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Portuguese Pages 319 Year 2021
ANARQUIA E
ANARQUISMOS Práticas de liberdade entre histórias de vida (Brasil/Portugal) Organização José Maria Carvalho Ferreira João da Mata Juniele Rabêlo de Almeida Rio de Janeiro 2021
SUMÁRIO APRESENTAÇÃO CULTURA L IBERTÁRIA 1- Dos equívocos existentes entre Anarquia e os Anarquismos José Maria Carvalho Ferreira 2- As lutas anarquistas no presente como experiências: contra as utopias Acácio Augusto 3- Anarquismo da vida cotidiana e subjetividades libertárias João da Mata 4- Anarquismo e Falência da Representação Camila Jourdan 5- Anarquismo, Educação e Autoformação Sílvio Gallo 6- Educação libertária: desafios e caminhos de esperança Ana Paula Massadar Morel e Rodrigo de Almeida Ferreira 7- Zonas libertárias: corpo e espaço sob a aura da resistência André Bocchetti 8- Sob o signo da guerra: Proudhon e as relações internacionais
Thiago Rodrigues 9- Decrescimento e Anarquia: Articulações do decrescimento abrupto e da reinvenção do anarquismo Jorge Leandro Rosa 10- Para a história de uma revista anarquista em Portugal (1974-2020) António Cândido Franco 11- A liberdade de ser livre: poesia e anarquia Manuela Parreira da Silva NARRATIVAS B IOGRÁFICAS E A NARQUIA 12- A prática da liberdade em discurso direto: a voz de anarquistas e libertários de todo o mundo na revista Utopia Isabel Castro 13- António Pinto Quartin (1887-1970): ideário e vida Paulo Eduardo Guimarães 14- Preâmbulo de e entrevista a João Freire: pensador e organizador do anarquismo em Portugal José Maria Carvalho Ferreira 15- Roberto Freire, um amante anarquista Gustavo Ferreira Simões 16- Edgar Rodrigues, memorialista do Anarquismo Carlos Augusto Addor 17- Há ordem oculta – contextos empoderadores Isabel Rufino 18- Sobre heterotopias: reflexão sobre os espaços libertários em Belo Horizonte (uma homenagem a Brian) Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira 19- Trajetória intelectual do anarquista Jaime Cubero (1927-1998) Rogério Humberto Zeferino Nascimento 20- História de vida e memórias das práticas de liberdade: uma puta mulher Amanda Calabria e Juniele Rabêlo de Almeida
21- Experimentações de vida universitária e mulheres libertárias Lúcia Soares da Silva POSFÁCIO José Maria Carvalho Ferreira SOBRE OS AUTORES APRESENTAÇÃO O livro Anarquia e Anarquismos: Práticas de liberdade entre histórias de vida (Basil/Portugal) é uma provocação para o entrecruzamento de fronteiras entre diversas áreas de conhecimento e atuação. Os debates promovidos nesta obra contribuem para ampliação das discussões sobre cultura libertária e narrativas biográficas – a partir das ações e significações anárquicas na história do tempo presente. Aqui, você encontrará uma multiplicidade de análises sobre a anarquia a os anarquismos, em textos de diferentes formas e tamanhos. Longe de esgotar a abrangência e importância do tema, ao longo dos 21 capítulos o leitor é convidado a pensar junto as possibilidades de vida livre no presente. A primeira parte da obra traz, em 11 capítulos, múltiplos diálogos referentes à cultura libertária . O texto de abertura, intitulado Dos equívocos existentes entre Anarquia e os Anarquismos ( Capítulo 1 ), traz as reflexões de José Maria Carvalho Ferreira realizadas a partir da sua própria trajetória em diversos grupos anarquistas desde inícios da década de 1980. Com sensibilidade crítica, o texto estimula o sentir, o pensar e o agir no espaçotempo da anarquia, das relações sociais informais e espontâneas, evitando a negativação dos conceitos de desordem e caos, bem como a transformação do conceito de anarquia “num qualquer ismo ou modelo”. Para o autor, a anarquia pode ser uma aprendizagem no “aqui e agora”, mas é possível idealizá-la num horizonte temporal mais vasto. As discussões sobre os anarquismos e a anarquia expressam a trajetória de José Maria Carvalho Ferreira, suas experiências como: diretor e membro do coletivo editorial da revista Subversão Internacional entre 1977 e 1979; diretor do jornal A Batalha em 1989 e 1990; diretor e membro do coletivo da revista Utopia entre 1995 e 2012; presidente da Biblioteca dos Operários e Empregados da Sociedade Geral (BOESG) entre 2004 e 2010; fundador e membro da Associação Cultural A Vida desde 1994. Em seguida, Acácio Augusto – no texto As lutas anarquistas no presente como experiências: contra as utopias ( Capítulo 2 ) – afirma que a utopia sempre foi usada por liberais, neoliberais, socialistas autoritários e sociaisdemocratas como forma de desqualificar a anarquia enquanto ideia irrealizável. Mas em meio às suas lutas pela sociedade livre e igualitária, os anarquistas produzem um conjunto de práticas inventando outros espaços, como experiências heterotópicas. A cultura libertária se revigora nas lutas contemporâneas (desde os acontecimentos de Seattle, em 1999), como atitude de revolta que se multiplica e se atualiza em espaços libertários e enfretamentos de rua. Esta é a antipolítica que se apresenta como produção de uma vida militante e contra as reconfortantes utopias. O texto discute
essas lutas como práticas heterotópicas e atitude diante das atuais tecnologias de governo das condutas. No texto Anarquismo da vida cotidiana e subjetividades libertárias ( Capítulo 3 ), João da Mata apresenta os desafios da existência libertária como percurso autoral, que ocorre na relação permanente de si consigo mesmo e na relação com os outros. Um exercício cotidiano em lidar com a liberdade como prática incessante e não como um lugar a ser atingido. Se a história da anarquia e dos anarquismos está atravessada por acontecimentos de lutas sociais de homens e mulheres que se colocaram contrários diante da exploração e das relações de dominação, o autor destaca a vida libertária – que se abre para o dia a dia e suas vicissitudes – como espaço não menos importante no campo de ação política, que diante dos microfascismos exige microrresistências. Suas análises propõem ainda que a vida libertária acontece no aqui e agora, e não em um amanhã radioso e promissor, pois ele nunca é agora. Quem vive a anarquia procura encarnar as práticas de liberdade nos múltiplos espaços que se apresentam diante de si: em casa, no trabalho, entre amigos e em todos os lugares sempre que haja um outro em relação. A anarquia como prática de liberdade social traz a afirmação de uma vida outra , diante do que está posto como verdade a ser seguida. Camila Jourdan, em Anarquismo e Falência da Representação ( Capítulo 4 ), propõe, a partir das suas próprias experiências, a abertura do momento presente para as resistências libertárias e as práticas insurrecionárias, entendendo estas enquanto situadas no âmbito ético-político e como possuindo uma irredutível dimensão existencial. A autora retoma aspectos relativos à falência dos pressupostos ontológicos-epistemológicos da modernidade ocidental, falência esta que se expressa cada vez mais na evidência da guerra civil generalizada e na espetacularização da vida. A autora caracteriza a perspectiva libertária como um abalo no solo da representação. As recentes revoltas são situadas como possibilidades para criar novos possíveis. Para Camila Jourdan, a nossa existência contemporânea no capitalismo equivale a um viver sem mundo , que significa também viver sob o primado da representação atomizante, na qual toda existência concreta é substituída pela reprodução de imagens vendíveis na espetacularização crescente. Na sequencia, com o tema Anarquismo, Educação e Autoformação ( Capítulo 5 ), Sílvio Gallo parte da trajetória memorialística e reflexiva de Tragtenberg. O autor examina alguns elementos da pedagogia libertária além da prática escolar, pensando os processos formativos como uma autoformação, isto é, como formação de si mesmo enquanto sujeito ativo e plástico. Para isso, recorre também à filosofia de Foucault, que resgatou em suas pesquisas sobre as práticas de si na Antiguidade greco-romana aquilo que ele caracterizou como uma condução de si mesmo, no contraponto à Pedagogia. Segundo o autor, os anarquistas comprometidos com um amplo processo de transformação social situam no contexto da educação não formal os esforços de educar-se a si próprio, que ficou conhecido no seio do movimento como autodidatismo. Em Educação libertária: desafios e caminhos de esperança ( Capítulo 6 ), Ana Paula Massadar Morel e Rodrigo de Almeida Ferreira discutem a
educação, em especial sua perspectiva escolar, enquanto um tema permeado por inquietações diante das disputas socioeconômicas. Os autores questionam se a escolarização é emancipadora ou um mecanismo de controle social. Um dos caminhos críticos e propositivos sobre a relação sociedade e escola, ou mesmo a educação – por um ângulo ampliado –, tem sido apresentado pelo anarquismo. O texto considera o contexto brasileiro e, também, de outras regiões, como Rojava e o território zapatista, observando os desafios e perpectivas para a educação. Instigados pelas manifestações de 2013 e pelas ocupações estudantis de escolas e universidades, nos anos de 2015-16, discutem experimentos de ação direta a partir de uma crítica da política representativa. A reflexão percorre o seguinte questionamento: Como pensar a educação anarquista enquanto prática viável nos dias atuais? No capítulo seguinte, Zonas libertárias: corpo e espaço sob a aura da resistência ( Capítulo 7 ), André Bocchetti, de maneira poética e reflexiva, parte da absurda afirmação do então ministro da Educação, no Brasil, Abraham Weintraub, que em 2019 definiu o trabalho nas universidades como “balbúrdia”. O autor discute as ressignificações da balbúrdia – principalmete o movimento para ampliação da distância em relação ao discurso estatal por meio de zonas libertárias. A balbúrdia passa a funcionar como fonte de afirmação de um espaço, “fortalecendo sua marginalidade e, no mesmo movimento, assinalando seu caráter assustador àqueles que o rejeitam”. A resistência pela transgressão linguística – como foi o caso das “zonas de balbúrdia” formadas pelos estudantes e professores universitários – pode trazer o simples perseverar da existência – resistências efetivas, militâncias e lampejos criativos. O texto Sob o signo da guerra: Proudhon e as relações internacionais ( Capítulo 8 ), de Thiago Rodrigues, observa como uma parte fundamental da obra de Proudhon, contida no livro La guerre et la paix , foi amplamente repudiada ou simplesmente esquecida por comentaristas e autores. Defende a hipótese de que A guerra e a paz forma um duplo com seu livro subsequente, Do princípio federativo , e que ambos, sendo os últimos escritos do anarquista francês, acabaram por ser a culminância de sua proposta de uma anarquia compreendida como a superação gradual da sociedade demarcada pelo Estado, pelo capitalismo e pela propriedade privada para outra orientada pela federação política e pelo mutualismo econômico. A base para a noção de embate permanente entre os princípios da Liberdade e da Autoridade – apresentada em Do princípio federativo – seria proveniente, assim, do conceito de direito da força e da guerra (ou do “antagonismo”) como condição insuperável dos seres humanos e de suas formas de sociabilidade. Jorge Leandro Rosa, em Decrescimento e Anarquia : articulações do decrescimento abrupto e da reinvenção do anarquismo ( Capítulo 9 ), propõe pensarmos uma política anárquica e decrescentista, para voltar a ligar natureza(s) e política(s), o que permitiria abrir passagens e circulações inusitadas na estrita separação que hoje vigora entre os assuntos políticos e os assuntos naturais. Para o autor, reconhecer que não sabemos o que é um mundo melhor é a primeira necessidade anárquica. A segunda é a que nos convida a desertar das políticas orientadas para o futuro. O autor afirma que no atual “contexto desastroso” um discurso anarquista deve ir muito para
além de uma proposta contracultural, formando agora um conjunto de envios contratemporais, envios “que se recusam a essa produtividade do tempo a que chamamos história”. No texto Para a história de uma revista anarquista em Portugal (1974-2020) ( Capítulo 10 ), António Cândido Franco apresenta e analisa a revista A Ideia (1974 a 2020). São dois números por ano ao longo dos 46 anos. A Ideia se empenhou em divulgar, em investigar, em estudar e em atualizar uma tradição reconhecível de pensamento. Foi também uma revista voltada para a criação poética e pictórica, onde encontrou uma manifestação natural do seu gênio próprio. Em tal campo, que muito cresceu após as mudanças de 1980, a revista reúne um vasto número de colaborações, de Cesariny a Fiama, de Cinatti a João Rui de Sousa, de Nuno Júdice a Nunes da Rocha, de Cruzeiro Seixas a Mário Botas, de Luis Manuel Gaspar a Duarte Belo. Em A liberdade de ser livre: poesia e anarquia ( Capítulo 11 ), Manuela Parreira da Silva analisa os seguintes movimentos estético-literários: o grupo Surrealista de Lisboa (1947) e o grupo dissidente Os Surrealistas, em 1948-1949 (e sua suposta defunção, com o Grupo do Café Gelo, em finais dos anos 1960). Movimentos cuja poética traz aspectos transgressores das fronteiras entre os gêneros literários e artísticos e da linguagem, com o uso de processos como o automatismo, a associação livre, os trocadilhos, o inventário, a colagem, os jogos coletivos, entre outros. Para a autora, tal como a Anarquia, o surrealismo, enquanto poesia do Surreal, existirá sempre, pois junto “aos sonhadores, aos visionários, aos rebeldes, de todos os tempos, não será difícil irmanar surrealistas e libertários/anarquistas”. O anarquismo (Anarquia) e o surrealismo (Poesia) mutuamente se iluminam, percorrendo a mesma estrada sem fronteiras. A segunda parte do livro entrecruza narrativas biográficas e anarquia em dez capítulos. Na abertura da seção, Isabel Castro analisa, no texto A prática da liberdade em discurso direto: a voz de anarquistas e libertários de todo o mundo na revista Utopia ( Capítulo 12 ), as narrativas de uma série de anarquistas/libertários de todo o mundo, que em determinada altura das suas trajetórias de vida, entre 1995 e 2012, concederam entrevistas gravadas por José Maria Carvalho Ferreira e que foram, posteriormente, transcritas para a revista Utopia . São narrativas pessoais sobre as perspectivas do anarquismo nas suas vidas, no mundo e, também, nos países onde viveram. A autora apresenta, por ordem cronológica, os entrevistados (Edgar Rodrigues, Luce Fabbri, Jaime Cubero, Acácio Tomás de Aquino, Roberto Freire, Jacinto Cimazo, José Maria Nunes, dentre outros sujeitos coletivos), apresentando-os de forma individual e buscando refletir sobre os principais aspectos libertários e anarquistas narrados. Comum a todas e todos são as narrativas referentes aos momentos de fuga, de prisão, de exílio, de perseguições, de torturas, ante as muitas dificuldades para difundir e praticar a anarquia. Quase todos entrevistados viveram em tempos de ditadura, tempos de opressão e repressão, não obstante tempos para o fortalecimento das ideias e das práticas da anarquia. Já o texto António Pinto Quartin (1887-1970): ideário e vida ( Capítulo 13 ), de Paulo Eduardo Guimarães, apresenta aspectos biográficos de António Pinto Quartin, uma figura grada do anarquismo português. Jornalista e
publicista de novos valores éticos e morais, foi fundador d’ O Protesto (1908-1909), Amanhã: revista popular de educação racional (1909), Terra Livre (1913) e redator principal d’ A Batalha , órgão da Confederação Geral do Trabalho, no ano da sua fundação (1919), colaborador d’ A Renovação e de outra imprensa não específica. Nascido no Rio de Janeiro, filho de pais portugueses de elevada condição social, o seu pensamento evoluiu do republicanismo radical para o anarquismo, envolvendo-se ativamente durante a juventude na militância operária. Participa na Federação Portuguesa dos Trabalhadores do Livro e do Jornal, ao lado de outros destacados jornalistas, escritores e intelectuais, como Jaime Brasil, Ferreira de Castro e Mário Domingues. Neste ensaio biográfico, o autor descortina o seu pensamento e a sua ação militante, a qual atravessa o espaço lusófono em três continentes. Partindo do espólio depositado no Arquivo Histórico Social (ICS, Lisboa), dos seus textos impressos e relatórios policiais, pretende-se compreender a trajetória de vida de um destacado jornalista libertário e contribuir para avaliar a atualidade das suas ideias. Em Preâmbulo de e entrevista a João Freire: pensador e organizador do anarquismo em Portugal ( Capítulo 14 ), José Maria Carvalho Ferreira apresenta a transcrição da entrevista que realizou com João Freire – precedida de uma introdução reflexiva do próprio João Freire sobre “Anarquismos e Anarquia”. Para João Freire, o anarquismo devia ser visto como uma filosofia de vida, uma ideologia de elites morais, que podia ser apresentada como uma imagem ideal de convivência social e de meio propício à plena realização de cada indivíduo. Sendo a política a arena onde as grandes transformações ganham a visibilidade dos momentos sublimes, ela é também apenas um “compartimento” social talvez bem mais estreito do que aquilo que geralmente pensamos. Gustavo Ferreira Simões, no texto Roberto Freire, um amante anarquista ( Capítulo 15 ), discute aspectos biográficos do anarquista brasileiro que singularizou sua literatura na cultura libertária. O autor associa Roberto Freire, e suas obras Sem Tesão não há Solução e Ame e dê Vexame ao dandy , ao pirata e ao filósofo cínico. Vale lembrar que o dand y Oscar Wilde, apesar de poucos comentarem, foi um anarquista. Ao comentar sobre o cinismo na Grécia Antiga, Michel Foucault observou que as características desses filósofos não se restringiam à vestimenta, eles eram os errantes – não tinham propriedade, família, pátria. Bigode, como Roberto Freire era chamado, era um amante libertário, que decidiu viver o ocaso sozinho. A partir dos cínicos, em vez de creditar tal afastamento exclusivamente a seu temperamento considerado difícil, pode ter assumido uma atitude radical, uma liberação dos vínculos quando menos se esperava, como mais uma afirmação libertária. Em Edgar Rodrigues, memorialista do Anarquismo ( Capítulo 16 ), Carlos Augusto Addor discute os aspectos biográficos da trajetória de Edgar Rodrigues – que faleceu no Rio de Janeiro, em junho de 2009, aos 88 anos, depois de ter produzido uma obra fundamental para a história do anarquismo e do movimento operário e sindical, principalmente no Brasil e em Portugal. Observa o começo da (auto)formação do “pesquisador instintivo” Edgar Rodrigues, ainda Antonio Francisco Correia, que guardava papéis, lia e copiava livros – e combatia a ditadura salazarista, com
desconfiança em relação à autoridade (qualquer autoridade) e uma ânsia por justiça e por liberdade. Isabel Rufino, no texto Há ordem oculta – contextos empoderadores ( Capítulo 17 ), discute a racionalidade a moldar a transformação da sociedade, observando a valorização do trabalho que demarca as sociedades na sua transformação, ao incidir na sua rarefação o não trabalho. Analisa a Associação Juvenil de Cultura e Solidariedade Social em Portugal (“Barafunda AJCSS” – associação privada sem fins lucrativos), que atua no âmbito sociocultural, recreativo e do desenvolvimento local. Com o estatuto adicional de entidade formadora acreditada e de IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social), a “promover o desenvolvimento cultural, social e econômico do território, com as pessoas – através do envolvimento individual e coletivo”. Ao analisar a Barafunda AJCSS, fala do território Benedita, freguesia do concelho de Alcobaça, localizado no Oeste de Portugal. Recua à década de 1960 para contextualizar a “Experiência de Desenvolvimento Comunitário” com intervenção nesta freguesia, vindo a moldar o posterior modo de “desenvolvimento local-endógeno”. Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira, no texto seguinte, Sobre heterotopias: reflexão sobre os espaços libertários em Belo Horizonte (uma homenagem a Brian) ( Capítulo 18 ), apresenta uma instigante discussão sobre o contexto da cidade de Belo Horizonte e seus diversos grupos anticapitalistas que atuaram em frentes de ações libertárias no início do século XXI. Temas como libertação animal, antiarte, tecnopolítica, zona autônoma temporária (TAZ), Faça Você Mesma (DIY) e organização política pulsaram por diferentes espaços e em diferentes coletivos. Diversas manifestações anticapitalistas foram postas em prática nessas duas primeira décadas, como atos anti-BID e anti-ALCA e o surgimento de coletivos como a Mansão Libertina, o Carnaval Revolução, o Instituto Helena Greco de Direitos Humanos, o CMI-BH, a Radiola, o Conjunto Vazio, o CISCO, o Domingo 9 e ½, o Ystilingue, a Casa Somática, a Loja Grátis, o Azucrina e mais a recentemente ocupação da Kasa Invisível. O ensaio é uma operação de reflexão crítica sobre as experiências vividas nos espaços libertário criados em Belo Horizonte. Lucas Pereira – em um exercício de memória, de autocrítica e de diagnóstico – apresenta algumas das experiências vividas ao lado do seu companheiro de movida, Brian, que se encontra desaparecido desde o início de agosto de 2017. A sua intenção foi refletir sobre os percursos dos encontros e das experiências concretas de trocas e de exercício de liberdade na capital mineira. Rogério Humberto Zeferino Nascimento discute em seu texto a Trajetória intelectual do anarquista Jaime Cubero (1927-1998) ( Capítulo 19 ), que foi uma figura importante para a difusão do anarquismo no Brasil. Incansável em palestras, rodas de conversas e seminários, era sempre convidado para compartilhar seus conhecimentos em eventos – nas universidades e diversos coletivos. Jaime Cubero concedeu várias entrevistas para jornais, revistas e programas de televisão, como no programa de entrevistas “Jô Onze e Meia”, também disponível na internet. Sua trajetória está intimamente ligada ao Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP), associação livre criada no ano de 1933 por um grupo de anarquistas. Após períodos de clandestinidade, o CCS-SP retomou as atividades no ano de 1985. Jaime
Cubero atuou no centro a partir da década de 1940, sendo fundamental para a manutenção desse agrupamento libertário. Segundo o autor, “Jaime foi um irredutível, foi um rebelde, um verdadeiro guerreiro ingovernável e incansável lutador pela justiça social, pela anarquia”. Amanda Calabria e Juniele Rabêlo de Almeida, no texto História de vida e memórias das práticas de liberdade: uma puta mulher ( Capítulo 20 ), discutem questões para o estudo das narrativas autobiográficas que expressam práticas de liberdades cotidianas. Para tanto, as autoras observam aspectos da trajetória de Lourdes Barreto: puta, militante, mãe, avó, bisavó (77 anos). As memórias narradas ultrapassam estigmas sobre a prostituição e suas possíveis vulnerabilidades. Nascida no sertão da Paraíba, Lourdes trabalhou em zonas de meretrício, boates, cais do porto, navios, estradas, barragens e zonas garimpeiras, revelando-nos uma ampla possibilidade de exercícios do trabalho sexual e resistências libertárias. Na cidade de Belém, no Pará, foi precursora na luta por direitos civis, sexuais e trabalhistas das prostitutas no Brasil, cofundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, em 1987. As ações e os discursos de Lourdes, a partir da autoapresentação feminista, expressam o processo de constituir-se mulher, prostituta, mãe e militante – em uma semântica de liberdade perante as normas de gênero e sexualidade, informando uma trajetória que catalisa as memórias libertárias em um sentido ético. Desse modo, o capítulo reflete sobre como Lourdes produz uma narrativa pública de si, enquanto mulher prostituta, enfatizando os sentidos de autonomia e liberdade. No último texto do livro, intitulado Experimentações de vida universitária e mulheres libertárias ( Capítulo 21 ), Lúcia Soares da Silva reflete sobre suas inquietações e experimentações no curso de Ciências Sociais na PUC-SP. A autora observa, em uma narrativa autobiográfica, aspectos da sociabilidade libertária no espaço onde tomou contato com os anarquismos de Proudhon e Bakunin – ao rememorar as aulas de Edson Passetti e mergulhar nas trajetórias de mulheres libertárias (especialmente Maria Lacerda de Moura e Emma Goldman). Lúcia Soares observa a força anarquista na PUC-SP da década de 1990, bem como do evento Outros 500 , em 1992, abordando a pulsação do pensamento libertário a partir das seguintes figuras emblemáticas – presentes em sua trajetória: José Maria Carvalho Ferreira, Jaime Cubero, Maurício Tragtenberg, Marianne Enckell, Luce Fabbri, Margareth Rago, Roberto Freire, entre outros. As práticas anarquistas efervesciam, segundo a autora, “nos corredores, na produção acadêmica, nos escândalos e pelos poros”. Os 21 capítulos da obra aqui apresentada ampliam e catalisam os estudos sobre a interface cultura libertária e narrativas biográfias. Agradecemos imensamente os autores colaboradores, que gentilmente aceitaram o nosso convite para integrar esta obra. São inúmeras as contribuições para os debates sobre “Anarquia e Anarquismos”. Este livro reúne textos de pesquisadores que aceitaram a provocação libertária dos organizadores; aceitaram antes da pandemia do novo Covid-19 e conseguiram enviar seus capítulos em meio aos desafios do isolamento social. Foram respeitadas as escolhas dos pesquisadores, referentes às abordagens específicas de cada texto – váriados itinerários que compõem o movimento entre as seções e capítulos apresentados.
Desejamos a todos boa leitura! Os organizadores CULTURA LIBERTÁRIA 1 DOS EQUÍVOCOS EXISTENTES ENTRE ANARQUIA E OS ANARQUISMOS José Maria Carvalho Ferreira 1.1. A confusão epistemológica entre conceitos A minha trajetória biológica e social, desde a década de 1980, tem sido pautada por uma grande ambiguidade e confusão entre a epistemologia e a ideologia conhecida, genericamente, como anarquismo e anarquia. Na generalidade dos casos, quer em relação a discussões, debates, encontros, conferências, palestras, colóquios, publicação de livros, revistas, jornais, panfletos, emissões de rádio e televisão, sem exceção. O tema dos anarquismos sobrepunha-se a qualquer leitura ou reflexão específica sobre a anarquia como base de uma leitura e compreensão singular, dando ao conceito de anarquia uma base de autonomia e de objeto científico identitário, sem precisar de ancorar-se em qualquer dispositivo ideológico ou científico do qual decorrem todos os ismos e os anarquismos que necessitam de se modelar em termos de explicação, compreensão e interpretação da anarquia. Quando me interrogo sobre esta sobreposição complexa, abstrata e superficial da epistemologia analítica e ideológica modelar dos anarquismos em relação à anarquia é porque eu, mesmo ao longo da minha trajetória de vida militante, fui expoente máximo dessa confusão e ambiguidade entre realidades epistemológicas identitárias distintas, pois se bem que persista sempre uma familiaridade, interdependência e complementaridade entre os modelos anarquistas em que participei, poucas vezes ou nenhuma me interroguei o valor heurístico e a identidade ideológica, política, social, cultural e econômica que subsistia entre o conceito de anarquia e os modelos anarquistas que escreviam, falavam e agiam em nome da anarquia. De princípio, passando por um processo longo, senti que havia pouco a discutir ou analisar, porque todos os modelos anarquistas eram autossuficientes pela sua lógica ideológica própria, bastando dinamizar-se como modelo de concorrência com os outros modelos sem necessitar de qualquer outra explicação. Se eu correlacionar fatos e ações individuais e coletivos de cariz revolucionário, posso deduzir da leitura de léxico de autores considerados anarquistas, e se, por outro lado, enunciar a presença dos anarquismos nas diferentes tentativas históricas em lutas emblemáticas contra o Estado e o capitalismo, então é lícito pensar que a anarquia, enquanto conceito, é
meramente um ideal, um farol, cujo simbolismo é induzido por um imaginário individual e coletivo de essência utópica. Nesses termos, o conceito de anarquia nunca poderá estruturar-se num modelo de sociedade, num modelo ideológico ou religioso, num modelo de economia, de cultura ou de política. Se anarquia como substrato epistemológico e metodológico não é passível de se transformar em qualquer tipo de ismos modelalizados, então daqui também decorre a possibilidade da emergência da obrigatoriedade de controle, de institucionalização de todos os comportamentos da espéciehumana, com a assunção de uniformidade e normalidade, ainda que nos espaços-tempos dos modelos considerados anarquistas. Em síntese, em contextos-situação diferenciados, se eu pegar na minha trajetória biológica e social denotei sempre que estas leituras ambíguas e contraditórias geravam sempre conflitos insanáveis difíceis de se traduzirem em consensos e identidades coletivas, porque a confusão e a falta de entendimento dialógico entre o que se considerava anarquia e anarquismos revelava-se inamovível e sobrepunha-se a todos os desígnios reflexivos. Sempre me fez confusão esta manifesta falta de identidade coletiva entre os diferentes anarquismos e, por outro lado, a manifesta ausência de reflexão sobre o que se entendia por anarquia, tanto mais que eu sempre considerei que a criatividade e liberdade revolucionária de cada anarquismo na sua especificidade eram semelhantes a rios que correm paralelamente para o mesmo mar que eu denominava, simbolicamente, de anarquia. O problema era que o étimo ou a etimologia do conceito de anarquia precede e, como é lógico, está na origem possível de todas as interpretações e criações modelares da anarquia em modelos do anarquismo. Certo é que nas reflexões e ideologias, nas problemáticas sempre evidentes entre o que se considerava e considera a diferença e o fosso entre teoria e prática, como entre modelos de sociedade reformistas ou revolucionários identificados com a diversidade de anarquismos existentes. Todos estes diferendos sempre foram objeto de leituras, interpretações, compreensões, reflexões e vivências do que se entende por anarquia. Cada um ou cada uma per si extrai os ensinamentos que lhe convém à sua sensibilidade existencial e ideológica e assim se integra na polissemia exemplar dos modelos anarquistas. Enquanto ator dos modelos dos anarquismos eu sempre fui expressão de discussões, entendimentos, comportamentos que se identificavam com um ou mais modelos ideológicos assentes em preposições teóricas e práticas que, por uma razão ou outra, provocavam, por vezes, a fundação de um pequeno grupo que relevava quase sempre da publicação de uma revista ou de um jornal, ou então, para aspirações de maior expressão ideológica, social e organizacional, almejava-se a construção de um sindicato anarco s sindicalista ou de uma federação anarquista. Depois de várias experiências, num jogo interativo de aprendizagens, acabei de escolher os modelos do anarcoindividualismo e do anarconaturismo, porque achava que eram os que mais se aproximavam da conceção que eu tinha da anarquia. O que eu aprendi com a minha inserção nos vários espaços-tempos dos múltiplos anarquismos deu-me sempre motivação para agir a partir de uma reflexão e ação individual e coletiva, na sua essência, dicotômica: anarrquismo revolucionário/anarquismo reformista; anarquismo insurrecionalista/anarquismo pacifista; anarquismo individualista/ anarquismo coletivista; anarquismo da luta de classes/anarquismo naturista.
Passei horas e horas tentando demarcar as minhas posições defendendo, primacialmente, que o anarcoindividualismo e o anarco-naturismo, assim como todos os outros modelos anarquistas, continuassem na senda de uma luta fratricida e maniqueísta pautada por essas posições dicotômicas e gerassem, em última análise, a impossibilidade de se transformarem em anarquismos constitutivos de liberdades paralelas e de criatividade no sentido da emancipação social e da sua emergência histórica em todos os mares da anarquia. Inicialmente pela falta de aprendizagem reflexiva e imaturidade na destrinça ideológica e conceitual no que poderíamos chamar da distinção e singularidade do que se pretende denominar de anarquia e anarquismos, apercebi-me de que, intuitivamente, das diferenças existentes das leituras possíveis do que se entende por anarquia em função das ideologias subjacentes, a cada um dos modelos anarquistas que tinham sido criados, natural e arbitrariamente, conforme cada perceção, motivação e idiossincrasia de cada autor, os conceitos eram empregados de forma vaga e sem preocupação alguma de fazer uma distinção substantiva entre anarquismos, anarquistas e anarquia. Cada conceito per si poderia, assim, ser aplicado em qualquer situação e de forma indefinida para qualquer reflexão ou ideologia sobre qualquer problemática revolucionária ou de crítica do capitalismo ou do Estado. Ser anarquista ou defensor do anarquismo era sinônimo de ser defensor da anarquia conceitualizada por Pierre-Josehp Proudhon ou por Elisée Reclus. Sendo assim, a anarquia como epistemologia e metodologia de negação do Estado e do capitalismo era um conceito inquestionável que não necessitava de ser objeto de reflexão, de explicação, de interpretação e de compreensão. É devido a esta indefinição conceitual que a anarquia ao longo da história tem sido interpretada, explicada, compreendida e vivida como valores, ideologias e movimentos sociais distintos: anarcossindicalismo, anarcocomunismo, anarcocoletivismo, anarconaturismo, anarcopacifismo, anarcocristianismo, anarcoinsurrecionalismo, anarcoindividualismo, anarquismo social, municipalismo libertário, anarco-hackerismo, anarquismo cibernético, anarcoprimitivismo etc. Em qualquer circunstância, estamos sempre presentes em leituras e vivências diferenciadas e contrastantes da anarquia e nunca a partir de uma visão modelada da mesma. Antes de fazer considerações sobre a minha trajetória no quadro epistemológico da anarquia e dos anarquismos, devo, desde já, dar a conhecer os contornos de causalidade e efeitos conflituais e contraditórios que, no meu entendimento, estimulam situações de inexistência de identidade com manifestas repercussões na produção de equívocos entre o que podemos percecionar como anarquismo e anarquia. Entre as várias dimensões recorrentes posso citar: 1) os modelos contratantes do que podemos denominar de anarquismo; 2) a emergência de líderes que lutam pelo poder no seio do grupo ou da organização anarquista; 3) as mudanças ideológicas geradoras de comportamentos desviantes no quadro dos modelos de anarquismo persistentes; 4) o caráter de cada individuo que se autolegitima como defensor dos modelos anarquistas.
Para mim, estas quatro dimensões analíticas sempre estiveram presentes no meu comportamento de militante do anarquismo, embora muitas vezes eu não tomasse conhecimento da latitude nefasta destas importantes realidades na minha vida quotidiana e nas minhas relações com grupos e organizações denominadas de anarquistas. Desse modo, em relação ao primeiro ponto, ao longo da minha vida sempre me apercebi que as reflexões e entendimentos sobre o que era a anarquia nunca constava da pauta das reuniões, das conversas ou dos debates que requeriam reflexões aprofundadas. O que estava em jogo na plenitude das motivações e desígnios da revolução social passava pela identificação de um modelo específico, daí que o anarcossindicalismo ou o .anarcocomunismo tivessem a primazia sobre os restantes anarquismos. Esta escolha tinha razão de ser porque privilegiava a luta de classes e ação coletiva dos trabalhadores assalariados, dando azo à extinção do Estado e do capitalismo, ao mesmo tempo que os trabalhadores assalariados, através da autogestão generalizada da produção, distribuição, troca e consumo de bens e serviços, extinguiriam os baluartes da exploração do homem pelo homem. Esta dimensão modelar reflexiva, ideológica, teórica e prática dos anarquismos observei- a logo quando, no início da década de 1980, comecei a colaborar na redação do jornal A Batalha . Sintomático para essa constatação foi partir dos princípios e práticas do anarcossindicalismo que tinha tido um passado glorioso no início do século XX em países como a Espanha, Portugal, Itália, França, Brasil, Argentina etc. Só por si esse passado glorioso traduziu-se num modelo de anarquismo revolucionário com um valor heurístico bastante singular, adaptado aos objetivos emancipalistas históricos dos trabalhadores assalariados. Digamos que esse, pelo seu virtuosismo e plasticidade social identificados com os oprimidos e explorados, segundo os seus mentores, era o melhor exemplo de interpretação, de compreensão e explicação da anarquia. Em comparação com os outros modelos que se reclamam da anarquia, esse se permitia configurar-se, positivamente, com outros possíveis e imaginários coletivos que pretendiam ser paradigmas de sociedade nos domínios político, social, cultural, econômico, filosófico, ideológico e religioso. Sem circunstâncias de aprendizagem de aplicação desse modelo de anarquismo no jornal A Batalha , primeiramente como colaborador, mais tarde como membro do coletivo editorial e por fim, no final da década de 1980, como diretor do jornal, apercebi-me, como alguns dos membros da direção, que os gloriosos anos dos princípios e das práticas do anarcossindicalismo sustentados pela ação individual e coletiva das massas trabalhadoras do século XX já não existiam como condição-função revolucionária do operariado do final do século XX. A constatação desse fato era demasiado notória não só na diminuição drástica das taxas de sindicalização existentes no modelo anarcossindicalista, como também e sobretudo na adesão dos trabalhadores assalariados a outros modelos sindicais normativos no contexto do capitalismo, principalmente aqueles que têm incidências de correias de transmissão dos desígnios dos partidos políticos ligados ao comunismo, socialismo, social-democracia e democraciacristã. Para além das tentativas que foram elaboradas para inverter esta situação histórica negativa, como foi o caso emblemático da criação da Aliança Libertária Anarco-Sindicalista (ALAS), logo após a eclosão da
revolução de 25 de Abril, de 1974, em Portugal, o que é fato indesmentível e notório é a fragilidade e a incapacidade histórica desse modelo anarquista singrar e revelar-se impraticável no contexto da evolução da sociedade portuguesa desde então até os nossos dias. Diga-se, em defesa da verdade, que as contingências das novas tecnologias têm contribuído para a descaracterização das qualificações e competências dos perfis profissionais tradicionais, o que por arrastamento lógico tem contribuído para a destruição da homogeneidade comportamental da ação individual e coletiva das massas trabalhadoras assalariadas que aspiravam lutar contra o capitalismo e o Estado e, desse modo, prosseguiro caminho histórico da emancipação social. Apercebendo-me desta realidade nua e crua, sobretudo quando assumo as funções de diretor do jornal A Batalha , em 1989, eu e os meus companheiros da redação tentamos realizar uma reflexão dos modelos que interpretavam, explicavam e compreendiam a anarquia a partir de modelos diferenciados. Esta necessidade revelava-se imperativa porque só assim poderia emergir no jornal A Batalha sensibilidades contrastantes de liberdade e de criatividade de maneira que o jornal tivesse maior visibilidade social e impacto junto de potenciais leitores que não estivessem agarrados às premissas teóricas e práticas do modelo anarcossindicalista, mas pudessem escolher outras leituras da anarquia através de outros exemplos anarquistas. Assim, se até aquele momento o cabeçalho que vinha logo a seguir ao título do jornal aparecia, indistintamente, como sindicalista revolucionário ou anarcossindicalista, a partir daí assumiu-se doravante como jornal de expressão anarquista. Esta mudança do cabeçalho do jornal revelou-se muito importante e pertinente, porque preenchia os requisitos das diferenças ideológicas que os membros do coletivo editorial preenchiam em relação a cada uma das identidades modelares dos anarquismos que professavam. Daí em diante não causa admiração que cada artigo dos membros da redação exprimissem as suas identidades singulares transcritas dos modelos anarcoindividualista, anarcocomunista, anarcossindicalista, anarconaturista e anarcoinsurrecionalista. É evidente que no espectro criativo e espontâneo da emergência de outros modelos anarquistas é sempre possível descortinar muitos que não foram citados, todavia, do que me apercebi da sua representatividade efetiva, aqueles que enunciei foram os mais relevantes e consistentes naquele momento histórico. Na discussão do conteúdo específico de cada um dos artigos que compunham o jornal A Batalha era inevitável surgirem ambiguidades e controvérsias ideológicas que geravam alguma conflitualidade e contradições na medida em que cada um deles não sendo censurado ou constrangido a mudanças de qualquer tipo fazia com que cada modelo do anarquismo pudesse existir como espaço-tempo de liberdade e criatividade. Esta mesma postura de liberdade e de criatividade encontrei-a quando fui colaborador da revista A Ideia , de 1982 até início da década de 1990, mas pelo fato de a revista pertencer áà Cooperativa Editora Sementeira tive a oportunidade de participar, efetivamente, das reuniões da redação . Nessa revista sempre persistiu uma postura comportamental de tolerância e de diálogo intenso e extenso acerca da multiplicidade de temáticas que afetavam sobremaneira a dinâmica dos anarquismos ao nível mundial, partindo dos pressupostos potenciais da diversidade de modelos
anarquistas, exceto aqueles que primavam pela defesa da violência insurrecionalista ou da luta armada. A revista A Ideia , não obstante evoluir para posições de um modelo de anarquismo reformista, nunca chegou a cair no modelo anarcocapitalista, bastante mais conhecido nos EUA. O que se pode afirmar, com alguma exatidão, é que nos seus primórdios, no período histórico de 1974 a 1978, a revista A Ideia foi o viveiro estratégico e reflexivo que deu origem à criação da Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), cuja finalidade máxima consistia na criação das condições necessárias e suficientes para implementar em Portugal o mesmo modelo de revolução social patrocinado pelo comunismo libertário ou coletivismo libertário que tinha sido tentado em Espanha, entre 1936-1939. A substantividade analítica e prática possível da FARP foi buscar a sua força em autores como Pedro Kroptkine, Miguel Bakunine e Malatesta e as mudanças revolucionárias operadas naquele período em Espanha leva-nos a remeter todos esses fatores para a reprodução essencial do modelo anarcocomunista. Portanto, mais uma vez estamos perante episódios que se reclamam de um modelo de um anarquismo específico, mas tal como o anarcossindicalista, não tem uma relação epistemológica, metodológica e simbiótica profunda, mas meramente episódica, ideológica e instrumental. O que nos importa sublinhar em todos esses modelos é a sua familiaridade com os modelos comunistas, epistemologicamente, contraproducentes com a etimologia da anarquia e sobretudo com a sua experimentação histórica já testada na Revolução Russa de 1917. Neste grupo da revista A Ideia ainda estive ligado à participação e organização de um Colóquio subordinado ao tema “Tecnologia e Liberdade”, realizado entre 8 e 10 de 1987, em Lisboa. Enquanto em todas as manifestações anarquistas em que estive envolvido até essa data não assisti a grandes conflitos e contradições entre indivíduos e grupos que aderiram a modelos anarquistas diferenciados, com a organização desse Colóquio as perversões comportamentais de diferentes tipos emergiram como nunca imaginei que pudessem ocorrer. Desse evento extraí ilações inimagináveis em relação às proporções comportamentais que podem surgir a partir de conflitos e contradições gerados por modelos que se reclamam do anarquismo e da anarquia. Não se julgue que essa conflitualidade e contradições entre modelos anarquistas começa e acaba pela idoneidade intelectual e revolucionária de cada autor que, em princípio, criou o modelo, ou pelos pressupostos vitoriosos e de visibilidade social das revoluções sociais que ajudaram a configurar o estatuto de modelos anarquistas com alguma visibilidade social. No meu entendimento, para além das leituras e vivências contrastantes entre os diferentes modelos e da identidade ideológica coletiva, é necessário apercebermo-nos de que por detrás de tudo isso existem pessoas com personalidades e caracteres distintos de indivíduos singulares que se dizem adeptos de qualquer modelo anarquista, mas que em contextos-situação de espaços-tempos específicos, quando se relacionam ou interagem em processos de socialização e de sociabilidade intrapessoais, interpessoais, intragrupais, intergrupais, intraorganizacionais, interorganizacionais, intrassocietais e intersocietais, podem negar a anarquia enquanto liberdade e criatividade.
Focando nestas diferentes realidades quando da realização do Colóquio “Tecnologia e Liberdade”, sem entrar em pormenor no âmbito da provocação de alguns modelos anarquistas ao longo da história que associam a ideologia do modelo ao caráter negativo dos indivíduos que os lideram, nesse caso, os processos perversos foram veiculados pelo grupo Ação Direta, que muito antes da realização do Colóquio já tinha veiculado notícias especulativas que não tinham qualquer correspondência com a verdade dos fatos e que, por outro lado, procuravam instrumentalizar os simpatizantes de outros modelos anarquistas de que a revista A Ideia estava a aproveitar-se do bom nome dos velhos anarcossindicalistas vivos para legitimar e credibilizar o referido evento. Não contente com esta prática de não olhar os meios para atingir as suas finalidades de destruição dos outros modelos anarquistas e na ânsia de exercer o poder e a liderança no seio do anarquismo português, o grupo Ação Direta, identificado com o anarcoinsurrecionalismo ainda teve a vontade férrea de descredibilizar mais uma iniciativa no âmbito de “100 anos de anarquismo em Portugal” (1887-1987). Nesse âmbito, o grupo tentou instrumentalizar um grupo de jovens que, entretanto, epidermicamente, tinha aderido a esse modelo anarquista, e sabotar, por via de uma manipulação absurda e por processos violentos, a exposição que foi realizada na Biblioteca Nacional de Portugal (BPN), mas sem sucesso. O que importa aqui salientar é a realidade nua e crua do modo de percecionar e comunicar o que se entende por anarquismos e a sua transposição para preposições analíticas e ideológicas que, em princípio, foram buscar a sua raiz etimológica à palavra anarquia. Não havendo comunicação, não há perceção sensorial possível, não há hipóteses de identidade individual ou coletiva, tampouco situações plausíveis da emergência da assunção da diferença, que indiciam uma hipótese plausível de amizade, amor, criatividade e liberdade no sentido de uma probabilidade não linear, caoticamente auto-organizada sempre como contexto-situação de heterotopia ou de utopia no caminho ou na abertura de um sentido que dê corpo e vida à anarquia. Este confronto entre anarquismos que muitas vezes passam despercebidos por muitos que têm aderido e aderem a uma variedade de modelos tipificados como tal alimenta-se, frequentemente, das leituras identitárias superficiais de um leitor contra uma outra leitura identitária de outro autor, ou até da visibilidade de movimentos sociais, grupos, organizações, jornais e revistas que, por razões várias, transformam-se em capelas ou seitas ideológicas, e que por via disto, no fundo, nunca têm a veleidade de ir buscar a essência conceitual e metodológica da palavra “anarquia”, dandose ao luxo de criarem modelos anarquistas à sua medida e à sua imagem, ao mesmo tempo que se transformam em líderes e congregam militantes para fortificarem o poder dos seus modelos. Digamos que para mim, e para a grande maioria dos militantes que militam nos modelos anarquistas, o conceito anarquia é uma palavra meramente circunstancial , epidérmica e superficial, tendo só, na atualidade, uma razão de ser como um valor simbólico manifestado pelo círculo sobre a letra “A”. O que se extrai das minhas palavras resulta de que quer nos artigos dos jornais, revistas, livros, colóquios, congressos, debates, quer nos movimentos sociais, greves, ações coletivas e ações individuais diferenciadas, quer em sublevações ou
revoluções sociais, há por trás o cumprimento restritivo e absoluto da consecução objetiva e subjetiva dos modelos anarquistas que lhes deram a razão de ser. 1.2. O que se entende por anarquia e anarquismos Daqui já posso deduzir que não basta enveredar pela leitura fácil do que é ou se entende por anarquia, o que acabaria sendo, sistematicamente, mais um desígnio ou um instrumento dos modelos anarquistas. Sem menosprezar outros autores, atentemo-nos para o léxico daqueles que tentaram descortinar através das suas obras o que entenderam por anarquia. Pierre Joseph-Proudhon, no livro O que é a propriedade (1997), escreveu que a anarquia era: “absência de um mestre, de um soberano.” Em outras páginas desse livro, num diálogo com um leitor fictício , continuou: “Bom! Você é um democrata?” “Não.” “O quê?” “Você gostaria de viver numa monarquia?” “Não.” “Um constitucionalista?” “Deus me livre.” “Então você é um aristocrata?” “Não mesmo!” “Você quer uma forma mista de governo?” “Ainda menos.” “Então o que você é?” “Eu sou um anarquista.” Mais tarde, Élisée Reclus (2006), a partir das suas várias obras, permite-nos extrair uma concepção mais elaborada e adequada do conceito, descrevendo a “anarquia como a mais alta expressão da ordem sem dominação e sem coação”. Sem dúvida alguma, para mim, esta análise de Élisée Reclus é a que mais se adequa a todos os tipo de modelos de anarquismo, embora saibamos que anarquia não é nem pode ser um ismo qualquer que se transforma num modelo qualquer. Por outro lado, Errico Malatesta, na sua obra Anarquismo e Anarquia , salienta a diferença entre os dois conceitos: Para ser anarquista, não basta reconhecer que a anarquia é um lindo ideal, coisa que, ao menos em teoria, todos reconhecem, incluindo os poderosos, os capitalistas, os policiais e, creio eu, até mesmo Mussolini. É necessário querer combater para chegar à anarquia, ou ao menos se aproximar dela, tratando de atenuar o domínio do Estado e do privilégio, e reivindicando sempre mais liberdade e mais justiça. (MALATESTA, 2009, p. 7) Desta incipiência ou inexistência de uma epistemologia e de uma etimologia profunda e sistemática acerca do que se entende e compreende por anarquia e anarquismos cavou-se um fosso dialógico entre ambos, ao ponto de se cair, facilmente, na ignorância, na especulação, no sectarismo das seitas ideológicas e religiosas que se traduziram em lutas fratricidas entre modelos anarquistas. Da mesma maneira que o anarcossindicalismo falhou nos seus objetivos históricos de emancipação social no contexto do desenvolvimento do capitalismo e da implementação do socialismo real na URSS, o mesmo se pode deduzir do modelo anarcocomunista ou comunista libertário, que foi testado em Espanha entre 1936-1939. Desses falhanços surgiram novas hipóteses de potenciação de modelos anarquistas, entre os quais se destacam o anarconaturismo e o anarcoindividualismo. Por razões plausíveis da singularidade e identidade comportamental qualquer indivíduo que quer ser ator de liberdade e de criatividade, o que por arrastamento indicia a ausência de qualquer relação social em sujeições ou coações grupais, organizacionais, societais, ideológicas, religiosas ou políticas, adere, em princípio, a esses modelos anarquistas. O anarcoindividualismo é muito difuso pela individualidade de cada um e é, na minha opinião, o que
mais escapa aos constrangimentos formais, institucionais e ideológicos de qualquer modelo anarquista no que diz respeito ao que entendo por anarquia. O anarconaturismo tenta limitar uma relação dialógica, espontânea e informal da espécie humana com as espécies animais e as espécies vegetais. Se tivermos presente o atual estado de destruição e de degradação desta relação, se pensarmos a anarquia como o espaço-tempo das pulsões de vida da espécie humana em relação à natureza, então a espécie humana está a mais no planeta Terra. Como modelo, o anarconaturismo tem potencialidades imensas como orientação modelar da espécie humana no sentido de inverter, historicamente, as pulsões de morte, que são o fundamento vital da espécie humana. Se for alterada esta situação, este modelo tem potencialidades únicas, mas se for levado até suas ultimas consequências nunca poderá ser um modelo da anarquia, mas como modelos o anarcoindividualismo e o anarconaturismo também são a negação da anarquia. Entrando agora num outro modelo anarquista, dinamizado por Murray Bookchin (1999) na décadas de 1960, 1970, 1980, 1990 e inícios do século XXI, vemos emergir o anarquismo social e o municipalismo libertário mesclados pela ecologia social e a educação, com o intuito expresso de atualizar e mudar, radicalmente, os pressupostos da revolução social assente na luta de classes e na ação coletiva do anarcossindicalismo. Com base nesse modelo, tive, mais uma vez, a possibilidade de experimentar as contradições e conflitos entre modelos anarquistas que interpretam, explicam, compreendem e vivenciam a anarquia à sua medida e à sua imagem. Numa assunção teórica e prática com o intuito expresso de expansão desse modelo à escala internacional, com iniciativa do Instituto de Ecologia Social (Vermont-EUA) e Black Rose Books ( Montréal -Québec) e organização do Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações (SOCIUS) e do Instituto Superior de Economia e Gestão – Universidade Técnica de Lisboa (ISEG-UTL) foi realizada a “Conferência Internacional sobre Ecologia Social e Política – Municipalismo Libertário”, em Lisboa, nos dias 26, 27 e 28 de agosto de 1998. Foi um acontecimento libertário com alguma visibilidade social internacional, não só pela idoneidade e número de participantes envolvidos como também do número de países da Europa Ocidental e Europa Oriental, EUA, Canadá, Austrália e América Latina. No meu caso pessoal, tratava-se de divulgar as análises e de refletir sobre o valor heurístico das obras de Murray Bookchin, sobretudo tendo presente o impacto das suas teses sobre anarquismo social, municipalismo libertário e ecologia social. Não obstante subsistir a minha identidade para os pressupostos analíticos da ecologia social o mesmo já não o diria em relação ao anarquismo social e ao municipalismo libertário. Como estava numa fase de abertura a debates e a reflexões de toda a natureza, desde que houvesse uma postura comportamental de liberdade e de criatividade, como presidente do SOCIUS e presidente do Conselho Pedagógico do ISEG-UTL, entendi, por bem, apoiar a iniciativa. Logo que os mentideiros e os especuladores das seitas anarquistas tiveram conhecimento desssa realização, caiu o carmo e a trindade sobre os organizadores do evento e os autores do modelo anarquista que era objeto
de intervenção pública. Claro que nem todos os modelos anarquistas existentes nessa época em Portugal utilizaram os mesmos métodos que passarei a descrever, limitando-se a fazer críticas modelares normais que deveriam fazer sem atingirem o campo da malvadez, da calúnia e da provocação, sem olhar a meios para atingirem os seus desígnios de poder e de liderança. Mas os que se autodenominavam de anarquistas puros e radicais eram o apanágio do modelo anarquista-insurrecionalista, e para superar e extinguir o capitalismo e o Estado com base na violência, propunham utilizar este método sem fazer qualquer concessão a ambos. Um ano antes e nos meses precedentes ao evento, mais uma vez o grupo Ação Direta, auxiliado, internacionalmente, pela Associação Internacional de Trabalhadores – Confederação Nacional de Trabalho (AIT-CNT) deu-se ao luxo de difundir uma série de comunicados de múltiplas proveniências sem ter a coragem de dar a cara, simplesmente para denegrir o modelo anarquista de Murray Bookchin como a expressão genuína do reformismo anarquista no que concerne aos postulados do municipalismo libertário. Por outro lado, o grupo de organizadores, no qual me encontrava, aparecia nesses comunicados como os vendilhões do templo que se ofertavam às benesses do Estado e da banca. Indo mais longe nas suas “denúncias revolucionárias” e provocações, enunciou um programa para a Conferência no qual constavam ministros do governo e deputados comunistas, sem sequer nós ainda sabermos qual seria o programa, que só meses mais tarde foi consumado. Evidente que existiram tentativas insurrecionalistas de sabotar o local do evento por métodos violentos, mas isso nunca foi conseguido porque a organização dissuadiu-os desses intentos e o grupo Ação Direta teve muitas dificuldades de arranjar militantes e acólitos para esse efeito, razão pela qual a sabotagem não se realizou. Nessa panaceia de defesas de capelas e seitas ideológicas/religiosas muitas vezes há líderes ou gurus que se consideram donos da verdade, incluindo ou excluindo militantes que por uma razão qualquer não seguem o modelo anarquista que professam, e que não têm pejo algum em denegrir ou destruir quem pensa e age de modo diferente em função do modelo anarquista que defendem No meu caso pessoal eu estava longe de defender, acerrimamente, o modelo do anarquismo social/municipalismo libertário que foi objeto de reflexão em agosto de 1998, em Lisboa. A minha predisposição era aberta a todas as perspectivas que provinham do étimo e da etimologia do conceito anarquia, não obstante estar com armas e bagagens identificado com o modelo do anarquismo individualista e o modelo do anarconaturismo. Nessas circunstâncias, a importância da “Conferência Internacional sobre Ecologia Social e Política – Municipalismo Libertário” resumia-se a uma probabilidade de interação, reflexão e comunicação da obra de Murray Bookchin, assim como da problematização da atualidade do movimento libertário à escala internacional. Não o entendeu assim o grupo Ação Direta, razão pela qual tenha publicado uma série de comunicados nojentos e provocatórios, secundados pela CNT, AIT e FAI sediadas em Espanha, que não se coibiram de traduzir e publicar esses comunicados da Ação Direta e, em contrapartida, negaram publicar as minhas respostas com o intuito explícito de repor a verdade dos fatos. O que é mais paradoxal, para não dizer absurdo, é que estas organizações
anarquistas da Espanha que defendem o anarcossindicalismo e o anarcocomunismo/comunismo libertário, nesse momento histórico tenham criticado, com muita veemência, a obra de Murray Bookchin como sendo um modelo anarquista reformista, e passados alguns anos, pelo fato dos seus modelos anarquistas estarem mergulhados numa crise profunda, tenham se tornado nos grandes apologistas de divulgação do modelo do anarquismo social criado por Murray Bookchin. Daqui resulta uma grande lição de como os modelos anarquistas são, antes de mais, perceções, interpretações ideológicas e religiosas, leituras e vivências diferenciadas do étimo anarquia, e não o sentido profundo da sua etimologia, e ficam pela superfície modelar das ideologias. É em função destes pressupostos básicos que cada indivíduo se comunica, dialoga, conflitua, contrasta e se contradiz nos diferentes espaços-tempos em que interage e se relaciona. Quando se passa a uma esfera comportamental grupal ou organizacional engendram-se sínteses que se traduzem na construção de um modelo com uma ideologia e um líder específicos. Os modelos anarquistas não escapam a estas vicissitudes. Esse caso que acabei de sublinhar do final do século XX em Portugal nos diz que a anarquia para o modelo insurrecionista é completamente diferente ou está a cem anos-luz do que o modelo do anarquismo social/municipalismo libertário almeja realizar, ou, em última instância, do anarcopacifismo ou do anarquismo cristão. Estes exemplos que foquei foram vivenciados por mim, mas ainda podia socorrer-me de outros exemplos que tive oportunidade de presenciar em Espanha, França e Brasil Todos eles, sem exceção, são mais do mesmo tipo. Porque a força e a expressão da ação coletiva dos oprimidos e dos explorados não se desenvolvem no sentido da revolução social, da extinção do Estado e do capitalismo, a culpa é sempre do modelo anarquista e dos seus líderes e ideólogos. Este processo de culpabilização induz a ajuste de contas para quem definiu as estratégias e as táticas. No caso do militantes de base, geralmente, acontece a debandada geral. Em quase todos os modelos dos anarquismos que sublinhei, os que têm maior probabilidade de não ocorrerem estas peripécias de falência histórica, no meu entendimento, são o anarconaturismo, por está relacionado, fundamentalmente, com o conteúdo das relações da espécie humana com as espécies animais e espécies vegetais, eo anarco-individualismo, que não sofre a erosão perversa dos processos de socialização e de sociabilidade determinados pela autoridade hierárquica formal e dos processos de decisão e de liderança em qualquer grupo ou organização. No atual contexto histórico, sou de opinião que os modelos anarquistas com mais chances de assumirem visibilidade social no contexto das sociedades contemporâneas decorrem de contingências das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Destas contingências destaco três tipos: anarcohackerismo, anarquismo cibernético, anarquismo digital. Não obstante estarem longe de uma leitura codificada etimologicamente da anarquia como “um caos auto-organizado sem deuses e sem amos. A anarquia é e só pode ser uma probabilidade não linear no espaço-tempo do universo” (FERREIRA, 2016). Nesse sentido, as possibilidades da perceção, da cognição e da emoção são mais suscetíveis de se traduzirem em interações com as TICs, nas quais a informalidade, a espontaneidade, a criatividade e a
liberdade podem emergir com maior acuidade.. A interação de qualquer indivíduo com qualquer máquina do ramo das TICs, desde que seja balizada pela criatividade, a liberdade, a espontaneidade e a informalidade comportamental a partir dos seus órgãos sensoriais, está numa probabilidade não linear de aproximar-se com o que considero de anarquia, sabendo de antemão que são integrantes de modelo de anarquismo que acabei de referir. Em todos os grupos em que estive inserido era um crime afirmar que nesse grupo existiam líderes, porque a veleidade dessa afirmação acarretava sempre uma heresia uma vez que, por imperativo categórico, num grupo ou organização que se considerasse anarquista era contraproducente ser líder ou liderado, na medida em que essa relação justificava a desigualdade entre companheiros e, consequentemente, a dominação. Este tabu foi superado pela inexistência de relações sociais institucionalizadas e formalizadas, mas por evidências empíricas que constatei ao longo da minha vida apercebi-me que pelos traços de personalidade singulares que algumas pessoas ostentavam, nomeadamente inteligência, comunicação, empatia, criatividade, espontaneidade, elas tinham grande facilidade de emergir como líderes naturais/informais. A razão plausível da existência de líderes nos vários modelos de anarquismo provém destes fatores. Não tinham dúvidas de que a generalidade da criação dos modelos anarquistas ao longo da história advém ou tem a sua proveniência na obra de autores emblemáticos: comunismo coletivista (Miguel Bakunine); anarcocomunismo (Pedro Kroptknine); comunismo libertário; anarcossindicalismo (Pierre Joseph-Prodhon e Fernand Pelloutier); anarcoindividualismo (Emile Armand), anarconaturismo (Élisée Reclus); anarcocristianismo (Leon Tolstói); anarcopacifismo (Henry David Thoreau); anarcoinsurrecionalismo (Alfredo Bonanno), anarcofeminismo (Maria Lacerda de Moura, Emma Goldma); anarcoprimitivismo (John Zerzan); Zonas Autônomas Temporárias (Hakim Bey); anarquismo social/ municipalismo libertário (Murray Bookchin); anarquismo cibernético (John Duda) ; anarco-hacktivismo (LulzSec e Anonymous); anarquismo de ficção científica (Ursula K. Le Guin). Com base nesta descrição sumária é perfeitamente pacífica a afirmação de que os líderes dos modelos anarquistas, na sua grande maioria, são pessoas que fazem parte do mundo dos intelectuais, sejam eles provenientes da ciência, das academias, do romance, da literatura, das ciências sociais e humanas. A razão plausível deste fato radica na criatividade e dimensão analítica da concepção de cada modelo anarquista per si e a sua plasticidade social no contexto das mudanças e transformações sociais, econômicas, políticas e culturais com forte probabilidade de caminhar no sentido do fim do Estado e do capitalismo. As organizações e grupos de todo o tipo que enformam a vida quotidiana dos modelos anarquistas, na maioria dos casos, sujeitam-se a criar situações de lideranças e de líderes que reproduzem os autores carismáticos citados, não descurando também as qualidades intrínsecas de capacidades interativas e relacionais de certos líderes que emergem na consecução experimental daqueles ou daquelas que evidenciam atributos comunicacionais, afetivos e emocionais excepcionais e que na vida quotidiana, por tal, só por si explicam a existência de líderes no seio dos grupos e organizações que perseguem estratégias e objetivos singulares de qualquer modelo anarquista.
Outro ponto bastante relevante circunscreve-se ao conceito e à prática do poder no seio dos grupos e organizações anarquistas. Variadíssimas vezes em colóquios, debates ou em discussões de grupos escutei sempre o mesmo dilema dicotômico: o poder e, consequentemente, o seu exercício, é algo que é sempre exterior aos anarquismos. A sua legitimidade, institucionalização e formalização encontram-se nas várias instituições e estruturas do Estado e nas organizações e empresas do capitalismo através de estruturas, funções inscritas na divisão social do trabalho, autoridade hierárquica formal, processo de tomada de decisão e processo de liderança. Se bem que em termos do poder formal possamos extrair evidências empíricas a este respeito, quando passamos para os espaços-tempos comportamentais informais e espontâneos, nada nos impede de pensar que os espaços-tempos dos grupos e organizações dos modelos anarquistas sejam dotados de emergência de exercícios do poder com evidências manifestas em comportamentos que vão buscar a sua fonte em contextos-situação de dominações físicas, mentais e psíquicas, em interações sociais e relações singulares em termos intrapessoais, interpessoais, intragrupais, intergrupais e intraorganizacionais. Esta dimensão de luta pelo poder pode explicar, muitas das vezes, as polêmicas, expulsões, cisões, traições, sanções, definhamento e morte histórica de muitos grupos e organizações identificados com os modelos anarquistas. Uma outra vertente da qual se podem tirar ilações da inexistência de identidade analítica e prática reporta-se ao que considera ser anarquista ou não ser anarquista, ser revolucionário ou reformista. Em relação ao conceito de anarquia, essa análise é impossível de realizar porque a anarquia, como já referi, etimologicamente, não é um modelo nem pode transformar-se num ismo, como é apanágio de todos os modelos, inclusive o anarquismo. Tudo aquilo que eu foquei até agora como episódios hipotéticos de polêmicas, expulsões, cisões, traições, sanções é bastante elucidativo para ilustrar episódios de desvios ideológicos que eu protagonizei no seio do coletivo editorial da revista Utopia entre 1995 e 2012. O que prevalecia nas discussões ideológicas quando da leitura e aprovação de qualquer artigo. Desde o número um da revista Utopia , publicado em 1995, ate o número vinte, publicado em 2005, com controvérsias ideológicas pelo meio e aderência a modelos anarquistas distintos, a margem e a autonomia de liberdade e criatividade nunca foram negadas a qualquer modelo. Todavia, as mudanças ideológicas e analíticas da minha parte desmotivaram-me a continuar a participar de discussões que considerava estéreis e infinitas porque tinha chegado à conclusão que anarquia e anarquismo, embora familiares, eram, em última análise, distintos. Os modelos anarquistas eram uma interpretação, explicação e compreensão da anarquia, nada mais que isso. Quando qualquer indivíduo adere a um modelo anarquista é porque está identificado com os seus princípios e práticas e também porque, ao modelar a sua ideologia como a mais revolucionária ou reformista, predispõe-se a seguir um conjunto de regras e normas que obedecem a uma lógica de uniformidade comportamental. Qualquer desvio ou traição modelar no que concerne à ideologia de caráter prescritivo sofre, inevitavelmente, as sanções disciplinares de qualquer líder de qualquer modelo anarquista. Sendo assim, não podemos nem devemos continuar a refletir e a seguir os
ditames civilizacionais judaico-cristãos que partem do princípio de que o poder mau é externo aos modelos anarquistas e que o poder bom é aquele que subsiste ao nível do funcionamento interno das organizações e grupos que alimentam a historicidade dos modelos anarquistas. Se formos mais longe na análise do poder e procurarmos situá-lo em contextos-situação microssociais, então o dilema da emergência do poder é um assunto de causalidades e efeitos que começa e acaba na ação individual e coletiva de cada indivíduo. Desta dimensão podemos extrair uma série de ensinamentos que estão diretamente reportados a relações sociais cuja essência é bastante visível nas relações intrapessoais e interpessoais, para chegar ao nível intragrupal e intergrupal. Nessa ótica, não podemos imaginar o exercício do poder derivado só de constrangimentos estruturais e institucionais provenientes do Estado e do capitalismo, mas também do processo de aculturação histórica desenvolvida pela civilização judaico-cristã, não esquecendo, bem entendido, o caráter de cada indivíduo, seja ele proveniente de laços genéticos familiares hereditários, seja a distinção singular do comportamento de cada indivíduo em interação ou em relação social. Dito de outra forma, não podemos continuar a dicotomizar o interno versus externo, nem podemos continuar a opor modelos anarquistas a outros modelos anarquistas, porque se parte do princípio de que uns são revolucionários e outros são reformistas. A fundamentação da minha opinião é clara a este respeito. Etimologicamente, o conceito de anarquia prescinde de analisar qualquer fenômeno de bem versus mal e sobretudo de analisar qualquer comportamento individual identificado com bons ou maus valores, boa ou má moral, boa ou má uniformidade comportamental. Os modelos contrastantes que se reclamam do anarquismo muitas vezes são criados por razões de moda ou de pura ortodoxia ideológica. Aqueles que perduram como anarcossindicalismo têm uma raiz e uma expressão histórica situadas em alguns países da Europa e da América Latina nos finais do século XIX e primeiras décadas do século XX. Se pensarmos na permanência e ascendência privilegiada do anarcossindicalismo nesse período histórico, uma parte substancial da hegemonia e plasticidade social do modelo anarcossindicalista deve-se ao seu caráter autossustentado da produção, distribuição, troca e consumo de riqueza social a partir da condição-função dos trabalhadores assalariados. O enaltecimento ideológico da vocação revolucionária e da luta pela emancipação social tanto poderia estar próximo da ideologia marxista da condição-função do proletariado como da própria condição-função do operariado. Seja como for, na gênese da ideologia do anarcossindicalismo, os trabalhadores assalariados não eram somente vítimas da escravidão do capitalismo e do Estado, para além disso persistia a sua vocação histórica de serem os seus únicos coveiros de forma atempada e adequada. Dentro do campo que denomino de ortodoxia ideológica permito-me enunciar o comunismo libertário, o coletivismo libertário e o anarcocomunismo. Embora as diferenças entre esses não sejam importantes, os seu testes mais relevantes como modelos anarquistas emergiram com alguma acuidade quando da realização da revolução social em Espanha, em 1936-1939. Esta leitura ideológica que levou à construção de uma síntese
entre o comunismo e o anarquismo deixa de estar determinada pelos princípios e práticas do anarcossindicalismo identificados com a ação coletiva dos trabalhadores assalariados, para atravessar a sociedade e o Estado, mantendo-se a proeminência da luta de classes e a desigualdade entre classes sociais que, em função disso, culminarão na dinamização da revolução social. Claro que as lógicas de liderança ideológica resultam mais das ações heroicas em contextos revolucionários do que das deduções teóricas extraídas de alguns autores com renome intelectual, como foram os casos de Diego Abad de Santillán, Frederica Montsney e Horário Prieto etc. Numa opção ideológica de liderança mais pragmática e violenta identificada com a ação de Buenaventura Durriti, Garcia Oliver e Francisco Ascaso na revolução espanahola de 1936-1939, podemos perceber os contornos dos conteúdos revolucionários do modelo do anarcoinsurrecionalismo. Este modelo foi várias vezes objeto de tentativas revolucionárias, e na sua grande maioria quase revelaram-se frustradas, sobretudo aquelas que visavam mudanças macrossociais. Apesar de o anarconaturismo e o anarcoindividualismo partirem de pressupostos analíticos e práticos diferentes, subsistem grandes pontos de contato e de identidade entre ambos. Sendo modelos, também aplicam a velha máxima da uniformidade e controle comportamental, que consiste, no primeiro caso, em interagir com quaisquer espécies e animal ou espécie como um ser de pulsões de vida em detrimento das pulsões de morte; e no segundo caso, em que a soberania individual, no caso específico da liberdade e da criatividade de qualquer indivíduo, sobrepõe-se a qualquer constrangimento moral, ético, institucional, estrutural do Estado, do capitalismo, dos povos, comunidades e família. As lideranças deste tipo de ideologias dos modelos anarquistas em análise têm tendência a desenvolver de modo mais profícuo do que os modelos clássicos que já foram objeto de análise. A razão é muito simples; a deterioração das relações entre a espécie humana e as espécies vegetais e as espécies animais, para além de se traduzirem no aumento do buraco da camada de ozônio associado aos gazes de efeito estufa, produz uma crise climatérica cada vez mais difícil de controlar pela espécie humana. A amplitude e a natureza desta crise potenciam o fim da espécie humana e de todas as outras espécies. O anarconaturismo, como modelo, pretende tão só um equilíbrio dialógico com a natureza, prescindindo de qualquer postura comportamental que vá buscar a sua razão nos valores civilizacionais judaico-cristãos e fundamentos do progresso e da razão impostos pelo Estado, sociedades, povos, comunidades e famílias. Quanto ao anarcoindividualismo, assim como em relação ao anarconaturismo, podem emergir tipos de liderança identificados com a ideologia do individualismo, já que este encerra em si uma postura comportamental da recusa de qualquer líder hipotético num grupo ou numa organização. Ou seja, uma premissa básica do anarcoindividualismo é que cada indivíduo é líder dele mesmo. Se tivermos em linha de conta a destruição da natureza pela via da guerra e da destruição das espécies animais e espécies vegetais então o anarcopacifismo associado ao anarconaturismo de David Henri Thoreau é cada vez mais importante para os movimentos sociais que procuram evitar a morte da espécie humana e de todas as outras espécies.
Como modelos ou leituras da anarquia, na minha opinião, esses dois são os que mais se adequam à evolução das sociedades contemporâneas e, logicamente, são os que têm mais probabilidades de transformarem-se em modalidades de ação individual e coletiva com manifestas repercussões nas lutas contra o Estado, capitalismo, comunismo, socialismo, fascismo, democracia etc. A razão é simples e fácil de constatar. Quando olhamos para as contingências das TICs e apercebemo-nos do que os hackers podem realizar através da informática na criação do modelo anarco-hacktivismo, podemos ficar atônitos e siderados, mas de fato só a individualidade e a liberdade de cada pessoa singular podem nos explicar o sucesso do acesso público a um tipo de informação que põe em causa os senhores do poder público e privado. Embora as premissas comportamentais do modelo anarcohacktivismo sejam, historicamente, distantes do modelo anarcoindividualismo, no entanto, pela permanência estruturante das variáveis da liberdade e da criatividade a similitude é grande. Se pensarmos bem em algumas manifestações ecológicas e ambientais nas sociedades contemporâneas é evidente que algumas estão identificadas com o modelo anarconaturista de outrora. Todavia, sabemos bem que, atualmente, estão a nascer e a se desenvolver uma série importante de grupos e manifestações cujo problema principal incide na defesa do planeta Terra. E que muitos desses grupos e manifestações não têm muito a ver com a essência do anarconaturismo, não podemos nem devemos pensar que as pontes de contato são tênues. Dos modelos recentes do anarquismo, o que teve maior visibilidade social foi o anarquismo social/municipalismo libertário de Murray Bookchin. Com a morte desse em 2006, a pujança das teses sobre o anarquismo social e o municipalismo libertário foi perdendo força, ao ponto de ter pouca expressão, não mais do que os modelos anarquistas clássicos. O anarcoprimitivismo de John Zerzan pretende limpar o presente e o passado e começar do zero, prescindindo de qualquer tecnologia e princípios inculcados pelo progresso e pela razão. O modelo anarquista tem alguns simpatizantes, mas não é muito expressivo mundialmente falando. Um outro modelo anarquista em voga cinge-se às Zonas Autônomas Temporárias (ZAP), elaborado por Hakim Bey. A ideia central das ZAPs consiste na criação de grupos, bandos ou coagulações de natureza voluntária com pessoas afins. Para conseguir os objetivos de maximização de liberdade nas sociedades contemporâneas atuais haveria que recorrer a práticas hierarquizadas mínimas, dando azo a que emergissem redes sociais independentes, com práticas singulares de convívio e comunicações dialógicas, fora do controle do Estado, eludindo assim as suas estruturas formais. Este modelo foi muito discutido no seio do anarquismo internacional, mas as suas repercussões não são muito visíveis. Todo indivíduo que se autolegitima como chefe ou líder de qualquer modelo anarquista geralmente o faz num grupo ou numa organização, dificilmente o consegue quando é um intelectual reconhecido nos meios anarquistas, tanto mais que a maioria desses intelectuais já não estão entre os vivos. Este nos diz que a autolegitimação de qualquer indivíduo em um modelo anarquista só é possível de ocorrer em grupos ou organizações anarquistas em que é pacífico observar relações sociais ou interações sociais aos níveis intrapessoal, interpessoal, intragrupal, intergrupal e intraorganizacional.
Esta é uma realidade prática contingente que nos introduz à atual realidade do mundo anarquista da afirmação ou não da existência de líderes e de como a ação individual e coletiva dos líderes se concretiza em exercício do poder. Estas evidências empíricas ou até debates e discussões eram e são quase um tabu para a maioria dos anarquistas que integram os modelos que já abordei. A razão é simples, por imperativo ideológico os anarquistas são vítimas do .poder coativo do Estado e da sociedade capitalista. Por outro lado, não exercem qualquer função ou exercício do poder nessas instituições e organizações. Associado a esta análise, por sua vez, os anarquistas lutam contra esse tipo de poder e tampouco recebem privilégios ou emolumentos monetários de qualquer proveniência. Esta externalização do mal com base no exercício do poder situada no Estado e na sociedade capitalista leva muitos anarquistas a considerare-se vítimas desse poder e a transformá-lo num ritual simbólico existencial da defesa do seu modelo e da ideologia subjacente. Em quase todo o meu historial de integração em grupos anarquistas desde inícios da década de 1980 até 2004 sempre que abordava esta problemática do exercício do poder nos meios anarquistas, revelava-se um assunto tabu, porque qualquer anarquista, por definição deontológica e ideológica, é contra o poder, razão pela qual discuti-lo ou analisá-lo é um contrassenso. Só que eu assistia muitas vezes, a partir das minhas intervenções, a discussões infinitas sobre esta temática e eu próprio sentia-me mal porque falava mais alto para impor as minhas ideias ou então tinha a mania de não deixar falar ou não ouvir os interlocutores para infundir as minhas teses. Em função dessas excrescências comportamentais, interrogava-me se eu era ou não um ator de poder em relação aos meus companheiros anarquistas. Foi por ter uma sensibilidade crítica, relativamente à minha atuação, do meio anarquista que abandonei os debates e discussões e, por fim, a frequência dos modelos anarquistas e limito-me a sentir, pensar e agir no espaço-tempo da anarquia. Das bases analíticas sobre o poder no interior dos modelos anarquistas ele pode emergir em interações em que persiste a predominação estruturante de relações sociais informais e espontâneas que, por lógica própria, culminam quase sempre em processos de socialização e de sociabilidade da mesma natureza. Quando focamos a força estruturante intrapessoal queremos afirmar que cada indivíduo pode desejar, lutar, motivar-se para ser líder e como tal exercer o poder informal (ou até formal) em qualquer organização ou grupo anarquista. É evidente que para este efeito tem que possuir competências cognitivas e emocionais suficientemente dialógicas que criem empatias com os liderados, sobretudo nas relações interpessoais, intragrupais e intraorganizacionais. A luta pelo exercício do poder nas organizações e grupos anarquistas faz parte da normalidade dos modelos, tanto mais que não era possível, ao longo da história, explicar todas as cisões, expulsões, purgas e, como consequência, a criação de novos grupos e organizações. Não importa agora exemplificar todos os episódios históricos deste modo de atuar. No meu entendimento tudo isto surge em razão da luta pelo poder no seio de qualquer modelo anarquista e com a ideologia que o suposta. Por outro lado, não duvido de que esse processo e o conteúdo de luta pelo poder decorrem
bastante do caráter de cada indivíduo envolvido nessa disputa. Devo dizer que nesse aspecto tinha gente que se considerava anarquista, mas que demonstrou muitas vezes ter um caráter igual ou pior do que foi romanceado por Victor Hugo na sua obra Os Miseráveis . Daqui extraio uma base analítica: provavelmente, a essência intrapessoal de cada um ou cada uma que se diz anarquista é talvez a base mais importante de desejos de liderança e de exercício de poder nos modelos anarquistas.Ao longo deste capítulo não me tenho cansado de caracterizar os modelos anarquistas considerados, ainda que sumariamente, por mim como os mais importantes. Se eu tentar encontrar um fio condutor de identidade, de interdependência e complementaridade entre o que descrevi como modelos anarquistas e o conceito de anarquia, descubro entre as suas teorias e práticas uma probabilidade de familiaridade ínfima, mas nunca uma base de identidade profunda e extensa. As razões plausíveis dessa não identidade subsistem ao nível de uma análise consistente do que se entende por anarquia enquanto conceito com valor heurístico utópico e de probabilidade histórica não linear no espaço-tempo do universo. Como para os ideólogos do Estado e da sociedade em geral anarquia significava desordem e caos, a grande maioria dos anarquistas assimilou esse conceito como negativo e criou uma série de modelos para tornear essa ratoeira simbólica da civilização judaico-cristã. Outro aspecto relevante deriva da dificuldade, senão da impossibilidade, de transformar o conceito de anarquia num qualquer ismo ou modelo. A razão é bem simples. Qualquer modelo obedece sempre a pressupostos de regularidade, uniformidade, normalidade e ordem comportamental, em obediência estrita de controle dos seus princípios e práticas. Os modelos anarquistas incluem noções genéricas do conceito de anarquia que resultam na negação do Estado e do capitalismo e da necessidade histórica de realizarem a revolução social, mas isso só por si é irrelevante, porque a anarquia é negada pela natureza de algun modelos, como são os casos específicos do comunismo libertário, anarcocomunismo, anarcossindicalismo e o municipalismo libertário. Assumir o caos como a essência natural e fundamental é considerar que cada indivíduo da espécie humana tem a probabilidade não linear de enveredar pela heterotopia e pela utopia, prescindindo de qualquer instituição ou estrutura de normalização e controle comportamental, sendo função de causas e efeitos estritamente singulares de liberdade e criatividade. Sendo cada indivíduo um caos autoorganizado, a anarquia não se traduz ou desconstroi-se em modelos de qualquer espécie. Partindo deste princípio nuclear, a anarquia como heterotopia pode ser objeto e aprendizagem aqui e agora; como utopia é passível de ser idealizada num horizonte temporal mais vasto. Referências bibliográficas BOOKCHIN, Murray. Municipalismo Libertário . São Paulo: Editora Imaginário, 1999. FERRREIRA J. M. Carvalho. Vídeo Anarquia Aqui e Agora e Para Sempre . Rio de Janeiro: Somaterapia, 2016. MALATESTA, Errico. Anarquismo e Anarquia . São Paulo: Faísca Publicações Libertárias, 1990.
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Lisboa: Editora Estampa, 1997. RECLUS, Elisée. L’Anarchie . Paris: Editions du Sextant, 2006. 2 AS LUTAS ANARQUISTAS NO PRESENTE COMO EXPERIÊNCIAS: CONTRA AS UTOPIAS ¹ Acácio Augusto A anarquia e os anarquismos sempre estiveram relacionados à utopia. Seja com uma conotação positiva, seja negativa para desqualificá-la. Para citar duas referências bastante conhecidas, lembremos que há, de um lado, Karl Marx e Friedrich Engels, em O Manifesto do Partido Comunista , ² de 1848, em que listaram uma série de autores como “socialistas utópicos” com a intenção de formular suas teses sobre o socialismo científico e, dessa maneira, desqualificar os demais; de outro lado, há inúmeros relatos, livros e nomes de publicações que associam utopia à anarquia em sentido positivo, afirmando que as proposições libertárias formam a mais bela das utopias, a realização definitiva da liberdade e da igualdade. Sem se esquecer dos liberais e conservadores, que desqualificam a anarquia, em qualquer época, associando-a ao “crime”, à “anomia”, ao “terrorismo” e à desordem. O principal alvo de Marx e Engels era Pierre-Joseph Proudhon, que exercia forte influência entre os trabalhadores franceses desde a publicação de seu livro O que é propriedade? ,, ³ de 1840. Nesse escrito, além da conhecida reposta à pergunta do título, “A propriedade é um roubo!”, Proudhon cunhou o sentido moderno da palavra “anarquia”, não como baderna e desordem, como aparece nos textos dos contratualistas que justificam a existência do Estado, mas anarquia como o sentido mais perfeito da ordem. Em seu sentido positivo, a anarquia seria a realização dos ideais de liberdade e igualdade. Uma projeção que também pode servir a desqualificações. De qualquer maneira, seja em sentido negativo ou positivo, a palavra utopia na política moderna sempre esteve ligada a algo irrealizável, a uma meta longínqua que, na melhor das hipóteses, serve como referência para ações no presente, mesmo sabendo ser inalcançável. A utopia como o não lugar, espaço perfeito e, contudo, inexistente. No entanto, longe de ser uma formulação teórica ou projeção idílica de um futuro perfeito, a anarquia e os anarquismos designam um conjunto de práticas heterogêneas e heterodoxas. Mais uma vez, em contraste com seus adversários alinhados às fileiras do socialismo autoritário, os libertários não se dividem por escolas com pais fundadores, a exemplo das designações como marxismo, leninismo, trotskismo, maoísmo etc. As diversas formas nas quais se apresentam os anarquistas são diferenciadas por suas práticas específicas, como anarcoindividualismo, anarcocomunismo, anarcossindicalismo, anarcofeminismo, anarco-punk, anaco-queer e muitas outras, segundo os acontecimentos históricos. Para os anarquistas, a
liberdade não é um valor, um ideal, nem um princípio moral, mas uma prática que se realiza no interior de suas associações, segundo interesses específicos e declarados. A utopia, quando é buscada, ocorre no presente, e se faz na federalização das associações livres que não contraem obrigações que ultrapassem a liberdade da própria associação e a liberdade de cada vivente que a compõe. Por isso, a liberdade de secessão é prerrogativa inalienável de qualquer associação anarquista. Uma associação não vive da utopia moderna que é a imortalidade da espécie humana. Nessas miríades de práticas e associações que atravessam os convencionais tempos modernos ou pós-modernos, segundo os teóricos e historiadores, e que são levadas a cabo pelos anarquistas, a utopia não está no futuro, mas se realiza no presente, isto é, não se desloca no tempo, mas se instaura no espaço. Esta distinção das práticas históricas da anarquia levou Edson Passetti, ⁴ a partir da noção proposta por Michel Foucault, a caracterizá-las como práticas heterotópicas. Se as utopias, como escreve Foucault, consolam e produzem o espaço liso, as heterotopias desestabilizam e produzem contraposicionamentos. ⁵ Assim, “os anarquismos são heterotopias de crise, estão lá na fronteira com a sociedade primitiva, sociedade contra o Estado”. ⁶ E na produção desses espaços heterotópicos de crise, que se fazem nos ateneus, nas ligas operárias, nas chamadas escolas modernas ou racionalistas, nos bailes, nas festas, nas edições e publicações de revistas e jornais, enfim, que se fazem na vida das associações, é que se dá forma à impaciência da liberdade como cultura libertária . ⁷ Nessa cultura libertária se produz a vida libertária, uma vida que corresponde ao que Foucault ⁸ definiu, em seu último curso, proferido em 1984, como vida militante . Essa vida artista pode ser localizada no que o filósofo chama de trans-história do cinismo, que se inicia na Grécia Antiga com filósofos como Diógenes e atravessa práticas muito diversas que possuem como ponto de aproximação o desprezo à autoridade e a disposição agressiva em atacá-las, sob o risco de ser atingido pelo superior. E essa associação entre anarquia e cinismo não é mera suposição, uma vez que o próprio Foucault irá apontar o cinismo como algo vinculado à anarquia e às práticas anarquistas – em especial, ao terrorismo anarquista do final do século XIX, menos pelos atentados em si e mais pela disposição em sustentálos, mesmo diante da polícia e do tribunal, como um ato escandaloso que expõe as divisões, hierarquias e assimetrias da sociedade burguesa. Ao mirar a anarquia como prática heterotópica de crise, que desestabiliza hierarquias na produção da cultura libertária como vida militante , é possível deslocar analiticamente as lutas contemporâneas da utópica relação com a revolução. Assim, as lutas se liberam das direções de consciência, da busca liberal e neoliberal por direitos e melhorias, e das vanguardas ou elites que buscam governar a revolta por meio de um programa revolucionário. Interessa nesse texto a afirmação da revolta como antipolítica ⁹ que resiste às tecnologias contemporâneas de governo, sem pretensão de superá-las num futuro projetado em um “não lugar”, mas com disposição ao enfretamento que, no agonismo , produz a vida outra, a forma militante da anarquia contemporânea, uma vida em combate aberto, sem mediações ou plano estratégico, em referência ao que Proudhon nomeou como revolução permanente, a antipolítica como enfrentamento permanente dos poderes.
Anarquia, revolta e revolução hoje O final do século XX festejou o triunfo das democracias liberais e do que se chamou de capitalismo globalizado ou mundializado. A certeza de ter esmagado as utopias socialistas de transformação revolucionária da ordem social e política, após o ocaso da URSS, foi tamanha que se chegou ao ponto de se teorizar sobre o “fim da história” tal como a conhecíamos até então, a disputa pelos rumos da “humanidade” encontrava um vencedor nas democracias liberais capitalistas. Mas esse triunfalismo do capitalismo globalizado e da democracia (neo)liberal como única forma de organização política possível não durou muito. No primeiro dia de janeiro de 1994, em Chiapas, México, insurge o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) que, ao contrário do que noticiou a mídia global, não era contra a globalização em si, mas contra a homogeneização do planeta para a qual o capitalismo globalizado apontava. Essa outra forma de lutar contra o capitalismo era sintetizada em uma das principais proposições dos zapatistas, expressa nos comunicados do subcomandante Marcos, que os lançavam para o mundo por meio do seu laptop plugado à rede mundial de computadores desde a Serra Lacandona: “Nós queremos um mundo onde caibam vários mundos!”. ¹⁰ A insurgência do EZLN não apenas mostrou que as lutas pela transformação do mundo estavam ainda em curso, como revelou o extremo autoritarismo das democracias (neo)liberais triunfantes: um regime que se pretende não apenas global, mas universal, e que rechaça, violentamente, toda forma de vida que não se encaixe nesta modulação dominante. Dessa forma, povos autóctones e/ou indígenas, regiões consideradas “atrasadas” e formas não convencionais de vida deveriam ser varridas da Terra ou devidamente ajustadas às formas de vida para a democracia e o mercado. E foi contra isso que o EZLN se insurgiu. Isto aludia a uma crítica simultânea ao capitalismo e ao socialismo, na medida em que ambos orientam suas visões de mundo, suas utopias, pela perseguição inexorável rumo ao desenvolvimento e ao progresso como aceleração das forças produtivas e, com ela, geração de bem-estar coletivo resultante desse desenvolvimento, ou seja, a utopia política estatal do século XX. Essa dupla posição crítica irá aproximar muito do que o EZLN colocava como novo das concepções e proposições do anarquismo clássico. A expressão mais evidente desta aproximação se encontra no livro do cientista político Jonh Holloway, que apresenta o sugestivo título de Mudar o mundo sem tomar o poder , ¹¹ no qual ele parte da guerrilha zapatista para defender a emergência de uma nova concepção de revolução que não vise à ocupação do Estado como meta. Ora, não era disso que falavam os anarquistas desde, ao menos, as polêmicas entre Karl Marx e Mikhail Bakunin na Primeira Internacional dos Trabalhadores, no interior da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT)? Indo além das afinidades não declaradas entre zapatistas e anarquistas, a anarquia ganhará evidência no crepúsculo do século XX com o que ficou conhecido como movimento antiglobalização – nome atribuído pela mídia e recusado por muitos de seus participantes, preferindo chamá-lo de movimento por justiça global . De qualquer forma, em 30 de novembro de 1999, na cidade de Seattle, nos EUA, uma espetacular manifestação de rua, por ocasião de um encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC),
impediu que grandes líderes mundiais se reunissem em um luxuoso hotel da cidade. A composição dos manifestantes era híbrida e heterogênea. Entre os manifestantes nas ruas havia desde velhos sindicalistas e novas ONGs de defesa ambiental até grupos trotskistas e associações anarquistas. No entanto, entre as diversas maneiras de recusar o capitalismo global e buscar o seu fim por meio das lutas diretas de rua, havia uma predominância de proposições que habitavam o amplo arco que vai do reformismo liberal social, que admite e deseja a participação em eleições, acreditando e difundindo a responsabilidade socioambiental das empresas, até grupos que propunham uma revolução, seja aos moldes tradicionais do marxismoleninismo, seja nessa “nova” chave aberta pela guerrilha zapatista de mudar o mundo sem tomar o poder. Essa heterogeneidade de grupos, práticas e proposições animou uma intensa produção teórica e analítica sobre as novas formas de lutas anticapitalistas. A tese que acabou por se notabilizar foi a chave teórica proposta por Antonio Negri e Michael Hardt, que, ao se questionarem sobre o modo da soberania num mundo globalizado, chegaram à formulação da instituição de uma nova configuração da dominação global do Capital que chamaram de Império. ¹² Mas diferente do antigo Império romano, este atual não possui centro geograficamente localizável e, assim, se expande por todo território do planeta por meio do fluxo de capitais do mercado e do que eles nomeiam como produção do biopoder, em interpretação bastante peculiar da noção elaborada por Michel Foucault. A esse Império se contrapõe o conjunto híbrido e heterogêneo de ativistas que compõem o chamado movimento antiglobalização . Refazendo as composições dialéticas de forças antagônicas, os autores chegam a um novo sujeito da transformação, o qual nomeou de multidão , a saber, o conjunto de subjetividades dissidentes que se comunicam em resistência entre os que são responsáveis pela biopolítica da vida no Império. ¹³ Embora os próprios autores revisem esse conceito de multidão como novo sujeito da transformação, ela deixa de ser o anúncio de uma utopia reposta à distopia do capitalismo globalizado. Diante da utopia neoliberal de um mundo de paz perpétua fundado nas regras de cooperação e competição do mercado globalizado, tendo na democracia como modo de organização de toda vida sua forma política preferencial e desejável (mas não contingente, como mostra o caso da China), a cidadania global da multidão e sua produção biopolítica seriam a utopia a ser buscada como a concretização de um outro mundo possível . Expressão que não coincidentemente será o slogan dos encontros ocorridos no Fórum Social Mundial a partir de 2001, na cidade de Porto Alegre, Brasil. Esse último, a institucionalização dos movimentos de rua sob o guarda-chuva da socialdemocracia latino-americana. No entanto, em meio à multidão multicolorida do chamado movimento antiglobalização , há um traço sinuoso que se faz com e pela ausência de todas as cores. Um risco. Diante do triunfalismo neoliberal e dos esforços teóricos em repor antagonismos universalizantes das utopias humanitaristas, uma força estranha põe a nu o agonismo das relações de poder em resistência às tecnologias de governo. O que efetivamente impediu a fatídica reunião da OMC em Seattle, naquele inverno do Norte em 1999, foi a utilização, por pequenos grupos destacados da grande marcha, de táticas de bloqueio de ruas e contensão de barreiras policiais. Os
participantes dessa ação foram rapidamente nomeados de black blocs . Nomeados, mas não necessariamente identificados. A grande mídia, e mesmo a mídia alterativa, não sabia ao certo o que era aquela força que resistia aos bloqueios policiais ao mesmo tempo que atacava lojas de departamento e franquias de fast foods e redes cafés especiais. Mas a dificuldade em identificá-los não se dava somente pelo fato das partículas, os viventes que compunham aquela força, estarem com os rostos cobertos, compondo a um só tempo uma forma singular e indiscernível. A confusão de quem via tudo aquilo de fora se dava pelo fato de, diferente dos outros presentes na manifestação, não haver uma estratégia, uma pauta, um conjunto de proposições que correspondesse às ações do grupo – que nem mesmo enquanto grupo se colocava –, mas a execução simples e direta de uma tática de bloqueio. Enquanto era fácil identificar as proposições diversas dos diferentes grupos e entidades, que iam da regulação e taxação das transações financeiras globais até a construção de uma revolução política que passava pela oposição do constituinte ao instituído, entre os vestidos de negro isso era impossível. Sem cair na armadilha policial da identificação, é fácil compreender essa confusão que, em alguma medida, é deliberada. Depuis-Déri, cientista político que há muito tempo pesquisa os black blocs , apresenta um bom resumo de como eles são retratados pela mídia: quando um Black Bloc entra em ação, a resposta da mídia costuma seguir um padrão típico. Na mesma tarde ou na manhã seguinte, os editores, colunistas e repórteres falam mal dos arruaceiros dos Black Blocs, os chamam de vândalos. No dia seguinte, porém, o tom costuma ser mais neutro. Os leitores são informados de que os anarquistas estão por trás de táticas envolvendo armas como coquetéis Molotov, assim como o uso de escudos e capacetes para se defender. Esses artigos às vezes fazem referências a grandes Black Blocs do passado. Em seguida, citam alguns acadêmicos, assim como representantes da polícia e porta-vozes dos movimentos sociais institucionalizados, que se desassociam dos vândalos. No máximo, o jornalista cita alguns participantes do Black Bloc… ¹⁴ Esse itinerário se repete, passo por passo, toda vez que uma manifestação de rua tem uma intervenção da tática black bloc . No território dominado pelo Estado brasileiro, durante as jornadas de junho de 2013 e os protestos contra os megaeventos, em 2014, o caminho foi o mesmo. No entanto, há diferenças mais decisivas e que dizem respeito ao problema colocado aqui entre utopias e heterotopias. Os praticantes da tática black bloc , pelo fato singular de se denominarem como tática, não se submetem às estratégias que veem as manifestações de rua como um meio a partir do qual se atinge um objetivo maior, um fim. Não estão conectados à política, seja sob alegações reformistas ou sob brados revolucionários, que busca se instalar como força capaz de produzir efeitos de hegemonia em toda sociedade. Em poucas palavras, dispensam-se da utopia da revolução e afirmam a revolta, e sendo, por este movimento de revolta, antipolíticos . Tal atitude diante da luta já havia sido colocada pelos anarquistas ainda no século XIX, com o poeta e inventor do termo, Joseph Dejaque, na década de 1840, e Bakunin, posteriormente, que em seus
escritos da década de 1870 afirmava sua admiração pelo instinto antipolítico dos eslavos. ¹⁵ A atitude antipolítica está além e aquém da proposição de “mudar o mundo sem tomar o poder”, pois recusa a disputa pelo governo e pretensão de hegemonia, seja por meios democráticos ou revolucionários – conduta comum às forças políticas da modernidade, que sempre repõe a autoridade central tendo o Estado como referência, estejam essas forças à esquerda ou à direita. Como observou Albert Camus em seu ensaio sobre o homem revoltado: teoricamente, a palavra revolução conserva o sentido que tem em astronomia. É um movimento que descreve um círculo completo, que passa de um governo para o outro após uma translação completa. (…) Nisso a revolução já se distingue do movimento de revolta. ¹⁶ A revolta não tem meta, tampouco o objetivo de instalar, instituir ou constituir uma nova ordem. Seu movimento é de insurgência, não de volta completa. As revoluções, de Cromwell a Stalin, buscam completar a volta, que pode partir do movimento de revolta, mas, ao racionalizá-lo como tarefa revolucionária, repõe a soberania e institui uma nova forma de governo, por vezes mais tirânico do que aquele contra o qual a revolta inicial se insurgiu. A (re)aparição de praticantes da tática black bloc nos protestos de rua do chamado movimento antiglobalização em Seattle abriu espaço a um novo campo de ações contra a ordem capitalista e vinculado às práticas anarquistas. Hoje, não há manifestação de rua que produza um efetivo incômodo nas forças da ordem que não contenha a presença dos black bloc . No Brasil, embora desde o final do século XX grupos anarco-punks já tivessem lançado mão desta tática, foi com as chamadas jornadas de junho de 2013 que a tática se tornou notória. Mas o uso da tática black bloc segue com sua presença marcante, incômoda e intermitente em todo planeta. Para ficarmos em alguns exemplos, basta recordar da posse de Donald Trump, ¹⁷ nos EUA, em 2017, e do encontro do G20, em Hamburgo, na Alemanha, no mesmo ano. ¹⁸ Como observou o cientista político australiano, radicado na Inglaterra, Saul Newman, em entrevista a uma revista brasileira, os black blocs são hoje um símbolo importante da resistência, e até mesmo do surgimento de novas formas de políticas antiautoritárias. Eles simbolizam a ação direta, a vontade de enfrentar a violência policial, o anonimato e a invisibilidade. A face oculta tornou-se a imagem que define o ativismo político radical contemporâneo. ¹⁹ Na inaugural forma de protestos de rua espetaculares e hipermeditizados, Newman sustenta que a presença da tática “é um espetáculo de sua própria criação, um contraespetáculo que visa subverter e sabotar o espetáculo midiático que toda a política democrática se tornou”. ²⁰ Mas seria só neste campo do contraespetáculo, promovido pela presença dos black bloc , que estaria a potência das lutas anarquistas hoje? No abandono da utopia de revolução e na afirmação antipolítica da revolta como ação direta, o que mais se produz? E como os anarquistas se diferenciam dos ativistas?
