central. Além disso, o monitoramento e manejo hemodinâmicos intraoperatórios são fundamentais para assegurar uma pressão de perfusão razoável dos órgãos, sem, contudo, submeter o paciente a uma sobrecarga hídrica. Embora a PVC nem sempre exiba uma boa correlação com o estado hídrico geral do paciente, a ocorrência de alterações agudas na PVC pode indicar sobrecarga hídrica iminente. Entretanto, essa relação continua controversa.59 A pressão arterial invasiva deve ser rigorosamente monitorada, visto que os pacientes podem apresentar normo, hipo ou hipertensão durante o procedimento cirúrgico e no período pós-operatório. Deve-se inserir

um cateter arterial na artéria dorsal do pé ou artéria femoral contralateral ao lado do transplante, se possível, visto que a aorta ou seus principais ramos podem ficar ocluídos durante a anastomose da artéria renal. Como alternativa, pode-se utilizar a artéria coccígea, mas pode ser difícil mantê-la limpa e permeável no pós-operatório. É fundamental ter cuidado na manipulação desses cateteres, visto que os pacientes podem estar propositadamente heparinizados, de modo que pode ocorrer sangramento excessivo no local da punção. Como alternativa, podem-se obter as pressões arteriais indiretas com o uso de um detector de fluxo Doppler ultrassônico quando não é possível cateterizar uma artéria; entretanto, esse método pode ser menos acurado, dependendo das circunstâncias.60-64 A fluidoterapia intravenosa deve consistir em uma solução eletrolítica balanceada, administrada em uma velocidade de 5 a 10 mℓ/kg/h, com base nas necessidades individuais e nas comorbidades do paciente (p. ex., doença cardíaca). Nos seres humanos, o cloreto de sódio a 0,9% não é recomendado, por causa dos desvios extracelulares do potássio sérico, aumento do cloreto sérico e diminuição do pH (acidose hiperclorêmica).65-67 Os coloides sintéticos, como o hetastarch (hidroxietilamido), devem ser usados com cautela, em decorrência dos efeitos adversos potenciais, como coagulopatias, disfunção do sistema reticuloendotelial e comprometimento da função renal.68 Seu uso é reservado para situações que exibem aumento da pressão coloidosmótica, visto que ainda não se dispõe de dados completos sobre o uso até mesmo do hetastarch de peso molecular médio em relação à função do enxerto. Se o paciente permanecer hipotenso em anestesia geral, podem-se administrar agonistas dos receptores beta-adrenérgicos, como a dobutamina, para aumentar o débito cardíaco. O uso da dopamina continua sendo controverso, por causa das diferenças entre espécies na farmacologia dos receptores e no aumento potencial da resistência vascular sistêmica com doses mais altas.31 Quando o paciente não pode tolerar uma carga hídrica adicional, pode-se considerar o uso de vasopressores para tratar a hipotensão, apesar do risco de vasoconstrição renal. Nos seres humanos, a norepinefrina não exerce um efeito negativo sobre a função do enxerto no receptor, visto que os efeitos prejudiciais da hipotensão sistêmica provavelmente superam a possível vasoconstrição renal causada pela norepinefrina.69,70 Entretanto, isso ainda não foi testado em pacientes veterinários clínicos. Durante a cirurgia, pode-se administrar manitol (0,5 a 1,0 g/kg) por via intravenosa, visto que a anastomose vascular está quase completa para aumentar a pressão de perfusão renal, reduzir a lesão de isquemia-reperfusão e diminuir o retardo no estabelecimento da função do enxerto.2,31,71 Pode-se administrar heparina uma vez mantida uma hemostasia adequada, visto que os pacientes frequentemente estão protrombóticos em consequência da hipercoagulabilidade e hipofibrinólise.10,72 Se a artéria renal recém-anastomosada demonstrar vasoconstrição pronunciada, pode-se utilizar clorpromazina tópica como antagonista periférico dos receptores alfa-adrenérgicos e relaxante direto da musculatura

lisa vascular para iniciar a vasodilatação da artéria e aumentar provavelmente o FSR (Figura 33.2B).73 Antes do término do procedimento cirúrgico em gatos, a infusão de fentanila pode ser interrompida, e pode-se administrar buprenorfina por via intravenosa para analgesia pós-operatória (Tabela 33.1). Alternativamente, infusões de fentanila (ou análogo da fentanila) podem ser tituladas em gatos, bem como em cães, em doses mais baixas para analgesia pós-operatória. Recomenda-se um monitoramento cardiovascular pós-operatório intensivo quando estes agentes são administrados. Não se recomenda o uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), em virtude de seus efeitos nefrotóxicos, hepatotóxicos e gastrintestinais em potencial.74 Recuperação e complicações A hipertensão pode estar presente durante todo o procedimento, ou pode ocorrer quando as pinças vasculares são retiradas do novo rim. Ela pode persistir ou até mesmo se agravar no pós-operatório.2,5,6,14,75,76 A patogenia da hipertensão é provavelmente multifatorial, possivelmente por uma combinação de doença renal primária, inibidores da calcineurina (como o agente imunossupressor ciclosporina), administração de corticosteroides e níveis elevados de renina ou de angiotensina II produzidos dentro do enxerto.2,5,6,14,75,76 Embora a hipertensão intraoperatória possa ser rapidamente controlada pelo aumento das concentrações de agentes inalatórios e/ou infusão de nitroprussiato, o manejo pósoperatório é habitualmente realizado com a administração contínua de agentes antihipertensivos, como nitroprussiato, hidralazina ou anlodipino. Por conseguinte, o monitoramento frequente da pressão arterial é fundamental no período pós-operatório, idealmente com um acesso arterial. A determinação indireta da pressão arterial por meio de detector de fluxo Doppler ultrassônico também pode ser utilizada quando o cateterismo arterial não é possível ou não pode ser mantido.60-64 A hipertensão arterial constitui um fator de risco comum para o acidente vascular encefálico em seres humanos.77 Além disso, os pacientes felinos com rigoroso monitoramento e manejo da pressão arterial no pósoperatório apresentam uma taxa reduzida de doença neurológica pós-operatória, incluindo acidente vascular encefálico, estupor, ataxia e cegueira central,78 embora, em um estudo, não se tenha constatado nenhuma ligação entre as convulsões pós-operatórias e a hipertensão.6 Todavia, é possível que eventos isquêmicos pós-operatórios possam ocorrer em gatos hipertensos no pós-operatório, levando a sinais neurológicos evidentes. As complicações pós-operatórias são frequentes e podem consistir em rejeição, infecção, doença tromboembólica, insuficiência cardíaca congestiva, estabelecimento tardio da função do enxerto, doença neurológica pós-operatória aguda, uroabdome, hiperplasia gengival associada à ciclosporina e intussuscepção intestinal.2,6 Em alguns casos, pode-se realizar uma hemodiálise pós-operatória para o controle da função tardia do

enxerto, rejeição aguda, pielonefrite e outras complicações até que o problema seja solucionado.79 Embora o transplante renal esteja associado a complicações significativas em cães e gatos, as técnicas cirúrgicas e anestésicos estão melhorando de maneira consistente à medida que são obtidas informações adicionais sobre a estabilização préoperatória do paciente e o tratamento das complicações. As técnicas de diálise visando à redução dos produtos urêmicos circulantes e à correção antecipada dos distúrbios eletrolíticos e do equilíbrio acidobásico são discutidas na seção seguinte.

Diálise peritoneal ■ Introdução A diálise peritoneal (DP) é uma terapia renal substitutiva alternativa utilizada para a remoção temporária de solutos e de líquido em excesso e controle do equilíbrio eletrolítico e acidobásico até que ocorra uma recuperação suficiente da função renal. Recentemente, foram publicadas revisões abrangentes das técnicas e do equipamento.80,81 Na DP, a troca de solutos e de líquido ocorre entre dois compartimentos: o sangue capilar peritoneal e o dialisado colocado na cavidade peritoneal. O líquido e os solutos são transportados por difusão e osmose/ultrafiltração, com papel mínimo desempenhado pela convecção (Figura 33.3).82 Mais especificamente, os solutos são removidos à medida que se difundem através das membranas peritoneais semipermeáveis, sendo a velocidade determinada pela permeabilidade da membrana às moléculas (tamanho e carga), área de superfície disponível e gradiente de concentração. Os líquidos são removidos por osmose/ultrafiltração à medida que a água se desloca de áreas com baixa concentração osmolar para dentro do dialisado, que apresenta osmolalidade elevada (p. ex., glicose), ou pelo uso de gradientes de pressão. A convecção de solutos também ocorre à medida que são retidos no fluxo de água, embora esse processo seja mais importante na hemodiálise do que diálise peritoneal.82 O transporte global através da membrana peritoneal é, geralmente, explicado pela teoria dos três poros, em que os grandes poros (100 a 200 Å de diâmetro) possibilitam o transporte de macromoléculas, como a albumina, enquanto os poros pequenos (20 a 25 Å) possibilitam a passagem de substâncias de baixo peso molecular, como a ureia, creatinina e glicose, e os poros ultrapequenos (4 a 6 Å) transportam apenas água.83

Figura 33.3 Representação esquemática dos processos envolvidos nas técnicas de diálise. A. Difusão. Ocorre difusão quando os solutos atravessam uma membrana semipermeável, com base no seu gradiente de concentração; os solutos movem-se de uma área de maior concentração para outra de menor concentração. B. Osmose/ultrafiltração. A osmose referese ao movimento efetivo de água (solvente) através de uma membrana semipermeável para uma região de maior concentração de solutos, na tentativa de igualar a concentração relativa de solutos. Na ultrafiltração, a pressão hidrostática é usada para forçar o solvente através da membrana. C. Convecção. Ocorre convecção quando o soluto acompanha o movimento de massa do solvente.

■ Seleção de casos

Nos casos típicos, a DP é usada em pacientes veterinários com IRA associada à oligúria ou anúria refratária à fluidoterapia, bem como em pacientes com uremia aguda grave com níveis de ureia > 100 mg/dℓ ou creatinina > 10 mg/dℓ.84 A diálise peritoneal também é utilizada no tratamento da exposição a toxinas difusíveis, como etilenoglicol e barbitúricos, anormalidades metabólicas graves (p. ex., hipercalcemia, hiperpotassemia) e alterações extremas da temperatura corporal central.83 Embora a DP seja menos eficiente do que a hemodiálise para reduzir a uremia,83 vários relatos de casos demonstraram a eficácia da DP em pacientes veterinários.85-88 As vantagens incluem necessidade mínima de habilidade técnica, boa tolerância cardiovascular, ausência de equipamento extracorpóreo de alto custo e risco diminuído de sangramento.89 Todavia, a DP não é recomendada para pacientes com coagulopatia grave, aderências do omento, peritonite, hérnias diafragmáticas ou abdominais ou hipoalbuminemia grave.80

■ Procedimentos e equipamento da diálise peritoneal A diálise peritoneal é realizada por meio de um sistema de enchimento e drenagem, com uso de um cateter peritoneal de demora (Figura 33.4). O cateter e a sua colocação são absolutamente críticos para o sucesso da DP. O cateter deve possibilitar um volume suficiente de fluxo de entrada e saída, deve ser biocompatível, resistir à infecção e reduzir o extravasamento.83 Os cateteres estão disponíveis em várias marcas e tipos e podem ser inseridos de modo asséptico por via percutânea utilizando a técnica de Seldinger, por meio de uma abordagem minicirúrgica ou por visualização direta através de laparotomia ou laparoscopia.80-83 Quando se utiliza a abordagem percutânea ou minicirúrgica, é necessária a sedação do paciente, com bloqueio anestésico local da pele ± peritônio (Tabela 33.1). Em geral, um agonista dos receptores opioides µ, como fentanila, com ou sem benzodiazepínico, como midazolam, por via intravenosa, é adequado para completar o procedimento. Alternativamente pode-se utilizar a buprenorfina. Recomenda-se uma infiltração de lidocaína em torno do local de inserção do tubo. Se houver necessidade de implantação cirúrgica do cateter, o animal pode ser tratado de modo semelhante a outros casos de IRA, tendo-se o cuidado de manter a pressão arterial sem sobrecarga hídrica adicional do paciente.

Figura 33.4 Técnica de enchimento e drenagem para diálise peritoneal. Inicialmente, a cavidade peritoneal é infundida por gravidade ou por meio de bomba com dialisado fresco através de um cateter peritoneal em posição. Durante o tempo de permanência, nem a bolsa do dialisado nem a bolsa de drenagem são abertas, e os líquidos e solutos são trocados a partir do sangue dentro dos capilares peritoneais com o dialisado através da membrana peritoneal semipermeável (linhas tracejadas). Em seguida, o dialisado é drenado da cavidade peritoneal e descartado.

Após a colocação do cateter, podem-se utilizar vários dialisados para o procedimento de troca, tendo cada um deles suas próprias vantagens e desvantagens (para uma revisão, consultar: Bersenas,80 Cooper e Labato81 e Ross e Labato.83) A meta não é normalizar

imediatamente a azotemia, porém corrigir de modo gradual as alterações hemodinâmicas e as perturbações eletrolíticas e do equilíbrio acidobásico, enquanto se reduzem os níveis de ureia para 60 a 100 mg/dℓ e de creatina para 4,0 a 6,0 mg/dℓ ao longo de 24 a 48 h.84 Em primeiro lugar, uma pequena quantidade de dialisado fresco é inicialmente direcionada para a bolsa de drenagem, e a cavidade peritoneal é drenada, de modo que qualquer contaminante introduzido durante o procedimento de cateterismo seja eliminado na bolsa de drenagem, e não na cavidade peritoneal. Uma solução de dialisado aquecida é colocada na cavidade peritoneal por gravidade ou por meio de bomba de infusão durante 5 a 10 min, onde permanece durante aproximadamente 30 a 45 min (“período de permanência”). Após a troca de líquido e de solutos através da membrana, o líquido de diálise é retirado durante 15 min e descartado. Esse procedimento é repetido a cada hora até que o paciente esteja estabilizado.80 Os volumes iniciais de infusão são pequenos (10 a 20 mℓ/kg), mas podem ser aumentados para 30 a 40 mℓ/kg depois de 24 h. Uma vez alcançadas as metas, os pacientes frequentemente passam para protocolos de diálise crônica, em que o dialisado permanece na cavidade peritoneal por períodos mais prolongados, com realização de 3 a 4 trocas por dia.83 Os pacientes devem ser continuamente monitorados à procura de alterações agudas do volume sanguíneo e dos eletrólitos. A obstrução da saída do cateter é comum, e deve-se efetuar um monitoramento extremamente rigoroso do peso corporal, da PVC, da pressão arterial sistêmica, do débito urinário e do estado pulmonar. Outras complicações também ocorrem, porém são habitualmente controláveis, incluindo retenção do dialisado, sequestro subcutâneo de dialisado, hipoalbuminemia, peritonite e derrame pleural (para uma revisão, consultar: Bersenas80 e Cooper e Labato).81 Em resumo, a DP constitui uma ferramenta efetiva no manejo da IRA ou da exposição a toxinas dialisáveis e pode ser até mesmo utilizada nos casos em que a hemodiálise e/ou o transplante não são viáveis. Com frequência, os procedimentos de DP necessitam de sedação e/ou anestesia geral, e os pacientes devem ser tratados de modo semelhante àqueles com comprometimento renal.

Hemodiálise ■ Introdução e seleção de casos A primeira tentativa de hemodiálise foi realizada em 1914 por Abel e colaboradores, que retiraram sangue de animais, o passaram através de um dispositivo com membranas semipermeáveis e, em seguida, o devolveram ao animal.90 Eles denominaram o processo de vividifusão, que se tornou o processo fundamental sobre o qual se baseiam as técnicas atuais de hemodiálise. A hemodiálise intermitente (HDI) é uma terapia renal substitutiva

extracorpórea, que se baseia principalmente no princípio de difusão para normalizar as anormalidades eletrolíticas e do equilíbrio acidobásico e para retirar as toxinas urêmicas do sangue através de uma membrana semipermeável. A convecção (também denominada dragagem de solvente) e a adsorção desempenham um papel mínimo. O gradiente de concentração de solutos, o peso molecular e a permeabilidade da membrana afetam a taxa de transferência através da membrana de diálise.91 A HDI é uma excelente técnica para remover substâncias de baixo peso molecular (< 500 Da), como ureia, creatinina e eletrólitos. Em medicina veterinária, a principal aplicação da HDI é observada na IRA, quando a terapia convencional não consegue melhorar os sinais bioquímicos ou clínicos da uremia, bem como para prevenir qualquer deterioração adicional do paciente antes da recuperação da função renal.79,92 A HDI também é frequentemente usada como terapia renal substitutiva de tempo indeterminado durante a DRC, na presença de uremia refratária grave (ureia > 90 a 100 mg/dℓ, creatinina > 6 a 8 mg/dℓ), hiperpotassemia e sobrecarga hídrica. A hemodiálise intermitente pode ser realizada antes do transplante renal para estabilizar ainda mais um paciente de alto risco.91,93-95 As técnicas atuais modificadas de diálise humana têm sido usadas em muitas espécies diferentes de animais, incluindo tartarugas, coelhos, ovinos e suínos,96 porém só recentemente é que o seu uso clínico em cães e gatos adquiriu popularidade e viabilidade. Como alternativa, pode-se utilizar uma técnica denominada terapia renal substitutiva contínua (TRSC) no tratamento da IRA, em que se espera o rápido retorno da função renal, ou para transição de pacientes para a HDI.97 A diferença básica entre as técnicas é o fato de que a TRSC é um processo contínuo, que não apenas depende da difusão através de membranas semipermeáveis semelhantes a canudos, mas que também enfatiza a convecção e, em menor grau, a adesão, possibilitando a remoção de solutos de maior peso molecular em comparação com a HDI. A terapia renal substitutiva contínua tem múltiplas modalidades de tratamento: a hemofiltração venovenosa contínua (HVVC; exclusivamente por convecção), hemodiálise venovenosa contínua (HDVVC; modalidade por difusão) e hemodiafiltração venovenosa contínua (HDFVVC; convecção e difusão).98 Todavia, a TRSC é relativamente recente e exige treinamento especializado e cuidados contínuos de 24 h ao paciente. Embora tenha vantagens terapêuticas em relação à HDI, seu uso atualmente não está disseminado, porém parece ser significativamente promissor para o tratamento futuro de pacientes com insuficiência renal.

■ Procedimentos de hemodiálise intermitente e equipamento É fundamental o uso de um cateter jugular intravenoso de lúmen duplo ou triplo confiável (de preferência um cateter de diálise) para o sucesso da HDI (Figura 33.1). Esses cateteres podem ser temporários ou permanentes e foram descritos de modo detalhado em outro

local.99 Os cateteres temporários (sem manguito, não tunelizados) são os cateteres usados com mais frequência para a HDI e são habitualmente colocados utilizando a técnica de Seldinger, com sedação e bloqueio anestésico local no sítio do cateter. Os cateteres permanentes frequentemente apresentam um manguito, com uma parte de localização subcutânea. Com frequência, a inserção exige um curto período de anestesia geral, e os pacientes são tratados de modo semelhante àqueles com IRA ou DRC (Tabela 33.1). O dialisador (i. e., rim artificial) é um pequeno compartimento hermeticamente fechado e descartável, contendo milhares de “canudos” ocos (denominados fibras ocas) (Figura 33.5A).91 O sangue flui dentro das fibras ocas, enquanto o dialisado flui em direção paralela ou em contracorrente em torno das fibras. As membranas são semipermeáveis, possibilitando a transferência de líquido e solutos por difusão e convecção.91 Existem muitos tipos de unidades de dialisadores, diferindo na câmara, tubos ou tamanho dos poros. A escolha do hemodialisador baseia-se na quantidade de volume sanguíneo extracorpóreo, bem como nas suas características de difusão, conexão e biocompatibilidade (Figura 33.5B).79 As máquinas de hemodiálise (Figura 33.6) estão disponíveis em várias marcas, são de custo bastante alto e foram descritas em outra parte.100 A máquina possibilita manipulações na velocidade do fluxo sanguíneo, velocidade de fluxo do dialisado, direção do fluxo do sangue e do fluxo do dialisado, composição do dialisado, duração do tratamento, perfil de sódio para regulação da osmolalidade plasmática, taxa de administração de anticoagulantes, temperatura do sangue que retorna e retirada de líquido do sangue.91 Embora essas máquinas possam remover produtos de degradação com extrema eficiência e de modo bastante rápido, a meta não é diminuir rapidamente os níveis de ureia e de creatinina, porém normalizar gradualmente a homeostasia do paciente ao longo de múltiplas sessões. Em geral, as sessões são planejadas 2 a 3 vezes/semana e têm 1 a 6 h de duração, mas podem ser mais longas, dependendo da necessidade do paciente.

Figura 33.5 Hemodialisador. A. Um exemplo de hemodialisador atualmente usado (Prismaflex® System Hemofilter Set, Gambro, Lakewood, CO, EUA). Os equipos são estéreis e pré-embalados com toda a filtração e tubos necessários para a máquina de hemodiálise. Existem múltiplos tipos disponíveis no comércio, que podem proporcionar difusão, convecção e adsorção, dependendo da prescrição da diálise. B. Representação esquemática do design de “fibras ocas” no hemodialisador. Consiste em numerosas fibras para o transporte do sangue, separadas do dialisado por uma membrana semipermeável através da qual ocorre a troca de solutos e de água. O sangue dialisado retorna ao paciente por meio de um cateter intravenoso inserido centralmente.

O objetivo final da HDI consiste em prolongar a sobrevida do paciente, visto que, na maioria dos casos, a função renal não se recupera sem transplante renal. Ocorrem complicações com o uso da HDI, particularmente com os métodos de hemodiálise usados anteriormente em medicina veterinária. O desequilíbrio da diálise (e disfunção neurológica correspondente em consequência do edema cerebral) e a hemorragia associada à anticoagulação eram problemas comuns, levando à mortalidade. Com as técnicas atuais, as complicações raramente são fatais, e embora ainda possam ocorrer desequilíbrio da diálise

e hemorragia, as complicações consistem principalmente em hipotensão, hipovolemia, trombose venosa, tromboembolia pulmonar, edema pulmonar, derrame pleural, anemia, trombocitopenia, leucopenia, náuseas, vômitos e inapetência.79,93,101-103 Apesar de complicações com a técnica, a HDI parece constituir uma modalidade de tratamento viável para melhorar o prognóstico em cães e gatos que não respondem adequadamente ao tratamento médico do comprometimento renal.

■ Depuração (clearance) dos fármacos (agentes anestésicos) na diálise Um dos objetivos da terapia renal substitutiva consiste em aumentar a depuração de toxinas endógenas ou exógenas potenciais no sangue. Entretanto, os níveis plasmáticos dos fármacos que estão sendo administrados ao paciente também podem ser afetados por essas terapias, de modo que a elaboração de protocolos de doses pode constituir um desafio. Embora o tipo de técnica de diálise escolhida possa afetar o grau de remoção de fármacos do sangue, outros fatores também afetam a depuração dos fármacos, como as características da membrana, dos solutos e do paciente.98

Figura 33.6 Máquina de hemodiálise. Trata-se de um exemplo de um tipo de máquina de hemodiálise (Prismaflex® System, Gambro, Lakewood, CO, EUA) que pode acomodar o equipamento de hemodiálise descrito na Figura 33.5. A máquina deve ser capaz de efetuar uma ampla variedade de terapias extracorpóreas de purificação do sangue, que podem ser individualizadas de acordo com as necessidades de cada paciente e que devem ser compatíveis com uma variedade de equipos de hemofiltração fornecidos pela empresa específica.