Anarquia , novíssimos movimentos sociais e heterotopias Seria desnecessário lembrar que, em meio a esses embates de rua, a criminalização e a perseguição dos que praticam a tática black bloc em manifestações é constante. Também por isso, o rechaço à presença deles nas ruas é significativo. São ataques que partem, tanto do campo político identificado à esquerda, quanto da chamada ala de direita e do centro. Por ocasião dos protestos contra os megaeventos estatais-empresariais no Brasil (Copa do Mundo FIFA de 2014 e a preparação para as Olimpíadas de 2016), fiz o levantamento desses discursos na mídia brasileira e suas repercussões de ativação do sistema penal e políticas de segurança. ²¹ Mas para além dos discursos em torno da suposta violência, o que incomoda é como esta imagem contraespetacular, que emerge em meio às ordeiras marchas de protesto, noticia uma outra forma de atuação política que, paradoxalmente, é antipolítica . Esse aparente paradoxo se desfaz na medida em que se nota que os black bloc são uma força que não está inscrita no léxico moderno, e pós-moderno, da política que tem o Estado como categoria do entendimento. Nesse sentido, é preciso ressaltar que, ao contrário do que muitas notícias dão a entender, um bloco negro não insurge involuntariamente em uma manifestação, ainda que, pelo princípio da tática, não haja ligação orgânica entre os manifestantes. Para voltarmos ao acontecimento inicialmente indicado como emergência contemporânea desta forma de ação direta, o bloqueio das ruas de Seattle, em 1999, só foi possível porque várias associações de anarquistas residentes no território dominado pelo Estado dos EUA se articularam, estudaram as ruas, avaliaram as possíveis táticas. ²² Os bloqueios contra o G20 em Hamburgo, território dominado pelo Estado alemão, também aconteceram por meio de articulações transterritoriais de anarquistas que vivem no território dominado pelos Estados europeus. Os exemplos poderiam se multiplicar. Mesmo a espontaneidade das jornadas de junho de 2013, em território brasileiro, só pode ser compreendida se a remetermos aos diversos grupos e associações que já atuavam desde o final do século XX na produção de novas formas de manifestações de rua. Mas a questão não é quem são, mas como atuam e como se associam. Seja em Seattle, Hamburgo, São Paulo ou Rio de Janeiro, os viventes que se lançam à prática da tática black bloc em manifestações, quase que invariavelmente, estão presentes e ativos em diversos agrupamentos que se definem como grupos de afinidade ou associações anarquistas. ²³ São pequenas associações que vão desde grupos de estudos ligados ou não à universidade até okupas com atividades educativas e culturais, passando por centros de abrigo para refugiados e grupos de autodefesa, como veremos mais adiante ao tomar como referência os grupos e associações que atuam no território dominado pelo Estado grego. ²⁴ Em geral, essas associações são formadas por militantes em grande parte jovens, mas também por muitos envolvidos nas práticas anarquistas há mais tempo, sendo não tão jovens em termos de idade. Em grande medida são pessoas que passaram ao largo da politização em instituições como partidos e sindicatos. Mesmo entre aqueles que passaram por essas instituições, a recusa a elas, em algum momento em meio às lutas, é condição para esta forma outra de lutar. Ao mesmo tempo, a atuação desses grupos e associações não pode ser confundida com o trabalho institucional e/ou assistencial como se faz em agrupamentos como
ONGs e Institutos da chamada sociedade civil organizada. Essas associações não fazem uma política de reivindicações, mesmo que pontualmente se engajem em campanhas mais amplas. A antipolítica é a forma mesma da existência dessas associações, como as referidas acima. Ocupam-se tanto do trabalho de resistência ao acossamento do Estado e suas polícias (formando blocos negros em manifestações ou grupos antifa ), como inventam formas de autogerir a associação, táticas de recusa ao trabalho formal, locais de comida comunitária, grupos editoriais de zines, livros e periódicos, até mesmo assistência médica e grupos de autodefesa para pessoas perseguidas, como mulheres, gays, minorias étnicas, imigrantes classificados como ilegais, refugiados, ex-presidiários, moradores de rua e um amplo leque que no vocabulário clássico se chamariam lumpem ou marginais. É evidente que em diversos casos essas experiências se dão não apenas em tensão com as forças oficiais do Estado, como também em choque com as forças oficiosas do regime dos ilegalismos , em simbiose com o sistema de justiça criminal com suas polícias e lucratividades. Novamente recorrendo às experiências de Atenas, em 27 de fevereiro de 2016, integrantes do Centro Social Vox entraram em confronto com pequenos comerciantes de substâncias ilegais no bairro de Exarchia, em Atenas, um deles acabou gravemente ferido e gerando problemas com a polícia para os integrantes do Vox. ²⁵ Os anarquistas que vivem nesse bairro, liberado da presença de policiais devido a suas ações, vêm a presença dos chamados traficantes como uma tática do Estado grego para justificar a volta da polícia ao bairro e fazem campanhas para mostrar que quem leva as drogas para Exarchia é a própria polícia. ²⁶ A partir de 2019 essa estratégia de criminalização do Estado grego se intensificou e tem levado a polícia de volta à Exarchia, que invade e destrói diversos centro sociais anarquistas, moradias coletivas e centros de acolhida de imigrantes, sempre com o argumento do combate ao uso de drogas ilícitas. Como as referências anteriores sugerem, a experiência mais evidente das formas de ação direta produzidas por associações anarquistas e grupos de afinidade encontra-se, hoje, em Atenas, na Grécia, mais especificamente no bairro de Exarchia, conhecido como o “bairro dos anarquistas”. Ao contrário do que sugere a matéria publicada no New York Times , ²⁷ essas associações não estão “preenchendo os serviços de Estado esvaziados pelas políticas de austeridade”, mas existem apesar do Estado ou, mais precisamente, contra a forma-Estado e as tecnologias de governo que estão em seu entorno ou funcionam segundo sua racionalidade. Em poucas palavras: não esperam a chegada da revolução para viver a anarquia. Criam experiências que não reivindicam reconhecimento do Estado, e tampouco pretendem produzir efeitos de hegemonia da sociedade. As resistências às tecnologias de governo não estão norteadas por um utópico projeto de futuro, mas é condição para a existência no presente. Experiências estas que, como indicado no início desta exposição, fazem-se enquanto heterotopias de crise. No caso dos gregos, elas se fazem em meio ao que se denominou crise do capitalismo financeiro e das consequentes políticas de austeridade, uma crise que cada vez mais tomou a forma mesma de governo no capitalismo contemporâneo. Diante disso, não buscam solução para crise (reajuste governamental e continuidade da crise como forma de governo), mas habitam a crise como força que resiste às positividades que esta mesma
crise produz e multiplica. Dentre essas positividades, a principal é a renovação do desejo e da fé nos dispositivos de segurança estatal, ²⁸ tornando esquerda e direita um bloco indiscernível de adoradores do Estado. Enquanto, de um lado, os sacrifícios – das políticas de austeridade, tidos como incontornáveis, como os cortes orçamentários em políticas sociais – fazem com que todo o campo político identificado à esquerda se ajoelhe diante do Estado como grande provedor, expondo a sacal nostalgia da seguridade do Estado de Bem-Estar Social e a defesa de interesses corporativos, de outro lado, a situação de crise justifica um investimento (político e econômico) quase ilimitado no aparato de segurança, que vai da proliferação de leis de contenção e decretos de Garantia de Lei e Ordem (GLO), em geral justificados pelo combate ao terrorismo, até a renovação das polícias, com novas táticas e equipamentos de controle de distúrbios urbanos – medidas que, em geral, são relacionadas aos que se identificam com a direita, ampliando o racismo de Estado e satisfazendo os desejos fascistas que tendem a se ampliar em momentos de crise. Os campos políticos teóricos-fictícios (para não usar a palavra da moda: narrativas) são em tudo e ao final complementares, e acabam por lançar mão das duas táticas que compõem a estratégia de segurança do Estado, mesmo que modularmente, e conforme as circunstâncias, se dê mais ênfase ora à seguridade, ora às tecnologias de segurança para contensão e extermínio. Além deste trabalho de resistência às políticas de segurança, que é condição de existência de algumas associações libertárias, a maneira como elas se relacionam com a política também é decisiva para pensar as lutas anarquistas hoje. Elas se afirmam fora da política orientada pela referência ao Estado, e, se tomadas como movimentos sociais, podem ser compreendidas a partir do que Richard Day ²⁹ chamou de novíssimos movimentos sociais . Para Day, os movimentos sociais podem ser lidos, do ponto de vista sociológico, por meio de três grandes ciclos. O primeiro se inaugura com as lutas dos trabalhadores no século XIX, manifesto na história do que foi chamado de socialistas utópicos e suas experiências e proposições. Para esses, a transformação deveria ser total e levaria a uma nova forma projetada de organização social, como os Falanstérios de Charles Fourier ou as Sociedades Industriais de San Simon. A busca por cientificidade destas propostas, sobretudo em relação ao segundo, levou à planificação econômica e ao consequente domínio burocrático da sociedade, algo que, mais tarde, alguns autores da segunda metade do século XX chamarão de totalitarismo, ³⁰ com a supressão da distinção entre Estado e sociedade civil. Um segundo ciclo se abriu com as lutas de minorias ou por direitos civis, que se colocam por meio do protagonismo de agrupamentos da chamada sociedade civil organizada em busca de conquistar hegemonia a respeito de suas pautas específicas. A conquista se verifica pelo alcance de políticas afirmativas de Estado na forma de direitos compensatórios para determinadas minorias. Essa busca por reconhecimento, além do reforço dialético da relação entre sociedade civil e Estado (e, por esse motivo, se vê como uma política democrática e participativa, chamada de democracia radical), como advogam os chamados teóricos pós-marxistas ou neopopulistas, notoriamente Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, ³¹ gera, ainda segundo Richard Day, uma vinculação da subjetividade ao Estado, ao que acrescento: promove capturas e pacificação das lutas.
O terceiro e contemporâneo ciclo de lutas sociais é o dos novíssimos movimentos sociais , emergentes precisamente com o que ficou conhecido como movimento antiglobalização , que, associado à atitude crítica à modernidade e ao humanismo retirada dos escritos de Michel Foucault e de Gilles Deleuze e Félix Guattari, rompem tanto com a pretensão universalista por hegemonia, quanto com a busca por reconhecimento do Estado. Dessa forma, revertem a relação com a utopia, que, ao final, afirma-se na crença do Estado como campo e objeto das lutas políticas. Esse rompimento, para Richard Day, dá-se na valorização da lógica de associação pela afinidade que se produz em lutas pontuais e na criação de espaços de liberdade, inspirado precisamente nas proposições anarquistas, mas esvaziadas de suas pretensões utópicas herdadas do humanismo do século XIX. ³² Essa análise leva Day a concluir que a renovação estrutural baseada na lógica da afinidade se mostra menos utópica, por sua proposta de se realizar aqui e agora o que se deseja, que o reformismo e a revolução. Já que, de fato, ela diz respeito a construção de espaços, lugares e topias no sentido mais literal do termo. ³³ A vinculação com os anarquismos é explícita, já que ele encerra seu argumento remetendo a Paul Goodman, retomado por Colin Ward, que ao olhar criticamente para a história do anarquismo de tradição revolucionária diz que uma sociedade livre não pode ser a substituição da velha ordem por uma nova ordem, mas a produção de espaços cada vez mais livres até que estes ocupem lugar significativo da vida social, mesmo esta vida social estando sob o domínio do Estado e do capitalismo ³⁴ – uma afirmação evidentemente inspirada em diversas análises de Proudhon, pois muitos esquecem que o anarquista francês foi um dos primeiros a alertar contra os efeitos tirânicos do discurso e da buscar por hegemonia dos revolucionários do século XIX. Por fim, voltemos ao problema da utopia, à guisa de conclusão. As análises de Richard Day são relevantes para deslocar as lutas sociais do campo de relação com o Estado, ainda que o disciplinamento histórico-sociológico que ele realiza deixe espaço para generalizações e relações um tanto elásticas no que se refere às práticas anarquistas, tais como ver elementos anarquistas em lutas que não se declaram como tal, a exemplo dos zapatistas. Isso o leva a extrair das práticas ativistas uma nova política nãoestatal. Assim, Day vai além da noção de afinidade inspirada em Bakunin e estabelecida por Murray Bookchin ³⁵ , mas fica ainda circunscrito à relação com a política como escolha supostamente livre. Como anota Passetti, as afinidade s anarquistas tendem a se transformar em pluralismos, e as aproximações táticas com marxistas e liberais sociais tornam-se mais relevantes do que a franqueza amistosa na diversidade libertária. Acabam incorporados e incluídos aos marxistas; estes, por sua vez, colaboram na captura dos anarquistas, para lhes destinar uma posição subalterna, como no passado fizeram os bolchevistas com Nestor Mahkno e o exército ucraniano na Revolução Russa, até imobilizá-los democraticamente. ³⁶ No entanto, no caso da formulação de Richard Day há uma clara intenção, ao desenvolver o que ele chama de lógica da afinidade, de se desvencilhar
das aproximações com liberais e marxistas clássicos, mas o risco de diluição e imobilização democrática pelo pluralismo político não se dá mais por aí e sim pela aposta no ativismo, assim como a crença no futuro utópico acaba, de certa maneira, sendo a resposta pela qual ele retoma como devirrevolucionário, termo cunhado por Deleuze que busca equacionar a tensão entre revolta e revolução. E neste ponto há uma diferença notável entre a produção da vida militante como invenção antipolítica pela atitude de revolta e o que o resta como engajamento democrático-participativo (mesmo que radical) que se produz com todo ativismo, com toda uma nova produção de subjetividades políticas, inaugurada com o movimento antiglobalização . Em seu interior, porém, encontra-se, em tensão, política radical e antipolítica , ambas relacionadas, de forma diversa, tanto à anarquia como projeto utópico por meio da política radical, como à anarquia heterotópica, por meio da antipolítica . Ao opor a lógica da afinidade à lógica da hegemonia, sua análise ainda oferece espaço para repor a política, como política das afinidades, e para se refazer a utopia da sociedade livre e igualitária (ainda que em devir , pela comunidade que vem ) por meio da oposição entre Estado e sociedade como potência de espaços livres. Mesmo considerando que essa oposição favoreça a supressão do primeiro pela potência da segunda emerge a crítica que, em outros termos, Max Stirner já havia feito à Proudhon. ³⁷ Como anota Edson Passetti em relação às heterotopias anarquistas, os anarquismos são heterotopias. Abalam a sociedade e a política. E são abalados do lado de fora pela existência stirneriana. Não basta a luta da sociedade contra o Estado. É preciso mais que zona de conflito gerada por utopias e heterotopias modernas. Diante da criação, a invenção. ³⁸ Dessa maneira, a potência revoltada da anarquia contemporânea está em ir um pouco além (ou um pouco aquém) das novas formas de atuação libertárias dos movimentos e se dispensar dos ativismos. A potência libertária como invenção do militantismo está na afirmação da antipolítica não apenas como recusa do Estado, mas declaração de guerra às tecnologias de governo de si e dos outros. Enquanto a figura subjetiva da mulditão e de grande parte dos novíssimos movimentos sociais é o ativista envolto na participação e na contraparticipação, no espetáculo e no contraespetáculo, nas associações como heterotopias anarquistas de crise se produz a vida outra como vida militante não colonizada pela política. Se hoje, como afirma Foucault, as resistências às racionalidades específicas das relações agonísticas de poder estão nas lutas contra os processos de subjetivação que essas relações produzem, ³⁹ a revolta anárquica nos lança fora das utopias e um pouco além (aquém) dos movimentos, provocando experiências heterotópicas. Esta revolta nos lança nas lutas anárquicas do contra o que somos ! ⁴⁰ A vida da associação é a heterotopia que cada um experimenta na relação para consigo e na produção da vida outra, a vida militante liberada de sentidos, estratégias, teleologias e projeções utópicas. Não se confunde com engajamento ativista que pode ser capturado por busca de melhorias dentro de uma nova política que se anuncia. Trata-se do embate cínico contra a autoridade, as hierarquias, as assimetrias e as tecnologias de governo. E estar em relação agonística é saber que essa luta
não cessa senão no ato derradeiro da existência de cada um. Afastar-se das afinidades e afirmar a potência da associação livre é não se dispor às disputas e hostilidades ou às condutas políticas de convencimento e acusações. Como afirmaram Pavlos e Irina, em sua descrição do dezembro negro em Atenas, em 2008, quando as ruas foram incendiadas por centenas de pessoas revoltadas contra a execução pelas mãos da polícia de um jovem anarquista em Exarchia, “não era apenas a afinidade política que atraía as pessoas, mas sim a mentalidade da insurreição, o potencial comum de cada pessoa explorada”. ⁴¹ Essa atitude revoltada, diante de um acontecimento urgente, é o que acende a centelha que aquece a invenção da vida militante; o cuidado para manter o fogo da revolta é que faz a vida da associação anárquica; sua inscrição no rol dos ativismos é o arrefecimento. Por isso, o militantismo não pode ser reduzido às “conquistas”, mesmo quando estas estão liberadas de sua projeção no Estado e escapam às regulações do mercado. Eis o que se apresenta, em meio às lutas anarquistas hoje distantes dos espetáculos e contraespetáculos, não como política radical dos ativistas contemporâneos, como nomeiam Richard Day e Saul Newman ao aproximá-los dos anarquismos, mas como antipolítica que inventa a vida como militantismo, a vida anarquista. Anarquia como saúde e potência. Fogo! Aquele que aquece, ilumina e discerne. O fogo da antipolítica. 1 Uma versão reduzida deste artigo foi publicada na revista Cosmos & Contexto , CBPF, n. 29, setembro de 2017. 2 Marx, Karl; Engels, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista . Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Coleção Penguin Clássicos.) 3 Proudhon, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Tradução de Marília Caiero. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 4 Passetti, Edson. Heterotopias anarquistas. Revista Verve . São Paulo, NuSol, n. 2, p. 141-173, 2002. 5 Foucault, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas . Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 6 Passetti, Edson, op. cit., p. 169. 7 Passetti, Edson; Augusto, Acácio. Anarquismos e Educação . Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008. 8 Foucault, Michel. A coragem da verdade . Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 9 Augusto, Acácio. Política e antipolítica: anarquia contemporânea, revolta e cultura libertária . 2013. Tese (Doutorado) – PUC-SP, São Paulo. 10 Di Felice, Massimo; Muñuz, Cristobal (Orgs.). A revolução invencível: cartas e comunicados do subcomandante Marcos . Tradução de Cláudia Schilling e Valter Pomar. São Paulo: Boitempo, 1998.
11 Holloway, John. Mudar o mundo sem tomar o poder . Tradução de Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 2003. 12 Negri, Antonio; Hardt, Michael. Império . Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: São Paulo: Record, 2001. 13 Negri, Antonio; Hardt, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do Império . Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: São Paulo: Record, 2005. 14 Dupuis-Déri, Francis. Black Blocs . Tradução de Guilherme Miranda. São Paulo: Veneta, 2014, p. 20. 15 Sobre a relação entre revolta e antipolítica nos escritos de Bakunin, ver Augusto, Acácio. Revolta e antipolítica em Bakunin. Revista Verve . São Paulo: Nu-Sol, n o 26, p. 157-173, 2014. 16 Camus, Albert. O homem revoltado . Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 132. 17 Portal G1. “Washington tem protestos durante posse de Trump”, 20 de janeiro de 2017. Disponível em: < http://g1.globo.com/mundo/noticia/ washington-tem-protestos-durante-posse-trump.ghtml >. Acesso em: 30/8/2017. 18 “International anti-capitalist demonstration against G20 summit: G20 Welcome to hell”, 6 de julho de 2017. Disponível em: < https:// g20tohell.blackblogs.org/international-anticapitalist-demonstration />. Acesso em: 30/8/2017. 19 Locatelli, Piero; Vieira, Willian. “‘Black blocs são minoria, mas símbolo importante da resistência’, entrevista com Saul Newman”. Portal da Revista Carta Capital , 2 de agosto de 2013. Disponível em: < https:// www.cartacapital.com.br/sociedade/201cblack-blocs-sao-minoria-massimbolo-importante-da-resistencia201d-6046.html >. Acesso em: 30/8/2017. 20 Ibidem. 21 Augusto, Acácio. Protestos contra a copa do mundo de 2014 no Brasil: quando o enfrentamento coloca as posições das forças. Revista Esferas . Brasília: Universidade Católica de Brasília, ano IV, n o 7, p. 153-162, julho a dezembro de 2015. 22 Ludd, Ned (Org.). Urgência das Ruas: Black Bloc, Reclaim the Streets e os dias de ação global . Tradução de Leo Vinicius. São Paulo: Conrad, 2002. 23 Segundo a definição de Colson, “contrariamente ao que se poderia crer, a afinidade libertária não é de ordem ideológica. (…) Implica os temperamentos, as diferentes formas de sensibilidade, os diferentes traços de caráter e as diferentes formas de se ligar aos demais” (Colson, Daniel. Pequeño léxico filosófico del anarquismo – De Proudhon a Deleuze . Buenos Aires: Nueva Visión, 2003, p. 22). O autor pondera que há formas de afinidade discutíveis, como os grupos especifistas inspirados em Bakunin,
mas é preciso considerar que a definição de grupo de afinidade mais aceita, mais divulgada e mais praticada entre os anarquistas hoje é a que deriva das proposições de Murray Bookchin, que sugere as afinidades como afinidade ideológica de um campo de atuação política mutuamente identificado. O que cria uma diferença entre a noção de associação e grupo de afinidade, voltarei a essa questão adiante. 24 Refiro-me a associações como a Void Network (< http://voidnetwork.gr/ tag/greece/ >), a okupas como a Lelas Karagjanni, existente desde 1988 em um prédio da Politécnica de Atenas (< https://www.facebook.com/lelascafe >) ou mesmo associações clandestinas como a Conspiração das Células de Fogo (CCF), que se dedica a ataques a prédios e locais de autoridades (sobre as CCFs, ver Augusto, Acácio, op. cit., 2013), dentre tantas outras experiências espalhadas pelo planeta. 25 Sobre este episódio, ver Instinto Salvaje. Atenas: Anarquistas en pie de guerra contra las drogas y la máfia. In: La Haine: projecto de desobeciencia informativa . 19 de abril de 2016. Disponível em: < https://www.lahaine.org/ mmssmundo.php/atenas-anarquistas-en-pie-de >. Acesso em: 6/9/2017. 26 La Haine e Agências. Anarquistas contra narcos y policías: Exarchia se defiende de la gentrificación. In: La Haine: projecto de desobeciencia informativa . 27 de maio de 2017 Disponível em: < https://www.lahaine.org/ anarquistas-contra-narcos-y-policias >. Acesso em: 6/9/2017. 27 Kitsantonis, Niki. Anarchists Fill Services Void Left by Faltering Greek Governance. The New York Times, 22 de maio de 2017. Disponível em: < https://www.nytimes.com/2017/05/22/world/europe/greece-athens-anarchyausterity.html?emc=eta1&_r=2 >. Acesso em: 1/9/2017. 28 Sobre o dispositivo de segurança, a partir de Michel Foucault, e suas mutações contemporâneas, ver Rodrigues, Thiago. Ecopolítica e segurança: a emergência do dispositivo diplomático-policial. Revista Ecopolítica . São Paulo, n o 5, p. 115-156, jan.-abr., 2013. Disponível em: < https:// revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/article/view/15217 >. Acesso em: 2/9/2017. 29 J. F. Day, Richard. Gramsci is dead: anarchist currents in the newest social movements . London: Pluto Press; Toronto: Between the Lines, 2005. 30 A principal referência desta intepretação é Hannah Arendt. Origens do totalitarismo . Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 31 Laclau, Ernesto; Mouffe, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: towards a radical democratic politics . Londres: Verso, 1985. 32 Day opõem lógica da hegemonia à lógica da afinidade. Na primeira, as lutas se agrupam por ligações identitárias em busca de reconhecimento, a vitória está ligada, neste caso, à conquista de hegemonia social em relação à pauta. Já a lógica da afinidade se daria por outras vias, não identitárias e apartada da busca por hegemonia. A ligação (ou afinidade) estaria na construção de uma “comunidade que vem” (termo que toma de Giorgio
Agamben) já existente na própria luta. Day, Richard, op. cit., 2005, p. 178-202. 33 Day, Richard, idem, 2005, p. 216. 34 Ibidem, p. 217. 35 Sobre as disputas no interior da anarquia sobre essa noção, ver Bookchin, Murray. Social anarchism or lifestyle anarchism: the unbridgeable chasm . San Francisco: AK Press, 1995. 36 Passetti, Edson. Poder e anarquia. apontamentos libertários sobre o atual conservadorismo moderado. Revista Verve . São Paulo: Nu-Sol, n o 12, p. 31, 2007. 37 Stirner, Max. O único e a sua propriedade . Tradução de João Barrento. Lisboa: Antigona, 2004. 38 Passetti, Edson, op. cit., 2002, p. 169. 39 Foucault, Michel. O sujeito e o poder. In: Dreyfus, Hubert; Rabinow, Paul. Michel Foucault. Uma trajetória filosófica . Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995. 40 Ibidem. 41 Klinamen Editorial. Maderos, cerdos, asesinos! Cronica del Diciembre Griego . Sevilla: Publidisa, 2012, p. 77. 3 ANARQUISMO DA VIDA COTIDIANA E SUBJETIVIDADES LIBERTÁRIAS João da Mata Elaborar a existência como percurso autoral é uma prática antiga entre libertários. A insurgência diante do que está posto como conjunto de valores que norteiam as relações amorosas, a educação das crianças, as relações de trabalho e muitos outros âmbitos da vida movimenta homens e mulheres a criarem redimensionamentos e inscrever novas narrativas possíveis diante da vida. Os anarquistas carregam consigo a revolta diante da vida ordinária, situada quase sempre sob a égide da dominação e da servidão. A vida libertária sempre será atravessada pela incessante luta diante dos autoritarismos e pela afirmação das práticas de liberdade. Uma luta da vida cotidiana, instaurada em todos os espaços de sociabilidade, desde que haja um outro na relação. Não se trata de construir um mundo apaziguado de conflitos ou uma sociedade hegemonicamente livre como condição futura. Mas criar fissuras diante do que está posto, reconhecer os contornos do possível, mesmo que se queira o impossível. A vida libertária acontece no aqui e agora, e não em um amanhã radioso e promissor, pois ele nunca é agora. Quem vive a anarquia procura encarnar as práticas de liberdade nos
múltiplos espaços que se apresentam diante de si: na escola, no trabalho, entre amigos e em todos os lugares. Esta criação singular de viver tem sido um desafio enfrentado por aqueles que desejam tornar suas trajetórias existenciais contrárias aos modelos que são ofertados cotidianamente. Existir libertariamente pressupõe a rejeição a qualquer forma de poder hierárquico, organizado de cima para baixo, e comum nas sociabilidades instauradas a partir desta lógica como condição inequívoca. Contrapor-se à hierarquia não significa rejeitar qualquer forma de organização, muito pelo contrário. Mas diz respeito ao estabelecimento de pactos e acordos que ocorram a partir da livre associação, do mutualismo, do federalismo e de outras comunidades horizontais. O poder do sagrado que está na raiz etimológica da palavra “hierarquia” será sempre rejeitado pelo anárquico, que deseja apenas o poder que será exercido sobre si mesmo e que faça vigorar suas energias alegres e afirmativas. Se a história da anarquia e dos anarquismos está atravessada por acontecimentos de lutas sociais de homens e mulheres que se colocaram contrários diante da exploração e das relações de dominação, buscaremos aqui destacar a vida libertária – que se abre para a existência cotidiana – como espaço não menos importante no campo de ação política. A anarquia é uma prática de liberdade social e a afirmação de uma vida outra diante do que está posto como verdade a ser seguida. Um modo de vida singular e único, que ocorre na incessante luta diante dos microfascismos – aqueles que carregamos conosco e outros que se apresentam à nossa frente – que exigem microrresistências. Uma política libertária em pleno século XXI requer ações cotidianas, pontuais e rizomáticas, na criação de espaços liberados e distantes de universalismos. Não se trata de revoluções planetárias, mas de um devir revolucionário dos indivíduos, ¹ que se faça diante e em torno de si, integrando outros para experiências fraternas e livres. Em Política do Rebelde (2001), Onfray defende que um pensamento anarquista contemporâneo deve romper com este fetichismo do Estado, pois este só se reduz a uma maquinaria, sem nenhum coeficiente ético, apenas um mecanismo que obedece a ordens que se dão e se transmitem. (p. 171) Apesar dos flertes, que não são de hoje, entre democracias e fascismos, que porosamente ocupam espaços cada vez mais explícitos em diferentes partes do mundo, as ações anarquistas estão para além dos empacotamentos ocasionais do poder autoritário. Os anarquismos fazem acontecer ações insurgentes, seja qual for o governo e seus regimes de força. Como então viver libertariamente diante de um mundo cada vez mais dominado pelo deus mercado e suas alianças irrefutáveis com Estados liberais e socialistas autoritários? As lutas e ações dos anarquismos no presente situam-se diante do triunfo do liberalismo, que se apresenta como horizonte insuperável de nossa época. Sua versão radicalizada da economia de mercado sob a forma do neoliberalismo, composta de uma racionalidade própria e produtora de idiotas úteis, segue firme e triunfante. Se sua procedência remonta ao início do século XX, será depois da Segunda Grande
Guerra que sua presença será cada vez mais sentida. É sugestivo que tenha sido decretado o fim da História, após a derrocada do socialismo autoritário soviético, quando a democracia capitalista liberal foi alçada ao estágio final da humanidade No tempo presente, o enriquecimento pessoal, seja qual for o custo ético ou político, tornou-se uma espécie de bússola existencial para muitos que almejam um lugar na sociedade. Para além de ser uma questão meramente econômica, a racionalidade neoliberal funciona como a mais intensa e poderosa produtora de subjetividade na atualidade. Estados e capital estabelecem uma acoplagem em que a produção econômica está diretamente ligada à forma de viver individual e coletivamente. Nesse sentido, sua racionalidade opera como algo que se constitui cotidianamente e incide diretamente no funcionamento emocional das pessoas, produzindo um ser social visto como capital humano, apto a consumir e empreender. Governados e moldados por práticas de poder, os indivíduos devem tornar-se resilientes diante das constantes adversidades como as crises e os colapsos, como também ativos participantes a fim de aperfeiçoar o Estado neoliberal em seu funcionamento, abrindo espaço para a inclusão e os direitos. O neoliberalismo vincula a racionalidade de governo à própria conduta dos indivíduos, por meio de técnicas e procedimentos que requerem uma produção contínua de verdades e administração da vida em múltiplas esferas do cotidiano. Funcionando nessa perspectiva, cada pessoa desenvolve sua conduta empresarial no diapasão econômico-racional. Termos como “empreendedor de si” e “capital humano” tornam-se sedutoras formas de capturas dentro do capitalismo contemporâneo, sempre muito competitivo e exigente. Indivíduos inseridos nesta lógica de funcionamento levam sua própria existência a se comportar como uma empresa, induzindo a concorrência de todos e entre todos. Essa bizarra figura do homemempresa precisa valorizar-se constantemente, gerar inovação e manter-se em movimento perpétuo para se adaptar ao também movimento perpétuo do capital. Dessa forma, continuará sua busca para ser sempre mais, ter mais dinheiro para ter mais consumo, ser mais útil e mais insaciável, e assim fazer a roda girar. Há algum tempo, tem surgido nos anarquismos conexões junto aos estudos do filósofo Michel Foucault, especialmente em relação à sua analítica do poder . Ao estabelecer este encontro, o que se busca é oxigenar e atualizar o pensamento libertário, seja na sua permanente crítica às diferentes formas de dominação, na valorização do singular que faz coexistir as diferenças e nas possibilidades de práticas de liberdade no presente. Ao conceber o poder como algo que está em relação e não em um determinado ponto, Foucault propõe pensá-lo como algo em confronto, numa conexão dinâmica com as práticas de liberdade. No momento em que esta possibilidade esteja limitada ou obtusa, há ausência de práticas de liberdade, e a relação tornase autoritária ou de dominação. Esta analítica do poder tem sido vantajosa aos anarquismos contemporâneos e ajuda a pensar a vida como elaboração e luta, num contínuo redimensionamento que abrange a vida cotidiana, assim como as diversas instâncias de poder institucionalizados.
A problemática em torno das relações de governo, do governo das condutas e da governamentalidade orientou a analítica do poder em Michel Foucault a um deslocamento teórico, para analisar as tecnologia de dominação e as tecnologias de si. Em diferentes passagens, especialmente em suas últimas obras, Foucault aborda este problema relativo a questões éticas e na “genealogia do sujeito”. Seu entendimento enfatiza que o poder, antes de tudo, opera no sentido de estruturar e moldar o campo de ação dos sujeitos. Como sabemos, na perspectiva foucaultiana o poder é difuso e espalhado por diferentes lugares, nos quais não há dentro ou fora. Também não parte deste ou aquele ponto exclusivo para depois se alastrar e atuar de forma repressiva sobre indivíduos que recebem esta ação passivamente. O que há, para Michel Foucault, são práticas ou relações de poder. Segundo ele: A ideia de que existe, em um determinado lugar, ou emanando de um determinado ponto, algo que é um poder, me parece baseada em uma análise enganosa e que, em todo caso, não dá conta de um número considerável de fenômenos. Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou menos coordenado (…) de relações (FOUCAULT, 2010a. p. 248). Resumidamente, sua analítica do poder traz três características essenciais: o poder não é uma substância, mas deve ser analisado em termos relacionais; há um deslocamento para uma perspectiva micropolítica em detrimento de uma macropolítica, e assim questiona a tradicional identificação do poder com o poder político e institucional; e por fim, Foucault retira o caráter exclusivamente repressivo do poder para lhe atribuir também uma forma produtora e positiva. As relações de poder, portanto, são entendidas como produção e condução de condutas, expondo seu caráter de racionalidade e ampliando-o, ao mesmo tempo que o distingue da noção de poder como força e coerção. Diante disso, afirmar a possibilidade de uma luta incessante na vida como afirmação e invenção de si implica se contrapor cotidianamente às técnicas de sujeição, que vinculam o sujeito a um lugar de agente e reprodutor de políticas reativas. Isto não significa adotar a noção de resistência circunscrita a uma determinada instituição de poder, seja ela um grupo, um local ou uma classe, mas voltar-se a uma analítica do poder e suas práticas. Antes de se tornarem realidades, Estados, nações e instituições acontecem em corpos, gestos e racionalidades mobilizados em produzir uma história tangível. Sua violência não é abstrata, caída do céu ou proveniente de um além-mundo, mas surgem encarnadas em homens e mulheres com rostos, que contribuem para forjar sua genealogia e permanência. A luta diária dos anarquistas está em observar e combater em si mesmo e em torno de si as monstruosidades do autoritarismo, em lugares ou em pessoas, em circunstâncias ou em ocasiões. Uma prática libertária no presente deve ir além dos seus saldos iluministas e identitários, que por vezes situaram a emergência de uma sociedade livre após a superação do Estado e do capital. A vida cotidiana anarquista inscreve-se em uma estética guerreira, que intensifica a coragem de luta
voltada às invenções de si, que se dão em meio aos intermináveis enfrentamentos que geram sujeições e liberações. Temas como amor em liberdade, educação antiautoritária, produção autogestionária e tantos outros têm feito parte das experiências de vida de pessoas e coletivos empenhados em reinscrever o cotidiano e seus impasses. Uma resistência permanente de singularidades, e sempre que possível, aliadas para formar parceiras, juntar forças, aumentar as possibilidades de fazer acontecer as práticas de liberdade. A vida libertária faz parte de um ethos ingovernável, uma ação e um comportamento daqueles que não aceitam a hierarquia como condição inequívoca. Subjetividade libertária diante da racionalidade neoliberal Os primeiros momentos de nossa sociabilidade, a partir dos quais se iniciam as relações de governos de uns sobre os outros, costumam acontecer nos círculos familiares. Como bem alertou o mais radical dissidente da Psicanálise, o austríaco Wilhelm Reich, a família espelha e reproduz o Estado. A partir de sua constatação, vemos como a família continua a funcionar como um Estado em miniatura, apesar de os arranjos e modelos vividos no século XXI possuírem um cardápio mais diversificado que os observados por Reich no início de década de 1920, quando apontou suas análises para a produção da neurose como resultado das relações pautadas na obediência. A despeito dessas novas configurações, o amor vivificado nas famílias continua a ser utilizado como um poderoso instrumento de controle na sociedade capitalista. Frequentemente, ele está impregnado por uma série de forças morais, econômicas e políticas capazes de agir como um amálgama no incremento da conduta das pessoas. Entre as práticas e ações vividas nas famílias, o fomento da cultura do perigo e do medo tem sido uma das mais persistentes. Através dela, os indivíduos são tratados como agentes que devem lidar com os riscos sociais e as inseguranças de toda ordem: o medo da morte, do desemprego, da violência, do abandono. A lista é longa e certamente cada pessoa consegue identificar os mais comuns em si mesma. Inseridos nesta moralidade de rebanho e acovardamento, cada um deve medir e calcular suas atitudes e escolhas, a fim de garantir segurança para si e para suas famílias. Em Utopia e Paixão (1991a), Freire e Brito explicitam sua crítica à organização hierárquica e autoritária, frequentemente presente nas famílias: A grande glória da sociedade burguesa, da família burguesa, das instituições sociais em geral, é a sua oferta de segurança, por um lado e, por outro, nos levar ao medo à liberdade (…) Risco é sinônimo de liberdade. É na busca da segurança que se estabelece o poder. Quem gosta do risco e se aventura, aceita a insegurança, porque tem sua própria utopia, vive de satisfazer, a qualquer preço, sua necessidade de prazer. O máximo de segurança é a escravidão (p. 74-75). As famílias, inscritas sob a lógica liberal, agem de modo capilar na produção de maneiras de funcionamento emocional e político, que operam simultaneamente estimulando uma certa liberdade e o incremento da segurança, não como opostos, mas como complementares e constitutivos um do outro para uma vida apaziguada e conformada. Aos que desobedecem,
recorre-se ao castigo como aliado de primeira mão, sempre disponível e como recurso certeiro. Castiga-se com a correção física, com a retenção do dinheiro e, sobretudo, com o uso dos afetos por meio da ameaça de retirada do amor. Mecanismos bastante eficientes no adestramento e controle das condutas, utilizados isoladamente ou em seu conjunto. O vínculo amoroso instaurado entre pessoas, seja através do casamento ou que nome se dê a ele em suas diversas modalidades atuais, funciona como o início para a unidade familiar, que conserva em seu interior a moral da acomodação, típica da vida burguesa. Daí, vem junto a co-habitação entre os demais membros, a fidelidade exigida entre os entes, o direito de herança para perpetuar os laços econômicos e afetivos, e toda uma vasta rede de negócios e lógicas que são estendidos para a vida social. O discurso amoroso vivido nas famílias burguesas mascara a realidade do que se tornou a relação entre humanos : o instinto gregário levado ao máximo de seu limite, ancorado na correlação entre consanguinidade, no esforço em suportar e contribuir com o próximo. Retratado nas narrativas hegemônicas do cinema, das telenovelas e anúncios de produtos e serviços, ainda se faz crer no apogeu da existência: o sonho de construir uma família como referência maior de felicidade. Surge junto o ideal de amor complementar, no qual as fábulas do amor romântico ainda vigoram: a alma gêmea, a cara metade e outras designações do gênero, todas apoiadas na noção que o outro vem preencher algo que está em falta. Pressuposto para as relações de dependência e controle, as sociabilidades instauradas sob esta perspectiva estendem-se para os vínculos entre amigos e colegas, quase sempre pautados entre os que podem e devem ajudar a quem precisa, a quem está em falta de algo ou alguma coisa. Ajuda-se com escuta, disponibilidade, dinheiro, favores etc., que se tornam dívidas impagáveis ou serão creditadas e quase sempre cobradas direta ou indiretamente. A moral do sacrifício é uma moeda forte, traz respeito e devoção. Na unidade germinal das sociedades capitalistas e socialistas autoritárias, as famílias insistem em ensinar aos seus membros a maneira de amar e sociabilizar quase sempre baseada no sacrifício, na obediência e na centralidade à autoridade. A crítica reichiana encontra ressonância no pensamento libertário e aponta para a necessária atenção que devemos ter nos momentos iniciais das relações afetivas, já que ali são forjadas as primeiras práticas de poder. Este olhar para as relações entre amantes, para a forma como criamos nossas associações afetivas e educamos as crianças é fator fundamental para o redimensionamento das relações de governo de uns sobre outros. A beleza e o vitalismo ativados pelos laços amorosos são esvaziados quando estão impregnados de autoritarismos, especialmente aqueles mais sutis, e por isso mais eficientes, sob a forma de chantagens, culpas e ressentimentos. Elas operam nos instantes germinais de nossa sociabilidade e criam o terreno fértil para as práticas de poder que se estendem para as escolas, mais tarde para as relações de trabalho e para a sociedade em geral. A presença do autoritarismo na formação familiar não deve ser vista apenas em quem grita ou bate. Em muitos casos, ela surge sorrateira através de conselhos ou como produtor de culpas.
Afirmar a vida anarquista é explicitar que nunca haverá uma transformação ética radical nas sociabilidades instauradas junto ao capitalismo e ao Estado, que se dissemina na vida cotidiana até atingir nossas condutas. A recusa libertária às práticas autoritárias assenta-se na lucidez que tanto os espaços coletivos situados sob a perspectiva do socialismo marxista, como a noção de liberdade individual do liberalismo burguês são incapazes de promover rupturas com as relações de dominação. Cada uma a seu modo, mantêm as relações de dominação, restringindo e, no limite, impedindo as práticas de liberdade para além de leis e regulamentações. A lição inquietante do jovem Etienne de La Boétie (2009) continua atual, apesar do tempo que nos separa desde sua formulação: o poder se exerce em permanente acoplagem entre aqueles que mandam e os que obedecem. O problema da servidão voluntária, apesar de ser um tema já bastante estudado, insiste em se manter presente como condição notória para a manutenção das relações de poder. A capilaridade dos microfascismos não vem de cima, mas ocorre de modo subterrâneo nas sociabilidades cotidianas. Somos ensinados a obedecer, a respeitar e aceitar alguma hierarquia que recaia sobre nós. E reproduzimos, com maior ou menor intensidade, a dominação sobre os outros. La Boétie é simples e direto: “resolvam não servir mais e estarão livres.” Em última instância, para La Bóetie, o dominado só existe por sua própria responsabilidade, em razão de sua aceitação e consentimento à dominação. Para recusar a sujeição basta reagir, insurgir-se, não querer servir e lutar por sua autonomia. No limite da força e da impossibilidade de fazê-lo sozinho, associar-se e unir esforços. A atualidade do Discurso da Servidão Voluntária está em mostrar que a força do dominador situa-se na fraqueza do escravo, pois este em algum momento deseja ser ele mesmo, o dominador. Soma como incremento de práticas livres Se combater a hierarquia e o autoritarismo no plano social é uma luta constante nos anarquismos desde sempre, a prática da Soma – uma terapia anarquista ² – se volta especialmente à análise crítica do poder em sua dimensão subjetiva e nas relações imediatas. A Somaterapia ou apenas Soma é um processo terapêutico em grupo, corporal e que tem duração de pouco mais de um ano. Sua emergência data do período da Ditadura civilmilitar, quando o ex-psicanalista Roberto Freire ³ conheceu e adotou o pensamento anarquista na luta por mais liberdade diante do autoritarismo dos militares. Fortemente influenciada pelos estudos de Wilhelm Reich, que trouxe para a Psicologia uma leitura política dos conflitos emocionais e incluiu o corpo na cena terapêutica, a Soma reúne ainda a noção de organização vital da Gestalt-terapia e as contribuições da Antipsiquiatria, voltadas aos padrões e paradoxos da comunicação na interação humana (FREIRE, 1988, 1991b; FREIRE; MATA, 1996, 2004). Junto a estas abordagens da Psicologia contemporânea, a Soma encontrou nos anarquismos as fundamentais críticas antiautoritárias, a fim de desenvolver um processo terapêutico que possibilite um entendimento individual e coletivo de como ocorrem as relações de poder dentro dos
grupos e seus redimensionamentos. Como espécies de microlaboratórios sociais, os grupos da Soma desenvolvem uma dinâmica de grupo autogestionária, na qual as pessoas experimentam uma relação social nova e a hierarquia é substituída pela partilha horizontal das questões terapêuticas vivificadas entre todos. Nesse contexto, a anarquia traz não apenas a possibilidade de cada um identificar e combater seus próprios autoritarismos, como também abre uma chave inventiva para a existência. A experiência libertária proporcionada nos grupos da Soma e sua extensão para a vida cotidiana são entendidas como promotoras de saúde, na medida em que cada um recusa a ação autoritária sobre si e sobre os outros. A originalidade da Soma surge especialmente no encontro do pensamento libertário com a obra de Wilhelm Reich, com o objetivo de criar um processo terapêutico capaz de provocar um estudo crítico no campo emocional e ético-político das pessoas, diante das práticas de poder que operam inconscientemente. Servem ainda para trazer aos ativistas libertários o debate sobre o corpo, a afetividade e a sexualidade, temas nem sempre presentes nas pautas anarquistas. Reich (1984) foi inaugural ao propor que a neurose é um fenômeno social, criada por mecanismos e objetivos políticos, frutos da ação disciplinadora e do controle exercidos sobre os corpos e as condutas do indivíduos. Segundo ele, nosso corpo cria posturas, gestos e atitudes que tendem a estereotipar nossos traços de comportamentos inconscientes, no que ele denominou de couraça neuromuscular do caráter . Seus estudos mostram como o conflito emocional se instala no corpo, materializando um conjunto de atitudes emocionais que correspondem a uma forma padronizada que criamos ao longo de nossa existência. Ao analisar os efeitos do autoritarismo na formação das neuroses, Reich salientou sua implicação somática e indicou sete regiões do corpo onde se formam tensões crônicas na musculatura, os chamados anéis ou segmentos de couraça. Eles se distribuem ao longo do corpo, produzindo, simultaneamente, uma armadura de defesa emocional e perda de energia vital. Assim, os elementos envolvidos nos processos de adoecimento, tanto físico quanto emocional, estão relacionados à presença de práticas e discursos disciplinares. Para a Soma, a psicologia e a política devem andar juntas, a fim de romper com práticas autoritárias sobre nós e aquelas que reproduzimos, para então promover uma ação terapêutica que não está apartada da criação de novos modos de existência. O trabalho da Soma é eminentemente corporal, sem abandonar a importância da fala, mas não a tornando hegemônica. Incluir o corpo em terapia, além de fornecer importantes indícios sobre o funcionamento emocional da pessoa através da leitura corporal, possibilita também trabalhar sobre a materialização dos conflitos. Assim, não basta apenas falar sobre tais conflitos, mas é preciso desbloquear nossos corpos. Eles estão tensionados por medos, travas, inibições etc., que foram se instaurando ao longo de nossa existência e produzindo um certo “jeitão” de ser, coerente com a racionalidade neoliberal da qual falamos há pouco, como também com as demais forças que atuam historicamente na sociedade, como o machismo, o racismo, a misoginia e tantas outras formas de poder.
Nesse sentido, um dos primeiros temas que abordamos já no início da terapia é precisamente a relação que cada pessoa estabelece com seu próprio corpo. Em muitos casos, a falta de percepção corporal, a rejeição e fragmentação do corpo, aliadas a bloqueios de ordem sensorial e sensual, evidenciam a presença das ações autoritárias inscritas em cada um, emocional e corporalmente. Fica evidente como ainda vivemos exageradamente um corpo partido, cindido em duas partes. Um corpo platônico, separado e hierarquizado, que produz a hegemonia do pensamento sobre as sensações. A Soma se coloca dentro de uma perspectiva que busca compreender cada pessoa através de uma totalidade corporal, sem hegemonia do pensamento sobre as sensações. Aliás, a palavra soma deriva do grego e que dizer corpo , sem divisões e abrangendo o todo somático. Outro aspecto fundamental no trabalho da Somaterapia, a autogestão foi incorporada ao processo terapêutico por Freire como princípio para o funcionamento do coletivo. A dinâmica de grupo vivificada em autogestão estimula que as decisões, encaminhamentos e escolhas de cada membro sejam valorizadas e realizadas sob outro paradigma de associação. Esta seria a própria finalidade terapêutica da Soma: auxiliar os participantes do grupo a elaborarem novas vias associativas e sociabilidades libertárias menos hierarquizadas e, consequentemente, menos autoritárias. Viver o processo de um grupo da Soma é dispor-se a uma (re)invenção de si mesmo. O grupo representa um espaço de elaboração de si, no qual cada membro busca entender seu funcionamento emocional-psicológico, simultaneamente ao seu funcionamento ético, social e político. Mas ao perceber estas formas de atuar no mundo, esse mesmo grupo também possibilita a mudança de postura e a criação de novos modos de existir. Seriam, portanto, uma função diagnóstica agindo em simultaneidade com uma função transformadora: à medida que se percebe uma questão, são formuladas estratégias de mudança; isso amplia a percepção, criando novos diagnósticos e novas possibilidades de transformações. Dessa forma, os espaços coletivos dos grupos da Soma atuam no sentido de promover novas formulações sociais, que façam abolir a hierarquia, a dominação e a servidão. Este projeto segue próximo ao que Reich (1984, 1988) defendia como o lugar possível de uma psicologia transformadora, ou seja, na confecção de sociabilidades que estabeleçam um contraponto ao capitalismo. Caso contrário, os mecanismos que produzem a neurose seguem seus cursos, e a psicologia corre o risco de transformar-se em uma mera mantenedora e adaptadora das práticas sociais sem a necessária leitura crítica de como vivemos e nos relacionamos. Assim, ao mesmo tempo que a anarquia se torna uma nova forma de fazer política, também se traduz num jeito de estar no mundo, uma ética libertária. Fazer política, para nós, significa então, trabalhar com os conflitos de poder presentes nas relações cotidiano, afim de evitar que se transformem em relações de dominação. Nesse sentido, é totalmente possível e mesmo necessário ser anarquista hoje em dia, em um tempo histórico cada vez mais marcado pela falência das democracias representativas e da hegemonia do capital. Assim, não se trata de reformar
o modelo ou aperfeiçoá-lo, mas romper com sua lógica, instaurada desde cedo em nossas vidas. O exercício de sociabilidades livres que a anarquia propõe exige que se estabeleça um princípio ético em relação aos demais, a partir do qual se elejam os que estão mais próximos de si e aqueles que se remetem a outros círculos mais distantes. Esta será uma escolha própria, seguindo o próprio desígnio, jamais por imposição de uma moral universal já preestabelecida ou por qualquer noção de Bem que se coloque a priori . Será a própria análise, com base nas informações que são dadas pelos demais, num conjunto de circunstâncias, atitudes e sinais, que cada um escolhe ou não pela possibilidade de encontro e troca libertária. Uma articulação absolutamente singular, jamais genérica, inscrita a cada instante de realidade e em permanente movimento. Descobrir a Soma, o anarquismo e toda a perspectiva de vida libertária ocorreu a partir do meu encontro com o Roberto Freire, por ocasião de uma demonstração de sua terapia anarquista em Recife-PE, no final da década de 1980. ⁴ Freire, além de somaterapeuta, já era um conhecido escritor. Ele trazia em seus textos e palestras a possibilidade da vida anarquista como a única opção real e radical que serviria de contraponto ao capitalismo e ao socialismo autoritário. Em certo sentido, ao ler e ouvir aqueles temas, parecia que se esclarecia algo em mim, como se já conhecesse aquilo tudo, mas estava agora ali, claro e direto. Foi uma identificação muito rápida e espontânea. Eu era um jovem de vinte e poucos anos, filho de uma família classe média pernambucana. As características desse núcleo familiar são conhecidas, porque típicas: formação cristã, pais funcionários públicos e a necessidade de viver buscando a segurança de toda ordem. Passaram-se mais de trinta anos desde esse primeiro contato. Experimentar a Soma foi um sopro de vida, diante de uma existência com muitos bloqueios e travas. A amizade e o trabalho com Roberto foram muito marcantes, que trago comigo até hoje. A Soma tornou-se minha principal atividade laboral, mas trabalhar com ela é também um projeto de vida que está atrelado ao exercício prático do libertarismo no cotidiano e na interação com os membros dos grupos. Em todos esses anos envolvido em sua aplicação e pesquisa no Brasil e no exterior, sempre com o encantamento necessário para seguir adiante, o que mais motiva é viver a anarquia e suas ricas possibilidades para a construção de sociabilidades horizontais. Elas ocorrem fundamentadas em uma nova escrita das intersubjetividades, que se diferenciam daquelas encontradas nas famílias e suas hierarquias, com seus deveres e castigos. Diferem também de outras modalidades de organização como partidos políticos, igrejas, Estados ou empresas. São formulações outras, pautadas no vitalismo que advém do bom encontro. O anarquismo na vida cotidiana acontece a partir da associação entre livres, que buscam estabelecer maneiras novas de amar, trabalhar e existir, e a fim de extirpar radicalmente toda concentração e exercício do poder hierarquizado. Como bem salientou Max Stirner (2004), é preciso afastar-se das instâncias de dominação, que funcionam como organismos vivos e
impossibilitam o exercício da autonomia. Atento à preservação da singularidade do Único, Stirner também soube compreender a importância do outro para lutar diante dos poderes constituídos. A associação entre egoístas , longe de significar um conjunto de ególatras, congrega diferentes subjetividades para a preservação das práticas de liberdade dos envolvidos. Elas nos auxiliam a lutar contra os microfascismos impregnados nos modos de existir, que nos seduzem a fazer parte do rebanho participativo da lógica de governo de uns sobre os outros, desde aqueles localizados na esfera doméstica até em instituições como o Estado e o Tribunal. Entendemos ser necessário um querer radical para eliminar os saldos autoritários em nossas subjetividades. Eles estão presentes em atitudes e gestos, na comunicação e no afeto, e são os principais causadores das relações de controle e servidão, pois funcionam como os agentes basais do autoritarismo social. Produzir esta dobra sobre si mesmo, a fim de observar e reconhecer a presença dos próprios autoritarismos, para então realizar um embate agonístico diante das forças ativas e reativas que nos habitam: eis uma tarefa para toda a vida. O desafio da vida libertária está em forjar um sentido outro de existência, uma noção outra de liberdade, ancorada no autogoverno e na defesa radical do Único . É também uma maneira de dar forma à liberdade, de elaborar uma estética da existência que sirva de contraponto ao governo das condutas, típicas nas relações de controle e dominação. Os grupos da Soma, como espaços coletivos de experimentação de si e do outro, propõem-se a servir como instrumentos nessa jornada. São espaços transitórios, que abarcam as dinâmica entre as práticas de poder e de liberdade, e que possibilitam todo um campo de respostas e invenções possíveis. Eles funcionam como “campos de batalhas” nas lutas que são travadas pela afirmação da diferença de cada um. Podemos afirmar que são também espaços heterotópicos, voltados para a importância do presente, nos quais cada um se desdobra nas formulações de sua diferença, sempre em convivência com a diferença do outro. Espaços transitórios e móveis, os grupos da Soma junto às práticas corporais em exercícios lúdicos e socializantes, instigam cada Único a guerrear pela sua afirmação de vidas livres e confederadas em arranjos coletivos. Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia . Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir . Petrópolis: Vozes, 1979. _. O uso dos Prazeres . Rio de Janeiro: Graal, 1984. _. O cuidado de si . Rio de Janeiro: Graal, 1985. _. Outros espaços. Ditos e escritos III – Estética: Literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. _. Microfísica do Poder . Rio de Janeiro: Graal, 2010a.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise/SP. Foi autor de diversas peças de teatro, como também exerceu funções administrativas, como Diretor do Serviço Nacional de Teatro e Diretor Artístico, no TUCA. Fez também cinema, jornalismo e dedicou-se à literatura, com mais de quarenta livros publicados, alguns dos quais se tornaram best sellers, como Ame e dê Vexame , Sem tesão não há Solução , Cleo e Daniel . Freire tornou-se um militante anarquista através de seus textos, palestras e, especialmente, devido à criação da Somaterapia. 4 Na edição de n o 37/2020 da revista Verve , publicada pelo Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, PUC-SP, descrevo este encontro inicial com Roberto Frere, além de abordar as transformações que ocorreram na Soma nos últimos trinta anos. Disponível em: < https://www.nu-sol.org/wp-content/uploads/ 2020/06/verve37.pdf >. 4 ANARQUISMO E FALÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO Camila Jourdan Da falência dos pressupostos representacionais Desde a modernidade, ¹ a representação tem sido compreendida como um paradigma semântico, epistêmico e político dualista fundado em uma série de dicotomias: significado/significante; representado/representante; corpo/ mente; concreto/abstrato. Por um lado, a representação é tomada como a maneira padrão de estabelecer a unidade de um múltiplo; por outro, a representação é compreendida como o único modo de se exercer ao mesmo tempo poder político e conhecimento sobre o mundo. Assim, o Ocidente instaura o paradigma dualista da representação como uma harmonia entre epistemologia e política: tanto o exercício do poder quanto o estabelecimento de conhecimento tornam-se, essencialmente, representar. Se há representação, há um representante e um representado, há uma mente e há um corpo, uma res cogitate e uma res extensa . E cada termo da dicotomia se define tão somente por oposição ao outro. Além disso, há também o privilégio do primeiro termo desta relação em detrimento do segundo. O privilégio da representação é também, ao mesmo tempo, o dualismo (mente e corpo/ uno e múltiplo) e o privilégio do primeiro destes termos da dicotomia: o privilégio do representante em detrimento do representado.
A metafísica ocidental se constitui por privilegiar o Uno em detrimento do múltiplo, por isso, além de dualista, isto é, fundada na separação rígida, cisão, entre estes âmbitos, também se caracteriza pelo primado do princípio de identidade em detrimento da diferença. Por isso, é também a manutenção da determinação e da separação em detrimento da relação. Um dos pressupostos mais caros à representação é o atomismo de fundo. A ontologia da representação inclui uma compreensão dos indivíduos, e, assim, de nós mesmos, como átomos separados do todo. Ocorre, entretanto, que a representação tem seu limite e apenas se funda em algo com o estatuto direto de uma apresentação. Por isso, se não cessa de acompanhar os mais diversos autores e temáticas da filosofia ocidental, não cessa também de apontar para as suas fronteiras. Se temos necessariamente dois polos constituindo a relação de representar, todo problema se torna: como se estabelece a relação entre ele? Ou ainda: o que permite que um possa corresponder adequadamente ao outro? De Descartes a Kant, passando por Hobbes, Locke e Hume, a modernidade ocidental não deixa de se debruçar de modo distinto sobre esta questão e de constatar, escandalizada, os seus próprios limites. o que me impele necessariamente a ultrapassar os limites da experiência e de todos os fenômenos é o incondicionado o qual, e nas coisas em si mesmas, a razão exige o último necessariamente e com todo o direito para todo o condicionado, e através disso a completude da série das condições. Ora, se quando se admite que o nosso conhecimento de experiência se guie pelos objetos como coisas em si mesmas, ocorre que o incondicionado de maneira alguma poder ser pensado sem contradição; se contrariamente quando se admite que a nossa representação das coisas como nos são dadas se guie não por essas coisas em si mesmas, mas que estes objetos, como fenômenos, muito antes se guie pelo nosso modo de representação, ocorre que a contradição desaparece; e que, consequentemente, o incondicionado tem de ser encontrado não em coisas, na medida em que as conhecemos (nos são dadas), mas sim nelas na medida em que não as conhecemos, como coisas em si mesmas (…) (KANT, CRP, BXX, 1987, p. 15). E eis que sem o necessário fim da cadeia de razões suprindo o abismo entre representante e representado, a racionalidade representante e o real representado são tomados como encontrando-se para sempre exilados um do outro. Saindo do campo da metafísica para a política contemporânea, o que vemos é que quanto mais falha e destituída de sua relação com o real se mostre a representação, mais o poder constituído desista de investir nela e se coloque assumidamente como exceção e espetáculo, isto é, já como representações sem representados. Assim, a sociedade do espetáculo e a sociedade tecnológica, agindo conjuntamente, elevam-se, não mais investindo na própria representação, mas extrapolando-a por meio de seus próprios pressupostos. O espetáculo é a representação sem representado, mas cuja possibilidade é suposta pelas próprias condições da representação. É somente a representação supervalorizada que abre a possibilidade para
que ela tome vida própria no Espetáculo: “sempre que haja representação independente, o espetáculo se reconstitui” (DEBORD, 2017, p. 42). 1. Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação. 2. As imagens que se destacam de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudo mundo à parte, objeto de mera contemplação. A especialização das imagens do mundo se realiza no mundo da imagem automatizada, no qual o mentiroso mentiu para si mesmo. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo (DEBORD, 2017, p. 37). É a representação, tomada como fundante de todo um modo de vida, que carrega em si o germe do espetáculo (bem como são as democracias representativas que carregam em si o Estado de exceção), pois não há representação sem se separar rigidamente dois âmbitos. Tomemos o exemplo do famoso cachimbo de Magritte, por que se diz ali, em uma representação tão simples, ‘isso não é um cachimbo’? Ora, isso nos faz lembrar que toda representação carrega em si uma mentira, pois carrega uma separação e só depois uma igualdade, o que representa não pode se confundir com aquele que pretende representar, precisa ser distinto, portanto, mas, ainda assim, um é dito corresponder ao outro. Trata-se sempre de um aparecer naquilo que, precisamente, não se é. Por isso, Magritte mesmo comentando a obra nos pergunta: você por acaso poderia fumar este cachimbo? É a representação valendo mais que a vida concreta que institui a possibilidade da fake news , a perda de critérios para a verdade, quando qualquer coisa parece poder ser verdadeira, mas simplesmente porque nada é verdade em um sentido que ultrapasse a representação. O fenômeno das fake news precisa ser compreendido dentro da lógica do espetáculo. Uma fake news não é apenas uma notícia falsa que poderia ser verdadeira, ela é uma representação sem representado que tem efeitos concretos, que vale como verdade, que gera outras realidades, apesar de não corresponder ao real. Os paradoxos da representação geraram o espetáculo, o ‹isso é um cachimbo› que aponta sempre para a sua possibilidade de falsificação, a contingência da representação é um dos seus limites e nos mostra que precisamos de uma necessidade de outra natureza que não a da representação, na ausência dessa necessidade, tudo pode ser verdadeiro e falso porque não temos um critério. Daí que, sem tal critério, o ‘isso é um cachimbo’ aponta para um ‘isso pode ser qualquer coisa’, e o cachimbo mesmo, aquele que se fuma, desaparece como a coisa em si de Kant, incognoscível e sem forma. Qual o limite disso? Toda representação precisa se fundar, ter como baliza, como critério a ação direta , a vida concreta, algo que não seja do âmbito da representação, apenas por nos esquecermos disso ficamos tão suscetíveis às fake news . Não é a verdade por correspondência sozinha, portanto, aquela capaz de nos tirar do reino do falso, mas justamente o limite da representação e do dualismo, o âmbito dos critérios necessários. O
fenômeno das fake news é um efeito da vida sem critério, na qual ‘tudo pode ser qualquer coisa’ porque nada constitui critério de valor. Daí a representação não poder resolver o espetáculo, se não há nela um critério de verdade que não seja ele mesmo representação. Foi o paradigma da representação mesmo que nos levou a este ponto, resta-nos apontar para o seu limite. Nenhuma ordem social pode se basear de modo duradouro no princípio de que nada é verdadeiro. É preciso também sustentá-la. A aplicação a tudo do conceito de ‘segurança’ nos tempos que correm exprime este projeto de integrar nos próprios seres, nos comportamentos e nos locais, a ordem ideal a qual estes já não estão dispostos a sujeitar-se. ‘Nada é verdade’ não diz nada acerca do mundo, mas tudo acerca do conceito ocidental de verdade. A verdade aqui não é entendida como um atributo dos seres ou das coisas, mas da sua representação. É tida como verdadeira a representação conforme a experiência. A ciência é, em última instância, o império da verificação universal. Ora, todos os comportamentos humanos, dos mais vulgares aos mais eruditos, se baseiam numa base de evidências formuladas de forma desigual, sendo que todas as práticas partem de um ponto onde as coisas e as suas representações estão indistintamente colapsadas, e em todas as vidas entra uma dose de verdade que ignora o conceito ocidental de representação. Daí que os ocidentais sejam universalmente tidos, pelos que colonizaram, como mentirosos e hipócritas. É por isso que pode até ser cobiçado o que eles têm – o avanço tecnológico – mas nunca o que eles são, que se vê justamente desprezado. Não se poderia ensinar Sade, Nietzsche e Artaud nas Universidades, se essa noção de verdade que ultrapassa a mera representação não tivesse sido antecipadamente desqualificada. Conter ao infinito todas as afirmações, mas sempre como letra morta, desativar passo a passo todas as certezas vividas, este é o longo trabalho da inteligência ocidental. Assim, polícia e filosofia podem tornar-se meios convergentes, ainda que formalmente distintos (COMITÊ INVISÍVEL, 2013, p. 101-102). A exceção e o espetáculo não rompem com os pressupostos da representação, eles os radicalizam, radicalizam o privilégio da representante em detrimento do representado; radicalizam o privilégio do abstrato (Uno) em detrimento do concreto (múltiplo); da identidade em detrimento da diferença. E se parecem romper com o dualismo é apenas por tomar que um par da dualidade pode tomar vida própria. Da ontologia anarquista
Tal como analisamos, a ontologia anarquista rompe com os pressupostos representacionais de maneira radical. Proudhon talvez tenha sido o primeiro a pensar o estabelecimento de ordens imanentes. Para ele, tanto do ponto de vista epistemológico, quanto do ponto de vista político, sem multiplicidade não haveria a possibilidade de ordem, enquanto princípio da organização em geral, seja social e política, seja ontológica e cognitiva. Trata-se, portanto, da metafísica ocidental dominante, se inquietando consigo mesma e levando finalmente a sério suas limitações. Sua dialética é uma dialética sem síntese e, portanto, não se caracteriza pela resolução das tensões em favor da Unidade, mas afirma a pluralidade, o concreto e a multiplicidade. A dialética proudhoniana é sempre passagem sobre passagem porque não há síntese, ela é sempre um entre (PROUDHON, 1843). Proudhon, assim como outros filósofos do anarquismo clássico, certamente pertence ao quadro conceitual da nossa modernidade dualista, mas o pensamento libertário se caracteriza por conter elementos deste pensamento não apenas se incomodando consigo mesmo, mas apontando para seus limites de modo a constituir uma recusa imanente ao dualismo representacional, isto é, recusa ao privilégio do Uno em detrimento do múltiplo, da síntese em detrimento da tensão, recusa da separação entre meios e fins e de toda teleologia que se funda nas transcendências que se seguem da cisão representacional dualista entre governantes e governados, representantes e representados, ou, ainda, concretos e abstratos. Também a ontologia de Bakunin parece romper diretamente com os pressupostos mais caros à ontologia da representação. Nas Considerações Filosóficas , Bakunin caracteriza a natureza como um conjunto de relações em constante transformação: “a soma das transformações reais das coisas que se produzem e que se produzirão incessantemente em seu seio” (BAKUNIN, 1870, p. 2). A concepção de natureza que Bakunin carrega é uma concepção da interdependência, pensar objetos quaisquer em isolamento seria um absurdo, todas as coisas estão relacionadas diretamente ou indiretamente. A dialética bakuninista pressupõe múltiplas determinações, multicausalidades que se combinam numa interação de ações e reações ininterruptas. Em Estatismo e Anarquia encontramos: Tudo o que existe, os seres que constituem o conjunto indefinido do Universo, todas as coisas existentes no mundo, qualquer que seja sua natureza, sob o aspecto da qualidade como da quantidade, (…), exercem, sem o querer e sem mesmo poder pensar nisso, umas sobre as outras e cada uma sobre todas, seja imediatamente, seja por transição, uma ação e uma reação perpétuas que, combinando-se num único movimento , constituem o que chamamos de solidariedade, vida e causalidade universais (BAKUNIN, 2003, p. 57, grifo nosso). A ação e a reação incessantemente do todo sobre cada ponto e de cada ponto sobre o todo constituem a vida (BAKUNIN, 2003, p. 62). Se a natureza é um todo em movimento constante e em relações de interdependência, sendo fundamental no caso humano o contexto social e coletivo, não parece poder haver predeterminações a priori inatas e atômicas. Como a matéria é constituída pela dialética natural-social (humano) e há a abertura para novas combinações entre seres existentes no
devir e nas transformações e criações, isso possibilita o surgimento do totalmente imprevisto. ² É nesse sentido que o determinismo bakuninista abre margem para uma indeterminação relativa, isto é, novas combinações imprevistas dadas pela práxis concreta. A determinação é a base da realidade material, mas ela suporia uma ontologia de elementos dados independentemente, o que Bakunin não subscreve. Como a ontologia bakuninista é a da interação dialética, a determinação encontra seu fim na indeterminação por interdependência: o desenvolvimento social, prático, histórico concreto não é, assim, previamente dado ou determinado. Não existem causas primeiras, determinações a priori ou inatas que determinem o ser humano ou as sociedades humanas, afinal o que determina o ser em princípio é a ação e as relações concretas, a vida material como resultado imprevisto de múltiplas interações. A natureza seria o conjunto das múltiplas determinações, sem causa externa, ou seja, a natureza mesma é causa de si mesma, porém, esta causa não é pensada como um motor imóvel ou uma causa primeira a priori , mas sim como transformação constante, ou seja, causa permanente em movimento de si. As consequências dessa Ontologia têm sido pouco exploradas na literatura, mas, apesar das múltiplas influências que Bakunin sofreu, não podemos deixar de ressaltar que sua filosofia contém elementos extremamente próprios e originais que estão totalmente imbrincados ao seu pensamento político. Podemos dizer que seu sistema filosófico aponta uma ontologia da imanência e não representacional. As demais noções por ele abordadas acabam sendo condicionadas pelas características deste tipo de pensamento. Da criação de novos possíveis Mas é sobretudo na experiência concreta anarquista que mais podemos apontar a sua potência no momento presente diante da falência do paradigma representacional. Aqui eu gostaria de remeter inicialmente à própria noção de ação direta . Para os anarquistas, teoria e prática são inseparáveis, justamente porque a ontologia anarquista não é dualista, não separa mente de corpo; abstrato de concreto; representação de representado. A noção central de ‘ação direta’ expressa isso muito bem. Ação direta é muito mais do que aquilo que se comente em manifestações, é uma atitude ética diante do mundo que expressa uma ruptura com os pressupostos da mediação e da representação. Trata-se, antes de tudo, de uma ação que não é indireta, ou seja, que rejeita representantes ou mediações para atingir seus objetivos. Mas não se trata aqui apenas de rejeitar a política institucional, e sim de encarnar na própria ação o objetivo buscado, rompendo com dualismos e com a separação entre meios e fins buscados. Exatamente nessa lógica, David Graeber define ação direta como: Uma forma de ação na qual meios e fins se tornam, efetivamente, indistinguíveis; uma maneira de se envolver ativamente com o mundo para promover mudanças, nas quais a forma da ação – ou, pelo menos, a organização da ação – é em si um modelo para a mudança que se deseja promover (GRAEBER, 2009, p. 210).
Nesse sentido, o próprio ato carrega inteiro aquilo que se pretende, não se espera uma sociedade livre por meio da supressão das liberdades, por exemplo, nem fim das hierarquias pelas ordens. Fazer agora o que se pode para encarnar em ato, não em projeto, um mundo novo. Não ignorando as estruturas de poder existentes, mas agindo contrariamente a essas estruturas para a construção de uma outra realidade. A ação direta é também uma ação educativa pela qual tomamos as rédeas das ações políticas, ela é, portanto, formadora e caminha no sentido inverso à alienação. Ação direta não se baseia no previamente dado, ela é o que cria em atos novos possíveis. Tal como avaliamos, as insurreições contemporâneas são revoltas que se inserem nos limites da representação. Essa afirmação se justifica pelo que elas significam e pela maneira como se organizam, incluindo aí a recusa às representações partidárias, o caráter difuso em rede e a busca por horizontalidade e participação política direta. Mas também entendemos que são acontecimentos que criam possibilidades, que apontam para outros modos de vida possíveis e que, por isso, encarnam um concreto que cria sentidos, que abre possibilidades, que nos lembra da dimensão ética e ontológica da política. Há um âmbito da nossa existência que escapa à representação, e ele se situa na materialidade concreta que a revolta coloca em cena. Pode ser fácil manipular um processo eleitoral e construir fakes espetaculares que signifiquem mais do mesmo parecendo significar o totalmente outro. Mas é impossível falsificar a materialidade da revolta concreta. Há um nível de ação que não pode ser manipulado. Quando por meio da revolta isso se torna uma experiência direta, uma verdade vivida, então ressurge também a possibilidade de uma ordem imanente, de uma unidade que não se opõe rigidamente ao múltiplo. Quando vivemos diretamente uma experiência como essa, ela não é facilmente apagável. Há algo no acontecimento insurrecionário que tem pouca relação com o que se vai ganhar com ele no tempo histórico. Ele é a própria vivência de uma outra configuração. Não existe processo insurrecionário que não carregue consigo ganhos organizacionais. E disso se pode retirar um ganho para o futuro, mas o mais importante é que ali, naquilo que você foi feito, houve um ganho em si. O que os anarquistas sempre lembraram: fazer agora a sociedade que você quer, os meios já são os fins, por isso a ação é direta. O principal da revolta é o que se consegue construir ali mesmo no processo de luta, a pequena comuna autogerida que encarna em ato uma nova maneira de viver e construir conhecimento, e que se expressava como um fim em si. Essa vivência é educativa porque ela ensina muito para quem esteve ali, ensina que a vida pode ser diferente, que a hierarquia não é uma condição necessária à organização, não se pode retirar essa experiência de quem viveu ela, mesmo com as prisões e perseguições, mesmo que se tente dar um outro significado ao processo histórico que seja uma falsificação espetacular. Aquele ou aquela que vivencia a revolta é um agente transformador porque carrega aquela experiência consigo para onde for. O que se quer é reviver aquela experiência, tratam-se de experiências que unem as pessoas, quase com aspectos religiosos, mas não há qualquer pressuposto metafísico nisso. O
nosso modo de vida capitalista contemporâneo, sem forma, espetacular, é muito destituído de sentido. É preciso então lembrar que existe sentido imanente na existência, por vezes a revolta nos possibilita isso. Quando diante das diversas ameças à vida, milhares tomam as ruas, há uma dimensão ética profunda nessa ação. Não havendo como não arriscar a vida, a pergunta que se faz é: pelo que vale a pena viver? Será que a vida de alguns deve continuar valendo a morte de tantos? Camus, também um anarquista, afirmou de modo contundente: só existe uma questão filosófica relevante e ela diz respeito ao suicídio. Segundo Camus, a questão fundamental da filosofia, a única questão verdadeiramente séria, seria saber se vale a pena viver diante da constatação do absurdo, do exílio do mundo, da falta de sentido e da injustiça que se torna a vida nessas condições. E sem dúvida o absurdo nos é cotidiano. É preciso saber se existe algo que justifique a continuação da vida assim, pois, se não houver, se nada fizer sentido, poder se matar é apenas mais uma faceta do poder matar ou deixar morrer o outro. O modo de vida no qual vivemos diz diariamente para milhares de pessoas que a vida delas não vale nada, a partir da divisão entre os que devem morrer para que outros vivam, ele produz e legitima o abandono e a indiferença institucionalizada, espalha tanta morte a ponto de se matar aparecer paradoxalmente como um engajamento consciente na luta contra a naturalização da morte. Só há uma alternativa possível ao suicídio, e ela é a revolta. Afirmar o intolerável sem aniquilar a própria vida. Recusar o absurdo sem renunciar ao mundo. Na revolta, a vida que vale a pena viver também está em questão e muitas vezes inclui ainda um colocar-se em risco de morte. Mas nela o fazemos por um valor imanente à existência, sem renunciar ao mundo, e não por uma transcendência. E só assim é possível haver outro mundo. A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do suicídio e a manutenção desse confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo. O suicídio significaria o fim desse confronto, e o raciocínio absurdo considera que ele não pode endossá-lo sem negar suas premissas. Tal conclusão, segundo ele, seria fuga ou liberação. Mas fica claro que, ao mesmo tempo, esse raciocínio admite a vida como único bem necessário porque permite justamente este confronto, sem o qual a aposta absurda não encontraria respaldo (CAMUS, 1999, p. 16). Revoltar-se é uma atitude afirmativa, quem se revolta não tem esperança de que tudo vai passar, mas não se desespera e conclui que então melhor é nem viver. Entre a esperança e o desespero, há a experiência da revolta: uma espécie de manutenção da tensão diante da existência que não é nem niilista nem otimista. Revoltar-se significa ir contra tudo aquilo capaz de deteriorar, rebaixar, ou seja, diminuir a condição humana, seja a miséria, a morte naturalizada ou a mediocridade. Ir contra isso é dizer ‘não’, mas o ‘não’ da revolta é um não que afirma, que recusa por algo que vale mais na própria vida e que é criado pela própria ação de revoltar-se. Não é o sujeito, portanto, quem se revolta, na revolta, o sujeito encontra-se necessariamente coletivizado, para além de seus limites próprios. Talvez por isso Foucault tenha aproximado a revolta tão fortemente da mística.
Essa prática pela qual o homem é deslocado, transformado, transtornado até a renúncia da sua própria individualidade, da sua própria posição de sujeito. Não mais ser sujeito como se foi até agora, sujeito em relação a um poder político, mas sujeito de um saber, sujeito de uma experiência, sujeito de uma crença. Para mim, essa possibilidade de se insurgir si mesmo a partir da posição do sujeito que lhe foi fixado por um poder político, um poder religioso, um dogma, uma crença, um hábito, uma estrutura social, é a espiritualidade, isto é, tornar-se outro do que se é, outro do que si mesmo (FOUCAULT, 2018, p. 21). O homem revoltado é aquele que é capaz de se lançar ao “tudo ou nada”, ou seja, corre-se o risco conscientemente de morrer, mas somente porque há ainda na afirmação disjuntiva a possibilidade de um ‘tudo’, um tudo que ultrapassa o si mesmo. Assim como no suicídio, a subjetividade é perdida em um para além de si mesmo , mas não por um autoengano que nos conduz de volta à condição de objeto, senão que no encontro com um nós . O ‘tudo’ do ‘tudo ou nada’ não pode ser uma subjetividade, mas é a constatação dos limites do sujeito em uma existência já-com-o-outro . O risco de morte na revolta não é a escolha pela aniquilação, senão que a afirmação de um valor que nos ultrapassa, mas não está fora da vida. No momento em que um povo se revolta e diz coletivamente ‘prefiro arriscar morrer à miséria’ , há uma afirmação de valores aí que não é totalmente explicada pela miséria . Há na revolta um arriscar não ser si mesmo que a aproxima do sacrifício, sem que, por meio dela, se renuncie ao mundo. É uma recusa ao estatuto do sujeito histórico e também, nessa medida, a revolta se diferencia de um projeto racional de revolução, por exemplo, que se desenrolaria no tempo. E talvez também por isso Furio Jesi tenha caracterizado a revolta como um corte na temporalidade histórica: O que mais distingue a revolta da revolução é uma diversa experiência do tempo. Se, com base no significado das duas palavras, a revolta é um repentino foco insurrecional que pode ser inserido dentro de um desenho estratégico, mas que por si só não implica uma estratégia de longo prazo, e a revolução é, por sua vez, um complexo estratégico de movimentos insurrecionais coordenados e orientados relativamente a longo prazo em direção a objetivos finais, seria possível dizer que a revolta suspende o tempo histórico e instaura repentinamente um tempo em que tudo isso que se realiza vale por si só, independentemente de suas consequências e de suas relações com o complexo de transitoriedade ou de perenidade no qual consiste a história (JESI, 2018, p. 63). Estabelecer algo com valor em si, dizer o que é intolerável. E, ao dizer o que é intolerável, a miséria, o absurdo, afirmar também o que é necessário, para além do si mesmo atomizado. Isso, que ganha um estatuto de necessidade, o faz precisamente pela força da recusa em questão. É nessa medida que um ‘não’ pode ser afirmativo. Dizer ‘não’ mas sem se retirar do mundo, ainda que arriscando a própria identidade subjetiva por um valor que é tomado como necessariamente coletivo, eis a coletivização da experiência. Transformar o momento suicidário em momento revoltoso, ou seja, em que a morte de todos parasse de ser naturalizada pela coletivização dos suicídios porque nada tem valor nenhum para que na afirmação do valor em si da vida nenhuma morte se tornasse tolerável desde que a nossa existência nos
aparecesse como necessariamente coletiva. Na conduta suicidária, a morte de alguns é legítima porque a morte de todos é naturalizada. Quando a morte de alguns é justificada acaba-se que nenhuma vida tem valor em si. Na revolta, por outro lado, nenhuma morte pode ser aceitável porque o valor da existência é já um ser-com-o-outro necessário, e não algo que esperaria ser justificado externamente para valer. Nada, nem a economia, nem a religião, nem o poder, nem o aparente Deus-dinheiro, nem mesmo a revolução, entendida como objetivo de um processo histórico, pode valer mais do que a existência no agora. Se isso ficar claro, podemos ver o que é realmente necessário e o que é dispensável. A revolta nos faz ver que o que permite a representação não pode ser do âmbito da representação. E esta é uma observação que concerne à linguagem, à política e à ética. Romper a barreira dualista entre abstrato e concreto, possibilitar que um passe ao outro, vivenciar que o que nos constitui é a relação e o comum e que, dessa maneira, algo que tem um valor de mero fato pontual no mundo pode ganhar um valor semântico de fundamento e, a partir disso, de reestruturação significativa da realidade. Referências bibliográficas BAKUNIN, M. Consideraciones filosóficas sobre el fantasma divino, sobre el mundo real y sobre el hombre . Archivo Miguel Bakunin, 1870. Disponível em: < https://miguelbakunin.files.wordpress.com/2008/09/ consideracionesfilo.pdf >. Acesso em: 5/6/2020. BAKUNIN, M. Estatismo e Anarquia . São Paulo: Imaginário, 2003. CAMUS, A. O Homem Revoltado . Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1999. COMITÊ INVISÍVEL. A Insurreição que Vem . Tradução das Edições Baratas. Brasil, 2013. Disponível em: < https://dazibao.cc/wp-content/uploads/ 2015/11/A-insurreic%CC%A7a%CC%83o-que-vem-CI.pdf >. Acesso em: 5/6/2020 DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo . Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2017. FOUCAULT, M. O Enigma da Revolta . Tradução de Lorena Balbino. São Paulo: N-1, 2018. GRAEBER, D. Direct Action: An Ethnography. Oakland: AK Press: 2009. JESI, F. Spartakus: Simbologia da Revolta. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. São Paulo: N-1, 2018. KANT, I. Crítica da Razão Pura (CRP).Tradução de Valeŕio Rohden. São Paulo: Abril Cultural, 1987. PROUDHON, P-J. De la création de l’ordre dans l’humanité ou Principles d’organization politique . Besançon, 1843.
1 Entendemos aqui por modernidade o período da história do pensamento situado pós-renascimento, isto é, a partir do século XVII. 2 Aqui é útil lembrar que a dialética sustentada por Bakunin é, em grande medida, influenciada pela dialética proudhoniana, ou seja, dialética serial sem síntese. 5 ANARQUISMO, EDUCAÇÃO E AUTOFORMAÇÃO Sílvio Gallo Em 1990, Maurício Tragtenberg submeteu-se a concurso para ocupar o cargo de Professor Titular na Faculdade de Educação da Unicamp, onde já atuava há tempos. Como exigência para o concurso, escreveu um Memorial, que seria publicado em 1991 pela revista Pro-Posições , editada por aquela Faculdade. Nesse texto, traça suas memórias, desde a infância vivida no interior do Rio Grande do Sul, numa família judia oriunda da Ucrânia, até sua atuação como docente e pesquisador, formador de mestres e doutores na Universidade. O traço marcante foi sua formação autodidata, com passagem de apenas três anos pela escola formal e ingresso na graduação na Universidade de São Paulo através da apresentação de uma monografia, que o habilitaria a prestar o vestibular, mesmo não tendo a escolarização necessária. Também o doutorado ele relata ter feito de modo não convencional, visto que utilizou uma internação de 90 dias numa instituição médica para tratar um colapso nervoso, em 1964, para ler muito e estruturar as linhas gerais daquilo que viria ser Burocracia e Ideologia , sua tese de doutorado defendida na USP, na área de Política, e depois publicada em livro. Vejamos, em suas próprias palavras, como ele abre esse documento acadêmico: O fato de estar, no presente momento, prestando concurso para professortitular da Faculdade de Educação da Unicamp, ante uma banca examinadora composta por professores titulares e titulados, é um desafio. Na medida em que o candidato a professor-titular não teve uma formação escolar “convencional”, concluiu seus estudos em nível de 1 o grau no terceiro ano primário, retomou os estudos escolares através do ingresso na FFCHL da USP mediante apresentação de uma monografia à congregação da mesma. Apesar de uma “formação” não-convencional e de uma trajetória pósgraduada não-convencional, também acredita o candidato ter conseguido acumular um mínimo de “capital cultural” para lidar com o ensino e pesquisa acadêmicos e manter uma atividade extra-acadêmica dirigida aos trabalhadores através de uma coluna sindical na imprensa diária paulista (TRAGTENBERG, 1991, p. 79). Tragtenberg foi econômico em seu Memorial; narrou uma trajetória rica, densa e múltipla em pouco mais de dez páginas datilografadas. Esse material, porém, seria sensivelmente ampliado com uma longa entrevista que ele havia concedido, em 1983, ao Centro de Memória Sindical, mas que
só seria editada e publicada postumamente, em 1999, na qual seu percurso acadêmico, intelectual e de vida é apresento com detalhes. Não é meu objetivo aqui comentar a trajetória deste intelectual brasileiro, apenas chamar a atenção para o inusual de seu percurso acadêmico, marcado pelo autodidatismo, que ele narra de modo apaixonado, seja no Memorial seja no livro póstumo, Memórias de um autodidata no Brasil (1999). Como aprender fora da escola, que esforços faz alguém para construir um saber, um pensamento, para construir a si mesmo, às margens de um sistema educativo institucionalizado? Partindo da trajetória memorialística e reflexiva de Tragtenberg, meu objetivo neste texto é examinar alguns elementos da pedagogia libertária além da prática escolar, pensando os processos formativos como uma autoformação, isto é, como formação de si mesmo enquanto sujeito ativo e plástico. Para isso, recorrerei também à filosofia de Foucault, que resgatou em suas pesquisas sobre as práticas de si na Antiguidade greco-romana aquilo que ele caracterizou como uma “Psicagogia”, uma condução da alma, uma condução de si mesmo, no contraponto à Pedagogia como via de acesso aos saberes. Os anarquistas, comprometidos com um amplo processo de transformação social, dedicaram especial interesse à educação, como processo formativo do ser humano segundo valores e princípios articulados com a desejada nova sociedade. Para isso, dedicaram-se tanto à construção de escolas à margem do sistema educativo capitalista público ou privado, para ensinar as novas gerações, como dedicaram-se a processos de educação não formal, visando levar aos trabalhadores possibilidades efetivas de se educarem, diante da falta de oportunidades num contexto de sobre-exploração no mercado de trabalho capitalista. ¹ É no contexto desta educação não formal que podemos encontrar os esforços de educar-se a si próprio, que ficou conhecido no seio do movimento como autodidatismo. Em uma tese de doutorado ( Pedagogia Libertária e Autodidatismo ) orientada por Tragtenberg, Antonio José Romera Valverde (1996) aprofundou-se neste campo estudando, de um lado, a educação integral e o ensino racionalista de Ferrer i Guàrdia, manifestados no projeto de uma Escuela Moderna ; e de outro, o fenômeno do autodidatismo, visto que inúmeros militantes anarquistas brasileiros e estrangeiros relatam um percurso formativo no qual foram incitados a aprender por si mesmos. A tese traz, em apêndice, uma longa “entrevista-depoimento” com Jaime Cubero (1926-1998), ² intelectual, jornalista e militante anarquista brasileiro, um dos responsáveis pela reabertura ao público do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP), em meados da década de 1980. Cubero relata que estudou apenas até a terceira série primária em escola regular (VALVERDE, 2007, p. 398) e não fosse sua formação autodidata não teria tido condições de registrar um certificado de jornalista, que lhe permitiu desempenhar a profissão. O militante anarquista assinala a importância da educação para o processo de transformação social defendido pelo anarquismo:
O anarquista pensa em alterar, em modificar a sociedade. Para modificar a sociedade, ele considera que o ensino, a instrução, o conhecimento são alavancas necessárias. As pessoas têm que se munir de conhecimentos para poder agir no sentido de mudar a sociedade, o que significa mudar a estrutura social. Então, é claro, não é por meio da escola oficial que as pessoas vão se preparar para mudar a sociedade. É mediante a aquisição de conhecimentos que possam gerar e desenvolver uma consciência crítica. Para quê? Para justamente se contrapor à estrutura da sociedade, como ela está constituída, e poder trabalhar para criar uma nova sociedade (CUBERO apud VALVERDE, 2007, p. 398). Na entrevista, analisa-se a importância de instituições como o Centro de Cultura Social, criado em São Paulo em 1933, que permitem que trabalhadores pesquisem, estudem, consultem a biblioteca, acompanhem palestras e cursos, formando-se através do acesso a uma cultura que não lhes foi disponibilizada pela escola formal. ³ Valverde (1996) destacou em sua tese que o autodidatismo pode ser compreendido como um fenômeno de educação desescolarizada, não formal e não oficial, desenvolvido em organizações de trabalhadores, como a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) espanhola e o CCS-SP, acima citado, nas quais “o autodidata anarquista opera o seu autoaprendizado em vista de um horizonte político e ético (…) com uma pitada de utopia”. E esclarece: A bandeira do autodidatismo é a recuperação do indivíduo, enquanto sujeito de sua aprendizagem, em confronto com a massificação promovida pelas escolas e meios de comunicação, com a proverbial avalanche de informações incompletas, fraccionadas e politicamente comprometidas, por mais jargão comum que esta afirmação possa parecer. E, justamente, nisto reside a atualidade deste tema. Já que frequentar os bancos escolares, na atualidade, tem sido um rito de passagem , extremamente vazio, para a maioria dos estudantes, fruto no mais das vezes da incuriosidade pessoal, da ausência de horizontes políticos e culturais. Além do que, o autodidata, ao romper com o formalismo da educação escolar tradicional, cria condições de antecipar-se e engendrar novas fronteiras de assimilação, discussão e abordagem de problemas tradicionalmente esquecidos ou resolvidos de maneira chã. Coisa que historicamente os autodidatas têm feito. Mal comparando, o autodidatismo está para a lógica dialética como a educação formal está para o Organon aristotélico. O autodidatismo é o reino da conquista e afirmação da liberdade individual, sobre as estruturas da microfísica do poder instituído. O autodidatismo é a afirmação da individualidade, porém contrária ao individualismo burguês e pequeno-burguês, na medida em que o anarquista é – ao menos no seu ideário e horizonte político e ético – o antípoda desses tipos sociais (VALVERDE, 1996, p. 9-10). Podemos dizer, nessa esteira, que o autodidatismo é um modo especial de individualismo, naquilo que diz respeito ao conhecimento. O autodidata é aquele que constrói seu próprio caminho e percurso de estudos; seja com experiências coletivas, seja em experiências próprias, o aprendizado é de cada indivíduo, é a afirmação da individualidade (eu preferiria dizer da “singularidade”) de cada um. ⁴ No capítulo em que aprofunda o fenômeno do
autodidatismo e busca sua fundamentação filosófica, Valverde (1996, p. 223 e seguintes) cita uma longa tradição, que vem de Epicuro e passa pela filosofia moderna, com Maquiavel, Bacon, Descartes, Locke, até o Iluminismo de Kant, com o lema “ousai saber”. O autodidatismo não é uma exclusividade do anarquismo, mas neste movimento sociopolítico ele ganhou ares de estratégia de luta, dada a centralidade da educação no projeto de transformação social libertário, não sendo poucos os militantes que vivenciaram esse tipo de formação. ⁵ Importante também salientar que o autodidatismo muitas vezes foi a única opção para muitos filhos da classe operária que, sem possibilidade de acesso ou permanência na escola formal, recorreram a ele para poder estudar e construir suas vidas. Esse foi o caso dos dois militantes intelectuais brasileiros aqui citados, Tragtenberg e Cubero, ambos tendo tido apenas três anos de escolarização oficial. Os termos “autodidatismo” e “autodidata” estão enraizados na tradição anarquista; no entanto, quero chamar a atenção para um reducionismo neles implicado. Se buscamos a etimologia da palavra, veremos que ela deriva do verbo grego didásko , que significa ensinar (cf. CASTELO; MÁRSICO, 2007, p. 89-91). Assim, autodidata ( autodaés , no grego) é aquele que ensina a si mesmo, que aprende sozinho, sem interferência de outrem, sem intermediação de um professor. As palavras, então, têm uma relação direta com o aprendizado, com a dimensão dos saberes que podem ser aprendidos, assimilados. É isso que estou assinalando como um reducionismo, visto que o autodidatismo anarquista implica muito mais do que ter acesso a saberes e a conhecimentos sem a intermediação da escola ou de um professor; o anarquista autodidata é alguém que toma as rédeas de sua própria formação. Formação como ser humano, como sujeito, como militante político e social. Muito mais do que se formar como sujeito de conhecimento, tratase de um formar-se também como sujeito político, mas, sobretudo, como ser humano. Por essa razão, proponho usar um termo mais amplo: o que vemos na narrativa de vidas libertárias, como nos exemplos de Tragtenberg e de Cubero, apenas “arranhados” páginas atrás, é um amplo processo de formação de si mesmo , que podemos designar por autoformação. Para reforçar essa imagem, recorro a Foucault. O filósofo francês do século XX, bastante conhecido por suas análises em torno das tecnologias de poder e das relações deste com o saber, dedicou seus últimos trabalhos para estudar os processos de constituição do “sujeito”. Abandonou o conceito moderno de sujeito, como fundamento e universal, para pensá-lo como produto histórico, como resultado das relações de poder. Esse processo que podemos chamar de assujeitamento – isto é, ser sujeitado pelas relações de poder – não impede, porém, que esse mesmo sujeito possa agir sobre si, transformando-se, o que Foucault denominou de subjetivação. Por exemplo, num texto em que explorou as relações entre o sujeito e o poder, afirmou que as principais lutas políticas e sociais de nosso tempo são aquelas que implicam uma resistência em relação às formas pelas quais somos assujeitados e subjetivados (FOUCAULT, 2014a, p. 123). Para ele, essas lutas contra a submissão são atualmente mais importantes que as lutas contra a dominação (política) e contra a exploração (econômica). Sim, somos dominados e explorados, mas também somos subjetivados pelas relações de poder que se impõem a nós; cumpre, pois, resistir a essas forças, lutar contra elas, sendo que o mais urgente é lutar contra as formas pelas quais
somos constituídos sujeitos, para que possamos também lutar contra a dominação política e a exploração econômica. Ainda que muitos anarquistas se recusem a ver traços libertários no pensamento de Foucault, penso haver em seu trabalho um viés libertário forte e indelével. ⁶ Tal viés está marcado no trecho que cito em seguida: Sem dúvida, o objetivo principal, hoje, não é descobrir, mas recusar o que somos. Devemos imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos dessa espécie de “dupla obrigação” política que são a individualização e a totalização simultâneas das estruturas do poder moderno. Poder-se-ia dizer, para concluir, que o problema, ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico que se apresenta a nós, hoje, não é de tentar liberar o indivíduo do Estado, e de suas instituições, mas de nos livrarmos, nós , do Estado e do tipo de individualização que a ele se prende. Precisamos promover novas formas de subjetividade, recusando o tipo de individualidade que se nos impôs durante vários séculos (FOUCAULT, 2014a, p. 128). Ora, haverá projeto mais anarquista do que nos liberar, coletivamente, do Estado que nos impõe uma forma de ser, um processo de assujeitamento, que nos emaranha em relações de poder que nos fazem sermos algo que não desejamos ser? ⁷ Não será este projeto de recusar uma vida imposta pelo Estado e pelas condições sociais que fez com que Mauricio Tragtenberg e Jaime Cubero, por exemplo, tomassem as rédeas de seus estudos e de suas vidas, construindo-se a si mesmos numa direção distinta daquela que a eles estava destinada? Recusar o que somos, aquilo que fazem de nós, para que possamos construir nossa própria subjetividade. Não de modo absoluto e universalizante, posto que estamos emaranhados nessas relações de poder, mas, de dentro delas, agir sobre nós mesmos, ter a ousadia de sermos diferentes daquilo que a nós se destina, construindo vidas outras e relações outras. O autodidatismo anarquista é um investimento de si mesmo nesta direção. Uma construção de si; por isso, penso que ele é muito mais do que simplesmente um autoaprendizado, mas uma autoformação, um trabalho intenso de recusar aquilo que é imposto para, corajosamente, escolher desenhar seu próprio perfil, ainda que se parta disso que foi feito de nós mesmos. Seguindo nessa linha analítica proposta por Foucault, como pensar o autodidatismo para além da mera relação com os saberes e o autoaprendizado, tencionando uma autoformação? Em suas pesquisas visando construir uma história da sexualidade no Ocidente, o filósofo debruçou-se sobre textos gregos, romanos e cristãos da Antiguidade, tentando compreender como as pessoas naquela época relacionavam-se com seus corpos e viviam a sexualidade. Nessa investigação, acabou deparandose com um tema muito mais amplo: os processos de subjetivação, isto é, os modos de cada um relacionar-se consigo mesmo. Os estudos de Foucault neste campo são múltiplos e complexos; aqui tomarei apenas dois aspectos, para ajudar a pensar a problemática da autoformação. ⁸
O primeiro aspecto diz respeito à relação de si consigo mesmo, como modo de produção da própria vida, o que nos leva às noções libertárias de autonomia e de singularidade. Foucault analisa a reflexividade da partícula “si”, explicando por que ele prefere falar em “si mesmo” para designar a subjetividade de um sujeito que se volta para si mesmo: por “si” eu entendo o tipo de relação que o ser humano enquanto sujeito pode ter e nutrir com ele mesmo. Por exemplo, o ser humano pode ser, na cidade, um sujeito político. Sujeito político, isso quer dizer que ele pode votar, ou que ele pode ser explorado pelos outros etc. O si seria o tipo de relação que este ser humano enquanto sujeito tem com ele mesmo numa relação política. Podemos chamar isso de “subjetividade” em francês, mas não é satisfatório, eu penso que “si” é melhor. E este tipo de relação do sujeito consigo mesmo é, eu creio, o alvo das técnicas… (FOUCAULT, 2013, p. 131). Atentemos para a afirmação final: o si é o alvo daquilo que Foucault denominou de “técnicas de si”, formas práticas que cada um pode utilizar para construir-se, transformar-se, a partir da constituição de cada um como sujeito nas relações de poder. Essa ação na constituição de si mesmo, que o filósofo descobriu na Antiguidade greco-romana, constitui o que ele denominou de “estética de si”, “estética da existência”, que está direcionada para que cada um faça de sua vida uma “obra de arte”, colocando em relevância a plasticidade da vida e dos sujeitos. ⁹ Em uma palavra: não é porque somos sujeitados, frutos das relações de poder, que não podemos ser os condutores de nossas vidas, construir cada uma em sua singularidade, com autonomia, com estilo próprio. Isso nos leva ao segundo aspecto que quero destacar. Estudando as técnicas de si desenvolvidas pelos gregos na Antiguidade, Foucault chama a atenção para o fato de que a filosofia naquela época era, hegemonicamente, um conjunto de exercícios espirituais através dos quais o sujeito agia sobre si mesmo, conhecendo-se e inquietando-se consigo mesmo e, com isso, procurando transformar sua vida, viver melhor. ¹⁰ É apenas na modernidade, com uma perspectiva cartesiana, que a hegemonia da prática filosófica recai sobre um saber especializado, uma busca pela verdade. Dois conjuntos de técnicas de si são estudados a fundo por Foucault e analisados em seus cursos no Collège de France entre 1982 e 1984: cuidado (inquietude) de si e parresia , o dizer verdadeiro. Pensando tais práticas de si, Foucault propõe que se a Pedagogia é a condução do sujeito na aprendizagem de determinados saberes, poderíamos pensar uma “Psicagogia”, uma condução (sentido do radical grego agogôs ) do espírito, da alma (do grego, psykhé ): Chamemos, se quisermos, “pedagógica” a transmissão de uma verdade que tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidades, saberes, etc., que ele antes não possuía e que deverá possuir no final desta relação pedagógica. Se chamamos “pedagógica”, portanto, esta relação que consiste em dotar um sujeito qualquer de uma série de aptidões previamente definidas, podemos, creio, chamar “psicagógica” a transmissão de uma verdade que não tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, etc.,
mas modificar o modo de ser do sujeito a quem nos endereçamos (FOUCAULT, 2004a, p. 493). Podemos pensar a relação Pedagogia/Psicagogia como uma oposição ou mesmo contraposição, como se fossem dois modelos educativos totalmente distintos; mas, também podemos vê-las como complementares: um processo educativo no qual o aprendiz é conduzido no aprendizado de saberes, mas também – e ao mesmo tempo – é conduzido espiritualmente, na construção de si mesmo como sujeito capaz de transformar-se, de mudar sua vida e mudar a si mesmo. Um processo formativo não pode prescindir de nenhum dos dois elementos: se deixar de lado o pedagógico, formará alguém incapaz de articular os saberes; se deixar de lado o psicagógico, formará um sujeito incapaz de agir sobre si mesmo, transformando-se, ficando sujeitado às condições impostas. É, pois, nessa direção que proponho retomarmos a prática libertária do autodidatismo. A formação militante do anarquista é, necessariamente, uma busca de conhecimentos, um acesso à multiplicidade de saberes construídos pela humanidade e nesta prática autônoma e autonomista, na celebração da liberdade de aprender, cada um busca aquilo que lhe interessa, construindo seu próprio percurso de aprendizado. Mas essa formação militante é também e ao mesmo tempo uma formação de si mesmo, de um sujeito capaz de tomar em suas mãos a condução de sua vida, de transformar-se a si mesmo na busca incessante de transformação do mundo. Por essa razão, repito, o termo autodidatismo parece ser reducionista, uma vez que se colocaria exclusivamente do lado do pedagógico, do acesso aos conhecimentos, não se referindo ao processo de subjetivação que está necessariamente implicado na constituição do ser humano militante, capaz de pensar por si mesmo, de decidir autonomamente, de transformar-se enquanto luta pela transformação social. De forma que o processo de construção de vidas libertárias, anarquistas, pode ser compreendido como um múltiplo movimento de autoformação, no qual o sujeito, forjado na contingência das relações de poder, toma em suas mãos as rédeas de sua vida e constrói-se a si mesmo, enfrentando os desafios impostos pelo mundo e pela sociedade, constituindo-se de modo singular e lutando por uma vida mais justa e digna, não apenas para si mesmo, mas para a coletividade humana. Referências bibliográficas CASTELLO, L. A.; MÁRSICO, C. T. Oculto nas palavras – dicionário etimológico para ensinar e aprender . Belo Horizonte: Autêntica, 2007. DELEUZE, G. Diferença e Repetição . 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito . São Paulo: Martins Fontes, 2004a. __. Uma estética da existência. In: Ditos e Escritos V – ética, sexualidade, política . Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b, p. 288-293.
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VALVERDE, A. Socialismo libertário, educação e autodidatismo: entrevistadepoimento de Jaime Cubero. Revista Educação e Pesquisa . São Paulo, v. 34, n. 2, p. 393-408, maio/ago. 2007. 1 Análises em torno de experiências de pedagogia libertária no âmbito escolar podem ser encontradas em Gallo, 1995 e Gallo, 2007. 2 A entrevista-depoimento foi publicada de forma independente pela revista Educação e Pesquisa , da FEUSP. Ver Valverde, 2007. 3 Convém destacar, também, a importância do Centro de Cultura Social como local de formação complementar, para aqueles que passaram por uma escolarização formal. Minha geração, por exemplo, teve acesso à bibliografia e a palestras sobre anarquismo nesta instituição a partir de 1985, quando foi reaberta no processo de redemocratização do país. À época, material de estudo e de formação eram muito escassos e o acolhimento e generosidade de Jaime Cubero e da equipe do CCS possibilitou a formação de uma nova geração de militantes anarquistas no Brasil. 4 Não tenho condições aqui de enveredar por esse caminho, mas se pensarmos, na companhia de Gilles Deleuze (2006), o aprender como um “acontecimento no pensamento”, forçosamente reconheceremos que todo aprendizado é singular. Não importa se se aprende com alguém, se se aprende numa experiência coletiva, em grupo, cada um produz seu próprio aprendizado, resultado de encontros que só podem ser singulares, embora se façam com outros. Ao leitor interessado em seguir essa pista recomendo, além do livro de Deleuze, um artigo de minha autoria: “O aprender em múltiplas dimensões” (GALLO, 2017). 5 Um aspecto importante do autodidatismo no movimento anarquista é seu aspecto de formação profissional. Atualmente, na França, Hugues Lenoir, professor emérito da Universidade de Paris X – Nanterre, dedica-se ao tema da educação popular permanente e ao tema da Validação das Aquisições de Experiências Profissionais, como estratégia de colocação para trabalhadores que não passaram por processos formais de aprendizado profissional, mas que dominam os saberes e habilidades necessários. Para ele, os processos educativos são necessariamente emancipadores do sujeito, como trabalhado em um de seus livros publicados no Brasil, Educar para emancipar (LENOIR, 2007). 6 O próprio Foucault recusou-se a se identificar como anarquista, tecendo críticas ao anarquismo como uma perspectiva político-social que recusa o poder, o que para ele é algo inadmissível, visto ser impossível para o ser humano estar fora das relações de poder. 7 Não tenho a intenção de transformar Foucault em anarquista, mas penso ser plenamente possível uma leitura libertária de seu pensamento. Ainda que em alguns momentos de sua obra ele produza críticas ao Anarquismo como movimento histórico, há aspectos de seu pensamento que muito se aproximam das perspectivas anarquistas. Sugiro, por exemplo, a leitura de um ensaio do italiano Salvo Vaccaro (s/d) em que ele perpassa a obra de Foucault, ressaltando trechos de crítica ao Anarquismo e trechos em que sua aproximação com esse pensamento é evidente.
8 Ainda que proponha substituir a noção de autodidatismo pela de autoformação, penso ser importante uma observação crítica. A ideia de formação é uma ideia moderna, que mobiliza as perspectivas educativas, escolares e não escolares. Formar é dar forma, é colocar numa forma. É como se se definisse de antemão o que alguém é – ou deve ser – para impor a esse alguém essa forma. Claro que quando se fala aqui em autoformação essa noção se transforma, visto tratar-se mais de uma construção de si mesmo a partir dos dados situacionais e ambientais. Tomo a liberdade de sugerir ao leitor dois textos nos quais procurei ir além da noção moderna de formação com o suporte de autores da filosofia contemporânea: dialogando com Nietzsche e Deleuze (GALLO, 2012) e dialogando com Foucault (GALLO, 2016). 9 São diversos os trabalhos de Foucault sobre este tema; cito apenas dois, para os leitores que tenham interesse em saber mais sobre isso: o texto “Sobre a genealogia da ética” (FOUCAULT, 2014b), no qual ele passa em revista o trabalho que vinha desenvolvendo; e a conhecida entrevista “Uma estética da existência”, concedida pouco antes de sua morte (FOUCAULT, 2004b). A partir deles, o leitor poderá recorrer a outros textos do período para aprofundar o tema. 10 Foucault toma de seu colega Pierre Hadot, estudioso especialista em filosofia antiga, essa noção de exercícios espirituais. Hadot reconhece que a expressão “exercícios espirituais” soa estranha para leitores contemporâneos, mas afirma que ela parece mais apropriada do que falar em exercícios de pensamento, exercícios éticos, exercícios psíquicos, exercícios morais, exercícios intelectuais, pois cada uma delas tem suas próprias limitações. E arremata: os exercícios espirituais “correspondem a uma transformação da visão do mundo e a uma metamorfose da personalidade. A palavra ‘espiritual’ permite fazer entender que esses exercícios são a obra, não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo (…).” (HADOT, 2002, p. 21). 6 EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA: DESAFIOS E CAMINHOS DE ESPERANÇA Ana Paula Massadar Morel Rodrigo de Almeida Ferreira Que vivan los estudiantes/ Jardín de nuestra alegría/ Son aves que no se asustan/ De animal ni policía Violeta Parra, “Me gustan los estudiantes” A educação, em especial sua perspectiva escolar como instituição pilar das sociedades contemporâneas, é um tema complexo e de inquietações. Proposições pedagógicas têm sido estruturadas e redefinidas passo a passo às disputas socioeconômicas. Debruçar sobre a história da educação nos
leva a um questionamento premente: a escolarização é emancipadora ou um mecanismo de controle social? A resposta é ambígua, inconclusa. Por isso mesmo, é sempre urgente nos debruçarmos sobre suas possibilidades. Um dos caminhos críticos e propositivos sobre a relação sociedade e escola, ou mesmo a educação – por um ângulo ampliado –, tem sido apresentado pelo anarquismo. Considerando nosso contexto e de outras regiões, como Rojava e o território zapatista, propomos neste artigo explorar atualizações, desafios e experiências para a educação. Enfatizando o Brasil, somos instigados pelas manifestações de 2013 e movimentos que trazem diálogos estreitos com aquelas mobilizações, como as ocupações estudantis de escolas e universidades, nos anos de 2015-16, que possibilitaram experimentos de democracia direta a partir de uma crítica da política representativa. O marco é uma questão socialmente viva e do tempo presente, pois, ao exemplo do que ocorre internacionalmente, nos últimos anos, assistimos, em sentido contrário das resistências e inovações daqueles movimentos sociais, um avanço do conservadorismo e neoliberalismo. Nesse novo contexto, como pensar a educação anarquista enquanto prática viável nos dias atuais? A escola tem correspondido às expectativas das atuais gerações de educandos? Existem experiências educativas hoje que permitem colocar em prática os princípios da educação libertária? O que elas nos ensinam? Elas poderiam ser um contraponto à instituição escolar? Nossa reflexão parte da premissa de que a educação libertária nos possibilita uma radicalização do público, a partir da participação direta dos envolvidos nos processos educativos e uma oposição ao sistema capitalista. Nesse sentido, nos propomos a pensar a educação libertária como uma Zona Autônoma Temporária , ideia desenvolvida por Hakin Bey, ¹ que pode ser viabilizada nos mais diferentes espaços: educação pública, cursos comunitários pré-universidade, coletivos de mulheres etc. Para tanto, procuramos destacar aspectos basilares da educação libertária relacionando-os às experiências dos movimentos sociais citados. A compreensão das práticas experimentadas desses movimentos à luz da perspectiva educacional é tensionada ante as políticas educacionais em curso de ataques à escola pública, praticados por setores sociais, incluindo o governo executivo federal. Ou seja, buscamos estimular a reflexão sobre como a educação libertária se coloca no âmbito da defesa da educação pública que valoriza o protagonismo social e a criticidade, contra propostas conservadoras materializadas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Reforma do Ensino Médio e o projeto de lei homeschooling ; para ficar em alguns exemplos. Por esse percurso, almejamos mostrar as possibilidades da educação anarquista, enquanto práticas pedagógicas sistematizadas em ações de movimentos sociais ou mesmo práticas didáticas nas salas de aula ou em espaços não escolares, como viabilizadores de momentos de autonomia, ainda que temporários, mas que semeiem resistências e transformações. Educação libertária em movimento No Ocidente cristão, são antigas as propostas de escolarização, como as universidades medievais ou as tentativas de sistematização do ensino,
exemplificadas pela Ratio Studiorum da ordem católica jesuíta ou a Didática Magna redigida pelo protestante Ian Comenius, na virada do século XV e primeiras décadas do XVI. ² Todavia, a partir do final do século XVIII, a escola como conhecemos se viabilizou com o projeto liberal iluministapositivista e reorientou a formação dos Estados Nacionais contemporâneos. Sem perder a herança cristiana, a escola ganhou crescente dimensão universalista na reorganização social em torno das novas relações de trabalho decorrentes da industrialização e da urbanização, tal qual um termômetro para medir em que estágio o país se encontrava no processo civilizador. A escolarização se tornou referência civilizacional e parâmetro para quem, de fato, estava incluso na sociedade de Estado. A disciplina e a ordem valorizadas no modelo escolar deviam compor o cidadão contemporâneo e, ainda, ajudar a controlar a massa de trabalhadores mal remunerados e desprovidos de direitos. O projeto avançou célere nos países pioneiros do capitalismo industrial e se adequou ao novo imperialismo do Norte sobre a África-Ásia e aos novos territórios recém-independentes da colonização ibérica. Dois exemplos ajudam a dimensionar, na perspectiva civilizatória, os impactos da escola no imaginário social. Ainda no II Império brasileiro, que se espelhava em Paris como referência cultural, havia a compreensão de funções distintas da escola. Para os filhos da elite econômica, a perspectiva pedagógica da erudição dos liceus franceses. Para os pobres e trabalhadores livres – em um contexto de permanência da violenta escravização de pessoas negras –, a escola era caso de saúde, preocupada em incutir hábitos de higiene, bem como o comportamento disciplinado; e assim não colocar a elite econômica e política em risco com epidemias e revoltas (KHULMMAN JR., 2005). Outro exemplo está na associação do letramento à cidadania. Saber escrever para poder votar foi estabelecido como critério na primeira Constituição da república brasileira (1891) e essa exigência perdurou até a Carta Magna de 1988, quando o direito ao voto foi universalizado para maiores de 18 anos. ³ Com sua difusão pelas cidades, o viés classista e ordenador das escolas não passou despercebido. De modo geral, ainda no século XIX, as críticas feitas por agitadores trabalhistas e sindicatos denunciavam que o sistema escolar montado pelo Estado não visava à autonomia do trabalhador assalariado. Além de Karl Marx, ⁴ outros pensadores ligados às lutas trabalhistas – muitos dos quais passariam a ser identificados como anarquistas – teceram reflexões que diagnosticaram o início da escolarização. Citamos o professor libertário Max Stirner e sua contundente desconfiança da escola que, na sua leitura, seguia dois modelos de educação: humanista e realista. Ambas eram insuficientes aos interesses da população pobre, pois a primeira estava assentada na erudição e valores sociais de uma classe dominante; enquanto o realismo (carregada de tecnicismo por trás da ideia de ciência) apenas adestrava o trabalhador para suas funções na cadeia de produção sem, contudo, proporcioná-lo a emancipação. N’ O falso princípio da nossa educação , publicado em 1842, Stirner sinaliza outra questão que perdura e aflige a relação pedagógica entre escola, professor e estudantes: A miséria da nossa educação até os nossos dias reside em grande parte no fato de que o Saber não se sublimou para tornar-se Vontade, realização de
si, prática pura. (…) A maioria dos futuros mestres é o exemplo vivo dessa orientação. Cortaram-lhes magnificamente as asas: agora é sua vez de cortar as dos outros! Foram adestrados, é sua vez de adestrar! (STIRNER, 2001, p. 81). A ambiguidade da escola, ora proporcionando conhecimento sistematizado e ampliando as possibilidades de leitura de mundo, ora restringindo o uso pleno dessas leituras devido ao seu papel no controle social, portanto, está nos pilares da instituição escolar. A crítica aos seus usos e abusos, sobretudo por intelectuais e trabalhadores, gerou alternativas. Destas, nos interessam aquelas rotuladas como anarquistas. Não obstante, é complexo entender uma pedagogia anarquista, haja vista a própria complexidade da Anarquia enquanto cultura política. Como sinalizado por Woodcock (1985), a concepção de anarquismo é difusa e usada recorrentemente para desqualificar as ações de homens e mulheres que tanto incomodaram o status quo . Para o autor, os anarquistas almejam a organização social sem uma estrutura de Estado, todavia, sem abrir mão da ideia de sociedade. Nesse sentido, historicamente: as raízes do pensamento anarquista são antigas. Doutrinas libertárias que sustentavam que, como ser normal, o homem pode viver melhor sem ser governado já existiam entre filósofos da Grécia e da China Antiga, e entre seitas cristãs heréticas da Idade Média. Filosofias cuidadosamente elaboradas e que eram totalmente anarquistas começaram a aparecer já durante o Renascimento e a Reforma, entre os séculos XV e XVII, e principalmente no século XVIII, à medida que se aproximava a época das revoluções Francesa e Americana (…). Como movimento ativista, buscando mudar a sociedade por métodos coletivos, o anarquismo pertence unicamente aos séculos XIX e XX ⁵ (WOODCOCK, 1985, p.14). A ressalva sobre a dificuldade em se buscar uma pedagogia anarquista é importante, especialmente, considerando dois aspectos neste artigo. O primeiro é que um projeto educacional anarquista equiparado aos modelos tradicionais implicaria centralização reguladora aos moldes do Estado. De fato, nossas reflexões não partem da premissa da aplicação vertical de uma pedagogia libertária a ser seguida por algum sistema educacional. O segundo ponto é que as experiências de educadores anarquistas são acumulativas, servem de inspiração para novas aplicações, conforme adequações às conjunturas. Ou seja, não se pensa a prática educacional libertária como um manual, um receituário a ser prescrito. Desde o século XIX houve várias proposições de educar em consonância com princípios caros à ideia de sociedade anarquista. Geografias e temporalidades distintas viram surgir escolas com: educação mista numa época em que meninas e meninos dividirem o espaço escolar era uma afronta moral; estímulo à capacidade intelectual criativa; práticas artísticas; atividades corporais; percepção política das relações no espaço/tempo; participação e escolha; valorização das habilidades para o trabalho. Além de aspectos subjetivos como valores de cooperação, solidariedade, igualdade, liberdade, autonomia.
Sem pretender uma compilação na interface com uma história da educação libertária, ⁶ parece-nos justo citar alguns desses momentos que demonstraram alternativas para o processo educacional a fim de reconhecer a ressignificação dessas práticas no século XXI. Nos Estados Unidos, na primeira metade do século XIX, Henry Thoreau, em parceria com seu irmão, criou uma escola localizada no campo, com educação mista, criativa e intenso contato com a natureza. Conhecido por seu libelo anárquico A Desobediência Civil , também publicou Walden (THOREAU, 2017); escritos pelos quais conhecemos seu pensamento pela liberdade inegociável e acessamos as reflexões decorrentes da experiência com a escola que, embora de curta existência (1838-41), influenciaria outros educadores. Cerca de um século depois do anarquista estadunidense criar uma escola inspirada na desobediência, o comunista francês Célestine Freinet (1975) iniciou práticas educativas que culminaram com a fundação de uma escola, em 1930, e contrariou os administradores locais . Após a Segunda Grande Guerra, ao compor o governo para atuar na instrução pública, ele foi também confrontado pelos colegas do partido. Sua trincheira por uma educação livre e pela autonomia do estudante o levou a viver às turras com o governo francês e a romper com o partido comunista. Das suas concepções educativas, várias práticas estão na interface com as balizas anarquistas e sobreviveram, como: as aulas-passeio, o estímulo à escrita de cartas entre estudantes de séries distintas ou a comunicação entre estudantes de escolas diferentes, socializando informações, trocando experiências, delineando um olhar ampliado para a educação em espaços diferentes. São projetos facilmente reconhecíveis nas escolas hoje, embora nem sempre se reconheça Freinet como seu pioneiro. A “Escola Moderna” de Francisco Ferrer, na Espanha, tornou-se um marco internacional. Nos compêndios de história da educação é difícil encontrar uma abordagem sobre o anarquismo sem referenciá-lo. Na Escola de Ferrer, os princípios da educação anarquista foram exercidos com entusiasmo e parte da população local apoiou a iniciativa. Não obstante, oposições à Moderna eram fortes, especialmente por parte da Igreja Católica conservadora espanhola, e, associadas a questões políticas, terminaram no encarceramento do diretor e sua execução pelo governo, em 1909. Assassinado o homem, mas não a ideia. A Escola Moderna se transformou em exemplo que estimula práticas educacionais na chave libertária. Entre as experiências brasileiras, destaca-se o educador João Penteado pelo seu intenso e persistente envolvimento na promoção de escolas seguindo os princípios de Ferrer. No estado de São Paulo, fundou: “Escola Moderna n o 1 (1912-1919); Escola Nova (1920-1923); Academia de Comércio Saldanha Marinho (1924-1943); Escola Técnica Saldanha Marinho (1944-1947); Ginásio e Escola Técnica Saldanha Marinho (1948-1960)” (MORAES, 2013, p. 41). Experiências pedagógicas que atraíram a atenção da população local, porém, não sem conflitos e, muitas vezes, interrompidas pela ação arbitrária estatal. As experiências vivenciadas e registradas pelo grupo de professores, estudantes e pais, como nos sempre presentes jornais escolares ou nos filmes produzidos como atividades estudantis, podem ser reveladoras do
cotidiano e das proposições libertárias desenvolvidas, por quase cinquenta anos, nas cinco escolas dirigidas por Penteado. Ou seja, são práticas pedagógicas de inegável interesse para a história da educação libertária, tanto brasileira quanto internacional. Para os pesquisadores, esse potencial é promissor tendo em vista a ampla documentação organizada no acervo João Penteado (Faculdade de Educação da USP). ⁷ Os exemplos acima representam iniciativas consideráveis, pois foram ações que estabeleceram unidades educativas. Falamos do desenvolvimento de estruturas com propostas pedagógicas alternativas ao Estado e demais forças que controlavam a educação. É compreensível, portanto, que enfrentassem oposição e ameaças de fechamento. Todavia, por mais instigante que seja imaginar escolas de pedagogia libertária funcionando pelas cidades, não é algo fácil a se realizar, sobretudo a partir do decorrer do século XX, quando a organização das escolas tendeu a maior centralização e normatização, inclusive com definição governamental do que as disciplinas escolares devem abordar e quando. Ademais, não podemos ignorar que, mesmo nas salas de aula instituídas pelo Estado, grupos religiosos e/ou iniciativas privadas capitalistas que negociam a educação, há uma grande quantidade de professores e professoras próximos aos ideais anarquistas. A educação libertária não acontece somente em uma escola com estatuto anárquico. A partir do exemplo do médico, jornalista e escritor Fábio Luz, ⁸ que militou junto à população intelectualizada, trabalhadores e pessoas mais pobres, reforçamos que a educação ultrapassa os tijolos escolares. Ou seja, muita prática educativa anarquista se estabelece pelas frentes militantes, no corpo a corpo, na interação social, na materialidade e na subjetividade das ideias. Grupos de formação política, cursos de temas não prescritos nas normativas curriculares, oficinas de atividades artesanais, qualificação para o trabalho, produções culturais, assessorias jurídicas e de saúde, mutirões de ocupações e construções, publicação de livros e produções culturais, divulgação e promoção de debates, são alguns exemplos de ações educativas para uma realidade menos opressora, desigual, castradora. Enfim, ações por uma sociedade anarquista. São as ações individuais de professores conhecidos, como Max Stirner atuando em escola católica alemã para meninas, ou de uma ampla maioria de docentes anarcos anônimos, ou ainda de militantes como Fábio Luz, ou de tantos outros a quem a história não coleta as identidades, confluindo às ações de coletivos, grupos organizados, movimentos populares, que tornam a prática educativa assentada em princípios anarquistas uma ação concreta em nosso cotidiano e nos permite pensar e trabalhar por presente e futuro distintos. Agir no dia a dia, em situações concretas, sem estar condicionado à existência de uma escola física anarquista. São as práticas que dimensionam o possível diante da realidade cotidiana que vão ao encontro das zonas temporárias de autonomia. Hakim Bey ressalva a dificuldade em se definir TAZ, tampouco seja sua intenção. Todavia, o autor considera que é mais simples compreendê-la, pois se trata de uma maneira de estabelecer
relações de autonomia e liberdade em momentos únicos. Acompanhando seu pensamento, vivenciar transformações a partir de experiências de grupos, ainda que temporárias, favorece o repensar por uma sociedade mais colaborativa com vistas ao combate de desigualdades sociais e contextos opressivos. Para o autor, a ideia de revolução universal e simultânea, imperativa no horizonte dos projetos de futuro na cultura política da esquerda, é injusta por impedir a vivência de momentos de realização no agora: Será que nós que vivemos no presente estaremos condenados a nunca experimentar a autonomia, a jamais ficar um momento sobre um pedaço de terra regido apenas pela liberdade? Estaremos ou reduzidos à nostalgia do passado ou à nostalgia do futuro? Será que devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político antes que um único de nós possa dizer que conhece a liberdade? (BEY, 2018, p. 15). A TAZ pode estar em variadas situações, da arte à economia cooperativa, dos cuidados ambientais à vida comunitária, dos históricos piratas marítimos aos usos subterrâneos da internet, por exemplo. Para Bey, as práticas decorrentes dos princípios libertários devem ser pensadas para ser aplicadas em ocasiões favoráveis – entendidas como oportunidades, quando se aproveitam as brechas que as viabilizem – e não tenham a pretensão de serem duradouras. Por isso mesmo, um dos pontos de eficiência para o sucesso de uma zona livre é sua discrição, capacidade de mobilidade/ adequação. Desfazer-se estrategicamente antes de ser descoberta e destruída pelas instâncias de poder, para se restabelecer taticamente em outro contexto. A provocação de Bey é estimulante. Quando levamos a TAZ para o terreno da educação, seja ela escolar ou não, vislumbramos um caleidoscópio de possibilidades. Articulado a essa provocação é que procuramos relacionar a sala de aula com a TAZ, de modo a pensar práticas didáticas influenciadas pelas balizas da educação libertária. A procura por autonomia é uma construção cotidiana e deve ser vivenciada diariamente. A educação é um espaço por excelência para experimentar modos novos de fazer e refazer, mesmo em situações adversas como a derivada da regulação curricular por meio da lei da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). ⁹ Observamos que, embora o texto da BNCC não reivindique uma metodologia ao professor, ao definir conteúdos e recomendar momentos para ensiná-los, termina por fazer sombras no seu ofício. Na prática, testes externos de avaliação governamental tendem a interferir na autonomia docente, pois este deverá preparar seus estudantes não na perspectiva educacional, livre e crítica, mas para que as notas obtidas nas avaliações atinjam a meta governamental. É o fim atropelando o processo. Considerando as determinações curriculares para o ensino de História no ensino fundamental do segundo segmento, ¹⁰ por exemplo, é possível ao professor planejar práticas com sua turma que estimulem a criatividade, a participação, o protagonismo, inclusive com o uso do audiovisual, aulaspasseio, projetos inter/transdisciplinares. Assim, se por um lado é complicado ao professor descumprir a normatização sob o risco de perder o
emprego; por outro, ele deve atentar para as condições e interesses da turma que permitam reconhecer o momento para articular os conteúdos prescritos em diálogo com práticas libertárias que proporcionem reflexões críticas. Subverter, pois como princípio repassado desde Thoreau, Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Ferrer, Foucault, entre outros: se há poder, haverá resistência. Reconhecer os princípios da educação libertária e pensar a escola como território fértil para a TAZ pode viabilizar práticas que rompam o viés centralizador e rígido da lei. E assim estabelecer, ainda que temporariamente, experiências de compartilhamento de saber que abrem caminho e potencializam uma transformação radical, coletiva e libertária da sociedade. Experimentar para transformar: Manifestações de 2013 e as Ocupações nas Escolas Consideramos os movimentos de 2013 como um ponto que propiciou um conjunto de experiências rumo a práticas de autonomia, incluindo a escola, no século XXI. Em texto publicado anos antes desses eventos, Silvio Gallo destaca a importância de não considerar a escola somente enquanto espaço físico, fixo. O autor mobiliza ideias do filósofo Michel Foucault para destacar a percepção da mobilidade, da atualização constante das utopias, que a escola pode proporcionar: pensar o espaço escolar como um outro espaço, um outro lugar, em que outras relações sejam possíveis, em que a criação seja possível. Não local de permanência, mas lugar de passagem, entre-lugar . Tomar o espaço escolar como heterotopia, como um outro lugar distinto dos espaços sociais, mas também como um outro lugar em relação à escola instituída, estabelecendo relações outras, instituintes. Mas isso só é possível com uma saída do contexto da representação, pensando e produzindo na diferença (GALLO, 2009, p. 293). As jornadas de 2013 – e das ocupações estudantis que se seguiram – podem ser analisadas na interface da vontade de reconfigurar a escola com pedagogia e didáticas voltadas à heterotopia. Esses movimentos sociais trouxeram tentativas de produzir em diferenças, retomando práticas libertárias históricas na escola e para a educação. Saberes de Thoreau, Ferrer, Cèlestine, Penteado, por exemplo, ainda que pouco conhecidos, puderam ser acessados direta ou indiretamente, revisitados e ressignificados pela geração deste século. Iniciadas em junho de 2013, as manifestações populares tiveram como pauta primeira a revogação do aumento das passagens de ônibus na cidade de São Paulo, mas rapidamente tomaram conta do país com as mais diversas reivindicações: contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, com seus gastos abusivos e subordinação aos interesses do grande capital, em defesa da educação e da saúde públicas, dentre outras. Embora haja polêmica sobre as diversas forças conservadoras e libertárias que participaram desse heterogêneo movimento ¹¹ , no âmbito deste texto nos apegamos ao seu viés libertário – que nos parece preponderante – e suas repercussões para o debate da educação.
Primeiramente, vale destacar a própria dimensão pedagógica das manifestações em si. Para além do Movimento Passe Livre (MPL), que teve protagonismo inicial no movimento, com sua organização autônoma e horizontal, diversos outros coletivos passaram a surgir, ocupando ruas e praças. Assembleias populares vinculadas a bairros das grandes cidades do Brasil tomavam para seu cotidiano as questões políticas tantas vezes distantes da população. Os rostos vendados daqueles que se defendiam dos abusos policiais nas manifestações diziam não querer um rosto, uma liderança que tomasse conta do movimento. Assim, aprendia-se com a ocupação das ruas a debater, pensar, decidir de maneira coletiva. Não havia um líder político, nem um professor iluminado que pudesse decidir ou saber por todos, mas sim o estabelecimento cotidiano de relações horizontais, onde as discussões e tomadas de decisões coletivas eram um aprendizado valioso. Nesse processo, as próprias pessoas se educam umas com as outras quando se reúnem e buscam a solução para um problema ou propõem uma questão, procurando uma resposta coletivamente. Nesse sentido, destacamos a crítica à representatividade, que indissocia a dimensão macro, da lógica política distanciada da democracia representativa, da dimensão micro, da tomada para si das decisões cotidianas e políticas, como um aspecto pedagógico fundamental que as ruas e coletivos das manifestações de 2013 possibilitaram. Outro ponto a destacar é a relação das manifestações de 2013 com a educação pública. A educação pública de qualidade, a “educação padrão Fifa”, foi uma das reivindicações desse momento. Sua aparição constante em cartazes e palavras de ordem, como “Da copa eu abro mão, eu quero mais dinheiro para saúde e educação” ou “No Maraca [estádio do Maracanã], enquanto a bola rola, não tem saúde, não tem transporte, não tem escola”, enfatiza a preocupação com políticas públicas voltadas para classe trabalhadora – e contraria a teoria de que os movimentos de 2013 foram protagonizados por movimentos de direita. Não à toa, em agosto de 2013, os professores da educação básica da rede pública no estado do Rio de Janeiro entraram em greve por melhores salários e melhoria das escolas públicas, o que impulsionou milhares de pessoas a seguir ocupando as ruas durante os dois meses da intensa greve. Marcados pela crítica da representatividade presente em 2013, muitos professores se reivindicavam “black profs”, em referência à tática black bloc ¹² de autodefesa nas manifestações, e estruturavam coletivos autônomos com duras críticas às direções sindicais, marcadas pela lógica da política representativa. Podemos dizer que esse movimento traz para dentro da educação pública o debate sobre democracia direta, o que culminou no questionamento das estruturas das próprias escolas. As jornadas de junho de 2013 se desdobraram em pautas diversas, nem todas contempladas. De todo o modo, elas foram um visceral aprendizado para o campo da educação. Um reflexo pode ser mensurado dois anos depois, quando os professores do estado do Rio de Janeiro declararam novamente greve e contaram com amplo apoio dos estudantes. Na ocasião, no início de 2016, algumas escolas começaram a ser ocupadas pelos estudantes, sobretudo secundaristas (matriculados no Ensino Médio). Os
estudantes tomavam o controle de suas unidades escolares, reiteravam a luta de seus professores por melhores condições de trabalho, mas também colocavam pautas estudantis e demandas dos próprios locais de estudo. O protagonismo estudantil impactou a esfera pública: proporcionou nova visibilidade para as lutas pela educação pública ao forçar novos olhares dos pais e de parte da classe política. A ocupação estudantil não é uma tática nova. Talvez, as mais emblemáticas tenham ocorrido no ano de 1968, em especial o “maio francês” cujas memórias povoam o imaginário social a partir das tantas narrativas audiovisuais e literárias. Mas, em 2015, os estudantes brasileiros estavam atentos à sua própria experiência. E o campo da educação brasileira estava – e continua – em ebulição, com propostas políticas que reverberam ataques de outros setores sociais à escola pública, aos professores e aos estudantes. Na capital paulista, os estudantes se revoltaram com o anúncio do governo estadual de que o sistema educacional seria reorganizado por ciclos e cada escola concentraria uma série. Por trás do discurso de melhor gerenciamento, o que se anunciava era o fechamento de escolas e turnos escolares, bem como o remanejamento de centenas de milhares de matriculados em pleno ano letivo. Arbitrária e sem negociação, desconsiderou a logística das famílias, muitas das quais sem condições materiais ou de segurança para o deslocamento de seus filhos às novas escolas, tampouco a vontade e laços afetivos dos estudantes. À ocupação da primeira escola, outras se seguiram na capital e região metropolitana. Em pouco tempo, um efeito dominó parou a rede de ensino estadual, desgastou o governo, tensionou a sociedade. ¹³ As ocupações se tornaram um exemplo e logo influenciaram estudantes de outras regiões a aderirem o protesto em suas unidades, como no caso do Rio de Janeiro, Ceará, Paraná. No segundo semestre de 2016, as universidades e centros de formação tecnológica também passaram a ser ocupados pelos estudantes. ¹⁴ Como repertório de ação coletiva (TILLY, 2004), os acúmulos são recolocados no dinâmico cotidiano dos movimentos, sendo revalidados, reformulados ou descartados. Nesse sentido, é importante sinalizar algumas referências que ajudaram a construir esse tsunami das ocupações. Primeiramente são as trocas das experiências do movimento estudantil, em especial com o caso do Chile, onde mobilizações datavam de muito antes. O documentário A rebelião dos Pinguins (PRONZATO, dir., 2007), sobre o movimento dos estudantes chilenos, foi um estímulo à organização dos secundaristas brasileiros, sendo recorrentemente mencionado. Outra relevante referência foi a criação do coletivo estudantil O Mal Educado , em 2012. Seu formato blog ganhou versões em outras redes sociais. Além do espaço de sociabilidade, tornou-se espécie de registro das ocupações e teve papel crucial por divulgar a tradução do documento Como ocupar um colégio? , redigido pela Frente de Estudiantes Libertarios (FEL), da Argentina. As experiências dos “Pinguins” chilenos e o “tutorial” dos jovens anarquistas argentinos sobre como proceder a ocupação e seus desdobramentos foram amplamente difundidas por meio da internet, lembrando as mobilizações de alguns anos antes.
A criminalização dos black blocs nas jornadas de junho, que procura desqualificar politicamente o movimento, não passou despercebida pelos ocupantes. Diante disso, redobraram a atenção em registrar suas ações, as condições da escola que eles estavam assumindo e expunham nas redes sociais os cuidados e melhorias que promoviam. A partir dos filmes ou pesquisas sobre as ocupações anteriormente citadas, os depoimentos dos ocupantes revelam o sentimento de conhecer uma escola nova – alguns locais, de fato, nunca haviam sido acessados. Apropriação do espaço físico, muitas vezes potencializada pelas tarefas até então inéditas – como limpeza, capina, cozinha, pintura – parece ter reforçado sentimentos de afeto com a escola, por vezes, sentimentos até então não revelados. Há de se destacar o papel das meninas como protagonistas em muitas iniciativas de ocupação. Isso, contudo, não significou que elas se tornassem líderes. A crise da representatividade por lideranças, identificada nas jornadas de 2013, permaneceu como herança nos movimentos dos estudantes. As ocupações adotaram a organização horizontal, sustentada em constantes assembleias e constituição de comissões. Evidentemente, não existe um modelo perfeito de “autogestão horizontal” e surgem desafios no caminho, pois são seres humanos que cresceram e foram socializados em uma sociedade hierárquica, e estruturas de poder profundamente enraizadas não podem ser magicamente desaprendidas. Porém, ficou claro que os secundaristas conceberam as ocupações como espaços democráticos e horizontais, não apenas pelas orientações do manual “Como ocupar um colégio?”, mas também por um simples desejo de que ali fosse um espaço diferente do que costumavam viver na escola. Assim, estes estudantes se submeteram a um período de formação política contínua: a assembleia sendo a vivência fundamental, mas todas as outras interações humanas também se transformando em aprendizado, mesmo as mais banais, pois se tornam passíveis de questionamento a partir do princípio da horizontalidade (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO; 2016, p. 128). São muitas as influências libertárias na organização, da autogestão, das quebras de hierarquias, da ruptura dos padrões de gênero, por discussões críticas, de conteúdo e de experiência vivenciada. O dia a dia era preenchido com atividades para as demandas do dia. Por debates e planejamentos políticos referentes à ocupação – pois o Estado estava do outro lado do portão querendo retomar o controle. De ações na infraestrutura do espaço. De cuidados com a sociabilidade afetiva e criativa. Na formação por meio de estudos de temas estabelecidos como de interesse para a coletividade. Nesse convívio diário, denunciavam o aspecto prisional das escolas, a quantidade de grades, os espaços vetados, o punitivismo e o viés meritocrático para recompensas, a seriação que restringia a convivência. Espacialmente e corporalmente a escola assumia a transversalidade. Corpos e ideias em contato, aprendendo a conviver, a discordar, a ceder, a criar. Das assembleias ao lúdico, do trabalho às manifestações, das vigílias às rodas de conversa e estudo, os corpos e as ideias em resistência subvertiam a secular organização escolar.
Coautora neste artigo, ao participar de uma atividade na escola carioca Mendes de Moraes, quando falei sobre as populações indígenas no México, em especial a região zapatista, fui sensivelmente tocada. Recebida carinhosamente, os ocupantes explicaram a situação da escola e as razões para ocupá-la. Iniciado o debate, foi gratificante perceber a postura ativa, sem medo de se posicionar dos estudantes, inclusive questionando minha fala. Se algum sentido bonito ainda resta para a palavra democracia está na construção direta e horizontal, nas ocupações, na política dos de “baixo”, nos experimentos-enfrentamentos à violência estatal. As ocupações estudantis nos fazem um chamado para que nossas pautas não se reduzam ao “menos pior”, ao “não temos escolha”, ao “é ruim, mas não tem jeito”. Para quem esteve de fora do movimento, deve-se dimensionar a coragem e dificuldades enfrentadas por esses estudantes em ocupar uma escola, sem infraestrutura, tampouco segurança, por um período indeterminado. Falamos de adolescentes que nem sempre tiveram apoio dos seus próprios pais ou da estrutura administrativa da escola. Mas que, principalmente, desafiavam o sistema educacional do Estado, representado por ardilosas raposas políticas que não abriram mão de lançar a brutal força policial para reprimir os estudantes, fossem nas escolas, fossem em suas manifestações públicas. Ainda assim, eles e elas não se furtaram a sustentar a luta. A experiência das ocupações permite inferir os equívocos da estrutura educacional, que temos reiterado neste texto. Estrutura que reverbera não apenas o uso da escola como controle social, como também a crescente mercantilização da educação que, no caso do Brasil, permitem questionamentos na interface com a BNCC, a Reforma do Ensino Médio, os ataques à universidade pública gratuita e à pesquisa universitária, aos projetos de ensino a distância (EAD) e homeschooling . ¹⁵ Entretanto, nem as ocupações nem as críticas devem ser lidas como desprezo pela escola. Pelo contrário, pois o posicionamento dos ocupantes revela o quanto aquele espaço é importante para eles, tanto como formação no âmbito do conhecimento quanto como referência de sua formação humana. Transformá-la, deixá-la menos formalista, rígida, para ser uma escola de movimento. Nesse sentido, a experiências das ocupações se constituiu como uma inspiradora zona temporária autônoma – ainda que a discrição não tenha sido sua marca –, que se conectou como terminações nervosas por todo o país, inclusive com quem já saiu do espaço escolar. O depoimento de uma estudante no filme Escolas em Luta nos alimenta com o sonho da vontade: A gente estava aqui na escola e não sabia que poderia ter o mesmo tipo de poder que o diretor, poderia ter até mais voz que ele porque nossos direitos são maiores aqui dentro. E aí toda essa união chegou e falou: ‘Não!’. A gente pode fazer diferente. A gente pode ser livre. A gente pode desconstruir isso ( Escolas em luta , 27’18’’ apud FERREIRA; CALABRIA, 2019, p. 79). Alternativas educativas radicais hoje: curdos e zapatistas Destacamos também outras resistências tecidas hoje e suas conexões com a educação libertária. Fora do Brasil, abordamos duas experiências com grande repercussão: o movimento zapatista e a autonomia curda. Ainda que
essas experiências não se reivindiquem propriamente anarquistas, trazem questões importantes para o debate libertário. Ambas se constituem como materializações contemporâneas e reiteram a percepção de que sociedade não é sinônimo de Estado. E ainda, é possível existir não só a sociedade sem Estado, mas contra o Estado, como afirma Pierre Clastres (2003) e outros pensadores anarquistas. Sem esperar apontar experiências “puras”, mas sim atualizações que se conectam com os princípios das propostas libertárias, apresentamos brevemente essas instigantes alternativas educativas. Tais experiências se destacam não por serem as únicas que compartilham e vivenciam a perspectiva da autonomia, mas por serem, talvez, as que conseguem colocá-la em prática com maior nível de intensidade no mundo hoje. Em Chiapas, sul do México, o movimento zapatista, composto predominantemente por indígenas Mayas, constrói um modo de vida que passa pela autogestão da educação, saúde, justiça e demais esferas da vida comum. A comunidade sobrevive enfrentando uma incessante ofensiva estatal que passa por bases militares, financiamento de grupos paramilitares e tentativas de realização de empreendimentos ligados ao grande capital em seus territórios. Em Rojava, o povo curdo constrói diversos experimentos de autonomia, resistindo aos ataques do Estado Islâmico (ISIS) com peshmergas e peshmergs ¹⁶ nas montanhas de uma das regiões mais visadas do Oriente Médio. Em contextos tão distintos, ambas as experiências mostram que é possível construir uma existência a partir da democracia direta e que não tem o Estado-Nação como referência. A negação do Estado e do etnocídio ¹⁷ inerente a este ¹⁸ é inseparável da crítica à civilização moderna capitalista operada por esses movimentos que se constituem como minorias (MOREL, 2017). Agora cabe destacar como ambas experiências apontam a educação autônoma como um dos pilares fundamentais para construir alternativas civilizacionais; ou, como falado pelo movimento curdo: uma “modernidade democrática”. ¹⁹ No caso zapatista, a proposta da educação autônoma vai se intensificando com as rupturas da negociação com o Estado. Se, no levante de 1994, a demanda do movimento era por uma “educação universal e gratuita”, em 1997 o movimento passou a conclamar suas bases a construir as escolas autônomas a partir de mutirões. A educação autônoma estaria muito vinculada às escolas autônomas, mas não seria necessariamente sinônimo de “educación verdadeira” ( chanel ²⁰ ), que parte da dinâmica da vida dos povos na sua relação com o cosmos (MOREL, 2018). Entretanto, não se pode negar que a criação das escolas autônomas foi um passo fundamental na atuação do movimento. Talvez, mais do que uma simples reprodução dessa instituição de origem ocidental – e tantas vezes colonizadora –, as escolas autônomas significam uma contínua tentativa de subversão da escola para que essa possa educar para a liberdade fortalecendo as organizações comunitárias autônomas. Os educadores zapatistas são indígenas das próprias comunidades nomeados por voto majoritário ou por consenso nas assembleias. Há também uma comissão de educação (igualmente eleita pela comunidade) responsável por orientar e apoiar o trabalho dos promotores. Cada promotor de educação é responsável mediante a coletividade. Ao mesmo tempo, a comunidade também tem suas responsabilidades frente aos promotores, pois, como estes não recebem salário, durante o tempo em que se dedicam às atividades educativas da comunidade são retribuídos
diretamente com milho e feijão ou com trabalho coletivo na milpa ²¹ da família do promotor. São os próprios indígenas e camponeses das comunidades, muitos deles pais dos alunos, que participam e gerem diretamente o funcionamento da escola. Disso decorre que o currículo e o calendário são discutidos e organizados pelas assembleias locais. No caso curdo, a revolução de julho de 2012 trouxe a necessidade de uma nova prática educacional. Esta preocupação não se dava por conta dos níveis de escolaridade da população, já que grande parte dos adultos na região tinha passado por escolas, mas buscava uma transformação da mentalidade produzida e produzindo a revolução. Seria preciso criar uma cultura revolucionária que fomentasse a nova organização social que surgia, o que passava pelas mais diversas faixas etárias, de crianças aos adultos. Os três pilares dessa proposta educativa que surge são a democracia de base, a ecologia e a emancipação de gênero. O pilar da democracia de base define que os processos de ensino-aprendizagem devem se dar junto das próprias práticas do movimento, onde aprender a debater, pensar, decidir de maneira coletiva é uma dimensão fundamental. O movimento curdo critica fortemente as estruturas escolares tradicionais por seu viés patriarcal, etnocêntrico e conservador. Mas, como diz Öcalan, não basta apenas criticar essas estruturas, é preciso construir alternativas. Atualmente, há dois tipos de educação em Rojava: a “educação pública”, que é proporcionada pelo o que os curdos chamam de academia, e a “educação escolar”, proporcionada pelas instituições estatais e privadas. As academias são tidas como espaços onde a sociedade constrói seu próprio poder intelectual de maneira plural e democrática e devem servir às necessidades das mais diferentes áreas: Essas unidades acadêmicas alternativas devem ser construídas de acordo com as prioridades e necessidades de todas as áreas sociais, como economia e tecnologia, ecologia e agricultura, democracia, segurança e defesa, cultural, história, ciência e filosofia, religião e artes (ÖALAN, 2016, p. 54). Já as instituições estatais servem a interesses distintos da maior parte da população e têm uma política monopolística na educação escolar. Nesse sentido, um dos primeiros desafios que a revolução enfrentou foi a língua falada nos espaços educativos. Durante as quatro décadas anteriores, os estudantes curdos só podiam aprender e falar na língua árabe. Havia uma forte proibição para falar a língua curda em espaços públicos. Quando os curdos da Síria implantaram a autonomia na região, estabeleceram o ensino da língua curda. A primeira escola aberta foi no Cantão de Efrin, seguidas por outras em Kobane e em Cirize. Segundo Janet Biehl (VÁRIOS AUTORES, 2015), que visitou a região em 2014, somente em Cirize nesse mesmo ano já havia 670 escolas com 3 mil professores dando aulas em língua curda para 49 mil estudantes. Foi criada também a primeira instituição de ensino superior: a Academia de Ciências Sociais da Mesopotâmia, onde há aula em curdo e árabe. Ao destacar o caráter público das instituições educativas autônomas, o movimento curdo desestabiliza a oposição muitas vezes comum entre, por um lado, as instituições educacionais privadas, financiadas pelo capital e,
por outro, as instituições educacionais estatais, que em diferentes contextos são chamadas de pública. No caso curdo, as instituições não estatais não são privadas, mas, pelo contrário, servem ainda mais à população e, por conta disso, merecem a alcunha de públicas, mais do que as próprias instituições estatais. Tal constatação nos faz repensar a própria noção de público, tantas vezes utilizada por nós no contexto brasileiro. Essas duas experiências foram destacadas não para serem usadas como “modelo”, mas como “exemplo” ²² e chamados para a luta, levando em consideração nossa realidade específica. Essas experiências trazem a possibilidade de uma transformação radical do sistema educativo a partir da autogestão, da relação orgânica da escola com a comunidade e seus espaços deliberativos horizontais. Além disso, o movimento curdo também nos traz a urgência do protagonismo das mulheres e da dimensão ecológica como parte importante do processo educativo. Por que a educação libertária se contrapõe a homeschooling e à EAD no Brasil? Voltamos à realidade do Brasil hoje e nos deparamos com novos desafios e possibilidades de resistência. Chegamos ao tempo presente com o desafio de não perder a esperança diante da dureza cotidiana e do crescimento da extrema direita. Tempo marcado pelo obscurantismo religioso, pela confusão e esvaziamento proposital de ideias, por fake news e fake science , pelo autoritarismo das mentiras autoproclamadas de verdade. Nesse contexto, nos parece fundamental seguir a proposta da jornalista Eliane Brum de “retomar a linguagem”, voltar a dar sentido comum e real às palavras esvaziadas pelo conservadorismo. Nesse sentido, propomos desfazer a confusão que muitas vezes se dá entre a proposta de “educação domiciliar” ( homeschooling ) feita pelo governo Bolsonaro e a educação libertária. Se poderíamos pensar que a proposta de educação domiciliar estaria próxima das práticas zapatistas e curdas por seu viés supostamente antiestatal, veremos como são propostas distintas, de fato, antagônicas. É importante analisar os projetos educativos como ancorados na realidade concreta e não em abstrato.
O projeto de educação domiciliar no Brasil anunciado pelo governo Bolsonaro como uma de suas medidas prioritárias no campo da educação se baseia na ideia de que a educação da família pode substituir a educação escolar. Como não existe legislação que regulamente a prática, o governo criou um projeto de lei (PL 2401/2019) cuja discussão está sendo encampada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Embora o projeto reivindique que a homeschooling leve a uma educação sem ideologia, diminuindo os riscos da influência de professores ligados ao campo político de esquerda e de falsos aprendizados que atentem contra os costumes da família cristã, suas bases são notoriamente ligadas à ideologia do pensamento cristão-conservador. Pela proposta, o governo defende que o mercado produziria material didático a ser comprado pelos pais para ser “aplicado” em casa aos seus filhos. Com essas medidas, seriam evitados os “perigos” da escola, como a “ideologia de gênero” e a “doutrinação comunista” e, supostamente, possibilitar uma educação mais eficiente colocada em prática pela família. Se, à primeira vista, podemos imaginar alguma semelhança entre a educação domiciliar e a educação libertária, pelo seu caráter aparentemente não estatal, é preciso urgentemente apontar o contraste entre essas duas propostas antagônicas. Primeiramente, é necessário identificar a proposta de educação domiciliar acima descrita como uma proposta ultraprivatizante, em que a educação é tratada como decisão única e exclusiva da família, sem passar por nenhum tipo de debate coletivo sobre os sentidos da educação, sem construir nenhum tipo de rede ou acolhimento para crianças e adolescentes, muitos em situações de vulnerabilidades. De fato, a educação familiar ocorre no interior das famílias e não precisa de normatização para isso. Lido nas entrelinhas, o que o projeto de lei faz é deslegitimar a educação escolar pública. E, em última instância, desobrigar o Estado a cumprir a exigência constitucional de prover ensino público e gratuito. A narrativa privatista em defesa do projeto elege agentes do mercado privado para elaborar o material didático devido à suposta competência deste para fazer um produto técnico e desprovido de ideologias – a bem saber, com matiz da esquerda, pois sobressalta no texto e demais discursos dos apoiadores do homeschooling o viés liberal, da moralidade, do cristianismo e da prosperidade. Sobre esse ponto, trazemos a reflexão da educação libertária não como uma série de princípios abstratos, mas sim uma prática e reflexão vinculadas à realidade concreta. No caso deste projeto de lei de homeschooling , a defesa de uma suposta não intervenção estatal não seria em nada libertária, pois está vinculada a uma proposta econômica ultraliberal, que tem o capital como grande favorecido pela criação dos materiais didáticos “livremente” escolhidos pelas famílias, além de implicar uma ação contrária à pluralidade de ideias, restringindo ao educando o contato com outras interpretações de mundo que lhes capacitaria a construir bases para suas escolhas. Nesse sentido, é preciso esclarecer como a defesa liberal do “Estado mínimo” é incongruente: O capital anda junto da forma Estado, que, ainda que não esteja voltado para as políticas públicas, está recorrentemente dedicado às formas de controle, vigilância e repressão da população. Assim,
ironicamente, a educação domiciliar ( homeschooling ) proposta pelo governo Bolsonaro é tão libertária quanto o “anarcocapitalismo” possui fundamentação anarquista apenas por questionar o Estado – quer dizer, ambas são ideias deturpadas, pois são apropriações demagógicas e equivocadas de ideias e conceitos há muito consolidados nas práticas dos movimentos sociais e nas ciências políticas e educacionais. Em outro sentido, a educação libertária defende o fim do Estado em prol da autoorganização das classes populares, compreendendo que esta só pode vir junto do fim da propriedade privada. A educação domiciliar esvazia justamente o aspecto mais coletivo da educação, impossibilitando a socialização e reduzindo a educação a transmissão de conteúdos. Infelizmente, no momento em que redigimos este artigo, o planeta vivencia a pandemia do Covid 19 – a gripe pelo Coronavirus. No Brasil, a situação é agravada por forte instabilidade política porque as orientações da Organização Mundial de Saúde, de fazer a quarentena e o isolamento das pessoas como prevenção, têm sido questionadas pelo presidente Jair Bolsonaro. A despeito dos fatos e óbitos que assolam os países, Bolsonaro considera exagero interromper as atividades comerciais e industriais por uma “gripezinha”, como ele disse. Apesar da situação adversa, ela é exemplar para dimensionarmos a cobiça do campo mercadológico sobre a educação, inclusive com o projeto de homeschooling . Nesse momento de recolhimento, minimizar o impacto do fechamento das escolas para os estudantes se desdobrou em uma questão para o processo educacional. Nas escolas privadas os professores estão sendo cooptados a manter o cronograma das aulas por meio de atividades desenvolvidas na interface de plataformas digitais. As instituições públicas ainda não definiram como proceder, mas fortalece a ideia da aula digital e/ou teleaulas. A pandemia colocou para a educação, não apenas no Brasil, mas em escala internacional, a urgência do debate sobre as tecnologias da informação e comunicação (TICs), que há muito têm sido apontadas como solução para os problemas educacionais – do interesse pela escola ao aproveitamento estudantil – e como caminho inevitável para a educação do século XXI. Certamente, a pedagogia libertária não é contra a tecnologia nas práticas educacionais. Pelo contrário, as experiências educativas anarquistas, escolares e também aquelas desenvolvidas por coletivos em ações sociais para além dos muros da escola, sempre reconheceram esses meios como estimulantes para a autonomia. Hakim Bey, por exemplo, considera que as tecnologias, como a internet e seus usos subterrâneos, podem ser um excelente configurador de TAZ. No entanto, há uma dupla perspectiva, ao menos, que merece atenção. A primeira é desfazer o fetiche da tecnologia como sinônimo de boa educação, especialmente em países com grande desigualdade econômica. No Brasil, por exemplo, são muitas as políticas que visam equipar escolas de periferia econômica com computadores como resposta para melhorar o rendimento dos estudantes. Desconsideram, por exemplo, que em muitas escolas a rede elétrica não comporta que as máquinas sejam ligadas simultaneamente; ou faltam outras estruturas básicas como: telhas, espaços de lazer, ventiladores, vasos sanitários, acesso à internet; ou que muitos professores
e estudantes são analfabetos digitais. A segunda é o questionável oportunismo dos defensores radicais das TICs, muitos deles ligados a grupos empresariais que atuam na educação, aproveitarem a crise de pandemia e insegurança dos pais quanto ao futuro escolar de seus filhos para reiterar o discurso de que é a tecnologia que faz uma boa escola – e, implicitamente, reduzir o professor a um operador técnico. Compreensivamente, os responsáveis pelas crianças matriculadas na escola privada demandam soluções das instituições e estas têm definido aulas virtuais para ocupar os estudantes no seu horário de aula. Aliás, a capacidade do corpo docente conseguir manter a rotina com a “clientela estudantil” tem sido revertida para valorizar a marca da empresa. Aproveitando a onda das ações de ensino a distância devido ao fechamento das escolas, o debate da homeschooling foi retomado. O ensino a distância em voga nas escolas privadas, com estudantes comportados e pais satisfeitos, reforça o argumento a favor da proposta. Certamente, produtores de materiais didáticos em suportes diversos veem com expectativa as conversas entre os Ministérios da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o da Educação para discutir o EAD na educação pública. Pela lógica capitalista, é compreensível o empresariado valer-se da pandemia para pleitear a homeschooling a partir da valorização acrítica das TICs, por conseguinte a disseminação da prática do ensino a distância para o Ensino Básico, algo que já havia sido aventado durante a elaboração da BNCC. No entanto, essa é uma disputa que precisa ser efetuada com rigor. É uma disputa pela diferença entre educação versus ensino, entre quem acredita em uma educação plena, de formação humana, e não apenas uma instrumentalização técnica. É importante, pois, desassociar a educação libertária do fetiche da tecnologia, especialmente quando esta é valorizada para articular a defesa da homeschooling e do EAD. Além disso, o ensino a distância é acintosamente conflitante com o ideal libertário ao afetar negativamente os dois principais protagonistas do processo educacional: professores e estudantes. A excepcionalidade da pandemia e a ameaça da demissão forçaram os profissionais a desempenhar funções distintas de seus contratos laborais. No entanto, mesmo quando a escola ofertou breves treinamentos para manusear as TICs durante o isolamento social, os professores têm relatado sobrecarga de trabalho, horas não remuneradas de preparo de material, censura velada à aula uma vez que ele pode estar sendo gravado e assistido por outras pessoas, como os pais. São questões sérias e que precisam ser debatidas por implicar assédios e intensificação da precarização da profissão docente. Quanto aos estudantes, o momento de exceção não pode se tornar perene. Primeiro porque há uma questão de materialidade excludente, ou seja, classes socioeconômicas pobres possuem carência dos equipamentos para o ensino a distância, como computadores e internet. Os mais necessitados terão agravados seu direito à educação. Ademais, a escola, em especial a pública, é o local onde os diferentes convivem e a criança e o adolescente são colocados em situações de grupo, levados a tomar decisões, experimentar estranhamentos decorrentes das diferenças socioculturais. São situações que necessitam do outro, da corporealidade, da subjetividade.
São instantâneos que o isolamento por trás de uma tela de computador está distante de proporcionar com a mesma intensidade. Enquanto espaço público, a escola coloca o indivíduo em contato consigo, diante do outro, para o outro, contra o outro. Como ensina Bondía (2002), é o mundo que deve ser apreendido na escola por meio da pedagogia da experiência – e não somente a transmissão de informações. Nesse sentido, nos parece que as concepções de homeschooling e de ensino a distância atacam justamente o lado mais potente da educação pública, aquele que mais dialoga com a educação libertária: o que possibilita uma formação crítica em contraposição à visão tecnicista; o que possibilita a socialização, encontros com alteridade, a radicalização do público, como vimos nas ocupações nas escolas. Esse ponto nos parece interessante, pois aponta para a ideia de que em diversos contextos (escolares ou não, estatais ou somente autônomos), a educação libertária busca, através de diferentes meios, uma radicalização do público, da apropriação dos espaços educativos por uma lógica coletiva e horizontal e inegavelmente oposta à propriedade privada. Últimas considerações A escola como conhecemos é uma instituição relativamente recente, localizada em meados do século XIX. Parece, porém, que já nasceu rígida em suas bases e comprometida com uma estrutura antiga de poder. De fato, essa percepção tem sua razão e críticas foram realizadas ainda em sua gênese. Muitas delas permaneceram ao longo do tempo e são reformuladas quando se discute os limites e as possibilidades da escola formal. Críticas que, muitas delas em confluência com balizas de uma concepção de vida e sociedade anarquistas, abriram alternativas para repensar as relações professor/estudante e a organização escolar. Se, por um lado, as experiências históricas nos colocam diante de práticas libertárias de nomes como Stirner, Ferrer, Freinet, Penteado; por outro, o tempo presente nos brinda com a urgência de continuar a criar alternativas à dinâmica da escola. Criticar a escola não implica desconsiderar seu potencial libertador, mas buscar acioná-lo. As recentes ocupações estudantis de suas escolas comprovam isso: é preciso repensar esse espaço, sua organização burocrática, os valores que reiteram as desigualdades sociais, as hierarquias autoritárias, enfim, o status quo . A juventude ocupante desafiou mais do que o poder das Secretarias de Governo de Educação: ela desafiou o futuro. Ela mandou seu recado com a alegria e a garra características de quem acredita nos sonhos e tem vontade e disposição para lutar por eles. Mesmo não existindo uma receita para operar essa transformação, os ocupantes recriaram em larga medida ideias e práticas anarquistas históricas. Por isso acreditamos que as escolas em luta estabeleceram zonas temporárias autônomas. E demonstraram que é possível agir na educação por outros parâmetros. Parâmetros libertários que subvertem. E, voltados para a horizontalidade, a criticidade, a criatividade, a solidariedade, a liberdade, se mantêm jovens e em movimento.
Como movimento libertário, não se restringe ao espaço físico, sendo reconhecido também em ações coletivas para além da educação formal. Abordamos, nesse sentido, as experiências educativas curdas e zapatistas que nos mostram as possibilidades de um projeto autônomo radical que tem a educação como carro-chefe. O processo educativo ancorado nas assembleias comunitárias é uma base importante para a transformação que esses povos colocam em prática. Preocupados em viver a autonomia já no momento presente, não perdem a dimensão de uma mudança radical da sociedade. Vimos como tais experiências são muito distintas dos projetos conservadores – homeschooling e EAD – propostos na realidade brasileira. Tais projetos são baseados em pilares individualistas, de uma moral cristã conservadora, ultraprivatizantes e caminham em sentido oposto ao da transformação coletiva e democrática defendida pela educação libertária materializada nas experiências históricas de educação autônoma. As experiências curda e zapatista foram destacadas não para serem usadas como “modelo”, mas como “exemplo” e chamados para a luta, levando em consideração nossa realidade específica. Para não sufocar diante do avanço conservador no Brasil, apresentamos caminhos de esperança, experimentos que se conectam com as propostas de educação libertária, experimentos que subvertem a ideologia “Deus acima de todos. Brasil acima de tudo”, como diz o slogan autoritário do atual governo, e constroem outras propostas educativas que não têm como referência o Brasil homogeneizador. Cabe retomar o espírito questionador das ocupações das escolas, olhar para essa geração que agora cresce e toma as universidades públicas, olhando para os coletivos negros, coletivos feministas, coletivos lgbtq, coletivos indígenas, possibilitando questionamentos sobre a própria forma de produção de conhecimento através de práticas antirracistas e decoloniais. É preciso olhar para os pré-universitários comunitários com suas relações horizontais e orgânicas com as diferentes favelas e bairros populares, as zonas rurais. Tais experiências, ainda que não ganhem a dimensão das lutas autônomas curdas e zapatistas, criam zonas autônomas temporárias, muitas vezes por dentro do sistema público de educação. Elas trazem para o contexto brasileiro esperança, subversão e a possibilidade de expansão do público, em sentido parecido ao proposto pela autonomia curda, transformando as escolas e outras práticas educativas em espaços coletivos, populares, solidários, retomando e atualizando importantes princípios da educação libertária. Referências bibliográficas BEY, Hakin. TAZ: Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Veneta, 2018. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação , n. 19, p. 20-29, jan./abr. 2002. BOYD, Andrew; MITCHELL, Dave Oswald. Bela baderna . Edições Ideal, 2013. BUTLER, Judith. Corpos em aliança: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. CAMBI, Franco. História da Pedagogia . São Paulo: Unesp, 1999.
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7 O Acervo João Penteado foi organizado pelos pesquisadores do Centro de Memória da Educação da Faculdade de São Paulo, com amplo material referente às cinco unidades escolares dirigidas por ele e orientadas pela pedagogia libertária. O Acervo conta com um inventário comentado de grande valia para o pesquisador, por funcionar como um instrumento de consulta. Cf. Moraes, 2013. 8 Negro, nascido na Bahia, recém-formado em medicina, Fábio Luz chegou ao Rio de Janeiro em 1888. Em reconhecimento ao seu papel na medicina e na difusão do conhecimento na chave libertária, nomeia a biblioteca social no bairro carioca de Vila Isabel. Sobre Fábio Luz, cf. Ribeiro, 2017. Sobre a biblioteca, cf. < https://bibliotecasocialfabioluz.wordpress.com/bsfl/ >. 9 A organização curricular em uma base nacional está indicada na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.9394/1996). Não obstante, estudos sistemáticos nessa direção começaram a partir de 2009. A proposta ganhou fôlego com o grupo Movimento Pela Base, vinculado ao Todos Pela Educação – organização de grandes empresas que visam ações no campo educacional –, no governo da presidenta Dilma Rousseff, em 2013. Todavia, o processo foi complexo e contraditório. A crise política que culminou no impeachment de Rousseff acirrou ainda mais a elaboração da lei. Uma das primeiras medidas do seu sucessor, Michel Temer, foi encaminhar ao Congresso uma reforma vertical para o Ensino Médio, por conseguinte este segmento foi desmembrado do Fundamental na BNCC. As críticas ao documento chegam de vários ângulos: dos conteúdos e sua distribuição no ensino; do processo que pouco ouviu pesquisadores da educação e do currículo; da transparência; da mercantilização da educação; do controle do trabalho do professor; da pertinência de se ter uma base comum curricular. Entre outros trabalhos que contemple esse leque crítico, cf. Gabriel, 2015; Macedo, 2016; Martins, 2016; Ferreira; Penna, 2018; Cassio, 2019, Cássio; Catelli Jr., 2019. 10 No Brasil, o Ensino Básico compreende as etapas: Infantil (até 5 anos), Fundamental I (com ingresso aos 6 anos; vai do 1 o ao 5 o ano), Fundamental II (do 6 o ao 9 o ano), Ensino Médio (1 o ao 3 ano). 11 Em 2010, intensos movimentos sociais de protestos configuraram a chamada Primavera Árabe, por atingir países ditatoriais como Tunísia, Iêmen, Egito, Líbia. Na esteira, protestos sociais também atingiram outros regimes de governo e outras pautas, como o Ocuppy estadunidense ou os movimentos contra a precariedade em diversos países capitalistas. Embora os pontos de tangência, como intensa mobilização popular na rua e a centralidade da internet e das redes sociais em sua fomentação, permitam compreender esses movimentos como constituintes de um ciclo internacional de protestos, eles carregavam características próprias como base das suas reivindicações e desenvolvimento. No Brasil, as manifestações de 2013 se construíram em meio às tensões pré-eleitorais do ano seguinte e à eminência dos megaeventos esportivos (Mundial de Futebol FIFA 2014 e Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016). Sobre os movimentos desse ciclo 2010-2013, cf. Ricci; Arley, 2014; Castells, 2017; Butler, 2018; Jourdan, 2018.
12 Sobre o movimento Black Bloc, cf. Dupois-Déri, 2014. Para táticas criativas de protestos, dentre elas a black bloc, cf. Boyd; Mitchel, 2013. 13 História do tempo presente, pesquisas sobre as ocupações escolares começam a circular, como: Campos; Medeiros; Ribeiro, 2016. As fontes principais para as análises têm sido a História Oral com os participantes, periódicos e registros nas redes sociais das escolas ocupadas e dos estudantes envolvidos. Os documentários sobre os movimentos, que se caracterizam por mobilizar muitas imagens produzidas pelos próprios ocupantes, como em Pronzato, 2016; Marques; Consonni; Tambelli, 2017; Capai, 2019, são outra fonte potencial. Para análise sobre a ocupação a partir dos dois primeiros filmes, cf. Ferreira; Calabria, 2019. 14 Em meados de novembro de 2016, cerca de um ano depois das primeiras ocupações em São Paulo, aproximadamente 1000 escolas do Ensino Básico haviam sido ocupadas por quase todo o país, quase 200 campi de Universidades e Centros de Formação Técnica encontravam-se ocupados pelos estudantes – ou “invadidos”, como descrito na cobertura de veículos da grande imprensa e conhecidos pelo viés conservador; como os jornais Estado de São Paulo (SP) e O Globo (RJ), respectivamente: < https:// educacao.estadao.com.br/noticias/geral,n-de-universidades-ocupadasavanca-e-chega-a-194-no-pais,10000088828 >; < https://oglobo.globo.com/ brasil/nas-universidades-ocupacoes-mudam-rotina-de-estudantes-20442778 >. 15 O termo de origem anglo-saxônica tem sido adotado pelo governo brasileiro e o seguiremos neste texto. Seu sentido, não obstante, pode ser ampliado para educação doméstica. 16 Termo utilizado para se referir aos combatentes curdos e literalmente significa “aqueles que enfrentam a morte’: pesh / enfrentar + marg / morte. 17 Como dito por Pierre Clastres (2003), tanto no genocídio quanto no etnocídio o Outro é visto como a má diferença, mas, enquanto no caso do genocídio busca-se simplesmente exterminar os outros porque eles são maus, no etnocídio, os outros são maus, mas busca-se melhorá-los até que se tornem idênticos ao modelo que lhes é imposto. 18 Tanto em relação aos curdos quanto aos zapatistas, poderíamos afirmar que, como apontou Eduardo Viveiros de Castro (2016b) ao tratar da relação dos povos indígenas no Brasil com o Estado brasileiro, o etnocídio é mais que um ato, ou série encadeada de atos específicos, limitados no tempo e no espaço, contra as minorias étnicas, mas é como se estabeleceu historicamente a relação mesma entre a forma-Estado e a forma-ethnos (os povos indígenas). 19 Para as bases do pensamento do movimento curdo, cf. Öcalan, 2016. 20 Chanel é a nomenclatura do povo Tzotzil para nomear a educação verdadeira. 21 Como é chamada a plantação familiar geralmente composta por feijão e milho.
22 Viveiros de Castro diferencia modelo e exemplo: “Modelos são como Ideias platônicas, que se pode (que se deve) apenas copiar, sempre, é inevitável, imperfeitamente — os povos são sempre atrasados, ignorantes, recalcitrantes —, como os ‘modelos de desenvolvimento’ impostos a ferro e a fogo pelos Bancos Mundiais, os FMI, os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, e, por último mas não por menos autoritários, os Governos de nosso trágico país. Exemplos instigam à experimentação e à criação. Modelos, à obediência e à servidão. Exemplos se seguem, como se segue uma pista que nos leva aos nossos próprios lugares; modelos se aplicam — sempre aos outros, aos menores, aos menos, aos que se obrigam serem aplicados na aplicação dos modelos que lhes empurram goela abaixo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2016b, p. 49). 7 ZONAS LIBERTÁRIAS: CORPO E ESPAÇO SOB A AURA DA RESISTÊNCIA André Bocchetti Já faz algum tempo que Abraham Weintraub escolheu definir aquilo que fazemos todos os dias, em nossas universidades, como “balbúrdia”. O então ministro da Educação, interessado em explicitar as razões dos cortes de verba que planejava à frente do MEC, afirmou que a universidade estaria “com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo”, algo que tornaria, sob sua análise, inviável o repasse financeiro às instituições (AGOSTINI, 2019). A reação foi imediata. As inúmeras respostas foram muito comumente categóricas na recusa da adjetivação, e diversas entidades de classe e agências vinculadas à produção científica nacional se pronunciaram com notas de repúdio e contestação. Mas junto a essas necessárias respostas institucionais, houve também um outro tipo de movimento. Foram igualmente frequentes as manifestações, no interior das próprias universidades, que assumiram para si a ideia de balbúrdia; tomaram-na como aquilo que Laclau (2011) denomina de “significante vazio” (p. 91) – um desses elementos discursivos que pouco significam fora das lutas que procuram nomeá-los – e passaram a disputar seu uso e tensionar seus significados; universidades federais criaram perfis denominados de “balbúrdia” em redes sociais para divulgação de sua produção científica, e houve até mesmo aqueles que decretaram o “Dia Nacional da Balbúrdia” como espaço de divulgação das pesquisas realizadas em âmbito acadêmico (BALBÚRDIA, 2019). Para além desses, houve ainda aqueles que, tão simplesmente, assumiram para si a terminologia, tornandoa suficientemente significante em si mesma. Durante uma série de manifestações que se seguiram às declarações do ministro, era comum encontrar grupos de estudantes universitários portando cartazes de “balbúrdia” para dar contorno ao coletivo que se fazia presente na rua. Assumir-se em balbúrdia produziu, no caso das manifestações e de muitos movimentos que se multiplicaram nas redes, uma outra operação,
certamente irônica, mas também afirmativa, que admitia o termo para ampliar ainda mais a distância em relação ao discurso estatal. A balbúrdia declarada passara, então, a operar como uma espécie de barreira semântica e territorial, que reiterava ao ministro sua incapacidade de compreender aquilo que se passa no âmbito acadêmico. O elemento marginalizante, ao invés de refutado, passa então a funcionar como fonte de afirmação de um espaço, fortalecendo sua marginalidade e, no mesmo movimento, assinalando seu caráter assustador àqueles que o rejeitam. Hakim Bey (2001), em suas análises sobre o que chamou de Zonas Autônomas Temporárias (TAZ), encontraria movimento semelhante em sociedades tribais que, sob a acusação colonialista de manter conhecimentos ocultos, passam a confirmar de modo cada vez mais consciente o papel ocultista a elas atribuído, produzindo assim uma “aura mágica” (p. 53) que causa temor e desejo nos colonizadores. De algum modo, é essa afirmação reiterada de distanciamento, seja ele do ocultismo ou da balbúrdia, que em muito viabiliza a própria existência de uma TAZ. Fronteiras A aura, então, não deixa ver. E não deixar ver é um dos fundamentos dessa “operação de guerrilha que libera uma área” (BEY, 2001, p. 17), gerando uma espacialidade outra, inalcançável pela cartografia tradicional: “o mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta” (p. 22). A TAZ materializa, antes de tudo, uma espécie de espaço não físico – se é que tal materialidade extensiva tenha algum dia dado contorno ao conceito –, mapeável tão somente por um exercício cartográfico que seja capaz de captar os modos variados de intensidades que atravessam e fundam uma materialidade. O que uma TAZ viabiliza é, então, o que seu nome já indica: uma zona. A noção de zona, como aqui pensada, pode ser bem enriquecida pelas reflexões de Hakim Bey a partir da noção central de seus principais escritos. Em primeiro lugar, os “momentos de intensidade” (p. 16) materializados nas TAZs apontam sempre para a fundação de uma espacialidade específica, que instaura certa materialidade delimitável, possivelmente geográfica mas, antes de tudo, de caráter afetivo, se compreendermos afeto como aquilo que faz os corpos transitarem de um modo a outro de existir (DELEUZE, 2002). A zona define, portanto, uma atmosfera, um ambiente sensível; algo que Bey deseja perscrutar por meio de sua “psicotopologia”, essa “‘ciência’ alternativa àquela da pesquisa e criação de mapas e ‘imperialismo psíquico do Estado’” (BEY, 2001, p. 22). Há níveis distintos de permanência temporal de uma zona. A partir da efemeridade característica de uma Zona Autônoma Temporária, Bey pôde pensar na relativa manutenção das “Zonas Autônomas Permanentes” (BEY, 2019a) – aquelas fundadas pelos intentos alternativos de uma área alimentada por fontes renováveis de energia; ou na intermitência da “Zona Autônoma Sazonal” (BEY, 2019b), que ressurge em determinados períodos com força igualmente arrebatadora. Uma zona possui, ainda, graus variáveis de permeabilidade. Apresenta, aos que dela se aproximam, um maior ou menor fechamento, que pode variar ao longo de seu tempo de existência, mas que é sensível àqueles que pleiteiam
nela ingressar. Talvez no auge da impermeabilidade estejam essas “zonas proibidas” de que fala Bey (2019c), forjadas socialmente no desconforto do abandono econômico, sanitário etc., e por outro lado talvez disponíveis para a testagem de um “novo social dentro da casca (podre) do velho”. Mas uma festa de amigos, por exemplo, pode ser mais seletiva ou admitir, mesmo que sem regras definidas, a presença de qualquer um; e um festival traz impresso, no acontecimento que instaura, uma sanção de presença que pode ser regulada formalmente mas que pode, também, ser notada por meio de uma comunicação entre corpos invisível do ponto de vista representacional, mas plenamente notável e sensível por aqueles que nele se engajam. É aqui que uma atenção especial à materialidade produzida pela zona merece ser dada. Hakim Bey fala da força da “invisibilidade” (2001, p. 18) que ela carrega. Sua improvável captura na construção de um mapa físico está associada à infinidade de cartografias que precisam ser delineadas para constituí-la – aquela ligada à sua abrangência política, às existências diversas que a viabilizam, aos afetos que circulam por ela etc. Pense-se, por exemplo, nos comerciantes informais que se instalam em um espaço, criando ali uma zona temporária, e que se dispersam com a chegada da polícia. Em um curto espaço e tempo de existência, seu agenciamento produz afetações, negócios, tensionamentos e uma série de outras circulações extensivas e intensivas que delineiam suas fronteiras. De onde provém tal materialidade aparentemente invisível, mas plenamente sensível? É que a zona nasce, sobretudo, do imbricamento das corporeidades que se colocam em relação e permitem o estabelecimento de seus limites. Tem uma capacidade própria de agir, calcada sobretudo no desejo – é o próprio Hakim Bey (2001) que mais uma vez o afirma. Mas é preciso pensar tal desejo, aqui, à maneira de Deleuze (2016): entendendo-o como “agenciamento de heterogêneos que funciona” (p. 134), constituidor de campos de forças que, para existir, se forjam justamente nas intensidades que se articulam entre corpos que se encontram. Em uma zona de contestação produzida em meio a uma manifestação, por exemplo, são tais movimentos desejantes que impelem as existências, muitas vezes deslocadas do interesse individual, à ação afirmativa diante dos limites repressivos. Talvez seja por isso que Michel Foucault (2018) tenha escolhido, diante de suas inquietações com os levantes que culminaram na Revolução Iraniana do final dos anos 1970, enunciar os acontecimentos de resistência em termos de uma “espiritualidade política” (p. 17), essa força pela qual somos praticamente obrigados a nos levantarmos diante do que há de mais pavoroso nos modos de governar. A espiritualidade, aqui, é então vista como “essa prática pela qual o homem é deslocado, transformado, transtornado, até a renúncia da sua própria individualidade, da sua posição de sujeito” (p. 21). No cerne dessa força a qual o pensamento foucaultiano escolheu chamar espiritual está, portanto, a condição desindividualizante do próprio agenciamento de corpos em encontro e comunicação. Estamos considerando o corpo aqui, como o fez José Gil (2001), enquanto “feixe de forças” (p. 161), cuja condição comunicativa instaura uma “atmosfera”, resultante do “turbilhão de pequenas percepções” (GIL, 2005, p. 26) que, formado por forças infrarrepresentacionais oriundas de cada corpo isoladamente, faz
emergir uma espécie de nuvem intensiva que recobre as relações que se desencadeiam em determinado ambiente – pense-se, por exemplo, nas sensações que nos sobrevêm, como em um bloco, ao entrarmos em um ritual fúnebre. Trata-se aqui, nos lembrará Gil (2001), de uma materialidade plenamente sensível, cujas características nos permitem, com muita frequência, reconhecê-la em termos de peso, textura etc. Forças desejantes e atmosferas são, portanto, elementos que nos permitem compreender essa característica fundamental da zona, que reside em sua natureza originariamente corporal. A zona se estabelece na processualidade que agencia corpos e espaços – corporeidades e espacialidades, portanto. Essa é uma característica que nos permite pensá-la, como o fez o próprio Gil (2001), em sua face encarnada – ou, mais precisamente, a partir do que esse autor considera a “consciência do corpo” (p. 159). Esta se viabiliza, justamente, dos “poros” da consciência de si, representacional: “onde nada do exterior se suspende a uma palavra, o corpo vem preencher a lacuna” (p. 162). A consciência do corpo opera, portanto, no momento em que aquilo que narramos como consciente, do ponto de vista da representação, se suspende, mantendo-se, contudo, o movimento ao qual se submete o próprio corpo. Gil considera esse acontecimento um “abaixamento do limiar da consciência” [de si] (p. 162), que se dá em favor do próprio alargamento do movimento no corpo – algo bastante visível, ele afirmará constantemente, no gesto dançado. É a consciência do corpo que permite a ascensão do movimento, sem mediações racionais, sobre a superfície corporal do bailarino. A zona, então, encarna uma área, citando Gil, de “adesão imediata ao mundo, como contato e contágio com as forças do mundo”. E embora os elementos constituintes de uma zona sejam contingentes à sua formação – uma zona formada por corpos festeiros será, certamente, produzida por componentes bem distintos daqueles existentes em um encontro de debates pela internet –, vale compreender que, de modo geral, o corpo funciona, aqui, como uma caixa de reverberação que recebe as forças e, ato contínuo, as absorve e as reflete para outros corpos. Juntos, portanto, tais corpos produzem um “sentido”, não compreendido como uma explicação, mas como um vetor de intensidades compartilhadas. É preciso lembrar que, na mesma medida em que só pode se constituir pela presença intensiva dos corpos humanos e não humanos, a zona não lhes é de modo algum subserviente. Instalada, ela os tensiona, os desfaz, os transforma e transtorna. Um grande bailarino de Butoh, chamado Hijikata Tatsumi, parece particularmente atento a esse caráter intensivo da zona que se forma com seus movimentos e o de outros corpos por meio desse bailado feito por um dançarino – “cadáver que se coloca de pé, arriscando a própria vida” (UNO, 2018, p. 73). Sobre o que acontece quando esse bailarino se coloca em cena, Kuniichi Uno escreve: O corpo é constantemente invadido pelos outros e perde seus contornos, penetrado e devorado pela luz, pelo vapor, pela sombra, pelos medicamentos, pelos insetos, pelos animais, pela fumaça, pelos fantasmas,
pelo tatame, pela divisória de papel ( shoji ), pelos doces. E todos penetrando-se uns aos outros (UNO, 2018, p. 53). Daí, então, algo particularmente interessante acontece: uma vez instaurada pela comunicação entre corpos, a zona, do modo como a descrevemos aqui, assume uma autonomia intensiva particular – como se o turbilhão de forças que a formasse passasse a funcionar por uma materialidade que estabiliza, por algum tempo, sua presença. E, a depender dos afetos que lhe formam, tal espacialidade pode convidar a uma maior organização dos corpos entre si – não esqueçamos que a comunicação entre eles se dá também nas fileiras do exército – ou a sua total dispersão. O que importa é que, de qualquer modo, o corpo individualizado, fechado em si mesmo, não é jamais respeitado pela zona; pelo contrário, é constantemente fragmentado em suas intensidades para então compor uma força comum da qual passa a ser componente – imagine-se, por exemplo, a multidão de corpos que, absorvidos pela formação de uma zona de guerra, se transformam em um grande aríete contra os portões do inimigo; corpos destituídos de seu primado individualizante, agenciados, em meio à batalha, como componente material de um instrumento de guerra. Portanto, o que acontece na zona, frequentemente, é uma recomposição dos corpos que a constituem por um movimento sucessivo de (1) destituição ou relativização de suas características individuais e (2) agenciamento de componentes específicos que produzem sua extensão ou intensidade, formando a partir deles um devir-corpo coletivo. Explicita-se, aqui, um fundamento importante do tipo de operação realizado pela zona: ela sempre, de algum modo, transversaliza os corpos, extraindo-lhe forças individualizadas e produzindo, a partir delas, vetores mais amplos derivados de seus somatórios: vetor-poético de uma companhia de dança, que instaura sentido nos movimentos do bailarino – captáveis pelo corpo do espectador; vetor-prazeroso de uma festa de amigos, que produz corpos em euforia etc. Parece possível inferir que é desde aí, como nos lembrará Hakim Bey (2001), que a Zona Autônoma Temporária “pressupõe um tipo de ferocidade, uma evolução da domesticalidade para a selvageria” (p. 73). Enquanto zona, a TAZ se inaugura, como já dito, pelas pequenas percepções nascentes no encontro dos corpos que se agenciam. Mas, como José Gil (2005) lembra a partir de Leibniz, tais elementos perceptivos são recebidos pelo corpo “confusamente em suas partes e claramente no seu conjunto” (p. 22). A atmosfera de intensidades constituída no interior da zona se assemelha, então, a uma grande onda, que pode ser distinguida de “outros barulhos” mas que se mostra indiscernível quanto aos pequenos elementos que a compõe – as pequenas ondas, areia revolvida, crustáceos minúsculos que se chocam etc. É esse bloco de intensidades ao mesmo tempo claro e confuso que nos arrebata e nos carrega em sua força selvagem, de difícil representação e reconhecimento, mas de sensível materialidade e efetuação. Zona de Resistência O que se abre com o estudo detido da noção de zona é sobretudo a possibilidade analítica de se aproximar da questão da espacialidade em sua força de estabelecimento de materialidades diversas – físicas, afetivas,
psicológicas, sensíveis – e da questão da corporeidade a partir de um olhar que, sem desprezar os limites da produção de um ente individualizado, se viabiliza justamente na natureza necessariamente comum do corpo, que torna flagrante, de um lado, sua força mediadora – como plataforma de tradução do mundo que lhe toca – e, por outro, sua potência imediata, capaz de receber diretamente as intensidades da comunicação (consciente e inconsciente) com outros corpos e dar-lhes reverberação. Deriva daí uma grande possibilidade de mapeamento das singularidades de uma zona em particular – insubmissas, já o vimos, a qualquer corpo e espaço que aprioristicamente se possa delinear. O olhar sobre uma zona estabelecida nos trará elementos explicativos dos diversos mapas que se estabelecem e das naturezas comunicativas que se desenrolam entre os corpos (humanos e não humanos) envolvidos nessa composição. Entre as muitas materialidades possíveis estão aquelas que se formam por meio das resistências. E pode-se dizer que uma zona é resistente quando mantém a afirmação de suas próprias intensidades em meio a situações potencialmente disruptivas. Veja-se que a caracterização dessas singularidades espaço-corporais, como feita até aqui, imprime certos tensionamentos à noção de resistência. Impõe-lhe, de largada, um olhar dessubjetivante – são as zonas, não os sujeitos constituídos aprioristicamente, que se afirmam nesse caso. E, como vimos, a ação da zona – inclusive daquela que realiza um esforço de resistência – não implica necessariamente a preservação do corpo individualizado, mas pode inclusive estar associada ao seu desmantelamento, sob diversos aspectos. Tal característica é particularmente importante já que pode agenciar o furor ¹ da resistência, exterior à ordenação corporal, às ações individuais. No cerne desta relação está, por exemplo, a questão da vontade, vista por Foucault (2018) como sustentáculo da revolta: eu diria que a vontade é talvez precisamente essa coisa que, além de todo cálculo de interesse e mais além, se assim preferir, da imediatidade do desejo, do que há de imediato no desejo, a vontade é o que pode dizer “eu prefiro meu fim”. É isso. Eis aí a prova da morte (FOUCAULT, 2018, p. 84). Vontade, portanto, como ação deliberada diante da força arrebatadora da exterioridade fundada pela zona. O acontecimento da resistência é, assim, tomado por uma constelação heterogênea de decisões subjetivas – “a vontade é o que fixa para um sujeito a sua própria posição”, afirmaria Foucault (2018, p. 84) –, o que torna ainda mais complexo o mapa de uma zona resistente, composta por corpos impetuosos mas igualmente por corpos amedrontados e corpos recalcitrantes, que se comunicam e instauram materialidades afetivas. Aquilo a que chamamos resistência é, portanto, menos um bloco homogêneo de ações interessadas do que o produto de um conjunto de respostas diversas à intensividade desejante que emerge da zona. Em segundo lugar, a noção de zona, atrelada à de resistência, empresta a essa última uma contingência particular. Do mesmo modo como a materialidade resistente é composta pela relação entre o desejo comum e uma miríade de vontades particulares – ambos encarnados nas existências que compartilham tais intensidades –, os sentidos da resistência em jogo são
também, em muito, forjados na comunicação entre corpos que imergem no calor dos acontecimentos. Não se trata aqui, tão somente, do sentido compreendido como um “horizonte” que habita a palavra (GIL, 2001) – aquele expresso nas bandeiras, nos discursos, nos alto-falantes. Há sentidos em movimento, compreendidos de modo imediato na comunicação entre os corpos que habitam uma zona; igualmente infinitos em suas possibilidades, eles ultrapassam a linguagem e o modo representacional de consciência. “Há movimentos corporais”, diz José Gil, “que contêm em si a sua significação completa” (ibidem, p. 105). Em meio à multidão, alguém me olha e me faz avançar; tomo a mão de alguém e, nesse toque, alimento também seu avanço. Os sentidos da resistência se multiplicam; mas, embora também variáveis, produzem como efeito um bloco que permite àqueles que se defrontam com a zona um entendimento imediato de sua potência de manutenção frente àquilo que lhe tenta interromper. A zona de resistência é, portanto, paradoxal. Carrega as intensidades, seletividades, durabilidades e invisibilidades características de qualquer zona. Mas a elas agrega elementos de uma afirmatividade teimosa, da vida que nela pulsa, insubordinável, repleta de desejo, vontades individuais e agenciamentos de sentidos linguísticos e afetivos. É sobre tais composições de heretogeneidades que podem, então, se desenhar as linhas de uma imaginação política capaz de fazer com que o resistir permaneça nesse “outro lado” – o lado que se desprende “desses mecanismos que fazem aparecer [apenas] dois lados”, como diz uma vez mais Foucault (2013, p. 357). Vem daí esse terceiro e valioso elemento da relação entre resistência e zona: qualquer zona que maneja os intentos de esgotá-la é, em si, resistente, na medida em que desvia as relações de poder que atuam para sua dissolução. E é nesse sentido que as TAZs de Hakim Bey se revestem de liberdade: ao afirmar os desejos de novidade, deslocamento ou mesmo inutilidade que lhes acompanham, elas interrompem tudo o que possa sonhar com qualquer unidade a ela transcendental. Esse, bem sabemos, é um sentido por si só suficiente, capaz de alimentar qualquer luta. Um filme, um fim: aberturas Três companheiros, presos. Três corpos isolados, quase sempre separados tão somente pelas grossas paredes de suas celas insuportáveis. Corpos sufocados, ofegantes, silenciados: “Ministério da Defesa. Resolução. A partir de agora não podem falar. Nem entre vocês, nem com ninguém. Todos os soldados estão proibidos de falar com vocês.” Uma Noite de 12 anos (2018) nasce da resistência Tupamaro; é um filme sobre a ditadura uruguaia e a guerrilha sob seus passos. Mas é, mais do que tudo, uma história dos corpos agredidos de Mujica, Rosencof e Huidobro. É sobre a recalcitrância de uma zona instaurada entre eles, que resiste diante de paredes, pancadas e manobras políticas. O anseio em ver dissolvida a zona afetiva que reúne os guerrilheiros é interminável. Junto ao isolamento estão a fome, a pressão psicológica, a sujeira, o silenciamento ensurdecedor. Contra isso, corpos esgotados que teimam em manter sua condição de continuar a comunicar.
É noite de Natal, e os fogos de artifício, vistos ao longe pelas grades, reverberam em seus estrondos pelas paredes que confinam os corpos – paredes que, em sua rigidez, não escondem a possibilidade de que o som lhes atravesse. Toc, toc. Toc, toc. No silêncio compulsório, as existências se descobrem pelas mensagens possíveis no bater dos ossos dos dedos no concreto. Batidas sucessivas são iguais a letras que se sucedem no alfabeto, e uma comunicação precária surge, reafirmando a força resistente que circula entre aqueles corpos. Já não se trata de uma insurgência massiva contra um sistema, aqui. O levante agora é minúsculo, embora de uma potência valiosa para desmantelar as agressões inflamadas de um modelo carcerário. Como zona que resiste, aquela formada entre os corpos dos guerrilheiros deseja apenas a afirmação de suas vidas. E, para isso, talvez o vetor mais importante, resultante do agenciamento afetivo daqueles prisioneiros, seja o da banalidade. Pelas batidas dos dedos entre as paredes passam as notícias usuais de um pedaço de jornal roubado, uma reclamação qualquer, uma poesia, uma história infantil. Passam as coordenadas em vai e vem de um jogo de xadrez. E8C. DxF7. P4AD. Xeque-Mate. A zona de resistência, aqui, é também uma zona lúdica ² – com Huizinga (2019), talvez pudéssemos pensar a ênfase posta na inutilidade e no divertimento por esse tipo de agenciamento. O jogo não tem função produtiva em sua origem. E a existência dos corpos sofridos dos guerrilheiros é garantida, justamente, pela condição de aproveitamento das banalidades envolvidas no existir do isolamento. Rosencof e Huidobro tapeiam a dureza de seu encarceramento com aquilo que bem poderia ser lido como inútil à sua militância. É um jogo de futebol, ouvido graças ao volume do rádio aumentado por um soldado benevolente, que lhes dá o prazer de ouvir suas vozes em uníssono no grito de “gol”. E outra partida, dessa vez imaginada por Huidobro em uma performance no meio do pátio de um complexo carcerário, faz com que os presos se unam em sorrisos e comemorações que parecem suspender, ao menos por alguns segundos, sua condição insuportável. Uma Noite de 12 anos parece ser, em muito, uma ode ao banal como forma de afirmação política da existência. E a zona dos corpos guerrilheiros que focaliza não deixa de nos lembrar aquilo que situações como o confinamento social global provocado pela pandemia de Covid-19 que assolou o mundo a partir de 2019 foram pródigas em afirmar: que o inútil da arte, do jogo e da gargalhada nos salvam do excedente de racionalização que pode nos acometer na solidão. Não sem razão, aos corpos capazes de se divertir de Rosencof e Huidobro se contrapõe, durante boa parte da narrativa, aquele de Mujica, mergulhado na loucura e no delírio provocados pelo enclausuramento radical. O divertido e o banal são, aqui, imagens singulares da zona de resistência que Álvaro Brechner nos apresenta em sua narrativa. Bem sabemos que tal resistir pode vir também, em outros casos, pela violência, pelo impedimento físico, pela reticência ou mesmo pela transgressão linguística – como foi o caso das “zonas de balbúrdia” formadas pelos estudantes e professores universitários em 2019. Não é isso que importa aqui. Mais valioso é, talvez,
ser capaz de captar a potência política posta em evidência pelo simples perseverar da existência. Algo que Georges Didi-Huberman soube captar de modo tão belo em seu maravilhoso Sobrevivência dos vaga-lumes : Mas é preciso opor a esse desespero “esclarecido” o fato de que a dança viva dos vaga-lumes se efetua justamente no meio das trevas. E que nada mais é do que uma dança do desejo formando comunidade (…) (DIDIHUBERMAN, 2014, p. 51). São os corpos-vaga-lumes os responsáveis pelas zonas de resistência mais efetivas. Eles carregam consigo suas bandeiras e militâncias, mas são também preenchidos de uma capacidade (dispersada pela atmosfera sensível das zonas que formam) de ver o “espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 42). Talvez seja isso o que lhes mantenha, de algum modo, com um incômodo sorriso no rosto – visto no rosto dos guerrilheiros, dos artistas, dos estudantes em “balbúrdia”. Muitas dessas existências em comum sequer desejam algo para além da diversão, mas ao fazê-lo conseguem, nas microfísicas de sua própria afirmação, ruir os territórios mais sisudos dos totalitarismos despreparados que teimam em tentar invadi-las. Fiquemos juntos e juntas, pois, sob a condição suspensiva de nossas zonas de resistência. As festas de Hakim Bey nunca fizeram tanto sentido. Referências bibliográficas AGOSTINI, Renata. MEC cortará verba de universidade por “balbúrdia” e já enquadra UnB, UFF e UFBA. O Estado de São Paulo , São Paulo, 30 de abril de 2019. Disponível em: < https://educacao.estadao.com.br/noticias/ geral,mec-cortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-eufba,70002809579 >. BALBÚRDIA do ministro virou inspiração nas faculdades. O Estado de São Paulo , São Paulo, 15 de maio de 2019. Disponível em: < https:// istoe.com.br/balburdia-do-ministro-virou-inspiracao-nas-faculdades >. BEY, Hakim. TAZ : zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2001. __. Permanent TAZs . Disponível em: < https://hermetic.com/bey/paz >. Acesso em: 16/6/2019. 2019a. __. The Periodic Autonomous Zone . Disponível em: < https://hermetic.com/ bey/periodic >. Acesso em: 16/6/2019. 2019b. __. NoGoZone . Disponível em: < https://hermetic.com/bey/nogozone >. 2019c. BOCCHETTI, André. O furor como método: sentidos educacionais de uma prática somática. Revista Cocar . Belém, Ed. Esp. 4, p. 28-56, jul.-dez. 2017.
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A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles, o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades de valentes, de heróis, espólio para os cães, pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus; desde que por primeiro a discórdia apartou o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles . Homero , A Ilíada , Canto I, versos 1-7 (tradução do grego por Haroldo de Campos) Introdução Em uma fria tarde de abril de 1860, um adoecido Pierre-Joseph Proudhon recebeu um dos muitos visitantes que o procuravam na casa em que viveu e trabalhou durante o período de exílio em Bruxelas. Era um jovem escritor russo, autor até então de quatro romances e algumas coletâneas de contos chamado Liev Tolstói. Naquele momento, em viagem pela Europa ocidental, Tolstói soube que Proudhon estava na capital belga, impedido de voltar à França devido à perseguição que sofria pelo regime de Luís Napoleão. Tolstói, que já publicamente professava seu anarquismo, não quis perder a oportunidade de encontrar com aquele que era um de seus maiores ídolos e o mais influente e prestigiado socialista europeu de então (HYAMS, 1979). Tolstói encontrou um Proudhon preocupado. Além dos próprios problemas de saúde, sua companheira e as duas filhas também estavam doentes e os recursos financeiros minguavam. Proudhon vinha mantendo-se com remessas que seus editores, os irmãos Garnier, enviavam-lhe na forma de adiantamento pela publicação de uma segunda edição do livro De la Justice dans la Révolution et dans la Église [ Da Justiça na Revolução e na Igreja ]. A primeira edição, de 1858, causou furor na França e na Europa continental, principalmente pelos trechos anticlericais nos quais Proudhon denunciava Deus e a Igreja Católica como os maiores inimigos da Humanidade (PROUDHON, 1988; HYAMS, 1979; WOODCOCK, 1987). Exilado e enfurecido, Proudhon investia numa nova edição, entendendo que o livro condensava os elementos fundamentais de seu sistema de pensamento. No entanto, e apesar dos obstáculos, Proudhon não trabalhava apenas sobre o De la Justice . Segundo Hyams (1979), o anarquista francês dividia seu tempo entre os cuidados com a casa e a família e outros dois textos. Um deles era um ensaio para uma teoria geral dos impostos que Proudhon escreveu para um concurso aberto na Suíça sobre esse tema (concurso que ele ganhou, rendendo-lhe algum dinheiro). O outro trabalho, de mais fôlego, versava sobre o papel e a influência da guerra na história humana (TRINQUIER, 1998). Esse manuscrito, ainda inconcluso, foi o que mais chamou a atenção de Tolstói. O russo disse a Proudhon que, por
coincidência, vinha elaborando o esquema geral de um grande romance histórico cuja principal força e personagem seriam, precisamente, a guerra. Proudhon, assim, expôs a Tolstói o argumento central do que viria a ser o livro La Guerre et la Paix , também publicado pelos Garnier, em 1861, quando da sua volta à França. Conforme Bernard Voyenne (1987), o encontro com Proudhon surtiu tamanho efeito sobre Tolstói que não foi coincidência o fato de que um dos romances mais importantes escritos por ele, e publicado em 1869, tenha recebido o título de Guerra e Paz . Tolstói, todavia, foi um dos poucos entusiastas do livro de Proudhon. A reação geral à obra foi de violento rechaço. Tanto à esquerda quanto à direita no espectro político da França de então, La Guerre et la Paix foi qualificado como uma “apologia da carnificina”, um “elogio da guerra” e, até mesmo, um “destempero” que indicaria uma possível senilidade de Proudhon (TRINQUIER, 1998). Proudhon teria ficado frustrado e irritado com a má recepção ao livro, indicando em cartas para amigos que as pessoas, apegadas às noções de salvação e revolução, não conseguiam deixar suas posturas de base cristã para compreender seu argumento que tomava a guerra, como conceito e prática, como produtora, impulsionadora e inventora de todos os feitos da Humanidade (VOYENNE 1987; HYAMS 1979; PASSETTI; RESENDE, 1986; JOURDAIN, 2006). Resultado dessa péssima recepção foi a quase completa exclusão desse extenso livro de dois tomos de todos os comentaristas e das reedições e coletâneas póstumas da obra de Proudhon. Os autores mais lidos da história do anarquismo citam a existência do livro, tecem pequenos comentários – invariavelmente sobre as duras críticas dirigidas a ele –, mas não desenvolvem ou debatem seu argumento central (MAITRON, 1992; JOLL, 1977; WOODCOCK, 2002; NETTLAU, 1978; COLSON, 2006). É como se a produção e os desdobramentos da reflexão de Proudhon tivessem saltado diretamente de la Justice (1858) para Do princípio federativo , seu último livro, publicado em 1865. Proudhon, um best seller no campo do pensamento socialista desde o século XIX, traduzido para dezenas de idiomas, não mereceu mais que três edições para La Guerre et la Paix : a primeira, outra de 1923 e uma terceira, em 1998. O livro, ademais, não foi nunca traduzido na íntegra para nenhum idioma. Uma das mais importantes coletâneas de escritos anarquistas, responsável pelo primeiro contato de tantas pessoas com escritos, autores e autoras há muito esquecidos, o livro Os grandes escritos anarquistas , de George Woodcock, cuja primeira edição é de 1977, como The Anarchist Reader , e a primeira tradução no Brasil é de 1981, não incluiu uma linha sequer de La Guerre . Outra importante referência, a antologia organizada por Daniel Guérin Ni Dieu, Ni Maître (Nem Deus, Nem Senhor), publicada em 1970, tampouco traz trechos do controverso livro. A edição brasileira de Guérin, com os extratos de seu livro referentes a Proudhon, intitulada simplesmente Proudhon: textos escolhidos , veio a público em 1983 fiel ao original em francês (GUÉRIN, 1983). Três anos depois, Edson Passetti e Paulo-Edgar A. Resende organizaram para a coleção “Grandes Cientistas Sociais” – dirigida por Florestan Fernandes para a Editora Ática – o volume Proudhon , livro crucial não
apenas para apresentar o anarquista a novas gerações no Brasil, como, também, para introduzir o estudo do anarquismo na universidade brasileira de um modo libertário e, portanto, liberado da literatura acadêmica de então que insistia na visão marxista do anarquismo como pensamento desqualificado (“utópico”) e/ou como expressão de um movimento social prépolítico (PASSETTI; RESENDE, 1986). Na completa e elucidativa apresentação ao volume, Passetti e Resende (1986, p. 12) dedicam um parágrafo a La Guerre afirmando que Proudhon procurou “revelar o sentido da guerra no contexto do capitalismo, que toma a forma primeiramente de concorrência e depois de luta de classes”, frase um tanto sumária diante da complexidade do livro de Proudhon. No entanto, no momento de selecionar os excertos para o livro, os organizadores não incluíram trecho algum daquele livro de Proudhon. Mais recentemente, em 2011, Iain McKay organizou um livro de 823 páginas intitulado Property is Theft! A PierreJoseph Proudhon Anthology (A propriedade é um roubo! Uma antologia de Pierre-Joseph Proudhon). Novamente, e ainda mais grave ante a abrangência da coletânea, La Guerr e et la Paix é ignorada. Em português, uma tradução de partes do livro foi apresentada em 2011 nas páginas da revista Verve , número 19, com tradução de Martha Gambini e seleção, revisão técnica e nota introdutória minhas (PROUDHON, 2011; RODRIGUES, 2011). O mesmo texto foi disponibilizado em 2020 pelo coletivo/editora anarquista Monstro dos Mares, na forma de libreto (PROUDHON, 2020). A seleção desses trechos seguiu a crítica de Proudhon aos “juristas” e à tradição contratualista e destacou sua definição de “ droit de la force ” (“direito da força”) de modo a ressignificar a noção de guerra para além da ação militar conduzida pelos Estados em nome da soberania estatal, da manutenção das desigualdades econômicas e da propriedade (privada ou estatal). Essa escolha deveu-se ao interesse em mostrar como Proudhon poderia ser lido no campo das relações internacionais, para estimular uma analítica anarquista e agonista da política internacional. É esse mesmo ímpeto que retorna neste capítulo. Além de recuperar e apresentar os argumentos gerais de Proudhon em A guerra e a paz , o capítulo pretende expor a articulação desse livro com o Do princípio federativo a partir da hipótese de que ambos formam um duplo que permite uma leitura da política internacional liberada do compromisso com o Estado e com o capital, além de ser pertinente para o estudo de acontecimentos contemporâneos que superam as teorias baseadas na ação dos Estados e nas formalidades diplomático-militares.