Propriedades da membrana A idade do filtro, o material, a área de superfície e o tamanho dos poros influenciam a filtração dos fármacos, e os filtros com maior permeabilidade e aqueles com maior área de superfície possibilitam maior depuração dos fármacos na diálise. Os efeitos são mais pronunciados para fármacos de peso molecular intermediário.104 Além disso, a escolha da técnica de diálise irá afetar a quantidade de fármaco removido. A taxa de ultrafiltração, a taxa de diálise, a velocidade do fluxo de sangue e, para os processos de convecção, a seleção dos líquidos de reposição pré-dialisadores versus pós-dialisadores também podem modificar as taxas de depuração de fármacos, com base no protocolo escolhido para determinado paciente.105 Características dos fármacos A solubilidade, o volume de distribuição, o peso molecular, a ligação às proteínas, a pKa e o grau de eliminação renal e extrarrenal do fármaco específico irão afetar a sua taxa de depuração.105 Por exemplo, os fármacos com grande volume de distribuição apresentam habitualmente alta afinidade pelos tecidos, com presença de menor proporção no espaço intravascular. A concentração sanguínea mais baixa resulta em menor gradiente de concentração para impulsionar a depuração por diálise. Por outro lado, os fármacos com menores volumes de distribuição têm mais tendência a permanecer no compartimento intravascular e são rapidamente depurados pelas técnicas de diálise.106,107 Os fármacos com alta ligação às proteínas têm menos tendência a ser removidos por diálise do que os fármacos não ligados, visto que estes últimos são incapazes de atravessar as membranas de diálise tão facilmente quanto os fármacos livres.107 Uma importante ressalva é o fato de que estados patológicos, como uremia, hipoalbuminemia e síndrome nefrótica, estão associados a uma ligação reduzida dos fármacos às proteínas, permitindo potencialmente maior depuração por diálise.108 Além disso, de acordo com o efeito de Gibbs-Donnan, as proteínas aniônicas dentro do sangue diminuem a liberação dos fármacos catiônicos disponíveis para depuração.106 Por conseguinte, se um agente anestésico ou analgésico tiver um volume de distribuição relativamente pequeno (p. ex., alfentanila versus fentanila) e/ou uma ligação relativamente baixa às proteínas (p. ex., cetamina versus tiopental), a sua depuração pode ser acelerada durante a diálise. Fatores do paciente Vários fatores do paciente afetam a depuração dos fármacos durante a diálise. A idade e o gênero do paciente, a função renal residual e a função de reserva cardiovascular e hepática podem alterar, direta ou indiretamente, a quantidade de fármaco livre disponível para filtração por diálise.109 Além disso, alterações no estado acidobásico do animal que estão

associadas à presença de doença (renal) concomitante também afetam a ionização de alguns agentes farmacológicos, o que pode modificar o volume de distribuição do fármaco, a ligação às proteínas e a sua depuração renal ou hepática.105 Muitos dados foram coletados de protocolos de fármacos em pacientes submetidos à terapia renal substitutiva, particularmente no que concerne aos antibióticos (para uma revisão, consultar Monaghan e Acierno.98) Entretanto, faltam estudos sobre a disposição de agentes anestésicos ou analgésicos, particularmente em pacientes veterinários. Como as técnicas de diálise em medicina veterinária são, em sua maioria, de natureza intermitente (DP ou HDI), pode ser prudente administrar agentes analgésicos imediatamente após o término do tratamento com diálise para assegurar que sejam alcançados níveis adequados antes do próximo tratamento com diálise e tentar aumentar o intervalo entre as doses. Até que sejam realizadas investigações detalhadas sobre a farmacocinética de agentes anestésicos e analgésicos específicos em pacientes veterinários submetidos à diálise, precisamos extrapolar os esquemas posológicos com base nas informações disponíveis em seres humanos, monitorar rigorosamente o estado do paciente e administrar a dose de acordo com as necessidades de cada paciente.

Conclusão O transplante renal em gatos parece constituir uma opção de tratamento aceitável para pacientes com doença renal terminal, visto que pode prolongar o tempo de sobrevida e melhorar tanto a função renal global quanto a qualidade de vida. Embora as taxas de morbidade e de mortalidade em pacientes caninos sejam significativamente mais altas, as terapias imunossupressoras e as estratégias mais recentes para melhorar a anticoagulação poderão melhorar acentuadamente os futuros resultados nesta espécie. O transplante renal em qualquer espécie não é desprovido de complicações, embora a estabilização préoperatória por meio de técnicas como a HDI possa melhorar a azotemia refratária, os distúrbios do equilíbrio acidobásico e as anormalidades eletrolíticas. A conduta anestésica desses pacientes pode ser complicada, visto que as perturbações metabólicas, acidobásicas e da pressão arterial são complicadas e frequentes.

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Introdução Alterações da fisiologia materna associadas à prenhez Cardiovascular Pulmonar Gastrintestinal Fígado e rim Fluxo sanguíneo uterino Resumo Alterações farmacológicas induzidas pela prenhez Anestesia durante a prenhez Agentes anestésicos e cesariana Agentes anticolinérgicos Tranquilizantes e sedativos Opioides Sedativo-hipnóticos Dissociativos Neuroleptanalgesia Anestésicos inalatórios Miorrelaxantes Anestésicos locais Agentes suplementares Técnicas anestésicas para cesariana Anestesia geral

Anestesia regional Anestesia local Cuidados com o recém-nascido Controle da dor peroperatória Referências bibliográficas

Introdução Por causa de sua própria natureza, os anestésicos, os analgésicos, os tranquilizantes e os sedativos atravessam a barreira hematencefálica. As propriedades físico-químicas que permitem aos fármacos atravessar a barreira hematencefálica também facilitam a sua transferência placentária. Não é possível anestesiar seletivamente a mãe, visto que todos os agentes que afetam o sistema nervoso central materno também irão afetar o feto, resultando em depressão do sistema nervoso central e menor viabilidade no parto. O protocolo anestésico ideal para a gravidez ou o período periparturiente deve proporcionar analgesia, relaxamento muscular e sedação/narcose, sem colocar, indevidamente, a mãe ou o feto em perigo. A escolha de um protocolo anestésico para cesariana deve se basear na segurança da mãe e do feto, no conforto da paciente e na familiaridade do veterinário com a técnica anestésica. Os fatores envolvidos na tomada de decisão relacionada com o protocolo anestésico incluem alterações fisiológicas da mãe induzidas pela prenhez e trabalho de parto, o impacto dos fármacos selecionados sobre a mãe e o feto, os efeitos remanescentes sobre o recém-nascido após a separação da mãe e o risco de complicações relacionadas com os anestésicos. Independente da técnica utilizada, a meta importante na escolha dos fármacos é reduzir ao máximo a depressão fetal. Pode haver depressão fetal preexistente, devido a um trabalho de parto prolongado antes do nascimento e devido, em parte, às diminuições da perfusão placentária, resultando em hipoxemia, acidose e estresse fetais. Por conseguinte, tanto a mãe quanto o feto podem estar em um estado fisiologicamente comprometido. O veterinário depara-se com o dilema de anestesiar a mãe fisiologicamente comprometida sem afetar de modo adverso o feto. Uma compreensão completa das alterações fisiológicas presentes e do impacto potencial dos agentes anestésicos nessa população de pacientes é essencial para manter a segurança tanto da mãe quanto do feto durante todo o período do parto.

Alterações da fisiologia materna associadas à prenhez

As demandas metabólicas da gestação e do parto são supridas por alterações da função fisiológica (Tabela 34.1). A maior parte dos dados que descrevem as alterações fisiológicas da prenhez foi obtida de informações coletadas em mulheres e ovelhas. Embora existam poucos trabalhos conduzidos sobre outras espécies, as alterações devem ser comparáveis, se não maiores, na sua magnitude. O peso ao nascer expresso como porcentagem do peso materno para mulheres, ovelhas, cadelas e gatas é de 5,7, 11,4, 16,1 e 13,2%, respectivamente.1 Isso sugere que a carga fisiológica, e, portanto, as alterações fisiológicas podem ser, na realidade, maiores em animais do que nas mulheres. Tabela 34.1 Alterações fisiológicas induzidas pela prenhez. Variável Frequência cardíaca



Débito cardíaco



Volume sanguíneo



Volume plasmático



Volume globular, hemoglobina e proteína plasmática



Pressão arterial

O

Pressão venosa central

O, ↑ durante o trabalho de parto

Volume minuto de ventilação



Consumo de oxigênio



pHa e PaO2

O

PaCO2



Capacidade vital e pulmonar total

O

Capacidade residual funcional



Tempo de esvaziamento gástrico e pressão intragástrica



Motilidade gástrica e pH das secreções gástricas



Concentração gástrica de íons cloreto e enzimas



SGOT, LDH e tempo de retenção BSP



Colinesterase plasmática



Fluxo plasmático renal e taxa de filtração glomerular



Ureia sanguínea e creatinina



Equilíbrio dos íons sódio e da água

O

■ Cardiovascular Durante a prenhez, o volume de sangue materno aumenta em aproximadamente 40%; o volume de plasma aumenta mais do que a massa de eritrócitos, resultando em diminuição da concentração de hemoglobina e do volume globular.2 O aumento da frequência cardíaca e do volume sistólico provoca uma elevação do débito cardíaco de 30 a 50% acima do normal.3,4 Os níveis plasmáticos de estrogênios diminuem a resistência vascular periférica, resultando em aumento do débito cardíaco, enquanto as pressões arteriais sistólica e diastólica permanecem inalteradas. Durante o trabalho de parto e no período pós-parto imediato, o débito cardíaco exibe uma elevação adicional de 10 a 25%, em consequência do sangue expelido do útero em contração.5 O débito cardíaco durante o trabalho de parto também é influenciado pela posição do corpo, dor e apreensão.2 Durante o trabalho de parto, a pressão sistólica aumenta em 10 a 30 mmHg. Embora não haja alteração da pressão venosa central durante a prenhez, devido a um aumento da capacidade venosa, ela aumenta ligeiramente (4 a 6 cmH2O) durante o trabalho de parto, e foi relatado um aumento de até 50 cmH2O durante a extração fetal dolorosa.6 A veia cava posterior e a aorta podem ser comprimidas pelo útero aumentado e o seu conteúdo em decúbito dorsal. Isso pode causar diminuição do retorno venoso e do débito cardíaco, com redução do fluxo sanguíneo uterino e renal. Embora isso não pareça constituir-se em um problema tão grave em cadelas e gatas, o período de contenção ou de posicionamento em decúbito dorsal deve ser mantido o mínimo possível.7,8 Como o trabalho cardíaco aumenta durante a prenhez e o parto, ocorre diminuição da reserva cardíaca. As pacientes com doença cardíaca previamente bem compensada podem sofrer congestão pulmonar e insuficiência cardíaca causadas pelo aumento da sobrecarga

cardíaca induzido pela gestação e aumento da demanda hemodinâmica secundária à dor do parto.9 Nessas pacientes, o controle da dor e da ansiedade constitui um componente-chave do tratamento bem-sucedido da paciente durante o período periparturiente. Entretanto, é preciso ter cautela para evitar depressão cardíaca adicional e descompensação induzidas por doses excessivas de sedativos e anestésicos. O uso de agentes ecbólicos durante ou após o parto pode afetar de maneira adversa a função cardiovascular. A ocitocina em doses altas ou repetidas induz vasodilatação periférica e hipotensão, o que pode afetar adversamente tanto a mãe quanto o feto, ao diminuir a perfusão tecidual. Os derivados do esporão do centeio utilizados para controlar o sangramento uterino podem induzir vasoconstrição e hipertensão.10

■ Pulmonar Durante a prenhez, o aumento da concentração sérica de progesterona aumenta a sensibilidade do centro respiratório ao dióxido de carbono (PaCO2). Em consequência do aumento do volume minuto ventilatório, a PaCO2 diminui progressivamente durante a gestação e aproxima-se de 30 mmHg por ocasião do parto. Devido à ocorrência de compensação renal prolongada da alcalose respiratória, o pH arterial permanece dentro dos valores normais. A hiperventilação pode ser ainda mais estimulada durante o trabalho de parto pela dor, apreensão e ansiedade. O consumo de oxigênio aumenta em 20%, devido ao feto em desenvolvimento, placenta, músculo uterino e tecido mamário. A tensão de oxigênio arterial permanece inalterada.2 A prenhez também afeta a mecânica da ventilação. A condutância das vias respiratórias aumenta, e a resistência pulmonar total diminui devido ao relaxamento do músculo liso brônquico induzido pela progesterona. A complacência pulmonar não é afetada. A capacidade residual funcional (CRF) é reduzida pelo deslocamento craniodorsal do diafragma e dos órgãos abdominais pelo útero grávido. Além disso, durante o trabalho de parto, a CRF diminui ainda mais, devido ao aumento do volume sanguíneo pulmonar em decorrência da contração intermitente do útero. Devido à redução da CRF, ocorre fechamento das pequenas vias respiratórias no final da expiração em aproximadamente um terço das mulheres parturientes durante a ventilação corrente.2 A capacidade pulmonar total e a capacidade vital permanecem inalteradas. Devido à redução da CRF, a hipoventilação provoca hipoxemia e hipercapnia mais rapidamente em fêmeas prenhes do que não prenhes. A hipoxemia é exacerbada pelo consumo aumentado de oxigênio durante o trabalho de parto. A administração de oxigênio antes da indução da anestesia aumenta a reserva de oxigênio ao facilitar a desnitrogenação pulmonar. A pré-oxigenação é aconselhada se for tolerada pela paciente. A indução da anestesia com agentes inalatórios é mais rápida em fêmeas prenhes do

que não prenhes. A taxa de equilíbrio entre a pressão parcial de anestésico inspirada e a pressão parcial de anestésico alveolar é acelerada pelo aumento da ventilação alveolar e diminuição da CRF. Além disso, os níveis elevados de progesterona e de endorfina no sistema nervoso central diminuem as necessidades anestésicas.

■ Gastrintestinal Ocorrem diversas alterações funcionais na fisiologia do trato gastrintestinal com a prenhez e o parto. O deslocamento físico do estômago pelo útero grávido, a diminuição da motilidade gástrica e o aumento dos níveis séricos de progesterona contribuem para o esvaziamento gástrico tardio e são particularmente evidentes no último trimestre. As concentrações de ácidos, cloreto e enzimas nas secreções gástricas estão elevadas, devido à fisiologia hormonal alterada durante a prenhez. O tônus do esfíncter esofágico inferior está diminuído, e ocorre aumento da pressão intragástrica. Foi constatado que a dor e a ansiedade durante o trabalho de parto diminuem ainda mais a motilidade gástrica.2 Em consequência da alteração da função gástrica, o risco de regurgitação (tanto ativa quanto passiva) e de aspiração apresenta-se aumentado em parturientes. Como pode haver aumento da acidez gástrica e diminuição do tônus muscular gástrico, podem-se administrar metoclopramida e um antagonista dos receptores H2 (cimetidina, ranitidina ou famotidina) como parte do protocolo pré-anestésico.11 Frequentemente, as pacientes que necessitam de cesariana já se alimentaram, ou o horário da última refeição é desconhecido. Parte-se do princípio que a parturiente esteja com estômago cheio, portanto, devem-se escolher técnicas anestésicas que produzam rápida manipulação e controle das vias respiratórias, de modo a prevenir a aspiração de material estranho. O risco de vômito é aumentado por hipotensão, hipoxia e reações tóxicas aos anestésicos locais. Devido a esses problemas, as pacientes periparturientes devem ser consideradas de alto risco, e recomendam-se medidas profiláticas. Nos animais de companhia, deve-se considerar rotineiramente a administração profilática de antieméticos, como maropitant e ondansetrona. A indução suave da anestesia geral e a prevenção de hipotensão durante a anestesia epidural irão diminuir a incidência de vômito. Devido à possível ocorrência de regurgitação silenciosa quando a pressão intragástrica está elevada, prefere-se uma sonda endotraqueal com manguito para o controle da via respiratória durante a anestesia geral. A regurgitação passiva pode ser induzida por ventilação com pressão positiva com uma máscara facial ou por meio de manipulação das vísceras abdominais. A administração de atropina pode aumentar o tônus do esfíncter gastresofágico, ajudando, assim, a prevenir a regurgitação; entretanto, pode inibir também a ação da metoclopramida, que aumenta a motilidade e o esvaziamento gástricos por meio de sensibilização do músculo liso gástrico à acetilcolina.6,11

■ Fígado e rim A prenhez provoca alterações discretas da função hepática. A concentração plasmática de proteína diminui ligeiramente, porém o nível plasmático de proteína total está elevado, devido ao aumento do volume sanguíneo. A concentração de bilirrubina permanece inalterada. As concentrações séricas das enzimas [alanina aminotransferase sérica (SALT) e fosfatase alcalina] podem estar discretamente elevadas, e observa-se um aumento na retenção de sulfobromoftaleína sódica. A concentração plasmática de colinesterase diminui, o que pode levar a uma ação prolongada da succinilcolina em pacientes prenhes, particularmente quando expostas recentemente a parasiticidas organofosforados (p. ex., anti-helmínticos, coleira antipulga ou banhos). Apesar dessas alterações, a função hepática geral é habitualmente bem preservada.2 O fluxo plasmático renal e a taxa de filtração glomerular aumentam em aproximadamente 60% em pacientes prenhes, de modo que as concentrações de ureia sanguínea e creatinina são mais baixas do que nas pacientes não prenhes.6 O equilíbrio do sódio e da água não é afetado. Os níveis elevados de ureia sanguínea ou de creatinina podem indicar uma patologia ou comprometimento renal em parturientes. Nessas pacientes, deve-se evitar o uso de fármacos com potencial nefrotóxico conhecido, como metoxifluorano, antibióticos aminoglicosídios e anti-inflamatórios não esteroides (AINEs).

■ Fluxo sanguíneo uterino É importante a manutenção de uma circulação uteroplacentária estável para a homeostasia fetal e materna e para a sobrevivência do neonato. O fluxo sanguíneo uterino é diretamente proporcional à pressão de perfusão sistêmica e inversamente proporcional à resistência vascular gerada nos vasos sanguíneos do miométrio. A perfuração placentária depende principalmente da pressão de perfusão uteroplacentária; entretanto, os vasos placentários possuem mecanismos rudimentares para modificar a resistência vascular. A anestesia pode diminuir o fluxo sanguíneo uterino e, dessa maneira, contribuir para a redução da viabilidade do feto. Além disso, a resistência vascular uterina é indiretamente aumentada pelas contrações uterinas e hipertonia (resposta ocitócica). A hipotensão placentária é induzida por hipovolemia, depressão cardiovascular induzida pela anestesia ou bloqueio simpático, resultando em diminuição da pressão de perfusão uterina. A vasoconstrição uterina é induzida por descarga simpática endógena ou por agentes simpaticomiméticos exógenos com efeitos α1-adrenérgicos (p. ex., epinefrina, norepinefrina, metoxamina, fenilefrina e metaraminol).2,12,13 Deve-se evitar a hipotensão induzida por fármacos adjuvantes combinada com aumento do tônus uterino induzido por agentes ecbólicos.

■ Resumo

As parturientes correm maior risco anestésico do que as pacientes não parturientes saudáveis, devido às alterações fisiológicas associadas à prenhez. A reserva cardíaca diminui durante a prenhez, e as pacientes de alto risco podem sofrer descompensação ou insuficiência cardíaca aguda. As pacientes prenhes são propensas a hipoventilação, hipoxia e hipercapnia, devido à alteração da função pulmonar. Há uma redução na necessidade de anestésicos inalatórios e locais, aumentando, assim, a probabilidade de sobredose relativa e depressão excessiva. Por fim, podem ocorrer vômitos ou regurgitação e aspiração se a indução não for imediatamente seguida de rápido controle das vias respiratórias.

Alterações farmacológicas induzidas pela prenhez A prenhez afeta a captação, a distribuição e o processamento dos agentes anestésicos e adjuvantes. A concentração de fármaco livre (não ionizado, não ligado) no plasma materno é afetada por alterações na ligação às proteínas, transferência placentária, distribuição nos tecidos fetais e biotransformação pelo fígado da mãe e do feto. Foram estudados os efeitos da prenhez sobre os agentes anestésicos. A taxa de biotransformação dos barbitúricos parece estar diminuída na prenhez.14 O metabolismo da succinilcolina e da procaína está reduzido, devido à diminuição nas concentrações plasmáticas de colinesterase.14 O aumento do fluxo sanguíneo renal e da filtração glomerular associado à prenhez favorece a excreção renal dos fármacos. A dose de anestésicos inalatórios está reduzida para todos os agentes. Os valores de concentração alveolar mínima (CAM) estão reduzidos em ovelhas prenhes em comparação com fêmeas não prenhes. Por conseguinte, a indução anestésica pode ser extremamente rápida, exigindo apenas um quarto a um quinto do tempo necessário para pacientes não prenhes.15 É preciso ter cautela para evitar a sobredose de agentes voláteis em pacientes prenhes. A placenta é altamente permeável aos fármacos anestésicos, e os anestésicos administrados a mães habitualmente induzem efeitos fetais, que são proporcionais aos observados na mãe. A transferência placentária dos fármacos pode ocorrer por vários mecanismos, sendo a difusão simples sem dúvida alguma o mais importante. A difusão através da placenta é determinada pelo peso molecular, grau de ligação do fármaco às proteínas plasmáticas maternas, lipossolubilidade e grau de ionização. Os fármacos com baixo peso molecular (PM < 500 Da), baixo grau de ligação às proteínas e alta lipossolubilidade e que estão principalmente não ionizados no pH sanguíneo da mãe difundem-se rapidamente através da placenta. Em contrapartida, os fármacos com maior peso molecular (PM > 1.000 Da), que se ligam altamente às proteínas, apresentam baixa lipossolubilidade e estão em sua maior parte na forma não ionizada em geral atravessam a placenta lentamente. A maioria dos anestésicos e adjuvantes anestésicos sofrem difusão

rápida através da barreira placentária. Os relaxantes musculares representam uma exceção, visto que são altamente ionizados e apresentam baixa lipossolubilidade. Embora possam ser recuperados no sangue fetal, eles geralmente são considerados como fármacos que apresentam transferência placentária mínima e efeito fetal insignificante.14,16 A placenta não parece metabolizar os anestésicos nem os adjuvantes da anestesia. As propriedades físico-químicas e os eventos fisiológicos/farmacocinéticos que ocorrem no feto e na mãe também afetam a transferência placentária dos fármacos.14 O grau de ionização de um fármaco é determinado pelo seu pKa e pelo pH dos líquidos corporais do paciente. Os fármacos que são ácidos fracos são menos ionizados à medida que o pH diminui.16 Por exemplo, o tiopental é um ácido fraco com pKa de 7,6. Em pacientes com acidemia (pH < 7,4), maior proporção da dose administrada encontra-se na forma não ionizada. À medida que a proporção da forma não ionizada do fármaco aumenta, a fração do fármaco que se liga às proteínas é reduzida, aumentando efetivamente a resposta clínica em uma base de miligramas. Em consequência, sabe-se que a acidemia diminui a dose anestésica necessária de tiopental e de outros barbitúricos. Os fármacos que são bases fracas, como os opioides e os anestésicos locais, são mais altamente ionizados em valores de pH abaixo de seu pKa.17 Por conseguinte, seu efeito sobre a mãe e o feto é menor em uma base de dose em miligramas. A distribuição de um fármaco entre a mãe e o feto também é influenciada pelo pH do sangue. Normalmente, o pH do feto é 0,1 unidade menor que o da mãe. Por conseguinte, os fármacos que são bases fracas com valor de pKa próximo a 7,4 (p. ex., muitos opiáceos e anestésicos locais) são encontrados em concentrações mais altas nos tecidos e no plasma do feto do que na mãe, devido ao “sequestro de íons”. O pH menor do feto aumenta a concentração de fármaco ionizado, reduzindo, assim, o gradiente de concentração maternofetal e a transferência do fármaco não ionizado através da placenta para o feto.18 A concentração do fármaco no feto também é afetada por redistribuição, metabolismo e ligação às proteínas. A concentração do fármaco na veia umbilical é maior do que nos órgãos fetais (cérebro, coração e outros órgãos vitais). Até 85% do sangue venoso umbilical inicialmente passam pelo fígado do feto, onde o fármaco pode ser sequestrado ou metabolizado. Além disso, o sangue venoso umbilical que contém o fármaco entra na veia cava inferior pelo ducto venoso e mistura-se com sangue sem fármaco que retorna dos membros e das vísceras pélvicas (Figura 34.1). Por conseguinte, a circulação fetal tampona os tecidos vitais do feto contra alterações súbitas da concentração do fármaco. A ligação do fármaco às proteínas fetais também pode reduzir a disponibilidade do fármaco livre.14,16 A concentração e os efeitos do fármaco no feto podem ser consideravelmente maiores e ter maior duração do que na mãe, visto que o metabolismo fetal do fármaco não é tão rápido quanto o materno. O sistema enzimático microssomal do feto não é tão ativo, o que

sugere meia-vida mais longa do fármaco. Isso é complicado pelo fato de que os fármacos também irão se redistribuir do feto par a mãe à medida que os níveis plasmáticos maternos diminuem, o que dificulta a estimativa clínica das concentrações plasmáticas no feto. A toxicidade fetal de um fármaco pode ser intensificada pelo metabolismo fetal ou materno a metabólitos mais tóxicos e por interações fármaco-metabólito e fármaco-fármaco.18

Figura 34.1 A direção do fluxo sanguíneo no sistema vascular do feto é indicada por setas. Os segmentos vasculares mais escuros representam o sangue umbilical e o trajeto de seu fluxo para o fígado e a veia cava inferior através do ducto venoso. O fluxo sanguíneo através do forame oval e do canal arterial fornece uma via direta para o sistema arterial, desviandose dos pulmões. Nos recém-nascidos, o canal arterial e o forame oval se fecham pouco depois do nascimento. Esse fechamento funcional resulta em fluxo sanguíneo através dos pulmões dos recém-nascidos, onde é arterializado, como no adulto. O tempo necessário para o fechamento anatômico do forame oval no potro pode ser de até 12 meses. Podem ser necessários 2 meses para o fechamento permanente do forame oval.