Desse modo, o capítulo se divide, após essa Introdução, em três movimentos. No primeiro, encontra-se uma apresentação dos argumentos de Proudhon em A guerra e a paz ; no segundo, busca-se justificar a conexão entre A guerra e a paz e Do princípio federativo ; no último, contrapõe-se a leitura que aqui se expõe à dos poucos autores que, contemporaneamente, relembraram Proudhon no campo da política internacional, voltando ao livro A guerra e a paz para pensar as relações de poder e os conflitos e guerras do presente, notadamente, o francês Frédéric Gros (2009), o britânico Alex Prichard (2013), além do próprio autor deste capítulo (RODRIGUES, 2009; 2010; 2013; 2015; RODRIGUES; MAIONE, 2019). Considerações Finais procuram retomar a argumentação, apontando para o trânsito de Proudhon no campo das Relações Internacionais como possível potência renovadora da análise de política global. A guerra legisladora Pierre-Joseph Proudhon notabilizou-se como a principal referência no campo de pensamento e ação socialistas até sua morte, em 1865. Desde seu primeiro e explosivo livro, O que é a propriedade? , em 1840, quando tinha apenas 31 anos de idade, Proudhon foi alvo de admiração, devoção, provocação e inveja entre socialistas que emergiam das aquecidas lutas revolucionárias europeias dos anos 1840 e 1850 (PASSETTI; RESENDE, 1986; HOROWITZ, 1990). Proudhon foi o responsável por atualizar a “ideiaforça” (CUBERO, 2003; COLSON, 2006) da “anarquia” como uma noção positiva de “perfeição da sociedade” e expressão de “ordem” (PROUDHON, 1986, p. 67), e não como “desordem”, “caos” e “ameaça de morte violenta”, como havia sido consagrada pelo pensamento filosófico-político moderno ocidental, na esteira do uso dado por pensadores como Thomas Hobbes (1979). Em vez de apostar numa revolução violenta ou na tomada do Estado como meio para a realização do socialismo – opondo-o tanto aos bakunistas quanto aos marxistas –, Proudhon prefigurou, a partir de uma crítica da economia política e dos valores/moral de seu tempo, que uma transformação consistente e profunda apenas seria viável por uma simultânea transformação das relações econômicas pela substituição gradual do capitalismo e da monetização da economia pelo mutualismo e do poder político centralizado no Estado pelo federalismo (PASSETTI; RESENDE, 1986; PROUDHON, 2001). No campo econômico, haveria a livre associação de trabalhadores afins em cooperativas articuladas por meio de créditos fornecidos por um Banco do Povo até que as relações mediadas pelo dinheiro pudessem ser superadas pela interdependência da especialização produtiva sem a busca do lucro. No campo político, federações de cooperativas ou comunas formariam constelações de unidades políticas comunicadas por interesses em comum, organizadas de modo flexível e orientadas pela possibilidade constante de livre associação ou dissociação. Longe de defender uma suposta “volta” ao bucolismo de “sociedades primitivas”, Proudhon acreditava na possibilidade de uma vida comunitária que adotasse um princípio de “pobreza” não como miséria, mas como a renúncia da ilusão da riqueza (ou opulência no sentido capitalista) como algo acessível a todos (HYAMS, 1979, p. 54). No plano político, o interesse
comum serviria como amálgama para associações livres e federadas, sem a ilusão do Estado protetor ou executor da revolução. Proudhon imaginou uma “outra revolução” que não gerasse “um regime econômico e industrial no qual os vencedores se [tornassem uma nova] classe dominante” (PASSETTI; RESENDE, 1986. p. 19). A transformação social, política, econômica e dos sistemas de valores seria, então, um processo contínuo, passível de avanços e retrocessos, uma revolução permanente (conceito, depois, tomado por Leon Trotsky em outro contexto); um processo não teleológico e, portanto, sem “fim da História”, sem escatologia, logo, nem hegeliano-marxista nem bakunista, tampouco cristão e liberal. A noção de inconcluso no processo de transformação proudhoniano deve-se, segundo Jourdain (2006), a um conceito de tensão , disputa ou luta permanentes que pautaria desde as dúvidas e decisões íntimas, passando pelas relações pessoais mais cotidianas, até chegar ao plano das relações políticas e econômicas. Uma forma de combate constante que Proudhon (1998) chamou de “antagonismo” e que, mais do que infindável, seria ela mesma a força a fornecer o amálgama social e a instigar todos os feitos e produções das sociedades humanas: leis, instituições políticas, arte, religião, riquezas, e também misérias, destruição, desespero e morte. Jourdain (2006) sustenta que foi precisamente no livro La Guerre et la Paix que Proudhon desenvolveu essa noção de “antagonismo”, também chamado pelo anarquista de “direito da força” ( droite de la force ) e que ao se ignorar ou execrar tal obra, perde-se um elemento fundamental do pensamento e da originalidade de Proudhon no panorama da filosofia, do pensamento social e da crítica socialista ao Estado e ao capitalismo. O que foi entendido por muitos em seu tempo como elogio da destruição e da violência, foi uma extensa reflexão organizada em dois movimentos conectados: Proudhon avançou com virulência contra os princípios da filosofia política moderna (juristas e contratualistas como Hugo Grotius, Thomas Hobbes, Jean-Jacques Rousseau e Immanuel Kant) e distinguiu a sua noção de guerra daquela produzida pelo Estado e pelo regime da propriedade privada e estatal. Assim, a obra – em dois tomos – foi dividida pelo autor em cinco “livros”: “Livro Primeiro: Fenomenologia da Guerra”, “Livro Segundo: Da natureza da guerra e do Direito da Força”, “Livro Terceiro: A guerra em suas formas”, “Livro Quarto: Da causa fundamental da guerra”, “Livro Quinto: Transformação da guerra” (PROUDHON, 1998; PROUDHON, 1998a). Para efeitos dessa reflexão, o conteúdo mais importante concentra-se nos livros “Segundo”, “Quarto” e “Quinto”. Isso se deve ao fato de que foram nesses “livros” que Proudhon apresentou a noção de “direito da força” e propôs ao conceito de guerra uma revaloração que podemos considerar análoga à que havia realizado ao de “anarquia” ao longo de seus escritos. Proudhon considerou que o enfrentamento, a disputa, a competição em nome de riqueza, de glória, da defesa de valores ou para a construção de civilizações é um fato próprio do humano. Animais lutam para demarcar territórios, para disputar uma presa ou uma fêmea, mas não vinculam o embate físico a qualquer valor ou simbologia. Portanto, logo de início, Proudhon atacou a analogia realizada pelos filósofos políticos que de Hobbes (século XVII) adiante aproximaram “guerra” de “bestialidade” ou
“selvageria”. Ao contrário, para o anarquista, são os atos e valores guerreiros que fundaram todas as instituições (as leis e códigos, as religiões, as práticas sociais, os sistemas econômicos) desde o começo das sociedades humanas. Antes de mais nada, a “guerra” seria um embate interno, imanente aos seres humanos, um conflito permanente de si para consigo expresso nas dúvidas éticas, nas tomadas de decisão, nas tomadas de posição política. Muito antes de ser uma ação militar ou uma movimentação de tropas, como se pensa no senso comum, a “guerra” seria “uma manifestação de um ato de nossa vida interior” (PROUDHON, 1998, p. 37; todas as citações de A guerra e a paz são traduções minhas). Por ser um ato inicialmente interior e constituidor da subjetividade, Proudhon afirmou não estranhar que todas as religiões tenham principiado com valores guerreiros: os deuses mais antigos são guerreiros e guerreiras, lutam entre si e com os humanos, instituem a sua vontade pela força. Tal visão sobre as religiões significa, em Proudhon, a noção de que as religiões “verdadeiras” são, simplesmente, as “mais fortes”, ou seja, a religião que prevalece num determinado tempo e lugar é a fé do conquistador (PROUDHON, 1998, p. 47). Logo, a “verdade” emanada dos deuses e deusas conquistadores é produto de uma disputa de força. Analogamente, continua Proudhon, o que se define como “Justiça”, e o que dela deriva como “Direito”, são expressões dessa “revelação divina” confirmada pela vitória no campo de combate. Daí, as instituições forjadas pelas sociedades, a partir das permissões e vetos das leis divinas, são também efeito de vitórias e derrotas, tanto no campo de batalha que congrega milhares de guerreiros em confrontos sangrentos, quanto nas versões abrandadas dessas lutas que acontecem nas ágoras , nos parlamentos, congregações, uniões profissionais etc. Afirmou Proudhon que “isso que chamamos de direito político não é outra coisa, em seu princípio, que o direito das armas [sendo] a conquista aquilo que estabelece e expande o Estado, [e] cria o soberano” (1998, p. 48-49). Logo, a guerra é uma força não apenas destrutiva – o que é óbvio –, mas também produtiva, pois instaura valores, instituições, modos de vida, a noção de “Justiça”, a “lei”, o poder político, as formas de apropriação e exploração da natureza e da força de trabalho dos homens, pois é pela força que se instalou e se manteve a “propriedade”: “a oposição do trabalho e do capital, da oferta e da demanda, do credor e do devedor, dos privilégios dos autores, inventores (…) as penas contra os falsificadores e plagiadores, tudo isso não indicaria a guerra?” (PROUDHON, 1998, p. 51). Dessa maneira, o poder político (Estado), a ordem jurídica (o Direito) e os sistemas econômicos (a propriedade) seriam produzidos e mantidos pelo exercício da guerra, uma forma de violência organizada voltada para objetivos claramente definidos por quem se lança à prática de governar. Proudhon ainda fez questão de esclarecer que tanto em monarquias absolutistas quanto em democracias liberais a produção de todos os elementos constitutivos de uma dada sociedade é derivada desse “direito da força”. Assim, para Proudhon, “o estado social é, desse modo, sempre, de fato e de direito, um estado de guerra” (1998, p. 50); ou ainda, “a guerra e a paz, que vulgarmente são representadas como dois estados de coisas que se excluem, são as condições alternantes da vida dos povos” (1998: 73).
Os “vulgares” que revestiram a dicotomia “guerra/paz” foram, precisamente, os filósofos políticos e juristas da tradição contratualista que desde o absolutista Thomas Hobbes (século XVII) ao monarquista constitucional Immanuel Kant (século XVIII) produziram obras em que defenderam a necessidade da existência do Estado (e das leis por ele garantidas e aplicadas) para que houvesse ordem, propriedade e proteção contra a morte violenta. Essa tradição do pensamento político e jurídico é conhecida como contratualista exatamente porque apresenta, numa narrativa pseudo-histórica, a evolução das sociedades humanas da condição de selvageria – o “estado de natureza”, que equivale à vida antes da existência do Estado e da propriedade – para um “estado de sociedade” no qual um poder político centralizado, criado por um suposto contrato social realizado por homens temerosos de sua pregressa condição selvagem, manteria a paz, a ordem, a integridade física e da propriedade individual por meio de uma assimetria atroz entre o poder físico do Estado e seus agentes (forças armadas, polícias, carcereiros, juízes, coletores de impostos) e cada um dos súditos/cidadãos individualmente. Para Proudhon, “a paz é então a guerra, e a guerra é a paz: é pueril imaginar que elas se excluam” (1998, p. 77). Logo, “o Estado, organizado para a paz, funda-se na carnificina” (PROUDHON, 1998, p. 41). Funda-se e mantém-se por uma carnificina organizada em nome da lei, da ordem, da propriedade, da moralidade, da religião, da soberania, da defesa contra invasores, imigrantes, refugiados. O manejo da “paz” instaurada pela guerra que conferiu a vitória do atual grupo governante coloca em movimento aquilo que Proudhon (1998, p. 79) chamou de uma “pequena guerra” ( pétite guerre ) livrada pelo Estado e revestida de legitimidade e sacralidade pelos ritos, leis, celebrações e cerimônias instituídos pela mesma guerra originária e fundadora do Estado/sociedade cuja carnificina agora se esconde atrás das legislações, das pirotecnias do poder político, da crença na representação política (do soberano eleito ou não), do medo do outro (o “criminoso”, o “estrangeiro”) e das alegorias fabulosas dos filósofos políticos: Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, Kant, entre tantos outros, são ilusionistas da filosofia moral, conferindo tradição, nobreza e garbo ao sangue que escorre diuturnamente (e isso não é uma metáfora) nas supostas “ilhas de paz” (isso é uma metáfora) que são os Estados Nacionais. Os juristas e filósofos políticos construíram, segundo Proudhon (1998), um discurso que considera “justa” toda guerra como ato de defesa de um Estado contra o ataque de outro e, alguns autores como o general prussiano Carl von Clausewitz (1989), também viam guerra de agressão contra outro Estado como válida se a demanda fosse considerada justa pelo agressor (a recuperação de um território, a consecução do “interesse nacional”, a prevenção contra um possível futuro ataque). “Justa” também seria a guerra conduzida respeitando regras humanitárias, como o cuidado com militares feridos, o compromisso de não ferir civis, de não saquear, estuprar, queimar, depredar; ou seja, todos os atos próprios da guerra desde tempos imemoriais e que foram “proibidos” formalmente por tratados internacionais desde o final do século XIX até os grandes pactos estatais do século XX: o Pacto da Liga das Nações (1919), o Pacto Briand-Kellogg contra a Guerra de Agressão (1928), a Carta de São Francisco (1945), a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948), as Convenções de Genebra e seus Protocolos (1949 e 1977) (RODRIGUES; MORATO; GUSMÃO, 2020; DINSTEIN, 2004; WALZER, 2003). O direito de recorrer à guerra ( jus ad bellum ) e o direito durante a prática da guerra ( jus in bello ) seriam, segundo Proudhon (1998, p. 71-74), meios pelos quais os Estados modernos procuraram criar regras para reger suas próprias disputas violentas evitando chegar ao limite da destruição mútua ou a prejuízos materiais e humanos demasiado grandes, usando o discurso do humanitarismo racionalista emergido na Europa Iluminista do século XVIII como justificativa moral para, novamente, encobrir o interesse em manter a estrutura do poder centralizado e da propriedade privada e estatal intactos. Essas regras, não obstante, foram pensadas na guerra como fenômeno militar, ou pòlemos , termo utilizado no grego antigo para definir o choque violento entre forças militares organizadas, delimitado no tempo e no espaço, regido por protocolos e sob um comando hierárquico claro (KEEGAN, 2002; GARLAN, 1991). Os detratores de Proudhon entenderam que A guerra e a paz tratava apenas do pòlemos e, ainda assim, enaltecendo-a. Basta ler efetivamente o livro para constatar que Proudhon apresentou três dimensões da “guerra” no Tomo I: a primeira e mais fundamental é a que acontece na “vida interior” (PROUDHON, 1998, p. 37); a segunda é o “direito da força”, instituído pelo pòlemos e que dele não prescinde; a terceira é a “pequena guerra”, forma de violência pela qual o Estado e as forças sociais governantes e detentoras da propriedade dos meios de produção mantêm seus privilégios, sua ordem, seus valores. O elemento instaurador da guerra é ignorado pelos críticos de Proudhon, assim como o do conflito imanente ao ser humano. Quanto à “pequena guerra”, seria possível dizer que o conceito de luta de classes, em Karl Marx e Friedrich Engels, ou mesmo a concepção de revolução em Mikhail Bakunin compreendem que a vida em sociedade é uma guerra cotidiana das classes dominantes contra as oprimidas. No entanto, diferentemente de Proudhon, os demais preveem um momento final dessa luta, quando o combate derradeiro da “Revolução” extinguiria as classes e a opressão do homem pelo homem, tomando o Estado (Marx e Engels) ou destruindo-o (Bakunin). Essa visão calcada numa racionalidade judaicocristã (teleológica e escatológica) permitiria prever o “fim da História”, algo que, como veremos na seção seguinte, não cabe no pensamento proudhoniano. Por fim, não é todo pòlemos que Proudhon considera fonte de instigação e inventividade. No Tomo II, Proudhon apresenta o conceito de “guerra brutal” (1998a, p. 29) realizada em nome dos “interesses nacionais” e impulsionada pelo sentimento nacionalista, mas cuja “causa secreta (…) são as necessidades econômicas” (1998a, p. 47). Necessidades criadas pela “ilusão de riqueza” (1998a, p. 29) criada pelo capitalismo que faz com que indivíduos e Estados acreditem, todos, na possibilidade de enriquecer, sem dar-se conta de que o fundamento primordial do capitalismo é a desigualdade econômica gerando o pauperismo : a “falha do equilíbrio entre o produto do homem e sua renda, entre sua despesa e sua necessidade, entre o sonho de sua ambição e a potência de suas capacidades” (PROUDHON, 1998a, p. 35). Para manter o pauperismo, os Estados se
lançam às aventuras militares, beneficiando as elites econômicas e sacrificando trabalhadores nos campos de batalha e suas famílias na miséria e carestia decorrentes do conflito. Pauperismo e pobreza não são sinônimos para Proudhon. A miséria decorrente do regime da propriedade é a situação de penúria permanente do pauperismo. Já pobreza seria uma situação na qual, liberadas da ilusão de riqueza, as pessoas poderiam trabalhar e receber o suficiente para satisfazer suas necessidades materiais e subjetivas, num sistema econômico mutualista de inspiração ascética. Todas as guerras abomináveis, potencializadas pelos avanços tecnológicos da Revolução Industrial, seriam, para Proudhon, efeitos do pauperismo e, portanto, intoleráveis. Mais do que isso, todas as formas de violência destrutivas – o homicídio, as agressões, as guerras civis, os ódios entre classes, a xenofobia – seriam, também, produto do pauperismo, de suas ilusões de riqueza e derivadas das frustrações produzidas pela miséria. Assim, os críticos de Proudhon nivelaram toda sua análise sobre o papel da guerra na história humana àquilo que o próprio Proudhon chamaria apenas de “guerra do pauperismo”. A guerra em Proudhon é ética e honrosa, e adianta, em muitos sentidos, a releitura da ética do guerreiro trabalhada por Friedrich Nietzsche (2004) poucos anos depois. Tanto Nietzsche quanto Proudhon, por sua vez, se reportariam a uma noção de guerra como produtora e constituidora de tudo e todos, uma forma de conceber a guerra e o guerreiro própria dos chamados filósofos pré-socráticos da Grécia Antiga, em especial, Heráclito de Éfeso (544-474 a.C.), que entedia o equilíbrio do mundo pelo choque constante entre elementos antitéticos (COSTA, 2002). Para dar nome a esse confronto, Heráclito utilizou imagens belicosas, deixando fragmentos de um único livro (perdido) em que se lê reflexões como essas: “de todos a guerra é pai, de todos é rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres (HERÁCLITO, 2002, fragmento XXI); ou “é necessário saber que a guerra é comum e a justiça discórdia e necessidade” (fragmento XX); ou ainda “Deus: dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome, mas se altera como o fogo quando se confunde com a fumaça, recebendo um nome conforme o gosto de cada um” (fragmento XXIII). O elemento natural tido por Heráclito como o mais importante era o fogo, pois ele aviva os outros elementos e pela transformação (e não mera destruição) produz novos elementos. No fogo e na guerra, no confronto portanto, as forças cósmicas se harmonizam. Não haveria, assim, uma divisão rígida entre o “bem” e o “mal”, a “verdade” e o “falso” – binarismo próprio do platonismo e, como mostrou Nietzsche (2009), foi base de todo conhecimento, religião e valores do que chamamos Ocidente –, mas uma tensão insolúvel entre forças em disputa que serão “boas” ou “más” dependendo da perspectiva adotada e, jamais, em eterna e acomodada posição. Em A guerra e a paz , Proudhon não cita Heráclito nenhuma vez, mas é prolixo ao tratar dos valores guerreiros da Antiguidade, referindo-se, por exemplo, a Homero em seis longas passagens (PROUDHON 1998, p. 30, 235; PROUDHON 1998a, p. 55, 63, 67, 264). O mito homérico que conforma o padrão de subjetividade do grego antigo é, precisamente, o da bravura e
da coragem, inscritas nos seus poemas épicos, em especial, na Ilíada , narrativa da sublevação do herói Aquiles contra o rei Menelau. Mesmo que o modelo de combate grego fosse baseado nas falanges hoplitas (formações concentradas de infantaria centradas no uso de longas lanças e grandes escudos – os hòplos ), o mito da honra guerreira era traduzido pela luta frontal, homem a homem, como o duelo entre Aquiles e Heitor, príncipe troiano que aceita o desafio de deixar as muralhas de sua cidade para enfrentar o herói grego, sob os olhos de milhares de soldados, sendo, por fim, morto. Morto, mas honrado, pois não se escondeu atrás das muralhas ou da sua posição de príncipe de Troia (DAWSON, 1999). A hipótese que se formula aqui é a de que existem ecos no livro de Proudhon da noção pré-socrática de guerra como conformadora das instituições, a grande legisladora e juíza dos povos. Esses ecos explicariam a noção de “antagonismo” formulada por Proudhon, entendida como a primeira e mais fundamental forma de combate – a de si para consigo – seguida de um segundo e concomitante estado de confrontação permanente entre as pessoas compreendido como amálgama da vida social e não o seu oposto, como defendido pelos filósofos políticos e juristas da modernidade. Complementa essa hipótese a de que esse conceito de “antagonismo”, delineado em A guerra e paz , foi desenvolvido e explorado em seus efeitos mais amplos no livro seguinte de Proudhon e que viria a ser seu último: Do princípio federativo . O contrato concreto A publicação de Do princípio federativo , em fevereiro de 1863, reaproximou Proudhon de seu público. O livro foi um grande sucesso de vendas, esgotando tiragens sucessivas até atingir seis mil exemplares vendidos apenas nos primeiros seis meses de circulação (HYAMS, 1977, p. 271). O livro foi traduzido rapidamente a outros idiomas, incluindo o castelhano (em 1872) e o português (em 1874) (TRINDADE, 2001). A obra é considerada um fecho e depuração do percurso de Proudhon desde O que é a propriedade? (1840), pela apresentação de forma direta e clara de sua proposta de uma organização econômica mutualista acompanhada do seu duplo político federalista (WOODCOCK 2002; TRINDADE 2001a; JOLL, 1977; PASSETTI; RESENDE, 1986). Pela importância que Proudhon dá ao princípio da federação política e pelo debate que estabelece com os federalistas estadunidenses e com o projeto de federação universal kantiana, o livro já mereceria constar da literatura básica dos cursos e manuais de Relações Internacionais, algo que não acontece (PRICHARD; KINNA; SWAN, 2013; PRICHARD, 2011; RESENDE, 2007; RODRIGUES, 2010; RODRIGUES, 2015).
A discussão sobre o conceito de federação em Proudhon e sua articulação com o mutualismo econômico são amplamente discutidos e debatidos entre comentaristas de sua obra (HYAMS, 1979; JOLL, 1977; PASSETTI; RESENDE, 1986; NETTLAU, 1978; TRINDADE, 2001; TRINDADE, 2001a; WOODCOCK, 1987). Assim, para os propósitos deste capítulo, interessa destacar duas das discussões realizadas por Proudhon em Do princípio federativo : a do contrato sinalagmático e comutativo e a da dialética entre Autoridade e Liberdade . Ao apresentar o princípio da federação política como forma oposta à centralização do poder no Estado, Proudhon ironizou explicitamente as teorias contratualistas representadas na figura de Jean-Jacques Rousseau. Para Proudhon (2001, p. 93): Na teoria de J-J. Rousseau, que é a de Robespierre e dos Jacobinos, o Contrato Social é uma ficção de legista, imaginada para dar razão, de outra forma que pelo direito divino, à autoridade paternal ou à necessidade social, à formação do Estado e às relações entre o governo e os indivíduos. (…) No sistema federativo, o contrato social é mais do que uma ficção: é um pacto positivo, efetivo, que foi proposto realmente, discutido, votado, adotado e que se modifica regularmente à vontade dos contratantes. Numa relação com a crítica aos contratualistas impressa em A guerra e a paz , Proudhon retornou ao tema da construção discursiva do pacto ou contrato social na tradição da filosofia política para explicitar a diferença com a sua proposta de pacto federativo. Proudhon rechaçou a fantasia de um contrato livre entre homens que recobre de legitimidade e sacralidade a origem belicosa e sangrenta dos Estados para afirmar um acordo que seria concretamente realizado por homens e mulheres sobre objetivos, problemas ou aspirações reais. As federações começariam e teriam por base os concertos locais, promovidos por trabalhadores em seus lugares de moradia e labuta, a fim de regulamentar, potencializar ou estabelecer maneiras de gerir de forma horizontalizada e em regime de autogestão as questões sociais, políticas e econômicas. Em um regime de autogestão, os cargos e funções seriam ocupados por tempo determinado, seguindo habilidades e disponibilidades de cada pessoa, preferivelmente em sistema rotativo. Ocupar uma posição de gerenciamento não conferiria ao indivíduo “poder de governar” os demais. Ampliada territorialmente, a noção de federação proudhoniana vislumbrava a possibilidade de concertações políticoeconômicas entre distintos territórios e cadeias produtivas a partir de acordos efetivamente realizados em assembleias e passíveis de serem reformados ou finalizados, uma vez que “a vida da federação está na diversidade e na autonomia das unidades federadas” (PASSETTI; RESENDE, 1986, p. 26). Desse modo, comunidades locais que vivessem à margem de um grande rio e usufruíssem de seus recursos – o Tejo, por exemplo – poderiam constituir uma federação entre unidades ribeirinhas que coordenassem o uso e a preservação do rio para benefício de todos. Até mesmo uma “autoridade ribeirinha” poderia ser constituída e composta por representantes das unidades federadas com a responsabilidade de gerir as obrigações celebradas no pacto de formação dessa hipotética “Federação do Tejo”. Tal
“autoridade”, no entanto, não teria capacidades similares a um Estado. Seria mais aproximada a uma agência reguladora, com poderes limitados aos temas sob a sua jurisdição (PROUDHON, 2001). Novas unidades poderiam se agregar à “Federação do Tejo” ou dela desvincularem-se, garantindo o total direito à secessão. Federações como a “do Tejo” poderiam aliar-se a outras federações já conformadas se houvesse interesses econômicos, políticos ou sociais em fazê-lo. Nesse caso, federações contíguas territorialmente formariam constelações de federações. O contrato, então, seria comutativo e sinalagmático na medida em que seria realizado efetivamente e com compromissos mútuos , em assembleia, após discussão e aceite dos termos, sem cessão de autoridade individual a um ente superior, com direito à secessão e assegurando o recíproco comprometimento às mesmas obrigações e à igual distribuição das benesses ou dos prejuízos resultantes da iniciativa. O princípio federativo de Proudhon tem uma evidente expressão internacional, ou mesmo pós-internacional , pois contempla a possibilidade de superação das relações políticas entre Estados-Nação ( inter-nacional ), mas não a abolição das relações políticas entre unidades políticas diferentes. Em primeiro lugar, porque, ainda em referência ao que consta em A guerra e a paz , as relações de força, as tensões e contratensões são partes indissociáveis da existência humana. O fato de os contratos serem efetivamente celebrados não significaria, para Proudhon, que a vida social fosse bucólica ou anódina. Proudhon indicou o “antagonismo” como energia primordial e constante das relações interpessoais. Daí a necessidade de incorporar a livre associação e a livre secessão, expressões de acordos, desacordos e mudanças nos interesses de pessoas livres. No entanto, há uma novidade ou um desdobramento dessa reflexão de Proudhon em Do princípio federativo . No livro, o anarquista teoriza a respeito de dois princípios que seriam como forças arquetípicas que, ao longo de toda história humana, estariam em enfrentamento constante dando expressão a todas as formas de organização política das sociedades. Esses princípios são Autoridade e Liberdade (PROUDHON, 2001, p. 45). Segundo Proudhon (2001, p. 46): estes dois princípios formam (…) um par cujos termos, indissoluvelmente ligados um ao outro, são, contudo, irredutíveis um ao outro e permanecem, independentemente do que façamos, em luta perpétua. A Autoridade supõe necessariamente uma Liberdade que a reconheça ou a negue; a Liberdade por seu lado, no sentido político do termo, supõe igualmente uma autoridade que lide com ela, a reprima ou a tolere.
O “dualismo político” de Proudhon (2001, p. 45) assume, assim, as características de uma “dialética sem síntese” (PASSETTI; RESENDE, 1986), ou seja, uma “luta perpétua”, como afirmou o anarquista, que não se resolveria num mundo perfeito que viria após a Revolução proletária (Marx e Engels) ou das classes oprimidas como um todo, incluindo o lumpemproletariado (Bakunin), ou com a chegada do Estado liberal e seus direitos e garantias (Hegel). Desse modo, seria até mesmo mais preciso falar em um duplo político Autoridade-Liberdade do que em “dualismo”, já que essa última noção ainda remete à dicotomia platônica que formata o pensamento filosófico, ético e político dito Ocidental. Do equilíbrio sempre precário entre os dois princípios, “polos da política” (PROUDHON, 2001, p. 55), surgiriam os regimes políticos , ora mais voltados às práticas de liberdade e autogoverno, ora mais estruturados em formas de hierarquia e obediência. Como em um espectro , em um dos extremos haveria o princípio abstrato da pura Liberdade e no lado oposto o equivalente da Autoridade. Os regimes políticos efetivamente existentes, para Proudhon, encontram-se entre esses dois extremos: no ponto mais próximo do polo da Autoridade estariam as Monarquias Absolutas, caminhando à esquerda viriam as Monarquias Constitucionais. Seguindo adiante, as Repúblicas Democráticas e logo após o Comunismo. No extremo mais à esquerda, contíguo ao princípio da Liberdade, estaria a Anarquia (o federalismo político e o mutualismo econômico). Proudhon (2001, p. 65), todavia, alerta que nunca existiu um exemplo de comunidade perfeita; e é pouco provável por alto que seja o nível de civilização, de moralidade e de sabedoria que o gênero humano atinja, que todos os vestígios de governo e de autoridade desapareçam. A constatação de que Liberdade e Autoridade constituem um duplo indissolúvel é uma importante inovação em termos de análise política porque significa que mesmo atingindo o estado da Anarquia, não desapareceriam a tensão entre vontades, as disputas egoicas, os confrontos entre os seres humanos, fato que permite uma leitura não teleológica da história. Em outras palavras, ainda que Proudhon reafirme em Do princípio federativo sua crença num desenrolar histórico que indicasse o caminho da Anarquia, a chegada a esse estado de organização política, social, econômica e moral não seria necessariamente um estágio final. Logo, ele seria passível de “retrocessos” ou de reconstituição de formas políticas nas quais a presença do princípio Autoridade fosse mais visível.
Eis aqui a relação que se pode traçar entre A guerra e a paz e Do princípio federativo : o elemento do confronto, a guerra como princípio fundamental a produzir todas as formas de vida, instituições, valores e regimes políticos nas sociedades humanas. No espectro de regimes políticos propostos por Proudhon, quanto mais próximas as sociedades estivessem do polo Liberdade, mais liberadas estariam do pauperismo e, portanto, da guerra destruidora em nome do Estado, da propriedade e de seus discursos legitimadores, como o patriotismo e a defesa da soberania. A guerra como fenômeno militar ( pòlemos ) permaneceria uma constante quanto mais à direita no dial dos regimes políticos estivesse uma dada sociedade ou o conjunto de nações. Com essa reflexão, aliada à noção de contrato comutativo e sinalagmático, Proudhon ofereceu instrumentos teóricos para atacar as bases da epistemologia das Relações Internacionais como ciência social, que nada mais são do que empréstimos da filosofia política moderna. As chamadas escolas tradicionais das Relações Internacionais – no campo Realista e no Liberal –, mesmo com suas atualizações (neorrealismo, neoliberalismo, realismo ofensivo, realismo neoclássico), não abandonam princípios fundantes como a inevitabilidade do Estado, o dualismo rígido entre o espaço do político (demarcado pelas fronteiras estatais) e a ausência da política (no espaço exterior às fronteiras estatais) – o que R. B. J. Walker (2013) chamou de dualidade entre inside e outside –, ou o conceito de política como “paz” centrada na crença de que o Estado pode ser um “ator racional” exercendo a coerção física quando necessário para manter a lei e a ordem, com a chancela de cada cidadão, como definiu Max Weber (1993). Quer seja na tradição das Relações Internacionais de corte liberal que busca legitimar-se no contratualismo kantiano, quer seja a de cunho realista que procura suas bases numa leitura de Maquiavel a Hobbes, Proudhon apresenta meios para sabotar as estruturas epistemológicas das teorias das Relações Internacionais, projeto que mobiliza, desde os anos 1980, parte considerável da academia internacionalista, que, em linhas gerais, ignora o anarquismo e a obra de Pierre-Joseph Proudhon. Para além e aquém das Relações Internacionais A expressão “anarquia” é conhecida de todo estudante de Relações Internacionais. Formados pelos manuais, autores e professores de RI, alunos e alunas recebem cargas maciças de informação autorreferente sobre a “anarquia” retirada da reinterpretação que Thomas Hobbes (1979) deu ao termo em suas obras e, em especial, no livro Leviatã , de 1651. Preocupado que estava com a guerra civil na Inglaterra, Hobbes escreveu um libelo à autoridade política centralizada, entendendo-a como a única maneira de evitar as misérias do conflito interno provocadas pelas ambições relacionadas ao trono. A expressão grega “anarquia”, que significa literalmente “ausência de governo”, não é, necessariamente, sinônimo de caos ou de desgoverno, como argumentou Proudhon (1998) “O que é a propriedade?” (opúsculo de 1840 publicado no Brasil no volume O que é a propriedade e outros escritos ). No entanto, as teorias de RI, com suas vinculações explícitas à justificação da existência necessária do Estado (ASHLEY, 1984; WALKER, 2013;
RODRIGUES, 2010), tomaram a noção hobbesiana de forma descontextualizada e essencializada para definir o “sistema de Estados” como uma anarquia (WALTZ, 1979), ou seja, um espaço sem poder político central e superior, portanto, sem ordem, onde valeria a lei do mais forte e a guerra ( pòlemos ) seria possível de acontecer a qualquer momento. Daí a necessidade de existência do Estado para proteger o cidadão e sua propriedade e direitos dos perigos oriundos do mundo externo (WALKER, 2013). Algo similar acontece entre os autores liberais em Relações Internacionais, pois a inspiração kantiana não os livra de considerar a ausência de Estado como “liberdade grotesca” (KANT, 2004, p. 45), ou seja, como “anarquia” num sentido análogo ao hobbesiano. Desse modo, os tratados internacionais, as instituições e regimes internacionais (direitos humanos, regras para o comércio internacional, normas de proteção ambiental etc.) são projeções de lei e ordem nacionais no “espaço anárquico” das relações internacionais. Logo, a base conceitual e ontológica é a mesma entre liberais e realistas. Num contexto assim, não é de se estranhar que anarquismos e anarquistas tenham sido sistematicamente ignorados nos estudos das Relações Internacionais. No começo do século XXI, no entanto, a história e as práticas dos anarquismos voltaram a chamar a atenção no campo das Relações Internacionais. Na área da geografia humana, tem-se destacado o trabalho de Simon Springer, professor na University of Newcastle, Austrália. Springer promove uma discussão da construção política do território a partir de uma perspectiva anarquista, criticando as naturalizações da espacialização do Estado e das formas de ressignificação dos centralismos no poder político a partir dos discursos neoliberais que admitem configurações flexíveis para renovados modos de espacializar a produção e circulação de bens e pessoas e, no sentido inverso, de fixar e isolar determinadas populações. Os debates propostos por Springer têm uma direta interlocução com questões-chave das Relações Internacionais como espaço político, Estado, circulação de pessoas e produtos, xenofobia e geopolítica, resgatando a obra do geógrafo anarquista Élisée Reclus a fim de demonstrar sua atualidade para a análise da política internacional (SPRINGER, 2016; 2016a; 2020; SPRINGER et al., 2012; SPRINGER; DE SOUZA; WHITE, 2016). No campo da sociologia política e dos estudos do pensamento político radical dos séculos XIX, XX e XXI, encontra-se o trabalho de Ruth Kinna, professora na Loughbourough University, no Reino Unido. Kinna tem publicado sobre a questão do internacionalismo antimilitarista anarquista no passado e no presente, a atualidade das práticas radicais de política e a tática black bloc no contexto das resistências contemporâneas ao capitalismo e ao poder estatal (KINNA, 1995; KINNA, 2019). Não obstante, no plano internacional, o acadêmico que mais sistematicamente tem se dedicado a reler e reintroduzir o debate anarquista no campo das Relações Internacionais é o britânico Alex Prichard, da University of Exeter (Reino Unido). Prichard realizou sua pesquisa de doutorado sobre Proudhon encontrando no anarquista francês uma teoria política internacional – não confundir com uma “teoria da política internacional”, como pretendeu Kenneth Waltz (1979) – a partir das noções de “justiça”, “ordem” e “anarquia” na obra de Proudhon. Prichard (2007)
argumenta que a partir dessas noções proudhonianas seria possível pensar problemas fundamentais da política internacional do século XXI precisamente pelo potencial de ultrapassagem das categorias que cimentam o campo teórico das Relações Internacionais na filosofia política de corte contratualista e centrada na naturalização e sacralização do Estado. Prichard (2007) inova ao trabalhar explicitamente a partir do livro A guerra e paz , utilizando a mesma terceira edição, por Trinquier (1998), usada por mim. Para Prichard (2007, p. 631), a “teoria da guerra e da justiça [em Proudhon] tem uma base especialmente sociológica”, entendendo o “antagonismo individual e coletivo” como o amálgama social e o gerador fundamental, tanto no plano local quanto “internacional”, da ordem e do justo. A existência de um “direito da força” em todas as relações humanas marcaria, para Prichard (2007, p. 635), a possibilidade de que Proudhon abrisse novos espaços analíticos para o estudo das relações internacionais, liberando-as da centralidade e fidelidade ao Estado, ao mesmo tempo que diluiriam a dicotomia entre “paz civil” e “anarquia internacional”, exibindo-a como uma construção política de autores vinculados às teorias hegemônicas (Realista e Liberal) em nome de uma dada “ordem mundial” modelada pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental. Para construir seu argumento, Prichard lançou mão, fundamentalmente, das reflexões de Proudhon contidas em A guerra e a paz , o que faz do autor britânico não apenas um introdutor de Proudhon no campo teórico das RI, mas como um dos únicos leitores contemporâneos a recuperar o “livro maldito” de Proudhon para as gerações atuais. Além das obras dedicadas especialmente a Proudhon, Prichard tem dedicado sua carreira a escritos sobre filosofia política e política internacional a partir de uma perspectiva anarquista, sendo um dos poucos acadêmicos internacionalistas abertamente anarquista nas temáticas escolhidas e no posicionamento ético-político (PRICHARD, 2010; 2011; 2013; PRICHARD; KINNA, 2019; PRICHARD; HAVERCROFT 2017; PRICHARD; WORTH, 2020). Na mesma época em que Prichard iniciava suas publicações recuperando noções de Proudhon em A guerra e paz , essa obra foi relida pelo filósofo francês Frédéric Gros no seu livro États de violence: un essai sur la fin de la guerre (Estados de violência, um ensaio sobre o fim da guerra), publicado originalmente em 2006. Como revela o título, Gros (2009) defende o argumento que nos começos do século XXI a forma de guerra clausewitziana, ou seja, marcada pelo confronto entre Estados e suas forças regulares buscando estabelecer relações de subserviência, havia praticamente desaparecido do panorama mundial. Em seu lugar, teriam emergido “estados de violência”, modalidades diversas de enfrentamento e conflito armados que não seguiam os quatro parâmetros básicos da guerra interestatal (do pòlemos ): tempo, espaço, regulamentação e mobilização. No quesito tempo , as formas de “violência organizada” (GROS, 2009, p. 54) passaram a ter, desde finais do século XX, começos relativamente identificáveis, mas conclusões dificilmente demarcáveis: diminuem os pòlemos e aumentam terrorismos, guerras civis, guerrilhas, levantes, guerras contra ilegalismos que parecem não ter final viável ou previsível. Quanto ao espaço , a diminuição das guerras entre Estados foi substituída
por novas violências promovidas por grupos ou agentes armados estatais (forças especiais) e não estatais (empresas privadas de segurança, grupos terroristas, grupos traficantes etc.) que podem agir em múltiplos espaços e em alvos que se distribuem pelo planeta. A regulamentação , por sua vez, deixa de seguir os protocolos para a declaração de guerra ( jus ad bellum ) e de constrição da guerra ( jus in bello ), dando vez para o confronto de agentes de direito público (Estados, coalizões de Estado), agentes de direito privado (empresas de segurança/mercenários) e grupos ilegais das mais diversas características (grupos narcotraficantes, contrabandistas, máfias transterritoriais, grupos de jihad islâmica etc.) sem que nenhuma das partes se comprometa com regra alguma. Os estados de violência, desse modo, ficam alheios ao direito humanitário internacional e ao direito dos conflitos armados, possibilitando estados de exceção prolongados, invasões de soberania, prisões ilegais e legitimação da sempre praticada tortura. Por fim, no que diz respeito à mobilização , para Gros (2009), as formas de convocação para forças armadas hierarquizadas e estatais cederam lugar a inúmeros modos de organização e treinamento, quer seja em grupos paramilitares, em grupos chamados “terroristas”, em grupos condutores de atividades ilegais locais e/ou transterritoriais, em forças militares estatais altamente especializadas e profissionalizadas etc. Gros (2009) interessa-se por Proudhon precisamente pela crítica que o anarquista fez às bases contratualistas da filosofia política moderna que, por sua vez, também perfazem as estruturas do direito de guerra ( jus ad bellum ) e do direito na guerra ( jus in bello ). Para Gros, Proudhon mostrou em A guerra e a paz que a distinção entre “estado de paz” e “estado de guerra” foi uma convenção produzida pelo “direito da força” vinculado ao Estado moderno e seus juristas e filósofos, de modo a legitimar a “guerra justa” contra outros Estados e a “pequena guerra” mantida internamente contra quem ameaçasse os regimes da propriedade e do Estado. Gros cita Proudhon de A guerra e a paz para lembrar que a guerra é a “fonte e fundação de toda lei” (2009, p. 190) e que a associação entre might (força) e right (direito) – repugnante aos juristas de Hugo Grotius a Hobbes, de Locke a Rousseau e Kant – nada mais era do que a modeladora de todas as instituições, valores e princípios humanos. Gros recupera Proudhon para logo vincular sua reflexão às de Nietzsche (de Genealogia da Moral , de 1887), Walter Benjamin (de Crítica da Violência , de 1921) e, principalmente, Michel Foucault (do curso Em defesa da sociedade , de 1975-1976). A linha a conectar esses autores é, para Gros, a constatação de que o cotidiano da política, para além das meras relações mediadas ou performadas pelo Estado, deveria ser compreendido como um conjunto infindável de combates, de enfrentamentos, de vitórias e derrotas. Interessa a Gros o que Foucault resumiu em seu referido curso como “a política é a guerra continuada por outros meios” (2002, p. 26), que, ao inverter a famosa máxima de Clausewitz, permitiu uma leitura do político distinta da dos contratualistas. Para Foucault, “no interior dessa ‘paz civil’, as lutas políticas, os enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder (…) tudo isso num sistema político deveria ser apenas interpretado como as continuações da guerra” (2002, p. 23). Qual guerra? A guerra formadora de todo Estado, modeladora e mantenedora de suas instituições e das
desigualdades econômicas e políticas no interior de um território supostamente “em paz”. Para Gros (2009), essa guerra cotidiana são os estados de violência , que se prolongam para além das fronteiras nacionais em formas transnacionais de confrontação, exemplificadas pela “guerra contra o terror” ou a “guerra contra o narcotráfico”. A vida social, portanto, seria uma infindável alternância entre estados de violência e guerra (pòlemos) , não entre guerra e paz . Gros (2009) se aproximou de Proudhon de A guerra e paz ao ensaiar o que poderíamos chamar de uma genealogia dos pensadores que compreendem que a ordem das coisas e a realidade das relações humanas é sempre presidida pelo confronto (em diversos graus de contundência ou violência). Prichard (2007, p. 2013) recuperou A guerra e a paz para pensar como o anarquismo proudhoniano poderia oferecer instrumentos analíticos para pensar a política internacional contemporânea permeada de agentes de violência não estatais e pela explícita negação da dualidade entre guerra e paz. Gros não valoriza o anarquismo de Proudhon e Prichard não o aproxima de Foucault (que não é citado nenhuma vez em sua tese doutoral). Gros é um filósofo foucaultiano que não atua na área específica das Relações Internacionais, enquanto Prichard é um internacionalista que pesquisa e leciona nesse campo, mas não se aproxima da obra foucaultiana. Uma terceira perspectiva foi oferecida por mim (RODRIGUES, 2008; 2009; 2010; 2013; 2015) a partir da proposição de uma genealogia do agonismo do poder realizada com base no método foucaultiano da genealogia do poder (de inspiração nietzschiana) voltada para explicitar as bases comuns das teorias Realistas e Liberais das Relações Internacionais no contratualismo e para propor uma analítica das relações internacionais interessada na volatilidade e mobilidade da guerra e dos processos de securitização – da produção contemporânea de inimigos e do combate a eles (BUZAN; WÆVER; DE WILDE, 1998) dentro, fora e através das fronteiras estatais. Ao concordar com Didier Bigo (2002), de que uma leitura genealógica da filosofia política que parasse nos autores do início da modernidade europeia não seria suficiente para entender o potencial de uma crítica contemporânea ao poder, a genealogia do agonismo do poder sugere um olhar mais alongado que retoma a filosofia pré-socrática, em especial, Heráclito de Éfeso – como comentado na seção anterior – e que considera o pensamento agonista como um saber soterrado pela vitória política, moral, econômica e militar do platonismo, das formas de acumulação de riqueza e de concentração do poder político que atingiram um grau de sofisticação elevado com o Estado Nacional e o capitalismo industrial, na Europa centroocidental da passagem do século XVIII para o XIX. A noção de agonismo é usada a partir da sugestão analítica de Michel Foucault, no texto “O sujeito e o poder” (FOUCAULT, 1995), em que o filósofo explica que ao pensar, desde os anos 1970, sobre como se davam as relações de poder e os processos de subjetivação, o modo mais preciso de defini-los seria pelo conceito grego de “ágon”, que significa “combate”, mas não necessariamente um embate físico. Diferentemente de pòlemos , ágon era usado entre os gregos para denominar desde os embates de si para consigo (dúvidas, dilemas, decisões, angústias) até o embate entre ideias, propostas políticas, conclusões filosóficas, visões de mundo, choque entre
valores e princípios éticos. As relações de poder, assim, seriam sempre relações agônicas , pois, para Foucault, “onde há poder, há resistências (…) e esta nunca se encontra em posição de exterioridade com relação ao poder” (1998, p. 91). Isso significa que numa relação na qual um dos agentes ou polos pretende estabelecer uma situação de governo com relação a outro – ou seja, conduzir a conduta de outrem –, é possível que o alvo de tal intenção reaja, lute de volta, confronte a ordem recebida, negue-se a ser governado. Essa negativa pode ser tanto no campo simbólico ou discursivo, quanto no físico (confrontação física, choque entre corpos). Assim, para Foucault, mais do que falar em um “antagonismo essencial”, seria preferível falar de um “agonismo”, de uma relação que é ao mesmo tempo de incitação recíproca e de luta; não tanto uma relação de oposição frente a frente que paralisa a ambos os lados, mas uma de provocação permanente. (1995, p. 245) O conjunto das relações humanas, portanto, é a política , muito além das formalidades das instituições de Estado, dos partidos políticos ou organizações sociais. As relações de conflito e de combate modelam as subjetividades e constroem, destroem, transformam todas as instituições, valores, normas, legislações, governos, regimes políticos. Foucault, no curso Em defesa da sociedade , chamou a atenção para a necessidade de que deixássemos o esquema teórico proposto pela filosofia política moderna e pelo contratualismo centrado na lógica “contrato-opressão”, ou “guerrarepressão”, que o filósofo francês denominou como “hipótese de Reich” em referência às noções de opressão psicanalítica (2002, p. 24). No lugar desta, uma outra lógica, que nomeou como a “hipótese de Nietzsche”: em oposição ao modelo teórico da soberania/contratualismo, deveríamos compreender as relações de poder como o “enfrentamento belicoso das forças”: relações de força sem fim ou destino predeterminado, que jamais se pacificam por um contrato ou pela formação de uma instituição política centralizadora dos meios de violência. No curso de 1975-1976 (FOUCAULT, 2002), no primeiro volume de sua História da Sexualidade , de 1976 (FOUCAULT 1999), e no ensaio “O sujeito e o poder”, de 1984 (FOUCAULT, 1995), Michel Foucault não mencionou Pierre-Joseph Proudhon uma única vez. No entanto, quando Foucault afirmou que o próprio “nexo social”, a “política”, deveria ser entendido não “em termos de cessão, contrato, alienação (…) [mas] antes e acima de tudo em termos de combate, de enfrentamento ou de guerra” (2002, p. 22) é possível ver uma aproximação, desde uma perspectiva genealógica, à noção de política proudhoniana e à veemente crítica que Proudhon fez ao contratualismo tanto em A guerra e a paz , quanto em Do princípio federativo . Mais do que isso, a “hipótese de Nietzsche” aventada por Foucault parece-nos genealogicamente em relação de proveniência com a noção de vida como combate em Heráclito, e com a própria obra de Nietzsche, formando um fluxo genealógico que foi soterrado no conflito entre forças, próprio dos processos de produção de verdade, pelo triunfo histórico-político do neoplatonismo na forma da filosofia cristã e no processo de recuperação e reinterpretação das noções greco-romanas e medievais de
soberania, Estado, força militar e lei pelos europeus dos inícios do que convencionamos chamar de modernidade (FOUCAULT, 2004). Não se trata, logicamente, de levantar qualquer hipótese ou polêmica sobre as semelhanças da reflexão de Foucault e Proudhon e de como Foucault teria ignorado a obra proudhoniana em suas próprias pesquisas. Basta lembrar como o próprio Foucault considerava as polêmicas estéreis, preferindo as problematizações , ou seja, a busca por compreender como determinada questão, acontecimento ou prática são produzidos ou passam a ser entendidos como um “problema” (FOUCAULT, 2010). Ademais, “polêmica” provém de pòlemos , a guerra entre Estados, a “guerra do pauperismo” segundo Proudhon, enquanto o que interessa destacar é o ágon, o agonismo da vida como incessante batalha. Por isso, à perspectiva genealógica é pertinente indicar as conexões e potencializações que uma leitura que aproxima Foucault a Proudhon pode trazer para um campo de análise, nesse caso específico, às Relações Internacionais. São muitas as evidências empíricas a sugerir uma analítica agonista dos fluxos de refugiados, das guerras prolongadas em estados de violência e operações multinacionais de “paz” ou de “estabilização” (Iraque, Síria, Afeganistão, Haiti, Somália), dos processos de hiperencarceramento tanto nos países do capitalismo central quanto nos seus postos avançados no chamado “Sul Global”, da crescente indiferenciação entre forças militares, forças paramilitares, gangues e empresas de segurança privadas – todas similares em táticas, equipamentos e estética –, da dissolução efetiva da nunca completamente eficiente separação entre o “espaço doméstico” dentro dos Estados e o “espaço internacional” (WALKER, 2013), do (des)governo dos fluxos produtivos pelas vias computoinformacionais acompanhados pelo trânsito de capitais legais e ilegais, das ações de grupos terroristas e de contraterrorismo e, finalmente, da emergência de práticas de governo do planeta voltadas à gestão dos fluxos produtivos e das pessoas capacitadas a operá-los, assim como à contenção ou ao extermínio dos bilhões que são excessivos e/ou perigosos à ordem política e econômica global pelo simples fato de existir (PASSETTI et al., 2019). As críticas que indicam a incapacidade das teorias de Relações Internacionais tradicionais – Realistas e Liberais – de compreender o mundo e suas contemporâneas relações de força são abundantes e tornaram-se quase lugar-comum entre feministas, pós-colonialistas, decolonialistas, neogramscianos, pós-estruturalistas (RODRIGUES, 2013; RODRIGUES; MAIONE, 2019). Desse modo, o convite que se faz é para uma crítica anarquista das relações internacionais pela aproximação entre Proudhon e Foucault (e suas proveniências). A tal aproximação propomos o nome de agonismo nas relações internacionais , buscando apresentar uma virada agonística nos estudos internacionais francamente aberta à reflexão que negue recentralizar o ponto de análise ao retirá-lo do Estado para recolocálo em outra proposta ou projeto de pacificação definitiva da luta incessante que define a existência humana, quer seja em utopias humanitaristas, em reedições da ideia de revolução contra o capital (na tradição marxista ou anarquista), na afirmação de pautas identitárias que desconsiderem as demais capilaridades e interseccionalidades das relações de poder, ou mesmo na ressurgência de uma reflexão geopolítica e militarista que
acompanha o fortalecimento dos grandes e pequenos fascismos no mundo atual. Considerações sem síntese Entre os autores mais lidos e considerados “clássicos” no campo das Relações Internacionais há somente dois que se dedicaram a estudar e a comentar a obra de Proudhon: o britânico E. H. Carr (1892-1982) e o francês Raymond Aron (1905-1983). Carr (2001) é lido entre os internacionalistas, basicamente, apenas por uma obra: Vinte anos de crise (1919-1939) , considerada a impulsionadora do pensamento realista nas Relações Internacionais. Entretanto, o que a maioria dos internacionalistas desconhece é que a maior parte da obra de Carr foi dedicada ao pensamento socialista. O historiador publicou, em 1933, o livro The Romantic Exiles , obra na qual acompanha, descreve e analisa o movimento pela Europa do século XIX de uma geração de agitadores, revolucionários e intelectuais de esquerda, tendo o escritor anarquista russo Alexander Herzen como personagem principal, mas dando destaque e presença especial à figura de Mikhail Bakunin, o mais influente anarquista europeu daquele século depois de Proudhon (CARR, 2007) . O interesse de Carr pela figura e pensamento de Bakunin fez com que publicasse, em 1937, uma biografia política do anarquista russo bastante crítica, mas de tom geral elogioso e de admiração, intitulada simplesmente Michael Bakunin (CARR, 1937). A dedicação de Carr aos estudos sobre o pensamento socialista ainda o fez produzir A History of Soviet Russia [Uma História da Rússia Soviética], em catorze volumes, publicados entre 1950 e 1978. No mesmo ano de 1950, apareceu um pequeno volume reunindo ensaios sobre pensadores no campo da esquerda, de Saint-Simon a Stalin, escritos para o Suplemento Literário do diário londrino The Times . Em Studies in Revolution [título com duplo sentido: Estudos sobre a Revolução ou Estudos em Revolução], Carr (1950) dedica um capítulo a Proudhon intitulado “Proudhon: Robinson Crusoe of Socialism”, originalmente publicado em 1947. O texto, mesmo tendo sido escrito para não especialistas, faz uma densa apresentação à obra de Proudhon, incluindo relações da sua obra no embate com seu legado cristão e com o diálogo com os escritos do primeiro enunciador dos anarquismos contemporâneos William Godwin (1756-1836), as diferenças entre o anarquismo proudhoniano e bakunista, o choque entre Proudhon e Marx e sua posição única entre os anarquismos (o que teria valido a comparação com o solitário Crusoé). Quando se tratou, todavia, de comentar A guerra e a paz , Carr não evitou o senso comum a respeito do livro, considerando-o um “panegírico da guerra” e uma “aberração” no próprio percurso da obra proudhoniana que viria a gerar ruídos “nacionalistas ao seu federalismo” (CARR, 1950, p. 52). Como Carr não dedica mais do que dois parágrafos ao livro-bomba de Proudhon, não é possível saber o quanto ele teria efetivamente estudado a obra ou se, dela, informou-se apenas pelos comentaristas detratores citados no início deste capítulo. Resta a impressão de que Carr não leu diretamente A guerra e a paz , inclusive porque seu livro Vinte Anos de Crise apresenta uma noção de poder e da balança entre paz e guerra entre os Estados distinta da simplificação teórica (de inspiração contratualista) introduzida por Hans Morgenthau, em seu livro de 1948, Politics Among Nations: struggle for power and peace [A política entre
as nações: a luta pelo poder e pela paz], e que marcou o desenvolvimento da Escola Realista das Relações Internacionais (MORGENTHAU, 2003). A reflexão de Carr nos parece muito mais próxima de uma leitura agonista quando argumenta que a “moral internacional”, constituída pelo conjunto de regras costumeiras ou pelos tratados internacionais, é produto de correlações de força entre os Estados e que muda ao sabor das alterações dessas correlações (CARR, 2001). No que diz respeito a Raymond Aron, a situação é distinta. No extenso livro publicado em 1962, Paix et guerre entre les Nations [Paz e Guerra entre as Nações], Aron dedicou toda uma seção do Capítulo XIX “Em busca de uma Moral – 1. Idealismo e Realismo” para tratar de A guerra e a paz de Proudhon. No subitem (4), intitulado “Proudhon e o direito da força”, Aron faz uma detalhada exposição de A guerra e a paz , centrada na crítica de Proudhon aos “juristas” e ao contratualismo, de modo a destacar o conceito de “direito da força” ( droit de la force ) – reflexão, aliás, muito próxima da realizada por Frédéric Gros (2009). O interesse de Aron foi o de contrapor tal conceito proudhoniano ao outro que embasaria o pensamento realista corrente desde final do século XIX, inspirado em obras como a do historiador alemão Henrich von Treitschke (1834-1896), para quem o poder de um Estado seria determinado por características como o caráter do povo e os recursos da terra que, em última instância, seriam dados pela Providência. Desse modo, haveria povos predestinados à grandeza e à glória e povos condenados à servidão. Para Aron, a influência de Von Tritschke foi marcante desde a Weltpolitk (a política de poder global alemã) de herança bismarckiana até as teorias de supremacia racial nazistas e à tese expansionista do III Reich (a tese do “Espaço Vital”). Não obstante, a mesma lógica da predestinação – na forma de messianismo – atravessaria, também, as obras dos cientistas políticos, internacionalistas “realistas” e homens de Estado dos Estados Unidos, fato que, para Aron, era muito preocupante em tempos de capacidade de destruição termonuclear (ARON, 1985, p. 727). Ao recuperar o conceito proudhoniano de “direito da força”, Aron apresentou uma versão sua do realismo, ou seja, do choque inevitável entre os Estados e seus distintos interesses nacionais, evitando recair na radicalização do idealismo de Von Tritschke usado pelo regime nazista para justificar sua expansão territorial e o extermínio de povos considerados inferiores (ARON, 1985, p. 729). Para Aron (1985, p. 732), Respeitar ou abandonar o vocabulário de Proudhon não é importante. A referência ao filósofo da justiça deve servir para lembrar algumas das suas proposições, incontestáveis, mas facilmente esquecidas. Nenhum Estado de importância se constituiu sem recorrer à força, sem absorver coletividades. Se o emprego da força é culpado, de modo absoluto, todos os Estados estão marcados por uma espécie de pecado original. Sem que se ignorem os horrores da guerra (e Proudhon não deixou de denunciá-los), para compreender a história é necessário distinguir entre as diversas formas como a força tem sido usada e reconhecer a legitimidade histórica (senão jurídica) do seu uso em certas circunstâncias – e talvez, mesmo, de certas violações do direito existente –, evitando fixar-se na alegada antinomia da força e das normas jurídicas.
É interessante notar que Aron refere-se a Proudhon como “filósofo da justiça” e “socialista e moralista francês”, e não como anarquista, explicitando, talvez, a discordância do liberal e conservador Aron com o anarquismo ou, diante da forma elogiosa com que recupera Proudhon, a indicar a preocupação por evitar que o argumento proudhoniano (que lhe serve) fosse desqualificado num ambiente acadêmico como o francês de então – dominado por perspectivas marxistas – e com possíveis ecos das críticas que A guerra e paz recebeu no século XIX. Uma análise da leitura de Proudhon por Aron e Carr, considerados pela literatura das Relações Internacionais como dois dos “pais do Realismo” (WEBER, 2005; HANSEN; BUZAN, 2012), é um empreendimento a que me dedico, incluindo a reflexão “internacional” de Foucault (2004), principalmente a presente no curso “Segurança, Território, População”, lecionado no Collège de France em 1977-1978. Quando consiga concluí-lo, o resultado talvez não agrade a muitos internacionalistas, anarquistas e foucaultianos; mas essa é uma outra estória. Estória, no entanto, que se conecta ao objetivo deste capítulo, que foi o de mostrar como uma parte fundamental da obra de Pierre-Joseph Proudhon, contida no livro La guerre et la paix , foi amplamente repudiada ou simplesmente esquecida por comentaristas e autores em todos os campos políticos. Defendi, também, a hipótese de que A guerra e a paz forma um duplo com seu livro subsequente Do princípio federativo e que ambos, sendo os últimos escritos do anarquista francês, acabaram por ser a culminância de sua proposta de uma anarquia compreendida como a superação gradual da sociedade demarcada pelo Estado, pelo capitalismo e pela propriedade privada para outra orientada pela federação política e pelo mutualismo econômico. A base para a noção de embate permanente entre os princípios da Liberdade e da Autoridade – apresentada em Do princípio federativo – seria proveniente, assim, do conceito de direito da força e da guerra (ou do “antagonismo”) como condição insuperável dos seres humanos e de suas formas de sociabilidade. Por fim, busquei mostrar como há uma reduzida, mas instigante, recuperação contemporânea de A guerra e paz por um autor no campo das Relações Internacionais (Alex Prichard) e por um filósofo foucaultiano (Frédéric Gros), mas que a conexão entre Foucault, Proudhon e Relações Internacionais não foi realizada por eles, restando a proposta que ofereço de um agonismo das relações internacionais . Fica, então, o convite aos/às internacionalistas de hoje para não apenas evitar o “estatocentrismo” das Relações Internacionais (ASHLEY, 1984), como, também, para frontalmente combatê-lo a fim de abrir espaços para análises liberadas da pretensão de verdade absoluta e comprometidas com uma compreensão combativa, portanto, agonista, do mundo, rejeitando o fatalismo das teorias Realistas e Liberais e a excessiva fragmentação dos estudos contemporâneos “pós-modernos” que se dedicam às filigranas da vida social e parecem evitar a luta contra os governos dos espaços e das ideias, contra a naturalização da guerra e da miséria humana, contra a rotinização do assassinato diário de milhares de pessoas consideradas perigosas ou desinteressantes à economia planetária. As Relações Internacionais como ciência social emergiu no início do século XX e ao longo dele desenvolveu-se acoplada às fontes geradoras de saber para o exercício de formas planetárias de poder e sujeição. Ela é, como tantos autores e
autoras no campo crítico das Relações Internacionais já demonstraram, conservadora e eivada de racismo, punitivismo, classismo e violência de gênero. Como afirma R. B. J. Walker (2013, p. 57), a disciplina das Relações Internacionais é “muito fechada, mas não estúpida; é politicamente brilhante, ainda que intelectualmente incoerente”. Em outras palavras, é limitada e limitadora do ponto de vista intelectual, mas “se presta maravilhosamente a [ser] uma apologia do status quo, uma legitimação para dominar”, ao supostamente “demonstrar cientificamente” (ASHLEY, 1984, p. 289) que é natural que os Estados mais fortes dominem e os mais fracos sejam dominados, sem que haja qualquer preocupação em historicizar processos e em notar as lutas políticas e normativas na formação dos Estados e das correlações de força entre eles e através deles. No final de Do princípio federativo , Proudhon vaticinou: “o século XX abrirá a era das federações, ou a humanidade começará um purgatório de mil anos” (2001, p. 128). Ao contrário de sua expectativa mais positiva, com o século XX vieram as duas guerras mundiais, as bombas atômicas, a disseminação pelo globo do modelo do Estado nacional de inspiração europeia, genocídios, a formação de organizações internacionais mais próximas dos princípios kantianos que dos seus. O início do século XXI indica o início desse purgatório, maldição lançada por Proudhon a uma humanidade ainda crente no pauperismo e nas crenças universalistas, quer sejam o humanitarismo liberal, o revolucionarismo de esquerda, a xenofobia, o nacionalismo ou o fanatismo religioso. Se o estudo da política global interessa para inventar novas e mais livres formas de sociabilidade, é preciso explicitar, atiçar e combater a guerra nas Relações Internacionais. Aos incomodados, Proudhon. Fogo! Referências bibliográficas ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações . Brasília: Editora UnB, 1985. ASHLEY, Richard. The poverty of Neorealism. International Organization , Vol. 38, n. 2, Spring 1984, p. 225-286. BENJAMIN, Walter. Crítica da violência: crítica do poder. Revista Espaço Acadêmico , ano II, n. 21, pp. 1-7, 2003 [1921]. BIGO, Didier. Security and Immigration: toward a critique of the governmentality of Unease. Alternatives , v. 27, p. 63-92, 2002. BUZAN, Barry; WÆVER, Ole; DE WILDE, Jaap. Security: a new framework for analysis. Boulder: Lynne Rienner, 1998. BUZAN, Barry; HANSEN, Lene. A evolução dos estudos de segurança internacional . São Paulo: Editora da UNESP, 2012. CARR, E. H. Vinte anos de crise (1919-1939) . Brasília/São Paulo: Editora da UnB/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001. __. Michael Bakunin . New York: Vintage Books, 1937.
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motricidade que ela exigiria. A questão da relevância política do mundo físico, do seu constrangimento e dos limites planetários continuou a ser secundarizada, mesmo na atual fase abrupta das alterações climáticas. Num cenário anarquista, contudo, ela pode assumir um papel de linha de clarificação entre uma oposição industrialista ao capitalismo e uma crítica fundamental – que aqui tomaremos como decrescentista – do devir mundo do industrialismo, só possível a partir de uma perspectiva dissidente. A sociedade capitalista admitiu no seu interior alguns dos mais estimulantes debates sobre a democratização e a redistribuição, mas o fez em articulação com o acréscimo constante dos índices térmicos e do incremento da produção carbônica. Nesse sentido, a “nuvem de fumo” em que o capitalismo nos envolve equivale a uma decisiva perda do espaço indeterminado da emancipação. Muitos lamentam a perda da sua conceitualização sem se aperceberem que a emancipação começa quando os mundos se voltam a misturar. Ao contrário de muito do pensamento de esquerda que aderiu cegamente aos mecanismos da regulação social assentes na economia, a tradição anarquista soube conservar uma relação de desconfiança com a economia, o que lhe permitiu percebê-la como a metamorfose do sagrado que ela é. Ora, como o demonstrou Pierre Clastres, ² o sagrado (enquanto elemento da cultura) é o mecanismo limite da contenção da violência, a zona em que se abre ainda uma possibilidade de inflexão para a sociedade anárquica. É quando a palavra do chefe se dá as condições para se converter em mecanismo regulador das relações sociais e simbólicas – o mesmo que dizer que ela se prepara aí para ser economia sagrada – que intervêm processos de autodefesa antieconômicos. Mas para que a autodefesa continue a ser possível é necessário tomar o risco de aflorar a situação sagrada, é preciso entrar no jogo mortal que o poder nos estende, abrindo ao mesmo tempo as condições do seu esvaziamento. Acontece que na sua forma econômica, que hoje conhecemos enquanto “capitalismo”, o poder age mortalmente a todo momento e em todas as circunstâncias ao instituir uma espécie de esvaziamento monetarizado da sua letalidade aparente. O funcionamento da equivalência geral não permite uma perspectivação dos ressaltos simbólicos, funcionando apenas no paradigma da conversão, que traz consigo aparências resolutivas. É a razão por que a temporalidade se desumanizou e se tornou terrestre e climática. A construção de máquinas emancipatórias, seja pelo Estado saído da revolução, seja pela “racionalização mecânica”, como lhe chamava Castoriadis, necessita tanto do fato da máquina como do direito instituído pelo seu poder emancipatório. Nas origens da revolução moderna, passou-se do poder absolutista ao poder absoluto e generalizado das máquinas a vapor, deixando cair nessa transição a neutralização do poder, que nesse processo teria de passar inevitavelmente pela irrisão do próprio discurso revolucionário. Essa passagem contém, obviamente, a sua ironia histórica: é no momento em que o absolutismo é derrubado que o jogo do poder absoluto abandona os restos da sua expressão simbólica para passar a ser puro fato físico : é a física da máquina a vapor, do canhão, do caminho de ferro, do cimento e dos adubos, do aço, dos tratores, da electricidade, do nuclear etc.
A emancipação, ao tomar-se como parte da lei física, recorre ela própria ao poder das máquinas: a “máquina que toma o Estado” começa a operar singularmente como se estivesse numa guerra da máquina contra a sociedade, a girândola das máquinas de guerra que habitam toda a máquina industrial, a “máquina revolucionária”, mas também a “máquina reformista”, que não é essencialmente diferente da maquinaria que produz o Ford T, tal como este não deixará de ser a máquina de destruição do clima e do espaço habitável. As máquinas emancipatórias funcionam sempre no interior de uma cadeia cíclica de remediação e destruição. Face a esse circuito, a emancipação deve ela própria retirar-se do direito e do fato maquínico a fim de poder voltar a ser reconhecível enquanto fato interpessoal e interespécies. É nas páginas finais do seu livro que Clastres pode sublinhar não ser por falta de saber técnico que “as sociedades primitivas assentam numa economia de subsistência”, ³ o que lhe permite dizer, perante a pergunta sobre o que seja uma sociedade de subsistência, que “esta sociedade mobiliza em permanência a totalidade das suas forças produtivas com vista a fornecer aos seus membros o mínimo necessário à subsistência”. ⁴ O que nesta passagem aparenta ser terrível aos nossos olhos pode ser resumido pelos vocábulos “totalidade” e “mínimo”. Vejamos o seu significado: a ideia de que um povo possa mobilizar a totalidade das suas forças produtivas corresponde a uma situação inimaginável na sociedade industrial, onde estas forças se organizam segundo processos de sondagem, de extração e de transformação. Significativamente, o grande conceito estratégico do industrialismo será o “domínio das reservas”. A guerra e a paz correspondem hoje, não às crises da transformação e da distribuição, como em fases anteriores da sociedade industrial, mas à crise das reservas. A sociedade primitiva não está construída sobre as suas reservas, que são, nesse caso, tão nômadas quanto ela própria o é. Por seu turno, a questão do “mínimo necessário” deve ser lida à luz do próprio conceito de “necessidade”, tal como ele foi revisitado por Ivan Illich: em vez de se constituir como pretexto das instituições produtivas, as necessidades são entidades autônomas que participam numa dada sociedade e que encontram na circulação que aí entabulam as fontes da sua satisfação. A necessidade, podemos dizê-lo, subsiste como parte da autonomia quando não requer um aparelhamento político-econômico ou produtivo do seu processo de satisfação. Esta verificação ilumina a necessidade decrescentista do civilizado: longe de depender da constituição de mais reservas que se desdobram em despesa, é pelo abandono do dualismo entre sedentarização e migração, transformado em circulação, que ele poderá reencontrar o seu mínimo necessário. 2. A sociedade do crescimento compreende, mas também excede, o capitalismo, o industrialismo e os seus revolucionários. A era das máquinas – revolucionárias ou industriais – entrou no seu período de “normalização”, quer dizer, no período em que ambas passam a produzir, não apenas a fetichização dos seus produtos, mas também uma uniformidade do discurso que a acompanha. Isto significa que só pode ser formulado e compreendido o discurso contido nos processos do crescimento, sem que ele seja, necessariamente, discurso sobre o crescimento. A existência ideológica – e
por isso mergulhada no impensado – tornou-se uma parte do discurso do crescimento, ou melhor, revestiu o crescimento com o bem natural da ideologia, que assim melhor dilui o seu questionamento. Tal como o que “cresce” é assimilado a um vitalismo simultaneamente social e natural, assim também a escassez é considerada uma falha característica de algum primitivismo econômico e tecnológico. O sinal da ignorância é a presença de instrumentos adequados à escassez. O tempo das projeções revolucionárias ou industriais acabou. O que não quer dizer que a revolução ou a indústria tenham sido evacuadas de uma vez por todas. Simplesmente, elas deixaram de operar segundo a formação de possíveis que viriam modificar o nosso horizonte. Agora, ambas operam numa espécie de câmara de ressonância da sua própria produção: da revolução ouvimos os “efeitos especiais”, entrevemos os “temas” que supomos que a acompanham, mas mergulhados na incerteza total quanto aos seus atores e às suas estratégias; da indústria vemos a produção das mercadorias, mas em lado nenhum somos envolvidos por um trabalho efetuado sobre a necessidade e a sua moral como aquele que acompanhava a sociedade industrial até o século XX. A produtividade industrial e a produtividade revolucionária são ainda motores de movimentos sociais, mas já não modificam o mundo . Daí que a sua verosimilhança decorra agora, não da sua perspectivação histórica, mas da extrema aproximação a nós do seu horizonte. É apenas no seu achatamento como horizonte que o mundo comporta alguma modificação ainda derivada do industrialismo. A razão, estamos em crer, prende-se com as dinâmicas miméticas que se têm vindo a instalar na realidade social. Chamamos de miméticas à vasta panóplia de operações neocibernéticas que têm vindo a alastrar nos mais diversos domínios da sociedade: da produção à contestação, da educação ao jogo social, os domínios da experiência deixaram de convocar o mundo, para antes preferirem os efeitos de espelhamento do seu operador. Assim, as dinâmicas miméticas oferecem a cada domínio o que eram exercícios correntes noutras: as práticas do eu e do sensível transportam-se para as práticas do político, as práticas do conhecimento tornam-se práticas da paisagem, as práticas da finança instalam-se nas interações com os ecossistemas etc. Os problemas que enfrentamos não serão resolvidos com a introdução de doses maciças de ciência (e de tecnologias) na sociedade. E isso por uma simples razão: a tecnociência só pode resolver problemas que de alguma forma já começara a resolver nalgum ponto anterior da sua operação. O problema político da ciência não reside no fornecimento de “meios de investigação”, como agora é corrente afirmar: a questão política que trabalha a ciência é antes a questão de se saber quanto mundo lhe pode ser disponibilizado. Que materiais – dos tecidos vivos aos minérios e aos elementos químicos, em que quantidade e em que estado de “desbloqueamento ético” – os laboratórios poderão processar? Sabemos o quanto a concepção da tecnociência tem sido dominada por uma transferência para o laboratório daquela definição da realidade enquanto “resistência do mundo” que Dilthey primeiro formulara. ⁵ Todo o contexto ontológico e epistemológico das observações de Dilthey é assim transportado para o campo pragmático do fazer invasivo: trata-se de saber,
não só quantos e quão especializados laboratórios poderão ser montados, que regimes de trabalho intensivo poderão aí ser implementados – e a aceleração das práticas laboratoriais em competição com os “novos” vírus é disso bom exemplo –, mas sobretudo quando e a que ponto se romperão aí barreiras químicas, físicas e celulares que, por enquanto, têm sido obstáculo à explosão definitiva do crescimento. Da mesma maneira que o alargamento sem limites do campo da ética se traduz na negação da ética, também o conhecimento de uma natureza tornada inteiramente objecto do fazer humano se traduz na negação quer da natureza, quer do conhecimento. ⁶ É tempo de questionar as grandes linhas de desenvolvimento tecnológico que controlam, cada vez mais embebidas nos gestos sociais e interpessoais, quase todas as nossas perpectivas políticas. Esse questionamento passa, necessariamente, por uma contestação sustentada e vigorosa dos programas científicos que hoje se encontram completamente integrados ou dependentes dos ciclos das indústrias. Mas a contestação das ligações dos “laboratórios” não é suficiente: é necessário expor o “mononaturalismo” aí praticado, quer dizer, a trituração e redução da natureza (sempre tomada no singular) ao seu valor energético, o que, ironicamente, faz culminar como equivalência econômica o que o humanismo científico pressupunha ser a mais bela eclosão da diversidade dos sistemas naturais. A fim de pensarmos uma política anárquica e decrescentista, necessitamos também de voltar a ligar natureza(s) e política(s), o que permitirá começarmos a abrir passagens e circulações inusitadas na estrita separação que hoje vigora entre os assuntos políticos e os assuntos naturais, pluralizando esse jogo a partir de ambas as dimensões. Uma anarquia em decrescimento não pode limitar-se à “harmonização” ambiental do humano com o natural, já que se trata aí de uma regulação das práticas existentes. Ela deve armar-se de um gesto de ruptura epistemológica por meio do qual se ponha fim ao que Bruno Latour chamou o “casal infernal da natureza e da política”. ⁷ O decrescimento da intervenção na natureza encontra-se necessariamente associado ao desaparecimento da política como a conhecemos, ela que é cada vez mais manifestamente uma pura e simples “política da natureza”. 3. Reconhecer que não sabemos o que é um mundo melhor é a primeira necessidade anárquica. A segunda é a que nos convida a desertar das políticas orientadas para o futuro, essas políticas inteiramente vetorizadas mediante o futuro, como se toda realidade da ação residisse inteiramente num tempo outro, num tempo que está aqui ao lado, mas que se encontra agora indefinidamente inacessível. Acontece que o pensamento anarquista foi quase sempre refratário ao postulado do futuro como reino da verdade. Ao recusar a escatologia futurista, o anarquismo não está tanto a recusar uma ideia de verdade, mas antes a recusar a vetorização que faz coincidir verdade e realidade nesse futuro. Do futuro não se quer um mundo ideal, mas simplesmente a possibilidade de um mundo. No fundo, é a questão do presente que regressa sempre, um presente que nos dá a única hipótese que
temos de colocar a questão do possível, de a colocar com pertinência diante das forças que nele agem. Mas a consideração anárquica do presente é também o exato oposto da dilatação do presente, desse presente que se torna a medida do “espaçomundo”, um mundo afinal separado do futuro pela sua própria capacidade de engendrar o futuro. Ao recusar esvaziar o presente em proveito do futuro, a anarquia como que retoma a relação intuitiva com o presente. “Dêem-me a intuição do presente, terão o passado e o futuro”, escreveu Emerson. A intuição do presente permite que nos libertemos do presente perpétuo e da sua construção ficcional do futuro. O possível é sempre preferível ao ideal do mundo, que tem vindo a contaminar com ideologia o nosso pensamento político. Vêmo-lo na reiterada convicção “de que toda a política recobre um fundo simbólico resiliente que está sempre pronto a tomar as rédeas dos acontecimentos”. ⁸ Ora, acontece que a nossa situação responde melhor à experiência sem fundo. As experiências sem fundo parecem aproximar-se de experiências anárquicas se não tiverem a pretensão de recobrir a carência que as forma, se não se propuserem revestir o carente com a armadura do propósito. A experiência anarquista é da ordem da anarkhé , que significa o que não tem causa, origem, fundamento. Mas embora essa acepção pareça ser relativa ao lugar de onde emerge a anarquia, ela adquire a sua essencial pertinência política por relação com o lugar para onde se dirige a experiência anárquica. Não é tanto por ter na sua origem uma ausência de poder que a anarquia é desde logo possível. É antes por estar marcada por uma paralaxe no que se refere à sua posição perante o poder que a anarquia pode dirigir-se para um lugar onde este não é estruturalmente prérequerido. Não que a anarquia desconheça o poder: o que ela desconhece é a transmissão e a justificação desse poder na sua fecundação de um mundo futuro. Ao fazer depender a sua episteme do poder de uma modificação constante da posição do observador, a anarquia reencontra a sua praxis nesses períodos em que o indecidível mina o imperativo do Estado, que tinha por função congregar em si as estruturas orientadas para a previsibilidade das situações. Mais do que a impossibilidade da decisão, o indecidível rompe as cadeias algorítmicas que tomam conta da decisão social. Esta fenomenologia da anarquia adquire a sua maior importância nos períodos históricos em que a aparente estabilidade das situações históricas começa a abrir fissuras e o colapso generalizado se perfila no nosso horizonte. Sendo certo que o ciclo carbônico da civilização industrial atravessou o seu período de apogeu, no qual as forças políticas que acreditavam poder construir o futuro pareciam muito mais eficazes do que o anarquismo, entramos agora num período em que a construção do futuro abre, não uma clarividência sobre o que esse futuro possa vir a ser, mas a evidência do tempo presente, a evidência do nó de forças que constringem a situação política e existencial das nossas sociedades. O que não quer dizer que o anarquismo esteja desprovido de propósitos. Mas os propósitos chegam-lhe, em geral, de outras paragens e dinâmicas: apanhando-os na sua circulação, a prática anárquica é afetada por essa
circulação, como se se tratasse da circulação dos ventos na nossa atmosfera. E ela adapta-se melhor ao que a climatologia tem vindo a chamar de o “sistema Terra” do que àquilo a que a ideologia chama de o “sistema social”. O problema reside no nosso centramento, ao longo de séculos, no segundo desses sistemas, ignorando totalmente o primeiro: diante do sistema social é fácil acreditar na sua existência e num dado ordenamento lógico, muito embora seja, também ele, um sistema fluido. Ao mesmo tempo, o sistema Terra, cujo ordenamento pode ser bastante compreensível mediante um esforço ao alcance de quase todos, parece continuar hoje fora do alcance da nossa crença. Sabemos algo da Terra, mas não conseguimos acreditar naquilo que dela sabemos. Daí que – num período de mudança climática abrupta e de colapso da biodiversidade – a ação política volte a refugiar-se, à esquerda e à direita, em construções ideológicas muito marcadas pela forma fechada dos “regressos”. Entrámos num período de perigoso ilusionismo político e mediático, regido pela ilusão de que podemos continuar a arquitetar uma maior complexidade organizativa ou a coser mais remendos tecnológicos na nossa situação, como se essas fossem as práticas incontornáveis do nosso tempo. O entretecimento dos danos ambientais com o colapso das estruturas políticas que nos trouxeram a este ponto alimenta, ao contrário, as políticas de denegação, que não são exclusivas da extrema-direita, embora nela encontrem um topos sinistramente reconhecível do indizível. Nesse contexto desastroso, um discurso anarquista deve ir muito para além de uma proposta contracultural, formando agora um conjunto de envios contratemporais, envios que se recusam a essa produtividade do tempo a que chamamos história. Discurso e prática de um tempo outro, de uma alteridade onde se recombinam os tempos sociais, elementares e simbólicos da nossa situação. Referências bibliográficas CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado . Lisboa: Antígona 2018 DILTHEY. Das geschichtliche Bewusstsein und die Weltanschauungen. In: Gesammelte Schriften: Weltanschauungslehre - Abhandlungen zur Philosophie der Philosophie . Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, Vol. 8, 1991. Dupuy, Jean-Pierre. La Marque du sacré . Paris: Flammarion, 2010, p. 94. __. L’Avenir de l’économie . Paris: Flammarion, 2014, p. 39). LATOUR, Bruno. Politique de la nature . Paris: La Découverte, 1999, p. 49. ROSA, Jorge Leandro. Forjar o Regresso do Anarquismo . A Ideia, n. 81/83, 2017. 1 Jean-Pierre Dupuy chama “problema de Adam Smith” à aparente contradição entre os dois livros maiores do pensador escocês, A Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e o Inquérito sobre a Riqueza das Nações (1776): “A economia contém a violência nos dois sentidos da palavra. A economia tem em si a violência, mas não é menos verdade que ela lhe opõe
uma barreira, como se, por meio da economia, a violência se revelasse capaz de se autolimitar, evitando assim o colapso da ordem social” (Dupuy. L’Avenir de l’économie . Paris: Flammarion, 2014, p. 39). 2 “…ao descobrirem o grande parentesco entre o poder e a natureza, enquanto dupla limitação do universo da cultura, as sociedades índias souberam inventar um modo de neutralizar a virulência da autoridade política. Decidiram ser elas próprias as suas fundadoras, mas de maneira a só deixar o poder aparecer enquanto negatividade imediatamente dominada” (Clastres, Pierre. A Sociedade contra o Estado . Lisboa: Antígona 2018, p. 49). 3 Ibidem, p. 207. 4 Ibidem. 5 “Nunca o si mesmo poderia ser sem esse outro, quer dizer, sem o mundo, contra a resistência do qual ele se experimenta.” (Dilthey. Das geschichtliche Bewusstsein und die Weltanschauungen (A Consciência Histórica e as Concepções do Mundo). In: Gesammelte Schriften: Weltanschauungslehre - Abhandlungen zur Philosophie der Philosophie . Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, Vol. 8, 1991. 6 Dupuy, Jean-Pierre. La Marque du sacré . Paris: Flammarion, 2010, p. 94. 7 Latour, Bruno. Politique de la nature . Paris: La Découverte, 1999, p. 49. 8 Rosa, Jorge Leandro. Forjar o Regresso do Anarquismo . A Ideia, n. 81/83, 2017. 10 PARA A HISTÓRIA DE UMA REVISTA ANARQUISTA EM PORTUGAL (1974-2020) António Cândido Franco A revista A Ideia completará, em maio de 2024, meio século de vida. Ao longo dessas quatro décadas e meia, as que vão de 1974 a 2020, publicou 89 números e tem para sair no outono deste ano um número quádruplo (90/93). Feitas as contas, temos dois números por ano ao longo dos 46 anos de vida da publicação. Além dos números editados em papel, a revista deu ainda à estampa uma quantidade apreciável de suplementos, de brochuras, de desdobráveis, de comunicados de imprensa e outras notas impressas e até uma serigrafia do pintor Mário Botas. Para uma noção deste volume do trabalho, deixe-se o balanço que a revista fez no momento em que passavam dez anos sobre a edição do primeiro número (n. 32-3, abril, 1984, p. 59). Aí se diz que a revista, entre 1974 e 1983, publicou 31 números (incluindo sete duplos, num total de 24 tomos), oito brochuras, 28 panfletos e desdobráveis, 25 comunicados à imprensa, um postal, um autocolante e uma serigrafia (Mário Botas). A propósito desse aniversário, a revista A Ideia promoveu no Teatro Vasco Santana (Feira
Popular), em 29 de novembro de 1984, o espetáculo “10 Anos d’ A Ideia ”, em que estiveram presentes cerca de cento e cinquenta pessoas. Entre a assistência, lembramo-nos de ver Mário Cesariny e Ruy Cinatti e entre os que subiram ao palco, António Macedo e Glicínia Quartim. O cartaz pertenceu a Mário Cruz; o evento teve balanço nas páginas da revista (n. 36-37, junho, 1985, p. 112). Ao longo de quatro décadas e meia a revista apresenta por força diferenças, tanto no plano formal como no tratamento das matérias, embora se tenha sempre mantido fiel à sua vocação de revista libertária. Registre-se antes de mais a existência de duas séries, a primeira entre 1974 e 1991, num total de 55 números em 18 anos, e a segunda entre 2001 e o presente ano de 2020, com 37 números em 20 anos. Entre 1992 e 2000, a revista cessou a edição normal, editando apenas uma folha anual, não destinada à venda comercial, sem preço de capa, sem série e sem número, destinada, em exclusivo, a reservar o título da publicação. Não obstante, quer na primeira série quer na segunda, não se depara com qualquer homogeneidade e dentro de cada uma das séries encontram-se diferenças assinaláveis, a começar pelos subtítulos. Assim, na primeira série a revista surge em Paris com o subtítulo de órgão anarquista específico de expressão portuguesa , que manterá até o número 10, primavera de 1978, num conjunto de dez números, ao longo de cinco anos. O seguinte, o décimo primeiro, outono de 1978, troca o subtítulo anterior por revista de cultura e pensamento anarquista , que se manterá até outubro de 1989 (n. 53), num total de 43 números, em 12 anos. No número seguinte, de maio de 1990, novo subtítulo, dessa vez revista libertária , que se manterá até 2012, número 70, em 17 números publicados ao longo de 23 anos. Com o número duplo de 2013 (71/72), mais uma vez se altera o subtítulo para revista de cultura libertária , que se mantém até hoje, no momento em que está para sair o número triplo 90/92. As folhas intercalares entre as duas séries, vindas a lume entre 1993 e 2000, não ostentam título secundário. A revista apresentou assim quatro subtítulos diferentes (1974; 1978; 1990; 2013). Em dois casos a alteração coincidiu com a mudança de diretor, como sucedeu na passagem do número 53 para o seguinte, ano de 1990, em que Miguel Serras Pereira substituiu João Freire, e sucedeu depois em 2013 no número duplo 71/72, em que Cândido Franco, subscritor desta peça, substitui João Freire, que desde o início da segunda série reassumira a direção; no caso que fica de fora, relativo ao outono de 1978, a mudança do título secundário não coincidiu com qualquer mexida na direção da revista, que tinha então por diretor Carlos Abreu. Abreu assumira a responsabilidade legal da revista em fevereiro de 1976 (n. 4) e permaneceu na função até junho de 1980 (n. 17). A fundação, em Paris, pertenceu a João Freire e a primeira direção portuguesa, no terceiro número, a João Oliveira; antes, em Paris, nos dois primeiros, a revista teve apenas um responsável editorial (Germain Parès); Freire, o fundador, assumiu a direção no outono de 1980 (n. 18-19), abandonando-a em 1990, dando lugar a Serras Pereira, para de novo regressar em 2001 e de novo a abandonar em 2013. As folhas anuais, dadas a lume no final do século passado e que salvaguardaram o título, tiveram também a direção de João Freire.
A essas flutuações juntam-se as modificações de formato. A revista começou por ser um desdobrável militante publicado em Paris e evoluiu depois, ainda em França, no final de 1974 (n. 2), para um caderno agrafado, de capa cartonada, a uma cor, montagem e composição artesanais, ilustrações curtas, pouco mais que as fotografias dos biografados. Os meios de difusão eram parcos e a circulação circunscrevia-se às assinaturas e à divulgação militante. Essa primeira fase, a coincidir sobretudo com a direção de Carlos Abreu, durou até 1980 (n. 18/19), momento em que Freire assumiu a responsabilidade da revista; com o número duplo de 1980, as alterações gráficas foram grandes. A publicação, sem tocar nas dimensões, abandonou a confecção manual, ganhando volume e composição profissional. A revista, até as mudanças de 1980, apresentava em média cerca de três dezenas de páginas – chegou a ser uma brochura de 26 páginas (n. 9) – e depois delas passou sempre da centena, chegando mesmo à centena e meia com o número duplo de dezembro de 1982 (n. 26/27). Na nova fase, o regime de distribuição da revista não se alterou muito em relação ao anterior, se bem que o número de assinantes, a par dos colaboradores, se alargasse. Sobre a tiragem encontramos informação em abril de 1982 (n. o 24/25, p. 116), apontando para uma tiragem de mil exemplares, superior, ou bastante superior, à anterior. A nova fórmula, aprofundada ao longo de dez números, o último duplo, em maio de 1983 (n. 28/29), chegou a termo com o duplo de outubro de 1983 (n. 30/31), voltando a revista a sofrer nova reviravolta gráfica. Troca-se o formato clássico por um maior, introduzem-se mais imagens, cuida-se da composição, alivia-se a mancha, apresenta-se uma revista muito extremada do ponto de vista artístico. Essas modificações, que durarão até outubro de 1985 (n. 38/39), são acompanhadas por outras. Começando de início por ter apenas um responsável, e ganhando na primavera de 1981 (n. 20/21) um coletivo coordenador , colaboradores e correspondentes, passou a ter, com a nova fórmula, editores, colaboradores, correspondentes, coordenadores de número e até um responsável gráfico (Vasco Rosa), num total que subiu a cerca de vinte pessoas. Nessa época, a revista alargou a audiência, duplicou ou triplicou a tiragem, ganhou distribuição livreira, captou novos assinantes e colaboradores, como Fiama Hasse Pais Brandão e Mário Cesariny, que publicou inéditos seus, de António Maria Lisboa e de Fernando Alves dos Santos. A cooperativa editora Sementeira, surgida em 1977, em associação com a revista, desenvolve nessa época parte da sua atividade, chegando a 1985 com cerca duma dezena de livros e várias brochuras em catálogo; a partir do número duplo de inverno e primavera de 1984 (n. 32/33), a cooperativa passou a ser expressamente a entidade gestora e editora da revista. O novo modelo, que se estabilizou com um conselho de redação e um leque alargado de colaboradores permanentes, durou até o número duplo de junho de 1986 (n. 40/41), momento em que se dá nova alteração gráfica, por abandono da tipografia em que a revista, desde 1975, era impressa, isto com um curto interregno (n. 5, 1976), a Gráfica 2000, na Cruz Quebrada. Os meios da nova gráfica, a empresa Ramos, Afonso & Moita, na velha rua Voz do Operário, ao bairro da Graça, sem fotocomposição, condicionaram o formato, que diminuiu, e obrigaram a mudanças na mancha, com um texto limpo de ilustrações, sem com isso deixar cair o cuidado artístico anterior.
Apesar das alterações de forma, a revista permanece no essencial a mesma. O conselho de redação pouco se alterou, os colaboradores ficaram quase os mesmos, a distribuição livreira continuou; de igual modo prosseguiu a ligação à cooperativa Sementeira. Uma alteração apenas: a partir do número 50 a revista passou a ser edição patrocinada pelo Instituto Português do Livro e da Leitura , apoio que durou até a saída de Freire da direção. Os números dirigidos por Miguel Serras Pereira, salvante o patrocínio, que desaparece, não introduziram quaisquer alterações formais. Chegou depois disso o período intercalar, quer dizer, o fim da primeira série, em que a revista suspendeu a publicação. Nesse intervalo apenas se editaram os números simbólicos para assegurar a posse do título. A cooperativa Sementeira, responsável anterior pela edição, é dissolvida em outubro de 1992. Quando se dá o regresso, em 2001 (n. 56), e o início da segunda série, a fórmula adotada será por força diferente. Em lugar dum conselho de redação, ajudado por um grupo de colaboradores e de correspondentes, surge apenas um responsável, João Freire, que se assume como editor e administrador da revista. A par dessas, outras modificações têm lugar. A revista ajusta o formato, perde a periodicidade, diminui o volume (o n. 56 tem 34 p.), deixa a distribuição livreira e baixa a tiragem para 300 (n. 56) ou mesmo 200 (n. 70) exemplares. As alterações de subtítulo, as mexidas na direção ou as mudanças no formato, na apresentação gráfica ou na tiragem não parecem, porém, por si só justificarem diferenças de ideário. As mudanças atrás reportadas não coincidem com estas últimas. Assim, a revista, que sofreu as alterações de formato no ano de 1980, que tanto lhe mudaram o aspecto, é em substância a mesma de antes. É uma revista interessada em divulgar o anarquismo, em alimentar alguma militância em seu torno – embora sem as perspectivas organizativas que se podiam sentir em 1975 e 1976, quando a revista era editada pelo grupo Os Iguais, federado na FAI, e alimentava a esperança de criar uma organização específica em Portugal, que ainda tomou forma na Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), que durou, sensivelmente, de 1976 a 1978. Do mesmo modo, as alterações formais que decorreram da mudança de tipografia, em 1987, não trouxeram nenhuma mudança de conteúdo. As diferenças de ideário, a existirem, não seguiram alterações de forma nem trocas de responsáveis. A revista feita por Freire depois da melhoria gráfica de 1980 não apresenta diferenças assinaláveis para com aquela que Abreu orientou, pelo menos a partir de 1977 (n. 9), em que a luta antinuclear chegou à revista. De igual modo, a mudança que ocorreu em 1990, com Serras Pereira a substituir Freire, não dá lugar a alterações significativas; a revista ficou, a bem dizer, a mesma no grafismo, nas colaborações, na orientação. Por isso, no momento da despedida, João Freire podia adiantar: “Julgo que nada de fundamental separa as minhas ideias e aspirações das do Miguel Serras Pereira” (n. 54, p. 3) E caso separasse, o tempo curto foi para o manifestar, pois o novo diretor só tirou à sua responsabilidade dois números semestrais, ambos em 1990. Fora das alterações formais, houve ou não diferenças de ideário no percurso da revista? E havendo, como e onde se tornam elas perceptíveis? Tomando
os primeiros números que a revista publicou e os derradeiros logo salta à vista, além de alterações gráficas, diferenças de significado. A revista inicial não coincide com a final. Como exemplo, tome-se o primeiro número, publicado em Paris. Trata-se dum desdobrável, cujo reverso é ocupado com um único tema, o grupo de afinidade anarquista, em quatro textos (Murray Bookchin, Diego Abad Santillán, Ricardo Sanz e Miguel Garcia) e o verso com uma citação de Bakunine, outra de Léo Ferré, um historial da bandeira negra anarquista, uma bibliografia sobre a Guerra Civil espanhola e a CNT, duas biografias (Mário Castelhano e Camilo Berneri) e um editorial “Como íamos dizendo”, que começa assim: “o anarquismo nunca morreu em Portugal”, e assim finaliza: [ A Ideia ] define-se como órgão específico reclamando-se abertamente do Anarquismo Social, de uma linha de conduta muito precisa que passa por Bakunine, Malatesta e Berneri e se realiza nos momentos de maior vigor colectivo das revoluções mexicana, russa e espanhola. Pegue-se agora no número 70, publicado em 2012, o último feito sob a orientação de João Freire, e passe-se o índice. Dos muitos textos publicados, apenas um respeita a autor libertário reconhecível, Max Stirner. Salvante um outro sobre Camus, nenhum dos restantes comporta qualquer referência arregimentada. As diferenças entre os dois números não podem porventura ser maiores. Dum lado está uma revista de todo empenhada na propaganda libertária, e que a si mesma se vê como órgão anarquista específico , e do outro encontramos uma publicação que, embora libertária , acolhe nas suas páginas um leque de colaborações que nada têm a ver, pelo menos de forma explícita, com a propaganda de tais ideias. O que daqui se pode inferir é que a revista em cerca de quarenta anos trocou, por vontade própria, marcas ideológicas por lastro cultural. Com os mais de vinte números que entretanto se fizeram entre 2013 e 2020 mais este hiato se acentuou, pois grande número de colaborações desses volumes vêm de fora do movimento, são assinadas por pessoas não militantes e versando quase sempre sobre temas poéticos e plásticos. Paga a pena perceber como se deu tal processo. A revista atrás descrita, através do modelo do seu número de estreia, durou até o outono de 1977 (n. 7); a fórmula inicial manteve-se pois intacta cerca de três anos. O número seguinte, temático, “Ecologia & Anarquia”, é porventura o momento em que o paradigma abriu as primeiras fissuras. Em lugar de se insistir no património anarquista clássico, centrado, em exclusivo, na luta de classes, temos um tema novo, a ecologia. Com esse número surge pela primeira vez no horizonte da revista algo mais do que aquilo que decorria de Bakunine, de Malatesta e Berneri ou d os momentos de maior vigor coletivo das revoluções mexicana, russa e espanhola . Essa primeira fissura tem, porém, um valor quase só simbólico; o que por ela então passa é muito menos importante do que aquilo que fica em aberto, à espera de nova oportunidade. Logo depois (n. 11, outono, 1978), a revista altera o subtítulo, que passa a revista de cultura e pensamento anarquista , sem com isso, como se diz no editorial, “se desviar do projeto inicial”. É também nesse número que surge um texto programático, “O que nos Distingue”, sem autor, que retoma aspectos do primeiro editorial, incluindo as referências a Bakunine, Malatesta, Berneri e às revoluções mexicana, russa e espanhola.