A administração de uma dose fixa de fármacos cuja concentração plasmática diminui

rapidamente (p. ex., tiopental, propofol ou succinilcolina) expõe o feto e a placenta por um breve período de tempo a uma concentração alta do fármaco no sangue materno. Isso contrasta com os níveis sanguíneos maternos sustentados de fármacos administrados por infusão contínua ou inalação, resultando na transferência placentária contínua do fármaco para o feto.14,18

Anestesia durante a prenhez A exposição materna à anestesia geral apresenta consequências potenciais para o feto. Os riscos relatados para o feto modificam-se durante o período da prenhez e são categorizados com base no trimestre gestacional. A anestesia geral durante o primeiro trimestre de prenhez está associada a teratogênese fetal, abortamento espontâneo e morte fetal. A exposição à anestesia durante o segundo trimestre geralmente é considerada o período mais seguro da prenhez; entretanto, foi relatada a ocorrência de aborto espontâneo e morte fetal após anestesia geral durante esse período. A exposição à anestesia durante o trimestre final está associada a risco de trabalho de parto prematuro e morte fetal. A maior parte das consequências relatadas provém da literatura humana, visto que a literatura médica veterinária é incompleta. Parece haver uma variabilidade interespécie no risco associado à anestesia. Isso pode ser devido a uma especificidade de espécie na perfusão uteroplacentária, anatomia da placentação e homeostasia materna. Não parece haver um risco ligado a um fármaco específico associado a aumento na morbidade/mortalidade fetal. É preciso ter cuidado para assegurar a manutenção da fisiologia materna durante a anestesia. A manutenção da fisiologia cardiorrespiratória, do aporte de oxigênio e do equilíbrio acidobásico da mãe assegura perfusão uteroplacentária e aporte de oxigênio, que são de suma importância para a viabilidade pós-anestésica do feto. Na literatura humana, recomenda-se evitar o uso de AINEs depois do primeiro trimestre, a fim de evitar o fechamento prematuro do canal arterial.19

Agentes anestésicos e cesariana Os agentes anestésicos devem ser cuidadosamente escolhidos e administrados de modo adequado, a fim de evitar a ocorrência de depressão materna excessiva e maximizar o vigor e a viabilidade do recém-nascido. Conforme descrito anteriormente, as características específicas que fazem com que um fármaco seja um excelente anestésico também são aquelas que facilitam a rápida transferência transplacentária e a consequente depressão neonatal. Por conseguinte, é prudente considerar que nenhum agente anestésico deve ser utilizado, a não ser que especificamente indicado. Segue-se um breve panorama das classes de anestésicos usados na anestesia do período periparturiente.

■ Agentes anticolinérgicos Os agentes anticolinérgicos, como a atropina e o glicopirrolato, são historicamente empregados para diminuir a salivação e inibir a atividade eferente vagal excessiva que pode ocorrer quando há aplicação de tração do útero.20 Seu valor na redução dos riscos varia de acordo com a espécie; são mais efetivos em cães e gatos, porém têm menos impacto em outras espécies. Muitas parturientes alimentam-se antes do parto. A presença de conteúdo gástrico aumenta a probabilidade de regurgitação, que é intensificada pela hipoxia ou hipotensão. A influência dos anticolinérgicos sobre o vômito é variável.6,20 Nas mulheres, a atropina não demonstrou diminuir a incidência de vômito por ocasião do parto.20 O glicopirrolato aumenta o pH gástrico, diminuindo, assim, a gravidade da síndrome de Mendelson (i. e., pneumonite química causada pela aspiração do conteúdo gástrico durante a anestesia, particularmente no parto), caso ocorram regurgitação e aspiração do vômito.21 Além disso, como o glicopirrolato não atravessa rapidamente a placenta, ele não afeta o feto da mesma maneira que a atropina. Por conseguinte, o glicopirrolato pode ser um anticolinérgico mais adequado para uso nessas pacientes.

■ Tranquilizantes e sedativos Tendo em vista a sua longa duração de ação, não há indicações para uso rotineiro desses fármacos em pacientes parturientes.6,17,18 Devem ser restritos a parturientes acentuadamente apreensivas ou agitadas e apenas em doses suficientes para induzir um efeito tranquilizante. A acepromazina pode induzir depressão materno-fetal significativa, mesmo em doses relativamente baixas. O diazepam e o midazolam podem provocar depressão neonatal, que se caracteriza pela ausência de vocalização e letargia, hipotonia, apneia e hipotermia imediatamente após o nascimento.22-24 Foi sugerido que esses efeitos estão relacionados com a dose e podem ser minimizados pela administração de doses baixas (< 0,14 mg/kg IV), embora não se tenha estabelecido nenhuma dose segura em animais domésticos.24 A letargia e o relaxamento muscular induzidos por benzodiazepínicos residuais na mãe ou no recém-nascido podem ser antagonizados com flumazenil, um antagonista específico de benzodiazepínicos administrado até obter o efeito desejado.25 Os agonistas α2-adrenérgicos exercem efeitos significativos sobre a homeostasia tanto materna quanto fetal. A xilazina atravessa rapidamente a placenta e provoca depressão respiratória e circulatória tanto materna quanto fetal. A detomidina parece ser bem tolerada quando administrada a éguas prenhes na dose de 20 a 60 µg. Dois estudos não demonstraram qualquer aumento na mudança da atividade uterina relacionada com o fármaco, nem qualquer aumento na incidência de aborto espontâneo após doses repetidas.26,27 Resultados semelhantes foram relatados em bovinos.28 Dispõe-se de informações limitadas acerca do efeito da medetomidina sobre a prenhez. Em cães, parece

exercer um efeito relacionado com a dose sobre a atividade do músculo uterino, que foi documentado durante o período parturiente e pós-parturiente imediato.29 Não há relatos para caracterizar o efeito da dexmedetomidina sobre a prenhez ou o parto em espécies domésticas. Existem relatos de casos de seu uso em seres humanos com sucesso.30 A romifidina induz um aumento transitório na pressão intrauterina após sua administração.31 Quando utilizada em associação com cetamina, a xilazina produz alterações cardiopulmonares significativas e potencialmente fatais, resultando em diminuição da perfusão tecidual em cadelas saudáveis.32 O uso de xilazina ou de associações de xilazinacetamina deve ser evitado em fêmeas de pequenos animais submetidas à cesariana. Entretanto, a associação de xilazina-cetamina tem sido usada com frequência em éguas com distocia. Dispõe-se de poucas informações acerca do uso da detomidina ou da medetomidina na anestesia de animais de companhia para cesariana. Suas semelhanças estruturais e farmacológicas com a xilazina sugerem que é necessário observar precauções semelhantes com o seu uso.

■ Opioides Os opioides atravessam rapidamente a placenta e podem causar depressão respiratória e neurocomportamental no recém-nascido.18,33,34 Além disso, a expulsão do feto pode necessitar 2 a 6 dias. Parece que os opioides em doses equianalgésicas induzem o mesmo grau de depressão do SNC. Por conseguinte, a escolha do opioide baseia-se na duração de ação desejada. Os agonistas dos receptores opioides µ comumente usados incluem morfina, fentanila, meperidina, oximorfona, hidromorfona e metadona.18 Os agentes com atividade de agonista-antagonista ou agonista parcial de opiáceos incluem o butorfanol e a buprenorfina. Há relatos de que esses agentes induzem menos depressão respiratória do que os agonistas opiáceos puros. O butorfanol proporciona níveis leves a moderados de sedação, além de suas qualidades analgésicas. A buprenorfina produz sedação leve a analgesia boa a excelente. Uma das vantagens dos agonistas opioides consiste na disponibilidade de antagonistas diretos para reverter a sua ação. Entre os agentes antagonistas, a naloxona (0,04 mg/kg IV) parece ser a mais efetiva. Trata-se de um antagonista puro, sem ação agonista. A nalorfina e o levalorfano, dois outros antagonistas, desempenham atividade opiácea própria e podem aumentar a depressão respiratória induzida por outros agentes não opiáceos (p. ex., barbitúricos, fenotiazinas e agentes inalatórios). Como todos os antagonistas opioides atravessam rapidamente a placenta, a administração materna antes do parto tem sido recomendada para reverter a depressão do recém-nascido induzida por opioides. Essa técnica priva a mãe de analgesia no momento em que ela é mais necessária. Por conseguinte, esses agentes devem ser administrados diretamente ao recém-nascido. Por

fim, tendo em vista que a ação da naloxona é mais curta que a da maioria dos agonistas opioides, pode ocorrer nova narcotização à medida que a naloxona é metabolizada e excretada. Por conseguinte, tanto a mãe quanto os recém-nascidos devem ser cuidadosamente monitorados à procura de sinais recorrentes de narcose após reversão dos opioides com naloxona.18 Caso isso ocorra, pode-se administrar uma dose adicional de naloxona.

■ Sedativo-hipnóticos O tiopental tem sido usado para produzir rápida indução de narcose basal para intubação e anestesia inalatória. Os efeitos farmacológicos do tiopental sobre as funções cardiovascular e respiratória incluem aumento da frequência cardíaca, diminuição da pressão arterial e alterações na resistência vascular periférica. A apneia é comum com a indução. Em geral, a recuperação do tiopental é rápida, em virtude de sua redistribuição e metabolismo. Embora o tiopental atravesse rapidamente a placenta, ele também sofre rápida depuração da circulação neonatal. O metabolismo do feto pode contribuir para a sua rápida depuração in utero. Os barbitúricos podem causar depressão respiratória, sonolência e atividade deprimida em recém-nascidos. A atividade de sucção diminui, e há relatos de que ela permaneça deprimida por 4 dias nos recém-nascidos.18 Esses efeitos são atenuados quando se administra o tiopental em doses menores (< 4 mg/kg).18 A administração de propofol por via intravenosa produz indução rápida de narcose basal para indução e anestesia inalatória. Os efeitos farmacológicos do propofol sobre as funções cardiovascular e respiratória são quase idênticos, porém ligeiramente maiores que os do tiopental. A recuperação do propofol é rápida e suave, em virtude de sua redistribuição e metabolismo rápidos. O metabolismo ocorre principalmente no fígado, porém observa-se também um metabolismo extra-hepático do fármaco. Embora o propofol atravesse rapidamente a placenta, ele sofre depuração rápida da circulação no recémnascido. Vários estudos compararam o uso do propofol na anestesia para cesariana de animais de companhia com técnicas de anestesia geral mais tradicionais. Em cadelas, o propofol seguido de anestesia com isofluorano resultou em taxas de sobrevida dos recém-nascidos comparáveis àquelas da anestesia epidural e superiores àquelas da anestesia geral induzida por tiopental.35 Estudos retrospectivos de grupos conduzidos por Moon et al.23,24 indicaram que a administração de propofol por via intravenosa, seguida de isofluorano, aumentou o vigor, a vocalização e a sobrevivência dos filhotes após a cirurgia. Os achados foram semelhantes àqueles relatados anteriormente em outro estudo.35 A infusão com velocidade constante de propofol como único agente anestésico em ovelhas prenhes demonstrou uma hemodinâmica materna superior àquela da anestesia com isofluorano.35 O perfil de fluxo

sanguíneo uterino foi semelhante com ambas as técnicas. A anestesia com propofolsevofluorano em ovelhas e cabras prenhes demonstrou a manutenção da fisiologia fetal após a administração de propofol, porém os índices hemodinâmicos diminuíram após exposição ao sevofluorano.36,37 Esses estudos sustentam o uso do propofol em um protocolo de anestesia geral balanceada para cesariana. Em cadelas e gatas, a dose de indução de propofol é de 4 a 8 mg/kg IV. As doses suplementares são de 0,5 a 2,0 mg/kg IV. Entretanto, infusões de propofol de velocidade constante e mais prolongadas para manter a anestesia podem resultar em certo grau de depressão no feto. A dose de indução em ovelhas e cabras é de 3 a 5 mg/kg IV. O etomidato é um hipnótico não barbitúrico de ação curta. Em doses apropriadas para indução anestésica, o etomidato induz a uma anestesia rápida com efeitos cardiovasculares mínimos em cães.38,39 O etomidato sofre rápida redistribuição e metabolismo por enzimas microssomais hepáticas e por esterases plasmáticas. A perfusão tecidual do feto é bem mantida, conforme demonstrado pelo início mais rápido da respiração espontânea do recém-nascido e maior vitalidade do feto no momento do parto, em comparação com o tiopental.35 A dose de indução do etomidato em cães e gatos sem medicação pré-anestésica é de 1,0 a 3,0 mg/kg IV.39 Com base em seu perfil de rápida eliminação em gatos, o etomidato pode ser apropriado para administração intravenosa repetida de baixas doses nessa espécie.38 Entretanto, a administração repetida de etomidato também pode causar hemólise aguda, conforme relatado em cães.40 Com frequência, o etomidato provoca dor durante a injeção intravenosa em pacientes sem pré-medicação. Além disso, podem ocorrer mioclonia ou movimentos involuntários com a injeção, porém isso pode ser evitado por meio de pré-medicação com benzodiazepínicos e/ou opioides, os quais podem exacerbar a depressão do recém-nascido. O Saffan? é uma associação de dois esteroides semelhantes à progesterona (alfaxalona, 9 mg/mℓ e alfadolona, 3 mg/mℓ). Esse fármaco pode ser administrado por via intravenosa ou intramuscular a gatos. A indução anestésica é suave e rápida. A depressão cardiovascular é proporcional à dose e semelhante àquela produzida por doses equivalentes de tiopental ou metoexital. O Saffan induz menos depressão respiratória do que os barbitúricos e é compatível com os pré-anestésicos, relaxantes musculares e anestésicos inalatórios comumente utilizados.41,42 Foi constatado que esse fármaco atravessa a placenta. Seu uso em cães não é recomendado, visto que o agente de solubilização (cremofor) provoca liberação intensa de histamina. Entretanto, tem sido utilizado para induzir anestesia em cães pré-medicados com anti-histamínicos.39 O alfaxan-CD tem sido usado em muitos países como anestésico de ação curta para cães e gatos. Nessa formulação, a alfaxalona é solubilizada em um carreador de ciclodextrana desprovido de propriedades de liberação de histamina. Demonstrou ser um anestésico de ação curta efetivo com depressão

cardiopulmonar mínima e poucos efeitos adversos. Por causa dessas propriedades, seu uso para anestesia na cesariana é aceitável.

■ Dissociativos A cetamina tem sido usada em anestesia geral para cesariana. Em mulheres, doses inferiores a 1 mg/kg provocaram depressão mínima no recém-nascido.20,25 Como alternativa, o tiopental (2 a 3 mg/kg) e a cetamina (0,5 mg/kg) têm sido administrados concomitantemente para induzir anestesia em mulheres parturientes. Podem-se utilizar doses baixas de cetamina (3 a 5 mg/kg IV em cães, 2 a 4 mg/kg IV em gatos e 2 mg/kg IV em equinos) para indução anestésica.43 Como as doses de indução efetivas desses fármacos são mais altas em animais de companhia do que nos seres humanos, é mais provável que a depressão do recém-nascido esteja associada a seu uso. Um estudo retrospectivo de coorte em cadelas indicou que o uso de cetamina leva a maior risco para os filhotes quanto a depressão respiratória, apneia, vocalização diminuída e aumento da mortalidade ao nascimento.23,24 Por esses motivos, a cetamina deve ser usada com cautela nessa espécie. Não se dispõe de nenhum dado para comparar a viabilidade do feto em outras espécies. Dispõe-se de poucas informações acerca do uso de tiletamina-zolazepam na cesariana. Com base no perfil farmacológico, as características dessa mistura comercial são qualitativamente semelhantes àquelas de outras misturas de tranquilizantes de dissociativos-benzodiazepínicos. As características desses fármacos in vivo sugerem a necessidade de cautela na anestesia para cesariana em animais de companhia, em virtude de sua transferência transplacentária rápida e extensa e ausência de antagonistas específicos.

■ Neuroleptanalgesia A combinação de fármacos das classes dos opioides e tranquilizantes pode induzir anestesia efetiva em parturientes deprimidas e exaustas. Conforme assinalado anteriormente, tanto os opioides quanto os tranquilizantes atravessam extensamente a barreira uteroplacentária e podem causar depressão significativa do feto. Em geral, esses fármacos são utilizados como suplemento anestésico após a retirada do feto, embora tenham sido administrados com sucesso para indução e manutenção antes da extração do feto. Se for observada depressão do feto após a administração desses agentes, a administração sublingual ou intranasal de naloxona (1 a 2 gotas) reverte rapidamente os efeitos opioides em recém-nascidos. Justifica-se o monitoramento contínuo para a possibilidade de nova narcotização do recém-nascido.43

■ Anestésicos inalatórios Os anestésicos inalatórios podem ser usados para induzir anestesias em fêmeas calmas ou

deprimidas. Esses fármacos atravessam prontamente a placenta, com rápido equilíbrio entre o feto e a mãe. O grau de depressão do recém-nascido é proporcional à profundidade da anestesia induzida na mãe. Níveis profundos de anestesia materna provocam hipotensão materna, diminuição do fluxo sanguíneo uterino e acidose no feto. O isofluorano, o sevofluorano e o desfluorano são preferidos, visto que a indução e a recuperação da mãe e do recém-nascido são mais rápidas. O óxido nitroso pode ser utilizado para potencializar seus efeitos, diminuindo, assim, a quantidade total do agente volátil administrado. Se o óxido nitroso for fornecido na concentração de 60% ou menos, a depressão do feto é mínima, e não ocorre hipoxia por difusão no recém-nascido durante o parto.18-20

■ Miorrelaxantes Os relaxantes musculoesqueléticos atravessam a placenta em grau muito limitado e exercem pouco efeito em recém-nascidos quando administrado em doses clínicas. Em virtude dessa propriedade, esses fármacos são muito úteis em técnicas de anestesia balanceada para cesariana, a fim de facilitar o rápido manejo da via respiratória e proporcionar um relaxamento do sítio cirúrgico.16,19,20 Em virtude de seu rápido início de ação e duração relativamente breve, a succinilcolina constitui uma escolha tradicional quando associada a um barbitúrico de ação ultracurta ou ao propofol para indução da anestesia e controle da via respiratória. O mivacúrio tem sido usado em virtude do rápido início de seus efeitos e duração de ação relativamente curta 15 a 20 min). O atracúrio e o vecurônio apresentam uma duração de ação intermediária (20 a 35 min). Suas características os tornam alternativas interessantes para procedimentos mais prolongados. Deve-se evitar o uso de relaxantes musculares de ação longa, como o pancurônio (45 min) e o doxacúrio (1 a 3 h), em virtude de sua longa duração de ação, em comparação com o tempo do procedimento.18 Toda vez que são administrados relaxantes musculoesqueléticos, deve-se utilizar uma ventilação com pressão positiva controlada, e pode-se efetuar uma reversão dos fármacos bloqueadores da junção neuromuscular não despolarizantes com neostigmina ou edrofônio, quando o tempo de cirurgia é curto ou quando a depressão respiratória é prolongada. A guaifenesina tem sido usada para relaxar a musculatura esquelética em equinos, bovinos e pequenos ruminantes. Embora os relatos sejam limitados, as impressões clínicas indicam que a transferência placentária é mínima, com base no vigor do recém-nascido após o parto.

■ Anestésicos locais Os anestésicos locais são frequentemente usados em associação com outros fármacos ou como único agente anestésico em técnicas de anestesia regional. Os ésteres do ácido p-

aminobenzoico (procaína ou tetracaína) são metabolizados pela pseudocolinesterase materna e fetal. Por conseguinte, ocorre pouco acúmulo desses fármacos no feto. Os derivados de amida (p. ex., lidocaína, mepivacaína, bupivacaína, etidocaína e ropivacaína) são metabolizados por enzimas microssomais hepáticas. Após absorção no local de injeção, os níveis sanguíneos diminuem lentamente, porém podem alcançar concentrações significativas no feto. Concentrações sanguíneas de lidocaína ou de mepivacaína acima de 3 µg/mℓ no recém-nascido podem causar depressão no momento do parto. Essas concentrações raramente são alcançadas após administração epidural, mas podem ocorrer quando se utilizam volumes excessivos do fármaco para infiltração local.18 Pode ocorrer bloqueio simpático, resultando em hipotensão materna e diminuição da perfusão uteroplacentária, após injeção epidural. Isso pode ser controlado pela administração criteriosa de líquidos intravenosos para compensar a capacidade aumentada do sistema vascular.18 Além dos líquidos intravenosos, podem-se utilizar vasopressores para tratar a hipotensão materna causada pelo bloqueio simpático. Como a efedrina exerce ação central e tem propriedades vasoconstritoras arteriais mínimas, enquanto aumenta o tônus venoso e, portanto, a pré-carga, ela pode ser usada no tratamento da hipotensão materna, restaurando, assim, o fluxo sanguíneo uterino. A mefentermina atua de modo semelhante. Outros fármacos com atividade nos receptores α1-adrenérgicos elevam a pressão arterial materna ao aumentar a resistência vascular sistêmica. Isso pode causar uma redução do fluxo sanguíneo uterino, e, com frequência, ocorre deterioração do feto. Além disso, esses agentes podem estimular contrações uterinas hipertônicas, diminuindo ainda mais a perfusão uteroplacentária.18,20

■ Agentes suplementares Na literatura obstétrica humana, foram relatados problemas relacionados com vômitos ou regurgitação passiva imediatamente após a indução da anestesia. Isso resulta da ingestão recente de alimento associado a um tempo de trânsito gastrintestinal tardio observado durante a gravidez. Para reduzir o risco de regurgitação/aspiração, recomenda-se o uso de várias classes de fármacos. Os fármacos recomendados destinam-se a modificar um ou mais dos seguintes aspectos: tônus do esfíncter gastresofágico, pH gástrico, movimento descendente do conteúdo gastrintestinal ou reflexo do vômito. Atualmente, as recomendações para seres humanos incluem a administração de um antagonista dos receptores H2, antiácido não particulado e um procinético antes da indução de anestesia a pacientes parturientes. Relatos recentes sugerem que o maropitant, um antiemético de ação central, é altamente efetivo para reduzir o vômito no período peroperatório. Sua aplicação na anestesia obstétrica veterinária ainda não está definida.44

Técnicas anestésicas para cesariana ■ Anestesia geral A anestesia para cesariana pode ser realizada com anestesia regional ou anestesia geral. Com frequência, a anestesia geral é selecionada para cesariana em cadelas, gatas e éguas. Entre as vantagens da anestesia geral, destacam-se velocidade e facilidade de indução, confiabilidade, reprodutibilidade e controle. A anestesia geral proporciona condições cirúrgicas ideais, com pacientes relaxados e imóveis. A intubação traqueal garante o controle da via respiratória materna, evitando, assim, a aspiração de vômito ou do conteúdo regurgitado do trato gastrintestinal. Além disso, fornece uma via de administração de oxigênio à mãe, melhorando, assim, a oxigenação fetal. Quando a anestesia geral é administrada e monitorada de modo adequado, a função cardiopulmonar materna é bem preservada.20,43 Em situações clínicas selecionadas, a anestesia geral pode ser mais apropriada do que a anestesia regional. Essas condições incluem hipovolemia materna grave, distocia prolongada com exaustão da mãe e feto gravemente estressado, doença ou insuficiência cardíaca da mãe, obesidade mórbida, casos em que a mãe é tão agressiva ou agitada que impede a anestesia regional, e cadelas braquicefálicas com obstrução das vias respiratórias superiores. Além disso, se a segurança ou o valor da mãe forem mais importantes do que os da prole para o cliente, a anestesia geral tende a possibilitar um manejo anestésico mais intensivo dos problemas maternos. Por fim, a maioria dos veterinários tem mais confiança em sua capacidade de induzir anestesia geral com segurança do que em utilizar técnicas de anestesia regional. A anestesia geral apresenta algumas desvantagens. Ela tende a provocar maior depressão do recém-nascido do que a anestesia regional. Um plano anestésico inadequado provoca a liberação de catecolaminas maternas, as quais podem resultar em hipertensão e diminuição da perfusão uteroplacentária, levando ao estresse tanto da mãe quanto do feto e à deterioração da função cardiopulmonar.13,14,27 A perda dos reflexos de proteção da via respiratória após indução anestésica pode provocar aspiração e problemas no manejo da via respiratória quando a traqueia não é adequadamente intubada. A aspiração e a impossibilidade de intubar a traqueia com sucesso constituem as principais causas de mortalidade materna associada à cesariana em mulheres.20,44 Felizmente, a intubação de cadelas, gatas e éguas é relativamente fácil, em virtude de suas características anatômicas. Entretanto, a intubação de ruminantes e suínos é relativamente difícil, o que representa um problema para a maioria dos veterinários. Equinos