O texto será dado à estampa, sem mudanças a notar, em cada número da revista até novembro de 1980 (n. 18-19), neste último já dentro das mudanças de formato e de paginação atrás noticiadas. Assim como assim, o que chegara à revista com a ecologia não mais sai; a revista mostra-se aberta a linhas inovadoras, que não entram nas contas do velho anarquismo. Exemplo é a capa do número seguinte (n. 12, inverno, 1979), que, tendo como pano de fundo um tema indiscutível do anarquismo, federalismo , pulveriza-o depois assim: índios, ibéria, madeira, occitânia, autonomia, europa comunidades, perversões nacionalistas, açores . Ou a do seguinte (verão, 1979), talvez ainda mais marcante, em que o lema lutas de hoje e amanhã , que a ocupa, é identificado não com as lutas do agente clássico transformador do anarquismo, o proletariado, mas com as aspirações dos pacifistas, dos ecologistas e das feministas. Chegaram depois, em novembro de 1980, as alterações formais, quer no formato, quer na direção, sem que isso pareça corresponder a qualquer diferença de ideário. O tema forte desse número é o sindicalismo, com uma mesa-redonda em que participa Emídio Santana, um artigo de Juan Gómez Casas, o primeiro secretário-geral da CNT depois do fim do franquismo, um artigo de Acácio Tomás de Aquino sobre o Sindicato Único da Indústria da Construção Civil, um dos mais ativos da antiga Confederação Geral do Trabalho, um trecho de Neno Vasco, porventura o mais importante teórico do anarcossindicalismo português, e duas biografias, a de Alexandre Vieira e a de Fernand Pelloutier, este pai do sindicalismo revolucionário de ação direta, aquele pai do sindicalismo operário em Portugal. Na primavera de 1980 (n. 20/21), o quadro programático “O que nos Distingue”, presente desde 1978, é substituído por novo texto, “Plataforma Editorial”, mais centrado na edição da revista, com menos preocupações ideológicas, presentes todavia na abertura, em que se aponta “a vontade de compreender a realidade social e de nela agir no sentido de soluções libertárias”. Os anteriores alinhamentos desaparecem, dando lugar a alusões gerais, que extravasam o anarquismo, como liberdade e solidariedade . Mais que uma revista de propaganda, A Ideia propõe-se um espaço de reflexão “sobre os mais variados temas contemporâneos, sociais, ecológicos, culturais, econômicos, políticos, locais e internacionais”, abrindo as páginas à colaboração de não libertários – o que se mantém até hoje. O anarquismo continua a ter lugar, mas visando agora menos ao proselitismo do que à investigação e ao estudo. Com este novo quadro a revista criou as condições para o salto qualitativo que deu em outubro de 1983 (n. 31/32), diversificando as colaborações, alargando o número de assinantes, subindo a tiragem, apurando a apresentação, penetrando no circuito livreiro. O texto em causa manteve-se até o número duplo de outubro de 1983, em que ainda surge sem qualquer alteração. No duplo seguinte (32/33), em abril de 1984, o parágrafo de abertura muda, atenuando aqui e ali dicotomias, mas sem perder a vontade de intervir, “propondo outras lógicas econômicas e políticas que tragam o sinal de uma cultura e de valores libertários”; o restante – colaboração, temas, questões editoriais – não sofre mexida. O mesmo parágrafo terá novas alterações, embora menos de significado que de forma, no outono de 1986, quando da troca de tipografia. Dessa vez (n. 42-43) haverá também mexidas nos pontos da “plataforma”, assumindo-se
pela primeira vez o “promover formas de criação estética”, terreno em que os números anteriores muito se haviam empenhado. Esta versão da “Plataforma Editorial”, cujo antecedente remonta ao outono de 1980, durará até outubro de 1989 (n. 53), último número da responsabilidade de João Freire. O número seguinte, tutelado já por Serras Pereira, substitui-o por documento inédito, “Nova Plataforma Editorial”. A revista trocou ainda o subtítulo que trazia desde 1978, revista de cultura e de pensamento anarquista , por revista libertária , que não mais perderá até 2012. Observando hoje a nova plataforma editorial , mau grado a novidade formal, não nos parece que em substância ela divirja da plataforma anterior, nas suas três versões (1980; 1984; 1986). Porventura, por isso a revista orientada por Serras Pereira foi a mesma da tutelada por Freire – e isto que se disse para o aparato, agora se diz para o conteúdo. O fato não surpreende, se avaliarmos o importante papel que o novo diretor tivera na feitura da publicação anterior, pelo menos desde 1983, e se pensarmos que aquilo que o dividia do antigo diretor era afinal muito menos do que aquilo que a ele o unia. Demais, o tempo que dispôs para orientar a revista foi demasiado curto, menos dum ano, para afirmar qualquer diferença de monta. Não obstante a continuidade, o nó conflituoso que originou a saída de Freire e a entrada de Serras Pereira é pertinente para a percepção do ideário da revista e das suas diferenças. A mudança teve origem num texto dado a lume por Serras Pereira no número de maio de 1989 (n. 51-52), “Crise de Ideias n’ A Ideia ?”, um dos raros embriões de polêmica que se depara na publicação, pelo menos interna, em que se questiona a partir do editorial do número anterior (n. 50, janeiro, 1989), “Algo de Novo na Frente Oriental”, o rumo recente da publicação. Que se diz num texto e noutro? O editorial aplaude os eventos que por então tinham lugar na Polônia e que levaram depois à queda do muro de Berlim (novembro, 1998) e ao fim da URSS (dezembro, 1991); o texto de Serras Pereira, sem contestar a importância dos fatos, discorda que eles signifiquem a supremacia do bloco ocidental sobre o “socialista”, como o editorial podia dar a entender. Avança assim com o traço de descaracterização da revista, ou da crise das ideias n’ A Ideia, que levou que o responsável da publicação pusesse então o lugar à disposição. A mexida na direção e na redação não foi, porém, suficiente para a revista encontrar uma orientação distinta e superar o mal-estar que o texto de Serras Pereira abrira. No momento em que a cooperativa Sementeira se dissolvia, e por todas essas divergências ela se dissolveu, a URSS desaparecia. Nada mais errado, porém, que fazer valer qualquer equivalência entre os dois fatos. A Ideia não nascera por causa do “socialismo real” nem lhe devia qualquer parcela da sua alma. O anarquismo social da revista, que fora em 1974 o sinal genético do seu parto, não tinha qualquer afinidade, nem próxima nem longínqua, com o que se passara no leste da Europa; o socialismo que nele estava em jogo não tinha raiz em Marx mas em Proudhon; também o foco revolucionário não residia no bolchevismo, mas no sindicalismo de ação directa. Talvez assim se entenda a salvaguarda do título e se possa compreender melhor o reaparecimento ulterior, em 2001, da publicação – embora pelo meio se tenha dado o
desaparecimento duma estrutura da maior importância, a cooperativa Sementeira, que recuperava o velho título dumas das mais ativas e antigas publicações operárias de raiz libertária, a revista Sementeira , do operário Hilário Marques. Assim como assim, não deixa de fazer sentido pensar que o furacão de leste tenha soprado alguma perturbação e paralisia no núcleo mais coeso e antigo da revista, em primeiro lugar em torno da ideia de revolução . Vale a pena reler a derradeira brochura que o grupo editou (1992) e em especial o texto de João Freire, “Ensaio de Análise das Razões de um Encerramento” (1992), em que se retomam, agora no quadro dos novos conflitos mundiais (intervenção no Iraque), algumas das ideias do editorial já referido, “Algo de Novo na Frente Oriental”, de janeiro de 1989. Mas também nesse caso qualquer paralelo com os comunistas que na sequência do naufrágio dos sovietes se social-democratizaram se mostra desajustado. Fazer um tal paralelo é passar ao lado do código genético da revista, que não comporta, a não ser de forma forçada, comparações deste tipo. O anarquismo é por si só um vasto campo de ideias, e até de ações, controverso como nenhum outro, muito diverso entre si, que chega para explicar, sem mais, as flutuações que vemos em jogo no embrião polêmico que se estabeleceu em 1989 no seio do grupo editor e as ideias que se desenvolvem no texto de Freire depois no momento da dissolução do grupo (1991). Não é ocasional, nem indiferente para aquilo que aqui se joga, o paralelo que Freire traça no seu texto entre as posições que então toma, na crise do Golfo, e as posições alinhadas, antigermanistas, pró-francesas assumidas por uma parte do movimento libertário internacional em 1914. Os ventos da perestroika podem ainda ter empurrado alguns membros da revista, antes de mais o seu fundador, a reavaliarem certas manifestações da ação anarquista, como a decorrente da intervenção da CNT espanhola no governo de Largo Caballero (novembro, 1936) – objeto de demorado estudo de João Freire (“Espanha: Veemência e Violência”, n. 65, outubro, 2008). Ou porventura nem isso, pois a atenção no tema da reforma vinha já da primavera de 1981 (n. 20/21), antes pois da crise a leste, e o problema espanhol fora objeto de pasta temática em junho de 1986 (n. 40/41), em que o mesmo João Freire dá a conhecer o percurso de Angel Pestaña, Horacio Prieto e Germinal de Sousa, que advogaram os três a necessidade duma articulação política, de tipo partidário, para o movimento libertário organizado. E não se olvide que já no verão de 1980 (n. 17, supl.), numa altura muito recuada da sua vida, a revista dava a lume um programa libertário, Alternativa Imediata, inspirado em Paul Goodman, em que se defendia o gradualismo libertário de um Proudhon, de um Kropotkine ou de um Gaston Leval, avançando com a ideia de que o debate ideológico reforma-revolução é cada vez mais desinteressante e “(…) um falso problema, pois o que importa são mutações sociais que alarguem a esfera da autonomia própria dos indivíduos e das comunidades (…), sendo de menos importância as formas (reformas, revolução…) que essas mudanças assumirão” (p. 3). No seio desse debate, reforma e revolução, é indispensável recordar os eventos que se ligam a uma das mais empenhadas e laboriosas cooperantes da Sementeira, Maria de Lurdes Rodrigues, que deu também um contributo
inestimável ao nascimento e crescimento do Arquivo Histórico-Social, hoje na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Depois da dissolução da cooperativa, em 1992, Maria de Lurdes Rodrigues integrou o primeiro governo de José Sócrates, na pasta da Educação. O evento, a alguma distância, e numa época em que A Ideia já deixara de ser uma estrutura coletiva com estatuto jurídico, pôde, porém, criar algum mal-estar em colaboradores antigos da revista, em primeiro lugar Miguel Serras Pereira, responsável pelos dois últimos números (1990) antes da dissolução da cooperativa. Serras Pereira regressou como colaborador em 2001, na reabertura; depois em 2005, com o caso de Lurdes Rodrigues, afastou-se. O que importa nesse caso será esclarecer que a passagem pelo governo da excooperante da Sementeira foi da sua inteira responsabilidade e em nada empenhou a revista, que nunca lhe dedicou, nesse seu trajecto, qualquer palavra de apoio ou de crítica, pois nisso nada a revista punha de si, se bem que tenha recebido, e de braços abertos, no período em que a ex-cooperante ocupava pasta no governo, a colaboração de Miguel Real – mas recebeu-o no seio dos colaboradores não por ser ele um dos críticos da ministra, que pretendeu retratar com traço realista num romance, mas por o seu contributo parecer à revista, além de generoso, valioso. Nesse passo, o do percurso de Maria de Lurdes Rodrigues, a revista A Ideia ficou a distância, com inteira isenção, consciente de que o assunto não lhe dizia respeito. A Ideia tem sido sobretudo uma revista libertária de pensamento e de criação poética. Caso fosse um jornal destinado a comentar a realidade do dia a dia decerto teria tomado posição diferente diante de Lurdes Rodrigues, abrindo as suas páginas a textos críticos, sem por isso as fechar a réplicas de sinal contrário. O papel dos responsáveis da publicação é sempre e em qualquer caso o de assegurar o princípio sagrado da liberdade , princípio que tem norteado os volumes ultimamente publicados. Sobre as continuidades e descontinuidades que passam pela revista não parece haver muito mais a dizer. Elas atravessam as quatro décadas e meia da revista e estão sempre presentes. Por vezes aquilo que faz a continuidade, como o permanente interesse e a constante ligação ao anarquismo, é também aquilo que faz a descontinuidade, pois o anarquismo não tem sempre na revista o mesmo sinal; a princípio, por exemplo, seleciona a propaganda revolucionária, depois interroga-se, numa posição que tanto tem de reflexiva como de defensiva, sobre os resultados da revolução, sem contudo afastar a necessidade de mutações sociais . Quer dizer, no início do seu percurso a revista entrega-se à propaganda, depois à investigação e ao estudo. Entendem-se assim melhor as alteridades que resultaram do confronto entre o número de 1974 e o de 2012 e que mais se acentou com os volumes desde aí dados a lume. Será porém enganador encarar tais diferenças à luz de polaridades como reforma e revolução , democracia e anarquia , realidade e utopia , tomando como ponto de viragem o ano de 1989, em que as dessemelhanças se desenharam nítidas. Para bem dizer, A Ideia nasceu com dois cromossomas distintos, um revolucionário, concorde com a mudança que se vivia em Portugal no horóscopo do seu nascimento, a Revolução dos Cravos, e outro menos ativista e militante, reflexivo e indagador, aberto à inovação, como logo se vê no primeiro número no texto contracultural de Murray Bookchin. Com a mudança da sociedade portuguesa na década de 1980, seguida logo pelas transformações a leste, este segundo fator acabou por se impor no trajeto da
publicação, tornando-se marcante na caracterização de boa parcela do seu itinerário, que não saindo do campo libertário, e até dentro deste da tradição que era a sua, o anarquismo social , se empenhou todavia em questionar as verdades da sua família, procurando segmentos da sua história pouco valorizados – e estão nesse ponto os dois textos de Malastesta, dados a lume em suplemento ao n. 55, o derradeiro da primeira série – e não hesitando em dela se afastar quando a natureza dos fatos assim o impunha. Nesse périplo é possível que algum ponto novo tenha nascido, trocando o primitivo anarquismo social da revista, de tradição anarcossindicalista ou sintetista (FAI), pelo que podemos designar de anarquismo cultural , uma noção própria à publicação, sem grande tradição entre nós, e que A Ideia se tem esforçado por encarnar. Se quisermos traçar um balanço desses quase cinquenta anos de vida, com mais de noventa números publicados, diríamos que A Ideia foi desde o seu início uma revista libertária inovadora, capaz de discutir com abertura o passado e encarar com criatividade o futuro, sem prisões de dogmas e de verdades indiscutíveis, que se esforçou por dar um contributo sério para a atualização do anarquismo. Não é forçado dizer que a revista está ao nível das melhores publicações mundiais da sua área, ombreando com projetos editoriais de grande qualidade filosófica e social, alguns já desaparecidos, como as revistas Volontá em Itália ou Anarchy em Inglaterra (sobre esta há resenha bibliográfica n’ A Ideia , n. 26/27, dezembro de 1982). Nomes como Paul Goodman, Colin Ward, Murray Bookchin, Howard J. Erlich, John Mc Ewan, Ronald Creagh, Nico Berti, chegaram, ou quase, à língua portuguesa por causa d’ A Ideia e porventura sem ela ficariam mais longe do público português. Este possante trabalho teve um rosto, João Freire, fundador da revista e seu animador de sempre, isto sem menosprezar o contributo dum vasto grupo de pessoas, a começar pela cooperativa Sementeira, adjuvada pelo embrionário Círculo de Estudos Neno Vasco, fruto do mesmo esforço e que, se não deu outros resultados, veio a ser um dos esteios do Arquivo Histórico-Social, na BNP, onde se reúne hoje o mais rico acervo relativo ao anarcossindicalismo português e donde há pouco saiu o projeto MOSCA. A Ideia não foi porém uma revista apenas de ideias, isto por muito que se tenha empenhado em divulgar, em investigar, em estudar e em atualizar uma tradição reconhecível de pensamento. Foi também uma revista voltada para a criação poética e pictórica, em que encontrou uma manifestação natural do seu gênio próprio. Em tal campo, que muito cresceu após as mudanças de 1980, a revista reúne um vasto número de colaborações, de Cesariny a Fiama, de Cinatti a João Rui de Sousa, de Nuno Júdice a Nunes da Rocha, de Cruzeiro Seixas a Mário Botas, de Luis Manuel Gaspar a Duarte Belo, que nada devem ao que de melhor nesse domínio entre nós se publicou na mesma época e que bastam para a justificar como uma publicação que é justo assinalar nas últimas décadas em Portugal. ¹ 1 Fontes: coleção da revista A Ideia (1974-2020), mais brochuras, declarações e notas de imprensa, consultável no Arquivo Histórico-Social da BNP [seção Espólios]. 11
A LIBERDADE DE SER LIVRE: POESIA E ANARQUIA Manuela Parreira da Silva O espírito anarquista, profundamente, base de toda a poesia. Antonin Artaud 1. A declaração de André Breton, feita em La Claire Tour (janeiro de 1952), “billet surréaliste” publicado no semanário da Federação Anarquista Francesa, Le Libertaire , de que “foi no espelho negro do anarquismo que o surrealismo se reconheceu pela primeira vez”, assinala, inequivocamente, um estreito parentesco. A complementaridade dos dois movimentos é, de resto, afirmada nas páginas do jornal, através do texto “Surrealismo e Anarquismo – Declaração Prévia”, em 12 de outubro de 1951, e reafirmada no conjunto dos “billets surréalistes” aí publicados. Pietro Ferrua defende, em entrevista à revista de cultura libertária A Ideia , que a colaboração dos surrealistas em Le Libertaire comprova a existência, pelo menos naquela época, de um anarcossurrealismo. Como diz: “A maioria dos surrealistas daquele período achava que o movimento tinha enfim chegado a conciliar as duas unidades (…) Achavam, além disso, que o surrealismo era a filosofia natural do anarquismo” (FERRUA, 2014, p. 158). Esta certeza ter-se-á imposto definitivamente face ao erro que constitui a aproximação ao marxismo ortodoxo ou mesmo ao melífluo trotskismo. Lembre-se de que logo em 1924 (data do Primeiro Manifesto do Surrealismo ) alguns surrealistas procuram uma conciliação com o grupo Clarté , cujos membros se situam na esquerda do Partido Comunista Francês, ao qual o próprio Breton adere, em 1927. Embora a sua filiação tenha durado muito pouco tempo, por nítida incompatibilidade de “feitios”, o grupo surrealista por si liderado aceita ainda integrar, em 1931, a Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários (AEAR), controlada pelos comunistas. Dois anos depois, André Breton é excluído, ao que consta por ter recusado retratar-se pela publicação, na revista Le Surréalisme au Service de la Révolution , de uma carta “de espírito libertário” da autoria de Ferdinand Alquié, atacando “as concepções cívico-morais orientadoras do filme russo O Caminho da Vida ” (apud DUPUIS, 2000, p. 38). Entretanto, do lado surrealista, assistira-se ao célebre “a ffaire Aragon”, com a exclusão do poeta que, no seu poema “Front Rouge”, escrito durante uma viagem à União Soviética (para colher acordos com os comunistas), tece louvores tidos por inaceitáveis ao “parti communiste” e a Lenin. Louis Aragon não ousa recusar as exigências que aí lhe são feitas de abandono das posições defendidas no Segundo Manifesto de Breton, tido por “contrarrevolucionário”, e de submissão da sua atividade literária ao controle e disciplina do partido (ibidem, p. 36). O “pecado” de Aragon é imperdoável aos olhos de muitos dos seus companheiros. Paul Éluard (o mesmo que, anos mais tarde, não desdenhará
segui-lo na sua adesão estalinista) decreta um corte de relações, citando Lautréamont: “Toda a água do mar não bastaria para lavar uma mancha de sangue intelectual” (ibidem, p. 37). E a “mancha de sangue” de Louis Aragon acaba por ser um importante contributo para que as hostilidades entre surrealistas e comunistas se resolvam por uma ruptura definitiva, em 1935. Nas vésperas do Congresso dos Escritores para a Defesa da Cultura, organizado pela AEAR, um episódio algo pitoresco é a gota de água que faz transbordar a taça das incompatibilidades. André Breton e Benjamin Péret esbofeteiam, em pleno Boulevard Montparnasse, o escritor russo Ilya Ehrenburg, autor de um livro intitulado Vus par un Écrivain de l’URSS . Os dois poetas não esquecem a passagem da obra onde se lê: Os surrealistas querem muito a Hegel, a Marx e à Revolução, mas o que eles se recusam é a trabalhar. Têm outras ocupações. Estudam por exemplo a pederastia e os sonhos… Entretêm-se a fabricar jogos de palavras obscenos. Os mais pacíficos confessam que o essencial do seu programa é andar atrás das raparigas. Os mais espertos compreendem que assim não vão longe… Elaboram todo um programa: onanismo, pederastia, fetichismo, exibicionismo e até sodomia (CREVEL, 2014, p. 10). Acresce que, de acordo com o testemunho de Salvador Dalí, o único membro do grupo que “acreditou na eficácia da intervenção surrealista no seio daquele Congresso Internacional, foi René Crevel…”. O pintor, citado por Aníbal Fernandes na apresentação da edição portuguesa da obra de Crevel, O Meu Corpo e Eu (escrita em 1925), prossegue: “Surrealista, estava a ser honesto quando acreditou que podíamos marchar de concerto e sem concessões com os comunistas” (ibidem, p. 12). Sem conseguir que os promotores do Congresso aceitem dar a palavra a André Breton, permitindolhe, portanto, apresentar uma comunicação, René Crevel, autor de duas outras obras, L’Esprit contre la Raison e Le Clavecin de Diderot – obras “que a não existirem teriam significado a ausência de uma das belas volutas do surrealismo”, nas palavras do próprio Breton (ibid., p. 15) – fica destroçado e suicida-se, na antevéspera do evento. Os surrealistas franceses percebem, tardiamente embora, ¹ que têm de abandonar o ingrato trilho de uma Revolução feita por medida. Como bem assinala António Cândido Franco (2019, p. 63-64): A mudança de título que se deu em 1930 no órgão do movimento – Le surréalisme au service de la révolution em lugar de La révolution surréaliste – mostra a pressão exterior e a instrumentalização política a que ele se prestou e foi sujeito nesses anos, em que muito se perdeu. Pôr a arte ao serviço da política traduz-se, inevitavelmente, numa derrota antecipada. Afastando-se do materialismo dialético e do socialismo científico, é a hora de o surrealismo se articular com o pensamento libertário-anarquista e com o utopismo de um Charles Fourier. A propósito da recuperação ou revisitação de Fourier por André Breton, o autor da História desenvolta do Surrealismo , Jules-François Dupuis, pseudônimo de Raoul Vaneigem, membro destacado da Internacional
Situacionista, toma uma (expectável) atitude crítica: “A descoberta de Fourier poderia ter permitido a refundição integral do surrealismo, mas Breton porá muito mais o acento tônico sobre o visionário e o poeta da analogia do que sobre o teórico de uma sociedade radicalmente nova” (DUPUIS, 2000, p. 93). Ora, é precisamente este lado visionário, com a sua teoria (julgada extravagante e louca) da Atração Universal e da Harmonia Permanente, a sua ambição de “libertar o espiritual e o material”, no dizer de Ernesto Sampaio, tradutor da “Ode a Charles Fourier”, de André Breton, que contribui, decisivamente, para irmanar o surrealismo com a “eterna” Anarquia. “Cingiste a unidade mostraste-a não como perdida mas como integralmente realizável / E se disseste ‘Deus’ foi para inferir que esse deus ardia nos sentidos ( o seu corpo é um fogo )”, escreve Breton no seu poema (PÉRET; BRETON, 1970, p. 35). Por outro lado, tendo como antecessor, ou “irmão” legítimo, o dadaísmo, o movimento surrealista deveria forçosamente incorporar a desconfiança daquele face ao bolchevismo coetâneo e a todas as formas de poder e de opressão, mas também prolongar os seus processos. Dada apresentara-se, em 1916, como uma vaga de fundo, de uma radicalidade inusitada, pois que, ao contrário de todos os movimentos contestatários conhecidos (futurismo incluído), combate a realidade existente sem propor uma nova realidade, mais perfeita, em sua substituição. Propõe, sim, a destruição completa dos valores tradicionais, dos fundamentos da sociedade e da civilização, através de uma arte amoral, e, do ponto de vista literário, a demolição do “edifício da linguagem”. Clama Tristan Tzara no Manifesto Dada , de 1918: Que cada homem grite: há um grande trabalho destrutivo, negativo, a levar a cabo. Varrer, limpar. O asseio do indivíduo afirma-se depois do estado de loucura, de loucura agressiva, completa, de um mundo deixado nas mãos dos bandidos que dilaceram e destroem os séculos (apud BÉHAR; CARASSOU, 2015, p. 50). Ressoa no gesto e na palavra dadaístas um eco anarquizante indesmentível, sobretudo se considerarmos a vertente violenta e insurrecional do anarquismo clássico. A negatividade e o tom provocatoriamente iconoclasta e blasfemo estão bem expressos em textos de dadaístas-surrealistas. Benjamin Péret, que na Guerra Civil espanhola combate ao lado dos anarquistas, assume por inteiro o lema “Ni Dieu ni maître”, insultando, ou melhor, cuspindo , de uma assentada, nos padres, na polícia, e no Deus cristão, como no poema “Le Cardinal Mercier est mort”: Cardeal Mercier a cavalo num polícia vi-te no outro dia semelhante a uma lixeira transbordante de hóstias Cardeal Mercier tu fedes a Deus como o estábulo a estrume e como o estrume a Jesus (apud DUPUIS, 2000, p. 54)
É, pois, nas águas revoltas e libertadoras do dadaísmo que o surrealismo mergulha, absorvendo-as, mas contendo-as ou disciplinando-as também. Como defendem Béhar e Carassou, o surrealismo pressupõe uma coerência que Dada não concebe, uma coerência que exige a sua própria maneira de proceder: a exploração racional do irracional. Dito de outra maneira, o surrealismo reinveste o pensamento especulativo onde Dada recusa todo o controle da razão. (2015, p. 221) André Breton, pelo seu lado, reconhecerá, numa entrevista, que se não é exato apresentar o surrealismo como saído de Dada e “ver nele uma recuperação de Dada no plano construtivo”, os dois movimentos “só podem conceber-se correlativamente, à maneira de duas vagas que à vez se vão recobrir uma à outra” (ibidem, 222). Se o surrealismo se apresenta, assim, como mutação de Dada, é justo dizer que o pendor anarquista puro e duro deste tende a evoluir, passando a exibir, na vertente surrealista, um rosto retocado, como veremos. 2. A abordagem histórica que até aqui se intentou pode servir, além do mais, para melhor entender a gênese do movimento surrealista português e o modo como este se posiciona num terreno, política e artisticamente, armadilhado, como é o dos anos 1940 em Portugal. É Natália Correia quem, no livro O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1 a ed. 1973), ao sublinhar a tensão existente entre o surrealismo e o comunismo militante, considera que “a bandeira negra dos anarquistas é a única que verdadeiramente guia a marcha do surrealismo contra a ordem e toda a espécie de constrangimentos”. Essa “linha que persistirá através dos acidentados contatos com a ação comunista” (CORREIA, 2002, p. 389) é a mesma que será seguida pelo surrealismo português. O desfasamento temporal relativamente grande entre a criação do surrealismo, em França, e a sua eclosão em Portugal, mais de vinte anos depois, terá valido para precaver os portugueses contra a veleidade de acreditarem num diálogo profícuo com as forças de contestação filiadas no marxismo-leninismo. O “arrependimento” de Breton ter-lhes-á servido, ainda que incompletamente, de lição. Não podendo, aqui e agora, deter-me na explicação desse desfasamento e do surgimento “tardio” do surrealismo português, convém, contudo, lembrar que o movimento do Cabaret Voltaire não tem eco em Portugal. De qualquer modo, seria de assinalar, no âmbito das artes plásticas, a figura de SantaRita Pintor, que faz publicar o seu retrato, ao estilo do “Marcel Duchamp” de Man Ray, numa página inteira de Portugal Futurista (número único de 1917). Ao assumir uma pose antiburguesa provocatória, acolhe um medium que, nas palavras de Bernardo Pinto de Almeida, “caberia a Dada integrar pela primeira vez de modo sistemático no campo expressivo do Modernismo: a fotografia” (apud MARTINS, 2008, p. 204). Também, na mesma revista, o texto de Almada Negreiros, Saltimbancos (Contrastes Simultâneos) poderia
facilmente ser sentido como devedor de Dada. O epíteto de surrealista caberia igualmente à novela A Engomadeira , escrita em 1916, pelo mesmo Almada. E, no que diz respeito a Mário de Sá-Carneiro, é justo salientar como os seus contos exploram processos e temas que o surrealismo viria a adotar, nomeadamente o gosto pelo mistério e o enigma, o fantástico, os acasos significantes, os abismos do inconsciente. Não por acaso, Mário Cesariny e António Maria Lisboa têm-no como precursor do seu surrealismo e a personalidade poética mais influente do modernismo. Cesariny dedicalhe mesmo um poema, no qual se lê: ora este foi dos tais a quem não deram passaporte de forma que embarcou clandestino não tinha política tinha física mas nem assim o passaram e quando a coisa estava a ir a mais tzzt… uma poção de estricnina deu-lhe a moleza foi dormir (CUADRADO, 1998, p. 74) Em contrapartida, Fernando Pessoa é altamente desconsiderado, não só, creio, devido à sua institucionalização póstuma, mas ao seu racionalismo, e até à sua dispersão heteronímica, contrária à busca de unidade perseguida pelo surrealismo. Ainda assim, Mário Cesariny edita, em 1953, um folhetopoema intitulado Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos , em que em nota acrescenta “alguma coisa do que o poema não diz”, a saber: “Que Fernando Pessoa é um grande poeta.” É provável, no entanto, que Cesariny não tenha sabido do encontro travado por Pessoa com Philippe Soupault, coautor com André Breton de Les champs magnétiques (1921). O encontro ocorre em Lisboa, em 1926, pouco depois do poeta surrealista francês ter sido excomungado, em parte por mostrar reservas quanto à aproximação de Breton aos comunistas. ² E é também muito provável que o mesmo Cesariny desconhecesse o verso lapidar do heterônimo “anarquista”: “Vou atirar uma bomba ao destino”. O poema monóstico atribuído a Álvaro de Campos encerra, a meu ver, todo um programa anarcossurrealista avant la lettre : destruir o destino é, em última instância, a expressão mais radical de um desejo de liberdade, da liberdade de ser livre. De certo modo, este verso poderia constituir uma oportuna legenda para o suicídio, dadaisticamente encenado, de Mário de Sá-Carneiro. No início dos anos 1940, sob a pesada “pata” censória da ditadura salazarista, é o neorrealismo, alicerçado no ideário político e na organização proverbial do Partido Comunista Português, que se impõe como arte de contestação ao regime e às suas “diretrizes”. Na verdade, encontra, no campo literário, alguns escolhos, ou, se preferirmos, alguns concorrentes. É o caso do conjunto de escritores da segunda geração modernista que se reúnem em torno da revista presença (fundada em Coimbra, em 1927).
Desde cedo, os seus diretores e principais colaboradores, José Régio, Adolfo Casais Monteiro ou João Gaspar Simões, expõem a vocação eminentemente literária e crítica da revista e a sua independência face ao poder político. Esta posição é reiterada, por exemplo, em 1939, no n. 1 da série II, marcado pelo início da Segunda Guerra Mundial: Reaparece num momento histórico tão perturbado, que a alguns parecerá desumanidade, mania, esta prova de amor às questões da arte, da crítica, da cultura, quando a questão social, a questão política e a questão econômica deveriam, segundo esses, absorver todo o interesse de todos. (…). À revista presença interessam as criações da arte, as pesquisas ou conclusões da crítica (…). As questões políticas e sociais não lhe interessam, pois, senão na medida em que se correlacionem com essas, e assim contribuam a iluminálas, sem que presença arvore a bandeira de qualquer doutrina social ou política (p. 1). O texto termina com a afirmação de que a “Realidade humana é muito mais rica do que a fazem quaisquer espécies de fanáticos; principiando pelos fanáticos do real”, o que se afigura como alusão aos neorrealistas e teria, certamente, como pano de fundo a polêmica que opunha, na altura, José Régio e Álvaro Cunhal. Para o comunista e neorrealista Cunhal, a poesia de Régio, exaltando uma posição ou atitude “condenável, fracassada e decadente”, deveria ser combatida e posta de lado. Tomado como um admirador “do próprio umbigo”, Régio apresenta-se a Cunhal como autor de uma obra nos antípodas das obras literárias que “indicam às multidões um caminho e um fim político e social” (como se lê no n. 615, de 27 de maio de 1939, da revista doutrinária Seara Nova ). Régio não deixa de rebater a «blague» de Cunhal, mas alarga a sua crítica a todos os que fazem da literatura um simples documento ou reportagem da realidade. ³ Mais tarde, António Maria Lisboa apelidaria esses “fanáticos do real” de “fixadores do real”. O que está, nesse momento, em causa é, portanto, a defesa de uma literatura ideologicamente empenhada, comprometida política e socialmente, contraposta à defesa intransigente de uma literatura independente, humanista, e de uma desejável (e inalcançável?) “arte pela arte”. A recusa de alinhamento político dos chamados presencistas não deve, porém, ser interpretada como significativa de qualquer aprovação relativamente ao Estado Novo. Para eles, arte e liberdade são palavras sinônimas. Mas isso nem sempre lhes dá, enquanto críticos, um entendimento do caráter subversivo do surrealismo. Assim, numa entrevista concedida a João Gaspar Simões, inserta no Diário Popular , de 30 de agosto de 1950, é Adolfo Casais Monteiro – homem de esquerda – quem, ironicamente, se apresenta como sendo alguém com um “feitio subversivo”. Tece depois considerações acerca dos conceitos de “arte pela arte” e “arte pela sociedade”, admitindo “que o artista pode superar a sua condição de membro de determinada sociedade e ser outra coisa que uma expressão dela”, rematando:
– Tive uma certa esperança nos surrealistas, mas ficou tudo em promessas – porque lhes faltaram os “atos”. E, quer creiam ou não, podem ter a certeza de que de atos é que se precisa. (…) Mas não é a fingir realismo socialista, a fingir surrealismo, ou a fingir seja o que for que se pode criar algo capaz de ir direito ao mais íntimo dos homens (p. 4). Alguns meses depois, o poeta-crítico reincide, num artigo intitulado “Um Caminho para a Poesia (a propósito da ‘Pedra Filosofal’ de Jorge de Sena)”, datado de maio de 1951, incluído em Unicórnio , uma antologia de inéditos de autores portugueses contemporâneos, organizada por José-Augusto França. Aí alude à impossibilidade de vingarem na poesia portuguesa quer a música pura , quer o verbo puro – “eis porque não pôde existir poesia surrealista” (FRANÇA, 1951, p. 7). António Maria Lisboa reage a essas declarações numa «Carta aberta ao Snr. Dr. Adolfo Casais Monteiro», com data de 31 de agosto de 1950, fazendo pressupor que foi escrita, num primeiro momento, na sequência da leitura do jornal. De fato, interroga, a dada altura, o destinatário: “Mas subversivo em quê? por quê? por não estar de acordo com uma Constituição e pretender outra? por não estar de acordo com o Realismo-Socialista e querer outro (outro Realismo, outro Socialismo)?” E mais adiante esclarece: “Nada teria dito se não fosse o ar paternal, a boa vontade – ah! A boa vontade… – e o castigo (‘a fingir surrealismo…’) que Casais Monteiro achou por bem tomar, ter e dar aos surrealistas quando da sua entrevista no ‘Diário Popular’” (LISBOA, 1977, p. 107). António Maria Lisboa elucida ainda o seu interlocutor acerca da história (então recente) do movimento surrealista em Portugal e lembra o modo como “se opuseram a essa tentativa Realista-Socialista de submeter o poeta, o homem aos interesses de agrupamentos políticos” (ibidem, p. 109). A “Carta aberta” termina assim: “Todo o ato premeditado ou o ato leviano tem a sua guilhotina-própria.” Mas Mário Cesariny anota que, na cópia datilografada em seu poder, corrigida pela mão de António Maria Lisboa, há uma rasura do que seriam as palavras finais da frase: “– como eu na U.R.S.S. teria o meu esquife feito ”. A referência à União Soviética constituiria, portanto, uma explicitação desses “agrupamentos políticos”, explicitação da qual, talvez atendendo ao regime censório vigente, António Maria Lisboa decide abdicar. É no manifesto “Aviso a tempo por causa do tempo”, datado de julho de 1953 (ano da morte precoce do autor), que António Maria Lisboa apresenta a tomada de posição dos “surrealistas” face a “ certos intelectuais-emissores de grupos, organizados ou não, com células ou não células”, a que alude também a “Carta aberta” ( ibidem, p. 107). O texto começa assim: Declara-se para que se saiba: 1 o que não apoiamos qualquer partido, grupo, diretriz política ou ideologia e que na sua frente apenas nos resta tomar conhecimento: algumas vezes achar bom outras achar mau . Quanto à nossa doutrina, os outros hão-de falar (ibidem, p. 110).
Seguem-se mais cinco pontos, que marcam a equidistância dos surrealistas em relação quer ao totalitarismo salazarista, quer ao totalitarismo soviético. Este mesmo duplo distanciamento assoma numa carta, de 1 o de abril de 1950, de Lisboa a Mário Cesariny, na qual afirma: O Liberalismo é a última arma dos Fascistas e Comunistas. Cautela! (…) é um caso de reorganização totalitária ou caso comunitário (Ex.: espírito de grupo, a boa camaradagem entre sujeitos que não se toleram, a salvação dos valores literários, dos conceitos de pátria, regionalismo e, o que é mais perigoso, a tentativa para retirar do vocabulário os termos Reacionário, Revolucionário, Filhos da Puta etc.. (ibidem, p. 267). Também com a data de abril de 1950, existe um manifesto assinado por Mário-Henrique Leiria, João Artur Silva e Cruzeiro Seixas, em que se afirma que “Debaixo de qualquer ditadura (fascista ou estalinista) não é possível uma atuação surrealista organizada sem as respectivas consequências de represálias policiais” (apud CUADRADO, 1998, p. 15) e, um pouco mais à frente: Qualquer espécie de realismo-socialista com todo o seu cortejo de estéticas, literaturas e políticas de partido, é tão prejudicial à liberdade do Homem como uma ditadura fascista, apenas conseguindo pôr no lugar de deus um outro deus igualmente absurdo. (…) O Homem só será livre quando tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política ou políticoreligiosa e quando for universalmente capaz de existir sem limites. Então o Homem será o Poeta e a poesia será o Amor-Explosivo (ibidem, p. 17). Mais tarde, em 1962, em entrevista concedida a Bruno da Ponte, Mário Cesariny recordará como, nesses anos não muito distantes, havia somente “duas maneiras [literárias] de aparecer fortemente recomendadas pela crítica: a maneira de aparecer neorrealista (gregários) e a maneira presencista de aparecer (individuais)” ao que adianta: Foi neste espaço artístico-intelectual, que, entre nós, o surrealismo fez erupção, pois certas figuras outras, bem mais capazes de alimentar a nossa necessidade de exemplarismo do que a estreita de Redol, com Gaibéus , ou a gritaria de Régio, nas Encruzilhadas de Deus , pareciam extintas ou existiam longe da disponibilidade (ibidem, p. 22). Note-se que, por volta de 1944, também Cesariny, à semelhança de André Breton, se aproxima do Partido Comunista Português e é atraído pelo realismo socialista, alinhando no grupo que se reúne no café Herminius. Ainda muito jovem, mal tendo ouvido falar de surrealismo, o poeta-pintor estreia-se como crítico na revista Aqui & Além , com “Notas sobre o neorrealismo” (n. 3, dezembro de 1945 e n. 4, abril de 1946). Cesariny toma consciência de que a literatura nova, como era, então, a neorrealista, não poderia fazer-se com processos velhos. No entanto, como observa o seu recente biógrafo, António Cândido Franco, “em vez de se afastar da poesia praticada pelos coimbrões do Novo Cancioneiro, como se esperaria de crítico que lhe anotou os fracassos, ele encosta-se e aproxima-se o mais possível” (FRANCO, 2019, p. 44). Usando desta “estratégia ardilosa, contraditória mas eficaz”, Cesariny logra subverter por dentro, muitas vezes através da paródia, esse novo realismo “instalado”, o dos velhos e cansados
processos. O novo realismo que Cesariny ambiciona é outro: o surrealismo. E este não é, como cedo percebe, um antirrealismo, na medida em que não deseja, como sublinha igualmente António Cândido Franco na sua biografia de Mário Cesariny, O Triângulo Mágico , “transcender a realidade, menos ainda aboli-la, mas aprofundá-la, somando-lhe novos estratos mais livres, mais absolutos, mais apaixonantes” (ibidem, p. 67). Mas um tal desiderato não seria atingível através de uma literatura, ou de uma arte, comandada do exterior, propensa a fazer do “valioso” material documental recolhido, como reconhece o próprio Cesariny, “uma utilização não já estética mas etnográfica, antropológica, sociológica e psicológica (?)” (apud CUADRADO, 1998, p. 21). Assim, se não estranha que, em 1946, se dê a ruptura definitiva entre os “fixadores do real” quotidiano e os novos adeptos do Surreal. Diga-se, em defesa da verdade, que também no novo movimento surrealista português nem tudo é pacífico. Outra coisa não seria de esperar num gruponão-grupo de espíritos livres, avessos a todas as pertenças, incluindo ao próprio surrealismo. São disto um bom exemplo as palavras de António Maria Lisboa, numa carta a Cesariny, dos finais de 1951, quando, incomodado com alguns companheiros, desabafa: “ não pertenço a grupo surrealista algum , não nego o surrealismo, as suas conquistas, a experiência realizada; não posso é suspender-me em atitudes, gestos, palavras, ditos já convencionais ” (LISBOA, 1977, p. 292). As quezílias, as divergências, as dissidências são conhecidas. Não cabendo aqui historiá-las, não deixa de ser interessante verificar que, também entre nós, alguns surrealistas se arrependeram , tomando o caminho inverso em direção ao neorrealismo. É o caso de Virgílio Martinho (1928-1994) que, a partir da sua intensa colaboração com a Companhia de Teatro de Campolide, dirigida por um membro do Partido Comunista, Joaquim Benite, se afasta da escrita tipicamente surrealista, detectável no seu primeiro livro, Festa Pública (1958), adotando um “estilo” realista tradicional. Muitas das suas narrativas são adaptadas dramaturgicamente, como, por exemplo, o romance escrito em 1963, O Grande Cidadão , que constituiria o ponto de viragem na sua obra. Esta é a opinião de Pedro Oom, o qual, em carta de 1968, a Mário Cesariny, sublinha que Virgílio Martinho foi “esmagado num desvio ferroviário neorrealista” (MARINHO, 1987, p. 107). A guerrilha que opõe surrealistas e neorrealistas reproduz, afinal, aquela que faz de comunistas autoritários e anarquistas opositores históricos, pese embora também algumas (ingênuas, sobretudo da parte anarquista) aproximações que o inimigo comum pareceria tornar inevitáveis. Se uns e outros se demarcam da tirania do Estado Novo, os caminhos prosseguidos são bem diversos. Na base desta divergência, está, evidentemente, a pulsão libertária (no amplo sentido do termo) que exige a “morte do pai”, e tudo o que ele representa de castrador; uma exigência de autonomia completa, de insubordinação face a todas as formas que manietam ou enclausuram o (pensamento) humano. Esta exigência fica bem evidente, por exemplo, no modo como MárioHenrique Leiria, em carta para Carlos Eurico da Costa, datada de 1952,
coloca no fundador e todo-poderoso líder do surrealismo, André Breton, as culpas pelo bloqueamento ou travagem do movimento surrealista português: “no André Breton-Papa, no André Breton-Ditador, no André Breton que colabora no ‘Ars’ e no ‘Opera’, que aceita convites e entrevistas tipo burguês-ó-barato, que escreve artigos puramente literários (e maus) nos jornais que acima citei” (CUADRADO, 1998, p. 373). Por sua vez, à fórmula salazarista “Deus, pátria, autoridade, família e glória do trabalho”, responde António Maria Lisboa, no seu “Aviso…”, que prefere a Liberdade, o Amor e o Conhecimento. É nessa “preferência” que assenta, fundamentalmente, a intervenção anarcossurrealista. Importa, porém, não cair no equívoco de pensar numa relação biunívoca e isenta de escolhos entre anarquismo e surrealismo. É por demais evidente que a militância anarquista se joga, sobretudo, no plano político-social. As manifestações “artísticas” de muitos dos seus apaniguados passam, a maioria das vezes, por uma “arte” direta, posta ao serviço da sua doutrina, como, de resto, acontece no seio dos comunistas ou de outros setores da sociedade. Os versos de alguns “velhos” anarquistas resultam panfletários, naïfs , carentes de qualquer reflexão metapoética. Artur Modesto, Francisco Quintal, José Francisco ou Gonçalves Correia, generosos no seu lirismo, visam transmitir os seus sentimentos e a sua utopia, quiçá também galvanizar os seus leitores, apontando-lhes o rumo “certo”. Veja-se, a título de exemplo, o poema de Artur Modesto, datado já de 1983: Oh! Tão nobre Ideal Acrata. Escutai o meu pranto! Vem, vem sem demora libertar os escravos da terra que na vida sofrem tanto! (1984, p. 22) Em contrapartida, não é líquido que todos os poetas ou artistas surrealistas se pautem por uma militância anarquista tout court . É óbvio que não. ⁴ Todavia, conquanto Mário Cesariny nunca se tenha declarado anarquista, é certo que o seu caráter insubmisso e o seu intervencionismo surrealista deixam de ser compatíveis com “a forja e a bitola [das] diretrizes de Moscovo” (FRANCO, 2019, p. 67). Por sua vez, Pedro Oom (1926-1974), que passa também por uma fase neorrealista, adere ao surrealismo, não sem que essa adesão tenha sofrido, por assim dizer, um interregno, para se manifestar, preferencialmente, em forma Dada. ⁵ Pergunta-se o editor da sua obra Actuação Escrita : “Se o avô materno fora anarquista, porque não
admitir a herança de uma sua costela (…)?” (OOM, 1980). A herança anarquista está bem plasmada, aliás, em textos ensaísticos, desenhos e poemas, como este, datado de 1968-1969, do qual transcrevo um excerto: TODO O VERDADEIRO POETA DESPREZA O PEQUENO MONTE DE ESTERCO ONDE O DEJECTARAM NO PLANETA E A QUE OS OUTROS CHAMAM PÁTRIA. E SÓ AMA OS GRANDES CONTINENTES, MARES E OCEANOS DA LIBERDADE E DO AMOR. SÓ NOS VASTOS ESPAÇOS INCRIADOS A POESIA SERVE O SEU DESTINO – CATAPULTAR O HOMEM NOS ABISMOS DO DESEJO INCONTROLADO ONDE O PRÓPRIO ASSASSINATO É UM ATO DE POESIA E DE AMOR. ESTE ASSASSINATO DE QUE FALO É O GRANDE AMPLEXO DE HOMEM PARA HOMEM, A SOLIDARIEDADE E A TERNURA, NÃO A CARIDADE HIPÓCRITA OU A CAMA DE FAMÍLIA, COM TODO O SEU PEQUENO CORTEJO DE HORRORES, ONDE A EXPLORAÇÃO DO FILHO PELO PAI DITA A SUA LEI (ibidem, p. 66). Pelo seu lado, António José Forte, num texto enviado às Comemorações dos 100 anos do Anarquismo em Portugal (1986), lembra que seria “escandaloso que a palavra surrealista – palavra entre todas libertária – não se fizesse ouvir nestas comemorações” (FORTE, 1989, p. 102). O mesmo Forte que, em “Teses sobre a visita do papa” (escrito em 1982), apostrofa com extrema mordacidade: Ó Estado, mais uma vez podes limpar as mãos à parede do cu do papa, ficarás com as mãos mais brancas para os teus crimes. Ó partidos, da esquerda e da direita, mais uma vez podeis beijar os pés ao papa, ficareis com a boca abençoada para mentir melhor. Explorados, escolhei o crime, escolhei a mentira. Sois livres. Tu, poeta, range os dentes e indigna-te (ibidem, p. 99). Faz, portanto, todo o sentido usar as palavras de um poeta português contemporâneo e militante libertário-surrealista, Nicolau Saião, que, instado a comentar a frase de Breton com que comecei este ensaio, afirma: “Os libertários são irmãos colaços dos surrealistas, em última análise os libertários/anarquistas e os surrealistas SÃO O ROSTO LUMINOSO DO FUTURO” (2015, p. 175). 3. A expressão “irmãos colaços” (isto é, aqueles que, não sendo consanguíneos, mamaram do leite da mesma mulher) é, porventura, a que melhor serve para descrever a relação entre anarquismo e surrealismo. Sendo a política e a arte dois modos diversos de pensar , como diria Tomás Maia, ou “duas instâncias de criação ” (2011, p. 21), algo as separa ou deve separar: a finalidade. Dito nas palavras de Jean-Luc Nancy: “Ao afirmar que a arte é política subordinamo-la a um fim ou a uma ordem de fins e retiramos-lhe a perspectiva da ‘finalidade sem fim’ que é a sua maior característica” (ibidem, p. 69). A arte (poesia) só pode existir como Arte (Poesia) separada de qualquer finalidade política, social, científica ou outra, e “é nessa não finalização que ela participa da criação do mundo”, adianta Silvina Rodrigues Lopes, refletindo sobre o mesmo tema (ibidem, p. 62).
Isto mesmo o subscreveria António Maria Lisboa, o mais filósofo dos poetas do movimento surrealista português, ele que declara, na sua luminosa conferência-manifesto Erro Próprio (1952), não ser movido por “altruísticos destinos de origem Política ou Religiosa”, nem pretender “dignificar esta, outra qualquer, sociedade, à qual [pertence] por desejo alheio e puramente burocrático” e por isso pede: “Retirem da minha frente os que ‘jogam’ com o Povo e o Homem da Rua. As paredes do meu quarto são a paisagem a que me habituei e se saio pela janela às vezes é para ofender quem me pede submissão” (LISBOA, 1977, p. 76). Para ele: “O ato poético é todo aquele liberto de esquemas morais impostos, portanto essencialmente LIBERTÁRIO (no sentido de libertador) e AMOROSO (no sentido de posse do amado)” (ibidem, p. 78). Por outras palavras: Trata-se de INVENTAR O MUNDO! Descobrir as semelhanças e dissemelhanças, pôr a nu o rendilhado que une o Invisível ao Visível, estabelecer um Arco-voltaico entre o Consciente e o Inconsciente, entre o Passado e o Futuro, provocar um Curto-circuito para os destruir isolados, perfurar a Razão com a Loucura e vice-versa – todas as formas são boas, todas as conjugações possíveis! (ibidem, p. 93) Alcançar este desígnio passa, portanto, por abandonar o caminho “fácil” da colagem a uma literatura propagandística e comprometida, ou seja, o da denúncia realista dos males sociais ou da “fixação da realidade”. À “fixação do real”, diz Lisboa numa carta escrita a Cesariny “entre o meio e o fim de Abril” de 1950, prefere-se uma cada vez mais funda e vertiginosa, mais funda e vertiginosa, mais funda e vertiginosa conquista do conhecimento do homem que o mesmo é dizer do universo, pois este é a projeção do Homem e o Homem a Concreção do Universo a um Ponto. (ibidem, p. 280) Não por acaso, um dos textos doutrinários mais emblemáticos do movimento surrealista português intitula-se “A Afixação Proibida”. Nele, os signatários, António Maria Lisboa, Henrique Risques Pereira, Mário Cesariny e Pedro Oom, afirmam que “descrever os sentimentos, captar com viveza o presente, relatar fatos, é certamente trabalho, mas não é todavia Arte”. (ibidem, p. 67). Outro tipo de trabalho se impõe, porque a verdadeira Poesia, como aí se escreve também, obriga “a reparar na complexidade psíquica”, a perseguir a “conjugação futura desses dois estados, na aparência tão contraditórios, que são o Sonho e a Realidade” (ibidem, p. 65). E a Realidade a que se referem é a que resulta, precisamente, da combinação do real e do onírico, é, afinal, uma Surrealidade, ou, se se preferir, usando a expressão colhida em “Erro Próprio”, a “Realidade transfigurada pela Magia, pelo Desejo, pela Vontade, pelo Amor, pela Liberdade, pelo conhecimento sábio, pela POESIA!” (ibidem, p. 91). Também Pedro Oom, em carta desafiadora ao poeta Egito Gonçalves, escrevera, em 1949: A poesia é um meio de conhecimento e ação de cujos frutos, bons ou maus, só ao poeta aproveita (fato, este, de que muito poucos se dão conta) e daí a
inutilidade dos esforços para ligá-lo a qualquer filosofia, política ou teologia, inutilidade que se não desmente no caso de ser o próprio poeta a tentar essa aproximação (…) É que o poeta é rebelde sem premeditação, demolidor de tudo e de si próprio, esforçadamente anticaridade-encostada-às-esquinas-depistola-em-punho ou caneta-na-mão-lágrima-de-jacaré (OOM, 1980, p. 32). E António José Forte, em entrevista ao seu companheiro de “armas”, Ernesto Sampaio, pouco antes da sua morte (1988), esclarece: Poesia é sobretudo, e antes de mais nada, forma de conhecimento. Mas não pode deixar de ser, também, expressão. Conhecimento de nós, dos outros, do mundo, enfim. Conhecimento do homem como microcosmos, entenda-se. Logo, conhecimento sempre revolucionário. Escrevi uma vez: a revolução é um momento, o revolucionário, todos os momentos. É evidente que este revolucionário só pode ser o poeta (FORTE, 1989, p. 104). Nesse sentido, poderia dizer-se que só o Conhecimento é verdadeiramente revolucionário. A Revolução surrealista passa por aí, pelo desvelamento das camadas mais profundas do ser e, portanto, pela subversão e reinvenção da linguagem. Conforme afirma significativamente o poeta de Uma faca nos Dentes : Ao deslumbramento que foi a descoberta do surrealismo, sucedeu uma interpretação menos deslumbrada, mas mais profunda. Penso que a rebeldia contra todos os poderes, desde o poder do Estado, passando pelo poder dos partidos até a poder de distribuir prémios literários, que é uma fase combativa do surrealismo, que tanto me entusiasmou, é apenas a face mais visível. Há a outra face, oculta, não menos subversiva. Esta face, onde se refletem todos os sonhos do homem, libertariamente, é que é a verdadeira origem da estrada sem fronteiras que é o surrealismo, como já alguém afirmou (ibidem, p. 106). Também Mário Cesariny, igualmente numa entrevista (esta, concedida em agosto de 1982, ao Jornal de Letras, Artes e Ideias , n. 38), associa poesia e surrealismo, dizendo que o surrealismo é o que de mais parecido existe com a poesia, e que, ao reunir “o romantismo, o simbolismo, o futurismo, as tradições libertárias” o surrealismo “deu-lhes um sentido”, sentido esse que perdurará sempre (apud CUADRADO, 2010, p. 36). Este sentido é, certamente, tomando a palavra na sua dupla acepção, aquele para o qual aponta e conduz a “estrada sem fronteiras” que cada poeta, sozinho primeiro e em “agrupamento de indivíduos Livres”, depois, revolucionariamente percorre. Porque “uma mudança de rumo de TODOS e em TUDO não pode deixar de começar em nós individualmente”, conclui António Maria Lisboa em “Erro Próprio” (LISBOA, 1977, p. 81). É na sequência desta assunção da necessidade de um trabalho pessoal, iniciático , que o mesmo Lisboa concebe, a dada altura, norteado também pela sua descoberta, em Paris, das ciências ditas ocultas, um outro nome para a Poesia: Metaciência. ⁶ A Metaciência, de acordo com as palavras da carta de meados de abril de 1950 a Mário Cesariny,
Pretende entre outras coisas dar ao Homem, ao Poeta a sua posição no Centro da Esfera deste Universo, que o mesmo é dizer fazer com que o Poeta possua no seu cérebro todos os raios da esfera deste universo. O Poeta é portanto um Mago –, possuidor das forças das coisas superiores e das coisas inferiores que se dermos uma volta trocam posições (ibidem, p. 279). A Metaciência configura-se, então, como diz Lisboa, numa outra carta da mesma altura, a Mário-Henrique Leiria, como “um movimento de Poetas absolutamente em oposição àqueles que são apenas ‘fixadores do real’” (ibidem, p. 282), aqueles Poetas que são, pois, capazes, de tocar o Surreal, o que está para além do visível e do dizível, que conjuga os opostos, consciente e inconsciente. Também nas palavras de Fernando Alves dos Santos (1928-1992) – um poeta injustamente esquecido, que pertenceu desde o início ao grupo de “Os Surrealistas” –, palavras extraídas de uma carta de 15 de janeiro de 1987, a Cruzeiro Seixas, “o esforço surrealista tem a ver com a totalidade da Vida, com a exaltação dum mundo mais verdadeiro”, um esforço comandado pela utopia, “mas a utopia também é inerente à realidade e pode chamar-se criação e descoberta” (SANTOS, 2017, p. 42). A Poesia (Arte), na sua vertente surrealista mais do que em qualquer outra, implica, pois, (auto-)conhecimento e descoberta; é uma forma desejante e utópica de Totalidade, de Sabedoria. Se a Arte (Poesia) obriga à “construção de um caminho cognitivo”, ela é, no dizer de Federico Ferrari, “substancialmente aristocrática” (MAIA, 2011, p. 93). Infira-se, no entanto, destas palavras, que é aristocrática no sentido etimológico do termo: revela o poder ou a força, kratos , do melhor, aristos , isto é, daquele que é capaz de transmitir esse poder-força ao seu fazer-arte. ⁷ Como explicita o mesmo autor, “a aristocracia da arte é sem hierarquia. Porque ela responde à anarquia constitutiva do gesto artístico, à ausência de uma arkhe , de um princípio único e regulador” (ibidem, p. 95). A Poesia (Arte) constitui, então, um poder anárquico (passe o aparente paradoxo), porque é um poder-fazer “desprovido de regras prévias”, assente no exercício de uma liberdade livre. Para Ferrari, ⁸ o grande, o verdadeiro artista só pode ser, pois, um “aristocrata anárquico”, já que “a aristocracia é indissociável da anarquia e vice-versa” (ibidem, p. 96). Assim sendo, o surrealismo, Arte maior (e dos “melhores”), reivindicando a Liberdade, o Conhecimento e o Amor, foi sempre, e é ainda, consubstancial à Anarquia. Estamos, então, em presença de uma poesia não instrumental, cuja força reside em si mesma, assumindo que a linguagem foi dada ao homem, no dizer de André Breton, “pour qu’il en fasse un usage surréaliste” (BRETON, 1979, p. 44); mas também no fato de ser “um exercício de penetração” do real, permitindo o acesso ao desconhecido, a domínios inexplorados, não racionais (como os do inconsciente e do sonho e daí a sua visceral ligação à psicanálise), criando, “entre o Indivíduo e o Cosmos um corredor livre e por ele um movimento incessante de enriquecimento comum” (LISBOA, 1977, p. 170)
O surrealismo afigura-se, desse modo, como um poder , o de recriar o mundo, ou de empreender, através de sucessivas transmutações, a conquista do homem por si mesmo, “transformando-se o amador na coisa amada” (passe a paráfrase de Camões). Só dessa maneira existirá em potência um lugar onde a poesia é feita por todos, como pretende, a certa altura, Lautréamont. “Para que o mundo continue como permanente e invisível transformação é preciso que a poesia (a arte) seja ‘feita’, que os esquemas perceptivos não fixem a vida em definitivo”, sublinha Silvina Rodrigues Lopes (MAIA, 2011, p. 58). Dito por António Maria Lisboa: Politicamente a Metaciência ao pronunciar-se dirá que a verdadeira democracia só será possível quando todos os homens forem poetas. Mas a isso não chama ela democracia – mas ANARQUIA! (1977, p. 280). Fala-se de Anarquia, princípio arquetípico do anarquismo, com o qual nem sempre coincide (ou coincidiu historicamente), sobretudo se, de um ponto de vista conceitual, o identificarmos com o “velho” movimento ácrata prossecutor da ação violenta e destrutiva, da desordenação do espaço público, de um programa visando ao ataque frontal e o aniquilamento do(s) poder(es) (estatal, militar, religioso). “Ora, a anarquia não só não tem programa como não pode coincidir com algum ponto de vista”, observa Jorge Leandro Rosa, num artigo justamente intitulado “A Anarquia a partir do Surrealismo” (ROSA, 2016, p. 326). Nessa medida, “tomar a anarquia como simples descarga, como exteriorização da força, vai a distância do erro comum que toma o anárquico como explosão do contido e consumo do potencial” (ibidem). Já Errico Malatesta, num texto da maturidade, escrito, por coincidência, no mesmo ano do Primeiro Manifesto do Surrealismo , faz questão de afirmar que “é tempo de acabar com aquela retórica – pois não se trata senão de retórica – que procurava encerrar todo o programa anarquista no famoso ‘destruir’”, uma vez que “não deveremos destruir senão aquilo que possamos substituir por coisa melhor. E para isso há que trabalhar em todos os ramos para melhorar as coisas e melhorar-nos a nós próprios” (1991, p. 8-9). Como a Arte, digo, a Anarquia não se consuma em finalidades, pois não visa “resolver a liberdade”, não quer instalar um Paraíso definitivo e perfeito, e, portanto, fechado em si mesmo, cadavérico, inerte e… infernal. Mas como o surrealismo, propõe a desmontagem ou subversão progressiva de todas as “ficções sociais”, para usar a expressão do “banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa. Como a arte surrealista, a Anarquia traduz uma tensão permanente, um inacabamento. Uma das características essenciais do movimento anarquista reside, precisamente, no entender do psicanalista libertário Eduardo Colombo, na “tensão constante entre a Utopia e o movimento social” (1983, p. 14). A “função utópica é a superação e o transbordar do presente. É uma tensão no sentido de um para lá da linha do horizonte histórico” (ibidem, p. 20); implica, pois, uma “desformalização”, uma “aventura”, tal como a encontramos expressa no surrealismo. Os anarquistas/libertários podem, assim, ver-se refletidos nas palavrasespelho de um outro “irmão colaço”, Ernesto Sampaio: “A Moral é a acção da Poesia. Quero dizer: o poeta é exemplar. Ele não pode aceitar que à sua volta se coisifique o homem.”E, por outro lado, ele “acha que em verdade
ainda está tudo por fazer ” (CUADRADO, 1998, p. 385). Porque, no fundo, eles sabem, como o poeta, que a Grande Obra a realizar, “leva mais tempo que os anos de vida” e, por isso, ainda e de novo no dizer de Lisboa, “não é mais que uma forma de encontro, um começo de iniciação” (1977, p. 239). Não disse também o velho Malatesta: Do mesmo modo que nunca atingimos a linha do horizonte que se afasta sempre mais à medida que para ela avançamos, também a anarquia é um ideal que poderá não se realizar nunca. O anarquismo é um método de vida e de luta e deve ser praticado hoje e sempre pelos anarquistas no limite das suas possibilidades que variam segundo os tempos e as circunstâncias. Não se trata de fazer a anarquia hoje, amanhã ou daqui a 10 séculos, mas de avançar para a anarquia hoje, amanhã, sempre. Se para vencer for preciso tomar o poder eu prefiro ser vencido! ( A Ideia , n. 81-83, p. 170, 2017). Outra coisa não diz, afinal, António Maria Lisboa, quando escreve, de forma lapidar, numa carta atrás citada a Mário Cesariny: “A Anarquia e a Poesia são uma obra de séculos e irrompe[m] espontaneamente ou não irrompe[m]!” (1977, p. 279). Do mesmo modo, a Anarquia não deve limitar-se a identificar o poder apenas com dominação, mas atribuir-se a si mesma o poder revolucionário de criar , de ir criando – por sucessão, seguindo como modelo o “exercício de penetração” que a poesia surrealista fornece –, novos sentidos, novas formas de intervenção, novos saberes. A Anarquia-anarquismo deve saber, como escreve ainda Leandro Rosa, que Já não é a luta dos seres com a matéria que define o novo campo social – e também isto os surrealistas já sabiam –, mas uma espécie de entrada dos seres na plasticidade material, o que significa, inelutavelmente, o reenvio da liberdade para os reinos exteriores, para o além-consciência. A anarquia aniquila as formas específicas da consciência porque é a sua disseminação que importa (2016, p. 326). Desse maneira, os anarquistas/libertários podem assumir por inteiro que “a libertação do poder de criação e análise”, “a força explosiva da imaginação”, “a atração feroz do amor” são outros tantos meios, como defende Mário Henrique Leiria, para a transformação social. A seu modo, poderiam dizer: Contra o aniquilamento total do indivíduo, que é frequentemente proposto por sistemas regenerativos só revolucionários na aparência, propomos o aparecimento súbito e violento do Homem e da Mulher integralmente livres dentro da sua própria necessidade dialética de transformação (CESARINY, 1997, p. 183). Ou, à maneira poética de Cesariny, igualmente propor: Contra a transformação do Homem em santo canonizado, propomos a aparição do Homem e da Mulher eternamente abraçados, a súbita nascença na praia abandonada do Cavalo das Sete Cabeças, filho do Fogo e da Água.
Contra a adaptação do Homem numa máquina de defender pátrias e partidos, propomos a criação do Homem-Asa, do Homem que percorrerá o Universo montando um cometa extremamente longo e fulgurante (apud CUADRADO, 1998, p. 17). Importa, ainda, sublinhar que o anarquismo só pode invocar e incorporar o surrealismo, se não o considerarmos apenas na sua dimensão temporal, inscrito num tempo relativamente curto. Quero dizer, o tempo do movimento estético-literário que, em Portugal, costuma ser balizado pela data do nascimento, em 1947, do Grupo Surrealista de Lisboa, ou pela da formação decisiva do grupo dissidente “Os Surrealistas”, em 1948-1949; e pela data da sua suposta defunção, com o Grupo do Café Gelo, em finais dos anos 1960. E se não o considerarmos apenas enquanto movimento cuja poética se tende a caracterizar, de forma por vezes convencional, pela transgressão das fronteiras entre os gêneros literários e artísticos e da linguagem, com o uso de processos como o automatismo, a associação livre, os trocadilhos, o inventário, a colagem, os jogos coletivos (como os célebres “cadavres exquis”), o humor negro. Isto é, se, em contrapartida, o considerarmos na sua avassaladora força criadora, que constitui, na opinião de Perfecto Cuadrado: A formulação mais profunda, abrangente e explícita do projeto de revolução da Modernidade, uma revolução moral, ética, política, estética – e, neste seu quarto degrau, teórica e prática, artística e literária, inscrita na tradição que Octavio Paz chamou “da ruptura” e Apollinaire e Guillermo de Torre “da aventura” (2017, p. 56). É graças ao alcance e profundidade desta força criadora que o surrealismo se liberta, afinal, da sua própria história, a transcende, se torna “eterno”, e pode ser identificado com a Poesia. Não se estranha, assim, que António José Forte afirme: “Poesia e surrealismo são para mim, ainda hoje, uma e a mesma coisa, com as devidas correções introduzidas pelo tempo, pela minha própria experiência” (1989, p. 106); ou que Mário Cesariny admita que “aquilo a que se chamou o surrealismo existiu sempre…” (CUADRADO, 1998, p. 36). Tal como a Anarquia, o surrealismo, enquanto sinônimo de poesia do Surreal, existirá sempre, na medida em que todos os verdadeiros e grandes poetas são ou sejam, de alguma maneira e cada um a seu modo, surrealistas. Por isso, Natália Correia pode, provocativamente, reunir na sua antologia, O Surrealismo na Poesia Portuguesa , autores tão diversos e distantes como Mendinho, Gil Vicente, Soror Mariana Alcoforado, Almada Negreiros, José Régio, Luís Pacheco (2002). E Mário Cesariny reconhecer, num texto intitulado “Final de Manifesto” (1949), que a sua (deles) posição surrealista decorre não só dos fundacionais “Manifestos do Surrealismo” do grupo francês, como “da obra coletiva de Segismund Freud, Mário de Sá-Carneiro, Arthur Rimbaud, Guillaume Apollinaire, Antonin Artaud, Heraclito, Hermes, Vladimir Ilitch, Novalis – a loucura, a sabedoria, a magia, a poesia”; ou “das alucinações de Raul Brandão, Gomes Leal e Ângelo de Lima; do assassino de Fernando Pessoa: Ricardo Reis” (1997, p. 157).
Se alargarmos e alongarmos tão abrangente linhagem aos sonhadores, aos visionários, aos rebeldes, de todos os tempos, não será difícil irmanar surrealistas e libertários/anarquistas, sob a mesma bandeira, negra-branca, da Vida Verdadeira, cujos valores, como escreve magistralmente Ernesto Sampaio (1963), “ puxam o homem, orientam-no, são estrelas que ele utiliza para tirar o seu ponto , polos magnéticos que se chamam o Sonho, o Amor, a Liberdade – tutelas da única real tradição viva que a Poesia encarna” (CUADRADO, 1998, p. 387). Assim, anarquismo (Anarquia) e surrealismo (Poesia) mutuamente se iluminam, percorrendo a mesma “estrada sem fronteiras”. Referências bibliográficas BÉHAR, Henri; CARASSOU, Michel, Dada, História de uma Subversão . Tradução de José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2015. BRETON, André. Manifestes du surréalisme . Paris: Gallimard, 1979. CESARINY, Mário (Org.). A Intervenção Surrealista . Lisboa: Assírio & Alvim, 1997. COLOMBO, Eduardo. Do desejo à utopia. A Ideia , n. 30-31, p. 12-26, 1983. CORREIA, Natália (Org.). O Surrealismo na Poesia Portuguesa . Pref ácio e notas de Natália Correia. Lisboa: frenesi, 2002 [1. ed. 1973]. CREVEL, René. O Meu Corpo e Eu . Tradução e apresentação de Aníbal Fernandes. Lisboa: Sistema Solar, 2014. CUADRADO, Perfecto E. A Única Real Tradição Viva, Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa . Lisboa: Assírio & Alvim, 1998. CUADRADO, Perfecto E. Portugal, surrealismo. A Ideia , n. 81-83, p. 56-64, 2017. DUPUIS, Jules-François. História desenvolta do Surrealismo . Tradução de Torcato Sepúlveda. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2000. FERRUA, Pietro. Anarquismo e Surrealismo. A Ideia , n. 73-74, p. 156-158, 2014. FORTE, António José. Corpo de Ninguém . Lisboa: Hiena Editora, 1989. FRANÇA, José-Augusto (Org.). Unicórnio, Antologia de inéditos de autores portugueses contemporâneos . Lisboa, 1951. FRANCO, António Cândido. O Triângulo Mágico, uma biografia de Mário Cesariny . Lisboa: Quetzal, 2019. FREIRE, João. A ação anarquista hoje e há um século (da revolução russa aos black bloc ). A Ideia , n. 81-83, p.164-169, 2017.
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próprio de Dada, é ainda Dada. Só Dada é surrealista, e o humor e o amor o surreal Dada” (FORTE, 1989, p. 96). 6 Desenvolvo este assunto num artigo com o título “António Maria Lisboa, poeta do poeta”. Delphica, Braga: Crescente Branco , n. 2, p. 163-168, 2014. 7 Curiosamente, António Maria Lisboa escreve, anotando o livro Heterodoxia , de Eduardo Lourenço: “A reflexão é aristocrática – não sendo burocrática necessita duma burocracia” (LISBOA, 1977, p. 238). 8 Diga-se, a propósito, que o crítico italiano é autor de uma obra sugestivamente intitulada L’anarca: la libertà del singolo tra anarchia e nichilismo (2014), inspirada, por assim dizer, na obra de Ernst Jünger, Eumeswil (1977), cujo protagonista se assume como “anarca”, não propriamente anarquista. NARRATIVAS BIOGRÁFICAS E A NARQUIA 12 A PRÁTICA DA LIBERDADE EM DISCURSO DIRETO: A VOZ DE ANARQUISTAS E LIBERTÁRIOS DE TODO O MUNDO NA REVISTA UTOPIA Isabel Castro 1. Introdução Pretendemos com o presente capítulo dar a conhecer a “voz em direto” de uma série de anarquistas/libertários de todo o mundo, que em determinada altura dos seus trajetos de vida, entre 1995 e 2012, expressaram voluntariamente a “sua voz” em entrevistas diretas gravadas por José Maria Carvalho Ferreira ¹ e, posteriormente, transcritas para a revista Utopia , ² revelando todas essas pessoas, a sua perspectiva sobre o anarquismo nas suas vidas, no mundo e, também, nos países onde viveram. Iremos apresentar de seguida e por ordem cronológica as “vozes ouvidas” diretamente dos protagonistas, apresentando-os de forma individual. Depois, tentaremos fazer uma síntese dos principais aspectos libertários e anarquistas narrados e por todos eles sublinhados. 1. A “voz”/testemunho direto de anarquistas na revista Utopia Ao longo dos seus 17 anos de existência, a revista Utopia , editada em Portugal entre 1995 e 2012, “ouviu” e, depois, transcreveu testemunhos que são hoje únicos e ímpares de pessoas anarquistas e libertárias, cujas experiências de vida nos impressionam pelo que, à data, faziam em prol de uma convicção forte na emancipação social e pela revolução social. A forma como operavam, tendo em consideração os tempos de então carregados de tensões e opressões, deixa uma marca indelével nos avanços e recuos que o movimento anarquista tem tido em todas as partes do mundo.
Todos os anarquistas/libertários a que iremos dar “voz” foram entrevistados principalmente por José Maria Carvalho Ferreira, a maioria homens e uma mulher, que se destacaram e contribuíram de forma muito importante nos países em que habitavam para a teoria e prática da anarquia, sendo a sua voz em “direto” que passamos a sintetizar de seguida a partir da transcrição das diversas entrevistas que constam das várias revistas Utopia . 2.1. Jovens “ocupas” de casa em Lisboa na revista Utopia , n o 5 , p. 16-21, 1 o semestre 1997 Entre 1993 e 1997, registraram-se em Portugal várias ocupações de casas vazias, não habitadas por ninguém há muito tempo, e que alguns jovens as ocuparam imbuídos da vontade de serem livres e construírem o seu futuro de forma independente e em comunidade. Vem nesta sequência a entrevista que José Maria Carvalho Ferreira (JMCF) realiza a alguns jovens que ocuparam uma casa na avenida Santos Dumont, em Lisboa, para perceber como pensam este assunto da “ocupação de casas vazias”. Nesse sentido, JMCF pergunta aos jovens o que os levou a ocupar a casa na av. Santos Dumont em Lisboa, ao que os jovens responderam: Antes de ocuparmos a casa alguns de nós já nos havíamos juntado, uns porque estavam descontentes com a apatia em que se encontrava o movimento anarquista e outros porque começavam a simpatizar com as ideias e tinham vontade de fazer algo… Após alguns encontros começamos a ter necessidade de um espaço para nos reunirmos e a ocupação foi uma resposta natural. Foi uma forma de resolver o nosso problema de falta de espaço e pormos finalmente as nossas ideias em prática. Havia também o problema de não termos meios econômicos para comprar/alugar uma casa para fazermos um centro, uma vez que a maioria de nós é estudante e com tantas casas desabitadas não víamos por que razão tínhamos de pagar por um espaço. JMCF está perante jovens estudantes, do ensino secundário e universitário, para além de outros já serem trabalhadores e outros que desistiram de estudar, mas que ainda não trabalham. Na opinião dos jovens não é legítimo existirem tantos espaços vazios quando tanta e tanta gente dorme nas ruas e em becos da cidade. Os problemas que tiveram assim que ocuparam a casa, contam-nos os jovens, foram: Fizemos uma primeira tentativa que foi malsucedida, pois um vizinho chamou logo a polícia e fomos corridos. A segunda tentativa resultou porque o fizemos de forma mais organizada e estávamos melhor preparados. Só passados 15 dias é que a polícia apareceu, talvez porque ocupamos a casa na época de Natal e na mente distorcida da polícia devem ter pensado que era melhor deixar o pessoal em paz nesta época de caridade. Desta última vez também estávamos melhor informados sobre a legislação em relação ao assunto em geral. Na primeira tentativa de ocupação da casa e que a polícia não deixou, estiveram entre 7 e 8 pessoas, na segunda já eram cerca de 20 pessoas. Depois da ocupação e já no espaço, dizem-nos que passar da teoria para a prática comunitária não foi nada fácil. As primeiras atividades que
desenvolveram foram na área de debates, teatro, música, instalação de uma biblioteca e abertura de espaço de café convívio. O número de interessados em juntar-se a este coletivo de jovens passou a ser de 30 pessoas e cerca de 50% dos mesmos seriam mulheres. As idades rondariam entre os 18 e 20 anos. A divisão de tarefas desenvolvidas no espaço é igualitária, todos se entreajudam, pese embora de vez em quando surjam alguns problemas. Dizem ainda os jovens entrevistados por JMCF que o objetivo da ocupação do espaço em Lisboa É a libertação e a consciencialização das pessoas e não estamos preocupados se somos ou não aceites pelos governos. (…) queremos demonstrar que temos de controlar diretamente as nossas vidas sem qualquer espécie de autoridade que aniquile a participação do indivíduo na resolução dos problemas da sociedade. As relações entre os jovens “ocupas” nem sempre é fácil, mas dizem que “ninguém lidera ninguém”. Afirmam ainda que, apesar de saberem que muitos dos jovens do passado, quando passaram a constituir família, tenham abandonado as ideias anarquistas e libertárias, porém há sempre quem não abandone as ideias e as práticas que em jovem desenvolveu. Há vários exemplos disso e são esses que nos dizem valer a pena prosseguir com as ideias e as práticas anarquistas e libertárias. Questionados sobre o interesse de realizar um curso superior, um dos jovens responde de forma assertiva: Há diferentes motivações para as pessoas desejarem ingressar no ensino superior. Há alguns que procuram efetivamente aprofundar os conhecimentos e veem na universidade uma forma de o fazer. Pensamos que a universidade não é fundamental e que se pode até tornar muito prejudicial se a pessoa se deixar levar pelo pensamento burguês e por um certo elitismo intelectual que nos transmitem em todas as fases do ensino. O que se apreende também se pode fazer de outras formas com algum espírito autodidata, o que pode ser até melhor porque podemos selecionar o que mais nos interessa e não estamos sujeitos a uma avaliação. Na verdade, o que mais interessa à maioria de nós não se aprende na escola. Estando nós em 2020 e passados que foram 23 anos após essa entrevista, o que terá acontecido a todos esses jovens aparentemente tão esclarecidos e quais os seus percursos de vida, quantos deles terão prosseguido com as ideias que então perfilhavam e praticavam? 2.2. Edgar Rodrigues na revista Utopia , n o 5, p. 85-95 1 o semestre 1997 Edgar Rodrigues (1921-2009) é pseudônimo de António Francisco Correia (Angeiras, 12 de março de 1921-Rio de Janeiro, 14 de maio de 2009), foi historiador, arquivista e escritor, nascido em Portugal e radicado no Brasil desde 1951, ano em que deixou o seu país natal escapando da perseguição ditatorial de Salazar. Na sequência da vinda a Portugal de Edgar Rodrigues, em 1996, período em que a Associação de Trabalho Social e Voluntário de Lavra lhe organizou como homenagem uma exposição sobre a sua vida e obra, a qual ocorreu entre 13 e 28 de setembro de 1996 na sede da GDM Flôr de Infesta, em São
Mamede de Infesta, José Maria Carvalho Ferreira, da revista Utopia teve oportunidade de o entrevistar durante a sua estadia em Portugal para melhor compreender tudo o que viveu e fez pela anarquia no Brasil, em Portugal e no mundo. Na entrevista à Utopia n o 5, Edgar Rodrigues nos diz que quando chegou ao Brasil nos anos 1950 do século XX, ao constatar que quase nada existia sobre a “questão social” em termos escritos, nem sobre o anarquismo, desde logo se interessou por começar a escrever sobre esta questão. Um dia envia um artigo por si elaborado para o jornal Volontá , no qual escrevia sobre a morte de um preso político no Tarrafal, prisão horrível existente em Cabo Verde para onde a ditadura enviava os presos políticos considerados pelo regime como os mais perigosos. A partir desse primeiro artigo passam a pedir-lhe mais artigos, mas pensando sempre que ele é um cidadão brasileiro, e como jovem que era e, à data, procurando afirmar-se, não desfez o equívoco, tendo mesmo conseguido enviar cerca de 50 artigos com o título “A Questão Social no Brasil” (subsídios para a história do movimento operário). O primeiro livro que Edgar Rodrigues viria a publicar sobre esta temática teria por título Socialismo e Sindicalismo no Brasil e, na “voz” de Edgar Rodrigues, iniciou-o devido às lutas dos escravos. Na sua opinião, não era concebível que não se considerassem as lutas dos escravos como lutas dos trabalhadores, já que os escravos foram para o Brasil trabalhar, não foram especificamente para serem escravos. Na realidade, “ser escravo foi uma forma que encontraram para o obrigar a trabalhar, pela comida e pela roupa”. Edgar Rodrigues inicia então a sua pesquisa pelos quilombos de Palmares, por ter sido uma comunidade Que conseguiu reunir 20 mil pessoas, que durou quase um século, derrotou o exército brasileiro 17 vezes, e sobreviveu sozinha sem leis, sem Estado e sem religião. Eles tinham lá as místicas deles, é verdade, mas conseguiram viver sem dinheiro, fabricavam a sua própria roupa, plantavam, colhiam e fiavam algodão, e conseguiram criar uma verdadeira comunidade socialista libertária. Edgar Rodrigues interessa-se depois por todas as comunidades de trabalhadores negros e de toda a gente que tinha ideias de emancipação social e que veio depois, como “…a comunidade do Said, de Santa Catarina, que foi antes da colônia Cecília, e depois a própria colônia Cecília e os primórdios da propaganda num sentido político-social”. Diz-nos ainda Edgar Rodrigues que se interessou pelo quilombo de Palmares porque Zumbi, talvez o homem que mais se evidenciou nessa comunidade, foi o primeiro que tentou criar um país, uma comunidade independente, antecipando-se em mais de dois séculos a Tiradentes, figura central da luta pela independência no Brasil. Esse caso é, para Edgar Rodrigues, algo muito importante porque os ex-escravos formaram uma comunidade enorme num território talvez com uma dimensão semelhante a Portugal, e para ele, é das experiências de socialismo libertário, ainda que não tivessem essa consciência política, que realizaram coisas interessantíssimas. Edgar Rodrigues nos diz que
Eles travaram, continuamente, uma luta contra a escravatura. Através duma produção maciça de alimentos, que conseguiam escoar e vender nos mercados no sul do Brasil, no Paraná, no norte, em Pernambuco, e noutras regiões a que chegavam, financiavam as fugas do campo. Estabeleceram uma luta contra os fazendeiros, quer econômica, porque faziam concorrência com os seus produtos nos mercados, quer social, porque organizavam a fuga dos escravos. No começo, os fugitivos eram quase só homens e não havia, portanto, mulheres no quilombo, por isso nem procriação, nem prática sexual. Eles tiveram, então, de patrocinar as fugas, e fizeram-no até o ponto de terem atingido uma família de 20 mil pessoas. A colônia Cecília, outra experiência de socialismo libertário também com acontecimentos muito importantes, apenas surgirá mais tarde, em 1894. Acrescenta ainda que no princípio do século XX, o fato de o Brasil ser um país de imigrados dificultou bastante o movimento anarquista no país porque sempre que emergia um núcleo interessante no sentido de espalhar ideias e práticas, de repente vinha a polícia e mandava-os embora e tudo aquilo morria. Depois surgia outro e a mesma coisa acontecia. Até 1920, o Brasil chegou a ter quatro jornais anarquistas diários em períodos diferentes. Mas todos os jornais morreram porque uma lei apenas com quatro artigos tinha sido criada para proibir publicações e pessoas que falassem de anarquismo, de anarcossindicalismo ou greves. As pessoas eram expulsas sem julgamento. Poderão ter sido cerca de mil as pessoas expulsas e que eram dos mais destacados do movimento anarquista. Durante os quatro anos de 1922 a 1926 em que Artur Bernardes presidiu no Brasil, o país viveu em estado de sítio quase até a chegada de Getúlio Vargas, que instaura uma ditadura de militares, período em que os anarquistas perdem peso desde o final dos anos 1920 até o final da ditadura militar que se segue à de Getúlio Vargas. A partir de 1935, Getúlio fecha tudo o que é anarquista: deportou, prendeu, fuzilou e atirou para a selva (mais de 30 anarquistas foram lançados na selva amazônica e lá morreram, nunca se soube o que foi feito deles). Os portugueses, como também os italianos, tiveram muita influência no movimento anarquista no Brasil no início do século XX, na opinião de Edgar Rodrigues. Por fim, nessa entrevista realizada em 1996 por José Maria Carvalho Ferreira para a Utopia , Edgar Rodrigues manifesta-se muito cético sobre as perspectivas futuras do movimento anarquista porque, ainda que exista uma centena ou mais de grupos que se dizem pertencer ao movimento anarquista, esses grupos têm uma existência muito curta porque muitos dos seus membros fazem uma confusão enorme entre anarquismo e comunismo. Em termos de perspectivas de florescimento do anarquismo no Brasil, Edgar Rodrigues afirma que talvez ele se possa afirmar pela via da Ecologia, por haver uma preocupação grande com a preservação da natureza. E assim termina a entrevista a Edgar Rodrigues, que “partiria” deste mundo em maio de 2009, deixando-nos grande obra editada e muitos artigos dedicados ao movimento anarquista, anarcossindicalista e a tantas realidades interessantes deste ponto de vista. 2.3. Luce Fabbri na revista Utopia , n o 6, p. 78-83 , 2 o semestre 1997
Luce Fabbri (1908-2000) morre dois anos depois de ter sido entrevistada para a revista Utopia . Luce Fabbri é pseudônimo de Luz de Alba e foi escritora, editora e filha de Luigi Fabbri. A primeira pergunta que JMCF coloca a Luce Fabbri, filha de um grande anarquista, Luigi Fabbri, o qual era amigo de Errico Malatesta, foi como é que ela tinha vivido a anarquia em criança junto do pai e os seus amigos anarquistas como Errico Malatesta. Luce Fabbri nos diz que é anarquista por convicção e não apenas por influência do pai, que desde cedo se sentiu perto da prática anarquista, não negando, no entanto, a influência que o pai terá tido, sem dúvida, em si e no seu irmão, enquanto anarquistas. Adianta Luce Fabbri que quando Mussolini tomou o poder, em 1922, tudo se precipitou. O pai foi preso duas vezes e várias publicações anarquistas foram suspensas. Mesmo o jornal Umanitá Nova cessou como diário, jornal que era dirigido por Errico Malatesta, que estava preso quando o mesmo foi fechado. Errico Malatesta estava preso e tinha entrado em greve de fome porque o prenderam sem o processarem e exigia que o processassem. Na opinião de Luce Fabbri: Estava em greve de fome porque não o processavam. Não o podiam processar porque não podiam condená-lo. Mas não o libertavam porque queriam matar a Umanitá Nova . E a situação prolongava-se, Malatesta estava mal… Umanitá Nova continuava a sair na mesma, com o trabalho realizado por outros companheiros, e saiu de forma irregular até “Malatesta morrer”. Quando Mussolini marchou sobre Roma e tomou o poder, Luce Fabbri contanos que, sendo o pai professor primário ainda em 1926 e tendo saído uma lei que obrigava todos os professores primários a jurar fidelidade ao regime, o seu pai, não querendo obedecer, teve de fugir para França, tendo-se assim separado a família. Luce Fabbri ficou durante dois anos em Bolonha completamente sozinha, e, ela diz-nos, foi nesse período penoso que amadureceu bastante. Não voltou a ver Errico Malatesta senão mais uma vez e numa situação para ele revoltante. Estava em casa e disse-lhe que era pior do que estar preso porque na prisão ainda tinha os outros presos com quem conversar e em casa não podia falar com ninguém pela forma como era ferozmente vigiado. Mais tarde Luce Fabbri vai viver em Paris, em janeiro de 1929, onde se junta ao pai, que de 15 em 15 dias tem de renovar a sua autorização de permanência em França por pressão da embaixada italiana. Até que um dia e já com a mãe junto deles, resolvem fugir os três sem passaportes e num “barquito da marinha mercante” para o Uruguai, porque a perseguição ao pai se tinha tornado insuportável. Nas palavras de Luce Fabbri: O meu pai trabalhava para a Protesta a partir da Europa, e nos últimos tempos havia intensificado muito o seu trabalho. Era um diário. Podia manter uma redação e, por exceção, o meu pai vivia praticamente disso nos últimos tempos de desterro na Europa. E, inicialmente, aqui no Uruguai também. A sua base econômica foi o jornalismo, sobretudo na revista Protesta . Mas, em geral, quando ele escrevia para publicações libertárias
não cobrava nada. Tinha o seu trabalho de professor e organizou a sua vida de forma a que o seu trabalho para o movimento fosse completamente independente dos recursos materiais para a vida prática. Mas, nessa fase transitória, ele teve que aceitar a retribuição da Protesta . Mas durou muito pouco, porque em 6 de setembro de 1930, um golpe militar terminou com o governo democrático e com a imprensa de esquerda. Então o jornal Protesta foi encerrado. Apreenderam todos os livros – tinham uma magnífica biblioteca –, creio que destruíram a tipografia, enfim… terminou. O pai de Luce Fabbri, Luigi Fabbri, morreria em 1935. Acrescenta ainda Luce Fabbri que quando chega ao Uruguai passa a fazer parte das Juventudes Libertárias e que também frequentava um centro cultural de jovens anarquistas. Em 1936, junta-se a um companheiro também anarquista saído de Itália por causa do fascismo. Criam os dois a revista Estudios Socialis , na qual a mãe de Luce Fabbri também se envolve na expedição da mesma para os Estados Unidos e França, onde estão muitos emigrantes políticos antifascistas, que contribuem para a continuação das suas atividades subscrevendo a revista. Depois da queda do fascismo, Luce Fabbri nos diz que continuou a dedicarse ao movimento anarquista no Uruguai, não voltou mais a Itália apesar de colaborar com artigos para o Volontá . Acrescenta também que após a morte do pai, em 1935, pouco depois tem início a Revolução Espanhola, que em termos de movimento anarquista deu ânimo a muitos. Nos anos 1960 do século XX Luce Fabbri esteve envolvida com o irmão na fundação da Federação Anarquista Uruguaia (FAU), que registaria depois várias cisões relacionadas com a natureza do regime comunista implantado em Cuba. Por via da cisão, Luce Fabbri, o irmão e outros companheiros criaram a Aliança libertária Uruguaia (ALU) em 1961, ano em que Fidel Castro se declara marxista-leninista. Luce Fabbri nos diz ainda que em 1998, ano em que está a ser entrevistada para a Utopia , a revista Opción Libertaria , a qual criou em 1976, depois da ditadura, continua a ser editada no Uruguai e que tinha colaboradores muito jovens depois de 12 anos de obscurantismo, que foram os anos da ditadura. Luce Fabbri perspectiva que o movimento anarquista possa vir a desempenhar um papel muito importante no futuro e, de forma muito “lúcida, atual e prospectiva”, afirma que não está muito otimista em relação ao futuro, mas que para enfrentar qualquer crise é necessária a solidariedade, logo, o movimento anarquista pode reflorescer no futuro. Nas suas palavras: Se sobrevivermos à contaminação dos resíduos atômicos e tantos outros perigos que nos ameaçam, então a nossa única salvação será, como em todas as grandes catástrofes, a solidariedade, porque quando surge uma crise, aparece muita coisa feia e muita coisa boa. Ela [a solidariedade] será necessária na crise limite que vamos enfrentar. Luce Fabbri continuou empenhada no movimento anarquista até à sua “partida” em 1997, cerca de um ano depois de a termos entrevistado. Até o
final colaborou na edição da revista Opción Libertaria , que criou e continuou a desenvolver as ideias e práticas anarquistas. 2.4. Comunidade del Sur na revista Utopia , n o 7, p. 54-60 1 o semestre 1998 José Maria Carvalho Ferreira (JMCF), da revista Utopia , num encontro com a Comunidade Del Sur, em 1997, para compreender melhor as suas práticas anarquistas e libertárias, entrevista três dos membros desta Comunidade, entrevista que surge na Utopia n o 7, no primeiro semestre de 1998, com o título “As cidades não são boas para uma vida humana”. À data da entrevista, a Comunidade del Sur tem 42 anos de existência (1955-1997), pese embora com várias vicissitudes, como veremos mais adiante, mas enquanto Comunidade de práticas anarquistas e libertárias tem o seu mérito por ser raro uma Comunidade deste tipo perdurar tanto no tempo. Dando a palavra a um dos elementos da Comunidade para “contar” como surgiu o projeto da Comunidade, ficamos a saber que teve início nos anos 1950 do século XX num momento em que o Uruguai passava por uma grande crise a vários níveis, dentre os quais: Face ao desaparecimento de muitas formas tradicionais de organização social começaram a surgir muitas iniciativas autogestionárias, nas artes plásticas, no teatro, nas organizações de bairro; a Comunidade surgiu como uma tentativa de sair de muitos condicionalismos e passar a criar uma forma de vida alternativa, tanto no trabalho como na educação, no consumo, um cooperativismo integral. No início, quando a Comunidade surgiu, chegou a ter muitos aderentes, sobretudo jovens ligados ao movimento estudantil e que questionavam o tipo de aprendizagem profissional, o profissionalismo a apoderar-se do conhecimento para explorar o conhecimento, a apropriação privada dos saberes. À medida que se foi tentando levar tudo à prática, a Comunidade foi-se reduzindo porque nem toda a gente estava disposta a imaginar-se sem o privilégio de ser estudante, sobretudo em termos profissionais. Ao longo do tempo, houve um culminar numa confrontação muito forte em nível ideológico, mas também prático, terminando o país numa ditadura militar. Esta ação repressiva tem início nos anos 1960, mas culmina em 1973 com a implantação da ditadura. É então que partem para o exílio porque era muito forte e difícil a luta entre a criatividade autogestionária e as estruturas autoritárias capitalistas. Como Comunidade exilada começaram, primeiro, por ir para o Peru porque consideravam que deveriam continuar na América Latina Numa responsabilidade com os ‘pobres do mundo’, mas não podíamos ficar aí, a repressão era igual, os exércitos e as polícias estavam coordenados. Em Lima começamos a ter dificuldades crescentes e restou-nos, como última hipótese, procurar um país que nos recebesse, e nesse momento a ajuda veio da Suécia.
Na Suécia, a Comunidade desenvolveu muitas das atividades típicas que já havia desenvolvido no Uruguai e no Peru, como Organizar a vida em comum, fazíamos algumas atividades típicas da Comunidade nessa época: artes gráficas, atividades sociais. Como alguns de nós tinham estudado psicologia social, psicodrama etc., ou tinham prática de trabalho de grupos, encontrávamos um terreno fértil em todos os emigrantes latino-americanos, que eram milhares. Realizávamos muitas atividades, encontros, seminários, cursos. Criaram a revista Comunidad , que numa primeira fase se compunha apenas de uma “carta geral”, para não terem de escrever a cada um dos contatos internacionais que lhes chegava. Iniciaram essa carta geral com apenas uma folha, mas logo de seguida e face às respostas que obtiveram, a segunda já foi composta com oito páginas. E rapidamente passaram a ter uma revista muito procurada e com alguma importância. Quando acabou a ditadura no Uruguai, consideraram ser uma responsabilidade política o regressar para o país de onde tinham saído e também porque Na Suécia há um individualismo exacerbado. O sistema social-democrata dá tanta segurança que a alternativa de criar formas de trabalho autogestionárias não aparece como muito entusiasmante, não é uma necessidade generalizada. Embora houvesse em Estocolmo companheiros da Colômbia, do Peru, da Argentina, as raízes históricas da Comunidade eram no Uruguai, o que nos abria mais perspectivas. Fomos para Montevidéu. (…) a perspectiva era de uma comunidade em meio rural, pois parece-nos que as cidades não são ecossistemas adequados para uma vida humana rica e ainda menos participativa e libertária. Uma cidade grande só pode ser gerida autoritariamente, por um exército que nela ponha ordem, ou então por uma organização entre bairros. Pensamos que uma experiência enriquecedora tinha de ser feita num meio novo, que era preciso criar o que chamamos de eco comunidades. Foi assim que, em 1985, criaram as eco comunidades quando se cumpriam os 30 anos da Comunidade e com esse pretexto realizaram no Uruguai as primeiras atividades abertas, conversas e debates, geralmente na Universidade, sobre vários temas, como autogestão, ecologia e feminismo, dentre outros. Entre 1985 e 1987, a Comunidade foi-se refazendo e finalmente foi possível instalarem uma casaencontro, onde funcionam oficinas de cerâmica, de música e outras atividades. Algum tempo depois, a Comunidade compra uma quinta e passaram a ter uma atividade editorial e uma atividade produtiva: Ao nível das pessoas, a ideia é a de que todos se preparem para uma rotação de tarefas, evitando o estabelecimento de especializações profissionais, seja em termos políticos, seja impedindo a criação de dependências, do trabalho manual em relação aos intelectuais, das mulheres em relação aos homens, dos serviços à produção, o que não é fácil de conseguir, há que criar estas raízes, não são comportamentos que surjam espontaneamente. Por outro lado, há também que conseguir um funcionamento sustentável e há que
conseguir criar uma espécie de consciência urbano-rural , não sermos 100% camponeses nem 100% metropolitanos, sendo, isso sim, uma fusão de uma cultura urbano-rural. Por fim, dizem-nos os companheiros da Comunidade del Sur, no Uruguai, que estão a ser entrevistados, que à data eram constituídos por 14 adultos e seis crianças e que estavam a tentar desenvolver uma espécie de federação, um grupo específico no âmbito do municipalismo libertário participativo para atuar em áreas como a saúde, a educação, a habitação, os tempos livres, Porque em circunstâncias muito críticas as soluções autogestionárias começam a ser uma necessidade, ainda mesmo quando e paradoxalmente as pessoas não estejam preparadas para isso e sejam muito individualistas, incluindo os mais pobres. No entanto, ou aparecem soluções participadas, autogestionárias, do tipo cooperativo, ou a crise vai ser muito mais dura. 2.5. Jaime Cubero e o Movimento Anarquista no Brasil na revista Utopia , n o 8, p. 60-71, 2 o semestre 1998 Jaime Cubero nasce a 5 de abril de 1926 e morre, quando nada o fazia prever, a 20 de maio de 1998, com 72 anos e pouco tempo depois de ter sido entrevistado, em 1997, por José Maria Carvalho Ferreira (JMCF) para a revista Utopia . Jaime Cubero nos diz que desde muito jovem que as práticas e as ideias do anarquismo lhe são muito próximas porque tinha um vizinho espanhol que era anarquista e os filhos dele conviviam com Jaime Cubero e seus irmãos. Isto passou-se em 1936-1937, quando Jaime Cubero teria 10, 11 anos. Este amigo espanhol, de nome Liberto, tornar-se-ia mais tarde cunhado de Jaime Cubero, quando casou com uma irmã gêmea de Jaime. Com a morte do pai de Jaime, que tinha apenas 33 anos, e sendo eles seis irmãos, a família separa-se e Jaime Cubero, mais dois irmãos, vai viver em São Paulo, Brasil, com a sua avó materna. Frequentou a escola apenas do 2 o ao 4 o ano, porque quando chegou a altura de entrar para o 1 o ano já não haviam vagas e a avó colocou-o no 2 o ano. Depois do 4 o ano de escolaridade e apenas com 11 anos foi trabalhar numa fábrica fazendo 11 horas por dia, e no fim do dia reunia-se com amigos, dentre os quais Liberto, para fazerem leituras conjuntas e comentarem tudo o que liam. A partir daí foram desenvolvendo esse hábito de ler e tudo comentar até que um dia, já adolescentes com 16, 17 anos, resolvem criar (sem contato nenhum com o movimento anarquista) o que pomposamente chamaram de “Centro Juvenil de Estudos Sociais”. Foi assim que tudo começou. É em 1945, depois da Segunda Guerra Mundial e com a queda de Getúlio Vargas, que o grupo de Jaime passa a receber outros grupos nos debates que faziam. Foi nesse contexto que num dos debates apareceu Edgar Leueronth, anarquista destacado, e a partir daí entraram em contato frequente com o Centro de Cultura Social, o qual passaram a integrar pouco depois, tendo-se por isso multiplicado e muito as suas atividades. Diz-nos ainda Jaime Cubero que
Logo após a queda da ditadura de Getúlio organizou-se a União Anarquista de São Paulo. Faziam-se conferências ao sábado. Comemorávamos datas, por exemplo, a da Revolução espanhola. O local do Centro de Cultura Social passou a ser ocupado também pelo movimento espanhol no exílio, o qual passou a participar bastante nas atividades do centro. Criamos mesmo dois grupos de teatro, um português e outro espanhol. Após a ditadura, afirma Jaime Cubero, fizeram congressos para reanimar a atividade do Centro de Cultura Social e para aumentar a participação operária. Num desses congressos, que foi muito divulgado na revista Cruzeiro , conseguiu-se uma entrevista com Roberto das Neves, português militante que era muito importante e muito conhecido no Brasil pelos seus livros e pela editora de livros anarquistas que os publicava, a Germinal. Articularam também várias atividades com as do Movimento do Rio de Janeiro. Logo a seguir à ditadura, havia uma série de pessoas, como Edgar Rodrigues, dentre muitos outros, que passaram a estar presentes nas nossas reuniões. Fazíamos várias reuniões em vários Estados de caráter eminentemente anarquista. Editamos um jornal no pós-ditadura, Relações Anarquistas , no Rio de Janeiro, vindo depois o Acção Directa . Fez também parte mais tarde do jornal A Plebe . Diz-nos Jaime Cubero que tinham uma atividade tremenda. Não havia descanso. Trabalhavam de segunda a segunda. Faziam a sua propaganda via teatro, jornais e comícios que convocavam para locais mais ou menos fechados, porque “nessa altura e ainda hoje, só se pode falar em local público pedindo autorização/alvará de ordem política e social. Na onda política do pós-ditadura, os anarquistas procuraram ocupar um espaço de destaque e conseguiram-no consideravelmente”. Na opinião de Jaime Cubero, o movimento anarquista foi um poderoso instrumento histórico no Brasil, chegou a ter proporções gigantescas. Todas as leis trabalhistas condensadas na legislação no pós-ditadura foram conquistas, práticas concretas dos anarquistas sempre em prol do movimento operário. Como exemplo disso vou falar de uma tese de doutoramento que foi defendida aqui há cerca de quatro meses e que era sobre a greve de 1917. A proporção dessa greve foi enorme. Após a morte de um operário espanhol chamado José Martinez, assassinado pela polícia, no seguimento do enterro dele foi aí que eclodiu o movimento. Chegaram a participar nessa greve mais de 200 mil pessoas quando a cidade pouco mais tinha que 400 mil. Logo, mais de metade da população da cidade envolveu-se na greve. Foi a maior greve geral da história do Brasil. Diz-nos Jaime Cubero que não foi apenas um fator que contribuiu para o refluxo do movimento anarquista, mas antes uma conjugação de fatores. O movimento anarquista não foi capaz de refletir sobre o que se estava a passar em nível mundial. Deixou-se ultrapassar pelos acontecimentos. Entre 1954 e 1964, Jaime Cubero trabalhou no jornal O Globo como jornalista. Foi demitido do jornal por ter apoiado uma greve que durou quatro dias, greve de solidariedade que o Sindicato dos Jornalistas resolveu fazer para apoiar a greve dos jornalistas gráficos.
Na reabertura do Centro de Cultura Social, em 1985, estiveram presentes muitos meios de comunicação, a TV, jornais e outros, os quais fizeram uma cobertura incrível à abertura do Centro e também uma série de entrevistas. O que produziram depois de muito importante foi um curso de anarquismo, a que assistiram mais de 50 pessoas, apesar dos custos de inscrição. A partir daí passaram a fazer cursos universitários de anarquismo. Terminamos assim de “ouvir a voz” de Jaime Cubero em direto da revista Utopia , em 1997, pouco antes de morrer, em maio de 1998, homem, de fato, de uma energia e vontade ímpares. 2.6. Acácio Tomás de Aquino na revista Utopia , n o 9, p. 34-41 1 o semestre 1999 Acácio Tomás de Aquino nasce em Lisboa, no bairro de Alcântara, a 9 de novembro de 1899 e aí morreu, a 30 de novembro de 1998, com 99 anos. Exerceu várias profissões: operário da construção civil, trabalhador da Câmara Municipal de Lisboa, de 1918 a 1922, e ferroviário, de 1926 até à sua prisão, em 1933. Foi militante anarcossindicalista da Confederação Geral do Trabalho, filiado nos Sindicatos dos Metalúrgicos, dos Trabalhadores do Município e da Construção Civil, entre 1919 e 1933. Foi, ainda, secretário da Federação dos Sindicatos da Construção Civil e da Confederação Geral do Trabalho. Foi colaborador da imprensa operária e sindical, nos jornais A Batalha e O Construtor . Membro do comitê da CGT organizador da greve geral de 18 de janeiro de 1934, foi preso a 11 de dezembro de 1933, sob acusação de ter entregue bombas a outro ativista na Estação do Rossio, não tendo, portanto, tomado parte nela. Foi condenado a 12 anos de degredo em prisão, pelo Tribunal Militar Especial, no dia 9 de março de 1934. A 8 de setembro, seguiu para Angra do Heroísmo, sendo transferido para o Tarrafal, Cabo Verde, a 23 de outubro de 1936. Teve um papel preponderante na Organização Libertária Prisional. Regressou a Portugal a 10 de novembro de 1949. Todavia, só alcançou a liberdade total a 22 de novembro de 1952. Depois do 25 de Abril de 1974, colabora com diversas organizações e jornais libertários, nomeadamente A Voz Anarquista , de Almada, e publica O Segredo das Prisões Atlânticas (Lisboa: A Regra do Jogo, 1978), livro sobre a sua experiência na prisão de Angra do Heroísmo e no Tarrafal e nas divergências entre os anarquistas e os comunistas, transcrevendo correspondência entre a Organização Comunista Prisional e a Organização Libertária Prisional, em que critica os comunistas, nomeadamente Bento Gonçalves, Secretário-Geral do Partido Comunista Português, entre outros, acusando-os de colaboracionismo. Colaborou no volume coletivo O 18 de Janeiro e Alguns Antecedentes (Lisboa: A Regra do Jogo, 1978). Como homem e como militante do ideal acrata, Acácio Tomás de Aquino foi alguém que importa salientar, quer no âmbito dos últimos momentos de resistência e da luta sindical movida pela federação Geral do Trabalho (CGT) contra a instauração do fascismo em Portugal, quer ainda na dinamização do jornal A Batalha após o 25 de Abril de 1974. No ano de 1987, aproveitando o contexto do centenário do anarquismo organizado em Portugal, José Maria Carvalho Ferreira (JMCF) e Torcato Sepúlveda (TS) entrevistaram Acácio
Tomás de Aquino, entrevista que foi transcrita na revista Utopia n o 9 de 1999. À pergunta qual terá sido o fator que mais o influenciou para ingressar no movimento sindical de tipo anarcossindicalista ou para as ideias especificamente anarquistas, Acácio Tomás de Aquino responde que, sendo os pais sócios da Voz do Operário, cedo se interessou pela leitura de tudo o que vinha no jornal da Voz do Operário, na maior parte dos casos, artigos revolucionários. Mais tarde, também o jornal A Greve lhe interessou, assim como todos os folhetos que eram lançados pela A Batalha . Conseguiu mesmo fazer uma biblioteca, de tal forma que um amigo ao vê-la o leva para a Juventude Sindicalista, com sede em Belém. Foi para ser secretário da Seção da Construção Civil por já ter a 4 a classe. Passado pouco tempo, planearam uma greve dos corticeiros, em 1922. Mas antes tinha havido uma cisão na CGT com a formação da Federação Maximalista, movimento liderado por Carlos Rates, federação que depois viria a dar origem ao Partido Comunista, em 1921. Surgiu também nesta altura o Sindicato dos Arsenalistas formado por muitas das ideias anarquistas e um outro Sindicato que também aderiu à Internacional Sindical Vermelha. Ainda segundo Acácio Tomás de Aquino, em 1925 e 1926 não é verdade que a CGT tivesse ficado parada no “deixa andar”, quando Gomes da Costa atacou, até porque a CGT ofereceu 20 companheiros para resistir ao Gomes da Costa no célebre 28 de maio, sendo o líder da resistência o Mendes Cabeçadas. Quando a ditadura salazarista começa a ganhar corpo, o papel da CGT no movimento de 7 de fevereiro de 1927 foi o de tentar deitar o Salazar abaixo, mas esta tentativa insurrecional não teve resultado. Entre 1927 e 1934, Salazar ordena, e a polícia cumpre, fechar o jornal A Batalha . Deitaram tudo abaixo e A Batalha ficou suspensa. Mas os sindicatos continuaram a sua ação clandestinamente, assim como a CGT. Entretanto, Salazar publica uma Portaria decretando a inserção dos Sindicatos no sistema corporativo. A CGT não aceitou essa Portaria. Acácio Tomás de Aquino nos diz que à exceção Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP), os anarquistas em Portugal, no mundo inteiro, aliás, tiveram sempre uma atividade muito importante em nível do sindicalismo, mas nunca tiveram uma organização específica capaz e tipicamente anarquista. O aparecimento da FARP, em 1926, é uma tentativa para se organizar algo de mais específico e não se ficar só no sindicalismo ou anarcossindicalismo. Acácio Tomás de Aquino esteve envolvido na FARP assim como o companheiro José Quintal, que foi o principal protagonista. Diz-nos ainda Acácio Tomás de Aquino que quando saiu do Tarrafal, em 1949, (esteve 16 anos preso) e chegou ao Continente nem assim ficou livre do regime salazarista e seus representantes na Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), porque Quando cheguei e o barco atracou, a PIDE disse-me logo: ‘o senhor amanhã tem de se apresentar na sede da PIDE.’ Na PIDE disseram-me que estava em liberdade condicional e que todos os meses tinha de lá ir apresentar-me. Disseram-me ainda para ter cautela e não lidar com pessoas subversivas e
ainda que tomasse cuidado durante os três anos de liberdade condicional, porque me podiam pôr uma casca de laranja debaixo dos pés. Essa casca apareceu mais tarde. É claro que eu convivia muito com os companheiros… Acácio Tomás de Aquino apenas em 1952 se vê livre efetivamente, terminada que é a sua liberdade condicional de três anos, anos em que o seu ativismo foi praticamente nulo por ter de se apresentar na PIDE todos os meses. Depois, envolveu-se de novo na venda do jornal A Batalha de forma clandestina, participou também no movimento cooperativista liderado por António Sérgio, do qual também participavam o Emídio Santana e o Moisés da Silva Ramos. Quando se dá o 25 de Abril de 1974, data em que tem 72 anos, ainda o encontramos a fazer a distribuição do jornal A Batalha pelas bancas de Lisboa. Para Acácio Tomás de Aquino, as perspectivas futuras sobre o anarquismo não são muito realistas, já que nos diz que o anarquismo só tem alguma hipótese no futuro se implantado em todo o mundo pelos trabalhadores. Se for apenas em Portugal, com meia dúzia de anarquistas, o movimento não tem qualquer hipótese. Só terá quando todos os trabalhadores do mundo forem capazes de fazer uma revolução social. 2.7. Roberto Freire na revista Utopia , n o 10, p. 67-78 2 o semestre 1999 Roberto Freire é entrevistado por José Maria Carvalho Ferreira (JMCF) em 1997, mas a entrevista só sairá transcrita na revista Utopia n o 10 no 2 o semestre de 1999. A primeira pergunta que é feita a Roberto Freire (1927-2008) por JMCF é que nos diga quais foram os principais aspectos que determinaram a posição crítica que veio a assumir na vida. Roberto Freire nos diz que para se tornar no ser que veio a ser teve de, em primeiro lugar, se livrar da sua formação burguesa e da obrigação de exercer medicina. Afirma que “em relação à política sempre a detestou desde o início da sua vida, porque durante a sua formação assistiu a duas ditaduras muito longas. A primeira, a de Getúlio Vargas, que durou 15 anos e depois a segunda dos militares, que durou outros 15 anos. Em 1997, Roberto Freire tem 70 anos e afirma que metade da sua vida foi vivida num quadro de ditaduras muito violentas. A do Getúlio foi muito mais violenta que a dos militares. O Brasil não tem memória da sua história, as coisas vão sendo esquecidas, mas é um fato que foram terríveis”. Roberto Freire nos diz que era um estudante do secundário quando começou a ter consciência da necessidade de liberdade quando a perdemos. Lembrase de não ter liberdade de ler, de participar nas coisas, de muitas correrias pelas ruas para fugir da polícia. As escolas então eram invadidas para prender um professor ou um aluno. Enquanto tudo isto se passava, em sua casa a vida burguesa decorria como se nada se passasse. Começou a crescer dentro de si um conflito resultante da visão que tinha do que devia ser a vida social e a vida de opulência e de riqueza que a família prosseguia. À data, sentia uma grande paixão pelo conhecimento, mas ainda não tinha despontado em si a capacidade crítica. Sofria a violência das ditaduras. Tinha raiva das polícias, do exército, do ditador, mas era algo acima das suas
forças. A consciência começou a ficar mais clara quando, depois de formado em medicina, Roberto Freire ganha uma bolsa da UNESCO e vai continuar os seus estudos de investigação no Collège de France, em Paris, escola de Claude Bernard. Fez investigação em condução nervosa. A aprendizagem em Paris foi para Roberto Freire maravilhosa, mas percebeu que o seu tempo era maior, que havia espaço para muitas outras coisas. Começou a frequentar o teatro e a fazer parte de muitas discussões sobre arte e cultura com várias pessoas, dentre as quais Sábato Magaldi, um grande estudioso de teatro e que foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Naquela altura ele estava a fazer cursos na Universidade Sorbonne sobre cultura teatral. Roberto Freire começa então a frequentar teatros e a enveredar pelo mundo da arte e da cultura, começando a perceber existir neste mundo uma forte crítica ao Estado e ao funcionamento da sociedade. Quando volta de Paris e casa, e tendo o seu pai falecido, não foi possível a Roberto Freire continuar a fazer investigação uma vez que tinha de trabalhar para sustentar duas famílias, a antiga e a nova. Foi uma vida muito dura. Teve de reaprender a clínica. Arranjou emprego como médico de fábricas. Foi um período em que conheceu de perto o proletariado e em que pôde entender a crise entre o capital e o trabalho. É ali que a teoria marxista começa a formar-se e a crítica social a tornar-se mais ativa. Pouco depois começou a fazer teatro e também a sentir uma grande necessidade de escrever. O pai tinha morrido e percebeu que tinha sido o pai que o havia bloqueado na criação literária e artística. Escreve então a primeira peça para o Teatro Arena, ao qual estava ligado em São Paulo, teatro que na sua opinião produziu uma revolução porque foi o primeiro no Brasil a introduzir a questão do operariado, o primeiro a colocar o operário como protagonista, o que não tinha acontecido até aí. “A primeira peça que escrevi e levei à cena foi Quarto de Empregada , em que coloco em cena duas empregadas domésticas como atrizes principais.” Todas as manhãs Roberto Freire trabalhava como médico nas fábricas enfrentando os problemas do proletariado. Até que um dia lhe chega às mãos um livro de Bakunine, isto em finais dos anos 1950/início dos anos 1960 do século XX. Quando começa a ler Bakunine, percebe que o seu socialismo era anarquista e que não era marxista, porque Bakunine combatia os estados autoritários. A partir de então inicia o seu estudo do anarquismo e começa a frequentar o Centro de Cultura Social, onde faz amizades com anarquistas. A partir de determinada altura, em 1962, Roberto Freire deixa a psicanálise por constatar que esta é apenas para clientes ricose começa a fazer críticas ao elitismo da psicanálise. Rompe com a psicanálise e vai procurar trabalho como jornalista, tendo até criado o jornal Brasil Urgente . Foi um jornal muito forte, muito corajoso no início dos anos 1960. Roberto Freire deixa de ser médico e psicanalista porque “Queria ir para a ação, não queria ser um espectador, queria ser um lutador, um jornalista. Escrevi um romance difícil de ser publicado, chama-se Cléo e Daniel , que acabaria por ser publicado em 1966, e foi o ponto de partida para o resto da minha vida. Mas voltando um pouco atrás. O jornal que eu tinha feito era
muito violento, era contra a organização política do Estado Denunciávamos tudo isso no jornal quando veio o golpe militar de 1964”. Quando se dá o golpe militar, mais cedo do que se pensava, as primeiras coisas que fizeram foi invadir e destruir o jornal, e Roberto Freire foi preso e os seus colegas também. Começou uma perseguição muito grande às pessoas que militavam numa série de organizações não apenas anarquistas como também comunistas. A vida então foi terrível, porque enquanto na primeira ditadura as ações eram apenas de rua, agora não, consideravam como inimigo todos os que reagiam contra a ditadura, designando todos como comunistas. Roberto Freire nos diz que nesses anos foi preso e solto várias vezes, porque eles pensavam que quando o soltassem ele iria logo ter com os companheiros. Acrescenta que passou por 12 prisões e que foi alvo de todo o tipo de torturas, de que é exemplo a tortura designada de “telefonemas”, a qual nos descreve da seguinte forma “Eu passei (…) por quase todos os tipos de tortura. Mas há uma tortura que me marcou bastante e viria a deixar lesões para toda a vida, foram os chamados ‘telefonemas’, eram as pancadas que eles nos davam nos dois ouvidos em simultâneo com as duas mãos. Faziam isso 10 a 12 vezes ao dia e era horrível. Era uma dor lancinante, caíamos logo. Devido a isso, as minhas duas retinas ficaram deslocadas anos a fio. Dez anos depois viriam mesmo a cair. Uma vista já não vê e a outra está muito mal.” Apesar de tudo o que passou, afirma: “As torturas foram fáceis de enfrentar, foi uma luta muito grande, longe da minha família, não sabendo nada deles nem eles de mim. Mas havia todo um heroísmo, porque acreditávamos que estávamos a lutar pela liberdade, contra a ditadura. Eu produzi muito nessa época e aprofundei muito os meus conhecimentos, a minha cultura libertária foi sendo feita nessas prisões, nesses contatos e acabou por ser a minha arma também.” Diz-nos depois que nesse período de ditadura escreveu muito. O primeiro livro que saiu foi o Cléo e Daniel , que teve um sucesso incrível, uma espécie de Romeu e Julieta , em que afirmava que o amor era impossível no Brasil, livro que mexeu muito com a juventude e que em 1997 vendia tanto como em 1966, quando saiu. Depois sai o livro Utopia e Paixão , que Roberto Freire escreve quando caem as duas retinas e estava cego no hospital. Roberto Freire, nessa altura, conversava com um amigo, que gravava as conversas sem ele saber. Mais tarde, quando esse amigo lhe dá as fitas é a partir delas que escreve esse segundo livro, no qual inicia o seu trabalho de comunicação libertária anarquista e que é publicado no início dos anos 1970 do século XX. Mas antes da publicação de Utopia e Paixão escreveu outro livro com o título Viva eu, viva tu, viva o rabo de tatu , em que explicava para a população o que era o anarquismo . Foi a partir deste livro que Roberto Freire rompeu com todos os companheiros marxistas. A partir do livro Utopia e Paixão todos os seus livros passam a ser anarquistas, sobre o socialismo libertário. Quando JMCF pergunta a Roberto Freire quando é que a SOMA aparece no Brasil, Roberto Freire nos diz que constituiu um grupo de terapia, designado SOMA e que é “(…) uma técnica derivada da obra de Wilhelm Reich. É uma
terapia que acredita que a neurose vem de fora para dentro. Ou seja, nós somos neurotizados pela sociedade, na luta de poderes que se estabelece entre nós e as pessoas da nossa família, as pessoas da nossa escola, da sociedade, numa luta ideológica permanente. O desejo de liberdade e autonomia é essencial ao ser humano. Mas para manter o controle social autoritário, as pessoas são castradas nesse desejo de liberdade, de autonomia. Nessa luta os que perdem ficam neuróticos. Comecei então a fazer terapia grupal”. Mas Roberto Freire não seguiria apenas os ensinamentos de Wilhelm Reich, o qual afirmava que “a neurose é um produto social, então para uma pessoa se libertar disso tem de ser dentro de um grupo social. A relação individual é insuficiente para se perceber o fenômeno social da gênese da neurose”, mas também os de Frederic Perls, que acreditava que quem não souber organizar as Gestalts psicológicas à semelhança das físicas não consegue equilibrar-se. A Gestalt , segundo os físicos, é um estado de atenção seletiva/ focalizada. Um neurótico é uma pessoa que perde o controle das Gestalts , como, por exemplo, alguém que precisa trabalhar para se sustentar e não trabalha. Depois, Roberto Freire passa a estudar a antipsiquiatria, algo descoberto por Gregory Bateson, antropólogo norte-americano que fez pesquisas extraordinárias e que viriam mais tarde a ser disseminadas. Várias pessoas em Inglaterra e em Itália desenvolveram a antipsiquiatria por terem chegado à conclusão de que a psiquiatria era uma farsa. Demonstraram que a esquizofrenia pode ser curada, tornando-se antipsiquiatras, já que os psiquiatras não tratam dos esquizofrênicos, apenas os mantêm internados com violência, e fazem-nos sofrer com múltiplos tratamentos. Mais tarde, Roberto Freire descobre ainda uma quarta técnica, a massagem bioenergética, que consiste numa série de exercícios bioenergéticos (cerca de trinta) para mobilizarem a energia que está estagnada. A “capoeira” de Angola, descobre Roberto Freire, é fundamental, a luta de capoeira é uma massagem bioenergética extraordinária, porque confere a uma pessoa aptidão para qualquer espécie de luta, física e psicológica. Depois, foi apenas acrescentar a todas essas técnicas que compunham a SOMA a consciência política. Foi uma luta terrível para implementar a SOMA. Uma terapia anarquista, porque era bem diferente a prática da SOMA face à psiquiatria e à psicanálise. Inicia-se uma campanha difamatória realizada por terapeutas analistas. Existem já vários grupos em diversos estados do Brasil. Por considerar que teria de explicar melhor em que consistia a SOMA, Roberto Freire escreveu três volumes sobre a mesma. O primeiro volume intitulou de A Alma e o Corpo , no qual se expõe toda a fundamentação científica da SOMA; o segundo volume tem o título de A Arma e o Corpo e aborda as técnicas de aplicação das sessões de SOMA, explica como se pratica a SOMA; e o terceiro volume, com o título de Corpo a Corpo , constitui uma síntese dos outros dois. Diz ainda Roberto Freire que criaram o que designaram de “Casa da SOMA”, onde 13 grupos praticavam capoeira ininterruptamente ao longo do dia e onde também produziam a revista/ boletim Tesão (sem periodicidade certa). Na “Casa da Soma” faziam também
muitos debates, conferências e inclusive um curso permanente, “Pedagogia Libertária”. E para se dedicar à SOMA e à militância política, Roberto Freire teve de deixar sua grande paixão, que era o jornalismo. Escreveu alguns roteiros para a telenovela Malu Mulher , mas considera que a televisão impede violentamente a comunicação. Em 1997 e com 70 anos, começando a sentir-se um pouco cansado, deixa gradualmente a SOMA e com uns amigos criam uma revista onde “expomos em liberdade o pensamento libertário. Foram seis meses duros, em que nos financiamos e arriscamos e a revista Caros Amigos saiu. E já saíram três números”. Roberto Freire, anarquista de vida preenchida mesmo depois de sofrer fisicamente muitos dissabores, jamais deixou de incentivar as ideias e práticas da anarquia e da fraternidade. 2.8. Jacinto Cimazo e o Anarquismo na Argentina na revista Utopia , n o 11/12, p. 55-64, 2000/2001 Jacinto Cimazo, também conhecido como Jacobo Maguid, é entrevistado por JMCF na sede da Federação Libertária da Argentina (FLA) a 19 de junho de 1997 (com 90 anos – nasce em outubro de 1907), entrevista que é transcrita na revista Utopia n o 11/12 no final de 2001. Jacinto Cimazo viria a morrer pouco depois, sendo a entrevista publicada na Utopia porque, na visão de JMCF, Em primeiro lugar, a sua militância no seio das organizações libertárias argentinas, como foram os casos da Federação Anarco-Comunista Argentina (FACA), da FLA, do Jornal La Protesta e da revista Reconstruir . Toda a história do século XX do anarquismo na Argentina não poderá ser feita sem ter em conta a influência dessas realidades. Em segundo lugar, a sua intervenção no contexto da Revolução Espanhola de 1936-1939 e, particularmente, as suas posições e funções no órgão da (Federação Anarquista Ibérica (FAI), Tierra Y Libertad, durante esse período histórico. Em terceiro lugar, o seu papel como intelectual, na reconstituição da memória histórica do anarquismo, nomeadamente na Argentina e em Espanha. E quando se pergunta a Jacinto Cimazo/Jacobo Maguid quais foram as razões para que tivesse abraçado as ideias anarquistas, nos responde que quando estava a estudar engenharia na Universidade de la Plata nos anos 1926/27 e havendo uma campanha contra a situação política do país, como já tinha atividade estudantil, rapidamente se integrou no movimento estudantil que se opunha ao regime vigente. Por outro lado, nessa altura, tendo tido conhecimento pessoal com uma série de anarquistas já conhecidos como o José Maria Lunazzi, o Rafael Grinfeld, Carlos Bianchi e tantos outros, eles influenciaram de alguma forma a sua identificação definitiva com o movimento libertário na Argentina. Os debates que se verificavam punham em destaque uma série de divergências que eram, por vezes, muito intensas, o que suscitou a sua curiosidade pelo estudo de autores para comparar os seus conteúdos e as suas formas. Nessa ocasião, o grupo liberal e socialista tinha muita influência no meio estudantil, mas começou a interessar-se pelos anarquistas e estudou muitos autores. Quando chegamos a 1930, a 6 de setembro instala-se a ditadura militar do
general Uriburu, que desde logo fecha o periódico Palabras Rebeldes , do qual Jacobo fazia parte da direção, e que tinha um papel muito importante na defesa e difusão das ideias anarquistas, envolvendo mais de 100 companheiros por todo o país. Em finais de 1931, Jacobo Maguid assiste em casa de Diego Abad Santillán a reuniões para realizar um pequeno congresso anarquista. Tinham reuniões também porque iriam ter eleição para um novo director de La Protesta , mas o congresso visava “reviver a história desgraçada da anarquia na Argentina, que tinha separado companheiros anarquistas e que estavam fora do país e fora de La Protesta ”. Tentaram fazer reuniões para “concertar ações junto de outros companheiros que estavam em conflito, a fim de superar as contradições existentes.” Esse congresso viria a ter muita importância para a aquisição, mais tarde, da liberdade de expressão. Em fevereiro de 1932, um novo Presidente é eleito na Argentina e ele decreta o fim do estado de sítio e a reabertura de uma série de atividades, dentre as quais as do La Protesta . O então diretor do periódico, Diego Abad Santillán, convida Jacobo para ser colaborador no La Protesta . A partir dessa altura deixa de estudar e passa a trabalhar como redator no periódico em conjunto com outros companheiros. Envolve-se, à data, numa grande campanha popular por toda a Argentina para libertar antigos companheiros que estão presos. Formaram-se mais de 80 comitês no país para libertá-los. Vivendo na província de Santa Fé na Argentina, Jacobo Maguid assiste depois a um congresso, realizado em La Plata em outubro de 1935, onde é criada a organização anarquista Federação Anarco-Comunista da Argentina (FACA). Nesse congresso, Jacobo toma contato com muitos companheiros, incluindo um do jornal francês Le Libertaire . Quando chegou a Barcelona, em 24 de novembro de 1936, já iniciada a Guerra Civil, propuseram-lhe trabalhar como redator do jornal Tierra y Libertad , que pertencia à Federação Anarquista Ibérica (FAI), o que, claro, aceitou. Permaneceu no jornal Tierra y Libertad de dezembro de 1936 até outubro de 1938, apesar de no semanário organizado pela FAI da Catalunha ter ficado muito mais tempo. Lembre-se de que como diário da FAI saía o jornal Solidaridad Obrera . Durante esse período muito conturbado que foi o da Guerra Civil Espanhola, em que se verificaram muitas contradições e conflitos de vários níveis, mas também entre companheiros, JMCF pergunta a Jacobo Maguid qual foi a posição do periódico Tierra y Libertad em relação à entrada de anarquistas para ministros no governo de Espanha revolucionária e para o governo regional da Catalunha. Jacobo Maguid refere em primeiro lugar que o jornal Tierra y Libertad não era um jornal independente porque pertencia à FAI. Registraram-se, desde 1936, discussões muito acaloradas sobre a questão levantada, não apenas em relação à participação no governo da Catalunha, com ministros da CNT e da FAI, mas também sobre a militarização das milícias. As milícias populares, que durante três ou quatro meses atuaram no processo revolucionário da Guerra Civil Espanhola foram muito importantes, na opinião de Jacobo Maguid, porque a sua ação assombrou as pessoas de Barcelona, o grupo socialista, não apenas o que estava a emergir no seio da CNT, mas também pelo que estava a acontecer na frente de guerra. Em Madrid também se formaram milícias. No final de julho de 1936, foram
criadas as 25 a , 26 a e a 28 a colunas constituídas por milícias populares, na sua grande maioria com militantes da CNT. A 1 a coluna era comandada por Buenaventura Durruti. Essas milícias foram as que enfrentaram as forças fascistas de Franco na frente de Aragão. No dia 26 de janeiro de 1939 a guerra termina e, instaurando-se o fascismo de Franco, Jacobo Maguid e o companheiro Jacobo Prince, assim como tantos outros, rumam à França, procurando refúgio junto de outros companheiros que lá se encontravam. Foram de carro e diz Jacobo Maguid que viram coisas incríveis, tanta e tanta gente a fugir, tantas mulheres com filhos ao colo, tantos homens e mulheres a andar a pé, de bicicleta e de carro, muitos órfãos de guerra, muitos extenuados fisicamente. Quando chegaram a Gerona, pequena cidade que faz fronteira com França, onde se fez um comité da FAI, estavam todos seguros de que a França seria democrática, seria antifascista. Em Marselha quem iria pensar na existência de campos de concentração, para onde os levariam mais tarde? Acrescenta ainda Jacobo Maguid que antes de fugir para França lhe tinham pedido para levar para a Argentina os arquivos da FAI/CNT para não serem destruídos pelo regime fascista de Franco. Em 1939, chega de novo à Argentina e em 1941 volta outra vez para Santa Fé, onde tinha família, e integrou-se na organização libertária, retomando a profissão de engenheiro civil. Muitos dos libertários da FAI da Catalunha foram para a Argentina, mas outros ficaram em França e outros ainda emigraram para o México. Jacobo Maguid continuou a ter relações com muitos companheiros, sobretudo com Diego Abad Santillán, de quem continua próximo e amigo. A partir de 1954, integra a FLA, que resultou da extinção formal da FACA, e passa a nela trabalhar de manhã à noite, compilando uma Enciclopédia que será constituída por cinco tomos. Sobre as opiniões que muitos passaram a emitir sobre Diego Abad Santillán, dizendo que pediu favores a um ministro de Espanha para voltar a este país e que a embaixada espanhola lhe teria pago uma viagem ao México e outros “mexericos”, Jacobo Maguid diz que é tudo falso porque as opiniões que Santillán emite saem todas da sua própria cabeça, porque nunca se filiou em nenhum partido político. O jornal La Protesta , ainda antes da Guerra Civil Espanhola, já tinha perdido interesse e acabou por desaparecer. Em 1954, a FACA relança-se na Argentina com uma nova sigla, FLA (Federação Libertária da Argentina), e esta lança um novo periódico, Ación Libertaria , que teve atividade editorial até 1971. Também durante muitos anos editaram a revista Obrera , articulada com a ação libertária oficial, contanos Jacobo Maguid. A partir de 1976, e com a instauração da ditadura de Videla, nos diz Jacobo Maguid que foi suspensa a publicação da revista Reconstruir , sendo desenvolvidas apenas atividades passivas sem violência, como conferências e eventos culturais, e emissão de alguns documentos, como “As cartas da Argentina”, para o exterior. A ditadura terminaria em 1982/83 e voltariam de novo à atividade libertária intensa na Argentina. Surge depois o periódico El Libertario como órgão da FLA, com saídas irregulares, e criaram-se as edições Reconstruir , com autores anarquistas importantes.
2.9. José Maria Nunes e o Cinema de Arte e Ensaio na revista Utopia , n o 29/30, p. 73-78, 2012 José Maria Nunes (1930-2010) é entrevistado por JMCF no âmbito da realização de um ciclo de cinema a ele dedicado realizado em Portugal, entre 9 e 14 de janeiro de 2006. Foi gravada uma entrevista na qual nos fala das suas ideias sobre cinema de arte, e só agora, no último número da revista Utopia (número duplo 29/20 em 2012) editada em formato papel, se conseguiu transcrevê-la na íntegra, algum tempo depois da sua morte, em 23 de março de 2010. Sobre o seu percurso até 1957, ano da realização do seu primeiro filme, José Maria Nunes nos diz que em 1950 começou a trabalhar como assistente guionista, em Barcelona, no filme Rostro ao mar . O produtor desse filme era dono de um restaurante e capitão de um navio. Depois, em 1951, como assistente de realização, tendo trabalhado com Henrique Gomes. A partir dos 22 anos, em 1952, como guionista chefe durante dois anos, vivendo com os seus pais numa barraca feita de tijolo. A relação com o mundo exterior era escassa. Havia um ambiente antifascista moderado, pois estavam proibidas as manifestações. Enquanto já trabalhava como assistente de realização começou a escrever o guião do seu próprio filme Mañana e aos domingos, entre outras filmagens, iniciou as gravações das cenas do Palhaço, desse filme. O produtor Henrique Esteban tinha uma produtora de filmes, a Este Filme, e uma distribuidora, a Mundial Filmes. Mostrou-lhe as cenas filmadas do Palhaço e o guião do filme Mañana e ele deu a José Maria Nunes um milhão de pesetas para ele começar a rodagem do seu filme. Foi assim que começou como realizador de cinema, depois de ter colaborado em 27 filmes. O seu primeiro filme era quase familiar, nos conta José Maria Nunes, porque Foi assim que comecei como realizador… depois de ter colaborado em 27 filmes. Os atores eram: José Maria Rodero, que já morreu, era um grande ator de teatro, é o narrador de Mañana ; um ator inglês que conhecera no último filme em que trabalhara; o Palhaço era meu amigo Carlos Otero, que era um grande amigo. O Diretor de Produção era o realizador que fez o primeiro filme, Catalão . O meu Assistente tinha trabalhado comigo como Guionista quando eu era Assistente de Realização. Era quase um filme familiar! E acrescenta que sendo o filme muito pouco comercial a sua distribuição não foi brilhante, razão por que sentiu muitas dificuldades para realizar outro filme. Entre 1960 e 1966, José Maria Nunes fez traduções, dobragens, adaptações e até chegou a fazer pequenos papeis. Antes de 1966 escreveu alguns guiões que foram proibidos pelo regime fascista, como Noitera , que nunca conseguiu realizar, tendo apresentado o guião cinco vezes. A censura ainda proibiria o guião do filme La chica dos picos pardos , os picos pardos (tecidos com bolinhas) eram o sinal de que as raparigas eram prostitutas, na época de Carlos III. Também o guião do filme Piedras é censurado, uma lenda sobre uma povoação cujo caminho para lá se chegar era de pedra, não havia acesso por terra ou mar.
Em 1966 e depois do filme Noitera ter sido de novo recusado, avisou a atriz Nuria de que não era possível fazer o filme e ela pediu a José Maria Nunes que fizesse o guião de um filme em três dias, o que ele fez e apresentou-lhe o guião de Noche de Vino Tinto . Esse guião foi aceito em Madri e o Estado lhe pagou um milhão de pesetas para realizar o filme. Depois, faz outro guião para o filme Biotaxia , para a atriz Nuria, que não pôde entrar na produção anterior, Noche de Vino Tinto , filme que foi o primeiro de Arte e Ensaio que se fez em Espanha. Foi criada uma Associação para promover esse gênero de cinema de Arte e Ensaio, e passou a ter exibição garantida em cada cidade que tivesse pelo menos 50.000 habitantes. O filme Biotaxia também foi considerado do gênero Arte e Ensaio e também recebeu um milhão de pesetas para o realizar. Esse não teria tanto êxito como o anterior. A escola de Barcelona, com os filmes de José Maria Nunes, teve início em fins de 1967. Sobre o ano de 1968 José Maria Nunes pensa em fazer um filme a partir de todas as notícias que saíram durante esse ano. Chamou-lhe de Sexperiencias e levou-o ele próprio à censura para ser aprovado, o que, após algumas questões levantadas, conseguiu, mas desde que só passasse em Cineclubes e Festivais. Apesar disso, quando passou num festival em Barcelona, proibiram-no e quiseram denunciar José Maria Nunes. Tentou dar ao filme uma nacionalidade estrangeira, luxemburguesa, porque tinha lá uma pessoa conhecida. Tentou levar o filme ao Luxemburgo, mas apenas conseguiu chegar à França com uns amigos. O filme acabou por passar em Paris, mas não foi possível comercializá-lo. Regressaria de Paris para Espanha de novo em 1969. A partir de 1970, José Maria Nunes trabalha para a TV da Catalunha, fazendo legendagens. Foi, entretanto, várias vezes a Paris para adaptar ao cinema um livro muito transcendente, O Retorno das Bruxas . Das idas a Paris, José Maria Nunes constata que as ideias dos existencialistas se adaptam melhor ao cinema do que as dos situacionistas. Nos anos 1970 do século XX realiza vários filmes, como En Secreto Amor e Autopista A-2-7 , este escrito por José Maria Nunes e com uma forte intenção crítica. No final deste filme, nos diz José Maria Nunes, o filho subnormal é o que fica regente da família, pois após a morte do pai é o filho mais velho que ocupará a sua cadeira. Quis colocar no filme a legenda “Por isso desde então há muitas coletividades que são governadas por ‘subnormais’”, mas não deixaram. Ainda realizou Gritos a ritmo fuerte , relativamente ao qual a distribuidora lhe pagou três mil e tal pesetas. Também o filme Iconockaut foi realizado por José Maria Nunes e pago por uma galeria de Arte. À pergunta colocada por JMCF a José Maria Nunes sobre qual teria sido a sua relação com o “anarquismo organizado” em Barcelona, respondeu que teve as primeiras impressões sobre anarquismo a partir de leituras de alguns autores, como Victor Hugo e outros. Um dia, um crítico de televisão teve a ideia de fazerem um filme sobre as cooperativas agrárias da Catalunha e então foram falar com o secretariado da CNT. Ali disseram que era melhor falar com o Abel Paz. Entretanto, apesar de ter criado, com outros, um grupo que se encontrava nas tabernas, fazia reuniões, José Maria Nunes teve a pouco e pouco a consciência de que não era
anarcossindicalista. Em vários encontros passou a conhecer diversos anarcossindicalistas e descobriu a “sensação anarquista”, mas não a de ser “anarcossindicalista”, pois no anarquismo não se pode criar um sindicato, que é sempre uma combinação com o empresarial. Segundo José Maria Nunes, um anarquista não pode ser um sindicalista, apesar de reconhecer e admirar o que fez a CNT, a morte dos seus homens, a luta e as reivindicações sociais. Declara ter vivido com eles experiências muito importantes. José Maria Nunes diz depois que os seus filmes têm sempre críticas à sociedade. Por exemplo, o filme Sexperiencias é, na sua opinião, a crônica mais importante do que se fez em 1968. Alega que se tivesse feito mais filmes eles teriam certamente mais a sensibilidade anarquista de forma implícita do que explícita. Mais tarde, após 1984, fazer filmes ficou muito difícil, porque o cinema passou a ser controlado por grandes empresas que estavam focadas em filmes comerciais e não no tipo de cinema que ele fazia. E os cinemas passaram a ser também dominados por grandes empresas internacionais. Os seus filmes que foram sido censurados no tempo da ditadura, quando a ditadura terminou, a partir de 1984, não puderam ser passados porque depois de Franco já não serviam de exemplo. Porque a civilização havia mudado. Os guiões eram críticos para a época e não para depois. Sobre o avanço das novas tecnologias e questionado sobre qual poderá ser a hipótese de a sensibilidade anarquista sobreviver como tentativa de superação de tudo o que poderá resultar das mesmas, “ouçamos a voz” de José Maria Nunes em direto: É muito difícil, pois a utilização desses meios por alguém independente será obstruída… a máquina do poder tenta sempre anular a nossa manifestação autêntica. Eu tenho sempre a possibilidade de ir fazendo filmes mesmo que reúnam só cinquenta pessoas. O mais difícil é a decisão de fazer, de continuar a fazer cinema, mas vou fazê-lo qualquer que seja o resultado. Na sensibilidade anarquista pensar já é um resultado. Eu dedico muito tempo da minha vida a pensar. Por fim, José Maria Nunes nos diz que ficou entusiasmado por ter conseguido expressar a sua sensibilidade anarquista como criador cinematográfico, como criador humano, “(…) foi um exercício muito belo, muito criativo, e julgo que foi necessário e no momento oportuno para mim, porque todos os meus filmes eram para chegar ao resto do mundo para que eu estivesse aqui e dissesse tudo isto. Disso não tenho a menor dúvida!” José Maria Nunes viria a morrer a 23 de março de 2010. 1. Conclusões Retidas as “vozes em direto” de nove anarquistas que falaram com José Maria Carvalho Ferreira no decorrer dos 17 anos em que a revista Utopia teve existência em formato papel, e onde essas “vozes” foram passadas a escrito em vários números da revista, não há dúvidas de que todos esses anarquistas o foram de ideia e prática e até o final das suas vidas.
É curioso constatar que todos os entrevistados e uma entrevistada se posicionam no lado humano da vida, no lado sensível e fraterno da vida. Também e sobretudo no lado “das letras, das humanidades” e menos no das ciências exatas. A criatividade é algo comum a todos os que foram “ouvidos em direto” pela Utopia . Fosse na edição de revistas e jornais, fosse escrevendo livros sobre pedagogia libertária e sobre o anarquismo, fosse na elaboração de um programa de uma terapia anarquista – SOMA – fosse no cinema, fosse na realização de atividades sociais, de reuniões, congressos e mesmo na luta direta quando as ditaduras reprimiam e oprimiam tudo e todos, esses homens e essa mulher foram pessoas incansáveis na disseminação e prática das ideias anarquistas e libertárias. Como um deles disse, “a luta só terminará quando os trabalhadores de todo o mundo fizerem a revolução social” , quando todos se aperceberem que a emancipação social é possível e que confere maior bem-estar que a opressão de ideias e práticas fraternas e humanas. Comum a todas as “vozes ouvidas” foram também os muitos momentos difíceis, de fuga, de prisão, de exílio, de perseguições, de torturas, de, enfim, muitas dificuldades para difundir e praticar a anarquia. Quase todos sem exceção viveram em tempos de ditadura, tempos de opressão e repressão, mas tempos que os fortaleceriam para continuarem as ideias e as práticas da anarquia. 1 José Maria Carvalho Ferreira – Professor Catedrático do ISEG da UL, um dos Fundadores do SOCIUS, e fundador com alguns amigos de uma revista anarquista de cultura e intervenção em Portugal com a designação de Utopia. 2 A revista Utopia , criada em abril de 1995, perduraria até dezembro de 2012, sendo ao longo de quase vinte anos publicados 30 números. A Utopia terminaria no formato papel em 2012, depois de várias vicissitudes financeiras e porque o formato papel deixou de ser “desejado” por muitos dos subscritores da revista, continuando disponível para todos os que a ela queiram aceder em: < https://colectivolibertarioevora.wordpress.com/ 2016/08/30/coleccao-integral-da-revista-utopia-nos-1-a-30-disponivel-na-web />. 13 ANTÓNIO PINTO QUARTIN (1887-1970): IDEÁRIO E VIDA ¹ Paulo Eduardo Guimarães 1. Introdução Em 1959, Alexandre Vieira (1880-1973), operário tipógrafo e figura cimeira do sindicalismo revolucionário português, publicou, em edição de autor, Figuras Gradas do Movimento Social Português , obra que reunia um
conjunto de notas biográficas de outros militantes sociais que tinham tido uma ação relevante no movimento operário português durante o primeiro quartel do século XX. Numa altura em que o regime ditatorial parecia eternizar-se e em que a memória daquele período se esvanecia, Vieira dava assim visibilidade, já na fase final da vida, a indivíduos que tinham sido considerados perigosos pelos vários poderes instituídos (monarquia, república, ditadura) por criticarem e combaterem a forma como estava constituída a sociedade em que viviam. A obra, que o seu autor reconhecia incompleta logo no seu introito, referia, entre as figuras de relevo para a história do movimento, que ela não incluía os jornalistas Pinto Quartin, Jaime Brasil, Julião Quintinha, Artur Portela, o escritor Manuel Ribeiro, os doutores César Porto (pedagogo) e Aurélio Quintanilha (biólogo) e o pintor Cristiano de Carvalho. A galeria dos homenageados pela sua grandeza de alma, solidariedade e ação pública, incluía não apenas tipógrafos, litógrafos, revisores, fotógrafos e outros operários gráficos como ele, ou outros homens de ofício (pedreiros, ferroviários, caldeireiros, serralheiros, sapateiros) mas também notários, publicistas, professores, bibliotecários, pedagogos, advogados, jornalistas, guarda-livros. O conjunto desafiava imagens estereotipadas sobre o sindicalismo revolucionário e o anarquismo mostrando que os atores dessa corrente do movimento operário incluíam, a par dos trabalhadores de ofício, outras figuras intelectualmente relevantes. O movimento operário não seria, por isso mesmo, exclusivamente proletário: um movimento de massas trabalhadoras nos quais os ideais de emancipação humana cresceriam com as máquinas modernas e com o fumo das cidades industriais. Pinto Quartin pertence a esse pequeno grupo de militantes de origem burguesa que, como outros jovens do seu tempo, abraça o anarquismo nos meios universitários de Coimbra durante a crise do regime monárquico constitucional, envolvendo-se depois na divulgação desse ideário através da imprensa, dos seus valores e propostas para a organização social. Ele foi durante algum tempo um “jornalista operário” (como ele próprio se definiria) que atuou na organização e mobilização de trabalhadores através da palavra impressa. A história de vida de Pinto Quartin pode dividir-se em quatro fases distintas: a primeira infância passada no Brasil; depois, a juventude, fase revolucionária marcada pela ruptura com a vida acadêmica, pela sua ação como publicista do anarquismo e sindicalista; a terceira, marcada pela sua experiência colonial em Angola como empregado bancário e jornalista; e a última, em que regressa ao jornalismo na grande imprensa burguesa e participa nos movimentos de oposição legal ao regime. Ora, se a segunda fase tem sido aquela em que a sua ação tem sido mais sinalizada na multidão de textos acadêmicos em Portugal e no Brasil sobre o movimento operário e o anarquismo, sobre as duas últimas poucas referências se encontram. Este texto visa, pois, identificar as escolhas e o ideário que definiram o seu percurso de vida como anarquista. 1. Mocidade, vivei! O caminho para o anarquismo (1903-1907)
António Tomás Pinto Quartin teve uma origem social burguesa. Nasceu “naquela região da terra a que chamam Brasil”, no bairro imperial de São Cristóvão, no Rio de Janeiro, a 15 de janeiro de 1887, e era filho de Brás Leão Soares Quartin (Viana do Castelo, 1856-1899) e sua mulher Guilhermina Augusta Pinto de Castro, emigrantes oriundos do Minho que teriam prosperado no outro lado do Atlântico. Recebeu o nome de batismo de seu padrinho, o primo-irmão de seu pai, António Tomás Quartin (1854-1923), um brasileiro de ascendência italiana, nascido em Cantagalo, pequeno município do Rio de Janeiro, que enriquecera com o comércio, sendo agraciado com o título de Barão de Quartin como resultado da sua atividade notável como capitalista e na política. Membro da elite lusobrasileira capitalista dos finais do século XX, o seu familiar era proprietário em Lisboa do edifício distinto sito na rua Alexandre Herculano, 25-25A, galardoado com prémio Valmor em 1911. Teve duas irmãs, Carmen e Orquídea, sobre as quais pouco sabemos. A sua formação faz-se entre os 17 e os 20 anos, período de vida turbulento e agitado em que vive só, liberto da rigorosa vigilância da família, dispondo das mesadas avultadas que lhe envia a família. Lança-se então “impetuosamente na orgia”, vive “noites de estúrdia passadas ao luar, ceias entre estalar de garrafas de Champagne e gargalhadas, carícias e beijos, serenatas no rio com sentimentais cantadeiras do fado”. Nesses anos em que percorreu Évora, Funchal e Coimbra como estudante, frequentava com gosto meios burgueses e proletários, visita palácios e pardieiros, tabernas, restaurantes e cafés, “lupanares desde os mais abjetos aos mais luxuosos”. Fala com aristocratas, capitalistas, operários e vagabundos, bêbados e prostitutas, inquirindo estes sobre os seus problemas e histórias de vida. “Em volta de mim”, escreve ele, “vi muita miséria, muita fome, muita corrupção, muito desespero” (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-567). Atormenta-o uma sociedade que permitia o trabalho infantil e a prostituição, destino fácil para crianças pobres e mulheres desafortunadas nos seus amores. Atormenta-o a imoralidade da desigualdade social. Na Universidade de Coimbra, conhece os anarquistas Campos Lima, “um antipático, de feições duras, cara e atitude revolucionária” e António Gomes da Silva, uma figura com uma postura distinta. É com este que convive, percorrendo cafés e tascas onde, através de discursos belos, apelava à abstinência ao vinho, ao horror do jogo e à revolução social perante um público cativado. Acabavam assim por “convencer o tasqueiro a dar-lhes vinho e charutos. O Martins da Adega dos Frades e outros apreciavam-no muito”, recorda (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-567). Este oferece-lhe A Moral Anarquista , de Pedro Kropotkine, que devora numa noite, como uma revelação. Compreende então “a superioridade da moral anarquista sobre a moral burguesa” (GONÇALVES, 2007). Dali lhe nasceu o apetite de conhecer mais alguma coisa. Aos 20 anos, faz a sua profissão de fé anarquista quando, já vivendo em Lisboa, publica Mocidade, Vivei ! (Quartin, 1907). A brochura abre com um trecho de Kropotkine extraído da Moral Anarquista , obra publicada em Coimbra em 1901, no número 1 da Biblioteca Sociológica. Aí expõe o vitalismo moralista do mestre russo: a arte de gozar a vida contra a mentira, contra o sofrimento imposto, contra a ciência; o ser forte contra a
iniquidade, e ser grande por semear a vida rica e exuberante entre todos os homens. Gozar a vida é ser enérgico em todas as ações e é lutar pela felicidade de todos na terra. Ele tem a “louca pretensão de querer despertar e estimular a mocidade” da sua época, propondo “que se dedique ao estudo das variadíssimas questões de ordem econômica, política, moral e religiosa que mais intensamente preocupam e agitam as sociedades hodiernas”. O seu “intento é excitá-la a acelerar a vinda duma sociedade sem guerras, sem assassinatos e sem crimes, sem prostituição e sem vícios, onde todos vivamos felizes, unidos pelos laços da mais acendrada estima e da mais perpétua e invejável paz (…)” (QUARTIN, 1907, p. 11). Estamos perante o texto de um revoltado contra a “mórbida apatia” e indiferença da juventude do seu tempo face a uma sociedade onde vegetavam miseráveis escravos modernos (os operários) e mulheres infelizes e desgraçadas. Pretende ele combater o “pessimismo doentio” reinante entre a mocidade, lutar “contra a opressão, a desigualdade e a inimizade em prol da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade humanas”, propondo um exame crítico da “Questão social” (QUARTIN, 1907, p. 23). E é na resposta a esta questão que defende a fórmula anarquista: se o homem não é intrinsecamente mau ou bom, mas um produto do seu meio social e das suas experiências, então a “Anarquia (…) é o ideal mais sublime que a inteligência humana pode arquitetar e a que podem aspirar os homens de coração (…) Longe de ser a desordem, a Anarquia é a ordem, é a Paz, é a Harmonia!” (QUARTIN, 1907, p. 26). A partir de então, Quartin milita no meio operário lisboeta. Um ano antes da greve acadêmica, possivelmente no verão de 1906, conhecera Alexandre Vieira em Viana do Castelo, onde tinha família, na tipografia do semanário O Lutador , que o tipógrafo dirigia. Acompanhado pela irmã, pediu-lhe que publicasse um texto indignado contra a atitude hostil de um padre da freguesia de Meadela durante o sermão, perante dois ateus que tinham entrado na igreja. “Ficámos amigos desde então”, recordou Vieira muitos anos depois, “invariavelmente confundidos nas nossas andanças com elementos dos mais ativos da organização sindicalista” (VIEIRA, 1926). 1. O jornalista operário e publicista do anarquismo (1908-1913) A 25 de julho sai a público o primeiro número d’ O Protesto , semanário destinado a divulgar os ideais anarquistas e a mobilizar a população para o ideal de emancipação social, para a construção de uma sociedade igualitária, “sem governos, pátrias, exércitos, religiões, onde a ciência predomine, onde a liberdade, a paz e o amor não sejam palavras vãs”. ² O jornal vendia-se principalmente em Lisboa às portas do café Gelo e Suisso, nas freguesias do centro da cidade, não exclusivamente nos meios operários. Publicaram-se 23 números até março de 1909. A partir do inverno do ano anterior, o semanário terá começado a sentir dificuldades de escoamento, deixando de se publicar durante três meses. A partir de fevereiro saía uma segunda série com algumas alterações gráficas e novos colaboradores, com “seções de ciência, filosofia, arte e educação, literatura e crítica”, onde pontuavam os textos “dos mais reconhecidos agitadores revolucionários” e com a “análise e comentário dos fatos capitais da vida social portuguesa”. O noticiário sobre o movimento operário internacional e as “correspondências
das províncias” davam aos leitores a perspectiva da materialização das ideias num movimento que emergia a escalas mundial. Tratavase já de um modelo editorial diferente. Colaboram com ele Pedro Botelho, Jorge Coutinho, Henrique Pinheiro, Lucinda Tavares, Rosalina Ferreira, Emílio Costa, Ângelo Jorge, Alexandre Vieira, Palmiro de Lídia, Rodrigo Parreira, entre outros que assinam com pseudônimo. O jornal seguiria depois outro formato com o título Guerra Social (1908-1909) sob propriedade de Jorge Coutinho, contando com mais colaboradores. Pinto Quartin é dos colaboradores mais assíduos numa lista que inclui Emílio Costa, Ângelo Jorge, Alexandre Vieira, Palmiro de Lídia, Rodrigo Parreira, Blasquez de Pedro, Eduardo Reis, Augusto Machado, Maria Muñoz e Antonia Maymón (GAMA, 2014, p. 60). Animava-os o objetivo de “mostrar aos trabalhadores as causas dos seus sofrimentos econômicos e morais, não lhes fazendo afetar ódio nem amor contra as pessoas, mas antes fazendo-lhes compreender serenamente a verdade dos fatos (…) sem rodeios e sem sofismas (…)”. Não se apresentavam como “uns messias salvadores da humanidade, mas tão simplesmente como vulgarizadores de pura filosofia social, a qual mostra aos trabalhadores a necessidade de se emanciparem sem esperar por segundos ou terceiros que se digam seus emancipadores, quando não são mais que uns burlões” (Gama, 2014, p.181). O grupo editorial marcava assim o seu espaço ideológico, distinguindo-se dos republicanos e dos socialistas marxistas. Quartin colaborava também nessa altura n’ A greve , dirigido por Vieira. Segundo o seu testemunho, Quartin “não se limitava a escrever, pois ele mesmo compunha os seus escritos” desde que “aprendera a meter letras no componedor”. Em momentos-chave da vida do jornal, quando os ardinas e vendedores de jornais, por pressão de várias empresas jornalísticas, deixaram de o vender, Quartin, juntamente com outros estudantes dos dois sexos e alguns operários, “sobretudo dos Arsenalistas do Exercito”, substituíram-se aos ardinas nas ruas de Lisboa (PT-FMS-AP-09769.140, fl.3). Foi nesse contexto que, aos 21 anos, conheceu e começou a relacionar-se com Deolinda Lopes Vieira (18881993), que partilhava das suas ideias e valores, vindo a ser sua companheira durante toda a sua vida. ³ O semanário de formação cultural, porém, teria vida brevíssima. A última edição sai em aagosto de 1909 ao fim de seis números, tendo apenas Quartin como editor e proprietário. Nele colaboraram também José Carlos de Sousa, Ângelo Jorge, António da Costa Oliveira, José Simões Coelho, Mendes Assunção, Afonso de Bourbon e Menezes, Lopo Gil, António Cobeira, Deolinda Lopes Vieira, Lucinda Tavares, João Branco, Araújo Pereira, Emílio Costa, Tomás da Fonseca e Manuel Ribeiro. Poucos foram os textos dos grandes autores anarquistas como Kropotkine e Eliseu Reclus. No 1 o de Maio de 1909, Quartin entra para o corpo redatorial do jornal O Século , no qual dirige uma seção sobre o movimento associativo (PT-AHSICS-PQ-DOC-564) e integra a Associação de Classe dos Trabalhadores da Imprensa de Lisboa (1904-1924) (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-558). A entrada para a imprensa burguesa oferecia-lhe agora estabilidade financeira sem que tivesse de abdicar da militância sindicalista. A 13 de Outubro de 1910 participa no Segundo Congresso Nacional do Livre Pensamento, que se realizou na capital, na Caixa Econômica Operária, cuja cerimónia inaugural
foi dedicada à memória de Francisco Ferrer. Deolinda, que leciona na Escola Oficina n o 1 e nas Escolas Móveis do pedagogo anarquista, participa ativamente no evento. A ação do companheiro, porém, ficará mais ligada à mobilização revolucionária de trabalhadores através da imprensa nos anos subsequentes. Em 1912, o jornalista promovia reuniões em sua casa, na rua Heliodoro Salgado, às quais assistiam destacados militantes anarquistas, como Sobral de Campos, Neno Vasco, Aurélio e Susana Quintanilha, Mário Costa, os irmãos Afonso e António Manaças, Lucinda Tavares, entre outros. Dessas tertúlias nascerá o projeto do jornal Terra Livre , que será lançado em fevereiro do ano seguinte. Tanto Quartin como Deolinda passaram, então, como professores, pela Escola Oficina n o 1 à Graça, da Federação Metalúrgica, que seguiam um modelo pedagógico moderno, inspirado em Francisco Ferrer, onde tiveram como alunos, entre tantos outros filhos de sindicados, José Rodrigues Migueis e Emídio Santana (1906-1988) que, na altura, era ainda criança (PT-FMS-09771.030). Terra Livre anunciava-se como semanário anarquista propriedade do grupo editor homônimo (saía à quinta-feira) sob direção de Pinto Quartin, com sede na rua das Gáveas, 55, 2 o em Lisboa. O farmacêutico Jaime de Castro ficou como editor. Foi um “órgão de luta social e econômica” e uma “tribuna amplamente aberta às reivindicações dos trabalhadores”. A par da “análise e comentários dos fatos capitais da vida social e politica portuguesa”, apresentava um “desenvolvido noticiário do movimento operário internacional”, com “desenhos e caricaturas demolidoras”. Pretendia ainda ter “seções de ciência, filosofia, arte, educação, literatura e crítica” e levar a cabo “concursos científicos e inquéritos para o conhecimento do problema econômico e social da região portuguesa” (“Editorial”, Terra Livre , I, 1, 1912, p.1). O corpo redatorial era composto por sindicalistas (Carlos Rates e Sobral de Campos) e anarquistas (Neno Vasco, Pinto Quartin) e contava com um grupo de colaboradores com diferentes sensibilidades: o pedagogo Adolfo Lima (1874-1943), professor na Escola Oficina n o 1, o professor Afonso Manaças, o ator e professor Araújo Pereira, o cientista e assistente universitário Aurélio Quintanilha, Severino de Carvalho, Campos Lima, o tipógrafo e jornalista portuense Clemente Vieira dos Santos, Emílio Costa, Gaspar dos Santos, Humberto de Avelar, o farmacêutico Ismael Pimentel, o jornalista José Bacelar, José Benedy, José Carlos de Sousa, Manuel Ribeiro, Edmundo d’Oliveira e outros. O semanário Terra Livre , para além dos textos de informação crítica nacional e internacional, fornecia uma visão mundial do movimento libertário, com notícias da China, dos EUA, da Rússia e do Brasil. Procurou ativamente debater o sindicalismo (considerado uma estratégia ) levando-o para o anarquismo (nele inscrito como ética ) e afastando-o do reformismo. Enchia páginas com informação ou crítica de arte, de teatro ou de música. Nele encontramos igualmente os temas recorrentes para uma nova civilização. Gaspar Santos, na altura ainda estudante de medicina, por exemplo, defendia a limitação voluntária dos nascimentos por parte das classes populares (neomalthusianismo) e apresentava soluções práticas. A “greve dos ventres” seria uma componente essencial para a melhoria da qualidade de vida daqueles que viviam na condição de “escravos modernos” (FREIRE; LOUSADA, 2012).
A par dos textos acratas, das notícias da sua organização e das greves, da caricatura crítica, encontramos os temas civilizacionais presentes já no Amanhã . Esse semanário, porém, tem já as características de um jornal operário que informa, alerta e procura mobilizar operários e trabalhadores. Procura articular, se não mesmo fundir, as concepções do sindicalismo emergentes, autonomizado da tutela do Partido Socialista, com a ética e moral anarquia. O mesmo faz com o feminismo republicano que critica, invocando as dimensões de classe, poder e propriedade inscritas na submissão da mulher trabalhadora, para defender que a emancipação feminina só seria possível no seio da anarquia. Só aí o amor livre (entre seres livres, iguais) superaria as insanáveis contradições entre as pulsões de vida e as instituições sustentadas pelo Estado que conduziam ao aviltante divórcio (sobretudo para a mulher que tinha de expor-se à sanção moral do juiz e da moral burguesa vigente). Constroem-se nesse espaço contraimagens de fatos sociais. Assim, Terra Livre lança uma campanha contra a emigração para o Brasil, apresentada como terrível promessa enganadora – um tema que Ferreira de Castro irá explorar mais tarde em Os Emigrantes . ⁴ O tom antinacionalista é recorrente com a referência ao país como “região portuguesa” de forma sistemática. Porém, mais do que o seu antimilitarismo, da exigência de nivelamento social, dos textos que reclamavam novos tipos de família e de relacionamentos, foi a importância atribuída pelas autoridades ao papel dessa propaganda na mobilização de trabalhadores rurais e urbanos que motivou a perseguição a Quartin e ao semanário. Para eles, a situação agravava-se cada dia: com a falta de investimento, o desemprego aumentava, a diminuição dos impostos sobre o consumo nas cidades de Lisboa e Porto tinha sido embolsada por comerciantes e proprietários, as rendas de casa e o preço dos bens alimentares subiam enquanto o governo se preocupava em apresentar as contas do país equilibradas e em ganhar a confiança das forças vivas. As cadeias enchiam-se de presos sociais. Desde o primeiro número, o semanário lança uma campanha a seu favor, denunciando as violências e as arbitrariedades das autoridades. Na sequência das greves recentes por todo o país, só em Lisboa estavam presos 110 sindicalistas sem julgamento por tempo indeterminado. O jornalista ilustra a violência, a calúnia, as perseguições contra sindicalistas e contra a liberdade de expressão, descrevendo múltiplas situações, apresenta nomes e fatos concretos com detalhe. ⁵ Numa manhã de quarta-feira, dois agentes da polícia preventiva levaram o diretor do Terra Livre ao Governo Civil. Só seria presente às autoridades às 11 da noite. Quartin foi acusado de escrever textos que apelavam os operários à revolta. Às 3 horas da noite, seguiu a pé com mais 17 presos para a cadeia do Limoeiro, onde viria encontrar Alexandre Vieira, que entrara no dia anterior (PT-FMS-AP-09771.138). ⁶ Todas as organizações operárias e imprensa sindicalista e anarquista condenaram veemente, sem quaisquer reservas e de imediato, o ato bombista que foi logo considerado terrorista e imorável, obra de um louco. Acusava-se então os democráticos de se estarem a aproveitar daquele infeliz acontecimento para lançarem uma campanha repressiva generalizada contra anarquistas e sindicalistas. Nos meses seguintes, Quartin procura livrar-se das acusações dando uma imagem ordeira e respeitável do semanário, distante até do movimento operário. Demonstrava que Terra Livre “não podia ter influído no atentado
que se praticou na Rua do Carmo, já pela sua orientação e doutrinas, já pela pouca circulação que tem entre a massa operária”. ⁷ Ora, para o novo regime, o problema era precisamente a influência que o semanário poderia ter sobre “os mais conscientes, os inteligentes, os estudiosos” interessados na construção dessa sociedade futura, aqueles que faziam propaganda sindicalista e anarquista, que desviavam os trabalhadores e franjas importantes da pequena burguesia da Pax Republicana . Porém, não era apenas a falta de aceitação pelos poderes públicos das novas ideias que o preocupava, mas também, ou sobretudo, o comportamento da multidão, da reação feroz contra os anarquistas. Doía-lhe igualmente ter de aceitar que tivesse sido um boletineiro anarquista, Aurélio da Conceição César, o autor do ato tresloucado que tinha provocado toda a reação antissindicalista. ⁸ Escreve ele então a respeito da “ignorância das multidões” que viam no anarquismo “o extermínio da sociedade, a dissolução da família, a devassidão dos costumes, a volta aos tempos do comunismo selvagem, o regresso ao caos”. ⁹ Com as cadeias cheias de presos sociais sem julgamento, o Terra Livre apela à solidariedade internacional. Em breve, o semanário é impedido de circular. ¹⁰ No Rio de Janeiro, a Federação Operária do Rio de Janeiro fazia um comício de protesto no dia 20 de junho no Largo de São Francisco contra a vaga repressiva promovida pelo governo de Afonso Costa que conduziu ao encerramento da Casa Sindical. Em Lisboa, um comício reúne 50 mil pessoas que apelam à reabertura da Casa Sindical. No Brasil, gente da Federação intercede junto de Bernardino Machado Guimarães, que na altura ocupava o lugar de ministro de Portugal no Rio de Janeiro. ¹¹ 1. Viver a militância anarquista (1914-1926) Preso no Limoeiro durante 40 dias sem julgamento, Pinto Quartin decide apelar ao cônsul do Brasil em Lisboa para que intervenha, invocando a sua condição de cidadão estrangeiro. Nessa sequência, em agosto de 1913, as autoridades decidem expulsá-lo para o Brasil por dez anos, aplicando a lei brasileira de António Macieira, usada para expulsar residentes indesejados. A sua decisão, tomada depois de frustrados todos os esforços de mobilização nacional e internacional, terá certamente sido motivada pelo conhecimento que lhe chegava do tratamento a que estavam a ser sujeitos os sindicalistas presos no forte de Elvas e de saber que muito provavelmente iria ser julgado em tribunal militar, como sucedeu com os sindicalistas acusados de envolvimento no movimento de Abril ou na bomba do Carmo. Em breve, Quartin seguiria para o Rio de Janeiro com a sua companheira Deolinda Lopes Viera, onde iria contar com a solidariedade de Edgard Leuenroth e de outros anarquistas. O casal Quartin e Deolinda chegam ao Rio de Janeiro quatro dias antes do Segundo Congresso Operário Brasileiro, que decorreu no dia 1 o de fFevereiro de 1914. O evento, escreve ele na altura, proporcionou-me o felicíssimo ensejo de (…) conhecer os meus camaradas daqui, os meus irmãos em ideias e em aspirações, a minha família, enfim, porque minha família não só aqueles a quem mo ligam laços do parentesco ou do sangue, a muitos dos quais nenhuma outra afinidade me prende, mas
principalmente aqueles para quem me sinto irresistivelmente atraído por uma força invisível proveniente comunhão de ideias e de sentimentos. ¹² O casal circulava então na cidade carioca pelo mesmo tipo de espaços livres . As escolas racionalistas que seguiam princípios pedagógicos de Francisco Ferrer, associadas aos sindicatos, os centros de estudos e grupos de teatro, a colaboração com a imprensa operária. A documentação que guardou atesta as suas idas à noite ao Teatro do Centro Galego, à rua Visconde do Rio Branco n o 53 (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-441). Escreve nos jornais A Notícia, O Diário, A Época e Diário Fluminense . No dia 7 de março de 1914, profere aí a conferência de abertura sobre a Escola Racional numa sessão organizada pelo Grupo Dramático de Cultura Social (GDCS) em beneficio do Centro de Estudos Sociais e da Confederação Operaria Brasileira. No dia 30 de abril, pelas 20 horas, assiste outra sessão de propaganda organizada pelo Grupo Dramático Anti-Clerical em comemoração do dia 1° de Maio, o qual envolvia uma conferência de abertura, duas curtas peças de teatro sobre “dramas sociais”, terminando como habitualmente com um baile familiar. No 1 o de Maio participou noutro “grandioso espetáculo operário” no mesmo espaço em beneficio da Confederação Operária Brasileira (COB), anunciada como “a representante genuína do operariado livre e independente do Brasil, e organizadora do 2 o Congresso Operário Brasileiro”, que tinha decorrido no Rio de Janeiro em setembro de 1913. A 11 de julho de 1914 participa noutro “grandioso espetáculo operário” organizado pelo GDCS em beneficio da Voz do Trabalhador , órgão da Confederação Operária Brasileira, para extinguir o déficit em que se encontrava. Em fevereiro de 1914, Bernardino Machado, ministro de Portugal no Rio de Janeiro, regressa a Portugal. Anos antes, em 1907, Bernardino tinha-se solidarizado publicamente com os estudantes grevistas de Coimbra, chegando por isso a pedir a demissão do seu cargo de lente da universidade. Vinha agora constituir um ministério extrapartidário, tentando conciliar monárquicos, sindicalistas e católicos com o regime depois da animosidade que se criava no campo republicano com ofensiva do “democrático” Afonso Costa. Quartin obtém então permissão para regressar a Portugal. No entanto, Quartin atribuiu a decisão do presidente “brasileiro” à pressão da COB. Em fevereiro de 1915, o casal regressa a Portugal, retomando as suas atividades profissionais e sociais anteriores. Deolinda ingressa nos quadros da Escola Oficina n° 1 e Quartin ao seu jornal O Século . O seu envolvimento na organização operária não diminui nos anos da guerra. Nesse período de penúria alimentar marcado pelo bloqueio submarino, pela “crise das subsistências” e inflação, envolve-se na luta “contra a carestia”. Em 1918, criou com a sua irmã uma pequena sociedade em Lisboa para o comércio de peixe, a única iniciativa empresarial que conseguimos documentar durante a sua vida (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-512). Em abril desse ano, encontramo-lo na sede da União Operária Nacional, a secretariar a organização da Conferência Nacional Operária da Região do Sul, numa altura em que, por causa da guerra, se sentia a “desorganização do operariado e a inércia dos seus organismos associativos”. ¹³ Na Comissão Organizadora estão também Alexandre Vieira, o sapateiro anarquista Jerónimo de Sousa, o pedreiro Joaquim Francisco e o alfaiate Manuel Afonso. Convocavam-se, em nome da
União Operária Nacional (UON), todas as associações aderentes, lançava-se “o grilo que desperte, da letargia que o prosta e do desânimo que o avassala, o proletariado português”. A reunião foi desdobrada em duas, uma para a região Norte e outra para o Sul, decorreu de 29 a 1 de maio de 1917. ¹⁴ Em Lisboa reuniram-se os representantes de 105 sindicatos e de 6 seções sindicais, de 4 federações de indústria e 2 Uniões de Sindicatos locais. No Porto compareceram delegados de 71 sindicatos, 6 federações corporativas e outras 4 de vários ofícios. Ali se discutiram teses sobre “a organização operária”, “a organização operária perante as condições de paz” e a tese de Quartin sobre a “carestia da vida”. Dava-se início ao ciclo ascendente de mobilização operária no final da Grande Guerra e imediato pós-guerra que conduziu à greve geral nacional de 18 de novembro de 1918 (movimento surpreendido pela crise da gripe pneumônica), depois à criação do jornal A Batalha no início do ano seguinte e, logo a seguir, em setembro de 1919, ao II Congresso Operário Nacional, donde nasceria a Confederação Geral do Trabalho sob influência anarquista. Pinto Quartin, já com experiência e visão no lançamento de novos títulos, participou ativamente no lançamento d’ A Batalha , juntamente com Alexandre Vieira, Raul Neves Dias, José António de Almeida, Francisco Cristo, Hilário Marques, Perfeito de Carvalho e Joaquim Cardoso, materializando a iniciativa audaciosa de um grupo de delegados da UON (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-538 e 656 a ). Ele assumirá, de fato, as funções de “redator principal”, ficando Alexandre Vieira, secretário-geral da organização, como diretor até Setembro de 1922 e Joaquim Cardoso como editor (VIEIRA, 1926; TEODORO, 2014). Em dezembro de 1923, começa a publicar-se o Suplemento Literário e Ilustrado d ’ A Batalha, o semanário de caráter cultural em que Quartin participa ao lado da direção do jornal, publicando aí alguns textos de opinião sobre jornalismo, neomaltusianismo e de homenagem a um militante anarquista. ¹⁵ A sua colaboração escrita terminava no final desse ano, tal como a de Deolinda, que publica apenas um texto sobre educação. ¹⁶ Atua a partir de então apenas como editor, selecionando os textos que recebia de muitos colaboradores, como os seus amigos Ferreira de Castro, Jaime Brasil, Campos Lima, Mário Domingues, entre outros. O semanário contou com um grupo de colaboradores com sensibilidades tão diversificadas quanto Nogueira de Brito (crítico de arte), Julião Quintinha (jornalista), César Porto (pedagogo, socialista), José Carlos de Sousa (professor), David de Carvalho (jornalista), Alfredo Marques (marceneiro e jornalista), Raúl Brandão (escritor) ou Stuart Carvalhais (caricaturista). ¹⁷ A sua atividade militante como jornalista leva-o a publicar com Norberto Lopes o jornal Última Hora durante a greve dos jornalistas em fevereiro de 1921. Nessa altura, Quartin costumava encontrar-se às segundas e quintas-feiras no “cenáculo do Chiado” em “cavaqueira amena” com amigos. “Alvissareiro de novas, fresquinhas, a saltitar”, deixava “todo o cenáculo preso do seu verbo humorístico”. ¹⁸ Os intensos debates no seio da organização operária sobre a natureza da revolução bolchevista na Rússia, bem como a questão das internacionais, que iria conduzir à criação do Partido Comunista Português em 1921 e ao cisionismo, reforçaram as suas convicções libertárias. Nos finais desse ano, Quartin reflete sobre o retrocesso na circulação da grande imprensa em Lisboa desde 1919, uma tendência a que não escaparia
a própria A Batalha e que ele relaciona com a diminuição do interesse do público devido à perda de independência dos jornais provocada pela “absorção pelos grupos financeiros”. ¹⁹ Este processo, que ele ilustra à escala internacional, conduziu à concentração de títulos e acompanhou o aumento da desconfiança do público sobre a informação jornalística. ²⁰ Os problemas n’ A Batalha agravaram-se nos anos seguintes com processos judiciais financeiramente dolorosos, apreensões, assaltos policiais à redação, controvérsias internas e recriminações que acabaram por envolver o “grupo dos intelectuais” quanto à direção que o periódico operário tomara nas vésperas do movimento militar de 28 de maio de 1926. Pouco depois, a 29 de julho, é imposta a censura prévia à imprensa. Com a derrota das forças democráticas na Revolução de Fevereiro de 1927, acentuou-se o cerco às associações e organizações progressivas. Nesse ano foram presos, entre tantos outros acusados de comunismo, pessoas muito próximas do casal, nomeadamente os professores ligados à União do Professorado Primário e à escola racionalista: Adolfo Lima, César Porto, Canhão Júnior, Carvalho Duarte, Manuel Silva (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-722). A 26 de maio, as instalações d’ A Batalha foram invadidas por forças hostis e destruído quase tudo o que encontraram. O jornal foi proibido de circular pelo governo militar. ²¹ 1. Nas trevas da longa noite (1927-1945). Viver o colonialismo! Em Angola, o jornalista escreve, com desassombro e entusiasmo, sobre temas e comportamentos sociais estruturantes da sociedade colonial. Percebe a raiz econômica do racismo num projeto colonial em que o negro é o suporte essencial do “desenvolvimento”. Defende que o preconceito da côr — não ódio de raças, note-se — mantém-se nas colônias por interesse econômico, para evitar a concorrência dos indígenas nas atividades dos colonos e conservar a hegemonia dos conquistadores. Mas cimenta-o a ignorância da massa, ignorância que é preciso destruir, fazendoa compreender que a despeito da diferença de côr e de particularidades fisionômicas, de costumes e de temperamento, todos os homens no fundo se assemelham, sendo essa diferenciação o resultado do clima da influência geográfica, da sua história peculiar e do sistema de educação. ²² Escreve sobre os mulatos, que recusa considerar inferiores aos brancos, os brancos pobres e desamparados. Considera a aparente inferioridade do negro uma situação transitória. Rejeita frontalmente o racismo, a ideia vigente que existiriam indivíduos de raças inferiores e de raças superiores. Escreve ainda sobre “a cafrealização dos brancos de África”, esses “mutilados da colonização” que existiam por todo o continente africano e que, em Angola, conhecera na região dos planaltos de Benguela e do Bié (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-400). Eram pessoas levadas “a esse país envolto em lendas de fortunas fáceis, de riquezas por explorar, de possibilidades sem limites” que acabaram “condenados perpetuamente à vida cafreal” por absoluta falta de recursos ou auxílio particular. Mas via-os felizes ainda assim, tanto mais que na metrópole não teriam melhor sorte. Denunciava, por isso, a sua repatriação em nome da “salvaguarda do prestígio da raça branca”.
Onde estará a felicidade? No homem de hoje ou no de ontem? Por não encontrar o nosso espírito cabal resposta a esta interrogação é que nos recusamos a assinar o pedido de repatriação daqueles que, em nossas colônias, se deixam cativar pela solidão do mato – que é a vida campesina dessa África erma e maninha. (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-401) As questões sexuais em contexto colonial são por ele tratadas com desassombro. Escreve sobre “a mulher europeia nas colônias”, a situação dos mulatos, da forma como os brancos dispõem das negras (a recordar-lhe a sua infância brasileira). Fala das condições miseráveis de vida da população indígena que, fazendo com que a mulher necessite e procure o amasiamento com o branco, facultam a este tantas amasias quantas lhe apeteça. São as dificuldades financeiras com que luta a maioria esmagadora dos colonos que os fazem preferir, ao casamento com uma mulher da sua cor, a concubinagem com a mulher indígena, pela nenhuma prisão e nenhumas obrigações e responsabilidades que esta lhe acarreta. Ele defende, por isso, que o destino de Angola é ser um país de mestiçagem (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-403). O problema racial leva-o a projetar escrever um livro para suscitar “simpatia para os pretos, indicar os processos de que nos devamos servir para o elevar”, mostrando “o valor da bondade”, seguindo o princípio segundo o qual “com amor e paciência consegue-se mais do que com a violência”. ²³ Reabilitemos o homem negro! Estudando o homem negro, de civilização atrasada, e interpretando os seus costumes restituímos à estima do europeu. Reabilitemos o negro de Angola! Pela reabilitação das raças de civilização inferior. Quartin empreende então a tarefa de criticar ideias racistas, de desconstruir a ideologia colonialista, a começar pelos seus valores axiomáticos: a civilização e o progresso. ²⁴ Reflete sobre “o homem primitivo”, defende que as instituições e os costumes de cada povo se relacionam com o seu habitat e modo de vida, não acredita nas representações do homem primitivo como uma fera sem sentimentos. Ao mesmo tempo, recusa-se a associar a ideia de civilização apenas ao domínio da técnica e da ciência, à produção e ao consumo de objetos tecnológicos. Desse modo, conclui que “nós [os brancos] não somos civilizados”, visto que, em África, a força predomina sobre o direito. O homem que chegou a organizar a terra, e a dominar os elementos não chegou, no entanto, a dominar seu egoísmo ou suas paixões. O egoísmo, sob todos os seus diferentes aspectos, familiar, social, partidário, fiscal e nacional, engendra a intolerância (…) à ideia do dever deve acrescentar-se a ideia de solidariedade. Ora, segundo ele, “a vida é ação comum. O escopo da vida é a felicidade de todos pelo aperfeiçoamento de cada um”. Com o desfecho da tragédia em Espanha, Quartin vive um período de contenção. O contato com o meio anarquista é assinalado no seu espólio por
alguns boletins cicloestilados das Juventudes Libertárias e pouco mais. Com a derrota dos alemães na Frente Leste no inverno de 1942/3, o ambiente de terror e asfixia começa a mudar. Em 1943, ele faz parte da “comissão de amigos e admiradores” composta por professores e antigos alunos da Escola Oficina n o 1, que promove Sarau de homenagem a Adolfo Lima no dia 20 de fevereiro naquela escola da Graça (FMS PQ-CP-308). Adolfo Lima afastarase do ensino e viria a morrer no dia 27 de novembro daquele ano, com a idade de 69 anos. Com ele tinha estado no Grêmio de Educação Racional (Lisboa, 1909-1911), na Sociedade de Teatro Livre e no Grupo de Estudos Sociais Germinal (Lisboa, 1914-1917) e na escola do sindicato metalúrgico. Mais próximo dele estivera a sua companheira Deolinda nas suas atividades e iniciativas pedagógicas, colaborando regularmente na revista Educação Social . Não houve discursos, apenas duas peças de teatro, dois recitativos e um momento musical que contou com a participação da sua filha Orquídia. No dia 8 de outubro de 1945, o jornalista Pinto Quartin encontra-se na reunião do Centro Republicano Almirante Reis, onde se pediu a Salazar o fim da PIDE e da censura, propuseram-se alterações constitucionais e o adiamento das eleições (para permitir o recenseamento atualizado). Participa então na criação do Movimento de Unidade Democrática, sendo proposto por Heliodoro Caldeira para fazer parte da Comissão Consultiva (PT-TT-PIDE-SC-SR-7240-NT2434). No dia 13, o Conselho Confederal da CGT reúne extraordinariamente e decide unir a sua voz à dos que reclamam veementemente a imediata revogação de todas as medidas que impedem a livre circulação da palavra impressa, o regresso imediato de todos os deportados, a decretação duma anistia que restitua à liberdade quantos permanecem enclausurados e deportados, condenados ou não, por conspiração ou por haverem atentado, de qualquer modo contra a Ditadura. Quartin vive amargamente esse pós-guerra com a progressiva marginalização da utopia anarquista. Antigos sindicalistas, socialistas e republicanos tinham aderido ao PCP ou simpatizavam com o modelo de sociedade autoritária supostamente igualitária que vingara pelas armas no Leste, prestigiada com a vitória sobre o nazifascismo. Vira a fragilidade da organização anarcossindicalista que fora cooptada pelas lideranças durante a revolução espanhola e o destino trágico dos combatentes pela liberdade. Sentia agora a marginalização nos meios intelectuais dos ideais que perseguira durante toda a vida. Escrevia então: A anarquia faliu; a anarquia morreu; a anarquia foi esquecida; foi superada por novos ideais, e só os velhos decrépitos se lhes mantém fieis. Assim fala certa gente acompanhando as suas palavras de sorrisos de satisfação ou de mofa. Segundo definição do Dicionário Larousse, a anarquia é o sistema político e social, onde o individuo se desenvolve livremente, emancipado de toda a tutela governamental! Ora, já viveram os homens civilizados alguma vez em tal regime? Nunca. Então, como é que se pode considerar falido um sistema que nunca se experimentou?
O Estado tem sido experimentado através da história sob as mais variadas formas, e tem sempre conduzido os povos a desgraça. Contudo, apesar de todos esses fracassos ainda e defendido por esses mesmos que declaram ter falido o que nunca se experimentou. Continua a acreditar nos seus princípios programáticos, que apresenta sucintamente assim: A anarquia nega a autoridade, e, para que se possa constituir uma sociedade sem a sua existência, preconiza o seguinte: a) a socialização (não nacionalização) dos meios de produção e produtos de consumo; b) organização em bases federalistas dos trabalhadores, organização na qual as deliberações são tomadas nas assembleias gerais pelos próprios interessados, e os delegados com mandatos prontamente revogáveis, desde que não respeitem as resoluções aprovadas; c) o desenvolvimento, por meio da propaganda, exemplo e educação, dos sentimentos de solidariedade e fraternidade nas relações humanas. É somente a anarquia que permite a livre expansão das aspirações dos chamados homens de boa vontade, com os quais os católicos tanto especulam, e a quem tanto perseguem, quando não se prestam a cooperar nos seus objetivos escravizadores. Mas, enquanto existirem esses homens de boa vontade, animados do desejo de aliviar o sofrimento alheio, de viver em paz e harmonia com o seu semelhante – enquanto eles existirem, a anarquia, embora por vezes inconscientemente, viverá sempre nos seus corações. ²⁵ Quartin tinha-se tornado um homem reservado e pouco sociável. Quatro anos depois, um agente da PIDE concluía assim o seu relatório: Creio que deixou a sua antiga atividade como militante libertário e embora não seja adepto da atual situação não se dedica contudo a qualquer atividade política. Como técnico do jornalismo é considerado um excelente profissional. ²⁶ O policial enganava-se, pois o seu nome aparecerá em iniciativas pacíficas de jornalistas, escritores, cientistas, artistas e intelectuais para pôr fim à censura e à ditadura. Em fevereiro de 1953, integra a comissão de propaganda no diretório da Liga dos Direitos do Homem e em novembro, a “comissão pró-liberdade de expressão”, que reúne 138 indivíduos. Dois anos depois, aos 75 anos, escrevia um texto assinado por “um anarquista”: A anarquia foi esquecida, porque a “arquia”, num arranque desesperado e momentaneamente triunfante, conseguiu estrangular a sua voz. Mas que ganhou o mundo com o recrudescimento da autoridade? Tudo isto: Os nacionalismos exacerbados e conflituosos: os criminosos fascismos negros e vermelhos, o monstuoso conflito de 1939-1945: a ameaça da guerra atómica; o apoio cínico das democracias a Salazar, Franco e aos chefes nazistas; a escravidão dos trabalhadores obrigados a recorrerem
periodicamente a greves mesmo nas livres França, Inglaterra, América etc.; as possibilidades do Vaticano e C a de Jesus de estenderem cada vez mais os seus tentáculos opressores etc. etc. Os últimos anos da sua vida foram marcados pela sua doença e internamento num lar. Em janeiro de 1968, Alexandre Vieira visita-o e encontra-o cansado da vida. ²⁷ Viria a falecer dois anos depois, a 7 de fevereiro. No espólio que legou à Casa da Imprensa encontra-se um papel em que deixou escrito: Que cada um fale, escreva, trabalhe, pense, ame, goze, viva como deseja, eis o que nós anarquistas queremos. Pão para todas as bocas, ciência para todos os cérebros, amor para todos os corações, tal será a divisa da sociedade anarquista. Para a atingirmos basta que nos exercitemos continuadamente na prática da dignidade pessoal, do espírito de independência e solidariedade estimando-nos e utilizando-nos reciprocamente, que protestemos, sem esperar que o vizinho disso tome a iniciativa, contra toda a violência e injustiça que vejamos praticar; que nos abstenhamos de prestar o nosso concurso às instituições atuais tais como igreja, governo, parlamentarismo, magistratura e militarismos; que reivindiquemos sem cessar para todos e para já a liberdade de pensamento, de crítica, de reunião e de sentimentos. Numa palavra, basta que sejamos anarquistas pelo fato, isto é, que nos atrevamos a dizer sempre em toda a parte e em todas as circunstâncias o que pensamos e a pôr em prática o que dizemos. Pinto Quartin. (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-678) Conclusão O percurso de vida de Pinto Quartin foi excepcional a vários títulos, como jornalista operário e de vanguarda, anarquista, e como profissional de imprensa. A lista dos jornais em que trabalhou é extensa. Foi chefe de redação d’ O Século , nas edições da manhã e da noite; d’ A Pátria , de Nuno Simões; d’ A Tarde , de Artur Leitão; d’ A Informação , de Homem Cristo Filho, d’ O Rebate , do Dr. Godinho Cabral, d´ A Notícia , do Dr. Amândio de Alpoim; da Ideia Nacional , antes de ter ido para Angola. Termina a sua carreira como chefe da Delegação em Lisboa de o 1 o de Janeiro , do Porto. A sua personalidade desdobrou-se entre o “homem de ideias” e o jornalista que se dispôs “a servir todos os credos políticos sem nunca comprometer o seu nome e a sua dignidade pessoal”. Como homem de ideias, “subscrevia somente artigos que se coadunassem com o seu modo de sentir e de ver”. No campo sindical, exerceu papel saliente, primeiro, na Associação dos Trabalhadores de Imprensa e depois na Caixa de Previdência dos Profissionais de Imprensa de Lisboa. Nessa qualidade, organizou o livro Uma Hora de Jornalismo (1928). Foi membro fundador do Ateneu Popular, instituição de ensino universitário livre que tinha por divisas “cooperação de ideias”. Teve atividade na Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário, havendo feito parte de varias subcomissões auxiliares, como a Administração e Beneficência. A abordagem biográfica ao estudo da militância anarquista tem suscitado um interesse crescente. A abordagem relacional, a exploração das ligações transacionais e o lugar central ocupado pela imprensa têm sido invocados
para compreender o movimento, os contextos de mobilização e resistência. O percurso de Quartin ilustra essa dinâmica até os anos 1920 do século passado. Foi no seio duma sociedade burguesa em crise e em contexto universitário que, na sua juventude, ele rompe com as crenças, os valores, os modelos familiares e sexuais, a ética e moral dominantes e abraça o anarquismo de Kropotkine. Ao prestígio dessa utopia no meio acadêmico junta-se a sociabilidade do grupo de afinidade num quadro de combate mais vasto pelo laicismo. Poderia ter escolhido concluir os estudos e levar uma vida que ele próprio consideraria medíocre. Preferiu, em vez disso, a aventura de viver a utopia. É então que se revela a importância dos jornais na criação de novas identidades coletivas, de vínculos construídos sobre valores comuns e da mobilização que envolve a criação de redes institucionalizadas em projetos de diferente tipo e de espaços alternativos. Tal como a imprensa, as associações livres florescem nesse período, asfixiadas depois durante a “longa noite salazarista”. A utopia acrata reúne então jornalistas, escritores, artistas, professores, médicos, estudantes que, através da letra impressa e de espaços e projetos alternativos (escolas, teatros, associações de socorros mútuos, bibliotecas), dialogam e interagem na organização operária. A ação de Quartin como “jornalista operário” (como ele próprio se definiria) inscreve-se, com destaque, nesse universo que atuou na organização e mobilização de trabalhadores através da palavra impressa, propondo-lhes uma ruptura civilizacional. A vida de Quartin é ainda ilustrativa do percurso de uma geração de anarquistas que sobreviveram às prisões e viveram durante grande parte da sua vida sob uma ditadura conservadora filofascista. Nela podemos identificar ações de resistência intelectual contra a ideologia colonial dominante e o racismo estruturante da sociedade angolana. Referências PT-AHS-ICS-PQ. PORTUGAL. INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – UNIVERSIDADE DE LISBOA. ARQUIVO DE HISTÓRIA SOCIAL. COLECÇÃO PINTO QUARTIN. PT.FMS.AP. PORTUGAL. FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES. FUNDO ALBERTO PEDROSO PT-TT-PIDE. PORTUGAL. ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO. Fundo PIDE. Processos individuais. BNL/AHS. BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Arquivo HistóricoSocial. PT/AUC/ELU/UC-AUC. PORTUGAL. UNIVERSIDADE DE COIMBRA. Arquivo. Matrículas. FREIRE, João; LOUSADA, Maria Alexandre (Orgs.). Greve de Ventres! Para a história do movimento neomalthusiano em Portugal: em favor de um autocontrolo da natalidade. Lisboa: Colibri, 2012.
GAMA, Olinda da Conceição de Jesus. Anarquismo e Relações de Género – o olhar anarquista do início do século XX . 2014. Dissertação (Mestrado em História Moderna e Contemporânea) – ISCTE, IUL, Lisboa. GONÇALVES, Maria Neves Leal. “A greve académica de 1907. Suas repercussões políticas e educacionais”, Revista Lusófona de Educação , 2007, 9, 61-84. MEDINA, João. Um semanário anarquista durante o primeiro Governo Afonso Costa: “Terra Livre”. Análise Social , v. XVII, n. 67-68, p. 735-765, 3. o -4.° 1981. Quartin, António Tomás Pinto. Mocidade, Vivei ! Lisboa. Liv. Clássica, 1907. TEODORO, José Miguel de Jesus. A Confederação Geral do Trabalho (1919-1927) . 2014. Tese (Doutorado em História) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2v. UNESCO and its programme, 1950-1976. The Race Question , 3, 1950. VIEIRA, Alexandre. Subsídios para a historia do movimento sindicalista em Portugal de 1908 a 1910. Almanaque A Batalha para 1926 . Lisboa: Secção Editorial A Batalha, 1926, p. 54-87. 1 Este estudo foi realizado no Centro de Investigação em Ciência Política (UID/CPO/0758/2019), Universidade de Évora, e apoiado pela Fundação de Ciência e Tecnologia do Ministério da Educação e Ciência através de fundos nacionais. O texto original foi vertido para Português do Brasil, seguindo o AO90. 2 Pinheiro, Henrique. “Aos Operários”. O Protesto . Lisboa, ano I, n. 11, p. 4, 3 out.1908. Apud Gama (2014, p. 19). 3 Tiveram três filhos: Orquídea Vieira Quartin (pianista); Hélio Vieira Quartin (Lisboa, 21. nov. 1916-Almada, 25 dez. 2003, desenhador) e a atriz Glicínia Quartin. 4 “Emigração para o Brasil:o capitalismo brasileiro precisa de 10:000 famílias de emigrados europeus. O que os espera: explorações, enganos, extorsões e violências para os submissos e embrutecidos; perseguições, prisões e expulsão do territorio para os que pensam, sentem e têm dignidade.” Terra Livre , I, 4, 6 mar. 1913, p. 5. 5 “Uma campanha justa”. Terra Livre , I, 1, 13 fev. 1913, p. 5. 6 “PERSEGUIÇÃO À TERRA LIVRE. A prisão do nosso camarada Pinto Quartin. TERRA LIVRE acusada, pelas autoridades, de fazer propaganda de violências e instigar os sindicalistas à revolta!!” Terra Livre , I, 19, 19 jun. 1913. 7 “Perseguição à Terra Livre”. Terra Livre , I, 19, 19 jun. 1913, p. 4-5. (Cit. também por MEDINA, 1981). 8 Ver Medina (1981, p. 758) e O Século , 26 jun. 1913, p. 3.
9 “Ignorância das Multidões”. Terra Livre , I, 21, 3 jul. 1913. 10 O grupo editor anuncia então o lançamento d’O Protesto, mas tudo indica que nunca chegou a ser publicado. 11 O historiador João Medina, com base na leitura d’ O Século de 9 de julho de 1913, refere em nota que é capturado na mesma altura um português residente no Pará, um tal José Coelho da Cunha Neves, que entrara no país para assassinar Afonso Costa, sugerindo alguma relação entre os dois fatos (MEDINA, 1981, p. 755). Ora, Neves terá sido secretário do jornal monárquico A Bandeira Portugueza e é provável que a sua ação frustrada esteja relacionada com a repressão sobre os monárquicos após o movimento que deveria ocorrer também em abril. É expulso na mesma altura com a mesma pena que foi dada ao jornalista (Ver O Século , Lisboa, 11 ago. 1913; G. R. P., “O Cunha Neves”. A Província. Recife, XXXVI, 235, p. 4. Em defesa da boa imagem do regime republicano, contra a campanha considerada “caluniosa” que lhe foi movida pela imprensa operária no Brasil, vejase, no mesmo número, José Portuguez (pseud.), “República Portuguesa. O tratamento dos presos políticos e os inimigos da República”). 12 “Segundo Congresso Operário Brasileiro”. A Voz do Trabalhador , 1. fev. 1914, p. 6. O texto foi publicado no Diário Fluminense de Niteroi . Agradeço à Luiza Pascoetto Guimarães, docente em Volta Redonda, ter-me facultado a referência da participação na imprensa brasileira. 13 “Conferência Operária”. Sementeira , 2 a série, abr. 1918, p. 253. 14 A comissão organizadora da conferência do Porto: Manuel Joaquim de Sousa, Delfim da Silva e Lourenço da Costa Peixoto. Ver Teodoro (2013, I, p. 37-38). 15 “A obrigação de procriar”. A Batalha : suplemento literário e ilustrado, 1, 3 dez. 1923, p. 3; “O mais perigoso dos monopolios: O jornalismo submetido à Finança e ao Capitalismo internacional”. Idem, 3, 17 dez. 1923, p. 3; “Atrás do Caixão de Ávila”. Idem, 4, 24 dez. 1923, p. 5-6. O Suplemento publicou-se até 31 de janeiro de 1927 (166 números) e vendia-se em separado pela metade do preço do jornal (50 centavos). 16 Vieira, Deolinda Lopes. “A Escola deve preparar para a vida”. A Batalha : suplemento literário e ilustrado, 2, 10 dez. 1923, p. 2. 17 Veja-se a análise bibliométrica semiautomática ao Suplemento disponibilizado no sítio Revistas de Ideias e Cultura (< http://ric.slhi.pt/ SuplementodeA_Batalha/ >, último acesso em 3 jun. 2020). 18 “Carta remetida de Lourenço Marques evocando memórias de tempos vividos em Lisboa bem como os amigos Pinto Quartin, Emílio Costa, Campos Lima, Rodrigues e Figueiredo. Envia recomendações a Manuel Afonso e a Augusto de Sousa”, 3 de junho de 1941. Destinatário: Alexandre Vieira. Ms. Pasta: 09770.096. Carta atribuída no catálogo a Miguel [Maria Almeida] Correia 1889-1940 (PT-FMS-AP)
19 Quartin foi correspondente em Lisboa do 1 o de Janeiro, sob a direção de Jorge de Abreu (1918-1923). Foi Manuel dos Santos que o substituiu quando se criou a delegação de Lisboa. Cede então o seu lugar ao seu amigo e companheiro Jaime Brasil. 20 “O mais perigoso dos monopolios: O jornalismo submetido à Finança e ao Capitalismo internacional”. A Batalha : suplemento Literário, I, 3, 17 dez. 1923. 21 Santana, E. “Lisboa, 17 de Setembro de 1980. A Vida do jornal sindicalista ‘A Batalha’ na fase de clandestinidade durante o período do Salazarismo, 1927-1974”. Lisboa, 17 de setembro de 1980 (BNL/AHS 5500 ms 1496-A). 22 “A colonização a a mestiçagem O PRECONCEITO DA COR” (PT-AHS-ICSPQ-DOC-400). 23 “O Negro, esse desconhecido” (PT-AHS-ICS-PQ-DOC-419). 24 Só em 1951 a ONU declarou que só existe uma espécie humana e que não existem diferenças de capacidades entre as “raças humanas”. A necessidade de divulgar conhecimentos científicos para combater o preconceito racial data de 1947. Ver UNESCO and its programme. III. The Race question (1950). Na época em que escrevia, a posição de Quartin ia contra opiniões “fatos científicos” apresentados por antropólogos, biólogos, historiadores e outros académicos que ele rejeitava. 25 PT-ICS-AHS-PQ. Doc. “O Fracasso da Anarquia” (dact.). 26 Relatório de José Maria dos Santos, agente da PIDE (chefe de brigada). Lisboa, 3.06.1949 (REL. 182/49 Serviço 148/49). O jornalista morava então na Travessa de São Vicente à Graça, 15, 3 o Dto., Lisboa (PT-ANTT-PIDE). 27 Carta de Alexandre Vieira a Pilar, 15 jan. 1968. Pasta: 09769.009 (PTFMS-AP). 14 PREÂMBULO DE E ENTREVISTA A JOÃO FREIRE: PENSADOR E ORGANIZADOR DO ANARQUISMO EM PORTUGAL José Maria Carvalho Ferreira Este capítulo foi extraído da vida e obra de João Freire, no que podemos articular com a sua trajetória no âmbito do anarquismo em França e Portugal; antes da realização da entrevista que lhe fiz, foi precedido por uma introdução reflexiva de João Freire sobre “Anarquismos e Anarquia: Quais?” Um russo oitocentista (Bakunine) conheceu o que era a vida dos camponeses pobres que constituíam a grande maioria do país ainda antes da abolição da servidão, em 1861, pelo czar Alexandre II. Lutou contra essa indigna desigualdade social, conspirou, foi preso, fugiu para o Ocidente e agiu como um rebelde até o fim da sua vida, assumindo o papel de chefe de fila dos opositores a Marx no seio na primeira Internacional dos trabalhadores.
Filosoficamente, articulou a crença religiosa num Deus (à maneira do monoteísmo judaico-cristão-corânico) com a ideia de um Estado onipotente, como era ainda a maioria dos existentes antes do advento do constitucionalismo liberal: ambos negariam o Homem, como projeto, como possibilidade de emancipação e de modernidade comunitária. E também desde logo suspeitou o que seria a brutalidade do Estado-Leviatã dos socialistas, até hoje eruditamente defendido pelos seus melhores teóricos: foi uma luminosa intuição! Com isso, o russo guindou-se a ideólogo do movimento antiautoritário (multímodo e pouco articulado, mas cheio de iniciativas) que desde Proudhon vinha sendo designado por “anarquista” e, em permanente sobressalto para influenciar revoluções e revolucionários onde surgissem, não lhe sobrou tempo para amadurecer melhor que tipo de sociedade alternativa e sem Estado poderia resultar, uma vez decretada a falência do poder dos governantes e dos grandes proprietários e capitalistas. Falhou assim em três pontos: que a religião não era apenas sustentada pelas Igrejas; que o “império da lei” não tinha que ser necessariamente a ordem dos poderosos; e que a economia tinha descoberto uma dinâmica de crescimento (e de transformação social) que se revelaria imparável. Iluminado por este exemplo, seguiu-se a bondosa exemplaridade de um outro eslavo, Kropotkine, que ilustrou, de modo algo ingênuo mas eficaz para aquele meio social, como poderia funcionar harmonicamente uma comunidade sem a férula das instituições clássicas da governação: a legiferação top-down , o sistema judicial e a força armada. Provido destas convicções, um bem provido lote de ativistas e militantes lançou-se decididamente em experiências de teor variado, sempre sob a palavra-deordem de Liberdade e Solidariedade para as classes sociais oprimidas pelo Estado e pelo capital: tentativas de insurreições, tiranicídios, educação popular, comunidades de vida e trabalho, moeda-falsa, controle da natalidade, recusa da conscrição e do imposto, e também pela criação de combativos sindicatos de trabalhadores assalariados. O problema é que, como a Revolução Francesa, os levantamentos populares antiabsolutistas de 1848 e a Comuna de Paris provaram no terreno dos fatos, não havia apenas uma clique dominante a oprimir o povo, como a propaganda costumava simplificar, em extremo. Era possível derrubar uma tirania, mas muito mais difícil construir concretamente essa outra sociedade emancipada e livre que se almejava. Ou, como mais tarde escreveu Malraux: “Sei o que é uma Libertação! Não sei o que é a Liberdade.” Aqueles dois russos terão constituído, afinal, duas variedades de um mesmo expressionismo romântico, que então dominava a cultura mais progressista da sua época: o primeiro, nos empolgamentos da aventura, que ele supunha partilhável com idêntica paixão pelas grandes massas dos deserdados da história; o segundo, pela adesão aos princípios da ciência social moderna que despontava, a qual pressupunha o paradigma iluminista do “Homem bom” e de um contrato social construtivo que negava a visão hobbesiana do “todos contra todos”. Ambos, porém, cometeram erros – perdoáveis, para o seu tempo. Mas ao temperamento de revolta prodigalizado pelo autor de Deus e o Estado juntou-se em muitos prosélitos a filosofia stirneriana do “eu” e do “único”, mal compreendida por algumas personalidades
notoriamente a-sociais e que tão gravosas consequências teve para o movimento anarquista, como foram as tendências antiorganizativas e o violentismo irresponsável. Porém – tudo tem o seu oposto –, este individualismo e esta liberdade constituíram também uma excelente vacina contra as pulsões dirigistas de certos propagandistas que se sentem possuidores da verdade, sobretudo quando têm a oportunidade de coagir os demais a seguir aquilo que eles pensam estar certo. Nesse aspeto, foi absolutamente liminar e genial a “regra de trabalho” votada no início de um congresso anarquista internacional já no nosso tempo, em meados do século XX, que dizia: “Que cada um diga o que sabe, pode e quer fazer, e não o que acha que os outros deviam fazer.” Estas palavras, escrevi-as e divulguei-as há pouco mais de um ano. Como, habitualmente, ninguém veio ao desafio – intelectual mas também político – para contestá-las, e muito menos para as subscrever ou problematizar. Eu diria que, hoje, não se discutem ideias; quando muito, temas em moda e certas ações, e apenas para lhes contrapor outras de idêntica natureza e somente contrastantes na forma. Isto passa-se nos meios anarquistas atuais, mas também de modo generalizado nas sociedades intercomunicativas e pós-modernas que vamos conhecendo. O tema “anarquismo e anarquia” aqui em discussão é também daqueles que só interessam a alguns poucos intelectuais. Muitos deles esquecem-se do que devem à sociedade atual – quero dizer: sobretudo, à economia liberal e ao Estado constitucional – que lhes permitiu ascenderem a uma função bem remunerada numa universidade ou em outra grande organização e, simultaneamente, poderem exercer com toda a liberdade o seu direito de crítica, incluindo sobre aquilo que lhes assegura o estatuto e o bem-estar de que usufruem. Mas não é de cinismo que aqui queremos falar. Apenas me saltou esta referência lembrando-me repentinamente (mas não decerto por acaso) das relações entre Bakunine e Nacheiev em 1869-1870 e no que elas podem revelar de equívoco e perigo mortal para uma ideologia que se pretende libertadora de todas as servidões humanas. Não precisamos de grandes esforços históricos, filosóficos ou filológicos para entender (de uma maneira largamente compreensível pela maioria) que o termo “anarquismo” designa uma corrente de pensamento e ação política originada no século XIX, em forte conexão com o nascente movimento operário-socialista e com as pulsões emancipatórias populares (de progresso, antirreligiosas mas também nacionalistas) que a Revolução Francesa havia contribuído fortemente a estimular, na Europa e nas Américas. Há um século, após a tragédia da Grande Guerra, esse movimento anarquista começou a perder pé, com a vitória dos “primos bolchevistas” na Rússia, mas pôde ainda sobreviver em Espanha até às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Há cinquenta anos, a irrupção juvenil do “Maio de 68” em França e alhures forneceu a muitos a ideia de que as lutas radicais pela liberdade estavam de volta. Mas se o espírito da revolta foi reencontrado por esse segmento já relativamente privilegiado das sociedades mais industrializadas, nenhum projeto revolucionário pôde ser reconstruído para responder aos desafios novos da mundialização, aos fantásticos progressos da ciência e da tecnologia, aos inebriantes processos do crescimento da economia e dos seus fétiches mercantis. Porém, de nada serve invectivar
estes com cognomes associados ao “capital” e ao “império”, só para reverenciar a capacidade antecipadora de um certo “homem das barbas”, que tanto acertou aqui como errou acolá, tanto provocou os poderes instituídos reinantes como deu força e legitimidade a futuros ditadores que o não mereciam. De tudo isto, deve apenas servir-nos a História (não manipulada por interesses), sobretudo dos tempos da Modernidade, por um lado; e a Ciência, por outro – esta, na medida em que seja capaz de traçar com nitidez aquilo que uma ética humanista deva ditar-lhe como orientações para o avanço do conhecimento e como limites para o bem-estar e o progresso do conjunto da população mundial. Tudo o resto pode ser considerado, mas apenas num segundo plano de importância. Quanto à “Anarquia”, eu julgo compreender o ponto de desembarque do pensamento político do José Maria Carvalho Ferreira – um velho amigo por quem nutro simpática afetividade –, mas não me reconheço em tal “praia”. Julgo ser uma visão iluminista do processo histórico, marcada por todas as dúvidas fundamentadas que vivemos neste início do século XXI e pela radicalidade do modo de ser do seu autor. Será, talvez, uma espécie de pensamento “Pós Pós-Moderno”, que procuraria integrar numa única matriz dados provenientes da biologia, da economia política, da história, talvez também da cosmologia. Mas quem o consegue pensar? Será um super-Robot dotado de uma híper-Inteligência Artificial? E para fazer o quê? Não decerto o papel de “Ditador-bom” da nossa felicidade, a qual acredito seja sobretudo um assunto da nossa esfera pessoal, embora compatível com uma contribuição razoável de (e para) um equitativo bem-estar coletivo. Tudo isto me parece bem distante do pensamento científico (“positivista” e racional) a que eu – cada vez mais “fora de moda” – continuo a fazer referência. Escrevi algures que o anarquismo devia ser visto antes como uma “filosofia de vida”, uma ideologia de elites morais, que podia ser apresentada como uma imagem ideal de convivência social e de meio propício à plena realização de cada indivíduo, ou seja, como uma “religião cívica” (sem “conversões” nem gurus ), mas não verdadeiramente uma teoria política ou um programa de transformação social.