A distocia em éguas desempenha um efeito profundo na sobrevivência dos potros.45,46 Os potros normalmente nascem em 20 a 30 min após a ruptura da membrana corioalantoide. Poucos potros sobrevivem quando essa duração aumenta para 40 min, e nenhum tem probabilidade de sobreviver quando a duração é de 90 min ou mais.47,48 O tempo entre a ruptura da membrana corioalantoide e o parto é significativamente diferente em potros que sobrevivem (71,7 ± 34,3 min) em comparação com os que não sobrevivem (85,3 ± 37,4 min).45 Isso faz com que a distocia em éguas seja uma emergência maior do que na maioria das espécies.45,49 O exame físico, a indução anestésica e o parto devem ser realizados no menor tempo possível quando existe a chance de o potro nascer vivo.45 As técnicas que levam tempo para indução anestésica devem ser abandonadas e substituídas por métodos que proporcionem sedação confiável e indução suave e controlada, com boa recuperação. As recomendações para anestesia de éguas a termo foram extrapoladas dos trabalhos realizados em outras espécies e podem não ser relevantes. Os objetivos da anestesia para o parto não são diferentes daqueles de outras espécies, porém com maior ênfase na rápida conclusão do procedimento. Tipicamente, as éguas em trabalho de parto estão agitadas e em sofrimento antes da indução anestésica; por conseguinte, é importante uma boa sedação para garantir uma indução suave e segura. A xilazina e a detomidina produzem sedação suficiente e podem ser revertidas em recém-nascidos após o nascimento. A detomidina pode causar menos aumento do tônus uterino do que a xilazina e foi sugerida por algumas autoridades como sedativo de escolha em éguas.42 Quando o butorfanol for associado com xilazina ou detomidina, obtêm-se contenção e analgesia confiáveis. A dose de xilazina ou de detomidina pode ser reduzida quando associada ao butorfanol, minimizando os possíveis efeitos colaterais dos agonistas α2-adrenérgicos A indução da anestesia pode ser rapidamente obtida com xilazina (0,8 mg/kg IV), seguida de indução com cetamina (2,2 mg/kg IV) e diazepam (0,08 mg/kg IV) (Tabela 34.2). Em seguida, a anestesia é mantida com isofluorano ou sevofluorano em 100% de oxigênio.45 Enquanto se tenta o parto vaginal, o abdome ventral é tosado e preparado, de modo que, se houver necessidade, a cesariana poderá ser realizada rapidamente. Em um relato, essa abordagem à distocia resultou em sobrevivência de 94% das éguas com parto vaginal e 89% das éguas submetidas a cesariana, com 42% de potros nascidos vivos. Quase 30% dos potros sobreviveram depois da alta.45 Nesse cenário, a escolha específica do agente anestésico provavelmente é menos importante do que o tempo de indução e parto do potro. Foram realizados estudos que compararam os efeitos do isofluorano e do halotano em éguas prenhes e não foi demonstrada nenhuma diferença acentuada entre esses dois fármacos.50 Os agentes menos solúveis (como o isofluorano e o sevofluorano) têm a vantagem de serem rapidamente depurados dos potros após o nascimento, em comparação

com o halotano.51 Estudos realizados em pôneis fêmeas constataram que a manutenção da anestesia com propofol ou uma associação de guaifenesina (CGE), cetamina e detomidina (GCD) preservou a função cardiovascular tanto na égua quanto no feto.52,53 Isso sugere que a associação GCD pode ser apropriada para indução anestésica em éguas a termo. No campo, onde não se dispõe prontamente de equipamento para anestesia inalatória para o parto, uma mistura de guaifenesina-cetamina-xilazina tem sido infundida para obter o efeito desejado por até 1 h, a fim de manter um nível adequado de depressão do sistema nervoso central.53 O monitoramento e o suporte de uma égua prenhe anestesiada não são diferentes daqueles de qualquer outro equino anestesiado. Deve-se ter cautela para evitar a hipoxia materna, a fim de manter a oxigenação do feto até o nascimento. Deve-se considerar a ventilação mecânica para ajudar a compensar o desequilíbrio de ventilação-perfusão que ocorre. A gasometria arterial deve ser avaliada pouco depois da iniciação da ventilação com pressão positiva para assegurar o aumento desejado na PaO2. A ventilação com pressão positiva em uma égua com distensão abdominal grave tem o potencial de diminuir drasticamente o débito cardíaco para todos os tecidos, incluindo a circulação materna para o potro. A pressão arterial deve ser monitorada diretamente, e o ideal é mantê-la acima de 70 mmHg pelo ajuste da profundidade da anestesia e velocidade de aporte de líquidos e pela administração de agentes inotrópicos e/ou vasopressores. As éguas que se recuperam de distocia ou cesariana podem ter dificuldade em recuperar a força necessária para se levantar. Deve-se dispensar uma atenção especial para a condição da área de recuperação, e o piso deve estar livre de todo lubrificante obstétrico e seco. As éguas devem ser colocadas em uma superfície bem acolchoada em uma área de recuperação e podem ser auxiliadas com cordas durante a recuperação, quando necessário. Cadelas e gatas Diversas técnicas de anestesia geral para cesariana em cadelas e gatas foram consideradas satisfatórias (Tabela 34.2).54 Todas as técnicas relatadas apresentam estratégias em comum para o manejo bem-sucedido da paciente, que incluem as seguintes: (1) a indução da anestesia deve ser suave e rápida, (2) a intubação deve ser realizada rapidamente, e a ventilação assistida para garantir uma oxigenação adequada, e (3) os fármacos e a técnica selecionados devem manter o máximo possível a viabilidade do feto. Conforme assinalado anteriormente, estudos realizados compararam o resultado de vários protocolos de anestesia comumente usados em cesariana sobre a segurança materna e a vitalidade do feto. Os resultados desses estudos indicaram que, em cadelas, o propofol seguido de anestesia com isofluorano resultou em taxas de sobrevivência dos recémnascidos comparáveis àquelas quando foi utilizada a anestesia epidural e superiores àquelas

obtidas com anestesia geral induzida por tiopental.23,24,35 Foi também relatado que o sevofluorano resulta em recém-nascidos viáveis quando utilizado em protocolos de anestesia para cesariana. Não foram realizados estudos comparáveis em gatas; entretanto, sua anatomia e fisiologia materno-fetais sustentam um sucesso semelhante com essa estratégia. A administração de oxigênio suplementar pode aumentar significativamente o conteúdo de oxigênio e a viabilidade do feto após extração cirúrgica. A administração de oxigênio à mãe não está associada a uma redução significativa do fluxo sanguíneo uterino ou à ocorrência de acidose no feto.18 Os eritrócitos fetais apresentam uma concentração de 2,3difosfoglicerato menor que os eritrócitos do adulto; por conseguinte, a hemoglobina fetal pode transportar mais oxigênio em baixas tensões de oxigênio do que a hemoglobina do adulto. Isso é importante do ponto de vista fisiológico, uma vez que assegura maior nível de saturação da hemoglobina nas pressões parciais de oxigênio normalmente baixas (PO2 da veia umbilical de 30 mmHg) às quais o feto é exposto.21,55 Concentrações de oxigênio inspirado de 50% ou mais durante a anestesia geral resultam em recém-nascidos mais vigorosos, devido a melhor oxigenação.18 Por conseguinte, indica-se a administração de oxigênio, independentemente do protocolo anestésico. A ventilação corrente e a ventilação minuto precisam ser rigorosamente avaliadas durante o período de anestesia, a fim de evitar a ocorrência de hipoventilação ou hiperventilação. O efeito total do dióxido de carbono sobre o feto não está bem esclarecido, porém a hiperventilação passiva da mãe provoca hipocapnia, com diminuição do fluxo sanguíneo arterial uterino. Essa redução da perfusão placentária provoca hipoxia, hipercapnia e acidose no feto. Com uma oxigenação arterial adequada, o feto tolera bem uma elevação modesta da PaCO2.18 A adequação da ventilação e da oxigenação pode ser avaliada pela observação da frequência respiratória, excursão da parede torácica e/ou bolsa do reservatório e da coloração das mucosas, pelo uso da oximetria de pulso e capnografia e pela determinação da PaCO2 e PaO2. A manutenção dos índices de perfusão hemodinâmicos é essencial para a segurança e a vitalidade tanto da mãe quanto do feto. A pressão arterial deve ser monitorada e mantida acima da pressão arterial média de 70 mmHg pelo ajuste da profundidade anestésica e velocidade de aporte de líquidos e pela administração de agentes inotrópicos e vasopressores, quando necessário. Tabela 34.2 Técnicas anestésicas selecionadas para cesariana eletiva e de emergência em espécies domésticas comuns. Fármaco e técnica

Espécie

Cesariana eletiva

Cesariana de emergência 1. 2.

1. 2.

Epidural lombossacral Anticolinérgico

3.

Propofol, 4 a 8 mg/kg

Anticolinérgico

contenção de pacientes para

isofluorano com máscara

epidural

Anticolinérgico

2.

Fentanila, 3 µg/kg

anticolinérgico, se necessário 4.

Propofol 4 a 8 mg/kg

todos os fetos 5.

Bloqueio na linha

sublingual se o feto estiver deprimido

Atracúrio, 0,2 mg/kg Propofol, 4 a 8 mg/kg Anestesia da laringe

Gata

1.

Cetamina, 3 mg/kg

Sevofluorano ou isofluorano

Fentanila, 3 a 5 µg/kg

Analgesia adicional após a

Epidural lombossacral

retirada dos fetos 2.

Pode ser necessária a reversão da fentanila com naloxona

Isofluorano ou sevofluorano

1.

Dose mínima do agente inalatório até a retirada de

Fentanila, 3 µg/kg

Propofol, 4 a 8 mg/kg

Monitorar a frequência cardíaca e repetir o

Isofluorano ou sevofluorano Anticolinérgico

Administrar oxigênio a todos os pacientes o mais cedo possível

3.

4.

Pode exigir auxílio para

Indução com sevofluorano ou

Propofol, 4 a 8 mg/kg

Analgésicos pós-parto 3.

1.

Fentanila, 3 µg/kg

Isofluorano ou sevofluorano Cadela

Epidural lombossacral

Comentários

Fentanila, 3 a 5 µg/kg

2.

1.

contenção de pacientes para epidural 2.

3.

Propofol, 2 a 4 mg/kg Sevofluorano ou isofluorano

todos os fetos 4.

Pode ser necessária a reversão da fentanila com naloxona

Sevofluorano ou isofluorano Analgesia adicional após a

Dose mínima do agente inalatório até a retirada de

Propofol, 4 mg/kg Anestesia da laringe

Administrar oxigênio a todos os pacientes o mais cedo possível

Cetamina, 3 mg/kg Fentanila, 3 a 5 µg/kg

Pode exigir auxílio para

Analgesia adicional após a

sublingual se o feto estiver

retirada dos fetos

deprimido

retirada dos fetos 1.

GGE até obter o efeito desejado Cetamina, 2 mg/kg Isofluorano ou sevofluorano 1. Epidural caudal para o

GGE até obter o efeito desejado Cetamina, 2 mg/kg

controle da dor 2.

GGE até obter o efeito desejado Tiopental, 4 a 6 mg/kg

Égua

3.

Isofluorano ou sevofluorano 1.

A contenção em estação não é

Epidural caudal para o

realizada em éguas para

controle da dor

anestesia para cesariana

Isofluorano ou sevofluorano 2.

Xilazina, 0,8 mg/kg IV, como

Epidural caudal para o

pré-medicação seguida de

operatória assemelha-se ao de

controle da dor

indução com

pacientes com cólica

Xilazina, 0,8 mg/kg IV, como

Cetamina, 2,2 mg/kg

pré-medicação seguida de

2.

O controle da dor pós-

Diazepam, 0,08 mg/kg

indução com Cetamina, 2,2 mg/kg Diazepam, 0,08 mg/kg 1.

Xilazina, 10 mg

1.

Bloqueio paravertebral 2.

Xilazina, 10 mg

Xilazina, 10 mg

1.

regionais

Bloqueio paravertebral 2.

Xilazina, 10 mg

Evitar o decúbito com técnicas

2.

Pode reverter a xilazina em recém-nascido se for observada

Vaca

Bloqueio em “L” invertido

Bloqueio em “L” invertido

a ocorrência de depressão

3.

Bloqueio na linha de incisão 3.

Bloqueio na linha de incisão 3.

Analgesia suplementar no

4.

Xilazina, 10 mg

Xilazina, 10 mg

período pós-operatório,

4.

quando justificado GGE para decúbito

GGE para decúbito 4.

Isofluorano ou sevofluorano

Isofluorano/sevofluorano

após intubação

após intubação

Epidural caudal para reduzir o “esforço” pós-parto

1.

Epidural lombossacral

1.

Sedação

Epidural lombossacral

1.

sensibilidade à dor

Sedação 2.

2.

Bloqueio na linha de incisão

2.

3.

Propofol, 4 a 6 mg/kg

3.

Resposta variável e

Bloqueio na linha de incisão

inconsistente aos opioides para

Sedação

controle da dor

Ovelha/cabra Sedação

As ovelhas têm alta

Propofol, 4 a 6 mg/kg

3.

Agentes α2 são frequentemente selecionados

Isofluorano ou sevofluorano 1.

2.

Epidural lombossacral

Isofluorano ou sevofluorano 1.

Epidural lombossacral

Sedação

Sedação

Bloqueio na linha de incisão 2.

Bloqueio na linha de incisão

1.

Sedação 3.

Propofol, 4 a 6 mg/kg

cirurgia eletiva

Sedação 3.

Isofluorano ou sevofluorano 1.

Propofol, 4 a 6 mg/kg

Propofol, 2 a 4 mg/kg

3.

Isofluorano ou sevofluorano

Boa resposta aos analgésicos opioides após a retirada do feto

3.

Os AINE são frequentemente usados para o controle da dor

Isofluorano ou sevofluorano 1.

Relatos limitados na literatura

1.

GGE até obter o efeito desejado 2.

Controle da dor após a retirada

2.

Isofluorano ou sevofluorano

dos fetos, como no caso de

GGE até obter o efeito desejado

2.

Haverá necessidade de sedação além da analgesia regional na

2.

Porca

Lhama

para analgesia suplementar

outros procedimentos

■ Anestesia regional As técnicas de anestesia regional estão bem estabelecidas para a cesariana.17 Há uma resposta aumentada aos agentes anestésicos locais e maior distribuição desses fármacos durante a gestação e o parto. Em consequência, a dose e o volume dos anestésicos locais para anestesia epidural ou espinal podem ser reduzidos em aproximadamente um terço em pacientes prenhes, em comparação com não parturientes. A anestesia regional (epidural ou subaracnóidea) tem como vantagens simplicidade da técnica, exposição mínima do feto aos fármacos, menor sangramento intraoperatório e, como a mão permanece desperta, risco mínimo de aspiração.56 Além disso, o relaxamento muscular e a analgesia são ótimos. A anatomia da medula espinal caudal na região lombossacral varia entre as espécies. Nos cães, a medula espinal termina em nível da sexta vértebra lombar, reduzindo o risco de injeção subaracnóidea (espinal verdadeira) do agente anestésico. Nos gatos, a medula

espinal termina de modo variável entre L7 e a porção média do sacro, o que aumenta a possibilidade de injeção subaracnóidea.57 Nos suínos e nos ruminantes, a medula espinal termina na porção média do sacro, o que possibilita a injeção subaracnóidea na junção lombossacral. Cadelas e gatas A anestesia epidural tem sido usada com sucesso em cadelas e gatas para cesariana. Tradicionalmente, administra-se um anestésico local de ação curta (lidocaína a 2%), em uma dose de 1 mℓ para cada 3,25 a 4,5 kg de peso corporal no espaço epidural, a fim de produzir anestesia no sítio cirúrgico. Nesses últimos anos, os fármacos administrados por via epidural, incluindo lidocaína e bupivacaína em uma mistura volumétrica de 1:1, têm proporcionado maior duração da anestesia cirúrgica e controle da dor no início do período de recuperação. Essa mistura pode ser suplementada com opioides e agonistas α2adrenérgicos epidurais para prolongar o período de analgesia no pós-operatório. Porcas, ovelhas e cabras As técnicas espinais funcionam bem em porcas, ovelhas e cabras. A técnica está bem estabelecida e não é difícil. Quando se utiliza essa técnica, é algumas vezes necessário conter a cabeça e os membros torácicos da porca. Se a porca for sedada e contida em decúbito lateral, com a cabeça estendida, o palato mole pode obstruir a via respiratória, causando sufocação da paciente. Como a cesariana em porcas é frequentemente considerada como último recurso pelos produtores, o procedimento costuma ser adiado até que a condição geral da fêmea esteja gravemente deteriorada. Por conseguinte, uma alta porcentagem de porcas submetidas a cesariana apresenta hipovolemia e hipotensão. Os líquidos podem ser prontamente administrados a porcas por meio de cateteres de demora colocados nas veias auriculares antes da administração do anestésico. Esses líquidos irão restaurar o volume circulante e compensar a hipotensão induzida pelas técnicas espinais. Vacas A anestesia epidural e espinal frequentemente induz decúbito, que não é desejável nos grandes ruminantes. Uma alternativa consiste em realizar uma cesariana com a vaca em posição quadrupedal, utilizando bloqueio paralombar proximal ou distal. Nas vacas em estado grave, exaustas ou em choque, prefere-se a técnica distal, visto que ela não induz uma postura semelhante à escoliose, e a fêmea tem mais probabilidade de permanecer em estação durante todo procedimento. A desvantagem da anestesia epidural ou subaracnóidea consiste em hipotensão secundária ao bloqueio simpático. A hipotensão induzida pela anestesia epidural pode ser

tratada com líquidos intravenosos e administração de catecolaminas. Podem-se administrar uma solução de Ringer com lactato ou de cloreto de sódio a 0,9 ou 0,45% misturada com volumes iguais de solução de glicose a 5% na dose aproximada de 20 mℓ/kg durante 15 a 20 min para manter a pressão arterial. Quando a hipotensão é grave, pode-se administrar efedrina (0,15 mg/kg IV). A hipotensão e a manipulação visceral durante o procedimento podem provocar náuseas e vômitos. Como a fêmea permanece consciente, os membros torácicos e a cabeça frequentemente se movimentam. Isso impede o uso de uma técnica espinal em pacientes e em éguas extremamente excitadas ou agitadas, visto que elas se tornam histéricas quando são incapazes de se manter em pé.

■ Anestesia local Podem-se utilizar a infiltração local ou o bloqueio de campo, porém essas técnicas apresentam várias desvantagens em comparação com as técnicas regionais. A infiltração exige maiores quantidades de agente anestésico, que sofre absorção sistêmica, podendo provocar depressão do feto. Além disso, o relaxamento muscular e a analgesia não são tão profundos nem uniformes quando comparados com a anestesia regional. Em muitos casos, o bloqueio de campo é suplementado com sedação ou tranquilização intensas para acalmar e estabilizar a fêmea; esses fármacos contribuem ainda mais para a depressão da mãe e do feto. Por esses motivos, o bloqueio de campo é frequentemente substituído pela anestesia geral ou epidural.

Cuidados com o recém-nascido Após o parto, removem-se as membranas da cabeça do recém-nascido, bem como as secreções da orofaringe. Os vasos umbilicais devem ser ordenhados em direção ao feto para remover o sangue, pinçados ou ligados a cerca de 2 a 5 cm da parede corporal e seccionados da placenta. Em seguida, os recém-nascidos podem ser esfregados suavemente com uma toalha para secá-los e estimular a respiração. Deve-se evitar qualquer movimento vigoroso, visto que o líquido amniótico é prontamente absorvido nos pulmões e contribui para a distribuição do surfactante pulmonar nos alvéolos. A cabeça e o pescoço devem ser sustentados para evitar movimentos em chicotada e lesões.58 A administração de fluxo de oxigênio próximo ao focinho é útil para aumentar a frequência cardíaca e o aporte de oxigênio aos tecidos nos recém-nascidos em sofrimento e exaustos. Nos casos em que foram administrados opioides como parte da técnica de anestesia geral, justifica-se a reversão da ação dos opioides mediante administração sublingual ou intranasal de 1 a 2 gotas de naloxona. Uma dose oral de glicose a 2,5% (0,1 a 0,5 mℓ) é útil para melhorar os substratos energéticos necessários para o esforço respiratório inicial nos recém-nascidos

estressados. Por fim, é fundamental manter o recém-nascido aquecido, visto que pode ocorrer hipotermia rapidamente após o nascimento. Pode-se utilizar um pequeno cateter intravenoso para intubação e suporte da administração de oxigênio a recém-nascidos que não começaram a respirar, e a sua respiração pode ser artificialmente sustentada pelo uso de uma seringa e válvula de três vias conectada a uma fonte de oxigênio. Como último recurso, pode-se administrar doxapram para estimular a respiração do recém-nascido. Em filhotes de cadela, administrase uma dose de 1 a 5 mg (aproximadamente 1 a 5 gotas de uma agulha de calibre 20 a 22) topicamente na mucosa oral, ou efetua-se uma injeção intramuscular ou subcutânea. Em filhotes de gata, a dose é de 1 a 2 mg (1 a 2 gotas).54 As vias respiratórias precisam estar limpas antes da administração de doxapram. Pode-se justificar a aplicação de compressões torácicas externas se a frequência cardíaca estiver lenta e não responder a medidas de suporte. Um rápido exame físico à procura de defeitos genéticos (fenda palatina, deformidade do tórax ou fusão da parede abdominal) também é importante para determinar a viabilidade do recém-nascido. A viabilidade de filhotes recém-nascidos de cadela tem sido associada a concentrações de lactato no sangue da veia umbilical.59 Níveis de lactato na veia umbilical de > 5 mmol/ℓ foram correlacionados a um aumento da mortalidade dos recém-nascidos em 48 h após o parto. Escores Apgar de 5 min também foram avaliados em filhotes de cadela como indicador prognóstico de sobrevivência precoce.60 Os filhotes com escore na faixa de 7 a 10 tiveram maior sobrevida em 48 h do que aqueles com escores inferiores. Quando se utiliza a anestesia geral em ruminantes ou equinos, a orofaringe pode ser limpa, e a traqueia intubada após a retirada da cabeça do feto através da incisão do útero. Em seguida, o feto pode ser retirado, e o cordão umbilical, seccionado. Como a circulação uteroplacentária e umbilical é preservada até o estabelecimento da via respiratória, evita-se a hipoxia. Após a retirada do feto, a ventilação pode ser sustentada, se necessário, com um reanimador ambu. Após o término da cirurgia e recuperação da anestesia, o recém-nascido pode ser apresentado à mãe. Se essa apresentação for tardia, o recém-nascido deve ser exposto brevemente à mãe para receber o colostro e, em seguida, mantido em ambiente aquecido até que a recuperação da anestesia seja completa, a fim de evitar qualquer esmagamento acidental. Caso se tenha utilizado a anestesia regional, os filhotes podem ser colocados junto à mãe assim que a cirurgia for concluída.

Controle da dor peroperatória Isso representa um desafio em pacientes submetidas a cesariana, devido aos problemas

relacionados com a transferência dos anestésicos e analgésicos para o leite e seu impacto nos recém-nascidos. Essa área tem sido extensamente estudada em seres humanos e animais produtores de alimentos. A maior parte das informações atuais provém de mulheres e vacas; entretanto, devido à semelhança do processo de lactação em todos os mamíferos, essas informações podem ser extrapoladas a outras espécies. A clorpromazina, um tranquilizante fenotiazínico, não parece ser transferido para o leite em níveis capazes de provocar depressão do feto.53 Não se dispõe de nenhuma evidência como corolário para a acepromazina, porém a semelhança da estrutura molecular, juntamente com a experiência clínica, sustenta um efeito semelhante nos recém-nascidos. O diazepam, um tranquilizante benzodiazepínico, penetra significativamente no leite e pode causar letargia, sedação e perda de peso em recém-nascidos.56 Outros membros da classe dos benzodiazepínicos, incluindo clonazepam e alprazolam, induzem sonolência, hipotonia e apneia em recém-nascidos após as mamadas. Os efeitos do lorazepam e do midazolam não são conhecidos, todavia, com base nos efeitos atribuído a outros membros da classe, devem ser usados com cautela em mães que amamentam. A xilazina aumenta transitoriamente no leite e, em seguida, diminui para níveis indetectáveis em 12 h após a sua administração.61 A detomidina (80 µg/kg) pode ser detectada em baixos níveis no leite após a sua administração, porém torna-se indetectável em 23 h.62 A codeína, o propoxifeno e a morfina são bem tolerados pelos recém-nascidos quando usados no controle da dor materna, mesmo quando são administradas doses repetidas por vários dias.63 Foi relatado que a meperidina (petidina) provoca diminuição do comportamento de sucção e sedação quando usada em uma série de doses.63,64 A fentanila (100 µg) e a sufentanila (10 a 50 µg) não são detectáveis no leite materno após administração epidural a mulheres.65 O tiopental foi detectado no colostro e no leite materno após uma dose única de indução (5 mg/kg) em mulheres.66 Os barbitúricos de ação longa, como o fenobarbital, estão contraindicados, devido à sua extensa presença no leite.67 O propofol pode ser detectado no colostro e no leite após administração de uma dose única.68 Todavia, observase pouco efeito clínico, com base na excelente vitalidade dos recém-nascidos imediatamente após o parto.23,24 A presença de resíduos de agentes anestésicos inalatórios no leite não é conhecida; todavia, a experiência clínica sugere que não é raro haver sedação neonatal prolongada após a recuperação clínica das mães. Os anestésicos locais (p. ex., lidocaína e bupivacaína) e os metabólitos da bupivacaína de primeira geração são excretados no leite após administração epidural a mulheres. Embora esses fármacos sejam detectáveis no leite, a sua influência nos recém-nascidos é insignificante, com base no escore Apgar máximo (atividade, pulso, careta, aparência e respiração) ao nascimento.69

Os AINEs parecem alcançar apenas níveis limitados no leite após administração à mãe. Em mulheres, o paracetamol e o ácido acetilsalicílico são considerados compatíveis com a amamentação.63 Estudos que avaliaram o carprofeno em vacas indicaram que os níveis encontrados no leite foram abaixo dos limites detectáveis (< 0,022 µg/mℓ) após a administração de uma dose única. Após indução experimental de mastite, o carprofeno foi detectado em baixos níveis (0,16 µg/mℓ) por 12 h após a administração de um único bolo, diminuindo para níveis indetectáveis (< 0,022 µg/mℓ) em 24 h.70 Após uma dose única de cetoprofeno (3,3 mg/kg) em vacas, foram observadas concentrações detectáveis, porém não quantificáveis, no leite por apenas 2 h.71 Foram relatados resultados semelhantes em cabras durante a amamentação.72 Com base nas evidências atuais, parece que as classes de analgésicos mais comumente utilizados podem ser administradas com segurança durante o período de lactação, sem efeitos adversos nos recém-nascidos.

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35 Anestesia e Analgesia Comparada em Cães e Gatos 36 Anestesia e Manejo da Dor em Populações de Abrigos 37 Anestesia e Analgesia Comparada em Equinos 38 Anestesia e Analgesia Comparada de Ruminantes e Suínos 39 Anestesia e Analgesia Comparada em Animais de Laboratório 40 Anestesia e Analgesia Comparada de Animais Selvagens de Zoológicos e de Vida Livre

41 Anestesia e Analgesia Comparada em Mamíferos Aquáticos 42 Anestesia e Analgesia Comparada de Répteis, Anfíbios e Peixes 43 Anestesia e Analgesia Comparada de Aves

Cães Variedade de tamanhos Galgos Considerações anestésicas relacionadas a outras raças Liberação de histamina Raças braquicefálicas Colapso de traqueia Potássio eritrocitário Gatos Manejo e comportamento Metabolismo dos fármacos em gatos Anestésicos inalatórios Opioides Anti-inflamatórios não esteroides Intubação endotraqueal Cegueira cortical pós-anestésica Fluidoterapia e volume sanguíneo Tipos sanguíneos Dopamina e seus receptores Referências bibliográficas

Cães

■ Variedade de tamanhos O cão doméstico tem sido manipulado, por meio de reprodução seletiva, em uma variedade desconcertante de tamanhos e formas, originalmente com algum propósito funcional, porém mais recentemente, com a aparência funcionando como uma importante força motriz dos padrões raciais. Isso levou a uma matriz de pesos de cães adultos variando desde menores que 1 kg (p. ex., Yorkshire Terrier micro) até maiores que 100 kg (p. ex., Sãobernardo). A experiência clínica sugere que cães pequenos geralmente necessitam maiores doses em miligramas por quilo (mg/kg). No entanto, não existem evidências científicas validadas para o cálculo dessas doses relativas. Enquanto se debate a validade de fórmulas utilizadas para se ajustar a dose para a massa corporal, a maioria dos fatores de escala, como a superfície de área corporal, são na verdade irrelevantes para o escalonamento alométrico. As informações relevantes são a inclinação da curva da correlação entre a massa (p. ex., peso corporal [PC]) e a variável a ser corrigida (p. ex., dose); essa inclinação é determinada pelo expoente utilizado e, portanto, o escalonamento para PCx, no qual o “x” é algum expoente (p. ex., x = 0,67). Essa correlação entre peso corporal e dose seria tão efetiva (desde que a dose realmente varie em função do tamanho corporal) quanto a área de superfície corporal (ASC) e evita a crítica de que a área de superfície corporal pode não ser conhecida. A Tabela 35.1 mostra como a dose poderia ser afetada ao dimensioná-la para diferentes tecidos e atividades. Talvez uma abordagem mais racional seja baseada na farmacocinética, utilizando-se parâmetros farmacodinâmicos para descrever a distribuição de um fármaco pelo corpo. A mistura inicial do fármaco com o plasma ocorre no compartimento central e geralmente é dimensionada pelo peso corporal (ou seja, é uma função do PC).1,2 Com base nestas considerações, aparentemente os cálculos de doses baseados no peso corporal elevado a algum fator (p. ex., 0,67) seriam apropriados para anestésicos e analgésicos de ação rápida. Estima-se que a obesidade ocorra em mais de 30% dos cães e gatos.3,4 Isso representa um desafio para o anestesista, pois não existem técnicas simples e acuradas para estimar a massa magra de um animal para o cálculo de doses. Embora o tecido adiposo tenha um fluxo sanguíneo relativamente baixo por grama de tecido, ele afetará a distribuição de alguns fármacos (p. ex., propofol). A experiência clínica em seres humanos obesos indica que a dose do fármaco de indução é maior que a dose esperada para o peso corporal magro previsto, mas não tão alta quanto a dose necessária para o peso corporal real. Por exemplo, a dose total de propofol utilizada em crianças obesas, quando comparada às não obesas, foi apenas 7% maior, mesmo que o peso médio das crianças obesas tenha sido 170% maior.5 Um estudo recente demonstrou que a dose de indução do propofol foi maior, em termos de mg/kg, em cães com peso normal do que em cães com sobrepeso.6 Contudo, uma possível variável confundidora nesse estudo teria sido a administração de medetomidina como pré-

medicação. Todos os cães receberam a mesma dose, baseada em seu peso corporal total. Não se sabe se o efeito poupador de anestésico da medetomidina se correlaciona melhor com o peso total ou com a massa corporal magra; se for com a massa corporal, seria esperado que a medetomidina provocasse maior redução da demanda de propofol nos cães com sobrepeso, porque teriam recebido uma dose efetiva relativa maior. Em qualquer um dos casos, alterações na dose do agente de indução podem ser explicadas, na prática, pela titulação do fármaco até que se atinja o efeito desejado. A obesidade pode ter muitas outras implicações sobre o manejo anestésico, tanto antes quanto durante a anestesia.7 Tabela 35.1 Doses de um fármaco escalonadas de acordo com diversas atividades metabólicas ou peso dos órgãos baseadas em uma dose de 20 µg/kg para um cão de 20 kg. PC = peso corporal, em kg. Os fatores de escalonamento foram retirados das referências 165 a 168. Observe que o expoente contém as informações relevantes, visto que doses idênticas seriam calculadas por suas relações com expoentes semelhantes, independentemente das diferenças no multiplicador (p. ex., doses em relação ao peso renal e ao peso hepático).

kg

ASC

TMB

(dose/kg)

(dose/kg)

0,0484 Fórmula

× 0,67

PC0,734

54

44

(54)

(44)

158

145

(32)

(29)

251

240

(25)

(24)

400

400

(20)

(20)

525

539

(18)

(18)

PC 1

5

10

20

30

3,8 ×

Depuração renal (dose/kg)

Fluxo Peso renal

sanguíneo

(dose/kg)

hepático (dose/kg)

Função

Peso

hepático

hepática

cardíaco

(dose/kg)

(dose/kg)

(dose/kg)

0,037

0,00816

0,0066 ×(PC ×

4,2 ×(PC

0,0212

×

×(PC ×

×

×

×

0,69

0,85

0,894

0,849

0,885

1.000)

1.000)

51 (51)

31 (31)

154 (31)

123 (25)

248 (25)

222 (22)

400 (20)

400 (20)

529 (18)

565 (19)

0,0554

Peso

PC

PC

PC

27

31

(27)

(31)

116

123

117

(23)

(25)

(23)

215

222

217

(22)

(22)

(22)

400

400

400

(20)

(20)

(20)

575

564

573

(19)

(19)

(19)

28 (28)

1.000) 21 (21)

103 (21)

203 (21)

400 (20)

595 (20)

50

80

100

753 (15)

739

784

(15)

(16)

1.013

1.107

1.041

(13)

(14)

1.176 (12)

872 (17)

907

871

900

(18)

(17)

(18)

1.300

1.381

1.298

1.364

(13)

(16)

(17)

(16)

(17)

1.303

1.214

1.571

1.686

1.569

1.662

(13)

(12)

(16)

(17)

(16)

(17)

982 (20)

1.556

1.937

Para chegar a estes valores, o valor escalonado foi calculado para um animal de 20 kg e a dose unitária foi então calculada baseada em 400 µg para este animal. A dose unitária foi então multiplicada pelo tamanho na escala para cada peso corporal da tabela. ASC = área de superfície corporal; TMB = taxa metabólica basal; PC = peso corporal em kg. Os fatores de correlação foram retirados das referências 165-168. * N.T.: Cat bags são bolsas específicas para transporte e contenção de felinos.

■ Galgos Galgos são cães que, historicamente, caçam por meio da visualização de sua presa em vez de utilizar o olfato. Fenotipicamente, os galgos têm tórax profundo, pernas longas e corpos relativamente estreitos, sendo ainda muito magros. Muitas pessoas classificam Afghan, Borzoi, Saluki, Greyhound, Pequeno Lebrel Italiano, Whippet, Wolfhound Irlandês, Galgo Escocês, Ibiza Hound, Basenji e o Rhodesian Ridgeback, assim como várias outras raças raras, como galgos.8 Contudo, baseando-se na análise genética, estas raças não compartilham a mesma linhagem.9 O Afghan e o Saluki estão muito mais próximos do lobo, em uma base genética, que o Greyhound e o Borzoi. Os estudos publicados sobre anestesia em galgos comumente utilizam os Greyhounds e relatam que estas raças apresentam maior tempo de recuperação após a anestesia com tiobarbitúricos.10,11 Outros estudos, também em Greyhounds, demonstraram uma recuperação levemente mais prolongada após a anestesia com propofol e alfaxalona.12,13 Estes resultados foram inicialmente atribuídos à grande massa muscular e ao tecido adiposo mínimo encontrados em Greyhounds e, a partir daí, generalizados para todos os galgos. No entanto, dados mais recentes têm demonstrado que os Greyhounds podem apresentar uma deficiência relativa na metabolização hepática.14,15 É improvável que tais deficiências ocorram em todos os galgos, dadas as diferenças genéticas. Também não existem publicações a respeito de recuperação anestésica prolongada em galgos, à exceção dos Greyhounds, embora existam muitos relatos sem comprovação científica desses eventos.

■ Considerações anestésicas relacionadas a outras raças Alguns clientes têm sido alertados pelos criadores, ou têm procurado informações na internet, que sugerem que algumas raças apresentam maior “sensibilidade” a determinados anestésicos.16 Na maioria das vezes não está claro de onde se originam estes alertas e são pouquíssimos os problemas durante a anestesia relacionados à raça que tenham sido consistentemente relatados por veterinários. Uma resposta anormal a um anestésico poderia estar relacionada à uma linhagem específica de uma raça, a qual o criador ou grupo de criadores em particular está reproduzindo, com características que eles querem promover à custa de potencialmente propagarem anormalidades congênitas, de desenvolvimento ou genéticas (p. ex., hidrocefalia ou cardiomiopatia), resultando em alterações nas respostas aos anestésicos. O polimorfismo dos genes MDR-1 ou ABCB-1 já foi encontrado em diversas raças de pastoreio e em algumas outras. As proteínas produzidas por essa família de genes (família ABC = ATP binding cassette) são encontradas em diversas áreas do corpo, mas sua presença nos intestinos e na barreira hematencefálica é a mais importante em relação aos fármacos anestésicos e analgésicos. Este gene é um de vários que afetam as concentrações cerebrais alcançadas por alguns fármacos.17 Estudos em camundongos sem o gene MDR-1 sugerem que ocorre um aumento, em torno de 25%, da concentração de morfina e fentanila nas células neuronais e mais do dobro da concentração de metadona. A meperidina aparentemente não interage com a glicoproteína P. Dados in vitro sugerem que sufentanila, alfentanila, oximorfona e butorfanol18,19 também não apresentam interação significativa com a glicoproteína P. A buprenorfina parece ter interação mínima com a glicoproteína P, no entanto, seu metabólito, a norbuprenorfina, é removida do cérebro, em parte, por este transportador.20 Os fármacos anestésicos comumente utilizados para a indução e a manutenção da anestesia não parecem interagir com a glicoproteína P. Algumas preocupações anestésicas associadas às raças podem estar relacionadas a alguma enfermidade com alta prevalência dentro da raça. Observações casuais têm relatado que cães da raça Boxer estão mais sujeitos a efeitos adversos (p. ex., desmaios) após a administração de acepromazina. Uma vez que estes efeitos adversos são raros e difíceis de se estudar cientificamente, não se sabe se este fato está relacionado à prevalência de cardiomiopatia dilatada nessa raça ou se ocorre devido a maior resposta vagal ao fármaco, como relatado em várias outras raças braquicefálicas.21 A partir de estudos em morbidade/mortalidade, diversas raças têm emergido como tendo maior risco anestésico, em análises realizadas utilizando-se dados de uma única variável. Estes resultados não aparecem quando uma análise por meio de diversas variáveis é realizada, indicando que outros fatores influenciam a taxa de complicações observada (p. ex., maior incidência de complicações em cães de raças pequenas).22,23 Apesar da falta de

confiabilidade dos relatos da internet a respeito de sensibilidades ligadas a algumas raças, cabe aos anestesistas investigar preocupações específicas apresentadas pelos proprietários.

■ Liberação de histamina Este fato parece ocorrer mais em cães do que em outras espécies, mas a razão por que isso ocorre não é clara. Um exemplo é a liberação de histamina que ocorre após a administração de Cremophor®, o solvente utilizado em alguns anestésicos injetáveis (p. ex., alfaxolona/alfadolona). Isso resultou na morte de vários cães.24 Mesmo não recomendado, alguns veterinários continuaram a utilizá-lo junto com um anti-histamínico, apesar de este fármaco nunca ter sido aprovado para uso em cães.25 O uso de morfina e meperidina está associado à liberação de histamina e, apesar de o comparativo entre espécies ser difícil, as concentrações plasmáticas de histamina em cães parecem ser consideravelmente maiores que as encontradas em humanos.26-28

■ Raças braquicefálicas A manifestação da síndrome braquicefálica (p. ex., estenose de narinas, prolongamento de palato mole, ventrículos laterais evertidos, traqueia hipoplásica e colapso bronquial) pode ocorrer em vários graus.29 O encurtamento das conchas nasais, o que cria obstrução tanto rostral quanto caudal da via nasal, também tem sido descrito.30 Essa constelação de alterações anatômicas leva ao aumento potencial de obstrução das vias respiratórias, especialmente se o animal não estiver totalmente consciente31 O anestesista deve considerar o seguinte: • •

• •

• •

Uso cuidadoso e conservador de sedativos. Ter uma gama de tubos endotraqueais disponíveis, visto que traqueias hipoplásicas requerem tubos de tamanhos muito menores. Por exemplo, não é incomum um Buldogue Inglês de 25 kg necessitar de um tubo endotraqueal de 6,5 mm para ser intubado. Se possível, pré-oxigenar o animal sem estressá-lo. Utilizar uma técnica de indução rápida intravenosa. A indução com anestésicos inalatórios por meio de máscara facial não é rotineiramente recomendada para estes indivíduos. Utilize fármacos de indução e manutenção que possibilitem o rápido retorno à consciência. Fármacos reversíveis também podem ser benéficos. Mantenha o controle das vias respiratórias o maior tempo que conseguir. A oclusão dental destes animais é anormal, sendo raro que um cão braquicefálico consiga estragar significativamente o tubo endotraqueal.







Observe o paciente quanto a sons respiratórios e ventilação paradoxal imediatamente após a extubação para diagnosticar uma possível obstrução o quanto antes. Quando as vias respiratórias estão obstruídas, o tórax colapsa durante a inspiração, enquanto o abdome expande. O monitoramento contínuo da saturação da oxi-hemoglobina (p. ex., oximetria de pulso) durante o período de recuperação, especialmente após a extubação, é fortemente recomendado para a detecção precoce de hipoxemia. Tente desobstruir as vias respiratórias superiores colocando o animal em decúbito esternal, estendendo a cabeça, abrindo a boca e puxando a língua pra fora. Em alguns casos, somente o fato de suspender a cabeça de tal modo que o pescoço fique esticado é o suficiente para manter as vias respiratórias desobstruídas logo após a extubação. Se ocorrer obstrução, anestesie e intube o animal novamente, aguardando a recuperação da consciência antes de uma nova tentativa de retirar o tubo endotraqueal.

Um cão braquicefálico que esteja para ser anestesiado deve ter suas vias respiratórias superiores examinadas imediatamente depois da indução e, caso necessário, uma correção cirúrgica deve ser realizada. Os proprietários devem ser orientados sobre a correção cirúrgica do prolongamento de palato mole e dos sáculos laríngeos evertidos (se necessário) e de como isso pode melhorar a recuperação da anestesia.

■ Colapso de traqueia Existe uma predileção racial para a ocorrência de colapso de traqueia, sendo as raças pequenas (p. ex., Yorkshire Terrier, Chihuahuas e Lulus-da-pomerânia) as mais acometidas. O colapso de traqueia está comumente associado a um colapso nas vias respiratórias inferiores, tornando-o mais difícil de ser manejado no período préoperatório.32,33 O manejo clínico destes pacientes, antes de uma anestesia eletiva, é geralmente possível por meio do uso de antibióticos para tratar infecções respiratórias, perda de peso, broncodilatadores, agentes antissialagogos, antitussígenos, esteroides e diuréticos.34,35 O manejo anestésico de pacientes com colapso de traqueia é, em diversos pontos, semelhante ao realizado em raças braquicefálicas. Durante a preparação, é importante ter disponíveis tubos endotraqueais longos o bastante para chegar até a carina, caso exista a possibilidade de um colapso de traqueia intratorácico. A recuperação é o período mais perigoso caso não tenha sido colocado um stent (prótese) nas vias respiratórias, visto que pode ocorrer novo colapso e obstrução destas vias. Portanto, é importante que a recuperação seja calma, para que não ocorram aumentos súbitos de atividade que necessitem incremento do esforço respiratório ou estimulem a tosse. A suplementação de oxigênio e o uso de sedativos podem ser úteis logo após a extubação. Recentemente, a

aplicação da técnica de pressão positiva contínua nas vias respiratórias (PPCV) por meio de máscara facial tem sido descrita, a qual pode se mostrar útil durante a recuperação destes pacientes.36 Stents traqueais têm sido utilizados em cães com colapso de traqueia.37 Se a colocação dos stents for extraluminal, o manejo anestésico é o mesmo descrito antes. Caso a colocação seja intraluminal, o cão é geralmente intubado inicialmente para a mensuração do tamanho traqueal. Em pacientes muito pequenos, não é possível implantar o stent através do tubo endotraqueal, portanto, o animal deve ser mantido anestesiado com uso de fármacos injetáveis, como o propofol ou a alfaxalona, e suplementado com oxigênio por insuflação ou por ventilação em jato durante a colocação.

■ Potássio eritrocitário Os cães apresentam concentrações relativamente baixas de potássio dentro dos eritrócitos. Concentrações em torno de 5 a 6 mmol/ℓ são geralmente encontradas na maioria dos eritrócitos caninos, porém existem algumas raças (p. ex., Akita, Shiba Inu e outras raças de origem japonesa) que apresentam concentrações de potássio maiores. O extravasamento do potássio dos eritrócitos é uma preocupação em outras espécies cujo sangue é estocado para transfusões. Em sangue canino do tipo CPD-A1 estocado, a concentração plasmática de potássio aumenta para até 8 mmol/ℓ após 30 dias de estocagem. Já no caso de seres humanos (cujos eritrócitos têm alta concentração de potássio), o potássio no plasma do sangue estocado se eleva até 30 mmol/ℓ e 44 mmol/ℓ depois de 3 e 6 semanas de estoque, respectivamente.38,39 Mesmo com estas altas concentrações de potássio, é improvável que ocorra um aumento significativo na concentração plasmática deste íon durante a transfusão de uma única unidade; no entanto, quando várias unidades são utilizadas, esse fator pode resultar em hiperpotassemia.40

Gatos ■ Manejo e comportamento A Associação Americana de Veterinários de Felinos e a Sociedade Internacional de Medicina Felina, endossadas pela Associação Americana de Hospitais para Animais, têm desenvolvido e publicado recomendações para o manejo “amigável” de felinos.41 Particularmente, o manejo de gatos medrosos ou agressivos pode ser desafiador. As recomendações para o manejo destes animais incluem treinamentos antes das idas ao veterinário, benzodiazepínicos por via oral (com o risco de desinibição associado), uso de toalhas, focinheiras, redes e/ou cat bags.* Especificamente, os autores não recomendam o

uso de acepromazina, baseando-se em sua falta de efeito ansiolítico e um potencial aumento da agressividade.41 Gatos rebeldes podem requerer sedação antes de serem manejados. Diversos agentes e associações têm sido descritos como sendo efetivos. Em particular, o uso de agonistas de receptores alfa-2 adrenérgicos, isoladamente ou associados a opioides ou anestésicos dissociativos e anestésicos dissociativos, geralmente associados a acepromazina ou benzodiazepínicos, parece produzir sedação consistente e dose-dependente em gatos.42-48 Os agonistas de receptores alfa-2 adrenérgicos, quando utilizados sozinhos ou associados à cetamina, têm demonstrado serem efetivos após a administração oral ou bucal.49-52 Comportamentos associados à dor podem ser difíceis de serem detectados em gatos. Deve-se dar atenção especial quando houver perda do comportamento normal, como redução do apetite, quando o animal deixa de se cuidar (diminuição do grooming), ou diminuição da atividade; a expressão de comportamentos anormais, como evacuação em locais inapropriados, vocalização, agressão, alteração da expressão facial, ou escondendose; e reações ao toque ou palpação da área dolorida.53 Até o presente momento, não existe um sistema de escores de dor que tenha sido validado para o uso em gatos; isso ilustra a dificuldade de avaliar a dor nesta espécie e a necessidade de uma cuidadosa observação de cada indivíduo, além de encorajar o proprietário a observar e relatar ao veterinário qualquer alteração súbita de comportamento.