Porém, pela minha parte, também já reconheci que me interessei geralmente mais por tudo o que, na sociedade atual, pudesse conter uma parte do “programa libertário”: na área da social-democracia ou do socialismo democrático respeitador dos direitos humanos, a sua preocupação preferencial pelos mais fracos e a sua sensibilidade às desigualdades sociais; nos “novos movimentos sociais”, a ousadia e iluminação dos temas “civilizacionais”, como se espera de forças “irresponsáveis”; no liberalismo, o seu apego à perspectiva individualista e mesmo ao ceticismo da sua visão da condição humana; nas associações de interesses, a importância da sua função agregativa, contratualista e social; e até nos movimentos religiosos, a exigência do não fechamento das sociedades humanas nas questões prosaicas, mantendo aberta a disposição para uma eventual “iluminação”. Afinal, sendo a política a arena onde as grandes transformações ganham a visibilidade dos momentos sublimes, ela é também apenas um “compartimento” social talvez bem mais estreito do que aquilo que geralmente pensamos. João Freire, Portugal, novembro 2019 ENTREVISTA REALIZADA POR JOSÉ MARIA CARVALHO FERREIRA A JOÃO FREIRE 1. De que modo a tua inteligibilidade e intuição humanas se identificou com a anarquia e os anarquismos? A primeiro pulsão foi dirigida para a liberdade, depois de ter vivido uma infância e adolescência feliz, mas sempre dentro de normas algo rígidas, algumas das quais pareciam inaceitáveis para quem, como eu, nascera em Lisboa em 1942, mas nos anos 1960 olhava já para o mundo e tentava compreender as grandes diferenças que nele vislumbrava. O exemplo de meu avô paterno, republicano e adversário da ditadura de Salazar, também contou. Mas a participação na revolta juvenil de Maio de 1968 em Paris foi decisiva para a minha politização, “à extrema-esquerda”, mas já com um pé dentro do anarquismo. Após madura reflexão pessoal, leitura intensiva e muitos debates entre camaradas, cerca de dois anos depois passei a considerar-me espiritualmente dentro do movimento anarquista e dei vários passos consequentes com essa opção. Mais tarde, rememorando esse período de formação, considerei que três haviam sido as razões fundamentais para uma tal escolha: primeiro (quase um “menor-esforço”), foi reconhecer que ela se situava finalmente no foro da minha subjetividade individual – e ser, por isso, indiscutível –, dispensando-me de estar, a cada passo, a ter que me justificar “teoricamente”, na floresta discursiva que eu agora bem conhecia do “esquerdismo” e do meio universitário parisiense; a segunda razão foi de ordem afetiva-relacional , experimentada pelo aprofundado convívio pessoal estabelecido com muitos velhos militantes anarquistas (franceses, espanhóis, italianos, búlgaros e portugueses), protagonistas de histórias terríveis e heroicas, que eu nunca mais fui capaz de desiludir; e, finalmente, a terceira razão terá sido de ordem estética ,
materializada em diversas criações culturais, sobretudo na música e na literatura. 1. Após assumires plenamente essa identidade ideológica e política como conseguiste distanciar-te das ideologias e esquerda e de direita? Ideologicamente, creio que como a generalidade dos militantes anarquistas da época e da minha geração, não foi difícil demarcar claramente a posição do “meu anarquismo” das forças, motivações e temas usuais das direitas, fossem elas conservadores, nacionalistas, religiosas ou liberais. A minha experiência de vários anos de trabalho em fábrica, como operário, também ajudou fortemente a reconhecer a razão de alguma revolta e de certos comportamentos típicos dessa classe social. O “patrão” e o “capitalista” eram figuras facilmente detestáveis, mesmo para além das fronteiras da esquerda. Quanto às correntes socialistas, comunistas e esquerdistas, as nossas críticas acusatórias situavam-se mais no âmbito da “compactuação com o capitalismo”, da “traição” e do autoritarismo bebido em Marx e em Lenin, e da sua reprodução tardia (e ilusória demarcação) por parte de trotskistas e maoistas. Mais difícil era a demarcação com os marxistas-obreiristas da “ultraesquerda” (conselhistas, luxemburguistas, trontistas etc.) e com as correntes sindicalistas-autogestionárias, geralmente considerados como amigos ou aliados, e não adversários políticos como os anteriores. Mais difícil foi para mim quando, já na década de 1980, os meus estudos e investigações sobre o anarquismo e um maior conhecimento acadêmico das sociedades modernas (sociologia, economia, política, instituições e dinâmicas) me afastaram completamente do cenário de que uma revolução (à maneira russa ou espanhola) pudesse ser um caminho viável para a generalização das melhores ideias do anarquismo. Aí algum conflito existiu e uma certa tensão persistiu longamente entre os projetos militantes (embora agora já só baseados na educação e difusão cultural, por um lado, e na investigação/difusão da história do anarquismo, por outro) e a análise que ia fazendo, aprofundando e atualizando, das sociedades contemporâneas. 1. Com a criação da revista A Ideia , em Paris, um pouco antes da eclosão da revolução de 25 de Abril em Portugal, quais eram os seus objetivos ideológicos e políticos? Eram simples e concretos: embora eu militasse em estruturas libertárias francesas e me sentisse bastante divorciado do que se passava em Portugal, achei que talvez fosse possível lançar e manter uma publicação que veiculasse um discurso anarquista em língua portuguesa. Daí o empenho em que me encontrava nos princípios de abril de 1974, não só de publicar o número inaugural do que seria a revista A Ideia , mas também em organizar nesse verão uma 1 a Conferência de anarquistas portugueses exilados, para o que contava com a presença de antigos anarcossindicalistas viajados desde Lisboa, com o Claude Moreira, que em Londres publicava O Clarão , os simpatizantes que na Alemanha editavam uma A Batalha , o jornalzinho Portugal Libertário (que o José Luís de Brito produzia no âmbito da ORA francesa) e alguns amigos provindos do anterior grupo dos Cadernos de Circunstância . A existência de um grupo de jovens estudantes em Lisboa já
ligados a esta última publicação (por ação do “Zé Maria”) e as aproximações feitas por alguns meus ex-camaradas da Marinha que já haviam realizado arriscados serviços de transporte clandestino de propaganda para Portugal, davam-me perspectivas de que seria viável esta “atualização” da propaganda política em Portugal (onde não havia a mínima expressão de anarquismo), mas onde sabíamos existir uma população juvenil-estudantil já sensibilizada pelo “Maio de 68” e pouco disposta a ir morrer em África numa guerra que nada lhe dizia. 1. Antes de regressares definitivamente a Portugal quais foram as relações que mantiveste com anarquistas espanhóis que viviam no exílio e tinham participado na revolução social em Espanha, entre os quais Federica Montseny? Foram bastante intensas, sobretudo com os homens da CNT e da FAI no exílio residentes em Paris e que tinham sede na rue des Vignoles n o 33, perto da Praça da República. Tomás Marcellán (gerente da Imprimerie des Gondoles , onde trabalhei um verão a iniciar-me no ofício), Joan Ferrer, bem como o búlgaro Georges Grigoroff (de pseud. Balkanski) e outros cujos nomes esqueci foram meus interlocutores semanais; mais a espaços, Muñoz Congost (secretário da AIT), o Isaac Garcia Barba, a Federica Montseny e o Germinal Esgleas (que viviam em Toulouse), ou o querido “avôzinho” italiano Umberto Marzochi (então secretário da Internacional de Federações Anarquistas). Todo eles enfileiravam na “linha ortodoxa” que reconhecia a importância das organizações e a legitimidade (obrigatoriedade) das decisões coletivas tomadas em congressos. Pessoalmente, era essa também a minha postura, embora eu nada precisasse disso para saber arbitrar e executar aquilo que (sem violar ninguém) achava que devia ser feito. Mas isso também aprendi com outros anarquistas, franceses e “menos ortodoxos”, com quem lidei e trabalhei na CNT francesa, nos contatos com o grupo “Louise Michel” da Fédération Anarchiste, com o Groupe Humaniste Libertaire do Gaston Leval, com a Aliance Syndicaliste, com a Union Pacifiste, com o jornal Le Refractaire da May Picquerai ou (a distância) com o grupo que publicava Anarchisme et Non-Violence . Mas toda esta variedade de “anarquistas credíveis” estava de costas voltadas para os espanhóis dissidentes de Frente Libertario ou os sindicalistas suecos da SAC. Com esses, também eu não me quis meter, por desconhecer e desconfiar de “tricas” que vinham do passado e das controvérsias da derrota da revolução em Espanha. Mais uma consequência de “ Hay de los vencidos…! ”. 1. Qual a importância dessas pessoas na consecução estratégica da implementação em Portugal da Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP) no ano de 1976? Nenhuma. Na linha do que disse acima, e visto o que observei em Portugal na primavera-verão de 1974 – desorganização, irrealismo e riscos de segurança para os anarquistas residentes em Espanha –, fui eu que decidi lançar-me na organização dessa FARP. Por razões sentimentais e históricas, ela reclamava constituir a “parte portuguesa” da Federação Anarquista Ibérica (fundada em 1927 com a participação dos portugueses). E acautelou muito os contatos com Espanha, ainda sob ditadura. Mas, no resto, o seu
modelo de organização e funcionamento era antes o da “síntese”, proposta nos anos 1930 por Sébastien Faure e praticado pela federação francesa, a saber: uma organização onde cabiam todas as tendências e sensibilidades existentes no movimento anarquista, desde os “individualistas”, aos “anarcossindicalistas” e “comunistas-anarquistas”, até os anarquistas “a secas”. Mas isso era mal aceito por “espontaneístas” nascidos das revoltas dos anos 1960, tal como Cohn-Bendit bem protagonizara; e também por outros herdeiros do velho anarquismo antiorganizativo. Assim também aconteceu em Portugal. 1. Qual foi a relevância do papel da revista A Ideia e da Cooperativa Sementeira na difusão das ideias e práticas do anarquismo em Portugal? Sem falsa modéstia, creio ter sido o núcleo editor mais consistente e duradouro do anarquismo contemporâneo neste país, ao lado do jornal A Batalha e seguido, mas a alguma distância, por publicações como Utopia , Voz Anarquista ou Singularidades . Obviamente, muitas outras compuseram o naipe de jornais, revistas ou folhinhas que ostentarem o rótulo e divulgaram (ao menos parcialmente) o ideário anarquista. Como é compreensível, aquelas duas primeiras publicações fizeram evoluções acentuadas nas suas perspectivas políticas e ideológicas ao longo de mais de quarenta anos: no primeiro caso, sobretudo por força da minha própria evolução (embora até 1991 nada fosse publicado sem o acordo do grupo editor); no segundo caso, por virtude da renovação da sua equipe de redatores, já antes, mas sobretudo depois, da morte de Emídio Santana. Houve outras colaborações indispensáveis mas, sem nós, não teria havido o comício do 19 de julho de 1974 na “Voz do Operário”, nem a Semana de Presença Libertária de 1978, nem o Arquivo Histórico-Social, nem uma vintena de livros e livrinhos publicados salvaguardando a memória histórica do anarcossindicalismo, nem o Colóquio Internacional de Estudos “Tecnologia e Liberdade”, nem a Exposição “Um século de Anarquismo em Portugal” em 1987. 1. Sei que entre os grupos em que participaste na divulgação dos princípios e das práticas do anarquismo enfrentaste conflitos, contradições e provocações ideológicas e políticas com outros grupos anarquistas, o que pensas de tudo isso? Penso (hoje) que se tratou de luta política tradicional, não muito diferente daquela que existe nos partidos políticos institucionais (ou extraparlamentares autoritários), a despeito do convencimento da maioria dos militantes anarquistas de que são “superiores” a tais querelas e dispõem de uma “teoria” que os imuniza dos apetites e taras do “poder”. 1. Pelas razões anteriores abandonaste, em certa medida, as razões de um anarquismo revolucionário que tenhas defendido para um tipo de anarquismo reformista. O que pensas, atualmente, de tudo isso e da tua própria evolução ideológica e política?
É certo que as minhas decepções com o comportamento de muitos anarquistas da nova geração terão influído alguma coisa quanto à descrença numa “solução revolucionária”. Se esta gente é assim num regime de liberdade e relativa abundância, como se comportariam eles a querer impor as suas convicções a outros (à maioria) em situações de stress , violência reinante, intoxicação informativa e urgência na tomada de cruciais decisões coletivas??? – perguntava-me eu, com toda a razão. Mas outro fator influiu bastante na minha evolução política: a possibilidade de ter investigado a fundo, incluindo em fontes primárias, a história do anarquismo em Portugal, que por vezes era bastante contrastante com a memória sustentada (ainda que malgré eux ) pelos seus sobreviventes e por aqueles que os tomavam como “a verdade”. A minha ternura efetiva por essas pessoas não impediu o meu juízo crítico sobre o que fizeram, contaram ou perceberam. Finalmente, a minha evolução mais recente, dos últimos trinta anos, deveuse sobretudo à possibilidade de estudar a sociedade atual, em vários planos, já sem ter que nela “encaixar” o contributo (que foi real, mas creio que diminuto ) do pensamento e do movimento anarquista. Mas note-se que, já pelo menos desde 1983 (quando publiquei um trabalho sobre Kropotkine, definindo-o como “um anarquismo não revolucionário”), ou desde 1986 quando investiguei sobre a guerra civil espanhola, se pode verificar que eu me orientava para “o reformismo”: influência na cultura, na educação, na economia social – e sobretudo no exemplo dos comportamentos pessoais. “Libertário”, sim, pela referência à liberdade (como os liberais), mas descrente do capitalismo e do Estado que vimos experimentando; e por isso “pessimista” quanto ao futuro. Mas também cético quanto à capacidade regeneradora das alternativas que têm emergido depois do Socialismo e, apesar de tudo, “racionalista” e “institucionalista” quanto ao modo de organização da sociedade em que (hoje) somos chamados a viver. 1. Qual o papel da tua família na tua trajetória biológica e social na tua inserção do movimento social anarquista? Muito grande. A minha companheira de sempre nunca foi, propriamente, uma pessoa “politizada”, mas sempre a vi orientada para a verdade, a liberdade, a cooperação, a solidariedade, o entendimento, o trabalho. Não poderia ter vivido paredes-meias com uma pessoa que não fosse assim, e que assim quisesse orientar a descendência. A família dela comungava dos mesmos valores e forneceu à ação libertária mais outros dois ativistas. Da minha origem familiar, já referi o “exemplo republicano” que recebi de meu avô. Mas mais importante do que isso terá sido o elevadíssimo padrão moral e intelectual do meu pai (falecido quando eu tinha vinte anos) e a bondade natural de minha mãe, apesar do meu pai não se envolver “em política” e ela partilhar das orientações do catolicismo tradicional em Portugal, que eu rejeitei logo ao chegar à idade adulta. Dezembro / 2019 15
ROBERTO FREIRE, UM AMANTE ANARQUISTA Gustavo Ferreira Simões As primeiras impressões “Só há uma doutrina na vida. Esta doutrina só tem uma fórmula. Esta fórmula só uma palavra. Gozar” (FERRER, 2012, p. 2012), estampou, em 1897, o jornal anarquista La Autonomia , publicado em Buenos Aires. Em seu ensaio “Os antípodas. o futuro das publicações anarquistas de outrora”, Christian Ferrer sublinhou como no início do século, nas páginas dos periódicos ácratas, a afirmação do amor livre estava presente ao lado de textos sobre ação direta, nudismo, vegetarianismo, emancipação feminina, ajuda mútua… Alguns anos depois, segundo ele, Severino Di Giovanni, anarquista identificado pelo governo como o principal inimigo por conta das suas expropriações, assinava em outro jornal, o La Protesta , o folheto “A virgindade paralisante”. É de America Scarfó, uma jovem de dezesseis anos, anarquista companheira de Giovanni em seus últimos meses de vida, um dos registros mais intensos do amor livre nesse período. Scarfó foi contemporânea e conterrânea de Salvadora Onrubia, militante que, como mostrou Lúcia Soares, ¹ lutou pela fuga de agitadores encarcerados pelo governo argentino e defendeu a liberdade das mulheres em peças teatrais consideradas escandalosas, como Las Descentradas . Em 1928, Scarfó escreveu para o L’En dehors , periódico anarcoindividualista editado por Émile Armand. Por carta, narrou os prazeres e as dificuldades em afirmar uma relação com um homem mais velho e perseguido sistematicamente pela polícia. “Desejo a anarquia (…) Creio que para alcançá-la devemos fazer a revolução social (…) para chegar a essa revolução é necessário liberar-se de todos os preconceitos, convenções, falsidades morais e códigos absurdos (…) No amor, por exemplo, não aguardaremos a revolução” (SCARFÓ, 2008, p. 53-54), concluiu. No mesmo período assinalado por Ferrer, isto é, na transição entre o século XIX e as primeiras décadas do XX, no Brasil não foi diferente. Variados periódicos europeus, na década de 1890, publicaram correspondências que possuíam como remetente a Colônia Cecília, situada no município de Palmeiras, no estado do Paraná, no qual anarquistas que imigraram da Itália experimentaram coletivamente a lida com a terra e o amor livre. Apesar de não figurarem em antologias sobre a História das Idéias e do Movimento , ² as indicações de Ferrer expõem como nos jornais que circulavam de mão em mão, muitas vezes lidos em voz alta e coletivamente, abundaram escritos sobre o amor anarquista. No dia 15 de junho de 1919, no jornal Jerminal , recuperado por Edson Passetti e Acácio Augusto em Anarquismos & Educação , Antonio Atavilla “escrevia sobre o amor livre, um libelo contra o casamento, suas leis, cerimônias religiosas, o domínio dos pais sobre as filhas, a submissão da mulher, a encenação do casamento como relação indissolúvel e convenção social” (PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 63). Em 1928, mesmo ano em que Scarfó escreveu a Armand, no Brasil, Maria Lacerda de Moura publicou Han Ryner e o amor plural . O livro de Moura problematizou a “camaradagem amorosa” proposta por Armand, segundo
Margareth Rago, como um comunismo ainda degradante, “no qual a mulher continua representando o papel de coisa, objeto de prazer, eleita sempre e quase nunca com direito a escolher” (MOURA apud RAGO, 2011, p. 63). A coexistência das diferentes perspectivas, de Armand a Ryner e Moura, indicam a força da multiplicidade dos debates anarquistas relacionados ao chamado amor livre. Entretanto, as histórias desse combate anarquista não se restringem ao primeiro quarto do século XX. Sob efeito incendiário e liberador dos anos 1960, mais próximos dos acontecimentos hippies e contraculturais, o jornal O Inimigo do Rei (1977-1988), em plena ditadura civil-militar, com letras garrafais anunciava: “Prática sexual ampla, geral e irrestrita”. O deboche explícito relacionado à “abertura política” imposta pelos militares incomodou até mesmo alguns anarquistas. “Alguns anarquistas achavam que essas discussões não cabiam naquele momento. Diziam que Émile Armand já tinha falado sobre isso há mais de cem anos mas que tinha uma ditadura que oprimia a classe operária” (PACHECO apud SIMÕES, 2007, p. 173), recordou Antônio Carlos Pacheco, um dos jovens inventores do jornal que começou em 1977, com estudantes na Universidade Federal da Bahia (UFBA) antes de se espalhar por todos os cantos do país. Contudo, é com outra publicação, chamada Libertárias , lançada em São Paulo, no mês de dezembro de 1998, quase um século depois da La Autonomia retomada por Ferrer, que encerro esta breve introdução. Foi nas páginas da edição dedicada às “Rebeldias”, que Jaime Cubero, em seu artigo “Razão, Paixão e Anarquismo”, mais precisamente em uma nota no fim do texto, arrematou: Em uma palestra, na CASA DA SOMA, sobre amor livre, abordamos o assunto, juntamente com Roberto Freire e concluímos por essa conceituação. A expressão amor libertário é de Roberto Freire, a quem considero, entre os autores anarquistas que conheço, o maior e mais profundo na abordagem do tema, em termos atuais. (CUBERO, 1998, p. 68). Cubero, anarquista vital para a reativação do Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP), após o final da ditadura participou do coletivo responsável pela edição de Libertárias . Sobre seu bom humor e interesse nas conversas acerca do amor libertário, Edson Passetti rememorou: “antes de sua morte, em nossa última reunião do coletivo que editava a revista Libertárias , encerramos a sessão com a leitura do Manual de boas maneiras para as meninas , de Pierre Louys. Uma divertida e erótica despedida” (PASSETTI, 2006, p. 211). Da impossibilidade do amor à experiência do Tesão Roberto Freire (1927-2008), também conhecido pelos amigos como Bigode, nasceu em São Paulo. Na primeira metade da década de 1950, formou-se em medicina, profissão que aos poucos foi abandonando para tornar-se psicanalista. Nos anos 1960, aproximou-se intensamente das movimentações sociais e culturais ocorridas durante o governo presidencial de João Goulart. Com o golpe civil-militar de 1964, rompeu definitivamente com a psicanálise. No ano seguinte, em 1965, foi preso pela primeira vez. Um militante da Ação Popular , organização da qual fazia parte, deu informações
de que ele, Freire, abrigava uma jovem militante na casa em que vivia com a companheira Gessy e seus filhos Pedro, Paulo e Beto. “Ele entregou a noiva, por medo da Polícia ou da Marinha, destruindo a possibilidade de sobrevivência daquele amor, bem como atingiu o meu e da minha mulher” (FREIRE, 2001, p 171), escreveu mais tarde em Eu é um Outro . Segundo Freire, no interior do DOPS, afetado pela repressão da ditadura civil-militar, animado pela sua relação com a Ação Popular , irrompeu Cléo & Daniel . O livro editado pela Brasiliense, best seller na década de 1960, narra a relação apaixonada entre dois jovens que, ao experimentarem o prazer em liberdade, tornam-se insuportáveis para a sociedade. No rescaldo da escrita do livro redigido à base de muitas doses de uísque, em uma casa perto do mar em São Sebastião, após a saída da prisão, Bigode retomou o trabalho com os jovens da AP e com os estudantes da PUC-SP. Como diretorgeral do Teatro da Universidade Católica (TUCA) foi um dos responsáveis pela montagem teatral de Morte e Vida Severina e O&A . Acossado pela polícia por suas atividades culturais identificadas como subversivas, no final da década de 1960, viajou para a Europa. Em Paris, no Palais Des Esports, a apresentação de “Paradise Now”, do grupo anarquista The Living Theatre (TLT), alterou decisivamente sua perspectiva ético-estética da vida. Se na primeira metade da década de 1960, havia para Freire “a sensação de que não se poderia mais amar depois do Golpe” (FREIRE apud PASSETTI & SIMÕES, 2012, p. 234), após o encontro com Julian Beck, inventor do LT e também um inventor do amor libertário ao lado de Judith Malina, Bigode retornou à psicologia como maneira de resistir à ditadura no Brasil em seus anos mais brutais. Freire volta ao país sob efeito da indicação de Beck e dedica-se a estudar o pensamento de Wilhelm Reich, lendo as obras Análise do Caráter e A Função do Orgasmo , do socialista revolucionário e dissidente de Freud. É nesse momento que começou a tomar forma a somaterapia, terapia reichiana que visava prestar auxílio aos militantes e jovens que combatiam diretamente a ditadura civil-militar e seus efeitos autoritários nos costumes e, consequentemente, em seus corpos. Assim, no início dos anos 1970, no Macunaíma, escola de teatro levada adiante por seus amigos e ex-alunos da Escola de Arte Dramática (EAD), Miriam Muniz e Silvio Zilber, Freire incorporou parte dos exercícios criados para liberar a criatividade dos jovens atores. Simultâneo a tais experiências, ainda no começo da década, separado de Gessy, abandonou definitivamente a militância na AP, ruptura justificada por ele pelo encaminhamento autoritário, marxista-leninista, da organização. Em 1977, com Viva eu viva tu viva o rabo do tatu , coletânea de artigos dedicada a Chico Buarque e Plínio Marcos, dois artistas que iniciaram seus respectivos trabalhos auxiliados por Bigode, declarou-se pela primeira vez um anarquista. Pouco mais de meia década depois, em 1984, veio Utopia e Paixão , parceria com Fausto Britto. Como explicita o título do livro, no momento em que havia perdido a visão de um dos olhos por efeito das torturas, Freire abandonou a “impossibilidade do amor”, a triste conclusão de Cléo & Daniel , para viver libertariamente a paixão no presente. Todavia, foi em Coiote , lançado dois anos depois de Utopia & Paixão , que se concentraram as transformações incisivas experimentadas por ele nos anos anteriores. Nas
páginas do livro, na ação dos personagens, estão a afirmação do anarquismo intensificada depois do encontro com o TLT; as pesquisas sobre Wilhelm Reich e antipsiquiatria; a aproximação com questionamentos ecológicos radicais a partir das temporadas que passava nas matas de Visconde de Mauá, na região de Resende, no estado do Rio de Janeiro, cenário do romance. Coiote , esse animal encontrado ao norte da América e que marcou parte da literatura beat , ³ foi baseado em duas histórias reais. A primeira, segundo ele descreveu em entrevista ao Inimigo do Rei , foi a sua convivência com uma “família anarquista”, em Forli, na Itália, no começo dos anos 1970. A segunda, foi a fuga de um jovem, Nando, de um hospital psiquiátrico, auxiliado pelo próprio Bigode. Associando os dois episódios, desenrolou-se a história, na qual um jovem identificado como “esquizofrênico”, em vez de conviver com a repressão, cresce num ambiente marcado por relações livres como a que observara em Forli. Publicado em 1986, pela editora Guanabara, foi Coiote que apresentou o Tesão no percurso ético e estético de Freire. Em um diálogo do livro, Bruxo, um dos personagens, artista, pintor anarquista que morava no alto da montanha, ao ouvir de Rudolf Flugel (alter-ego de Roberto Freire) a decisão deste em ceder suas terras à comunidade anarquista, uma espécie de zona autônoma temporária, inventada pelo jovem revolucionário, retruca que o Anarquismo não era “coisa de moleques que ficam horas dançando e se abraçando, que lêem gibis, dançam rock, fumam maconha e trepam feito bicho” (FREIRE, 1986, p. 205). Depois de responder ao vizinho libertário que ali não era Moscou, tampouco estavam na década de 1920, Flugel arrematou: “[Bruxo,] Tesão é a palavra mais bonita que existe! Tem a ver com prazer, alegria e beleza ao mesmo tempo (…) Você só sente tesão com seu pau e com teus pinceis” (ibidem). O erotismo do cotidiano e o amor libertário Em 1988, sob efeito de Coiote , Bigode publicou Sem Tesão não há Solução , título empolgado por uma pichação vista por ele no muro de um Cemitério da Consolação, em São Paulo. No texto lançado dois anos depois do ocaso da ditadura civil-militar, reafirmou sua perspectiva liberadora das drogas e do sexo e a sua militância ecológica radical. Pouco depois do lançamento, mais um best seller , agora como um ensaísta anarquista em vez de romancista, ocorreu mais uma ruptura em sua vida. Após sofrer um enfarte em Mauá, incomodado com os rumos da Soma, encerrou o Coletivo Experimental, grupo formado para conduzir os trabalhos da terapia anarquista. Dois anos depois lançou Ame e Dê Vexame , mais um sucesso de vendas, e finalmente concluiu a definição do seu anarquismo somático . A partir de seus deslocamentos, do afastamento da religião na ultrapassagem da década de 1950, passando pelo abandono da psicanálise e da militância marxistaleninista depois do golpe civil-militar, assinalou que uma das características do seu pensamento libertário era o combate às chamadas “ideologias do sacrifício”: a religião, a psicanálise e o marxismo. Sem o coletivo de terapeutas que o acompanhava, comprou um buggie e construiu uma casa em Canoa Quebrada, litoral do Ceará. Dedicou-se com afinco à literatura,
mais precisamente aos contos eróticos de Histórias Curtas & Grossas . Quando não estava em Canoa, viajava por todos os cantos do país para promover o livro e realizar palestras sobre o que chamou de erotismo do cotidiano . Baseando-se na reflexão do escritor e pintor D. H. Lawrence, para quem a chamada indecência era saudável desde que experimentada no corpo inteiro em vez de confinada no cérebro, Freire dedicou as aventuras a Ignácio Loyola Brandão, Bruna Lombardi e a João Da Mata, “único remanescente do meu incrível Exército Brancaleone” (FREIRE, 1991, s/p). Com sessenta e quatro anos de idade, depois de afirmar a paixão e o Tesão nos anos 1980, em um breve artigo sobre o livro, “erotismo libertário”, Bigode revelou que na época, além de Lawrence, retomou o contato com a escrita de Henry Miller. Para Freire, ambos “ousaram vencer a ideologia do sacrifício de seu tempo” (FREIRE, 1991, p. 7). Dessa maneira, insatisfeito com seu próprio trabalho até aquele momento, conta que decidiu, então, combater em si mesmo o que ainda restava dos saldos sacrificiais em sua formação. E assim sendo, definiu: “descobri coragem em mim para escrever histórias vividas que tinha dentro de mim (…) na busca e na realização do que chamo de erotismo libertário em literatura, de forma e conteúdo anarquistas” (ibidem). Para além da associação usual entre erotismo e sexo, em 1992, ainda no rescaldo das Histórias Curtas & Grossas , em entrevista para o jornal mineiro Diário da Tarde , considerou: eu acho que nós devemos pegar essa energia libidinosa, que é enorme, e usá-la no cotidiano. Por exemplo, se vou ao mar, eu posso simplesmente sentir a água, mas eu também posso sentir o prazer do contato com a água. Eu posso dar ao meu amigo um prazer enorme de sentir a presença dele, a presença física dele, sem precisar fazer sexo com ele, mas que exista uma coisa gostosa na nossa relação. É importante a gente usar um pouco de erotismo na relação com os nossos filhos, poder tocar nossos filhos, sentir a presença física deles. Eu tenho três filhos homens e sei o cheiro deles. Eles entram em casa e eu sei quem entrou. Então, o prazer de comer, de beber, de dançar, tem que ter um certo grau de sensualidade para ficar ainda mais gostoso (FREIRE, 1992, s/p). Desdobramento da consolidação do anarquismo somático e do erotismo do cotidiano , ao lado de jovens como João Da Mata, começo da década de 1990, Bigode ainda inventou o Coletivo Anarquista Brancaleone e A Casa da Soma , espaço localizado na rua Candido Espinheira, em Perdizes, São Paulo, na qual Jaime Cubero conversou com ele sobre o amor libertário. Em meados dos anos 1990, antes ainda do adjetivo “livre” ser mais uma vez capturado e tornar-se o nome de um movimento suprapartidário liberal como hoje, no Brasil, ou ainda anterior à emergência do “poliamor”, relacionamento que envolve mais de duas pessoas, mas que atualmente reivindica também o reconhecimento jurídico, Bigode e Cubero defenderam a radicalidade do amor anarquista, o amor libertário. A coexistência com Cubero ocorreu, em especial, após a realização de “Outros 500: pensamento libertário internacional”, organizado, em 1992, por Edson Passetti na PUC-SP. A relação de amizade despontada nesse
instante foi um dos estopins de Os Cúmplices , romance lançado em 1995, em que Freire descreveu a relação entre dois irmãos que crescem no bairro do Bexiga e juntos vivenciam o anarquismo, os prazeres, ao mesmo tempo que resistem aos autoritarismos e às violências do Estado. Um amante anarquista Em recente artigo, “Amor e servidão, paixão e revolta”, Acácio Augusto (2020) situou o amor livre anarquista, o amor libertário, próximo da paixão e da revolta e distante da revolução. Observando o percurso de Roberto Freire fica nítido como, pouco a pouco, ao se afastar da militância organizada, Bigode singularizou sua literatura e deu forma ao seu anarquismo. Octavio Paz mostrou como desde meados do século XIX, a sintaxe política aproximou revolucionários e reformistas, fortalecendo a crença na razão, no progresso, na história como processo linear e marcha para adiante. Rompendo com essa linha, com esse domínio do revolucionário e do reformista, estariam, segundo ele, “os enamorados que pisam as leis sociais, o plebeu genial que desafia o mundo, o dandy , o pirata” (PAZ, 1996, p.264). Durante um certo tempo associei Freire ao pirata e a esse dandismo. Vale lembrar que o dandy Oscar Wilde, apesar de poucos comentarem, foi um anarquista. O autor de A alma do homem sobre o socialismo , no final do século XIX, foi julgado e preso por praticar seu amor, numa época em que, na Inglaterra, o prazer gay era identificado como crime. Encerro este texto associando o autor de Sem Tesão não há Solução e Ame e dê Vexame ao dandy , ao pirata e ao filósofo cínico, mais um personagem que nos ajuda a pensar a força da vida de Roberto Freire. Em A Coragem da Verdade , seu último curso (1984), em certa altura, ao comentar sobre o cinismo na Grécia Antiga, Michel Foucault observou que as características desses filósofos não se restringiam à vestimenta, ao cajado, aos pés descalços. Para além do modo de se apresentar, eles eram os errantes. Não tinham propriedade, família, pátria. Como um dos exemplos do modo de vida cínico citou o encontro entre Hiparquia e Crates. Incomodado com as declarações de Hiparquia de que ela se suicidaria se ele não se casasse com ela, Crates decide ficar completamente nu em praça pública. Dessa maneira, expôs seu modo de vida, isto é, nada possuir além do próprio corpo, da própria existência. Depois de citar a nudez de Crates e sublinhar a liberação dos vínculos, de todos os vínculos, como possibilidade de afirmação radical da liberdade, Foucault conclui que para esses filósofos o filosofar era “um modo de tornar visível, nos gestos, nos corpos, na maneira de se vestir, na maneira de se conduzir e de viver, a própria verdade” (FOUCAULT, 2011, p. 50). Retomo aqui a leitura da filosofia cínica de A Coragem da Verdade , curso em que Foucault encara o militantismo anarquista como uma possível atualização do cinismo, por duas razões. A primeira: seguindo as sugestões de Foucault, fazer uma outra história. Em outras palavras, fazer uma análise do estilo de vida nos movimentos revolucionários e de como a vida como escândalo, uma vida como esta vivida por Freire, “se opôs à definição de uma conformidade de existência como condição para o militantismo em partidos que se dizem revolucionários” (ibidem, p. 163). A segunda é me
afastar do juízo sobre o final da existência de Freire. Apesar de receber visitas dos filhos Tuco e Paulo e de alguns amigos, Bigode, um amante libertário, decidiu viver o ocaso sozinho. A partir dos cínicos, em vez de creditar tal afastamento exclusivamente a seu temperamento considerado difícil, penso na atitude radical, uma liberação dos vínculos quando menos se esperava, como mais uma afirmação libertária. Apresentei aqui, rapidamente, um pouco do caminho singular do Roberto Freire. Cada anarquista sabe que o amor livre é uma invenção singular e sempre urgente. Em seu disco Vida de artista , sim, ele ainda gravou um disco no início dos anos 2000, o próprio Bigode concluiu, mas, sem encerrar: “no amor jamais nos deixamos completar. Somos um para o outro deliciosamente desnecessários.” Referências bibliográficas AUGUSTO, Acácio. Amor e servidão, paixão e revolta. Verve . São Paulo, NuSol, v. 37, p. 42-57, 2020. CUBERO, Jaime. Razão, paixão e anarquismo. Libertárias . São Paulo, 1998. FERRER, Christian. Os antípodas. O futuro das publicações anarquistas de outrora. Verve . São Paulo, Nu-Sol, v. 21, p.13-22, 2012. FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade . São Paulo: Martins Fontes, 2011. FREIRE, Roberto. Eu é um outro . São Paulo: Maianga, 2001. __. Coiote . Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. __. Erotismo Libertário. Palimpsesto . São Paulo, 1991. __. Um libertário. Diário da Tarde . Minas Gerais, Belo Horizonte, 7 de dezembro de 1992. PASSETTI, Edson. Jaime Cubero, anarquista. Verve . São Paulo, Nu-Sol, v. 29, p. 209-214, 2016. PASSETTI, Edson; AUGUSTO, Acácio. Anarquismos & Educação . São Paulo: Autêntica, 2008. PAZ, Octavio. Signos em rotação . São Paulo: Perspectiva, 1996. SCARFÓ, America. Uma experiência. Verve . São Paulo, Nu-Sol, v. 14, p. 53-59, 2008. SIMÕES, Gustavo. Por uma militância divertida: o inimigo do rei, um jornal anarquista. Verve . São Paulo, Nu-Sol, v. 11, p. 168-182, 2007. SOARES, Lúcia. Como ensinar molotov aos netos. Verve . São Paulo, Nu-Sol, v .37, p. 172-179, 2020.
1 Ver a resenha do livro de Vanina Escales sobre Salvadora Onrubia publicada pela pesquisadora do Nu-Sol na mais recente edição da Verve . “Como ensinar molotov aos netos”. São Paulo, Nu-Sol, v. 37, p. 172-179, 2020. 2 Referência às edições da História do Anarquismo escritas por George Woodcock. 3 Os poetas Gary Snyder e William Burroughs citam o animal coiote em suas obras. 16 EDGAR RODRIGUES, MEMORIALISTA DO ANARQUISMO ¹ Carlos Augusto Addor Para Vera A ausência de governo é a anarquia, a mais elevada expressão da ordem Elisée Réclus Num velho sobrado no caminho da Cal, Angeiras, na freguesia de Lavra, município de Matosinhos, ao norte de Portugal, próximo à cidade do Porto, no dia 12 de março de 1921, nasceu Antonio Francisco Correia, filho de Albina da Silva Santos e Manuel Francisco Correia. Seu pai, operário, era membro ativo do Sindicato das Quatro Artes, que representava trabalhadores de vários ofícios do setor da construção civil. Manuel Correia orientava sua militância a partir da concepção e dos princípios anarcossindicalistas. Ainda criança, Antonio observava, escondido, curioso e fascinado, as reuniões sindicais clandestinas em sua casa. Desde então, o menino criou o hábito de guardar material escrito que sobrava das reuniões: jornais, revistas, folhetos, boletins, em suma, notícias sobre a questão social em Portugal. Criou também, muito cedo, o saudável hábito da leitura. A repressão ao movimento operário e ao sindicalismo livre vinha se intensificando desde o golpe de Estado de maio de 1926, que derrubou a Primeira República e implantou a ditadura militar em Portugal. Derrotada a proposta de uma “ditadura temporária” que iria “regenerar” a República, o processo de depuração política intraforças golpistas vai consolidando uma ditadura militar de tendência fascista ou fascistizante. As forças que se opuseram à ditadura iriam formar um amplo e heterogêneo bloco antiditatorial, do qual participam anarquistas, sindicalistas revolucionários, comunistas, socialistas, democratas e republicanos. Esse bloco desencadeou o “Reviralho”, um conjunto de revoltas, entre 1926 e 1939, que buscavam a “reposição da situação democrática e das liberdades
públicas e individuais” (FARINHA, 2010, p. 50). A pesada repressão a esses movimentos, com a prisão e a deportação, para a África e o Timor, de centenas de lideranças e militantes, iria enfraquecendo a resistência e fortalecendo e consolidando a ditadura. No início dos anos 1930, a ditadura militar é substituída pela ditadura civil (com apoio das Forças Armadas) do Estado Novo, formalmente estabelecido em 1933. O novo Estado logo começa o processo de construção de um sindicalismo de feição corporativista e de inspiração fascista. Os “sindicatos nacionais”, que se tornariam uma das bases estratégicas do Estado autoritário, deveriam passar a atuar com absoluto respeito aos “superiores interesses da Nação portuguesa” e “repudiar a luta de classes”. O princípio fundamental passaria a ser o nacionalismo. O prazo para a “adesão” dos sindicatos livres à nova orientação do Ministério do Trabalho seria o final do ano de 1933. Aqueles que não quisessem aderir seriam compulsoriamente fechados. São evidentes as semelhanças com o processo que ocorre no Brasil, à mesma época, guardadas as especificidades. As três centrais sindicais portuguesas mais importantes, a CGT anarquista, a CIS comunista e a FAO socialista, tentam resistir ao enquadramento na sindicalização estatal e formam a Frente Única Operária. Em janeiro de 1934, deflagram uma greve geral revolucionária que, apesar da mobilização, é derrotada. Mais prisões, deportações e exílio de lideranças e militantes. Nas palavras de um historiador português: “O sindicalismo livre encerrar-seia por longos anos (…)” (MADEIRA, 2010, p. 71). É nesse contexto de repressão, não só à insurreição de 1934, mas também às tentativas de resistência de um sindicalismo livre e autônomo, que Manuel Correia e seus companheiros do Sindicato das Quatro Artes retiram da sede sindical e guardam em suas casas boa parte do acervo da associação. As residências dos militantes passam a abrigar também reuniões sindicais clandestinas. É nesse mesmo contexto que Antonio Francisco Correia, com uma crescente “curiosidade de adolescente”, começa o seu “aprendizado ideológico”. Nesse aprendizado também teve importante participação seu professor Raul Gonçalves Moreira, intelectual anticlerical e livre pensador, que lecionava na primeira escola frequentada por Edgar Rodrigues (RODRIGUES, 1995b, p. 350-352). Em julho de 1936, de madrugada, a casa da família Correia foi invadida pela PVDE (substituída, em 1945, pela PIDE), a polícia política da ditadura salazarista. Manuel Correia foi encarcerado no presídio da rua do Heroísmo, no Porto. Quebrada a incomunicabilidade, o jovem Antonio Francisco passou a visitar com regularidade seu pai, levando comida e roupa lavada e trazendo e levando, por vezes, bilhetes com informações.
Podemos imaginar o impacto dessas vivências na formação políticoideológica e também emocional de um rapaz de 15 anos. A experiência certamente deixaria marcas profundas e permanentes na vida de Antonio Francisco Correia. Antonio foi desenvolvendo e amadurecendo, aos poucos, lenta mas irreversivelmente, um profundo sentimento de ódio à ditadura salazarista, de desconfiança em relação à autoridade (qualquer autoridade) e também uma ânsia por justiça e por liberdade. O jovem foi também “juntando papéis”, guardando informações e lendo muito. Os primeiros livros que comprou, “juntando uns tostões”, foram A Velhice do padre eterno , do poeta português Guerra Junqueiro, e A Conquista do pão , de Pedro Kropotkin. Como tinha pouco dinheiro, copiava livros à mão “nas longas noites do inverno europeu”. Foi ainda firmando sua convicção “de um dia escrever e divulgar em livro os crimes da ditadura” (RODRIGUES, 2007d, p. 20). Além de guardar papéis, ler e copiar livros, inclusive peças de teatro social, o jovem Antonio Correia começou, às noites e com os companheiros Abel Silva, Fernando Costa e Fernando Neves, a estudar esperanto. Está começando a (auto)formação do “pesquisador instintivo” Edgar Rodrigues, ainda Antonio Francisco Correia. A derrota dos republicanos, em 1939, na Guerra Civil Espanhola representou um duro golpe para todas as forças políticas que lutavam contra a ditadura em Portugal, em casa ou no exílio. A vitória de Franco e dos monarquistas e o profundo desânimo dela decorrente contribuíram para o fim do “Reviralho” lusitano. Salazar vai se consolidando no poder. Em março de 1940, Antonio Correia filia-se ao Grupo Dramático Flor da Mocidade, grupo de teatro amador fundado em 1939 em Santa Cruz do Bispo, município de Matosinhos. Nesse grupo, Antonio conheceu Ondina dos Anjos da Costa Santos, atriz amadora, que seria, a partir de um namoro e de um “casamento livre”, realizado em agosto de 1941, sua companheira de toda uma vida. Mais tarde, já casado, Correia fez parte da direção do Grupo Dramático Alegres de Perafita, onde passou a residir. Nesse grupo, formou uma “sortida biblioteca” e, para “criar o hábito de ler”, organizava concursos anuais, com prêmios em livros para quem lesse mais obras. Edgar Rodrigues começava a ensaiar sua militância como divulgador de livros, atividade que continuaria a desenvolver ao longo de toda sua vida. Nesse período, Edgar Rodrigues começou a trocar cartas com o militante libertário Luís Joaquim Portela, então preso político nos cárceres salazaristas. Essas cartas serão a base para a publicação, já no Brasil em 1957, do seu primeiro livro: Na Inquisição do Salazar . Em 1943, no dia 26 de agosto, nasceu seu primeiro filho, Oscar Zola Correia. O nome, obviamente, homenageia o escritor francês Émile Zola, autor de Germinal . Ao longo da década de 1940 o povo português permaneceu oprimido pela ditadura, da qual só iria se libertar com a Revolução dos Cravos, em 1974. O
mundo das “trevas de uma nova Idade Média” (RODRIGUES, 1957, p. 44) durou quase meio século, exatos 48 anos. Edgar Rodrigues continuou participando de grupos de teatro social e trabalhando na construção civil. Deflagrada a Segunda Guerra Mundial, o governo de Lisboa optou pelo estatuto da neutralidade, medida apoiada pela maioria da população, tendo em vista as sequelas da participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, em especial na campanha de Flandres. A opinião pública se dividiu entre aliadófilos, germanófilos e pacifistas, dentre os quais os anarquistas da (proscrita) CGT, que reafirmaram sua tradicional postura antibelicista. Entretanto, é claro que a neutralidade não deixou Portugal imune aos efeitos da guerra, que provocou crise econômica, desemprego e agravamento das tensões sociais. No início dos anos 1940 os rumos da guerra começam a mudar e, a partir de 1942-1943, a possível, depois provável, e por fim iminente e certa vitória dos Aliados sobre o Eixo nazifascista, em 1945, mudou radicalmente a conjuntura internacional. Os “ventos democráticos” começaram a soprar sobre Portugal e a produzir pressões sobre a ditadura salazarista. Esses mesmos “ventos” atravessaram o oceano Atlântico, passando a pressionar também o Estado Novo varguista, que não iria mostrar a mesma eficiência do seu homônimo português para resistir às pressões democratizantes. O “fascismo luso” iria resistir ainda por três décadas às lutas pela democracia. E o Brasil iria começar a viver uma nova experiência democrática, e também uma “nova aurora libertária” (RODRIGUES, 1992b). Em meados dos anos 1940 a oposição democrática em Portugal tentou se rearticular. Em 1943, é fundado o Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), “estrutura ilegal e semiclandestina”, e, em 1945, o Movimento de Unidade Democrática (MUD), “estrutura semilegal”, tolerada pelo Estado Novo. Na corrente dos “ventos democráticos”, é lançada pela oposição a candidatura à Presidência da República do general Norton de Matos. Contudo, às vésperas do pleito, fevereiro de 1949, a candidatura é retirada, em função da inexistência de condições políticas para a realização de eleições livres e limpas. Censura à imprensa, pressões de toda ordem, manipulação e fraude eleitoral. Com efeito, segundo um historiador português, as eleições organizadas pelo fascismo luso eram verdadeiros “simulacros de atos eleitorais” ou ainda simplesmente “farsas eleitorais” (NUNES, 2010, p. 78-80). Outro historiador, também de Portugal, confirma essa avaliação, falando do “aproveitamento dos rituais eleitorais, que o Estado Novo fraudulentamente adaptara para lhe poderem servir como fonte retórica de legitimidade” (LOFF, 2010, p. 17). A partir dos anos de 1946 e 1947, com a progressiva afirmação da Guerra Fria, a conjuntura política internacional mais uma vez muda, rápida e profundamente. Os Estados Unidos da América e a Grã-Bretanha passam a apoiar, mesmo em detrimento dos valores democráticos, a continuidade da ditadura salazarista, considerada uma aliada confiável na cruzada anticomunista, na contenção da “ameaça soviética”. Portugal tornou-se membro fundador tanto da Organização Europeia de Cooperação Econômica
(embrião do Mercado Comum Europeu e da União Europeia) quanto da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), alinhando-se plenamente ao mundo capitalista ocidental, cristão e “livre”. Viver a liberdade no mundo luso, entretanto, ainda demandaria três décadas de lutas. Em 1946, fugiu da prisão-fortaleza de Peniche, um dos muitos cárceres (dos quais o mais tristemente famoso foi o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde) nos quais sofreu, durante quase quatorze anos, os horrores do “barbarismo medieval” salazarista, o militante anarquista Luís Portela, com quem Edgar Rodrigues mantivera longa correspondência, que resultou, conforme acima comentado, no livro Na Inquisição do Salazar . Portela vai viver, fraco, doente, alquebrado pelas torturas e maus-tratos, na clandestinidade. Precisando de cuidados médicos e não podendo se identificar nos hospitais públicos, foi auxiliado por Edgar Rodrigues, que conseguiu para o amigo documentos falsos. Alguns meses passados, um sobrinho de Portela, num encontro de bar com amigos, falou da fuga do tio, comprometendo a sua segurança e daqueles que o ajudaram. Esse é o contexto no qual Antonio Francisco Correia / Edgar Rodrigues começa a amadurecer a ideia de sair do país, de abandonar Portugal e emigrar para o Brasil. Em 1951, Luís Portela é mais uma vez preso, e Correia toma a decisão de emigrar: “Tratei de buscar no Brasil a liberdade que me negaram no país onde nasci, e para evitar surpresas, tratei de me naturalizar brasileiro” (RODRIGUES, 2003a, p. 19). Antonio Correia / Edgar Rodrigues embarcou sozinho (a família só iria reencontrá-lo seis meses depois, no Brasil) no porto de Leixões, no vapor de passageiros Mousinho , da Companhia Colonial de Navegação, no dia 20 de julho, chegando ao porto do Rio de Janeiro no dia 5 de agosto de 1951. Antonio Correia é recebido no porto por um amigo conterrâneo, Armênio “da loura”, que o leva para o bairro da Piedade, no subúrbio do Rio. Nos primeiros dias consegue obter seu visto de permanência e tirar a carteira de trabalho. Edgar Rodrigues continuará a trabalhar no Brasil no setor da construção civil, aproveitando a experiência adquirida em Portugal. Rodrigues trazia para o jornalista Edgard Leuenroth, que então dirigia em São Paulo A Plebe , uma carta de apresentação de José Rodrigues Reboredo, antigo administrador do semanário anarquista A Comuna , do Porto. Entretanto, “não sabia dos 450 quilômetros de distância” entre as duas cidades que, nesse primeiro momento, inviabilizaram a visita a Leuenroth. Sua primeira visita foi, então, no Rio de Janeiro, ao professor e editor anarquista Roberto das Neves, já seu conhecido. Vejamos como Edgar Rodrigues se sentiu, recém-chegado da ditadura portuguesa, num ambiente onde já se desfrutava do clima de liberdade democrática há poucos anos conquistada: “(…) Comecei a falar das barbaridades cometidas pela PIDE (…) Por um bom tempo ainda me descobria desconfiado da sombra do policial. Só com os anos, em contato com a liberdade, se foram diluindo os efeitos dos anos de ditadura” (RODRIGUES, 2007d, p. 28). A próxima visita foi a Manuel Perez, velho anarquista espanhol, residente no Brasil desde adolescente. Perez tinha sido expulso do Rio de Janeiro em
1919, lutado na Guerra Civil Espanhola e voltado ao Brasil, em 1940. Em 1951, Manuel Perez morava na rua dos Inválidos, num velho sobrado conhecido como o “Consulado dos Anarquistas Espanhóis”. Aos poucos, Edgar Rodrigues vai se integrando à rede de relações dos grupos anarquistas que já viviam e militavam no Rio de Janeiro. Levado por Manuel Perez, Antonio Correia conheceu José Oiticica, numa visita à sua residência no bairro da Urca, onde se realizavam as reuniões do grupo que publicava Ação Direta . Esse periódico libertário iria publicar, em maio de 1952, o primeiro artigo de Rodrigues, “Fala um operário português”, no qual o autor denuncia crimes da ditadura salazarista. A partir desse ano, afirma nosso autor, “não parei mais com minhas denúncias contra os crimes das ditaduras e a exploração do homem pelo homem” (RODRIGUES, 2007d, p. 29). A partir da assinatura desse primeiro artigo, Antonio Francisco Correia vai surgindo, publicamente, e depois na historiografia do anarquismo, como Edgar Rodrigues. A escolha de outro nome, diferente do nome civil, reflete as preocupações e temores de Antonio Correia com a sua segurança e de sua família. Edgar Rodrigues passou então a colaborar regularmente não só com Ação Direta , como também com o jornal anarquista mexicano Tierra y Libertad . O autor está começando a produção de sua vasta obra, que compreenderá mais de cinquenta livros e cerca de 1.800 artigos, publicados em periódicos de vários países, e cujo período de elaboração atravessará mais de meio século (1952-2007). No final dos anos 1950 e início dos 1960, viviam no Brasil muitos exilados portugueses, das mais variadas tendências políticas, unidos pela oposição ao salazarismo. A publicação mais importante desses exilados era o jornal Portugal Democrático , editado em São Paulo, no qual também colaborou Edgar Rodrigues (RODRIGUES, 2004, p. 187-191). Enquanto no Brasil Rodrigues desfrutava, experiência inédita na sua vida, das liberdades democráticas e publicava seus primeiros livros, em Portugal as oposições se organizam para tentar, mais uma vez, o “derrube” do fascismo luso. Em abril de 1958, grupos de oposição à ditadura lançaram a candidatura do general Humberto Delgado às eleições presidenciais que se realizariam em junho desse ano. A campanha de Delgado ganhou uma adesão popular inédita e gerou enormes expectativas e esperanças no povo, que passou a acreditar num fim próximo da ditadura. Como afirmou uma historiadora portuguesa: “Parecia que o povo tinha deixado de ter medo de afrontar o regime” (FERREIRA, 2010, p. 84-85). Entretanto, mais uma vez, a fraude impede a vitória da oposição, que é derrotada por Américo Thomaz, candidato do regime. Vai se consolidando entre os opositores a ideia de que seria impossível, pelas urnas, derrotar a ditadura. Esta só cairia pela força das armas. Entre 1959 e 1962, vários golpes políticos, com a participação de civis e militares rebeldes, são desfechados, e também um atentado, fracassado, à vida de Salazar. Essas
tentativas, embora não tenham obtido êxito em seu objetivo de derrubar o fascismo luso, abalaram profundamente a ditadura. Da sua chegada ao Brasil em 1951 ao golpe militar de 1964, Edgar Rodrigues publicou quatro livros, dentre eles Retrato da ditadura portuguesa . Nessa obra, o autor sintetiza sua visão sobre o fascismo luso: “A ditadura portuguesa está organizada para o mal. Não para o mal isolado nesta ou naquela cidade, ou província; sobre este ou aquele indivíduo, grupo ou partido. A ditadura é um mal coletivo; mal que vai desde a forma de viver ao sistema de governo” (RODRIGUES, 1962, p. 165). Após escrever e publicar, a partir de “papéis” guardados ao longo de anos, quatro livros sobre a história social e política de Portugal, Edgar Rodrigues começou, com a mesma determinação metódica, a colecionar documentos sobre o Brasil, sua história social e política, privilegiando sempre o papel e a atuação dos trabalhadores e dos anarquistas nessa história. Ainda no final dos anos 1960, é publicado Socialismo e sindicalismo no Brasil (1675-1913) , primeiro volume de uma hoje clássica trilogia sobre o anarquismo e o movimento operário e sindical no Brasil, ao lado de Nacionalismo e cultura social (1913-1922) e Novos rumos: pesquisa social (1922-1946) , tendo o segundo e o terceiro volumes sido publicados já na década de 1970. Mesmo sob a ditadura militar, Rodrigues conseguiu, não sem dificuldades, continuar a publicar no Brasil seus livros e artigos. Consideramos relevante registrar que Edgar Rodrigues só consegue publicar seus livros em Portugal a partir da Revolução dos Cravos, depois da derrubada da ditadura. Em 1978, vem à luz o segundo deles, publicado na cidade do Porto, Deus Vermelho , uma veemente crítica à União Soviética, ao estalinismo e ao Partido Comunista Português. Nos anos 1970, enquanto Portugal se liberta da ditadura de quase meio século, com a Revolução dos Cravos e a belíssima “Grândola, Vila Morena” simbolizando o levante de 25 de Abril de 1974, o Brasil continua sob regime militar, embora na segunda metade da década tenha início o processo de “distensão lenta, gradual e segura”, seguida pela “abertura política”. E por aqui Chico Buarque compõe, com Rui Guerra, o também belíssimo “Fado Tropical”. Na década de 1980, Edgar Rodrigues já é um autor bastante conhecido pelos estudiosos e pesquisadores do anarquismo e do movimento operário e sindical brasileiros, sendo seus livros cada vez mais citados por autores de teses, dissertações, monografias e obras diversas sobre esses temas. A partir de meados dos anos 1980 e ao longo da década seguinte, tanto Portugal quanto o Brasil, as “duas pátrias” de Edgar Rodrigues – embora, como anarquista, considerasse a humanidade como a sua “verdadeira pátria” –, estão simultaneamente vivendo, construindo e consolidando regimes democráticos, apesar de todas as suas limitações. Esse fato é inédito na vida do nosso autor, atormentado, durante décadas, por ditaduras, pelo salazarismo em Portugal num primeiro momento e, anos mais tarde, pela ditadura militar no Brasil.
Provavelmente estimulado por esse novo ambiente democrático, Edgar Rodrigues vai viver nos anos 1990 o período mais fértil da sua produção intelectual. Publicou nessa década nada menos que 20 livros, entre 1992 e 1999, todos no Brasil, 14 deles por três diferentes editoras do Rio de Janeiro, e seis por uma editora de Santa Catarina. Desses 20 livros, três constituem uma segunda trilogia sobre o anarquismo e o movimento operário e sindical no Brasil: A Nova Aurora Libertária (1945-1948), Entre ditaduras (1948-1962) e O ressurgir do Anarquismo (1962-1980) . Seis títulos são coletâneas de biografias, por vezes pequenos esboços biográficos, mas sempre homenagens a militantes, pensadores, teóricos, sindicalistas, divulgadores do anarquismo, enfim pessoas que dedicaram suas vidas à causa do socialismo libertário, muitas delas pagando um preço altíssimo por essa dedicação: prisão, tortura, deportação, exílio, no limite a própria vida. Alguns personagens, admirados por Rodrigues como exemplos de militância libertária, são recorrentes em sua obra: os mártires de Chicago, Polinice Mattei, Francisco Ferrer y Guardia, Sacco e Vanzetti, Luís Portela, Domingos Passos, Edgard Leuenroth, Florentino de Carvalho, Luigi Damiani, Oreste Ristori, Manuel Perez, Pedro Catalo. Alguns anarquistas mereceram biografias mais elaboradas, para além do verbete ou mero esboço. Foi o caso de Fábio Luz, José Oiticica, Maria Lacerda de Moura e Neno Vasco, cujas biografias foram publicadas, em conjunto, no livro Os Libertários . Na série Os Companheiros , em cinco volumes, Edgar Rodrigues escreveu e publicou pequenas biografias de nada menos que 594 anarquistas ou militantes / pensadores próximos do socialismo libertário, das mais variadas nacionalidades e épocas. São 539 homens e 55 mulheres. A preocupação crescente de publicar esboços biográficos se inscreve na sua autoatribuída missão, que se converte em militância de toda uma vida, de divulgar o anarquismo. Em 1992, Rodrigues publicou O Anarquismo na escola, no teatro, na poesia , primeira obra dedicada especificamente à cultura libertária; embora essa temática já tivesse sido abordada em trabalhos anteriores, notadamente em Os libertários: idéias e experiências anárquicas , publicado em 1987. No final da década de 1990, Edgar Rodrigues publicou o Pequeno dicionário de idéias libertárias , ampliação de dois trabalhos anteriores, ABC do sindicalismo revolucionário e Socialismo: uma visão alfabética . Trata-se de um conjunto de verbetes, incluindo pequenas biografias, sobre o anarquismo. Outro livro bem significativo a respeito da missão de Rodrigues de divulgar o socialismo libertário, a “filosofia anarquista”, é o Universo ácrata , obra em dois volumes. Da mesma maneira que nunca admitiu que papéis valiosos sobre a vida e a história dos trabalhadores se perdessem, também não queria admitir que nenhum país ficasse “de fora” do seu “universo ácrata”. Escreveu então nesse livro a “história do anarquismo” (sínteses) em 39 países, percorrendo Europa, América, Ásia e Oceania. Não satisfeito, em
obra posterior, o volume 3 de Rebeldias , Edgar Rodrigues comenta a “história do anarquismo” em mais três países. Fica clara sua intenção de escrever a “história do anarquismo” em “todos” os países. A respeito da missão de divulgar o anarquismo, afirmou Rodrigues: “A coisa mais valiosa que fiz até hoje (…) foi enviar centenas, milhares de livros anarquistas (…) para arquivos, bibliotecas públicas e de universidades de países da Europa e da América” (RODRIGUES, 2003a, p. 35). E mais adiante, no mesmo Depoimento : “Vamos semear ideias e levá-las a toda parte para que todos possam compreendê-las (…) Estude-se o anarquismo, eduque-se o anarquista e a ideia fará o resto” (ibidem, p. 45). Essa proposta de semear ideias e valores anarquistas e a imagem da sementeira de valores libertários são recorrentes na obra de Edgar Rodrigues (também na de outros autores anarquistas) e tendo em vista sua dimensão claramente – mas talvez para Rodrigues inconscientemente – religiosa ou mesmo profética, combinam nítida e fortemente com a ideia de “missão”. Lembrei, neste momento, do belo trabalho de Nicolau Sevcenko sobre Euclides da Cunha e Lima Barreto, Literatura como missão.Tensões sociais e criação cultural na Primeira República . Em 1995, Edgar Rodrigues publicou Sem Fronteiras , livro composto por 70 artigos, dos quais 60 publicados em jornais portugueses e os outros em periódicos espanhóis e brasileiros. Um deles, “O vigésimo aniversário do muro”, escrito em 1981, nos parece significativo no sentido de reafirmar enfaticamente as convicções libertárias do autor, sua visão crítica sobre as ditaduras, quaisquer ditaduras, de direita ou de “esquerda”. Afirma Rodrigues: “(…) o Muro de Berlim é um prolongamento dos campos de concentração nazistas” (RODRIGUES, 1995c, p. 182). Com efeito, para nosso autor o nazismo e o “socialismo” soviético são regimes políticos muito semelhantes. No mesmo ano Rodrigues publicou Diga não à violência , cuja estrutura é muito semelhante à do livro comentado no parágrafo anterior; 100 artigos, 82 deles publicados na imprensa portuguesa. A propósito, muitos dos seus livros são compostos por dezenas de artigos anteriormente publicados em periódicos. O título desse livro é em si mesmo, a nosso ver, importante por contribuir para um processo de desmistificação de uma visão sobre o anarquismo bastante corrente no “senso comum”: anarquismo como sinônimo de violência, desordem, caos. Como diria – e disse – nosso autor, basta estudar o anarquismo para desconstruir essa visão. Em 1993, Edgar Rodrigues publicou O Homem em busca da Terra Livre , composto por 77 artigos, em sua quase totalidade publicados em jornais de Portugal. Do livro faz parte um rico “Apêndice – Lembranças: história e sonho”, composto por oito artigos escritos pelo autor entre 1988 e 1993, nos quais Rodrigues relembra aspectos da sua vida em Portugal, inclusive da sua infância. Muitas dessas lembranças são despertadas por visitas do autor, que só voltou à sua terra natal (conforme prometera ao migrar para o Brasil) após a vitória da Revolução dos Cravos e a derrubada da ditadura.
Num dos artigos, Rodrigues, em meio à forte emoção sentida ao percorrer localidades, ruas e praças da sua infância e juventude, Angeiras, Agudela, Lavra, Matosinhos, Pampelido, Perafita, afirma: “E a vida só será bela quando o homem for livre em Terra Livre” (RODRIGUES, 1993c, p. 269). Num outro artigo – “Verão em Matosinhos” – do mesmo livro, Edgar Rodrigues torna público o destino que pretende dar à sua biblioteca e a todo o seu acervo pessoal: Ali mesmo resolvi uma dúvida que me acompanhava há tempos: propus-me a doar minha biblioteca à Biblioteca Pública de Matosinhos (…). No Brasil (…) concluí a doação com testamento público. Agora, ao saber que a Biblioteca de Matosinhos recebeu o nome da irreverente poetisa Florbela Espanca, sinto-me gratificado. A sensibilidade poética, a expressão ‘revolucionária’ de sua vida e de sua obra fazem jus à homenagem prestada (…) (RODRIGUES, 1993c, p. 270-271). A doação do seu acervo para uma biblioteca pública portuguesa, e não brasileira, reforça o processo de reconciliação de Edgar Rodrigues com sua terra natal. No Brasil, a obra de Edgar Rodrigues é cada vez mais reconhecida nos meios acadêmicos e intelectuais, nos centros de pesquisa e universidades. Um número crescente de autores de teses e dissertações consultam, utilizam e citam seus livros como fontes importantes para suas pesquisas. Em sua terra natal, Rodrigues se tornará não apenas conhecido e reconhecido, como será também homenageado. Em 1996, a Câmara Municipal de Matosinhos organizou uma exposição sobre a obra de Edgar Rodrigues, na sede do Grupo Dramático Musical Flor de Infesta. Já no início do século XXI, em 2002, uma exposição de maior porte foi organizada pela Associação Cultural “A Vida”. A “Exposição Edgar Rodrigues – Pesquisador Libertário da História Social de Portugal e do Brasil” foi inicialmente montada em Lisboa, onde permaneceu durante um mês, em dois locais: de 18 de abril a 10 de maio no Museu República e Resistência, e de 11 a 18 de maio na Livraria Ler Devagar. Em seguida, a exposição foi montada na cidade do Porto, onde permaneceu uma semana, de 19 a 26 de maio, no Centro Social e Cultural Ilhéus. Nos três locais houve debates, dos quais participaram Edgar Rodrigues, José Maria Carvalho Ferreira, João Freire e Nelson Tangerini. A terra natal homenageia o filho pródigo Antonio Francisco Correia / Edgar Rodrigues, agora autor com muitas obras publicadas. Autodidata, Edgar Rodrigues sempre recusou a qualificação de “historiador instintivo”, a ele conferida por Roberto das Neves no Prefácio ao livro Na Inquisição do Salazar . Ao recusar a qualificação, ou o título de “historiador”, Rodrigues se autodefine como um “pesquisador instintivo”. Essa autodefinição aparece inúmeras vezes ao longo da sua obra. Nas palavras do autor: “Discordo da classificação de historiador. Nunca me disse nem me considero historiador no sentido acadêmico. (…) Se eu tivesse que me dar um título seria o de ‘pesquisador instintivo’, que não sabendo mais o que fazer com tantos documentos históricos, comecei a convertê-los em livros (…)” (RODRIGUES, 2003a, p. 23).
Ao longo de sua vida, e da produção de sua obra, Edgar Rodrigues foi desenvolvendo um certo ressentimento com uma “história acadêmica”, com os “intelectuais”. A principal razão, a nosso ver, é a seguinte: Rodrigues tem plena consciência das limitações da sua formação, na qual está presente uma fortíssima dose de autodidatismo. Nosso autor afirma, em diversas obras, que é um autodidata e que seus métodos, tanto para pesquisar como para escrever, foram sendo construídos ou elaborados na prática, tanto da pesquisa, da coleta de dados, como do próprio ato de escrever. Escrever para que documentos, fontes preciosas da história dos trabalhadores e do anarquismo não se perdessem. Escrever para que essa própria história não se perdesse. Escrever da única maneira que ele sabia, do jeito que foi aprendendo sozinho, na prática, sem que ninguém o ensinasse, nem a escrever, nem a pesquisar. Escrever, no entanto, com uma determinação, uma pertinácia e um fôlego raros. É certo que esse valioso trabalho de escrita só foi possível porque, antes, Edgar Rodrigues cultivou, também de forma autodidática, o hábito da leitura. Nas palavras de um brilhante romancista e ensaísta, conterrâneo e contemporâneo de Rodrigues: “Antes do interesse pela escrita, há um outro: o interesse pela leitura. E mal vão as coisas quando só se pensa no primeiro, se antes não se consolidou o gosto pelo segundo. Sem ler ninguém escreve” (SARAMAGO, 2010, p. 201). Entretanto, esses sentimentos de Edgar Rodrigues em relação à “academia” eram contraditórios. Sempre fez questão de publicar depoimentos ou entrevistas em que intelectuais, historiadores, sociólogos, reconheciam a importância e o mérito de seus trabalhos. Dentre esses intelectuais, Azis Simão, Barbosa Lima Sobrinho, Caio Prado Junior, Nelson Werneck Sodré, Carlos Drummond de Andrade. (Cf. “O que disseram da nossa pesquisa histórica”, in RODRIGUES, 1978a, p. 6-25). De qualquer forma, para Edgar Rodrigues a maior parte da história produzida pelas “capelinhas de erudição” da universidade seria uma história que distorce os fatos, ou seja, a “história acadêmica” ou “oficial” ocultaria a presença dos trabalhadores e dos anarquistas: seria, em suma, conservadora, e teria mesmo uma suposta dimensão “de classe”, “burguesa”. No entanto, Rodrigues admite acerca dos intelectuais: “Salvo evidentemente poucas exceções” (RODRIGUES, 2003a, p. 32), dentre elas o autor deste artigo, conforme evidenciado no primeiro volume de Rebeldias , no qual Rodrigues comenta a publicação da primeira edição do meu livro, A Insurreição Anarquista no Rio de Janeiro . Depois de criticar a capa do livro e afirmar que o autor teria “supervalorizado o acontecimento”, conclui Rodrigues: “Não obstante alguns equívocos, o livro de Carlos Augusto Addor é digno de ser lido, no seu conjunto, é bom” (RODRIGUES, 2003b, p. 186). Em obra posterior, Rodrigues cita mais uma vez esse meu livro, caracterizando-o, então, como “mais uma colaboração na propaganda do anarquismo” (RODRIGUES, 2007d, p. 393). Criticando e recusando a “história acadêmica” (a “história dos vencedores”) produzida e ensinada nas universidades e nas “escolas oficiais” pelos
doutores, Edgar Rodrigues vai se propor a escrever uma “história alternativa”. Uma história que não apenas levasse em conta os trabalhadores, mas privilegiasse suas lutas e conquistas, bem como o papel dos anarquistas e suas propostas de construção de uma nova sociedade, sua luta em prol da “emancipação social, cultural e humana” que só se realizaria plenamente na “Harmonia Anárquica”. Aqui, penso ser importante registrar como Rodrigues define a História. Em O Homem em busca da Terra Livre , afirma o autor: “A história é um conjunto de verdades provadas (…)” (RODRIGUES, 1993c, p. 225). Em outra obra, afirma Rodrigues: “A história com H maiúsculo, como expressão da verdade vivida e refletida, ainda precisa ser escrita ! História é o retrato dos povos, da humanidade (…). Nessa História o trabalhador não pode ficar ausente (…)” (RODRIGUES, 2004, p. 209). Na entrevista publicada nos Três Depoimentos Libertários , Edgar Rodrigues reafirma: “Entendo a história como um compêndio de investigações testadas nas fontes, de verdades provadas cientificamente (…).” Embora nessa última versão Edgar Rodrigues fale da “ciência” e se refira às fontes, pensamos que nosso autor não consegue superar uma visão bastante subjetiva da história, na qual o anarquismo acaba por se tornar critério da verdade: “(…) acontecimentos libertários, verdades sociais (…)” (RODRIGUES, 2003a, p. 33). Consideramos seu trabalho riquíssimo, a quantidade e a qualidade de fontes e documentos consultados e publicados são impressionantes. Edgar Rodrigues foi, sem dúvida, um incansável “pesquisador instintivo”. Pensamos ser necessário, nesse momento, relembrar e refletir, ainda que rapidamente, as relações, e as diferenças, entre a história e a memória. A história, assim como o historiador em seu ofício, tem um compromisso não só com a verdade mas sobretudo com a busca da objetividade. Se é certo que não alcançará a “objetividade plena” nem a “verdade absoluta”, procurará chegar o mais próximo possível. A memória, ao contrário, é o espaço por excelência da subjetividade, o lugar onde o subjetivo se assume e se explicita. Assim, consideramos Edgar Rodrigues um memorialista do anarquismo, provavelmente o mais importante memorialista do anarquismo no Brasil e em Portugal. Henry Rousso (1998), trabalhando com as relações entre a história e a memória, procura distinguir os conceitos de lembrança ( souvenir ) e memória ( mémoire) . A lembrança seria ainda mais subjetiva, mais individual, mais carregada de emoção e afetividade do que a memória. Creio não ser por acaso que o último livro do pesquisador instintivo Edgar Rodrigues, publicado no fim de sua vida, foi por ele intitulado Lembranças Incompletas (RODRIGUES, 2007d). Na primeira década do século XXI, nosso “pesquisador instintivo” publicou mais dez livros. O Homem e a terra no Brasil , publicado em 2001, mais um livro de divulgação do anarquismo, privilegia as questões sociais no campo, abordadas a partir de uma perspectiva histórica. Rodrigues algumas vezes reproduz passagens de obras anteriores, a respeito, por exemplo, do
Quilombo dos Palmares, de Canudos, do Caldeirão, da prática do mutirão, da Colônia Cecília, da Comunidade de Guararema, das Ligas Camponesas. O autor denuncia também as sobrevivências da escravidão no Brasil do século XX e a “indústria da seca”. Em 2003, foi publicado o livro Três Depoimentos Libertários , a partir de entrevistas de três anarquistas, da mesma geração, que já acumulavam décadas de militância. O depoimento de Edgar Rodrigues, resultante de duas entrevistas, uma realizada em 1999 e outra em 2002, embora se refira a assuntos de ordem pessoal, privilegia sua formação e sua militância anarquista. Outro depoimento foi prestado por Diego Giménez Moreno, espanhol, nascido em 1911 na província de Murcia, filho de camponeses. Giménez lutou na Guerra Civil Espanhola e com a derrota dos republicanos vivenciou a “odisseia do povo espanhol fugindo do exército franquista”. Viveu alguns anos na França, num campo de refugiados e depois trabalhando na construção de estradas de ferro. Em 1942, atravessou de novo os Pireneus e reencontrou a família na Espanha. A vida sob a ditadura franquista era muito difícil, econômica e politicamente. Em 1951, decide emigrar para o Brasil e “tentar uma nova vida em um país promissor”. Chega ao porto de Santos em 1952, acompanhado do filho. Ambos conseguiram empregos como mecânicos e oito meses depois sua esposa e duas filhas vêm para o Brasil, onde a família iria se radicar. Na capital paulista conheceu e passou a frequentar o Centro de Cultura Social, no Brás, onde militantes anarquistas promoviam regularmente atividades culturais. Lá conheceu Jaime Cubero. O terceiro Depoimento Libertário foi prestado exatamente por Jaime Cubero, numa entrevista realizada em 1997. Ao contrário dos outros dois depoentes, Cubero nasceu no Brasil, em Jundiaí, interior paulista, em 1927. Descendente de espanhóis, filho de uma família numerosa e de poucos recursos, tendo perdido o pai quando tinha dois anos, Jaime só conseguiu completar o curso primário. Aos dez anos começou a trabalhar numa fábrica de brinquedos e, a partir dos doze anos, em fábricas de calçados, tornandose operário sapateiro, profissão que exerceu durante boa parte de sua vida. Começou a se interessar pelo anarquismo ainda muito jovem, a partir de leituras e estudos com um amigo e vizinho, Liberto Lemos, cujo pai, anarquista, possuía uma pequena biblioteca com livros libertários. Liberto se tornaria seu cunhado. Ao longo de sua vida, Jaime Cubero sempre se interessou pelos estudos da religião e sempre admirou Liev Tolstói, o “anarquista cristão”. Em 1945, quando Jaime Cubero tem 18 anos, Vargas é deposto, o Estado Novo é derrubado, está surgindo uma “nova aurora libertária”. O Centro de Cultura Social de São Paulo, fundado em 1933, encerrara suas atividades durante a ditadura estadonovista. Com a redemocratização, o Centro reabre e retoma suas atividades: palestras, cursos, conferências, debates, apresentação de peças de teatro social. Entre 1945 e 1954, Cubero exerce a função de secretário-geral do Centro. Sob a ditadura militar, já no pós-AI-5, mais uma vez o Centro é forçado a encerrar temporariamente suas atividades, retomadas em 1985, no contexto
da última redemocratização. Em 1987, logo após a publicação da primeira edição do meu livro A Insurreição Anarquista no Rio de Janeiro , dei uma palestra no Centro de Cultura Social, na rua Rubino de Oliveira, no Brás, capital paulista. Jaime Cubero coordenou os debates e, após o encerramento dos trabalhos, convidou-me para um lanche, frugal, em sua casa, próxima do Centro. Foi de uma enorme simpatia, e gentileza, e guardo dele essa boa recordação. Cubero faleceu em 1998 e em 2004 foi publicado seu livro Anarcossindicalismo no Brasil . Pensamos que resumir as trajetórias de Diego Giménez e Jaime Cubero, que têm semelhanças com a de Edgar Rodrigues, nos ajudam a ilustrar o ambiente, o clima político no qual nosso autor exerceu sua militância anarquista e escreveu e publicou sua obra. Entre 2003 e 2007, Edgar Rodrigues publicou os quatro volumes da série Rebeldias . O título refere-se, claro, a uma atitude e a uma ideia, o não conformismo, que integram a visão de mundo anarquista. Pode ser também uma homenagem a Benjamin Mota, advogado e jornalista libertário, autor de vários opúsculos, entre eles Rebeldias , publicados em São Paulo na primeira década do século XX. No entanto, eu não encontrei na obra de Rodrigues nenhuma referência explícita a essa possível homenagem. Os quatro volumes da série são compostos, assim como outras obras já comentadas, por artigos já publicados na imprensa. O volume 1 de Rebeldias é composto por dezenas de artigos e quatro entrevistas concedidas pelo autor, entre 1975 e 1999. Numa delas, reafirma suas críticas à “história acadêmica” e as razões a partir das quais começou a pesquisar e a escrever sobre o anarquismo. Afirma que o fim da União Soviética “não foi o fim da utopia [que] só morrerá com o homem” e, mais adiante, que “o anarquista é um atleta, um corredor de fundo, precisa de ter fôlego para aguentar os desafios que enfrenta” (RODRIGUES, 2003b, p. 45). No artigo “Menos três”, publicado originalmente em 1999, Rodrigues homenageia três militantes anarquistas recentemente falecidos, entre eles Jaime Cubero. Na 15 a e penúltima sessão do livro, “Recordações que o tempo não apagou”, o autor comenta sua volta à terra natal, depois da derrubada da ditadura, e os passeios que fez à região onde nasceu, recordando vivências de sua juventude sob o fascismo luso. No segundo volume de Rebeldias , no artigo “Todos os governos faliram”, afirma Edgar Rodrigues: “(…) nenhum governo ‘comunista’, socialista, republicano, democrático ou monárquico caminha no sentido de proporcionar a felicidade do ser humano (…). Está, pois, na hora de procurar fórmulas alternativas: o Anarquismo!” (RODRIGUES, 2004, p. 96). Este é um argumento recorrente na obra de Rodrigues: como todos os regimes políticos faliram, o anarquismo seria a única proposta viável para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda nesse volume, numa entrevista publicada no “Apêndice”, o autor propõe: “Semeemos o Anarquismo até a exaustão”! (ibidem, p. 59). E finaliza a entrevista defendendo a utopia: “Muitos consideram isto [o anarquismo] uma Utopia na terra (…). No dia em que cada ser humano não alimentar mais algum tipo de utopia (esperança) certamente suicidar-se-á !” (RODRIGUES, 2004, p. 265).
No volume 3 de Rebeldias , no primeiro artigo, “Conceitos de Pátria”, Edgar Rodrigues reafirma sua visão de mundo, humanista e internacionalista: “A terra é uma só, nasceu antes do homem, com todas as suas riquezas naturais (…). Pátria é a humanidade, o mundo sem divisas”. (RODRIGUES, 2005, p. 45). Na sexta parte do livro, “Os anarquistas”, no artigo “Pioneiros e renovadores”, afirma Rodrigues: “O anarquista (…) é um defensor dos oprimidos” (ibidem, p. 174). Em outro artigo dessa mesma seção, confirma nosso autor: “O anarquista (…) [tem a] convicção que o homem é bom, e que as deficiências que carrega advêm do meio ambiente (…).” (RODRIGUES, 2005, p. 186). Essa suposta “bondade natural” do homem é, a nosso ver, um dos pressupostos fundamentais da “filosofia anarquista” rodrigueana. Ainda nesse volume, no artigo “A figura do companheiro”, afirma Rodrigues: “O anarquismo nasce e cresce dentro dos indivíduos (…) é o encontro do sentimento com a doutrina que revela o militante” (ibidem, p. 246). Ao longo de sua obra, muitas vezes diz o nosso autor que ainda mais importante que pensar o anarquismo é “sentir o anarquismo”. Da mesma maneira, “o sentimento da liberdade” é diferente, mais importante, e também complementa o “pensamento da liberdade”. No quarto e último volume da série Rebeldias , já na “Introdução” Rodrigues reafirma suas críticas à “história acadêmica” e ao “hermetismo” dos textos produzidos por alguns intelectuais nas universidades. Na terceira parte do livro, sobre a “questão social”, afirma: “O anarquista terá de educar e preparar cada indivíduo para que este possa conviver em harmonia com as diversidades humanas (…)” (RODRIGUES, 2007a, p. 126). Penso ser importante registrar essa concepção do autor sobre o anarquismo, de respeito às diversidades. Em especial neste momento em que vivemos no Brasil, e em outros países, as ameaças de um governo autoritário, de extrema direita, tentando impor práticas e valores absolutamente intolerantes à diversidade humana. A propósito, num artigo escrito nos anos 1950 e publicado nesse mesmo volume, afirmou Edgar Rodrigues sobre o sindicalismo brasileiro, do “tipo fascista”: “Este sindicalismo ‘amarelo’ é a revivescência da ditadura de Getúlio Vargas, isto é, o sindicalismo de Mussolini para cá transportado em 1930. O sindicalismo ou é livre e revolucionário ou não é sindicalismo” (RODRIGUES, 2007a, p. 128). No artigo “No século XX”, na sexta parte, “Sem fronteiras”, Rodrigues comenta brevemente a “revolta popular espontânea de fevereiro de 1917” e “o golpe vibrado por Lenin em outubro de 1917” na Rússia. (RODRIGUES, 2007a, p. 182). A propósito, ao longo de sua obra, por diversas vezes Edgar Rodrigues se refere à revolução libertária, a “Revolução Social” dos anarquistas, como “espontânea”, e também como a “revolução dos cérebros, das mentes”, e não a “revolução dos estômagos”. Num artigo sobre o teatro operário, reafirma Rodrigues: “O Homem, por mais que o tentem alienar, nunca perde o desejo (…) de um dia ser livre em Terra Livre (…)” (RODRIGUES, 2007a, p. 231).
No artigo “Anarquia e ordem não são inimigas”, Edgar Rodrigues fala da atualidade do anarquismo no início do século XXI: “Com a derrocada dos governos nos países bolchevistas / ditadura do proletariado / comunistas / socialismo real na Rússia e seus satélites, abriram-se imensos espaços ao anarquismo (…) nunca os anarquistas tiveram tantas oportunidades para divulgar suas ideias (…)” (RODRIGUES, 2007a, p. 259). Em outro artigo, depois de reafirmar a dimensão racionalista do anarquismo (“o triunfo da Razão, da Educação e da Cultura”), nosso autor conclui: “O anarquismo não morreu ! (…) fracassaram as monarquias, as repúblicas, os socialismos, os comunismos e as ditaduras de todas as cores. Incorruptível, hoje, só resta a Anarquia !” (ibidem, p. 282). Em 2005 e 2007, Edgar Rodrigues publicou os dois volumes de Um século de história político-social em documentos , uma antologia de fontes sobre a classe operária e o anarquismo. Em 2007, foi também publicado Mulheres e Anarquia , único livro do autor dedicado especificamente ao tema do título, o que confirma seu interesse crescente pela cultura libertária. Finalmente, 2007 foi também o ano da publicação das memórias de Edgar Rodrigues, das suas Lembranças Incompletas , já citadas neste artigo. 2007 foi o último ano em que Edgar Rodrigues teve livros publicados. Ao longo de 51 anos, entre 1957 e 2007, Rodrigues publicou 54 livros, 48 no Brasil e seis em Portugal. O autor classificou seus livros como “Ensaios”, “Livros de Combate” e “Livros de História Social”. Essa tipologia, no entanto, sempre me pareceu artificial. Seus livros de “Combate” são também de “História Social” e certamente seus livros de “História Social” são livros de “Combate”, de denúncias de crimes cometidos por ditaduras, de direita e de “esquerda”, e por governos autoritários; e também de denúncias da exploração do homem pelo homem. Ao longo do trabalho com a obra de Edgar Rodrigues, fui mentalmente construindo uma aproximação com a obra de outro autor, que também admiro muito, José Saramago. São homens de uma mesma geração, que viveu e sofreu as agruras da ditadura salazarista. Ambos nasceram em pequenas localidades ou aldeias de Portugal. Antonio Correia / Edgar Rodrigues, como vimos, nasceu em Angeiras, freguesia de Lavra, município de Matosinhsos, distrito do Porto, em 1921. José de Souza Saramago nasceu em 1922 na aldeia de Azinhaga, banhada pelo rio Almonda, afluente do Tejo. Embora seus pais tenham se mudado para Lisboa antes que o menino completasse dois anos, Saramago continuou sempre visitando Azinhaga, e a aldeia permaneceu sempre em sua memória (CF. SARAMAGO, 2006). Tanto Rodrigues como Saramago são homens de esquerda, profundamente preocupados com as injustiças e as desigualdades sociais, com a repressão e as perseguições políticas, com a ausência de liberdade; e comprometidos com a perspectiva da construção de uma nova sociedade justa, livre, fraterna e solidária. Socialistas, cada um, certamente, à sua maneira. Edgar Rodrigues sempre se disse um “anarquista sem adjetivos”. Saramago militou, por décadas, no Partido Comunista Português, mas sempre foi
crítico do “socialismo real” e, já no século XXI, declarou mais de uma vez ser um “comunista libertário”. São também internacionalistas, anticlericais e intelectuais comprometidos com a ética nas relações políticas e sociais. Saramago, numa entrevista, chega a falar na necessidade de uma “insurreição ética”. Ambos, a meu ver, seguem e confirmam o conselho de Liev Tolstói: se queres ser universal, escreve sobre tua aldeia. No caso de Saramago, a dimensão universal da sua obra foi, a meu ver, confirmada e ampliada pela concessão, em 1998, do Prêmio Nobel de Literatura. Em suma, dois autores conterrâneos e contemporâneos, socialistas, não conformistas, anticlericais, humanistas, internacionalistas. A meu ver, proximidades significativas. Edgar Rodrigues faleceu no Rio de Janeiro, em junho de 2009, aos 88 anos, depois de ter produzido uma obra fundamental para a história do anarquismo e do movimento operário e sindical, principalmente no Brasil e em Portugal. José Saramago faleceu em Lanzarote, Ilhas Canárias, em 2010, aos 87 anos, depois de ter produzido uma obra literária mundialmente reconhecida. Mais uma convergência: vidas longas e extremamente produtivas. É certo que a obra de Saramago privilegia o lugar da ficção, enquanto a obra de Rodrigues é essencialmente memorialística; é certo também que a obra de Saramago possui um refinamento intelectual, uma erudição e uma densidade filosófica ausentes da obra de Edgar Rodrigues. Essa constatação, entretanto, não apaga, na minha opinião, os pontos de contato acima mencionados. Não cheguei a conhecer Edgar Rodrigues pessoalmente. Quando eu me preparava para entrevistá-lo, em 2008, ele ficou doente. Não quis incomodálo. No entanto, trocamos uma pequena mas significativa correspondência, entre 2006 e 2009, que reproduzo nos Anexos do meu livro Um Homem vale um homem. Memória, história e anarquismo na obra de Edgar Rodrigues . Referências bibliográficas Obras de Edgar Rodrigues citadas 1957 – Na Inquisição do Salazar . Rio de Janeiro: Germinal. 1962 – O retrato da ditadura portuguesa . Rio de Janeiro: Mundo Livre. 1969 – Socialismo e sindicalismo no Brasil (1675-1913) . Rio de Janeiro: Laemmert. 1972 – Nacionalismo e cultura social (1913-1922) . Rio de Janeiro: Laemmert. 1978a – Novos Rumos (1922-1946) . Rio de Janeiro: Mundo Livre. 1978b – Deus Vermelho . Rio de Janeiro: Porto: Mundo Livre. 1980 – Socialismo: uma visão alfabética. Rio de Janeiro: Porta Aberta.
1987a – ABC do sindicalismo revolucionário . Rio de Janeiro: Achiamé. 1987b – Os libertários: idéias e experiências anárquicas. Petrópolis: Vozes. 1992a – O anarquismo na escola, no teatro, na poesia . Rio de Janeiro: Achiamé. 1992b – A Nova Aurora Libertária (1945-1948) . Rio de Janeiro: Achiamé. 1993a – Entre ditaduras (1948-1962) . Rio de Janeiro: Achiamé. 1993b – O ressurgir do anarquismo (1962-1980) . Rio de Janeiro: Achiamé. 1993c – O Homem em busca da Terra Livre . Rio de Janeiro: VJR Editores. 1993d – Os libertários . Rio de Janeiro: VJR Editores Associados. 1994 – Os companheiros, volume 1 . Rio de Janeiro: VJR Editores Associados. 1995a – Os companheiros, volume 2 . Rio de Janeiro: VJR Editores Associados. 1995b – Diga não à violência . Rio de Janeiro: VJR Editores Associados. 1995c – Sem fronteiras . Rio de Janeiro: VJR Editores Associados. 1997a – Os companheiros, volume 3 . Florianópolis: Insular. 1997b – Os companheiros, volume 4 . Florianópolis: Insular. 1998 – Os companheiros, volume 5 . Florianópolis, Insular. 1999a – Pequeno dicionário de idéias libertárias . Rio de Janeiro: CC&P Editores. 1999b – Universo ácrata,volume 1 . Florianópolis: Insular. 1999c – Universo ácrata, volume 2 . Florianópolis: Insular. 2001 – O Homem e a terra no Brasil . Rio de Janeiro: CC&P Editores. 2003a – Três depoimentos libertários . Rio de Janeiro: Achiamé (et al.). 2003b – Rebeldias, volume 1 . Rio de Janeiro: Achiamé. 2004 – Rebeldias, volume 2 . São Paulo: Opúsculo Libertário. 2005 – Rebeldias, volume 3 . São Paulo: Opúsculo Libertário. 2007a – Rebeldias, volume 4 . Rio de Janeiro: Achiamé. 2007b – Mulheres e Anarquia . Rio de Janeiro: Achiamé. 2007c – Um século de história político-social em documentos . Rio de Janeiro: Achiamé.
2007d – Lembranças incompletas . São Paulo: Opúsculo Libertário. Outras obras citadas ADDOR, Carlos Augusto. A Insurreição Anarquista no Rio de Janeiro . Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986. (2. ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 2002; 3 ed. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.) __. Um Homem vale um homem. Memória, história e anarquismo na obra de Edgar Rodrigues . Rio de Janeiro: Achiamé, 2013. (2. ed. Rio de Janeiro: Rizoma, 2017.) CUBERO, Jaime. Anarcossindicalismo no Brasil . São Paulo: Index Librorum Prohibitorum, 2004. FARINHA, Luís. O Reviralho contra a ditadura militar: o 3 – 7 de fevereiro de 1927 (Porto e Lisboa) e os levantamentos armados de 1928-1931. In: Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura (1891-1974) . Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, 2010. FERREIRA, Sofia. 1958-1962: Quatro anos que estremeceram o regime. In: Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura (1891-1974) . Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, 2010. LOFF, Manuel. Lutar pela liberdade! Da alternativa republicana à resistência contra a ditadura (1891-1974). In: Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura (1891-1974) . Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, 2010. MADEIRA, João. A organização operária no crepúsculo do sindicalismo livre. In: Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura (1891-1974) . Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, 2010. NUNES, João Paulo Avelãs. A Segunda Guerra Mundial, o reforço e a unidade das oposições ao Estado Novo (1941-1949). In: Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a ditadura (1891-1974) . Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República, 2010. ROUSSO, Henry. La Hantise du passe . Paris: Les Editions Textuel, 1998. SARAMAGO, José. As Pequenas Memórias . São Paulo: Companhia das Letras, 2006. __. As Palavras de Saramago . Organização e seleção de Fernando Gómez Aguilera. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República . São Paulo: Brasiliense, 1983.
1 Este artigo é uma versão com modificações do primeiro capítulo do meu livro, Um Homem vale um homem. Memória, História e Anarquismo na obra de Edgar Rodrigues . 17 HÁ ORDEM OCULTA CONTEXTOS EMPODERADORES Isabel Rufino Introdução Na procura da racionalidade a moldar a transformação da sociedade persiste a valorização do trabalho que demarca as sociedades na sua mudança, com o peso dos estudos deste a incidir na sua rarefação – o não trabalho (RUFINO, 2016). Nesse sentido, falar de “Barafunda AJCSS” ² (associação privada sem fins lucrativos) é falar de um território (Benedita). ³ Nesse retratar de uma organização contextualizada nas suas relações de trabalho/produção, é imperativo flutuar no tempo que molda processos e procedimentos – envolvimento e distanciação dos atores (individuais e coletivos) – regionais, nacionais e supranacionais. Recuamos à década de 1960 a contextualizar a “Experiência de Desenvolvimento Comunitário” com intervenção nesta freguesia, vindo a moldar o posterior o modo e modelo de “desenvolvimento local-endógeno” ⁴ – Ponto 1: Contextualização – A Benedita e a Barafunda. De seguida, abordamos as origens dessa organização (com 31 anos), reportando à data da sua legalização estatutária, ano 1989 – Ponto 2: O passado é história com as estórias da Barafunda. Por último, o trabalho no presente e as ligações na rede de parcerias locais, nacionais e europeias – Ponto 3: Que ciência do conhecimento aplicado? Ponto 1 – Contextualização – A Benedita e a Barafunda A Freguesia da Benedita cresceu entre a serra e a igreja. ⁵ Fortemente marcada pela fome e pobreza até a década de 1960, partilha no seu isolamento um forte “fervor religioso” e elevada taxa de natalidade, originando a proliferação de famílias extensas. Regulados entre as concepções de pecado e a remissão dos pecados pelo trabalho, estruturavase uma “disciplina familiar rigorosa” assente na figura paternal, chefe de família “pobre, mas honrado”. ⁶ Nos anos 1950, promove-se uma dinâmica coletiva pela construção da igreja, motivada pelo pároco da época. Em 1955, chega a rede elétrica. ⁷ Predominavam a agricultura e a existência de um elevado número de artesãos (ano 1958: sapateiros – 616; cutileiros – 76, entre 973 “trabalhadores”, ⁸ num total de 5.176 habitantes). Agrupados em pequenos núcleos ou em oficinas manuais de pequena dimensão (geralmente em situação de ilegalidade), os sapateiros fabricavam calçado de “tipo grosseiro” que vendiam diretamente no mercado. Esses sapateiros eram simultaneamente agricultores, o que levava à escassez de mão de obra nos períodos de verão. ⁹ Com o predomínio do calçado, da carpintaria e da cutelaria, a indústria ocupava sobretudo mão de obra masculina. A mão de obra feminina dedicava-se à agricultura e trabalhos domésticos. ¹⁰
É nesse quadro sociocultural e econômico (1950-1960), marcado pelo trabalho intensivo na terra pouco fértil e em pequenas atividades artesanais no fabrico de calçado e cutelaria, que se inicia uma mobilização endógena que iria substituir o atavismo e o fatalismo originado por um “espírito de renovação”, ¹¹ na coincidência com o estudo “A Região Oeste da Serra de Aire e Candeeiros” (CARDOSO, 1962) – um caminho “aberto” à experiência de desenvolvimento comunitário. ¹² Essa equipe (1960 a 1964) vai operar no sentido de promover uma intervenção estruturante. ¹³ Ajudar, mas de que maneira? Poder transformar os ateliers em grandes fábricas. Aprender a tratar de pomares. Substituir uma raça de animais por outras (…). Ter dinheiro é muito agradável, mas não chega (…) há necessidade de aprender a trabalhar com uma administração que já existe (…) os representantes da terra, do distrito e da administração central (…). Dar a conhecer maneiras para realizar ideias que já existem e até criar outras, responder a necessidade que nem se lembraram (…). Serão os Senhores a trabalhar (…). Desenvolvimento comunitário é a colaboração da equipe para aproveitarem todas as possibilidades que têm para realizar o desenvolvimento (…). Na resultante da intervenção, seguem alguns marcos históricos do processo de desenvolvimento posterior, onde a Benedita apresenta a sua história diferenciada pelos recursos naturais e pela ação humana empreendedora, a se beneficiar das influências exógenas obtidas nas experiências/trocas de aprendizagem com os mercados (econômicos e de conhecimento) internos e externos. Reportando a 1964, dá-se a mobilização para a fundação do Instituto Nossa Senhora da Encarnação, ¹⁴ com o nível de escolaridade equivalente ao 9 o ano. ¹⁵ Os estatutos dessa organização de “pais” são bastante inovadores para a época – passo a citar: A sociedade tem por objetivo a prática do auxilio mútuo e designadamente: a) assegurar aos associados e seus familiares o ensino técnico profissional, liceal, admissão a Institutos Comerciais, Industriais e Universidades; b) Organizar iniciativas de extensão cultural, designadamente as que contribuem para a expansão do “desenvolvimento Comunitário”; c) aquisição de material escolar que fornecerá aos seus associados; d) Fornecer refeições aos beneficiários. Em 1985 – novos estatutos, em que o conceito “desenvolvimento comunitário” sai e entram termos como “comercializar publicações e material escolar” –, enfoque no ensino (externato) na linha das diretrizes do Ministério da Educação. Acrescenta-se a possibilidade de expansão, “um ou mais estabelecimentos de ensino”, e de eventuais estudos. Nesse percorrer do tempo, há a destacar a importância de alguns atores individuais, ¹⁶ líderes a distância, com atividade profissional em Lisboa nos serviços do Estado e da Igreja Católica e que mantinham o “espírito da experiência de desenvolvimento comunitário” enquanto preservam a sua ligação ao território – fazendo parte dos órgãos diretivos do Instituto Nossa Senhora da Encarnação. Sintetizando alguns marcos socioeconômicos entre 1970 a 2020, temos:
– O início da industrialização é intensificado nos anos 1970, com a união de artesãos em sociedades industriais e dá-se criação da Cooperativa Agrícola com o fabrico de rações para animais, ¹⁷ num alargamento da bacia de emprego às freguesias circundantes. – Nos anos 1980, assiste-se à fragmentação de empresas sociedades e à criação de novas unidades industriais em nome individual e/ou sociedades de natureza familiar. – Após 1990, a crise dos setores tradicionais, sobretudo do calçado e da marroquinaria, origina a falência de algumas empresas, cuja mão de obra é absorvida noutras, com a intensificação do comércio grossista, assente principalmente na importação. – No final século XX, até o presente, as mobilizações de caráter “coletivo” retomam alguma significância com a mobilização de dinâmicas associativas que perspectivam a implementação de atividades que reativem o sistema empresarial, com a mobilização de meios suscetíveis de criar externalidades favoráveis às empresas. – Nos anos 2000, o individualismo empresarial começa a ser questionado por agentes locais, à medida que cresce o desemprego de jovens quadros licenciados e/ou o desajustamento entre a formação obtida e o emprego conseguido. Esses assumem posturas públicas de apelos à pressão sobre os serviços públicos a que alguns ¹⁸ chamam de manifestação contemporânea do espírito de cidadania. Em 2000, laboravam 212 empresas do setor secundário, 229 do setor terciário e 24 do setor primário a empregarem 3.163, 1.914 e 162 trabalhadores, respectivamente, totalizando 5.249 ativos empregados. Decorre a mobilização pela criação da Área de localização Empresarial. ¹⁹ É criado o Centro Novas Oportunidades Barafunda (2006-2012) e sua continuação como Centro Qualifica da Associação Barafunda ²⁰ (2017-2020). Ponto 2 – O passado é história, com as estórias da Barafunda É no contexto socioeconômico do final da década de 1980, num contínuo de opções nas dinâmicas dos atores, na procura de melhor viver, que se equacionam as mudanças nas quais se insere a constituição da Barafunda AJCSS. Essa Associação Juvenil de Cultura e Solidariedade Social tem a sua origem no Externato Cooperativo, quando uma professora (sociologia e teatro) procura criar recursos para trabalhar com alunos, em trabalhos de pesquisa em sociologia e ensaios/representações de teatro, a ligar às vivências dos alunos e das famílias. A entrada de Portugal na Comunidade Econômica Europeia (CEE), em 1986, havia criado algumas oportunidades aos grupos juvenis para candidaturas a projetos socioculturais através do Instituto Português da Juventude. Todavia, era necessária uma instituição de enquadramento. A professora avança conjuntamente com os alunos na candidatura que, ao ser aprovada, direciona as verbas para a direção da escola. Posteriormente, a libertação das verbas para usufruto dos trabalhos com os jovens acarreta algumas dificuldades no jogo das relações internas da escola. Face a esta adversidade, a opção por criar uma entidade jurídica capaz de por si só
fazer as candidaturas leva à constituição da Barafunda (nome criado pelos jovens em brainstorming ) com a participação de duas professoras e, os restantes membros, alunos do ensino secundário. Se no início as atividades eram direcionadas principalmente para o teatro (ensaios de peças e formação), rapidamente passa-se a desenvolver pequenas atividades de ocupação de tempos livres dos jovens e das crianças nos períodos de interrupção letiva, envolvendo os associados nos seus gostos, saberes e apetências com a criação de pequenos projetos locais. Iniciavam-se respostas às necessidades das famílias na ocupação construtiva dos filhos, num modo de aprendizagem não formal. Simultaneamente, novos projetos procuram equacionar razões e interações que demonstrem ganhos no uso da lógica da programação, da ciência (argumentação, refutação e verificação) adicionada a práticas de trabalho e lazer com os jovens – por um novo modo de educação-formação (crianças, jovens e adultos). Colocava-se, assim, um desafio permanente aos serviços do Estado, com recurso aos meios disponibilizados por este, através das medidas desenvolvimentistas, e a procurar interagir com as escolas, com as associações/cooperativas e demais organizações do território, de modo a criar redes informacionais de longo alcance, aquilo a que a autora veio a apelidar de uma “escola paralela e concomitante à escola”. ²¹ Na década de 1990, os mais de 300 associados eram sobretudo jovens estudantes, que à medida que ingressavam na vida profissional e/ou no ensino superior iam tecendo novas propostas para os trabalhos com a Barafunda, deixando o trabalho voluntário e/ou temporário para passar a possibilitar empregabilidades, se assim se pretendesse. Associados ou não, os jovens no decorrer e término dos cursos procuram a Barafunda para fazer estágio (escolar e/ou profissional). Durante o estágio desafia-se a pessoa estagiária a criar o seu próprio emprego, na ligação a respostas às necessidades diagnosticadas – com ancoragem nas estruturas e interações que a Associação disponibiliza (informal, formal e legalmente). Procede-se à criação do emprego através da promoção de projetos formalizados dentro dos concursos disponíveis no quadro das propostas do Estado português na ligação com os fundos europeus. Aqui, o grande problema reside na efemeridade das medidas e dos projetos que dificilmente resistem às mudanças nos anos de eleições, consoante os governos (na alternância: PSD – Partido Social Democrata ou PS – Partido Socialista) e, ainda, às mudanças dos Quadros Comunitários de Apoio (União Europeia – EU), que sempre originam a interrupção dos fundos na passagem entre Quadros Comunitários (consoante os objetivos e políticas a prosseguir). A gestão da entidade por projetos assenta, por um lado, nos diferentes olhares e interesses dos associados mais empenhados nos trabalhos da entidade e, por outro, nas medidas disponíveis e aprovadas entre as várias propostas formuladas às candidaturas. A fundamentar as candidaturas está necessariamente o diagnóstico das necessidades, na ligação com as práticas de investigação dos associados nas redes com o ensino superior, com particular ênfase para o CIES-ISCTE-IUL, onde teses de mestrado e doutoramento, focadas na região Oeste, se apresentam como tendo o quadro teórico-empírico-conceitual fundamental ao desenrolar das propostas.