■ Metabolismo dos fármacos em gatos Já está bem documentado que existem importantes diferenças metabólicas entre gatos, cães e seres humanos; portanto, a extrapolação de doses destas outras espécies para gatos deve ser realizada com muita cautela. Em particular, a atividade da UDP-glicuronil transferase (UGT), uma enzima envolvida na conjugação de diversos substratos, é muito menor em gatos do que em cães e humanos.54-57 Isso resulta, por exemplo, em menor taxa de eliminação do paracetamol e em alto potencial para intoxicação. A causa genética para esta baixa atividade enzimática já foi identificada; gatos têm um pseudogene não funcional da UGT1A6.55 Adicionalmente, eles podem ter o metabolismo de Fase 1 reduzido (oxidação, redução, hidrólise) quando comparados a outras espécies, devido à menor atividade de algumas enzimas hepáticas do citocromo P450 (CYP). Foi documentado recentemente que a atividade das enzimas CYP1A, CYP2C, CYP2D, CYP2E e CYP3A foi menor em microssomos hepáticos felinos quando comparados aos de caninos e humanos; a atividade da CYP2B foi comparável.58 Isso pode contribuir para as diferenças de metabolismo farmacológico observadas em gatos em relação a cães e humanos. Como exemplo, em um estudo sobre a farmacocinética do tramadol, a taxa na qual o O-desmetiltramadol (metabólito provavelmente responsável pela ação opioide do tramadol) foi produzido

pareceu ser semelhante à de seres humanos com deficiência da enzima CYP2D6. Estes mesmos seres humanos aparentemente tiveram menor alívio da dor com este fármaco do que indivíduos “bons metabolizadores”.59 Outro exemplo importante da variação do metabolismo farmacológico entre as espécies é encontrado com uso do propofol. A depuração corporal total foi registrada como sendo pelo menos duas vezes mais rápida em cães do que em gatos.60-62 O propofol é metabolizado por meio de glicuronização pela UGT e hidrólise pela CYP2B6 e CYP2C em seres humanos;63 em cães, é relatado que o ponto limitante na taxa de eliminação é a atividade da CYP2B11.15 Portanto, não está claro, baseando-se no estudo citado acerca da similaridade de atividade da CYP2B em cães e gatos, por que os gatos depuram o propofol mais lentamente que os cães; de qualquer maneira, as diferenças no metabolismo do propofol podem ter consequências clínicas, visto que tem sido relatado que o aumento na duração da infusão de propofol em gatos prolonga sua recuperação.64

■ Anestésicos inalatórios A potência dos anestésicos inalatórios, caracterizada pela sua concentração alveolar mínima (maiores valores de CAM), tende a ser menor em gatos do que em muitas outras espécies, incluindo cães e cavalos.65-77 Foi relatado que o óxido nitroso diminui a CAM do halotano, no entanto, quando associado ao isofluorano, este efeito foi inconsistente.66,77 Enquanto, ao conhecimento dos autores, não existem estudos comparando diretamente os efeitos dos anestésicos inalatórios em cães e gatos, a experiência prática sugere que em uma profundidade anestésica similar, a pressão arterial tende a ser menor em gatos do que em cães. Algumas evidências que comprovem isso podem ser encontradas comparando-se estudos em que os anestésicos inalatórios foram administrados em múltiplos semelhantes de sua concentração alveolar mínima em ambas as espécies. Tais estudos demonstram que, em concentrações anestésicas moderadas, a pressão sanguínea e o índice cardíaco estão mais deprimidos em gatos do que em cães.75,78-81

■ Opioides Em gatos, os opioides causam dilatação pupilar e, em alguns casos, excitação.82 O comportamento maníaco (excitatório) induzido pelos opioides geralmente só é visto após a administração de altas doses.83 Em doses terapêuticas, os opioides causam analgesia e euforia e, em alguns casos, disforia.84-87 Tem sido sugerido que os efeitos excitatórios de altas doses de morfina ocorrem devido a um efeito mediado por um receptor não opioide.88 Existem evidências de que a reposta excitatória em gatos não está necessariamente ligada à sua ação nos receptores opioides em si, mas relacionada à liberação de monoaminas.83 Opioides podem ter um efeito bifásico sobre o sistema cardiovascular em gatos. Em

baixas doses, eles podem diminuir a frequência cardíaca e a pressão sanguínea, enquanto doses maiores aumentam frequência cardíaca, débito cardíaco e pressão sanguínea.82,89 Estes últimos efeitos parecem estar relacionados ao aumento da concentração de catecolaminas circulantes e não ocorrem em gatos adrenalectomizados.82,89 Os efeitos hemodinâmicos induzidos pelas catecolaminas são provavelmente induzidos centralmente pelo efeito em receptores opioides, visto que são impedidos pela naloxona.90 Tem sido relatada a ocorrência de hipertermia após a administração de opioides em gatos.91-94 Este efeito aparenta ser dose-dependente e é consistente apenas quando altas doses são administradas. Em um estudo clínico retrospectivo, a administração de hidromorfona em doses variando entre 0,05 e 0,1 mg/kg foi fortemente correlacionada com temperaturas retais > 40°C; essa relação foi confirmada por um estudo clínico prospectivo.91,92 Em um contexto investigativo, um estudo prospectivo demonstrou que doses clinicamente relevantes de diversos opioides resultaram em aumento da temperatura corporal; contudo, neste estudo, o aumento foi leve a moderado e a temperatura corporal permaneceu abaixo dos 40°C na maioria dos casos.93 Os opioides diminuem a dose de agentes inalatórios necessária para provocar imobilidade em gatos.95 No entanto, a magnitude deste efeito parece ser menor em gatos do que em outras espécies, sendo que a redução máxima da CAM de um anestésico inalatório induzida por um opioide foi de aproximadamente 35% após a administração de alfentanila em dose necessária para produzir uma concentração plasmática altíssima (500 ng/mℓ).96 Para efeito comparativo, concentrações plasmáticas de alfentanila próximas a metade do valor almejado no estudo em gatos (223 ng/mℓ) reduziram a CAM em 68,5% em cães.97 Apesar de terem sido utilizados agentes inalatórios diferentes nos estudos em cães e gatos (enfluorano e isofluorano, respectivamente), a diferença no efeito sugere uma grande diferença na potência (mensurada pela redução da CAM) de alfentanila nas duas espécies. A variabilidade na redução da CAM também pode ser maior em gatos do que em cães, como ilustrado pelo fato de estudos sobre o efeito do mesmo opioide não terem detectado redução na CAM de forma consistente.87,98 Um estudo recente comparando os efeitos de altas concentrações plasmáticas de fentanila, alfentanila e sufentanila sobre a CAM do isofluorano em gatos encontrou redução significativa da CAM apenas com o alfentanila; este efeito foi antagonizado após a administração de naltrexona, sugerindo que seja mediado por receptores opioides.99

■ Anti-inflamatórios não esteroides O uso de anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) em gatos tem sido revisto.84,100,101 Estes fármacos são comumente utilizados em felinos devido a suas propriedades antiinflamatórias e analgésicas, porém recomenda-se cuidados ao utilizá-los visto que uma

importante via metabólica da maioria destes fármacos é via conjugação com ácido glicurônico.101 A incidência de efeitos adversos (lesão renal, hepatotoxicidade, ulcerações gastrintestinais, anormalidades de hemostasia) em gatos é, portanto, maior do que em outras espécies. Entretanto, existem evidências favoráveis ao uso a curto prazo de diferentes AINEs no período peroperatório, incluindo o carprofeno,102-109 o cetoprofeno,102,105,110-112 o ácido tolfenâmico,102,113,114 o meloxicam102,113-118 e o robenacoxibe.110,111,119-121 Em relação ao uso crônico de AINEs em gatos, existem menos evidências em relação à sua segurança; recomendações foram emitidas por um grupo de especialistas.100 Um estudo retrospectivo recente sugeriu que o meloxicam poderia ser administrado a longo prazo a gatos na dose de 0,02 mg/kg 1 vez/dia, mesmo que os animais sofressem de alguma doença renal crônica estabilizada.122 Neste estudo, houve menor evolução da doença renal nos gatos tratados quando comparados aos não tratados. Contudo, deve-se lembrar que em alguns países (p. ex., EUA), doses repetidas de meloxicam são prescritas.

■ Intubação endotraqueal A intubação traqueal é essencial em gatos para a manutenção da permeabilidade das vias respiratórias durante a anestesia. No entanto, os anestesistas devem estar cientes de que o Confidential Enquiry into Perioperative Small Animal Fatalities descobriu que a intubação endotraqueal aumentou em, aproximadamente, duas vezes as chances de morte relacionada a anestesia em gatos.123 Estudos anteriores também sugeriram que a intubação endotraqueal esteve associada a complicações primárias em gatos.124,125 Os motivos para tais achados não estão claros; contudo, eles podem estar relacionados ao tamanho reduzido das vias respiratórias superiores dos gatos e a sua laringe altamente responsiva à estimulação mecânica. Espasmos laríngeos podem ocorrer em gatos anestesiados e descerebrados, por meio da estimulação mecânica de palato mole, faringe, laringe e traqueia.126,127 Tem sido recomendado realizar a dessensibilização da laringe com anestésicos locais antes da intubação em gatos, objetivando-se diminuir a incidência de espasmos laríngeos; não obstante, é mais provável que erros durante a execução da técnica de intubação causem mais complicações em gatos do que em cães. A ruptura ou avulsão traqueal e a ruptura brônquica têm sido relatadas em gatos.128-133 A ruptura da traqueia foi associada à intubação em ao menos 36 casos. Hipotetizou-se que a insuflação exagerada do cuff, possivelmente em conjunto com múltiplas trocas de posição do tubo endotraqueal, foi o mecanismo responsável pelas lesões observadas. Sinais clínicos associados constituíam-se de enfisema subcutâneo, tosse, engasgos, dispneia, anorexia e febre. O manejo cirúrgico e/ou conservador geralmente é bem-sucedido, ao menos que a lesão se prolongue até a carina.

■ Cegueira cortical pós-anestésica Cegueira cortical pós-anestésica tem sido relatada em gatos.134,135 De acordo com o relato de uma série de casos, a cegueira é temporária na maioria dos casos. O uso excessivo ou agressivo de abridores de boca (p. ex., tensão excessiva dos músculos da mandíbula por períodos prolongados) é um fator de risco para a cegueira pós-anestésica. A perfusão cerebral de gatos é anatomicamente diferente da de muitas outras espécies e a compressão ou tensionamento prolongado das estruturas extracranianas (p. ex., músculos da mastigação) pode causar isquemia cerebral.134 Um estudo recente avaliando o fluxo sanguíneo da artéria maxilar por meio de técnicas de imagem em gatos anestesiados demonstrou que o uso de abridores de boca dotados de molas, para a máxima abertura da boca, resultou em alterações tanto no fluxo sanguíneo quanto no eletrorretinograma de alguns gatos.136 Os autores concluíram que a oclusão mecânica do fluxo sanguíneo pela artéria maxilar durante a abertura máxima da boca contribui para a patogenia da cegueira pós-anestésica devido à redução do fluxo sanguíneo retiniano. Caso um abridor de boca seja empregado, é importante evitar grandes aberturas da boca e/ou limitar o tempo pelo qual o mesmo é utilizado.

■ Fluidoterapia e volume sanguíneo O Confidential Enquiry into Perioperative Small Animal Fatalities propôs que a administração de líquidos por via intravenosa em gatos durante a anestesia resultou em um aumento, de aproximadamente quatro vezes, do risco de morte.123 Embora os motivos desses achados ainda não estejam bem esclarecidos, suspeita-se que a administração excessiva que resulte em sobrecarga hídrica seja ao menos parcialmente responsável por estes fatos. Os gatos correm maior risco de sobrecarga hídrica e/ou diluição excessiva dos componentes sanguíneos do que os cães, particularmente quando grandes volumes de líquidos são administrados rapidamente, devido a apresentarem menores volumes sanguíneos absolutos. Tem sido relatado que o volume sanguíneo em gatos situa-se em torno de 56 a 67 mℓ/kg.137-139 A rápida infusão de líquido durante a anestesia inalatória também ocorre mais frequentemente em gatos do que em cães, visto que a pressão arterial tende a ser menor nessa espécie em concentrações anestésicas similares (ver Anestésicos inalatórios anteriormente). Além disso, devido ao seu menor tamanho e à relativamente alta incidência de miocardiopatias não diagnosticadas (subclínicas), alguns gatos são mais propensos a receber volumes excessivos de líquido do que indivíduos de muitas espécies maiores. A velocidade de infusão do líquido é, tipicamente, baseada no peso corporal; fundamentando-se nas considerações anteriores, é preferível ajustar a velocidade de infusão baseando-se em alguma fração do volume sanguíneo.

■ Tipos sanguíneos Três grupos sanguíneos foram identificados em gatos: A, B e AB.140,141 Gatos com sangue tipo B têm naturalmente anticorpos fortemente hemaglutinantes contra hemácias do tipo A, enquanto gatos com sangue tipo A têm naturalmente anticorpos fracamente hemolisantes e hemaglutinantes contra hemácias B.142 Reações transfusionais graves, do tipo anafilático, com a destruição quase imediata das hemácias transfundidas são, portanto, comumente observadas quando se transfunde sangue do tipo A para um gato com sangue do tipo B; gatos com sangue tipo A que recebem sangue do tipo B na maioria das vezes desenvolvem apenas reações transfusionais leves.142,143 Adicionalmente, anticorpos de ocorrência natural contra um antígeno comum, o Mik, podem estar envolvidos em reações transfusionais hemolíticas agudas após uma transfusão compatível A ou B144 A prevalência dos diferentes tipos sanguíneos tem sido relatada em relação a diferentes localizações geográficas.141,145-159 A maior prevalência é do sangue tipo A, variando entre 62 e 99,6%; nos EUA, quase 100% dos gatos têm sangue do tipo A. A prevalência do sangue do tipo B varia de 0,4 a 36%, sendo este último valor registrado na área de Sydney, na Austrália. Gatos com tipo sanguíneo AB são raros, representando apenas 5% ou menos da população felina (menos de 0,2% na América do Norte). A prevalência do sangue tipo B varia de moderada a alta (15 a 60%) em algumas raças de gatos, incluindo Pelo Curto Inglês, Abissínio, Sagrado da Birmânia, Devon Rex, Himalaio, Persa, Scottish Fold, Somali, Angorá e Van Turco, enquanto é muito baixa (próximo a 0%) em outras, incluindo o Pelo Curto Americano, Siamês e Norueguês da Floresta.149,152,160

■ Dopamina e seus receptores A dopamina é comumente utilizada em gatos anestesiados para tratar hipotensão. Acreditase que seu efeito se deva basicamente ao aumento da contratilidade cardíaca, mediado por ativação dos receptores β1-adrenérgicos. Um estudo demonstrou aumentos do índice cardíaco sem aumento significativo da resistência vascular em doses variando entre 2,5 e 20 µg/kg/min.161 Outra indicação, mais controversa, para o uso de baixas doses de dopamina seria o aumento do fluxo sanguíneo renal, sobretudo na insuficiência renal aguda. É postulado que este efeito se deva à ativação de receptores dopaminérgicos D1, causando vasodilatação renal e aumento do fluxo sanguíneo renal. Não está claro se gatos responderiam à dopamina desta maneira. Receptores semelhantes a D1 têm sido identificados nos rins felinos, porém aparentam ser diferentes dos receptores D1 encontrados em seres humanos e cães.162 De qualquer maneira, estudos em seres humanos não demonstraram benefícios no uso de baixas doses de dopamina na insuficiência renal aguda e sugerem que alguns dos efeitos são, na verdade, prejudiciais à função renal.163,164

Em gatos com insuficiência renal, o uso de dopamina está indicado em doses que aumentem o débito cardíaco, particularmente durante hipotensão, em vez de doses direcionadas para os receptores D1.

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Introdução Riscos peroperatórios Considerações anestésicas e do manejo da dor Planejamento anestésico Fatores do paciente Exame do paciente Preparação do paciente Considerações pediátricas Equipamento anestésico Protocolos anestésicos Considerações farmacológicas Anestesia para pacientes de alto risco Monitoramento anestésico Recuperação anestésica Preparação para emergências Referências bibliográficas

Introdução Animais de abrigos necessitam, por vezes, de sedação, anestesia e manejo da dor para cirurgias básicas, manuseio e preservação da qualidade de vida. A diretrizes para os cuidados dos animais de abrigos foram escritas utilizando o “Five Freedoms for Animal Welfare”* como base.1 Também foram desenvolvidas diretrizes para quando um grande

número de cirurgias forem realizadas.2 Numerosas referências3 fornecem as recomendações para os cuidados de pacientes de abrigos (Boxe 36.1). Várias estratégias direcionadas para melhorar os cuidados anestésicos, os quais são padrão nos estabelecimentos veterinários particulares, têm encontrado resistência em abrigos tendo em vista a preocupação de que resultarão em menos cirurgias de esterilização e no aumento de eutanásias de filhotes indesejados. Desta maneira, a maioria das técnicas anestésicas utilizadas em abrigos é um acordo no qual as partes fazem concessões para alcançar um meio-termo, sendo aceitas maiores taxas de morbidade/mortalidade.

Riscos peroperatórios Um estudo multicêntrico envolvendo estabelecimentos veterinários (não incluindo abrigos) a respeito das complicações anestésicas relatou que o risco de morte pela anestesia fica em torno de 0,17% em cães e 0,24% em gatos.4 Comparativamente, as taxas relacionadas a morte pela anestesia em seres humanos variam entre 0,001 e 0,05%.5 As taxas de morbidade e mortalidade registradas em abrigos são ligeiramente maiores, tendo sido registradas taxas entre 0,04 a 0,4% em alguns grupos. Animais bravos, defensivos e estressados geralmente mascaram sinais clínicos de doenças, resultando em risco anestésico maior do que o sugerido por um exame físico superficial e/ou pelo estado de saúde atribuído ao animal segundo a classificação da American Society of Anesthesiologists (ASA). Uma das causas da mortalidade significativa identificada em abrigos é a falha no manejo e monitoramento da oxigenação do paciente (especialmente gatos) após a sedação ou indução da anestesia por via intramuscular. Outras causas incluem cardiopatias ocultas subjacentes e patologias relacionadas com o parasitismo pulmonar.6 Estes resultados sugerem que a colocação dos animais intensamente sedados/anestesiados em uma área onde esteja disponível o constante monitoramento da respiração e da oxigenação poderia diminuir significativamente a taxa de mortalidade nos abrigos.

Considerações anestésicas e do manejo da dor Os protocolos anestésicos são geralmente adaptados às condições específicas do abrigo com base nas condições financeiras, no número e no nível de treinamento dos funcionários, número de pacientes, espécies, tipos de cirurgia e disponibilidade de instalações. As práticas perianestésicas na medicina de abrigos também podem ser melhoradas por meio da orientação, adesão aos cuidados peroperatórios básicos comuns e princípios de segurança, além da análise dos desfechos. Tipicamente os protocolos tentam atingir início rápido de ação, consistência e

reversibilidade. Como existem tantas situações diferentes na medicina veterinária de abrigos, vários fatores irão auxiliar a ditar o sucesso da anestesia/manejo da dor, em vez de somente escolher os fármacos para um protocolo específico, entre eles o estabelecimento de bases sólidas de cuidados peroperatórios, o conhecimento dos fármacos e a consistência em seu uso, a seleção adequada do paciente, a resolução de problemas, o monitoramento objetivo e a avaliação dos desfechos.

■ Planejamento anestésico Um veterinário licenciado deve ser o responsável por realizar o exame físico no paciente, determinando o estado de saúde e se existem distúrbios, formulando, então, um planejamento anestésico. Em decorrência do grande número de procedimentos em alguns abrigos, a anestesia frequentemente é realizada após um procedimento operacional padrão fundamentado nas condições físicas em vez de ser adaptado a cada paciente. Pode existir a situação em que seja impossível a alteração do planejamento anestésico padrão pela equipe; portanto, a triagem e a seleção do paciente para a cirurgia e anestesia são críticas. Boxe 36.1 Websites com orientações para a melhoria da medicina de animais de abrigo.

www.sheltervet.org www.aspcapro.org www.maddiesfund.org www.sheltermedicine.com www.sheltermedicine.vetmed.ufl.edu A maioria dos pacientes em abrigos será submetida à esterilização; no entanto, um número cada vez maior de animais é anestesiado para outros procedimentos, como osteossínteses, cirurgias abdominais, cistotomias, tratamentos periodontais e remoção de massas, objetivando aumentar as chances de adoção. Fatores a serem considerados, quando se determina a aceitação do paciente para a anestesia, incluem a disposição de encaminhamento para uma instalação mais adequada, a idade, o peso, o estado de saúde e o risco anestésico geral. Em termos gerais, quando se trata de animais de clientes, as cirurgias de castração são agendadas para quando o animal tiver 4 meses de idade (ou mais), para permitir o desenvolvimento da imunidade após as vacinações. Em abrigos ou campanhas de castração, os pacientes podem ser de qualquer idade, porém a castração antes de o animal atingir a maturidade sexual é ideal para a prevenção de novos nascimentos.7-10 Na preparação para adoção, animais imaturos geralmente são submetidos às cirurgias de

esterilização antes da adoção, para assegurar a aceitação da castração pelo proprietário, com o entendimento de que animais inteiros (sexualmente intactos) correm risco aumentado de desistência da adoção pelo proprietário.11-14 A maioria dos locais com grandes volumes de castrações permite que a cirurgia seja realizada em animais a partir de 6 semanas de idade e que pesem mais do que 0,5 a 1 kg; contudo, as condições corporais e o exame físico devem ser considerados. O histórico clínico do paciente, o qual está prontamente disponível nos estabelecimentos particulares (p. ex., tosse, espirro, vômito, diarreia, vacinas anteriores e doenças), pode não estar disponível para pacientes de abrigos. Nos casos em que está, formulários de admissão padronizados podem acelerar a anamnese e definir se a avaliação de risco do paciente deve ser mais meticulosa. O consentimento do cliente, do cuidador ou do responsável pelo animal para a anestesia e cirurgia deve ser em vista do estado físico do animal (classificação da ASA), dos riscos inerentes à anestesia e da necessidade de supervisão e cuidados contínuos no período pós-operatório.

■ Fatores do paciente A seleção dos pacientes tem uma categoria padrão na qual, a não ser que o animal tenha alguma condição potencialmente fatal (especialmente as relacionadas com os sistemas cardíaco, respiratório e nervoso), o animal será anestesiado. Os veterinários precisam avaliar os riscos e os benefícios da anestesia em pacientes que apresentem alguma condição clínica, como infecção das vias respiratórias superiores, infestação parasitária, endometrite, estro e dirofilariose. Embora algumas destas condições aumentem o risco anestésico, os benefícios gerados à sociedade pela esterilização destes animais podem superar o risco de morte ou complicações individuais.15 Em pacientes de maior risco, o responsável pelo animal deve ser consultado. Eles devem ter a oportunidade de considerar desfechos adversos. No caso de cirurgias não eletivas em pacientes com alta classificação da ASA, o veterinário encarregado juntamente com o responsável pelo paciente (se conhecido ou presente) devem consentir após considerarem o seguinte: • • • •

A cirurgia em questão irá aumentar as chances de o animal ser adotado? Qual será a percepção do público sobre a doença, a cirurgia e sobre os cuidados póscirúrgicos? O protocolo anestésico pode ser modificado (alteração de doses e agentes) para melhorar a segurança? Se o protocolo for modificado, como isto modificará a logística local (número de animais castrados por dia)?



Quais serão os cuidados pós-tratamento necessários, especialmente para pacientes de campanhas de castração, ou a necessidade de hospitalização?

O desfecho da anestesia está diretamente ligado ao estado físico do paciente. Más condições de saúde quando o animal é submetido a anestesia e cirurgia estão associadas a aumento da probabilidade de mortes relacionadas com a anestesia.16 Um estudo recente concluiu que é crucial que sejam envidados esforços para mais bem avaliar o paciente e para melhorar suas condições no período pré-anestésico.

■ Exame do paciente Todos os pacientes devem ser avaliados por inteiro, da maneira mais eficiente possível. A investigação diagnóstica adicional das condições identificadas durante o exame físico nem sempre é possível por causa do tempo disponível, das condições financeiras dos responsáveis, ou do número de funcionários. Contudo, caso possível, uma completa avaliação do paciente (p. ex., hemograma, radiografias, ultrassonografia, ecocardiograma) deve ser realizada. O exame físico deve ser realizado pelo veterinário que irá realizar a cirurgia, ou por algum membro da equipe treinado e com a supervisão de um veterinário. Devem ser registrados os escores basais de dor e ansiedade. Para isto, podem ser utilizadas escalas análogas visuais simples, sendo 0 = sem dor e 5 = dor máxima, e 0 = sem ansiedade e 5 = ansiedade máxima. O exame deve ser idealmente realizado antes da anestesia, embora comportamentos ansiosos ou agressivos possam impedir o manuseio seguro de animais não sedados. Nestes casos, a decisão de realizar o exame físico antes ou depois da administração de algum fármaco fica a cargo do veterinário. O peso corporal deve ser determinado o mais próximo possível do momento da cirurgia, de modo a facilitar a administração de uma dose acurada. A determinação acurada do peso corporal é extremamente importante em filhotes, recém-nascidos e animais exóticos, todos os quais podem ter variações (aumento ou diminuição) significativas do peso em questão de horas. No caso de animais com menos de 1 kg, devem ser utilizadas balanças com acurácia aceitável (p. ex., gramas ou balança para exóticos). Uma balança com acurácia de 100 gramas deve ser utilizada para pacientes abaixo de 5 kg. Quando não houver a opção de pesagem (p. ex., animais intratáveis ou selvagens), a estimativa do peso deve ser feita cuidadosamente. Animais de abrigos são, com frequência, agrupados de acordo com os pesos aproximados ou categorias de peso, em vez de ser realizada uma dosagem por quilo específica. Em muitos abrigos, isto é considerado aceitável para a escolha das doses e volumes anestésicos, circuitos anestésicos e até mesmo quanto à necessidade de

administração de soluções no período peroperatório, calor suplementar e administração de glicose. Contudo, devemos lembrar que pequenos erros têm enormes repercussões, especialmente em pacientes de peso baixo. A avaliação do escore corporal é importante, visto que a obesidade pode dificultar a ventilação durante a anestesia e no período de recuperação.17 Escores corporais extremos sugerem que alterações nas doses dos fármacos (incluindo inalatórios, líquidos e controle da temperatura corporal) podem ser necessárias, além de serem preditivos de dificuldades durante o procedimento. A escolha dos exames laboratoriais a serem realizados deve ser baseada nos achados durante o exame físico e no histórico. Um estudo europeu concluiu que muitas anormalidades descobertas durante a triagem pré-operatória de rotina tiveram, na maioria das vezes, pouca importância clínica e não levaram a alterações importantes na técnica anestésica escolhida.18 Em 84% dos cães, os exames sanguíneos foram considerados desnecessários ou não alteraram o manejo anestésico. Nos 16% restantes, a cirurgia foi adiada em menos de 1% dos casos, terapias peroperatórias adicionais foram empregadas em 5% dos casos e o protocolo anestésico foi alterado em apenas 0,2% dos casos. Os autores concluíram que, em cães, é pouco provável que os exames laboratoriais de rotina no período pré-anestésico forneçam informações adicionais relacionadas com o período peroperatório ou com os fármacos/técnicas anestésicas utilizados. Certamente estes resultados não querem dizer que não vale a pena realizar exames préanestésicos em animais de abrigo. Os resultados dos exames sanguíneos frequentemente não impedirão a cirurgia, mas permitem modificações no protocolo anestésico e motivam monitoramento vigilante sobre a anestesia. No período pós-operatório, exames bioquímicos podem identificar indivíduos em risco de sofrerem falências orgânicas e aqueles que necessitarão de cuidados adicionais.19 Alguns aparelhos de testes rápidos (também conhecidos por point-of-care) exigem amostras mínimas de sangue para realizar uma rápida análise bioquímica e tornar viável a triagem de pacientes de abrigos. Alternativamente, exames minimamente básicos e baratos, como hematócrito (Ht), sólidos totais, nitrogênio ureico sanguíneo, glicose (também conhecidos como exames de avaliação rápida) e a densidade específica de urina podem ser realizados. A idade, o estado de saúde e a doença em potencial devem direcionar a necessidade de exames pré-operatórios.18,20,21

■ Preparação do paciente Algumas ações irão reduzir as taxas de morbidade/mortalidade, auxiliar o manejo de líquido e das vias respiratórias, o monitoramento e o controle da temperatura (Boxe 36.2). Dentre elas podemos citar a postergação da cirurgia, a estabilização do estado de

hidratação, o balanço nitrogenado, a oxigenação, o controle da glicemia, o hemograma e a integridade do sistema nervoso central. Desidratação subclínica é comum em pacientes de abrigos, especialmente se os animais forem alojados por mais de 1 a 2 dias antes da cirurgia. O jejum pré-operatório é ideal para cães e gatos, porém não é realmente necessário ou recomendado privar os animais do acesso à água. Não há justificativa para períodos prolongados de jejum (superiores a 4 a 6 h, especialmente no caso de filhotes ou animais muito pequenos.22-25 O jejum prolongado aumenta as chances de regurgitação no período peroperatório e de doenças renais, miocárdicas e tromboembólicas no período pósoperatório.24-26 Filhotes não devem ser submetidos a jejum com duração superior a 2 horas antes da cirurgia. As exceções ao jejum pré-operatório podem ser feitas para gatos selvagens pegos em armadilhas, devido aos riscos de segurança da remoção de iscas não consumidas.27-31 Alguns animais de abrigos correm risco de hipoglicemia (p. ex., doentes, parasitados, condição corporal ruim, idosos, fêmeas logo após o desmame e animais que passaram por períodos prolongados de captura, contenção, estresse e jejum). Se não for possível determinar a glicemia, defende-se a administração oral via transmucosa de glicose 50% (0,5 mℓ/10 kg), xarope de milho contendo dextrose ou melaço. Se forem administradas soluções por via intravenosa, a suplementação com 1 ampola de glicose a 2,5% também elevará a glicemia.32 Pode ser benéfico ninhadas de filhotes serem alojadas juntas. Animais selvagens ou intratáveis devem ser alojados em alçapões ou outros recintos que permitam a administração dos fármacos anestésicos sem muito manuseio, o que minimizará o estresse do animal. Estes animais devem ser encaminhados para a cirurgia apenas após estarem sedados, e devolvidos ao local de contenção dependendo do grau de segurança para a interação humana ou quando considerados adequadamente recuperados. Quando possível, deve ser concedido um período para os animais se acalmarem antes da anestesia, especialmente aos animais mais ansiosos/agressivos. No mínimo, estes animais devem ser separados de outros durante o período pré-anestésico para evitar estímulos visuais e inalatórios, como os feromônios, que não são propícios para sedação ou anestesia. Animais de proprietários que venham ao abrigo para a realização de cirurgias devem ser alojados separadamente para minimizar o risco de disseminação de doenças infecciosas. Boxe 36.2 Condições comuns nas quais a estabilização antes da anestesia é crítica.

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Estresse extremo e manipulação excessiva Traumatismo Condições dermatológicas extremas

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Fome Desidratação grave Obstrução intestinal ou urinária conhecida Desnutrição ou inanição Parasitismo grave Intoxicação Doenças respiratórias potencialmente fatais

■ Considerações pediátricas Cirurgias eletivas, particularmente oóforo-histerectomias e orquiectomias, em filhotes de cães e gatos (entre 8 e 16 semanas de idade) são apoiadas pela American Veterinary Medical Association e estão tornando-se cada vez mais comuns. Com períodos cirúrgicos curtos, a incidência de complicações trans- e pós-operatórias é pequena. A recuperação da anestesia e o período de cicatrização também são menores.27,30,31,33 Cirurgias de esterilização podem ser realizadas em filhotes de cães e gatos com 5 a 6 semanas de idade e que pesem pelo menos 1 kg. Historicamente, existe um foco sobre os efeitos adversos fisiológicos causados pelas cirurgias pediátricas, como obesidade, menor crescimento, distúrbios musculoesqueléticos, dermatites perivulvares, vaginite infantil, distúrbios da via urinária inferior de felinos e incontinência urinária. Contudo, a maioria destes temores parece não ter fundamento.34-36 Efeitos sobre o desenvolvimento de outras doenças (p. ex., câncer) ainda estão sendo debatidos. Em abrigos, a redução do período de espera pré-operatorio e a diminuição do estresse são rotineiramente realizados. Isso inclui deixar a ninhada brincar e alimentar-se 1 a 2 h antes da anestesia. Recomenda-se a obtenção do peso acurado imediatamente antes da indução anestésica, o menor período possível de jejum, o mínimo uso de medicação préanestésica, uso criterioso de anticolinérgicos e suporte para o aquecimento corporal desde o período pré-anestésico. A preparação cirúrgica inclui tricotomia adequada, mas não excessiva, utilizar minimamente possível o álcool para evitar hipotermia e cobrir a mesa para evitar o resfriamento. A manipulação cuidadosa e cautelosa dos tecidos, pequenas incisões cirúrgicas e tempos cirúrgicos curtos são fatores que diminuem o impacto da anestesia e da cirurgia.28,29,33

Equipamento anestésico Os sistemas não reinalatórios de gases dependem de fluxos de gases frescos relativamente altos para remover o dióxido de carbono. A maioria destes circuitos necessita fluxo de

gases em torno de 150 a 300 mℓ/kg/min e, como tal, funciona melhor em pacientes com menos de 3 kg. Circuitos com reinalação de gases servem para pacientes acima de 3 kg e, geralmente, são encontrados em dois diâmetros (adulto e pediátrico), necessitando fluxos de oxigênio de apenas 5 a 30 mℓ/kg/min, dependendo da configuração em que estiverem sendo utilizados (semiaberto/semifechado).37 Circuitos com reinalação pediátricos podem ser utilizados para pacientes de até 1 kg, desde que o volume final seja suficiente para acionar as válvulas unidirecionais. Circuitos sem reinalação de gases, geralmente, são mais volumosos, mais desajeitados e possuem mais pontos para erro de conexões e de integridade do que os circuitos com reinalação, particularmente se a casuística for grande ou se os funcionários não tiverem tanta experiência. Os meios absorvedores de gás carbônico geralmente necessitam ser trocados 1 ou 2 vezes/semana em abrigos, dependendo do número e do tamanho dos pacientes que utilizaram o aparelho e dos fluxos de oxigênio. Canisters com sistema de purificação à base de carvão ativado não são recomendados para uso em abrigos ou em locais com grande número de cirurgias de esterilização em decorrência do curto tempo de vida útil do sistema. A vida útil de um canister geralmente varia entre 3 e 6 h totais (não por dia). O esvaziamento do canister é indicado de acordo com o aumento de peso, conforme recomendado para cada canister.37,38 Sistemas de exaustão ativos dependem de exaustores ou sistemas hospitalares de vácuo para a remoção dos gases residuais, sendo muito eficientes e com bom custo-benefício a longo prazo. Devem ser realizados procedimentos padrão para evitar a propagação de doenças infecciosas pelos equipamentos de anestesia.39,40 Particularmente, os programas de abrigos devem incluir o que se segue: • •





Os funcionários devem lavar suas mãos e desinfetá-las entre pacientes e ninhadas41,42 As superfícies e os equipamentos utilizados no exame físico devem ser limpos e desinfetados entre os pacientes utilizando-se agentes que exerçam conhecida ação contra os patógenos mais comuns43,44 Todo o equipamento anestésico que tenha contato direto com o paciente (p. ex., tubos endotraqueais, lâminas de laringoscópio, sensores de oximetria de pulso, estetoscópio esofágico, termômetros etc.) deve ser completamente limpo com sabão suave e água, completamente enxaguado, seco e desinfetado entre os pacientes45 Deve ser realizada a limpeza com água quente e sabão diluído e, posteriormente, o enxágue de todos os circuitos e tubos traqueais antes de embebê-los em uma solução com acetato de clorexidina (1:30 ou uma diluição maior). Após essa imersão, é imprescindível enxaguar todos os circuitos e tubos traqueais com água para evitar resíduos de desinfetantes, os quais sabidamente podem causar laringospasmo ou









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necrose traqueal. As partes dos circuitos (com ou sem reinalação) devem ser completamente limpas, desinfetadas, enxaguadas e secas, no mínimo, 1 a 2 vezes/semana É altamente recomendado secar (utilizando ar forçado ou calor em ambientes não úmidos) tanto os circuitos como os tubos traqueais para evitar a contaminação por mofo. Secadores de cabelo e ar quente forçado podem ajudar na remoção da umidade mais bruta; estes métodos, no entanto, facilmente ressecam e tornam friáveis tubos endotraqueais e cuffs, tornando-os suscetíveis de machucar os pacientes Os cuffs dos tubos endotraqueais devem ser inflados durante o processo de limpeza e secagem. Examine todos os cuffs diariamente, enxágue-os com cuidado e não os esvazie rapidamente (isto forma arestas no cuff). Os cuffs dos tubos endotraqueais devem ser desinflados antes de sua inserção46 Lâminas de laringoscópios, circuitos respiratórios, tubos endotraqueais e escovas para a limpeza dos tubos devem, idealmente, ser divididos em 2 a 4 conjuntos, além de codificados por cores ou números. Deve ser feito um rodízio de uso dos conjuntos semanalmente ou a cada duas semanas. Idealmente, o conjunto utilizado para cada paciente deve ser registrado na ficha anestésica. Caso se suspeite de alguma infecção hospitalar ou no abrigo, a cor ou o número podem auxiliar em identificar lâminas, tubos, circuitos respiratórios e esponjas possivelmente contaminadas e o contato com o paciente pode ser rastreado por meio da ficha47 Em virtude da ação antimicrobiana dos absorvedores de CO2, as partes internas dos aparelhos raramente são contaminadas pelos pacientes. Contudo, a contaminação com mofo é possível e, como tal, as válvulas unidirecionais e suas cúpulas, assim como os canisters, devem ser desmontadas, lavadas com detergente suave, limpas com álcool e deixadas abertas para secar45 Devem ser realizadas, regularmente, coletas de material para cultura dos circuitos respiratórios, canisters e balões em busca de contaminação bacteriana ou fúngica As cirurgias em animais infectados devem ser efetuadas após aquelas realizadas nos animais saudáveis dentro da programação diária.

Recomendações quanto ao check-up dos aparelhos veterinários têm sido publicadas e estão disponíveis neste e em diversos outros textos e manuais sobre anestesia.47,50 A verificação de acordo com a frequência de uso irá depender da casuística cirúrgica, da disponibilidade do technician* e da experiência. A verificação diária ou, no mínimo, semanal dos equipamentos não substitui a manutenção regular dos vaporizadores e aparelhos, o que normalmente é realizado a cada 2 a 6 meses por técnicos credenciados e certificados.49

Protocolos anestésicos A seleção do protocolo anestésico para cada abrigo, campanha de castração ou programas com grande número de castrações depende de muitos fatores, incluindo o número e o tipo de pacientes diários, a habilidade e a eficiência da assistência técnica disponível, o timing e a competência da técnica anestésica/cirúrgica e as considerações médico-legais e financeiras no próprio programa. Os quatro critérios que formam a base de uma anestesia segura são: • • • •

Analgesia Ansiólise (estado de tranquilidade induzido por medicamentos) Imobilidade e relaxamento muscular Depressão controlada e reversível do sistema nervoso central (inconsciência e amnésia).

O protocolo anestésico ideal para um abrigo deve ter um risco aceitável (margem de segurança para animais de todas as idades). O protocolo também deve ser econômico, fácil de aplicar, com pequenos volumes por injeção, apresentar rápido início de ação e recuperação, período de duração razoável após uma única aplicação, ser previsível e exercer propriedades analgésicas no período peroperatório.51,52 Embora muitas instalações de abrigos e campanhas de castração utilizem anestésicos inalatórios como isofluorano ou sevofluorano, muitas apenas utilizam associações de anestésicos injetáveis. Em alguns abrigos, a intubação é realizada rotineiramente, em outros não. Dezenas de protocolos anestésicos têm sido publicados para cirurgias eletivas.53-61 Protocolos com risco aceitável geralmente utilizam: • • • •

Agentes reversíveis (opioides, benzodiazepínicos e agonistas de receptores α2adrenérgicos) Doses baseadas em pesos corporais acurados em vez de utilizar volumes de fármacos por gato ou por cão, ou ainda, um “tanto” de fármaco Uso das menores doses possíveis de sedativos/anestésicos Mínimo uso de anticolinérgicos (exceto pacientes muito jovens) e evitar protocolos que utilizem apenas agentes inalatórios (exceto quando necessário em razão das preocupações com o manuseio do animal).

Apesar de a anestesia em abrigos diferir da utilizada em estabelecimentos particulares, em ambos os casos o sucesso depende mais do grau de familiarização, competência e velocidade dos indivíduos envolvidos (veterinários e technicians) do que da escolha dos fármacos para o protocolo.

Considerações farmacológicas Os fármacos anestésicos e analgésicos utilizados em cães e gatos de abrigos são semelhantes aos utilizados nos estabelecimentos privados, com ênfase na simplificação para evitar acidentes e efeitos adversos. As principais diferenças são a grande dependência das associações de anestésicos injetáveis em vez dos agentes inalatórios pela simplicidade e o uso de técnicas simples de anestesia local e opioides agonistas parciais para o controle da dor, em decorrência das preocupações de alguns programas a respeito da manipulação de narcóticos controlados (lista A1 da Anvisa – substâncias entorpecentes). Para a maioria das castrações de cães ou incisões pré-escrotais, pode-se utilizar uma associação de 0,3 mg/kg de bupivacaína, 1 a 2 mg/kg de lidocaína e 1 a 2 mℓ de cloreto de sódio (NaCl) 0,9%. Para gatos, uma associação utilizada nas castrações de machos ou nas incisões para castrações de fêmeas é a de 0,5 a 1 mg de bupivacaína, 2 a 4 mg de lidocaína e 0,1 a 0,2 mℓ de NaCl 0,9% para um gato de 3 a 5 kg. A solução pode ser injetada sobre a linha alba após o fechamento ou dentro da incisão escrotal.62,63 O uso de anestésicos locais tópicos necessita menor habilidade técnica do que a administração subcutânea ou intracompartimental e reduz a ocorrência de injeções intravasculares ou intraperitoneais inadvertidas. Opioides agonistas de receptores µ fornecem analgesia, porém a necessidade de licenças federais, estaduais e locais para seu uso, juntamente com a preocupação com o desvio de uso, geralmente levam os abrigos a utilizarem opioides agonistas mistos (buprenorfina) ou agonistas-antagonistas (butorfanol, nalbufina). Enquanto, por vezes, estes agentes são considerados menos efetivos, associá-los com fármacos agonistas de receptores α2-adrenérgicos produz analgesia mais intensa e duradoura.64-67 Assim como acontece com qualquer associação sedativa/anestésica, o uso de fármacos agonistas de receptores α2-adrenérgicos causa profundo relaxamento e sedação, podendo resultar em hipoxia associada à obstrução das vias respiratórias superiores. Em abrigos, diversos animais recebem uma sedação/anestesia pesada e são deixados sem observação durante o período de latência do fármaco. A perda de uma via respiratória funcional pode ocorrer por causa do posicionamento corporal incomum e da inabilidade do animal de corrigi-lo quando ocorre uma obstrução. Gatos machos, adultos, agressivos e não castrados estão particularmente sujeitos a este acontecimento, assim como cães maiores (Mastiffs, Pit bulls) e raças braquicefálicas. Os funcionários devem estar atentos e observando a indução quando a administração for realizada por via intramuscular, para garantir que uma via respiratória esteja viável em cada animal.51,52 O glicopirrolato (0,005 a 0,01 mg/kg) geralmente é incluído em protocolos para pacientes com menos de 6 semanas de idade, pois eles têm capacidade limitada de alterar

seu volume de ejeção, tornando o débito cardíaco mais dependente da frequência cardíaca.68,69 Deve-se considerar cautelosamente a possibilidade de ocorrer aumento na carga de trabalho cardíaco quando o uso de anticolinérgicos for associado ao de agonistas de receptores α2-adrenérgicos.70-74 A administração de fármacos injetáveis deve ficar limitada às vias intravenosa e intramuscular, evitando as vias intraperitoneal e subcutânea. A escolha dos agentes deve ser baseada no custo, na habilidade técnica para administração, no nível de consciência do animal após a medicação pré-anestésica, no potencial desvio de uso e no cronograma típico diário. Geralmente, uma aplicação única reduz a resposta do paciente ao estresse e a dor. As associações de anestésicos injetáveis, geralmente, incluem agonistas de receptores α2adrenérgicos, opioides e anestésicos dissociativos.53-59 O sevofluorano e o isofluorano são os dois agentes inalatórios mais amplamente utilizados em abrigos. No entanto, nestes locais, a anestesia inalatória não é tão comumente utilizada quanto a anestesia injetável e isso ocorre por diversos motivos. Primeiro, a maioria dos procedimentos cirúrgicos em abrigos é realizada muito rapidamente, em geral limitando a necessidade de uma anestesia prolongada. Segundo, o uso de equipamentos de anestesia tais como cilindros de oxigênio, aparelhos de anestesia e circuitos respiratórios geralmente apresenta uma probabilidade maior de que ocorram problemas técnicos, especialmente em virtude do número de cirurgias realizadas e da natureza agitada do ambiente. Finalmente, a mobilidade em muitos abrigos ou instalações destinadas a castração torna difícil lidar com grandes peças de equipamentos. A maioria das cirurgias em abrigos está sendo direcionada para regimes de anestesia total injetável (não inalatória), incluindo a medicação pré-anestésica, a indução e a manutenção da anestesia. O manejo dos pacientes (cirurgias, tatuagens, identificação, microchipagem, vacinação, teste para doenças infecciosas) torna-se mais simples, fácil e, em termos gerais, mais eficiente. Infelizmente, a capacidade de dosar cuidadosamente a profundidade anestésica é menor com os protocolos injetáveis.

Anestesia para pacientes de alto risco Devem-se tomar certas precauções ao anestesiar pacientes com graves alterações nas vias respiratórias superiores, doenças ou obstruções nasofaríngeas evidentes (p. ex., infecções graves da via respiratória superior em gatos). O Boxe 36.3 traz estes pontos críticos. Murmúrios cardíacos podem ser auscultados e podem ter como causa diversas condições que variam de benignas ao risco de morte (p. ex., excitação, doenças congênitas, anemia, valvulopatias, doenças de tireoide, hipertensão arterial, cardiomiopatias etc.). Os murmúrios, geralmente, indicam a necessidade de avaliação adicional do paciente,

incluindo obtenção de histórico mais completo, exames sanguíneos, mensuração da pressão arterial, radiografias, eletrocardiograma ou, até mesmo, ecocardiograma. Contudo, os pacientes de abrigos raramente recebem algo mais além da auscultação. Boxe 36.3 Pontos críticos para pacientes de abrigos com doenças graves da via respiratória superior.

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Evite causar estresse ou excitação no período peroperatório, visto que isto aumenta os esforços respiratórios A medicação pré-anestésica é indicada para o alívio do estresse, a não ser que o paciente esteja gravemente dispneico; neste último caso, uma sedação potente pode causar obstrução. Desta maneira, o controle das vias respiratórias por meio de rápida indução por via intravenosa e intubação seguida pela suplementação de oxigênio é a melhor abordagem anestésica. Nestes casos, as medicações adicionais podem ser administradas após a indução e a intubação A medicação pré-anestésica com dexmedetomidina (gatos 5 a 10 µg/kg e cães 3 a 5 µg/kg) e opioides é geralmente utilizada em pacientes com doenças nas vias respiratórias superiores, já que a sedação frequentemente permitirá a limpeza das vias respiratórias e a manipulação mais fácil da boca, da laringe e da faringe no momento da intubação. Contudo, é importante realmente olhar e inspecionar criteriosamente estes pacientes, uma vez que estiverem sedados, para garantir a viabilidade da via respiratória após esta profunda e súbita sedação, particularmente em gatos-machos grandes, com papadas excessivas e tecido faríngeo redundante A administração de anticolinérgicos não é recomendada, a não ser que ocorra grave estimulação do tônus vagal induzida pela geração de pressão negativa na via respiratória superior, pois isso leva ao espessamento das secreções respiratórias Deve ser fornecida suplementação de oxigênio antes da indução para permitir a saturação da hemoglobina caso ocorra apneia após a administração do agente indutor63 Caso a intubação seja realizada (o que é recomendado), o uso de spray de lidocaína na faringe, na laringe e aritenoides pode reduzir o aparecimento de laringospasmo. As tentativas de intubação devem ser minimizadas visto que a laringe se torna extremamente irritável e suscetível ao espasmo A reversão dos agentes não é necessária, mas a recuperação deve ser monitorada quanto a laringospasmo e obstrução das vias respiratórias Pacientes com tecidos moles irritáveis, doenças laríngeas e faríngeas (a clássica doença da via respiratória superior do gato) geralmente se saem melhor com a remoção precoce do tubo traqueal e uma observação de perto quanto a reobstrução ou regurgitação durante a recuperação É indicada a observação constante do padrão respiratório, oxigenação e status ventilatório, assim como da viabilidade do tubo endotraqueal, quanto à obstrução e ao aparecimento de tampão mucoso. A capnografia é uma ferramenta muito útil nestes pacientes.

À exceção de filhotes de gatos e cães que provavelmente possam ter um inocente murmúrio, é provável que os pacientes com esta apresentação tenham alguma disfunção orgânica diastólica ou sistólica. Gatos adultos com murmúrios ou galopes podem ter hipertensão, anemia, cardiomiopatia hipertrófica, cardiomiopatia restritiva, defeitos congênitos, doenças de tireoide ou doenças pulmonares. Cães adultos podem ter doenças congênitas não diagnosticadas, doenças atriais ou de pericárdio, dirofilariose, cardiomiopatia dilatada, ou valvulopatias. Os pontos críticos para pacientes com presumidos problemas cardíacos estão listados no Boxe 36.4.

Monitoramento anestésico A determinação e a avaliação das tendências dos parâmetros vitais são pontos críticos para uma acurada avaliação do plano de anestesia e para a detecção precoce de potenciais complicações com risco de morte.75,76 Independente de qual monitoramento seja utilizado, o responsável pela anestesia deve receber informações sobre o nível de depressão do SNC, circulação, oxigenação e ventilação. Deve-se manter um registro dos eventos importantes, do reconhecimento de tendências incômodas e dos fármacos e dos cuidados adicionais fornecidos. A eletrocardiografia não deve ser utilizada como monitor único em qualquer anestesia, pois ela pode demostrar atividade elétrica normal em um coração mecanicamente parado. A oximetria de pulso permite a mensuração tanto da frequência do pulso quanto do estado de oxigenação do paciente.77,78 A mensuração da pressão arterial pode ser utilizada rotineiramente em abrigos. Estudos recentes têm demonstrado uma boa correlação entre oscilometria de alta definição, Doppler e pressão arterial invasiva.79,80 As tendências nas leituras da pressão arterial dos pacientes anestesiados podem identificar a necessidade de regular a profundidade anestésica ou de um suporte de volume (p. ex., um bolus de líquido). A capnografia permite a avaliação da circulação, da ventilação e dos sistemas de fornecimento dos agentes inalatórios.81,82 Os parâmetros monitorados devem ser checados e registrados regularmente em cada cirurgia. É desejável que esses registros sejam feitos a cada 5 ou 10 min. O ponto essencial no monitoramento é o de que a vigilância e a interpretação rápida são necessárias. Idealmente, o monitoramento também deve fornecer dados confiáveis para avaliar a qualidade da anestesia realizada.83,84 Boxe 36.4 Pontos críticos para pacientes com presumidas cardiopatias em abrigos.



Se o animal estiver dispneico, tossindo, respirando de boca aberta, aerofágico, ou, no exame físico, apresentar estridor pulmonar, taqui- ou bradiarritimia, apresentar baixa qualidade de pulso na pata traseira, pulsação e



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distensão jugular ou auscultação pulmonar reduzida, a possibilidade de uma doença séria subjacente é alta. Estes achados devem orientar o responsável pelo paciente a procurar exames adicionais antes de submeter seu animal a anestesia e cirurgia eletiva. Caso a cirurgia necessite ser realizada, independente da falta de informações, as sugestões a seguir podem ser utilizadas Tente evitar o estresse (manipulação excessiva, contenção pesada, gaiolas de contenção etc.) e permita muita circulação de ar/baixa umidade ao redor destes pacientes no pré-anestésico. Em ambientes quentes, o uso de ventiladores frequentemente evita que estes pacientes façam aerofagia ostensiva, bem como os deixa menos ofegantes Gatos com murmúrios e que respiram de boca aberta devem receber um dreno torácico e furosemida em dose baixa (2 mg/kg) SC ou IM assim que sedados pela medicação pré-anestésica Cães com murmúrios devem receber furosemida em dose baixa (1 a 2 mg/kg SC ou IM) e ser levados para caminhar meia hora antes da medicação pré-anestésica Medicação pré-anestésica com opioide e midazolam (0,3 a 0,5 mg/kg IM) Assim que sedados, é recomendado o fornecimento de oxigênio viamáscara facial durante a tricotomia Após a medicação pré-anestésica, gatos podem ser induzidos com midazolam (0,2 mg/kg IV) seguido pela aplicação muito lenta de propofol (2 a 3 mg/kg IV) até que a intubação seja possível Após a pré-oxigenação em cães, a indução com doses altas de midazolam (0,5 mg/kg IV) e cetamina (2 mg/kg IV) é realizada até o efeito Assim que realizada a intubação e iniciado o fornecimento de oxigênio e do agente inalatório, devem ser monitoradas a frequência cardíaca e a pressão arterial A fluidoterapia deve ser minimizada (2 a 3 mℓ/kg/h) caso seja realizada.

Nota: animais com doenças respiratórias e/ou cardiovasculares graves devem ser cuidadosamente avaliados para a adoção. A eutanásia pode ser a escolha mais humana para pacientes que demostram sinais de angústia ou doença grave. O uso dos pontos críticos recomendados não substitui testes diagnósticos adicionais (padrões dos cuidados médicos-veterinários). Em pacientes nos quais houver o entendimento de que algumas formas de cardiopatias possam ser afetadas de maneira adversa por estas recomendações, elas devem ser utilizadas apenas como último recurso.

Recuperação anestésica Para que ocorra uma transição suave do estado de anestesia até o despertar confortável, é necessário praticar a vigilância. O sucesso das recuperações pode ser mensurado pela presença de poucos efeitos adversos aos pacientes e pela satisfação dos funcionários. Atenção e comunicação imediatas podem minimizar as consequências negativas.84,85 Garantir ambientes seguros, confortáveis e com aquecimento apropriado, circulação de ar e

o mínimo de barulho é essencial para uma boa recuperação.86 Aconselham-se cuidados especiais durante a recuperação para evitar a obstrução das vias respiratórias (por meio de um mau posicionamento da cabeça) e um súbito despertar com delirium, o que pode causar subsequentes danos a quem estiver cuidando do paciente. É aconselhável que a recuperação seja realizada em superfícies firmes e planas, tais como o chão ou gaiolas. No caso de filhotes, é aconselhável que a recuperação ocorra junto aos irmãos, pois isso ajudar a fornecer calor e familiaridade ao ambiente à sua volta.87 A temperatura corporal deve ser mantida, protegendo-se as superfícies de contato e mantendo-se o paciente coberto, utilizando-se papéis, toalhas e cobertores.88,89 Caso seja necessário fornecer calor suplementar, opções incluem o aquecimento por convecção (ar aquecido), colchões com circulação de água aquecida e lâmpadas de calor (monitoramento vigiado).90,91 Animais anestesiados ou fortemente sedados são incapazes de se afastar de fontes excessivas de calor. Recomenda-se intensamente o uso de dispositivos de fornecimento de calor desenvolvidos especificamente para pacientes anestesiados. Para se evitar a hipoglicemia em pacientes geriátricos, filhotes e frágeis, devem ser oferecidas pequenas quantidades de comida, assim que possível, logo que os pacientes estiverem mentalmente capacitados, como é demonstrado pela presença de reflexo de endireitamento e de deglutição adequados. Pacientes neonatais devem alimentar-se, assim que possível, logo após a cirurgia.69 Pequenas quantidades de água devem ser oferecidas assim que o paciente estiver no ambulatório. Deve-se tomar cuidado com a alimentação pós-operatória de pacientes braquicefálicos, já que estes animais têm maior propensão de obstrução das vias respiratórias; a regurgitação acontece frequentemente e a motilidade esofágica também pode não estar adequada nesses pacientes. A suplementação de oxigênio é especialmente útil em pacientes debilitados, desidratados, malnutridos ou traumatizados. Isso ajuda a reduzir o risco de hipoxia celular alveolar, o que pode levar a hipoxia tecidual.78 A ventilação é o processo pelo qual o corpo exala ou, em outras palavras, livra-se do dióxido de carbono, e deve ser monitorada de perto nos animais em recuperação.

Preparação para emergências Deve-se manter grande estoque de fármacos antagonistas e emergenciais, os quais devem estar facilmente acessíveis. É importante que seja realizada uma periódica verificação e documentação das datas de validade e da quantidade dos materiais de emergência.92,93 Uma simples planilha emergencial deve estar claramente posicionada ou prontamente disponível, permitindo a rápida determinação da dose dos fármacos.94 Reuniões e treinamentos regulares são úteis, particularmente, no auxílio dos

funcionários quanto à identificação de paradas reais versus depressões respiratórias e cardiovasculares, as quais são comuns durante a anestesia. O treinamento também deve incluir a conferência dos equipamentos, a instituição do ABC da reanimação cerebrocardiopulmonar (RCCP), a manutenção de registros de emergências, a revisão de casos difíceis e a discussão sobre morbidade/mortalidade.93 Diretrizes recentes foram desenvolvidas na tentativa de melhorar os desfechos associados a situações de parada relacionados ou não com a anestesia.95

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_____________ *N.T.: O “Five Freedoms for Animal Welfare” inclui cinco ações cujos animais devem ter liberdade de realizar para seu bem-estar: levantar, deitar, girar, cuidar-se e esticar seus membros. *N.T.: Technician é um empregado proficiente em técnicas e habilidades relevantes na área, com relativo entendimento prático de alguns princípios teóricos. Essa função é bem comum nos EUA e não tem um equivalente no Brasil.

Introdução Risco anestésico Variedade de tamanhos Reanimação cardiopulmonar Considerações para a indução de equinos Efeito do decúbito em equinos Considerações sobre a frequência cardíaca Equinos neonatos e potros Égua prenhe Considerações sobre a fluidoterapia Recuperação Referências bibliográficas

Introdução A anestesia de equinos sempre foi associada a maior risco ao paciente quando comparada à anestesia de outras espécies domésticas. O fornecimento da anestesia é complicado por causa de diversos fatores, incluindo a grande variedade de tamanho dos pacientes, a necessidade de controlar a entrada em decúbito (queda) durante a indução anestésica, o requerimento de equipamentos especializados, a perfusão tecidual relacionada com a grande massa corporal e com o comportamento instintivo da espécie. Adicionalmente, as doses dos fármacos são frequentemente extrapoladas a partir daquelas de outras espécies e muitos dos fármacos são utilizados de maneiras para as quais não foram aprovados. Por isso, o primeiro passo para aumentar a segurança do paciente é o entendimento dos fatores únicos associados à anestesia de equinos.

Risco anestésico

O risco da mortalidade anestésica é maior em equinos do que em outras espécies domésticas. Estudos têm relatado taxas entre 0,24 e 1,6% para cavalos1-4 comparadas às de cães (0,05%) e gatos (0,11%).5 Na maioria das instalações, quando se conversa com o proprietário, fala-se em taxa de mortalidade em torno de 1%; no entanto, essa porcentagem pode aumentar consideravelmente em pacientes metabolicamente instáveis, tais como aqueles com cólica. As principais complicações associadas à morte são parada cardíaca, lesões ortopédicas durante a recuperação e miopatias ou neuropatias pós-anestésicas. O aparecimento de cólica após a anestesia é uma preocupação adicional. Alguns fatores têm sido implicados como sendo de risco para o desenvolvimento de cólicas no pós-operatório, tais como o uso de analgésicos opioides, o período cirúrgico, a escolha dos anestésicos e o uso concomitante de certos antibióticos; contudo, não foram determinadas relações específicas.6-11

Variedade de tamanhos Existem cavalos com uma ampla gama de tamanhos. Potros de cavalos miniaturas podem pesar menos de 10 kg, enquanto cavalos de tração utilizados em competições podem pesar até 1.300 kg. Em virtude desta variação de tamanho, deve-se possuir equipamentos específicos para mover estes animais, fornecer anestésico e assistir ou controlar a ventilação. Geralmente um aparelho de anestesia para pequenos animais é utilizado para a maioria dos cavalos miniatura, neonatos e potros que pesam até 150 kg, porém sistemas anestésicos para grandes animais devem ser adquiridos para potros mais velhos e cavalos adultos. O fator limitante em um sistema para pequenos animais é o tamanho do canister, o tamanho do balão e o tamanho dos tubos e dos conectores que se ligam ao tubo endotraqueal. Os preços de equipamentos anestésicos para equinos podem variar de U$ 14.000 a U$ 50.000 (preços de 2014), dependendo do modelo, da inclusão de um ventilador e da constituição do sistema respiratório. Os tubos endotraqueais, os balões e as tubulações anestésicas são especificamente produzidos para equinos e, consequentemente, mais caros que os equipamentos utilizados em pequenos animais (muitos dos quais são reaproveitados dos aparelhos de humanos). A maioria dos equipamentos de monitoramento projetados para os seres humanos pode ser adaptada para uso em espécies maiores. Um problema comum é o fato de que os monitores humanos geralmente consideram bradicárdica a frequência cardíaca normal de cavalos adultos, sendo os alarmes padrões definidos para frequências abaixo de 40 bpm. As mesas cirúrgicas e os mecanismos para elevar os animais devem ser aqueles desenvolvidos especificamente para equinos ou grandes animais. Em locais onde regularmente se atendam cavalos de raças de tração, é aconselhado adquirir uma talha que

sustente até duas toneladas em vez das que são comumente utilizadas e que aguentam até uma tonelada, já que cavalos maiores podem sobrecarregar equipamentos inapropriados. Adicionalmente, a mesa cirúrgica típica fabricada para equinos adultos não é grande o suficiente para suportar a massa de um paciente de 1.000 kg em procedimentos que necessitem de decúbito lateral. Portanto, podem ser necessárias duas mesas cirúrgicas utilizadas em conjunto para fornecer o suporte adequado. No caso de não haver disponibilidade de duas mesas, podem-se utilizar almofadas ou colchões empilhados sob os membros, cabeça e pescoço. Muitos dos cavalos de tração não possuem caudas longas o suficiente para se amarrar uma corda para a recuperação assistida. Felizmente a maioria dos cavalos de tração são relativamente cooperativos em relação à recuperação. O tamanho também é um fator quando se determina a perfusão periférica (musculatura esquelética). O requerimento da pressão arterial média aumenta à medida que a massa muscular (e a pressão compartimento/compreensão muscular) aumenta. O risco de neuropatias e miopatias anestésicas é maior em equinos, particularmente em raças grandes de sangue quente e de tração. Enquanto as recomendações sobre os valores mínimos da pressão arterial média durante a anestesia variam, esta autora, com base em experiência pessoal, recomenda que, em cavalos que pesem mais de 500 kg, a pressão seja de pelo menos de 80 mmHg. A manutenção da pressão arterial média acima de 70 mmHg, em cavalos adultos normais, tem demonstrado minimizar as complicações pós-operatórias associadas à hipotensão.12,13 Neonatos e potros possuem valores menores de pressão arterial média em descanso (47 a 50 mmHg em neonatos e 55 a 70 mmHg em potros), porém existe um relato de um neonato que desenvolveu miosite pós-anestésica após um procedimento anestésico em que a pressão arterial média foi mantida entre 45 e 65 mmHg.14 Portanto, o objetivo, incluindo todas as idades e tamanhos de cavalos, deveria ser o de manter a pressão arterial acima de 60 mmHg em potros e 70 a 80 mmHg em adultos, dependendo do tamanho corporal. Fármacos adjuntos, utilizados para elevar a pressão arterial média, incluem inotrópicos, vasopressores e catecolaminas. Em equinos, a dobutamina é o fármaco mais frequentemente utilizado, porém a dopamina, a efedrina, a fenilefrina, a vasopressina, a norepinefrina, a epinefrina e os sais de cálcio são alternativas desde que utilizados apropriadamente. Nos inotrópicos, tem sido relatado que a dobutamina é o fármaco mais útil para a elevação da pressão arterial média em neonatos, potros e cavalos adultos sob anestesia geral.15-17

Reanimação cardiopulmonar A variação anatômica é um fator que complica a reanimação cardiopulmonar. Um equino neonato ou um potro mais velho podem ser manipulados de maneira similar a um canino,

porém os espaços intercostais de equinos adultos são mais estreitos e impossíveis de separar manualmente caso a massagem cardíaca direta seja necessária. Nesses casos é necessário que seja realizada a ressecção de uma costela, tornando esta técnica pouco prática na maioria das situações. Portanto, as compressões torácicas em um equino adulto necessitam do uso de todo peso corporal do anestesista, concentrado em ambos os joelhos ou pés. As compressões torácicas externas devem ser realizadas em uma taxa mínima de 80 compressões por minuto em equinos adultos para produzir um debito cardíaco próximo a 50% daquele de um cavalo profundamente anestesiado.18 Contudo, compressões externas em taxas de 20 por minuto em pôneis têm demonstrado produzir um débito cardíaco de aproximadamente 50% dos valores basais normais.19 Como alternativa para compressões externas, no caso de uma parada em um cavalo sob anestesia geral para exploração abdominal, o cirurgião pode realizar uma incisão no diafragma e através dela realizar a compressão cardíaca direta. Apesar de arritmias cardíacas serem comuns em cavalos durante o exercício e após a anestesia, é incomum a ocorrência de fibrilação ventricular em equinos antes da parada.20-22 Mesmo se a fibrilação ventricular ocorrer, a maioria dos desfibriladores elétricos não são projetados para oferecer uma descarga elétrica necessária e alta o suficiente para desfibrilar o coração de um cavalo adulto.

Considerações para a indução de equinos Induzir o decúbito em cavalos a partir da posição quadrupedal pode ser perigoso. A fim de minimizar o risco, devem ser providenciados sedação e relaxamento muscular adequados antes da indução. A cetamina é um dos agentes indutores primários utilizados em cavalos, porém ela é desprovida de qualquer propriedade relaxante muscular. De fato, a indução com cetamina sem medicação pré-anestésica é fisicamente dramática. O relaxamento muscular e a indução podem ser melhorados aumentando-se a dose da medicação préanestésica, ou adicionando-se um opioide ou fenotiazínico a um agonista de receptor α2adrenérgico, ou adicionando um benzodiazepínico à cetamina para a indução.23,24 Existem diferenças quanto à dose de indução entre cavalos, burros e mulas. Os burros são geralmente menos sensíveis aos fármacos utilizados na medicação pré-anestésica e na indução quando comparados a cavalos. As mulas aparentam estar em uma posição intermediária entre os burros e os cavalos. As doses de fármacos para burros devem ser 1,5 vez a dose para um cavalo. A exceção para esta regra é a guaifenesina, já que os burros são mais sensíveis aos efeitos centrais desse fármaco, resultando em hipotensão e apneia após a administração em bolus. Aparentemente, esta diferença na resposta a fármacos que acontece em burros ocorre por causa da variação na distribuição da água corporal e do

metabolismo farmacológico.25,26

Efeito do decúbito em equinos O decúbito prolongado em equinos não é benigno. A discrepância na relação ventilação/perfusão e o aparecimento de shunts são inevitáveis quando um equino está deitado. O decúbito lateral resulta em atelectasia do pulmão voltado para baixo e o decúbito dorsal resulta em atelectasia progressiva da área dorsal dos pulmões.27 A ventilação controlada pode melhorar a oxigenação arterial; porém, em pacientes com distensão abdominal associada a cólica, ruptura de bexiga ou prenhez, o débito cardíaco pode ficar comprometido durante os períodos de alta pressão intratorácica. Ao contrário do que ocorre em pequenos animais, um estudo recente realizado com equinos encontrou que a diminuição da concentração inspirada de oxigênio de > 95% para 50% resultou em redução significativa da saturação arterial de oxigênio; portanto, não é recomendado o uso de concentrações menores inspiradas de oxigênio para reduzir a formação de atelectasia.28,29

Considerações sobre a frequência cardíaca A sedação com agonistas de receptores α2-adrenérgicos em equinos resulta em bradicardia. Isto pode ser agravado pela administração concomitante de diversos fármacos anestésicos. Contudo, a cetamina possui propriedades simpatomiméticas e sua administração geralmente produz aumentos transitórios na frequência cardíaca. Caracteristicamente, uma vez que a frequência cardíaca retorne a níveis basais sob anestesia, não existem picos ou grandes alterações que sejam indicativas de que o animal esteja acordando, como é visto em pequenos animais. O aumento da frequência cardíaca em resposta à estimulação cirúrgica é incomum em equinos adultos saudáveis em anestesia geral.

Equinos neonatos e potros Um neonato é menos preparado para alterar o seu volume de ejeção em resposta à hipovolemia e à bradicardia. Em neonatos, a frequência cardíaca exerce função primordial na manutenção do débito cardíaco. Os fármacos mais comumente utilizados como medicação pré-anestésica em cavalos são os agonistas de receptores α2-adrenérgicos, e um dos efeitos associados a estes fármacos é a bradicardia. Portanto, parece ser prudente minimizar o uso desses fármacos em neonatos ou potros mais velhos comprometidos. Potros podem ter respostas variáveis aos fármacos e devem receber doses individuais com base em seu comportamento.30,31

Égua prenhe Uma égua prenhe que se apresente para algum procedimento emergencial que necessite anestesia geral apresenta várias diferenças fisiológicas que desafiam o anestesista. A vasodilatação induzida pelos agentes inalatórios é amplificada pelos hormônios circulantes alterados pela prenhez e parto.32 Em mulheres, a hiperpolarização derivada do endotélio (EDHF) e o óxido nítrico (ON) são responsáveis pela diminuição do tônus vascular.33 A oxigenação na égua é dificultada pelo útero gravídico e conteúdos abdominais, os quais colocam pressão sobre o diafragma, resultando na redução da capacidade residual funcional. A ventilação controlada ou assistida é geralmente necessária para permitir que a égua receba um volume respiratório final apropriado. Inclinar a égua levemente para fora do decúbito dorsal também facilita o retorno venoso por meio da redução da compressão direta da veia cava caudal. Objetivando ventilar apropriadamente a égua prenhe, as pressões das vias respiratórias geralmente excedem os 30 cmH2O, particularmente quando a égua se encontra na posição de cefalodeclive (Tredelenburg) para a manipulação do feto. Nesta situação geralmente são necessárias pressões nas vias respiratórias que alcancem os 60 cmH2O para ofertar um volume total de 10 mℓ/kg. Adicionalmente às preocupações com a ventilação, a intubação endotraqueal é recomendada para prevenir a aspiração de conteúdo gastrintestinal. Por causa da natureza emergencial das distocias e cesarianas, o jejum antes do procedimento raramente é realizado. Na medicina humana, pressões intragástricas elevadas, atraso no esvaziamento gástrico e progesterona circulante que relaxam o esfíncter gastresofágico são responsáveis pelo aumento do risco de ocorrerem pneumonias aspirativas.34,35

Considerações sobre a fluidoterapia Uma discussão que envolva fluidoterapia em cavalos em anestesia geral pode ser controversa. Tradicionalmente, a fluidoterapia envolve a administração de líquidos isotônicos em taxas de 5 a 15 mℓ/kg/h e bolus de líquidos sempre que necessário durante os períodos de hipotensão. Esta taxa de administração não tem sido efetiva na prevenção da hipotensão induzida pelos agentes inalatórios.36 A expansão do volume plasmático realizada pelos cristaloides é menor que 20 a 25% do volume administrado. Adicionalmente, a prática habitual de administrar cristaloides em casos de perda sanguínea em uma razão de 3:1 não é tão efetiva quanto se achava. Em vez de utilizar taxas de líquidos consagradas para todos os pacientes, as soluções cristaloides e coloidais devem ser administradas baseando-se nas necessidades específicas do paciente, utilizando-se para avaliação a fluidoterapia direcionada a um objetivo específico (p. ex., gases sanguíneos, tempo de preenchimento capilar, coloração das membranas mucosas e variação do

pulso).37,38

Recuperação O verdadeiro desafio da anestesia de equinos, quando comparada à de outras espécies domésticas, é obter a recuperação do paciente à posição quadrupedal com segurança e sem que haja lesões. O papel do anestesista continua durante o período de recuperação, selecionando o sedativo apropriado, quando necessário, e geralmente auxiliando o animal em suas tentativas de levantar. Os cavalos têm um instinto que impede que a maioria deles permaneça deitada na sala de recuperação por longos períodos. Ademais, alguns pacientes tentarão levantar precocemente em decorrência da necessidade de urinar, causada pela grande quantidade de líquidos intravenosos administrada e pelo aumento da produção de urina que ocorre após a administração de agonistas de receptores α2-adrenérgicos. A transição de um cavalo que estava recebendo anestésicos em 100% de oxigênio, com suporte vascular e ventilatório, para uma sala de recuperação sem monitoramento ou suplementação de oxigênio é uma das situações em que a sedação pesada não é recomendada. Contudo, a sedação pode tornar a recuperação da anestesia inalatória mais suave. É importante pensar em um equilíbrio entre a técnica e a sedação para uma recuperação segura. O ideal é que o cavalo adulto deva ser mantido em decúbito até a perda do nistagmo, resposta positiva a um estímulo sonoro e retorno do reflexo de ameaça e do tônus lingual em resposta a uma leve tração da língua. A resposta à ameaça é um comportamento adquirido, portanto, os potros, geralmente, não irão responder à estimulação sobre os olhos, a não ser que ocorra contato direto com as pálpebras ou com a córnea (este último não é recomendado, a não ser que seja uma situação de emergência). O sedativo pode ser administrado logo antes de se mover o animal para a sala de recuperação. Dependendo da profundidade da anestesia, pode-se administrar, por via intramuscular, 50 a 150 mg de xilazina ou 5 a 20 mg de romifidina ou detomidina, associados ou não a 2 a 5 mg de acepromazina, antes de mover o cavalo para a recuperação. Uma dose adicional de sedativo pode ser administrada por via intravenosa, caso necessário.39-41 Colocar uma toalha sobre os olhos e algodões nos ouvidos pode auxiliar a minimizar a estimulação vinda da parte externa da sala de recuperação, particularmente em cavalos sensíveis a estímulos sonoros. Existem diversas técnicas de recuperação que podem ser utilizadas dependendo da especificidade do caso: recuperação desassistida ou “autorrecuperação”; recuperação assistida com cordas, utilizando cordas no cabresto e na cauda, formando um sistema de polias através das argolas nas paredes; recuperação na piscina; recuperação com animal suspenso por elásticos; e recuperação em uma mesa hidráulica inclinada.42 A recuperação

desassistida é prática em cavalos jovens e saudáveis após procedimentos eletivos. Os demais tipos de recuperação são utilizados para pacientes nos quais a instabilidade ou fraqueza seja uma preocupação. Para realizar a recuperação assistida com cordas é necessária uma sala com argolas nas paredes, cordas de algodão ou náilon muito fortes e duas pessoas para puxar as cordas e auxiliar o cavalo no momento certo. Um pouco de sutileza é necessário no caso da corda da cabeça, a qual é utilizada para suporte, enquanto a corda da cauda é utilizada para a maior parte da assistência (em que mais esforço é necessário por parte do operador). Os cavalos necessitam ter liberdade em sua extremidade frontal no momento em que irão levantar; portanto, a corda da cabeça não deve ser muito tracionada até que o cavalo esteja de pé. As recuperações na piscina, com elásticos (suspensos) ou com mesas hidráulicas inclinadas são geralmente reservadas para animais com fraturas ou com problemas neurológicos. Recuperar um potro da anestesia é um processo inteiramente diferente do de adultos. Potros devem ter a recuperação assistida até aproximadamente 5 a 6 meses de idade.

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