No ano de 2011 a Barafunda emprega 30 pessoas, das quais 90% são jovens licenciados com uma média de idades de 29 anos. No ano de 2012 emprega seis pessoas e em 2014, em plena crise, mantém uma trabalhadora ao serviço (com descontos para a segurança social) e todo o restante trabalho é executado em regime de voluntariado. Situação que volta a ser invertida no ano de 2017. Em 2020, emprega nos seus quadros internos sete pessoas (6 mulheres e um homem) e contratualiza trabalho independente com mais 20 profissionais (formadores) consoante as necessidades de resposta aos inscritos no Centro Qualifica. ²² Passando ao breve historial (síntese dos principais projetos), entre 1982 e 1989 um grupo de jovens estudantes do ensino secundário desenvolvia pequenos trabalhos ligados ao teatro (representação de peças) e à promoção de cursos de representação dramática. Em 1989, com a legalização da Associação, começam as atividades com grupos mais desfavorecidos (social e economicamente), assentes num “projeto de prevenção primária das toxicodependências”, tendo como parceiros o Externato Cooperativo (Benedita) e o Instituto de Reinserção Social (Caldas da Rainha). Após o despoletar de uma vasta gama de atividades com crianças, jovens e adultos, promovendo semanas juvenis e inúmeros cursos de formação, a Associação vem a ser reconhecida (1997) como Instituição Particular de Solidariedade Social e é inscrita no Registro das Associações Juvenis (RNAJ ) do Instituto Português da Juventude (IPJ). Passou a ser acreditada pelo Instituto para a Qualidade na Formação (IQF), atual Direção Geral do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT), como entidade formadora, no âmbito da Academia de Trabalho e Formação – Barafunda, tendo-se tornado, em 1998, uma Associação de Utilidade Pública. Em 2000, a Associação Barafunda foi premiada pela Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, ²³ pelo trabalho junto à Comunidade Cigana de Alcobaça. Nos anos de 2002 a 2005, promoveu o projeto “Criação”, no âmbito do “Plano Municipal de Prevenção Primária das Toxicodependências” do Instituto da Droga e Toxicodependência (IDT). De 2006 a 2012, desenvolveu atividades como o “Projeto Percursos Alternativos”, ²⁴ do “Programa Escolhas”, dedicado a criar dinâmicas com jovens e famílias mais desfavorecidas, com vista ao seu sucesso escolar, à educação e integração social, envolvendo-os em atividades abertas: espaços de acesso livre com uso de computadores “Espaço CID” e trabalhos com a horta “Erva Daninha” e “Campo Aventura”, entre outros. Ainda nesse período, para a população ativa (empregada e desempregada), cria o Centro Novas Oportunidades – RVCC. Entre 2012 e 2014, produz, com a associação empresarial local, o projeto “Fábrica do Empresário”. De 2017 a 2020, retoma o RVCC como Centro Qualifica Barafunda. No manual da organização em vigor (avaliação externa, 2011) descreve-se a entidade: Possui uma estrutura voltada para aquilo que o cliente pretende (…), todos os departamentos são interdependentes, havendo um enorme trabalho e espírito de equipe. Aposta numa gestão descentralizada, delegando e concedendo autonomia aos colaboradores para decidirem. Sem dúvida é uma organização extremamente aberta e independente, valorizando as
opiniões e decisões dos colaboradores, sendo por isso bastante arrojada e extrovertida, refletindo-se na personalização do serviço prestado, concretizando na satisfação total do cliente. Aponta a sua missão: Promover o desenvolvimento cultural, social e econômico do território, com as pessoas no envolvimento individual e coletivo. Contribuir para o desenvolvimento e aumento da competitividade das pessoas (…). Intervir com a competência e experiência para a satisfação dos clientes, da equipe e de todos aqueles com quem colaboramos. Aperfeiçoar e atualizar continuamente o (nosso) trabalho para apoiar os desafios das pessoas e contribuir para a criação de vantagens competitivas. Clarifica a sua visão: Agir para ser a referência na cultura, apostando na excelência do desenvolvimento local, através do empreendedorismo, inovação e valorização da sociedade, criando um compromisso mútuo com a comunidade. Contribuir para o desenvolvimento das PME. Nos objetivos estratégicos, propõe-se a: Desenvolver atividades de apoio a crianças e jovens, à sua arte e criatividade, visando à sua inserção; promover a informação, formação, educação e cultura dos públicos desfavorecidos, apostando na igualdade de oportunidades; participar ativamente em iniciativas de desenvolvimento local. ²⁵ Estruturada em duas áreas de intervenção: Academia de Trabalho e Formação (ATF) * , que reúne dois núcleos: as “Atividades Formativas” e o “Diagnóstico das Necessidades” da população, em articulação com centros de investigação (nacionais e estrangeiros), ²⁶ divulgados na comunicação social regional e através de publicações de artigos e livros, ²⁷ entre outros; e o Centro Lúdico * , onde desenvolve “Atividades de Tempos Livres” (ATL) e o projeto “Literacia para a Democracia” com crianças, jovens e adultos em encontro intergeracional. Neste último, com o “Ponto Aprender”, entrecruzam-se saberes com as várias oficinas, que vão da informática aos ensaios com a horta em permacultura, à leitura de contos e poesia, à costura etc., mutáveis consoante a chegada de propostas na passagem de saberes recolhidos na comunidade e, sobretudo, no conhecimento obtido através dos registos nos portfólios do RVCC, onde se relatam as aprendizagens/saberes ao escreverem as histórias de vida. Dentro do historial de desenvolvimento dessa entidade, tem particular significância a emergência do Centro Novas Oportunidades – RVCC, criado em 2006, ²⁸ na sua missão de reconhecer, validar e certificar as competências adquiridas pelos/as adultos/as ao longo da sua vida, com particular ênfase na atividade profissional (modos e práticas de trabalho, lazer), conferindo-lhes um certificado com uma equivalência escolar de nível básico (4 o , 6 o , 9 o ano) ou secundário (12 o ano). Para além de conferir competências de nível básico e secundário, também certifica profissionalmente (RVCC PRO) de nível II e IV. Este visa reconhecer, validar
e certificar as competências que os adultos adquirem com a experiência de trabalho, ao longo da vida, e permitir a atribuição de um certificado de formação profissional – assegurando que um profissional detém as capacidades necessárias ao exercício da sua profissão, o que aumenta a empregabilidade desses ativos e incentiva a formação ao longo da vida pela valorização das aprendizagens realizadas. Procura-se a capacitação dos destinatários a agir pelo seu empoderamento cívico, a prevenir e combater a frequência de ambientes de risco associados à iliteracia no campo da saúde (da educação alimentar saudável e amiga do ambiente aos riscos do consumo de álcool e outras drogas). Combater e prevenir a infoexclusão através do desenvolvimento de atividades em ordem à igualdade de oportunidades no acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), contribuindo para a inclusão escolar, cultural e profissional dos destinatários (crianças, jovens e familiares). É neste movimento de encontro com as margens que a Barafunda é uma “Escola” que, em concomitância e independente desta, se molda moldando… Ponto 3 – Que ciência do conhecimento aplicado? Somos filhos da madrugada / Pelas praias do mar nos vamos / À procura de quem nos traga / Verde oliva de flor no ramo / Navegamos de vaga em vaga (…) À procura da manhã clara / Lá de cima de uma montanha / Acendemos uma fogueira (…) / Companheira da madrugada (…) (José/Zeca Afonso [1926-1987], letra da música “Filhos da madrugada”) A utopia que comanda o sonho e o sonho que comanda o real (Barafunda), também é o quadro teórico que ladeia a busca com a ciência, o conhecimento científico suscetível de questionar e projetar modos e modelos de equilíbrio do humano consigo mesmo, entre pares e na rede de interações com o planeta – terra vida. A prática vivenciada, a observação direta (mais ou menos participante), orienta para pressupostos que direcionam os trabalhos de investigação da autora, desde a escolha das temáticas às orientações sociológicas por uma visão “pós-modernista” ²⁹ das vivências, incentivando as tendências para abordagens de caris multidisciplinar – focada na sociologia do desenvolvimento, a economia do desenvolvimento, a economia política e a geografia. Sem querer aprofundar o debate em torno da ciência, esta é tida (nos movimentos desta organização) como uma forma, entre outras, de conhecimento, sendo considerada um instrumento no jogo das relações de poder, para além do método, dada a sua supremacia assente na capacidade de a experiência científica possibilitar projetar/prospectivar e criar a ação e comportamento dos humanos. Este conjunto de considerações remete-nos, sem dúvida, para um outro tipo de problema que se prende com o sentido da ciência e para a demarcação entre ciência e não ciência, sobretudo quando se trabalha ao nível de microcosmos, do local – o que não é universal. ³⁰
Na viragem do ano 2000, coincidindo com a adesão de Portugal ao euro (moeda única europeia) e com o processo de estudo da empresarialidade da região Oeste, a Barafunda começa a empreender relações com o tecido empresarial. E por ser a freguesia mais industrial da região, a Benedita faz parte do objeto da pesquisa. Particularmente focada nas empresas industriais, agrícolas e piscatórias do Oeste português, a pesquisa disponibiliza dados que fundamentam as propostas de ação nesses territórios e que arrastam consigo jovens quadros licenciados. Trabalham-se dados estatísticos que possibilitam diferenciar a região nas suas partes concelhias, na base da identidade produtiva a que se associa a geografia física (solos, mar e serra) e os saberes da tradição (agricultura, pesca e indústria). O estudo de caso tem enfoque em três concelhos, em conformidade com a dominância dos seus setores de atividade: AlcobaçaBenedita pela indústria, Bombarral pela agricultura e Peniche devido à pesca. ³¹ Foram aplicados questionários a associações empresariais, às empresas e aos empresários da pesca, da agricultura e da indústria, com objetivo de identificar os fatores da empresarialidade. No término da pesquisa, com as conclusões propostas, extrapolam-se projeções de atuação, apontadas como necessárias face à mudança, de modo a sustentar o desenvolvimento dos territórios. Entendeu-se que a real publicação seria a resultante da experimentação das propostas então enunciadas. A experiência de vida da autora como empresária a estimulou para o estudo da empresarialidade e a resultante desse estudo aponta para o retorno à empresarialidade com vertente na economia social, num campo suscetível ao incentivo do setor industrial e serviços correlacionados pelo desenvolvimento regional. Nos últimos 15 anos, como observadora participante na mudança, a investigadora parte para a mobilização da ação. Movimenta-se com a já criada Barafunda, associação de apoio ao desenvolvimento local (juvenil/ IPSS/de formação), e na pesquisa em rede com centros de investigação e associações empresariais alarga um trabalho pela empregabilidade de jovens quadros licenciados, incentivando o recurso a apoios comunitários (UE), mediante candidaturas nas vertentes formativas (formal e não formal) e demais medidas de apoio ao emprego (conforme atrás referido). Neste trabalho de criar serviços de apoio à envolvente empresarial, com/ pela empregabilidade, os riscos e a coragem partilhados com os/as jovens, em estratégias de desenvolvimento local, requerem o envolvimento de empréstimos da Banca a juros altíssimos, conforme tabelas do mercado (2006 a 2013), ³² sem qualquer contrapartida, pelo fato de se tratar de entidades sem fins lucrativos e prestarem serviços públicos na promoção do trabalho-emprego. Em finais de 2011-2012 e prosseguindo por 2013 e 2014, terminam os projetos financiados pelo Estado português e fundos comunitários – é a morte dos Centros Novas Oportunidades e, consequentemente, o culminar do desemprego dos jovens quadros licenciados que exerciam funções na formação formal e não formal, entre outras atividades de concepção e marketing pelo desenvolvimento empresarial da região. Os projetos possibilitaram (possibilitam no criar e na intenção/projeção de fazer) o acompanhamento de empresas e de pessoas (enquanto essas avançam na auto e heteroaprendizagem) na continuidade
dos processos de produção-trabalho com os atores do Oeste, numa visão territorial de gestão dos recursos em plano de opções e intenções abertas, ligadas em redes reguladas por conveniências, necessidades e oportunidades. As atividades propunham-se na visão “apta” para enfrentar proativamente propostas de morte e de reinvenção de programas de apoio ao desenvolvimento, que as medidas dos quadros comunitários propiciam. Estimulou-se a ação em diagnóstico e a intervenção, criando modalidades territorializadas de interligação de organizações públicas e privadas, com e sem fins lucrativos. Nesse movimento, assente nas dinâmicas de mobilização dos atores locais e na posterior “paralisação” ou período de hibernação, no “reformular” das teorias face à “crise” (descrédito e/ou pressão/dominação de interesses), assiste-se (2014) ao débil anunciado de propostas de desenvolvimento local com as DLBC (Desenvolvimento Local de Base Comunitária), ³³ e emerge a necessidade de retomar o que está feito, o que está próximo e presente nas organizações para se reconfigurarem caminhos e propostas desenvolvimentistas em democracia. Em 2015, o balanço dos trabalhos desencadeados nos dez anos anteriores – a investigação-ação a partir do concelho de Alcobaça-Benedita-Barafunda – vai coincidir com o relatório do “Projeto Fábrica do Empresário”, uma resultante dos trabalhos anteriores com a Barafunda. Nesse, a constatação de que falência das empresas não corresponde necessariamente à sua morte, dada a emergência de nova ou novas empresas no mesmo ramo (em plena crise), ainda que de menor dimensão e em outras instalações e/ou com deslocalizações para outros países (sobretudo PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa ) – geralmente com muitos dos mesmos trabalhadores, os mesmos equipamentos e os mesmos destinos da produção, os mesmos clientes (nacionais e internacionais) e equivalente volume de negócios – reorientou as propostas desenvolvimentistas para novos programas de formação e informação dos atores (individuais e coletivos), podendo-se trabalhar a distância (via internet), com os que partem e os que ficam. Falamos de atores mobilizadores de si na potenciação de recursos, de redes formais e não formais pelo empreendimento com a mobilização dos antigos quadros técnicos da Barafunda a retomarem de novo contrato de trabalho com a entidade. Talvez esta modalidade de intervenção-ação seja uma outra forma de ir ao encontro de Freire, quando refere (2015) * a proposta de trabalhar a contraanálise: O investigador, após ter concluído a sua análise do objeto estudado, com base nos mesmos dados, procurará logicamente o inverso das conclusões alcançadas, ou, pelo menos, algo bem diferente da tese defendida. Ou então, se se busca verificar uma hipótese, procurará com o mesmo esforço, rigor e lógica, chegar à sua não-verificação: ou verificá-la, se o resultado inicial tiver sido o inverso. Só se esta contra-análise (ou contraprova) fosse positiva (ou seja, se o inverso ou o diverso não fosse, de fato, também demonstrável; ou se a hipótese não fosse, ao mesmo tempo, verificável e não-verificável), é que poderíamos considerar validadas as conclusões formuladas.
À distância no tempo, a presente descrição possibilita a perceção da variedade de práticas, pessoas e de pensamentos multiformes e criativos. Estes afirmam a constante na abordagem de problemas concretos, seguindo a ordem ditada pelos contextos e circunstâncias, num movimento de libertar pessoas e organizações. Ainda, imersa em programas de formação e na sustentabilidade de organizações pelo desenvolvimento do Oeste, parece fácil anotar erros de processo e ainda manter a reserva no olhar do local/ regional, do que está próximo, como campo da arte de mobilização dos atores pelo desenvolvimento sustentável – aquele que valoriza a igualdade social capaz de orientar a sabedoria por novos saberes em democracia – e continuar a trabalhar com os números do real e prosseguir ao lado dos que assim procuram. Dir-se-ia que a principal lacuna seria não perceber, ou não querer perceber, que o “tempo” é a mente das pessoas (no seu construto global-holístico-sistêmico) num mundo de dominados e dominadores e que o “espaço” obedece aos cruzamentos de forças dos tempos. Mantém-se a premissa (em interrogação): viver a (des)envolver é intentar pensarracionalizar, intuir e programar a agir com o local, focando ir além do tempo a fundir dicotomias. Concluindo, em forma de síntese, e indagando a contribuição da Barafunda para a “inovação social”, Schachter ³⁴ afirma que esta “tem a ver com o seu nascimento e evolução”, na medida em que: Objetivo: Primeiro, este baseia-se num objetivo de profunda vocação social, para satisfazer as necessidades das pessoas num contexto específico motivado pela ideia de criar valor para as pessoas e para a comunidade. Assenta na ideia de formar uma comunidade verdadeira, que significa ajudar as pessoas a descobrir seu potencial e desenvolver suas capacidades, também adquirir novas habilidades e melhorar a sua capacidade de se relacionar com o seu meio ambiente. O núcleo é sempre a educação e a aprendizagem, juntamente com a formação de habilidades mais específicas a serem desempenhadas no campo do trabalho, satisfazendo as necessidades das pessoas e a sua aprendizagem ao longo da vida. Trata-se de uma visão sistêmica, que desde o início se concentra em promover maior bem-estar social, econômico e cultural para a população mais pobre, mas que atende também às mesmas necessidades das empresas com o objetivo mais amplo de desenvolver o território. Para Bento XVI, é o território o seu povo, e nesse sentido a Barafunda avança com uma visão que combina idealismo com pragmatismo, conhecimento e criatividade das pessoas e aspirações de uma vila com a contribuição da ciência da economia, da sociologia e educacional.
O nome Barafunda, de acordo com o dicionário, significa “falta de ordem; mistura desordenada de pessoas e coisas”. É sinônimo de “caos” criativo que está na base da construção da cultura. No entanto, não é por acaso que suas origens estão ligadas a um projeto artístico dramático, drama de vida e potencial criativo. Barafunda é sinônimo de criatividade, inovação e empreendedorismo ao serviço de Benedita e da região. As inovações sociais em geral são caracterizadas pela sua capacidade de transformar a realidade, através do empoderamento das pessoas e da mudança nas inter-relações sociais. Isso implica um processo no tempo, uma visão associada à ação permanente. No caso de Barafunda, eles começam a amadurecer informalmente e amadurecem criados por outras organizações e por redes com a comunidade local e outras comunidades maiores, regionais, nacionais e internacionais. Barafunda contribui para a criação de valor a partir de uma perspectiva sistêmica e transformadora da sustentabilidade, atendendo a todas as suas dimensões, sociais, econômicas, ecológicas e culturais. O que for, quando for, é que será o que é . Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, “Poemas Inconjuntos”. Referências bibliográficas CARDOSO, Lopes (Org.). A Região Oeste da Serra de Aire e Candeeiros . Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1962. FERREIRA, M a Gabriela. Benedita: Um Estudo Sociológico. Lisboa: Instituto Superior de Serviço Social, 1966 (policopiado). FRIEDMANN, John; WEAVER, Clyde. Territory and Function . Londres: Eduard Arnold, 1979. INGLEHART, Ronald. El Cambio Cultural en las Sociedades Industriales Avanzadas . Madri: Centro de Investigaciones Sociológicas, 1991. LEMOS, M a Lurdes. Algumas Reflexões sobre a Experiência de Desenvolvimento Comunitário da Benedita . Lisboa: Instituto Superior de Serviço Social, 1966 (policopiado). REBELO, M a Lemos. Alguns Aspetos Relativos à Educação na Freguesia da Benedita . Lisboa: Biblioteca do Instituto Superior de Serviço Social, 1965 (policopiado). RIBOULON, Franck Chignier; FOURNIER, Mauricette. Emergence et Affirmation D´Une Petite Ville Industrielle: Benedita (Portugal). In: L’Avenir Des Petites Villes, actes du colloque international de Clermont-Ferrand, Novembre 2002 . Clermont-Ferrand: Presses Universitaires Blaise Pascal, 2003.
RUFINO, Isabel. Empresas e Empresários: Cultura de Empresa – A Benedita. 1996. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – ISCTE, Lisboa (policopiado). __. Da história do trabalho ao futuro do trabalho: que papel o da escola? In: FREIRE, João; PAULO, Almeida (Orgs.). Trabalho Moderno, Tecnologia e Organizações . Porto: Afrontamento, 2010, p. 179-203. __. Trabalho e Desenvolvimento: Industriais, Agricultores e Pescadores do Oeste – formas de empresarialidade e empregabilidade. Leiria: CEPSE, 2016. RUFINO, Isabel; GONZAGA, Sandra. Associativismo e Recriação de Mercados de Trabalho. In: Colóquio “Olhares sobre os jovens em portugal: saberes, práticas, ações. 2011. Lisboa. Actas do … Lisboa: Observatório Permanente da Juventude: ICS, 2011. SILVA, Augusto S. Entre a Razão e o Sentido . Porto: Afrontamento, 1988. VELOSO, Luísa; RUFINO, Isabel; CRAVEIRO, Daniela. Regulação de procedimentos na escola publica: entre o centralismo formal e a apropriação informal. In: Sociologia, Problemas e Práticas . CIES-IUL, Lisboa: Mundos Sociais, n o 68, 2012. • Disponível em: < https://www.youtube.com/watch >. Acesso em: 30/3/2020. • Disponível em: < https://urbact.eu/sites/default/files/import/Projects/ UrbanNOSE/outputsmedia/CaseStudiesCompendiumUrbanN.O.S.E..pdf >. Acesso em: 15/4/2020. • Disponível em: < http://www.barafunda.eu/fabrica-do-empresario/ 18/05/2020 >. • Disponível em: < www.aideialivre.blogspot.com >. Acesso em: 18/10/2016. 2 Barafunda AJCSS – Associação Juvenil de Cultura e Solidariedade Social é uma associação com fins altruísticos e que atua no âmbito sociocultural, recreativo e do desenvolvimento local. Com o estatuto adicional de entidade formadora acreditada e de Instituição Particular de Solidariedade Social (IPPS), a “promover o desenvolvimento cultural, social e econômico do território, com as pessoas – através do envolvimento individual e coletivo”. 3 Freguesia do concelho de Alcobaça, localizado no Oeste de Portugal. 4 Um modelo de desenvolvimento que, na sua conceção e estruturação teórica, não depende da dimensão do espaço em análise. No entanto, desde as suas origens, os princípios base para um desenvolvimento endógeno “agropolitan” das sociedades (rurais do mundo periférico), segundo Friedmann e Weaver (1979, p. 195), obedecem a certas lógicas das relações estruturais, a ter em conta: as condições básicas; o território (rural); a expansão da produção; e o papel do Estado. O sucesso depende das condições de partida, num processo em que tudo é contingencial e
estratégico, constituído na base das especificidades de cada sociedade (nacional ou local), atendendo à sua unicidade mediante a preservação de identidades locais. 5 Com poucos registos na História, alegórica e fisicamente, estes são os dois grandes marcos visíveis no plano da geografia física e cultural. 6 Seguindo à “risca” o modelo cultural e socioeducativo que os manuais escolares da época veiculavam. A ditadura do Estado Novo completava-se e sustentava-se na ditadura no seio da família, assente na figura masculina do homem pai “sapiente” ou, na ausência deste, do filho mais velho. Como ilustração desse contexto, temos o relato de um empresário da Benedita, proprietário de uma fábrica de calçado com mais de 25 trabalhadores (a primeira empresa de calçado certificada em Portugal), que afirma: “ainda me lembro daquela imagem do livro da 3 a classe que apresentava a figura do sapateiro com as calças cheias de fundilhos e remendadas, amarrecado e vergado enquanto cosia o sapato, com muitos filhos e a quem todas as desgraças aconteciam; metia-se no vinho e até a mulher o enganava. Essa história marcou-me muito porque o meu pai era sapateiro, assim como o meu avô. Sempre fomos uma classe desprestigiada!” (RUFINO, 2016). 7 Comparativamente, no Oeste (unidade territorial estatística de nível III – NUTS III, de que faz parte, na sua pertença ao concelho de Alcobaça) a chegada da eletricidade ocorre em 1923 no Bombarral e 1930 em Peniche. A região Oeste ocupa uma parte do distrito de Lisboa e a parte sul do distrito de Leiria (área de 2486 km², população de 362. 523 habitantes), constituída por 12 concelhos (censos de 2011). 8 Trabalho regular por conta de outrem. 9 Época em que esses deixavam as oficinas para se dedicarem às tarefas agrícolas (REBELO, 1965). Esta dualidade produtiva – trabalho agrícola e artesanal – resulta sobretudo da existência de um solo pouco qualificado para a agricultura (solos rochosos, calcários, permeáveis) e da consequente necessidade de aquisição de novos meios de subsistência. Tem-se conhecimento (via oral) da existência, no início do século, da atividade industrial (artesanal) assente na pessoa do empresário produtor, vendedor que, oscilando entre períodos de produção e comercialização, garantia as vendas (cutelaria e calçado) comercializadas por regiões do Ribatejo e Alentejo. Nos anos 1960, mantém-se este modelo de produção e comercialização pelo mesmo agente; os feirantes que percorrem as feiras e os viajantes que percorrem grande parte do país (FERREIRA, 1966). 10 Sendo este espaço um local de recrutamento de empregadas domésticas (servir) para áreas urbanas próximas (170 empregadas deslocadas em 1960) (REBELO, 1965). 11 Assente na “destruição criadora” – destruir a velha igreja e construir uma nova que “albergasse todos os fiéis”, foi um ponto de partida, o móbil que possibilitou redimensionar e reorientar a autoimagem e autoconfiança coletiva. Para congregar em comunidade a Freguesia dispersa pelos lugares em agressividade permanente entre si, o pároco desencadeou uma dinamização global em torno dos objetivos de construção da nova igreja, a
fim de estabelecer redes de ligação positivas – 1 o congregar a Freguesia, 2 o estimular a competição existente reorientada para a prossecução de objetivos de interesse coletivo. A igreja foi inaugurada em 1955 (RUFINO, 2016). 12 Em 1960, dá-se a adesão de Portugal à Associação Europeia do Comercio Livre (EFTA), a possibilitar a abertura da economia ao comércio internacional, entrada de tecnologias mais avançadas, maior concorrência dos setores direcionados para a exportação. 13 Equipe multidisciplinar coordenada pela economista Manuela Silva – constituída por uma socióloga, um licenciado em direito, dois arquitetos, uma assistente social, um engenheiro agrônomo, dois economistas, um médico e uma enfermeira. A equipe foi patrocinada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Junta da Colonização Interna, Federação das Caixas de Previdência, Santa Casa da Misericórdia, Gabinete de Investigação Econômico e o Instituto Maternal (LEMOS, 1966). 14 Nome da padroeira da paróquia da freguesia, imagem do século XV, mostra a virgem com o seio visivelmente exposto para dar mama ao “menino Jesus”. 15 O ensino liceal e técnico profissional – formação feminina e formação de serralheiros. A escolaridade equivalente ao 12 o só tem início após a revolução de 1974. 16 Naturais do território que tiveram acesso a maior nível de escolaridade (na altura a decorrer predominantemente através da Igreja Católica em “seminários” com internamento). Esses preservam a relação de confiança e proximidade sociocultural com os demais atores locais, mobilizando recursos, ideias e ideias de sustentabilidade e de comunidade (a destacar: José Serrazina – cônego e Acácio Catarino – Consultor Social, quadro do Instituto de Emprego e Formação Profissional). 17 Com distribuição dos lucros ao fim do ano, consoante o volume de compras por associado, o que reduz os custos das rações para animais e outros consumíveis ligados à agropecuária. Há igualdade de procedimentos para o associado de alto e baixo consumo; ainda funcionar com igual procedimento em 2020. 18 Riboulon; Fournier (2003, p. 182). Nesse período, a Benedita é a mais significativa Freguesia do Concelho de Alcobaça – tem mais população e mais indústria (calçado, marroquinaria, cutelaria e serralharia). 19 Espaços infraestruturados para a localização de empresas, de modo a ordenar a indústria dispersa pelo território, aglomerada com as habitações. Este financiamento europeu atribuído em 2019 ainda está em fase de concurso/adjudicação das obras – a proposta inicial foi desencadeada há mais de 15 anos. 20 Ambos dedicados à formação/qualificação de adultos, com recurso ao Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências – RVCC.
21 Rufino, 2010; Rufino; Gonzaga, 2011; Veloso: Rufino; Craveiro, 2012. 22 No total das 1.430 pessoas em processo (escolar e profissional – dados de maio de 2020), temos: 131 inscritos, 24 em acolhimento, 219 em diagnóstico, 109 em orientação, 25 encaminhados para processo RVCC, 543 encaminhados, 228 em reconhecimento, 89 certificados, 5 desistentes, 26 transferidos e 29 anulados. 23 ANEFA – no Concurso Nacional S@ber +, pelo trabalho desenvolvido no âmbito do “Projeto Fénix”. 24 Apontava nos seus objetivos: “Prevenir e combater a frequência de ambientes de risco pelas crianças e jovens e a adoção de comportamentos desviantes e dos perfis de consumo associados, e facilitar o empowerment cívico e dinâmicas de participação social por via do envolvimento dos destinatários (incluindo famílias) em atividades ocupacionais inovadoras, saudáveis e seguras, alternativas aos espaços e modelo de socialização juvenil disponíveis e no mercado, em tudo contrários à firmação dos valores do trabalho e conhecimento. 25 Disponível em: < http://www.barafunda.eu/ >. Acesso em: 30/3/2020. 26 A Barafunda integrou (2011), enquanto estudo de caso, o compêndio de empresas sociais que contribuem para a integração e inserção no mercado de trabalho, no âmbito do projeto Urban N.o.s.e. do programa URBACT II, com o objetivo de definir uma rede europeia de incubadoras de empresas sociais. 27 Exemplos: “Cidadania Global que Compromissos?”, “Empresarialidade e Empregabilidade dos Sistemas Produtivos Locais” e “Qualidade à Criança e ao Jovem: a Redução dos Riscos”. 28 Despacho conjunto n o 449/2006 – Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social e o Ministério da Educação procedem à criação de centros de reconhecimento, validação e certificação de competências (Centro RVCC) promovidos por entidades previamente acreditadas. 29 A relação entre tradição, cultura tradicional e desenvolvimento assume formas diferenciadas face à ordem externa e à “harmonia” da sociedade, reforçando-se o aspecto coletivo da ordem social com efeitos na formação de atitudes valorizadoras da preservação do ambiente natural diante de impactos socioeconômicos (INGLEHART, 1991, entre outros). 30 Silva (1988, p. 22) refere o indutivismo durkheimiano na origem da circularidade em que ocorrem muitas das suas apresentações e da grande incapacidade positivista de produzir teorias “regionais” capazes de dar conta de regularidades estatísticas observáveis. 31 Tese de doutoramento, investigação financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), Praxis XXI / BD e pelo Fundo Social Europeu (FSE) no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio (tese defendida em 2005).
32 Os empréstimos virão satisfazer os atrasos das verbas para pagamento de salários. Em inúmeras situações são os próprios trabalhadores (associados) que antecipam empréstimos de modo a poder receber adiantadamente e, assim, fazer pedidos de reembolso. 33 Processo de implementação do Desenvolvimento Local de Base Comunitária, conforme o artigo 66 o do Decreto-lei n o 137/ 2014, de 12 de setembro, e o ponto 3 do Acordo de Parceria 2014-2020, adotado pela Comissão Europeia em 30 de julho de 2014. 34 Mónica Edwards-Schachter (maio 2020) é investigadora, consultora e formadora em inovação social, empreendedorismo e educação para a sustentabilidade, com projetos em Espanha (docente de Design Thinking em Programa de especialização STEAM, na Universidade de Burgos) e internacionais – “Social Business Initiative (SBI) follow up: Cooperation between social economy enterprises and traditional enterprises”, financiado por EASME/COSME (2017/2019), y “Social innovation futures: beyond policy panacea and conceptual ambiguity”, financiado por European Forum for studies of policies for research and innovation (EU-spri). 18 SOBRE HETEROTOPIAS: REFLEXÃO SOBRE OS ESPAÇOS LIBERTÁRIOS EM BELO HORIZONTE (UMA HOMENAGEM A BRIAN) Lucas Carvalho Soares de Aguiar Pereira No início do século XXI, a cidade de Belo Horizonte contava com diversos grupos anticapitalistas que atuaram em frentes diversas de ações libertárias. Temas como libertação animal, antiarte, tecnopolítica, zona autônoma temporária (TAZ), Faça Você Mesma (DIY) e formas alternativas e autogestionadas de organização política pulsaram por diferentes espaços e em diferentes coletivos. Diversas manifestações anticapitalistas, seguindo a esteira dos movimentos da década de 1990, foram postas em prática nessas duas primeiras décadas, como atos anti-ALCA e anti-BID, e o surgimento de coletivos como a Mansão Libertina, o Carnaval Revolução, o Instituto Helena Greco de Direitos Humanos, o CMI-BH, a Radiola, o Conjunto Vazio, o C.I.S.C.O., o Domingo 9 e ½, o Ÿstilingue, a Casa Somática, a Loja Grátis, o Azucrina e, mais recentemente, a ocupação da Kasa Invisível. São coletivos e atividades que mobilizaram e produziram espaços de convivência, de criatividade, de ação, de continuidades e descontinuidades da experiência libertária. Este escrito é uma operação de memória e de reflexão sobre determinadas experiências vividas em espaços outros, em espaços libertários organizados em Belo Horizonte. Um exercício de memória, de (auto)crítica e de diagnóstico. Destacarei algumas das experiências vividas ao lado do companheiro de movida, Brian, que está desaparecido desde o início de agosto de 2017, como uma espécie de homenagem e celebração à sua existência. ³⁵ A intenção é refletir sobre os percursos dos encontros e das
experiências concretas de trocas e de exercício de liberdade na capital mineira. A efemeridade dessas experiências não diminui sua potência e não elimina seu valor disruptivo. De fato, esse exercício de memória surge como uma possibilidade de reflexão da situação da crítica anarquista na região metropolitana de Belo Horizonte no início do século. Nesse sentido, minha visão não poderia deixar de representar parte das tensões e das ações que ocorreram nos últimos anos. Obviamente não se trata de um apagamento da organização anarquista em termos classistas, como o Movimento Anarquista Libertário-BH, de 2009, que deu origem ao Coletivo Mineiro Popular Anarquista (COMPA) em 2012. A existência e a experiência desses coletivos são fundamentais, mas não cabem na proposta deste ensaio. Entendo, inclusive, que sua emergência e suas ações correspondem ao mesmo problema que fomentou o surgimento das ações e dos grupos autônomos para os quais este texto lança sua atenção: o desenvolvimento de um novo modelo de dominação capitalista que surge no final do século XX e que elegeu a democracia liberal como única forma possível de existir, dividindo o mundo entre amigos e inimigos desse projeto. Projeto que agora passa pelo sufocante processo de consolidação das extremas direitas no cenário mundial, paradoxalmente, depois de algumas décadas de uma cultura política antidemocrática, forjada pelo próprio neoliberalismo (BROWN, 2019). Vários autores, como Rancière (2009), já haviam discutido esse problema da imposição do modelo democrático liberal, ainda na década de 1990. Essa uniformidade se deu no sentido de uma partilha do mundo em termos de combate a modos de existência não compatíveis com os valores do liberalismo econômico, declarando guerra aos diferentes modelos e projetos de existência, como no caso da construção do mundo árabe como a encarnação do Terror. Paralelamente, o desenvolvimento econômico na periferia do capitalismo, após décadas de mera exploração de mão de obra das multinacionais, abriu caminho para dois fenômenos: a individualização da vida em sociedade, pautada pela capacidade de consumo, por um lado, e a institucionalização de experiências de “não democracias”, por outro lado. As perdas significativas que as sociedades democráticas sofreram em suas relações jurídico-institucionais nas últimas décadas, atreladas ao sonho e ao relativo aumento da possibilidade de consumir tecnologias e produtos industriais em geral, contribuíram para a emergência das novas formas do fascismo nos estados contemporâneos. ³⁶ Vários autores têm demonstrado como o neoliberalismo criou esse monstro político do século XXI: mistura entre conservadorismo, (neo)liberalismo e instâncias do fascismo (BROWN, 2019; TRAVERSO, 2019). Historicamente, e com muitas descontinuidades, a crítica anarquista esteve muito atenta e ocupada com a questão da liberdade social e individual, mas também com o problema dos rumos tomados pelas esquerdas ao longo do século XX e com o problema do governo e da governamentalidade (BOOKCHIN, 2010). A questão atual é que o governo já não se limita somente ao conjunto de sujeitos eleitos para representação da população na administração do Executivo ou do Legislativo. As tecnologias da disciplina e
do biopoder fizeram emergir, desde o século XIX, formas de exercício do poder que dizem respeito à incorporação de um modo de reproduzir a realidade a partir de uma positivação do poder, culminando em formas de dominação que se efetivam pela adesão voluntária a projetos de “proteção” da sociedade (FOUCAULT, 2005). O excesso de positivação no século XX e XXI corresponde a um novo tipo de poder, que Byung-chul Han denomina, metaforicamente, de violência neural. Nesse novo tipo de violência, é o próprio indivíduo que se pune, que se esgota, que entra em um espectral de sofrimento mental quando vê seus sonhos liberais frustrados. Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho, em vez de questionar a sociedade ou o sistema, considera a si mesmo como responsável e se envergonha por isso. Aí está a inteligência peculiar do regime neoliberal: não permite que emerja qualquer resistência ao sistema. (…) Já no regime neoliberal de autoexploração, a agressão é dirigida contra nós mesmos. Ela não transforma os explorados em revolucionários, mas sim em depressivos (HAN, 2018, p. 16). Esse novo modo de sujeição e subjetivação do ser a partir da falsa promessa de liberdade, travestida em autocontrole e em servidão da vida nua ao trabalho, é uma releitura dos dogmas e rituais que fazem do capitalismo uma religião, como já havia apontado Walter Benjamin (HAN, 2018, p. 18). Esse me parece um tema central também para alguns coletivos anarquistas do final do século XX, que viam na potência da ação coletiva dos indivíduos uma saída possível para construções coletivas de horizontalidade e de experiências libertárias, desde a década de 1990. … A vida de Brian representou o oposto desse processo de autoexploração e de autoagressão. Sua revolução, sua revolta, envolveu uma mudança fundamental no seu estilo de vida, abandonando não somente valores macro, mas radicalizando a crítica anarquista ao ponto de abandonar os princípios regulamentares da vida capitalista no mundo urbano. Vindo de uma formação religiosa crítica e ligado à cultura punk (além do hardcore e de outros gêneros musicais do underground ) desde sua adolescência no interior mineiro e, posteriormente, na região metropolitana de Belo Horizonte, Brian construiu uma trajetória baseada em uma estética da existência muito ímpar: o viver práticas de verdade, produzindo, em seu corpo e no contato com outros corpos, espaços de liberdade e condições de exercício de liberdade. “Se eu não puder dançar, não é minha revolução”, é uma frase escrita em diversos materiais e intervenções feitas por Brian. Este slogan, atribuído erroneamente à Emma Goldman, ³⁷ representa o estado de espírito de uma geração de jovens anarquistas no final do século XX e nas duas primeiras décadas do século XXI. Uma tendência de lidar com o corpo e com a liberdade que se manifestou em diferentes experiências desde pelo menos a década de 1960. Um grande exemplo desse processo, a meu ver, é o próprio surgimento da SOMA (Somaterapia) no Brasil, e a aposta na revolução a partir de uma nova postura e relação com o próprio corpo, com o prazer, em busca do tesão da vida. Brian e outros companheiros buscaram dobrar essa
ideia que une prazer e revolução, alegria e ruptura com a lógica capitalista. Em 2010, por exemplo, Brian lança, em parceria com o músico e militante anarcovegano Animinimalista, um EP intitulado Movilidad Libertaria , distribuído em licença aberta em sites e aplicativos de mídias virtuais. Cantando em tom extrovertido e profundamente corporificado em suas colocações, ele enunciava na canção “Coração Feliz”: Nenhum remédio cura mais que um coração feliz. // Lá, lá, lá, lá rá, lá, rá. // Não acredito na alopatia, homeopatia, simpatia, apatia, dia-a-dia, medicina alternativa, irradiação massiva, cloro ativo na piscina, cirurgia incisiva, nem na cannabis [em tom de riso]. // Nenhum remédio cura mais que um coração feliz… A escolha por uma postura libertária e solidária diante do mundo, feita por Brian e por vários companheiros e companheiras anarquistas no início do século XX em Belo Horizonte, dizia respeito a uma renúncia aos valores neoliberais de pacificação da democracia e uma renúncia à governamentalização de propostas à esquerda, uma vez que a raiz dos problemas do estado capitalista seguia nutrindo perseguições, mortes, desigualdade e concentração de riquezas. Havíamos de desejar mais do que mera sobrevivência, mais do que uma escravidão moral a um modelo de paz social que mantinha em sua base a guerra contra sujeitos, famílias, grupos sociais e etnias caracterizadas como indesejáveis, como povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, e a população habitante das periferias urbanas, em especial a juventude negra. Era preciso cultivar a alegria do viver em detrimento do medo, a solidariedade e o tesão da vida em detrimento de escapes artificiais da realidade. A busca por criar espaços outros de fruição do tempo, de reorganização das trocas, de ressignificação daquilo que é descartado, fez surgir diversas ações nas duas primeiras décadas do século. O Garimpo Urbano – Rolê Freegan , realizado em 2008, por exemplo, consistiu em circular pela cidade, explorando suas possibilidades gratuitas (contidas em excessos descartados, nas aberturas dadas por comerciantes, em possibilidades de reutilização, nos desperdícios presentes no cotidiano urbano). Uma experiência única, mas que forneceu a possibilidade de estabelecer outros vínculos com a existência do excesso capitalista, sendo incorporada em práticas cotidianas. A crítica ao consumo sempre se esbarrou no problema da alimentação. Em primeiro lugar, de onde vem o alimento que chega no nosso prato? Como fazer as redes de solidariedades que já existem entre produtores rurais se tornarem uma prática mais plural e cotidiana de relacionamento social em termos de produção e distribuição alimentar? Olhando de retrospecto, faz sentido a escolha de Brian em se aventurar na agricultura no interior do Rio Grande do Sul no início da década de 2010, buscando estabelecer outros vínculos com essa produção. No cenário urbano de Belo Horizonte e região das duas primeiras décadas do século XXI, as opções eram limitadas, mas permitiram a organização de hortas comunitárias, a formação de um esquadrão de bombas de sementes para semear terrenos baldios e o plantio de árvores frutíferas nos canteiros das avenidas.
Mesmo que o veganismo não seja consensual, a crítica realizada ao modelo de consumo e de transformação dos animais em mercadoria, e mais, a crítica de que a exploração ( animal e humana ) é a base dos problemas relacionados às experiências de privação de liberdade, coação, dominação e governamentalidade, fomentaram discussões e ações fundamentais para a crítica ao capitalismo contemporâneo nesse período. Nesse sentido, podemos destacar o coletivo Gato Negro, que atuou entre 2002 e 2005 como um Centro (anti)cultural, localizado no Maletta, com uma vasta programação que incluía vídeos, debates, palestras, oficinas e que se tornou, mais tarde, um coletivo de libertação animal e voltado à divulgação do veganismo. ³⁸ Ainda nesse espectro, podemos lembrar das experiências do “Dia Sem Compras”, que estiveram presentes na região metropolitana de Belo Horizonte, pelo menos, desde 1999. No ano seguinte, a manifestação em um centro de compras (shopping center) localizado na região central de Belo Horizonte, com panfletagem e comida grátis, resultou em uma lesão corporal proferida por um segurança em um manifestante que teve seu braço quebrado. Ao longo da década, diversas ações foram feitas em manifestação ao dia sem compras, organizado originalmente pelo coletivo americano Adbuster no fim do século XX, mas criando espaços momentâneos de reflexão e ação voltada para o estranhamento daquilo que é naturalizado no cotidiano. A crítica ao trabalho também esteve na centralidade de diversas reuniões, ações e mesmo práticas realizadas na região metropolitana de Belo Horizonte. A renúncia ao trabalho, ou pelo menos àquilo que se passou a considerar trabalho no mundo contemporâneo, foi uma opção de diversos ativistas, que passaram a construir alternativas de vida ao modelo capitalista. A crítica poderia ser resumida na seguinte proposição: não há razão para se sujeitar a passar mais da metade do tempo de um dia, enquanto despertos, em uma ocupação laboral que nos permitiria comprar coisas e objetos que não poderíamos usar, pois não há nem haverá tempo para desfrutar das supostas benesses advindas desse trabalho. Esses objetos ou atividades nos prometem uma sensação de satisfação e de realização pessoal, que são, de fato, ilusórias. Uma das evidências práticas dessas críticas foi o surgimento de vários projetos e ações de reciclagem – no sentido de reutilização e reconfiguração – de objetos, como oficinas de montagem de instrumentos musicais eletrônicos; de montagens de computadores; de gravação de música nesses materiais: compartilhamento de experiências culinárias; de trocas de materiais e de técnicas etc. Foi essa inclinação de construção coletiva de saberes e de práticas coletivas de aprendizagem que permitiu a organização de projetos e de ações diversas em espaços, como o Domingo 9 e ½ e o Ÿstilingue. O Domingo 9 e ½ surge em meados de 2007 como um encontro libertário no espaço público, situado como uma TAZ debaixo do viaduto Santa Tereza, na região central de Belo Horizonte. Território abandonado pela prefeitura local e que havia se tornado, por anos, um local estigmatizado e espaço de sono e morada de sujeitos sem moradia. ³⁹ Esses encontros foram organizados e autogestionados por diversos indivíduos autônomos, inclusive por Brian, e contou com expressões artísticas-culturais diversas, além de
facilitar diálogos e oficinas sobre temas os mais distintos: veganismo, mídia livre, produção artística, moradia, amor livre, luta antirracista, bicicletada, okupação das ruas, feira grátis. Em resumo: estratégias individuais e coletivas de ações anticapitalistas. A feira grátis, inclusive, gerou uma experiência muito positiva, culminando na ocupação de uma loja no Mercado Novo (região central de BH), onde funcionou por alguns meses, a Loja Grátis em 2010. ⁴⁰ Partindo do espaço do viaduto, diferentes redes se formaram, diferentes agenciamentos, táticas e estratégias de substituir a sobrevivência por experiências de vivências mais livres no cotidiano de uma cidade grande do capitalismo brasileiro. Muitas receitas de alimentos, usadas para constituir renda ou mesmo para alimentação de comunidades e ocupações, foram compartilhadas e testadas a partir desses encontros. Brian elaborou, compilou e compartilhou diversos materiais impressos e digitais desses aprendizados. O Ÿstilingue surgiu em 2008 como um espaço colaborativo de produção poética e tecnológica, transformando-se em um espaço coletivo, horizontal e aberto, situado em uma sala num edifício histórico importante no imaginário progressista de Belo Horizonte, o Edifício Maletta, onde antes funcionou o Gato Negro. A sala serviu, durante um par de anos, como ponto de referência para as diversas ações coletivas e individuais na região metropolitana – ponto de apoio bibliográfico e para pequenas atividades artesanais, além de se configurar como espaço festivo e de produção artística, em especial, o compartilhamento e a produção de música livre e independente. Brian também esteve por lá, inventando estratégias e compartilhando conhecimentos e partilhando a autogestão do espaço. Muitas tensões foram vivenciadas ali: a reflexão sobre os caminhos a serem tomados, individual ou coletivamente, foi tema que perseguiu a experiência dos sujeitos que se articularam em torno do espaço que acabou tornando-se um espaço mais festivo do que criativo. Entre as tensões, vale a pena citar, a discussão sobre a construção de ambiente seguro e acolhedor, capaz de produzir solidariedade diante das dificuldades coletivas e pessoais, como a violência de gênero. Do Ÿstilingue vieram experiências como a associação elástica que organizou o bar autogerido Olympio e, posteriormente, o espaço/estúdio Gata Negra. A partir de 2009, a ocupação da região central cedeu espaço para a ocupação de espaços periféricos na cidade, com a emergência das okupações urbanas em diversos pontos – e com a organização de pessoas em torno da casa somática, situada na rua Elza, Vila Suzana. Também na casa somática, a presença de Brian foi estimulante. Lá, ele passava o tempo criando música, inventando estratégias de ação coletiva, participando de construção de estruturas como abrigos ou banheiros secos, aprendendo sobre segurança alimentar e cura das plantas, elaborando materiais de segurança de informações pessoais e sobre segurança dos movimentos contestatórios. A revolta, a mudança radical, a revolução estava ali, em vida, pulsando entre as veias da experiência autogestionada. Ainda em 2009, a Escola Autônoma de Feriado (EAF) surge como zona autônoma temporária suprindo a lacuna deixada pelo Carnaval Revolução (CR), que havia encerrado suas atividades no ano anterior. ⁴¹ O EAF foi uma articulação de coletivos e indivíduos autônomos para realização de uma TAZ
capaz de estimular experiências e de produzir ações e reflexões libertárias e múltiplas durante o feriado do carnaval. A experiência, capitaneada em 2009 por indivíduos autônomos e por coletivos, como o Azucrina e o próprio espaço Ÿstilingue, resultou em um espaço de troca, criação, articulação e de reflexão sobre as possibilidades de se fundar situações estratégicas de materialização da radicalidade em territórios autônomos e autogeridos no período do carnaval. Uma heterotopia em uma cidade sem carnaval. … A multiplicidade de ações foi e é a marca dos anarquismos e da construção de espaços outros de liberdade nessas duas primeiras décadas do século XXI. Assim como sua pulverização. A memória dessas marcas, traços, eventos, instâncias e ações precisa ser entendida também de modo multifacetado. O coletivo [conjunto vazio] vem realizando esse exercício de memória para aqueles que virão depois. Há muitas formas de se pensar esse momento e, certamente, não pretendi explorar cada uma das experiências. ⁴² O modo como narrei a memória dessas experiências expressas neste texto é, certamente, singular, não correspondendo a uma memória coletiva. Mas essas experiências foram marcantes para os sujeitos que participaram delas, e voltam à tona em rodas de conversas frequentemente. Além disso, essas experiências também fortaleceram vínculos e relações que se estenderam em ações ao longo da década de 2010, como a formação da Assembleia Popular Horizontal de Belo Horizonte, que ultrapassou todas essas pequenas experiências mencionadas anterioriormente em termos de participação e mobilização popular – em especial, a juventude negra e periférica da capital mineira. De certo modo, episódios posteriores, como as lutas pelo direito à cidade, como a participação de coletivos libertários em ocupações urbanas e de “efêmeras insurgências” (ANDRADE, 2019), mantêm relação com atividades e expressões dessa leva de experiências anteriores. A própria organização da Praia da Estação, que se deu após o decreto que proibia a ocorrência de “eventos de qualquer natureza” naquele logradouro e que se tornou um espaço de mera fruição do espaço da cidade, posteriormente, iniciou-se como reuniões públicas convocadas por indivíduos autônomos e coletivos de militância anarquistas naquele espaço público para pensar formas de ocupação autogestionada dos espaços da cidade. Muito das experiências mencionadas nesse pequeno ensaio de memória se perdeu, mas muito está acumulado em outras práticas e desafios que estão postos para a terceira década do século. Talvez os desafios vividos no início da década de 2010 nas lutas libertárias dos meios urbanos, fruto tanto da perseguição estatal, quanto de um próprio desgaste dos projetos e propostas de ações coletivas, culminando em desarticulações e rearticulações em outros espaços, tenham levado Brian ao mundo rural, tornando-se agricultor em ocupações ao redor do país até seu desaparecimento. Esses desafios fizeram emergir outros problemas. Não nos atentamos, por exemplo, para o uso e apropriação do vocábulo “libertário” por parte da nova direita, que também formou os corações de jovens no mundo todo. ⁴³ No caso brasileiro, a extrema direita, unida à direita neoliberal, hackeou as demandas libertárias ou mesmo da esquerda progressista, conquistando multidões em torno de, pelo menos, três grandes
questões: a crítica à imprensa burguesa, a ideia de poder popular e a crítica à globalização. Unindo-se à mística religiosa, “a nação, a família, a propriedade e as tradições”, vítimas da “razão neoliberal” e do desmoronamento da vida comum promovido pelo neoliberalismo, tornaramse “resquícios afetivos” blindados e sobre os quais a crítica da tradição libertária não consegue atingir (BROWN, 2019, p. 228). Nas décadas de 1990 e 2000, éramos capazes de imaginar o fim do capitalismo, atualmente, e cada vez mais, tem se tornado mais fácil, coletivamente falando, imaginar o fim do mundo habitável pela vida do que o fim de um sistema criado pelo ser humano (FISHER, 2009, p. 2). ⁴⁴ Por outro lado, apesar dessas ruínas neoliberais fundantes dos novos tempos, há sempre fagulhas de esperanças que precisam de oxigenação, pois os inimigos não se cansam de vencer, como lembrou Walter Benjamin em suas teses sobre a história. Outras movimentações que buscam organizar espaços de alteridade (para além da ideia de alternativa difundida pela nova direita estadunidense) têm ocorrido, criando experiências, práticas de liberdade e coletivos antifascistas em diversas instâncias sociais. Publicações independentes não cessaram de circular e de serem editadas, traduzidas e criadas. Para além dessa difusão do desejo de se libertar de práticas fascistas macro ou micro, as trocas anarquistas vêm concretizando a formação de sujeitos de liberdade em diferentes espaços – ocupações urbanas, comunidades rurais. Há, no entanto, muitas descontinuidades desses processos, como bem lembrou Edson Passetti (2002, p. 159), não se podendo estabelecer um fio de continuidade e de lógica entre esses diversos eventos e experiências mencionadas, mas múltiplas presenças, na forma de ocupação de espaços e de estabelecimento de nós que formaram redes flexíveis com táticas de rupturas ou de conexões. O que se fez nas primeiras décadas do século XXI e o que parece estar sendo feito, ainda, é uma constante organização em torno da re-invenção “da vida como educação” (PASSETI, 2002, p. 161), como espaço de formação pessoal e coletiva, de desestabilizar certezas epistemológicas, culturais e ideológicas. As reflexões dessas páginas, que partiram das práticas e ensinamentos de diversos companheiros, como Brian, não tiveram a intenção de enquadrar suas vidas em um modelo explicativo, mas de pensar a partir dos encontros que permitiram a fundação de espaços coletivos de liberdade, junto àquele companheiro de movida. Gostaria, no entanto, de enfatizar que ao produzir sua existência como uma busca de uma nova relação com a verdade, Brian se portava tal como o parresiasta cínico, estudado por Foucault no final de sua vida. No sentido de produzir uma relação ética de cuidado, que é sempre uma relação de si para consigo mesmo, mas também de si para com o outro. De (re)colocar em xeque a relação que mantemos com a verdade, de analisar de modo meticuloso nossa maneira de viver. Há um paralelo entre essa forma de existir, buscando as raízes de certos problemas humanos, e as diversas práticas coletivas anticapitalistas que se disseminaram no mundo a partir do final da década de 1990 e se estenderam no século XXI. Naquele período, circularam diferentes textos, ideias e pessoas, que em seus contextos específicos fomentaram a criação de espaços outros nos centros urbanos e comunidades rurais ao redor do mundo, esses “outros lugares,
uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos” (FOUCAULT, 2009, p. 416). Brian, jovem negro, curioso, generoso, ativo, solidário, habilidoso com as palavras e com tecnologias, artista e um sujeito sempre disposto a ajudar a construir espaços de liberdade, deixou para os companheiros de luta um legado enorme de gestos e de ideias que fomentam a expansão dos nossos desejos por liberdade. Em um tempo em que o fascismo avança no mundo, lembrar essas experiências compartilhadas com ele também nos ajuda a formar nossa subjetividade libertária, para que não esqueçamos daqueles que vieram antes de nós, para que tenhamos em mente que o enxame espetacularizado que atacou o gigante em 2013 não nasceu ali, tampouco se dissipou por lá. Referências bibliográficas ANDRADE, Carlos Eduardo Frankiw de. Ruas livres : insurgências do uso, desvios do espaço e direito à cidade na Belo Horizonte contemporânea. 662 fl. 2019. Tese (Doutorado em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo. BOOKCHIN, Murray. Anarquismo, crítica e autocrítica . São Paulo: Hedra, 2010. BOURDIEU, Pierre. Ce que parler veut dire : l’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982. BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo : a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Editora Politea, 2019. FISHER, M. Capitalist Realism: Is There No Alternative?. Londres: Zero Books, 2009. 81 p. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade : curso no Collège de France (1972-1973). São Paulo: Martins Fontes, 2005. __. Outros espaços. In: FOUCAULT, M. Estética : literatura e pintura, música e cinema (Ditos e escritos III). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 411-422. GOLDMAN, Emma. Living My Life . New York: A. Knopf, 1931. HAN, Byung-Chul. Psicopolítica : neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyné: Veneza, 2018. PASSETI, Edson. Heterotopias anarquistas. Verve , n o 2, p. 141-173, 2002. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível : estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009. SHULMAN, Alix Kates. Women of the PEN: Dances with Feminists. The Women’s Review of Books . v. 9, n. 3, p. 13-13, 1991. Disponível em: < www.jstor.org/stable/4021093 >. Acesso em: 12/2/2020.
TRAVERSO, Enzo. The New faces of fascism : Populism and the Far Right. London: New York: Verso, 2019. WALLACE, Rob. Coronavirus: “agribusiness would risk millions of deaths”. Marx21 , 11 mar. 2020. Disponível em: < https://www.marx21.de/ coronavirus-agribusiness-would-risk-millions-of-deaths >. Uma tradução pode ser encontrada em < https://faccaoficticia.noblogs.org/post/ 2020/04/14/grandesfazendas >. Acesso em: 14/4/2020. 35 A última vez em que Brian Matos da Silva foi visto teria sido em sua última morada, no dia 11 de agosto de 2017, no Vale do rio Forqueta, no município de Maquiné-RS. Apesar das buscas realizadas nas localidades do vale, ele não foi encontrado. 36 O relativo aumento na qualidade de vida dos centros urbanos não significou o mesmo para diversas regiões e populações em diferentes localidades das Américas, África e Ásia. O militarismo é um dos fatores fundamentais para compreender a manutenção da pobreza como sustentáculo do capitalismo. 37 O trecho em negrito da citação abaixo, retirada do livro Vivendo minha vida , publicado em 1934, foi adaptado e reformulado na década de 1970 em um evento de criação de um fundo para a causa anarquista. O trecho foi impresso em uma camiseta com o rosto de Emma Goldman com os dizeres que se tornaram famosos. Mas a passagem original é muito mais profunda e remete ao desejo pela liberdade, pelo direito à livre-expressão e ao contato com a beleza das coisas. Emma escreveu: “At the dances I was one of the most untiring and gayest. One evening a cousin of Sasha [Alexander Berkman], a young boy, took me aside. With a grave face, as if he were about to announce the death of a dear comrade, he whispered to me that it did not behoove an agitator to dance. Certainly not with such reckless abandon, anyway. It was undignified for one who was on the way to become a force in the anarchist movement. My frivolity would only hurt the Cause. I grew furious at the impudent interference of the boy. I told him to mind his own business, I was tired of having the Cause constantly thrown into my face. I did not believe that a Cause which stood for a beautiful ideal, for anarchism, for release and freedom from conventions and prejudice, should demand the denial of life and joy. I insisted that our Cause could not expect me to become a nun and that the movement should not be turned into a cloister. If it meant that, I did not want it. ‘I want freedom, the right to self-expression, everybody’s right to beautiful, radiant things.’ Anarchism meant that to me, and I would live it in spite of the whole world–prisons, persecution, everything. Yes, even in spite of the condemnation of my own comrades I would live my beautiful ideal” (GOLDMAN, 1931, p. 53). Sobre a discussão envolvendo esse equívoco e a divulgação dessa citação, ver Shulman (1991, p. 13). 38 Escrevo em meio ao confinamento social provocado pela pandemia do novo coronavírus. As análises sobre como as grandes fazendas, ou seja, a indústria alimentícia, provocam doenças no modelo de produção capitalista são importantes pontos de reflexão sobre o problema da liberdade na cozinha. “O agronegócio como modo de reprodução social tem de acabar
definitivamente, mesmo que não seja por uma questão de saúde pública. A produção altamente capitalizada de alimentos depende de práticas que põem em perigo toda a humanidade, neste caso ajudando a desencadear uma nova pandemia mortal. Devemos exigir que os sistemas alimentares sejam socializados de forma a impedir que surjam agentes patogênicos tão perigosos. Isso exigirá a reintegração da produção alimentar nas necessidades das comunidades rurais, em primeiro lugar. Isso exigirá práticas agroecológicas que protejam o ambiente e os agricultores à medida que cultivam os nossos alimentos. Em termos gerais, temos de curar as fissuras metabólicas que separam as nossas ecologias das nossas economias. Em suma, temos um planeta a ganhar” (WALLACE, 2020). 39 Também em 2007, no período noturno, começou a ser organizado o Duelo de MC’s, um dos espaços de sociabilidade e de liberdade mais importantes de uma parte considerável da juventude periférica da região metropolitana, marcando uma geração de ações da cultura hip hop daquele período. 40 Essas trocas consistiam na disponibilização de objetos em bom estado de funcionamento e na coleta ou não de outros objetos. A educação coletiva consistia no diálogo constante para não transformar a feira grátis – nem a loja – em depósito, lixão, descarte. A experiência foi muito importante e segue como exemplo para muitos coletivos na cidade. 41 O CR surgiu em 2002 e foi um espaço de encontro de diversos indivíduos e movimentações em todo Brasil mobilizados para discutir, divulgar e vivenciar práticas libertárias em shows, debates, oficinas, apresentações de teatro, performance, palestras. De fato, o Carnaval Revolução, em 2008, já havia se retirado de Belo Horizonte. A edição final daquele ano ocorreu no município de São Paulo. 42 Há, por exemplo, uma experiência riquíssima da Radiola , uma rádio independente que se manteve ativa com programação de música e conteúdo informacional popular em diferentes espaços da cidade, mas que acabou sendo fechada em operação governamental. 43 Ninguém é dono de nenhuma palavra, mas seus significados estão em constante disputa e elas atuam tanto na classificação do mundo social, como nas distinções sociais (BOURDIEU, 1982). Argumento que a luta do sentido do termo libertário passou despercebida por grande parte dos companheiros, e a batalha foi ganha por uma geração de jovens formados pelos “chans” da deepweb. Nas últimas décadas, formou-se uma nova geração, em diversas partes do mundo, para quem a crítica ao sistema político (e ao próprio monopólio capitalista) tomou morada nas demandas capitaneadas pelo fascismo contemporâneo (TRAVERSO, 2019, p. 13). 44 Mark Fisher atribui a autoria da frase “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo” a Frederic Jameson e Slavoj Žižek. 19 TRAJETÓRIA INTELECTUAL
DO ANARQUISTA JAIME CUBERO (1927-1998) Rogério Humberto Zeferino Nascimento Escrever sobre Jaime Cubero me é por demais prazeroso. Figura importante do anarquismo no Brasil, deixou saudades por onde passou. Sua expressão, maneiras, jeito suave e doce junto com uma fala macia e melodiosa, marcada por uma modulação sonora no estilo paulista, embalava ouvintes em suas frequentes palestras e conferências. Ele era convidado para compartilhar seus conhecimentos em eventos nas universidades e em outros agrupamentos. Quem tenha tido contato pessoal com Jaime há de certamente confirmar essas minhas considerações. Em depoimento gravado de Carlo Aldegheri (1902-1995), também disponível na internet, ele manifesta profunda admiração pela generosidade de Jaime (ALDEGHERI, 2017, p. 94 e seguintes). Muitas de suas participações em reuniões, simpósios e encontros universitários foram gravadas em vídeo, estando algumas delas disponíveis na internet. Ele também deu várias entrevistas para jornais, revistas e programas de televisão, como no programa de entrevistas Jô Onze e Meia , também disponível na internet. No meu caso, eu o conheci pessoalmente no ano de 1994 quando de minha pesquisa de mestrado sobre a vida e pensamento social de Florentino de Carvalho, pseudônimo pelo qual Primitivo Raymundo Soares (1883-1947) ficou mais conhecido no Brasil. No ano anterior Ideal Peres (1925-1995) tinha feito uma excursão de propaganda anarquista passando por várias cidades do nordeste. Começou em Belém e foi descendo o mapa do Brasil para ministrar palestras em algumas das capitais dos estados nordestinos. Foi quando chegou a João Pessoa, capital do estado da Paraíba, cidade na qual eu estava fazendo o mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal da Paraíba, campus I. Nessa cidade, Ideal deus algumas palestras, distribuiu diversos materiais impressos e estabeleceu contato pessoal com alguns sindicalistas, militantes anarquistas e anarco-punks. Quando pudemos conversar particularmente eu falei para Ideal de ter iniciado uma pesquisa de mestrado sobre Florentino de Carvalho. Ele me passou o telefone de Edgar Rodrigues (1921-2009), memorialista, historiador e o maior arquivista do movimento operário e anarquista do Brasil e de Portugal, dizendo ser com quem eu deveria estabelecer contatos. De posse desse número telefônico, fui no ano seguinte ao Rio de Janeiro, cidade de residência de Edgar, para iniciar a peregrinação nos arquivos. Liguei para Edgar me identificando e informando ter recebido de Ideal o número de seu telefone. Numa conversa muito rápida, Edgar me passa o telefone de Jaime dizendo: “Vá para São Paulo! Fale com o Jaime! É com ele que você deve falar!”. Dirigi-me imediatamente para São Paulo após ter, ainda no Rio de Janeiro, ligado para Jaime explicando as minhas intenções de pesquisa e combinando um encontro. Ele me passou as coordenadas de sua residência, local em que me recebeu junto com sua companheira Maria, com uma afabilidade impressionante. A sua receptividade era de uma generosidade incrível. Sua presença por si só já era cativante. Conversamos longamente sobre sua
trajetória de vida e os embates enquanto anarquista na luta pela manutenção do Centro de Cultura Social e outros enfrentamentos. Falou sem reservas nem prevenções, explanando sobre como se dava, nas décadas de maior vigor do movimento, a dinâmica da efervescente militância anarquista. Atendeu com muita delicadeza e generosidade minhas demandas em ouvi-lo expor sobre Florentino de Carvalho, chegando mesmo a superar minhas expectativas ao me conceder exemplares fotocopiados dos dois primeiros livros de Florentino. Além disso, passou-me a fotocópia de uma carta escrita de próprio punho, assinada por Florentino de Carvalho e endereçada a Edgard Leuenroth (1881-1968) no longínquo ano de 1919. Eu tinha coletado nos arquivos públicos de São Paulo cerca de cem artigos de autoria de Florentino de Carvalho e assinados com seu pseudônimo, seu nome verdadeiro ou as iniciais de um e do outro. Nessa minha estadia em São Paulo fui informado da abertura do setor do DOPS no Arquivo Público do Estado de São Paulo. No arquivo, tomei conhecimento de ter chegado no primeiro dia da abertura dos prontuários para familiares e pesquisadores dos militantes fichados. Consegui uma cópia do prontuário de Florentino de Carvalho de número 144. De posse desse vasto material, escrevi a dissertação, tendo sido concluída e defendida no ano de 1996. Em 2000, a dissertação, revista e reescrita para o formato de livro impresso (NASCIMENTO, 2000), foi publicada pela editora Achiamé, de Robson Achiamé (1943-2014) . Pelo exposto nestes parágrafos inciais é possível ao leitor/a ter uma ideia da importante participação de Jaime Cubero no início da minha caminhada de pesquisador do anarquismo. Acredito firmemente ser este o caso para muitos pesquisadores do movimento anarquista no Brasil, quer tenham sido militantes, quer tenham sido acadêmicos. Sobre a vida de Jaime, há atualmente suficiente material publicado disponível a quem interesse tenha (CUBERO, 2015; JEREMIAS, s/d; LEUENROTH, 2016; SILVA, 2011). Isso sem esquecer das mais acima referidas entrevistas por ele concedidas. A título de referência rápida, apenas diria ter Jaime uma vida a altura de ser transposta para uma série cinematográfica. Natural de Jundiaí no estado de São Paulo, ainda criança perde o pai. Diante das dificuldades da nova situação, a mãe decide ir com os filhos para a cidade de São Paulo. Jaime frequentou os bancos escolares durante apenas três anos do ensino primário, tendo de abandonar a escola para trabalhar a fim de auxiliar no sustento da família. A situação doméstica por ele vivida era igual à das crianças proletárias: para incrementar o orçamento familiar, abandonavam a escola para trabalhar arduamente em fábricas, ateliês ou oficinas. Nesses locais, a jornada de trabalho era muito extensa e intensa. Trabalhava-se 10, 12, 14 horas por dia. Havia casos de jornada de trabalho de 16 horas. A uma criança não restava nem tempo nem energias físicas e mentais para mais nada depois de exauridas as forças do corpo, que dirá para os estudos. A precária situação financeira dos proletários mal dava para atender às necessidades básicas de alimentação, saúde, vestuário e moradia, as prioridades da vida a serem atendidas. As crianças dessas famílias findavam sem poderem estudar. Jaime, por seu lado, formou uma considerável bagagem intelectual fora do espaço escolar formal como autodidata, conforme ele mesmo afirma em várias ocasiões. Esses e outros
detalhes de sua infância, juventude e maturidade estão mais largamente expostos nos livros acima indicados. Por este motivo, não serei fastidioso repetindo o assunto. Apenas pontuei ligeiramente aqui alguns dos aspectos de sua vida para melhor articular o propósito destas linhas, a saber: a partir dos escritos de Jaime Cubero (2015) elaborar alguns apontamentos sobre seu pensamento social. Farei estas reflexões estabelecendo um diálogo com o autor e também inserindo nesta conversação outros anarquistas de seu período de vida. * Jaime Cubero foi um de nossos últimos velhinhos, como carinhosamente anarquistas no Brasil o chamavam. Ele fez a ponte entre as gerações do início do movimento anarquista e os nascidos a partir dos anos da década de 1960 cujo conhecimento do anarquismo aconteceu por outros caminhos, sem contatos com os anarquistas históricos do Brasil nem conhecimento do passado pulsante do movimento anarquista deste país. Algo do ambiente social animado e entusiasmado dos tempos de maior vigor e expressão do movimento anarquista neste país, quando as pessoalidades eram expandidas nos encontros dos coletivos ácratas, nos foi transmitido nos encontros com Jaime. Excelente expositor das ideias anarquistas, Jaime escrevia e falava com fluidez, bela desenvoltura, conhecimento de causa e desembaraço para leitores e ouvintes em busca de informações sobre suas ideias libertárias. Partindo do sentido etimológico da palavra “anarquia”, an = ausência + arquia = governo, poder, ele (CUBERO, 2015, p. 53) procurava elaborar exposição clara e didática de seu significado, pressupostos, implicações e desdobramentos. No geral, ainda é bastante comum a associação de anarquia com caos, desordem, violência generalizada, egoísmo em sentido estreito e mesquinho. O anarquismo seria, nessa perspectiva enganosa, algo como um receituário do mal, um manual ou catecismo do mau-caratismo, a sistematização da perversidade ou uma dogmática da filadaputice. Nada mais distante da verdade e Jaime, numa passagem expressiva de um de seus escritos, apresenta sinteticamente sua concepção arejada do anarquismo. O anarquismo não é uma doutrina rígida, com artigos de fé, tábuas de lei, com profetas, com excomunhões, processos de heresias e sanções, é antes um conjunto de doutrinas e princípios cujos postulados básicos são convergentes, e sempre aberto às novas contribuições. Esses postulados básicos formam um fundo comum, que no amplo universo das múltiplas e alternativas atividades libertárias são o anarquismo propriamente dito (CUBERO, 2015, p. 54-55). As suas reflexões em torno do anarquismo são por demais oportunas para pensarmos, por exemplo, aspectos das polêmicas contemporâneas em torno da composição da esquerda e se o anarquismo pode ser situado neste campo político e ideológico. Há muita confusão em torno deste assunto. Confusão, por sinal, conveniente para atrapalhar, distrair e fazer assim dissipar as forças populares emancipatórias, levando-as a resvalarem mansa e sorrateiramente para as mesmas formas de subalternização, num assujeitamento de si pateticamente entusiasmado. A luta por justiça social, pautada por uma ideia de igualdade entre todos, o reconhecimento do direito à vida incluindo uma cada vez mais equânime distribuição da riqueza
social, a liberdade de expressão e pensamento, a concepção de sociedade como sendo diversa sexual, étnica, religiosa e culturalmente, são temas apropriados e monopolizados como exclusividade dos partidos ditos socialistas ou próximos deste terreno político e ideológico. Para os partidários deste espectro da paleta política, o anarquismo naturalmente seria alocado neste campo. Este ponto de vista equivocado considera o anarquismo uma variante do socialismo com certa proximidade dos partidos supostamente socialistas. Os escritos de Jaime desanuviam este tema ao não se permitir capturar pelos ardis dos socialistas de Estado. O socialismo não constitui campo homogêneo definido por uma agenda de reivindicações dificilmente contestada a quem da vida tenha uma concepção mais ampla e generosa. Não há expressão mais aviltada do que o termo socialismo . Assim como para a imensa maioria das pessoas é inconcebível as sociedades humanas se organizarem sem Estado, tal a desinformação, para a maioria das pessoas, socialismo passou a ser sinônimo de estatização . Intelectuais das mais variadas tendências, nas universidades, na imprensa escrita e em todos os meios de comunicação repetem a mesma pregação. Tudo o que se refere a socialismo passa pelo Estado. Quando dizermos que o anarquismo é antes de tudo sinônimo de socialismo, temos que dar um mínimo de clareza ao nosso conceito de socialismo: daí a expressão socialismo libertário . Socializar é tornar a propriedade e os instrumentos de trabalho, enfim, toda a riqueza e o que a produz, disponível à sociedade, acabando com a exploração do homem sobre o homem. Mas, para o socialismo libertário, não basta socializar os bens materiais: é preciso socializar o saber, a informação e todos os bens culturais. Mas, o que é fundamental, jamais haverá socialismo se não se fizer a socialização do poder – a primeira coisa a ser socializada é o poder , que começa com a autogestão das lutas. Destruir o poder político e fortalecer o poder social, eis o que significa autogestão, a real igualdade e liberdade em todo o processo de transformação (CUBERO, 2015, p. 46). A ênfase no poder como devendo ser socializado e não monopolizado vem de seu entendimento de o poder ser de dois tipos: poder político e poder social (CUBERO, 2015, p. 45). O primeiro diz do Estado com seus processos autoritários, com suas hierarquias, imposições, coerções, repressões e punições. O segundo diz da autogestão social, da horizontalidade nas relações, das coletividades associadas em dinamismos horizontais e libertários. Depois de feito este recorte, a distância do anarquismo com os socialismos dos partidos fica evidente. As pautas sociais anunciadas pelos socialistas jacobinos desconversam sobre os meios e os fins. E esse é o nó górdio da questão: os fins não devem ser dissociados dos meios. Os partidos socialistas almejam tomar a direção da sociedade, ou seja, pretendem governar, e governar significa criar leis coercitivas, proibicionistas e punitivas, gerindo e, portanto, conservando as desigualdades de condições econômicas e sociais. Para isso, precisam de polícias, exércitos, presídios, carcereiros, juízes, espiões, delatores, caluniadores, monopólio das armas, entre outros instrumentos e processos compulsórios nada socialistas.
Ao definir o anarquismo como socialismo libertário (CUBERO, 2015, p. 47), Jaime acentua uma particularidade decisiva diferenciando os anarquistas dentro do socialismo: a negação do princípio de autoridade simultânea e articulada à afirmação do princípio de liberdade. Na perspectiva levantada por Jaime é possível perceber o quanto esquerda e direita se equivalem, estando o anarquismo fora deste binarismo proto-religioso. Isto porque interessa a todos os partidos a conquista e conservação do poder político, estabelecendo dinamismo sociais hierarquizados cujo vocabulário disciplinar e disciplinador por si só – comando, diretório, arregimentação, filiação, programa, diretrizes, governo – denuncia a socialização de violências sutis ou escrachadas. Indivíduos e coletividades são macerados, triturados, esmagados sob a bota militar ou pelo emaranhado das leis. Não há lugar no Estado para pessoas nem coletividades: há massificação cujo critério de mensuração é a sociedade burguesa. Jaime enfatiza como cada pessoa surge no anarquismo com valor incomensurável, não havendo neste campo dinamismo de arregimentação para compor quadros, como acontece com todos os partidos, inclusive os da esquerda. As singularidades de cada pessoa são não apenas reconhecidas como legítimas no anarquismo. São também acolhidas, estimuladas, cultivadas, celebradas com entusiasmo, euforia e alegria (CUBERO, 2015, p. 47). A estas colocações enfáticas em defesa da liberdade individual, alguém poderia objetar lembrando os atos antissociais. Que seria feito no anarquismo com quem provocasse nos outros, pessoas ou coletividades, algum dano? Observação procedente, mas reveladora da perspectiva religiosa de seu emissor para quem haveria inquestionavelmente uma natureza humana má. A propósito, esta concepção de sermos uma espécie inclinada para provocar prejuízos nos demais, tendência esta apenas contida por temor a uma pretensa força maior supostamente capaz de nos impor sanções e punições diante de atos criminosos, indica perfeitamente as proveniências religiosas dos Estados e dos partidos políticos. Para a igreja, somos pecadores enquanto todas as formas de Estado velam em defesa da sociedade contra as individualidades e suas periculosidades. A posse e o monopólio pelo Estado dos instrumentos de força social coagindo, reprimindo, mutilando, deportando, encarcerando em penitenciárias, punindo, torturando, assassinando de forma lenta ou sumária, aos desobedientes, aos refratários, aos obtusos, aos transgressores, aos evadidos das suas leis, denunciam sua vocação e inspiração medievais sob retórica modernista de verniz farisaico. Não se dá desta forma no anarquismo e Jaime soube expressar com muita propriedade a noção libertária deste tema. Todos os humanos possuem “um ímpeto utópico ”, mesmo existindo neste campo as “ utopias de evasão ” da realidade. Essas são energias direcionadas para a perpetuação das relações de dominação, favorecedoras das explorações e do obscurantismo. As “ utopias de superação ”, por sua vez, “condensam o desejo de alcançar estágios superiores ainda não vividos”. Aqui entra com força e ênfase o destaque por ele dado à dimensão do desejo, do sonho, na vida social humana: “É preciso muito sonho, muito desejo, muita crença nas possibilidades de cada um e na de todos para que possamos superar os obstáculos, vencer dificuldades, construir possibilidades remotas, tornar em ato o que parecia um sonho impossível” (CUBERO, 2015, p. 50-51).
Neste entendimento, as formas de vida social são percebidas como delineadas a partir do campo do inconsciente coletivo, do imaginário social, não havendo lugar nessa perspectiva para concepções sociais ancoradas em algum determinismo, quer seja mecanicista, quer seja organicista. Os seres humanos possuem qualidade volitiva em suas ações e comportamentos. Há, portanto, de se deslocar crescentemente os referenciais do pensamento e do sentimento das relações de autoridade em direção ao sentido da liberdade para assim poder instaurar, adensar e expandir a emancipação social e individual. Essa tem sido a luta encetada pelos anarquistas ao longo do tempo: atingir, afetar e modificar as formas de sentir e de pensar compartilhadas socialmente, provocando a ruína da autoridade e em direção de modalidades libertárias, liberadas, liberatórias e emancipatórias na existência. Todo gesto humano, manifestado tanto por palavras, atitudes, comportamentos, ações e reações, como também nas suas criações, instaurações, realizações, experimentações, resultam da combinação de três variáveis intimamente interligadas: voluntariedade, cognição e liberdade (CUBERO, 2015, p. 74). Quando instados a agir ou a não agir numa certa situação, todos nós humanos o fazemos, ou deixamos de fazer, convencidos interiormente da legitimidade e da necessidade de nosso gesto ou de sua ausência. Vontade! Esta é a palavra. A vontade, por sua vez, não é autorreferente. As balizas para nossas vontades nos são apresentadas no processo de endoculturação como possibilidades exequíveis dentro de circunstâncias reconhecidas e partilhadas nos e entre os agrupamentos humanos. A partir do existente, é possível de se imaginar e inventar outras formas de convivência social. Os valores sociais são expressos através de conceitos compartilhados pelos integrantes de uma cultura. A liberdade entra como o elemento característico da ação humana uma vez não sermos constrangidos à ação por algum imperativo natural ou sobrenatural e tampouco ficarmos adstritos ao modo de vida no qual fomos socializados. A liberdade aqui deixa de ser entendida enquanto relações sociais regulamentadas em leis, códigos e estatutos resultantes e replicadores de processos heterogestionários. O vocábulo “liberdade” tem significado decisivo nas sociedades modernas como um dos efeitos produzidos pelas revoluções burguesas, sobretudo a revolução francesa, em 1789. A partir desta efeméride, as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade ganharam o mundo, caracterizando o legado sociopolítico das sociedades definidas como modernas. No entanto, por causa de repetidos processos compulsórios, proibitivos, concentracionários, punitivos, normatizados, adotados pelos aderentes da gestão centralizada da vida social, a liberdade finda por ser negada com as escusas capciosas da necessidade de defender a sociedade dos indivíduos perigosos. Estes argumentos foram elaborados pelos estatistas das diversas vertentes políticas. Apenas entre os anarquistas há formulação do conceito de liberdade sem subterfúgios nem procedimentos ardilosos. O sentido e o significado da afirmação taxativa do princípio de liberdade, enquanto característica do anarquismo, compreendem atitudes e conceitos sociais em gestos e comportamentos conscientes, ou seja, fruto de uma ética libertária (CUBERO, 2015, p. 57-58). Podemos frustrar nossas vontades. Ao sermos convidados a agir ou não agir, podemos atender ou não às expectativas postas pelas pessoas do entorno ou
por nossas próprias. Frustrabilidade, portanto, é significativo do comportamento humano (CUBERO, 2015, p. 74). Estas reflexões não se restringem à vida pública, à dimensão macrossocial. Antes muito pelo contrário, se estendem para o infinito a partir da vida não só no seu aspecto individual, psicológico, pessoal, mas também em sua interioridade nos afetos, nos sentimentos e na corporeidade. As relações amorosas e mesmo sexuais, neste entendimento, devem seguir as variações de suas mutações. Amor libertário é o conceito abraçado por Jaime (CUBERO, 2015, p. 50) tratando das relações afetivas, sexuais, sob vibração anarquista. A eliminação de quaisquer interferências externas nessas relações só seria completamente possível numa sociedade anarquista, isto é, sem a existência da propriedade privada e da moral cristã. Mesmo assim, os ritos e restrições às relações amorosas e sexuais postos na contemporaneidade são apresentados por Jaime como sendo patéticos e profundamente ridículos. Depreende-se deste apontamento ser desejável direcionar as energias corpóreas, intelectuais e tantas quantas existam em cada pessoalidade a uma aproximação continuada deste ideal desde já, desde agora, no imediato das existências. Experimentar novas formas de convivência sem esperar por um futuro qualquer consiste no desafio posto ao se pensar e propor um comportamento ético libertário. O próprio corpo, com seus pensamentos, pele, libido, emoções e energias intelectuais e morais deve ser inserido neste campo instável de experimentações e seus riscos, num intenso e constante deslocamento libertário. Outros campos da existência humana, como a economia e a política, também devem ser incluídos nessa percepção (CUBERO, 2015, p. 79). Segundo este entendimento, é próprio ao anarquista atuar libertariamente aonde ele estiver, sem obedecer, mandar e sem dar sossego a mandões e obedecedores. Dentro do sindicato, por exemplo, será um instaurador, difusor e provocador de práticas libertárias. A construção de greves, entre outras atividades sindicais, além do seu evidente caráter reivindicador, deve ser eminentemente pedagógica (CUBERO, 2015, p. 135) numa vibração de intenso exercício revolucionário. No espaço do sindicato, o trabalhador se prepara para a gestão direta e coletiva da vida social, tratando da ampla questão social e não apenas das questões econômicas centradas com exclusividade ao mundo do trabalho. O sindicato assim visto deve ser um meio e não um fim em si mesmo. A propósito deste assunto, Jaime (CUBERO, 2015, p. 126) entende o anarcossindicalismo como sinônimo de sindicalismo revolucionário, referindo-se à “Carta de Amiens” divulgada amplamente no movimento operário internacional no ano de 1907. Nessa carta, os operários encontravam os pontos e concepções orientadores destas associações de classe. Mesmo tendo sido inclusive significativa referência para as organizações operárias no Brasil, o citado documento foi tensionado e problematizado por alguns anarquistas à época, os quais apontavam as suas insuficiências e lacunas (CUBERO, 2015, p. 126). Este assunto rendeu longas controvérsias e intensos debates polêmicos entre anarquistas no Brasil desde o início do século XX e sobretudo atravessando os anos da década de 1910 até a década de 1930 (CARVALHO, 2008; 2015; VASCO; CRISPIM, 2014). Os importantes jornais anarquistas, A Plebe (1917-1951) e La Guerra Sociale (1915-1917), publicados na cidade de
São Paulo, registram amplo e empolgante debate e polêmicas envolvendo anarcossindicalistas, anarcocomunistas e anarquistas sem adjetivos em volta deste tema. Os anarcossindicalistas defendiam a maior importância do sindicato para depois da revolução, como instância gestora da vida social. Os anarcocomunistas apontavam, sobretudo, o corporativismo e o economicismo como sendo os mais graves limites naturais do sindicalismo. Por esse motivo, faziam oposição à participação de anarquistas em sindicatos. Os anarquistas sem adjetivos , por sua vez, reconheciam as limitações e defeitos do sindicalismo, indicados pelos anarcocomunistas, discordando de anarcossindicalistas quanto à perpetuação ao infinito do sindicato na vida humana, mas também dos anarcocomunistas quando estes defendiam a saída dos anarquistas dos sindicatos. Anarquistas sem adjetivos viam ainda, naquela altura do tempo, a possibilidade de atuação no sindicato como anarquistas. Para estes, o sindicalismo, como fruto do capitalismo, deveria desaparecer quando da abolição da propriedade privada dos meios de produção. Quanto à presença de anarquistas em sindicatos, Jaime elabora apontamentos semelhantes ou pelo menos de expressiva sintonia com os anarquistas sem adjetivos . Com estes teria findado a separação entre as clássicas correntezas libertárias (CUBERO, 2015, p. 59). Para ele, a inserção de militantes anarquistas no sindicato deveria acontecer através da criação de uma organização específica pela qual haveria a instauração de grupos de afinidade . Estes grupos seriam de dimensões pequenas, compostos por anarquistas de considerável proximidade, profundo conhecimento mútuo e sólida intimidade. A entrada a estas associações se daria sempre de forma espontânea e com a concordância dos integrantes. A saída também se daria a partir da decisão do interessado. Para Jaime, uma das vantagens dos grupos de afinidade , além das já referidas quanto ao exemplo dado pelas práticas dos conceitos e métodos anarquistas para os trabalhadores, diria respeito à considerável diminuição das possibilidades de infiltração de espiões das forças do Estado (CUBERO, 2015, p. 63). A utilização dos grupos de afinidade seria, no entendimento de Jaime, a maneira mais coerente, profícua e eficiente de participação anárquica nas associações de classe, difundindo entre os trabalhadores concepções, conceitos, práticas e procedimentos, demonstrando a validade da horizontalidade tanto nas discussões como nas atividades, experimentos e realizações. A convergência de entendimentos e métodos compartilhados pelos integrantes de grupos de afinidade , quanto à divulgação de métodos autogestionários, se daria tanto pela propaganda feita dentro dos sindicatos como também pela instauração imediata de experimentos nas atividades destas associações. Seria, visto assim desta maneira, um processo eminentemente pedagógico de preparação das coletividades de trabalhadores à autogestão social. Considerando os aspectos pedagógicos próprios das práticas libertárias, a educação no anarquismo é definida com um conceito bem mais elevado, largo, denso e profundo, comparado ao convencionalmente estabelecido em nossa contemporaneidade, reduzindo este termo ao sentido de ensinoaprendizagem, constituído assim mesmo de modo tacanho, estreito, árido e unilateral: do professor ao aluno, sem caminho de volta a não ser dentro e
preso ao dinamismo de adestramento e condicionamento como estímuloresposta. Quando não há propriamente esta redução, há o entendimento comum em nosso tempo de ser a educação um conceito primordialmente fixado na escolarização, na institucionalização, preparando pessoas para o dito exercício da cidadania. Nos espaços escolares dos estabelecimento oficiais, públicos ou privados, os estudantes são encarados enquanto tábula rasa, significando isto serem vistos como verdadeiros entes esponjosos, apenas absorvendo uma verdade como que revelada presente no livro didático e devidamente mediada pelo professor. Este exerce a função de um mix de técnico do currículo escolar e carcereiro: operador importante do dinamismo concentracionário escolar ao mesmo tempo que aplicador severo, entusiasmado e atento do programa oficial, universal, gratuito e obrigatório. Através das garantias da escolarização (CORRÊA, 2000, 75-82), o dispositivo ‘escola’ disciplina a criança legitimando e deslegitimando saberes, exercendo controle minucioso do tempo, ocasião para atuar sobre os corpos. Tudo isto por meio de normatizações por programas, conteúdos, leis, avaliações, certificações, entre outros processos verticalizadores. Jaime escapou deste ambiente concentracionário, tendo percorrido espaços outros, arejados pela liberdade e pelo acolhimento fraterno e estimulador das singularidades de todos e de cada um. Quando em diversas ocasiões Jaime se define como autodidata, ele diz não ter tido vida escolar. Pensemos um pouco mais sobre este assunto. O autodidatismo é indicado nos textos biográficos dos militantes anarquistas desse período enquanto suficiente conceito explicativo do biografado possuir conhecimentos dos estudos da sociedade nas várias áreas do saber sem ter frequentado escolas (CUBERO, 2015; JEREMIAS, s/d; LEUENROTH, 2016; SILVA, 2011). Eu mesmo utilizei este conceito como chave explicativa de ter havido alguém como Florentino de Carvalho, com presença volumosa na imprensa operária e anarquista, com seus artigos e livros apresentando amplos horizontes analíticos e cujos conhecimentos foram formulados por quem teve apenas o ensino formal escolar restrito aos anos do ensino primário (NASCIMENTO, 2000). No entanto, este conceito me parece hoje insuficiente (NASCIMENTO, 2020) por deixar de fora um entendimento mais preciso quanto à nova sociabilidade e às novas formas de convivência inventadas pelos grupos anarquistas. Nestes coletivos havia uma dimensão coletiva profundamente pedagógica, de uma pedagogia libertária e radical. Refiro-me aqui às interações horizontais e à dinâmica autogestionária existentes nos ateneus, centros de cultura, bibliotecas, grupos de teatro, sindicatos, coletivos editoriais dos jornais e revistas, entre outros. O processo eminentemente coletivo colocado em andamento nas associações anarquistas constituía a oportunidade de elaboração de um pensamento coletivo (NASCIMENTO, 2018) refratário e impermeável ao mundo da escolarização oficial acima referido. É possível de se perceber as repetidas e insistentes indicações desta particularidade nos documentos da época consultando os jornais, revistas, livros, opúsculos, resoluções de congressos e demais escritos elaborados pelos trabalhadores anarquistas. Só a título de exemplificação, segue abaixo um desses apontamentos estampados nas páginas de A Plebe . Coisas nossas
A PUBLICAÇÃO DE “A PLEBE” SE FAZ PELA COORDENAÇÃO DOS ESFORÇOS DE SEUS AMIGOS E SIMPATIZANTES A iniciativa do reaparecimento de “A Plebe”, na sua nova fase, em Outubro de 1932, como todas as iniciativas de caráter libertário, foi obra de alguns companheiros dedicados à causa da emancipação humana. Contaram logo com o aplauso e com a cooperação de quase todos os camaradas conhecidos que, como os iniciadores, sentiam a necessidade da publicação de um portavoz libertário de vida regular, cuja obra se irradiasse por todo o país e que fosse ou viesse a ser o reflexo do conjunto das energias e das possibilidades dos anarquistas que vivem no Brasil, entrando assim, de acordo com as suas forças, no movimento anarquista internacional. Esses objetivos, muito modestamente embora, veem sendo alcançados. Com a edição de hoje, “A PLEBE” alcança o n o 96, nesta fase. São poucos, mas representam alguma coisa. Como todos os jornais deste caráter, “A Plebe” tem a sua vida orientada sob um ponto de vista libertário. Para as publicações regulares anarquistas, sempre há, em todas elas, aquilo que comumente se chama um “grupo editor”. Em todos os nossos jornais consta, por força de circunstâncias, o nome de um camarada como responsável, sem o que não lhe seria permitida a circulação. “A Plebe”, não podendo fugir a essa regra geral, como não podemos, nós mesmos, fugir a muitos prejuízos burgueses que nos obrigam a aceitar à força de leis, tem também o seu redator responsável. Não se queira ver nisto, porém, que o jornal seja propriedade sua ou que ele exerça, na sua orientação, as funções de Diretor. A orientação de “A Plebe” resulta do conjunto de opiniões dos camaradas que ao jornal dedicam as suas atividades e por ele se interessam participando da sua vida moral e material. Fazem parte, pois, anárquica e espontaneamente, do seu Grupo Editor todos os camaradas, amigos e simpatizantes que estão prestando ou venham a prestar o seu concurso à orientação do jornal em sua obra sistemática, regular e perseverante, atuando como colaboradores, oferecendo sugestões, prestando o seu concurso na expedição, fazendo reparos, escrevendo, mandando notícias, tomando iniciativas próprias no sentido de melhorar o jornal e enriquecer as suas colunas com escritos próprios, bem como interessar-se pela sua difusão por toda a parte e em todos os ambientes. O trabalho de compilação de “A PLEBE” também obedece ao critério mais anárquico possível. A coleção dos 96 números publicados é o reflexo fiel das atividades e da capacidade intelectual do nosso movimento militante no país.
Desde o mais modesto operário às maiores capacidades do anarquismo no Brasil, todos ali estão representados. Pelas suas colunas tanto se espalham o simples bosquejo do principiante, que ainda inseguro e medroso rabisca as primeiras linhas para serem publicadas, como o pensamento vigoroso dos mais experimentados intelectuais da filosofia ácrata que, neste recanto do mundo, prestam a sua cooperação à grandiosa obra do edifício social do futuro. Dentro do movimento de ideias, como órgão de defesa das classes oprimidas, “A Plebe” defende o princípio do comunismo anárquico. Não se fecha, porém, a nenhuma outra corrente das ideias e acompanha com interesse, intervindo na crítica ou na exposição de princípios, o movimento anarquista em todos os setores em que se manifeste. Tudo quando nos é mandado para publicar, que não fuja aos moldes doutrinários da sua razão de ser, vem sendo publicado, sem cogitar se o escrito é individualista, sindicalista ou comunista anárquico. Sempre que os originais tenham uma ideia, defendam um princípio ou um ponto de vista libertário, foi lhe dada guarida em nossas colunas, auxiliando, os camaradas que têm estado à frente da redação, em tudo quanto seja possível, os colaboradores que, por circunstâncias várias, não tenham facilidade de escrever corretamente. (…) (NÃO ASSINADO, 1935). Tal qual o trecho do texto acima citado apresenta os dinamismos coletivos na produção, elaboração, realização e distribuição de A Plebe , Jaime dá detalhes da vida anarquista nas associações (CUBERO, 2015, p. 236 e seguintes). O conceito de autodidatismo, portanto, remete ao espaço disciplinador da escola oficial, estando preso a esta memória e de certa forma pagando um pesado tributo a esta instituição. Este conceito diz também do poder da vontade de quem dispõe suas energias corporais, morais, libidinais e intelectuais para afrontar uma ambiência social profundamente hostil, desfavorável, injusta e adversa, rompendo altivamente o cipoal de impedimentos e brutalidades estabelecidas na sociedade vigente. Mas os limites da noção de autodidatismo estão no fato de esta categoria não possibilitar a percepção dos deslocamentos e efeitos libertários quando dos encontros de autodidatas . Nestes encontros acontece a invenção, junto com outras pessoalidades arredias, de espaços de liberdade nos quais instauram, experimentam e potencializam as forças de todos e de cada um por conta de se disporem às afetações mútuas nas associações livres de pessoas livres. A importante centelha inicial, disparando as energias das ações individuais, está posta no campo do desejo , da vontade , do querer livres, podendo muito bem ser apresentada com a palavra autodidatismo . Mas este vocábulo não dá conta das labaredas, do calor, das chamas iluminando e queimando os arredores de seus acontecimentos, como é possível de se perceber no texto anônimo acima endentado como nos documentos registrando a biografia de anarquistas (ALDEGHERI, 2017). Estudos e pesquisas realizadas em torno de aspectos da vida anarquista individual e coletiva também fornecem dados
informativos nesta mesma direção (BARRANCOS, 1998; GODOY, 2017; GONÇALVES; SILVA, 2001; LOPREATO, 2000; PARRA, 2017; FELTRIN, 2017). * Antes de finalizar, gostaria de pontuar algumas considerações – não todas – a mim sugeridas pela imersão nos escritos de Jaime. Arremato estas linhas finais pensando um pouco ainda mais sobre os grupos de afinidade , também sobre a luta antifascista no Brasil e seus escritos de caráter historiográfico registrando acontecimentos marcantes do movimento anarquista no Brasil. Procurarei elaborar algumas notas mais ligeiras por conta de já ter me alongado bastante. Começo com os grupos de afinidade . Outros anarquistas formularam conceitos com a mesma vibração e sentido ao apresentado por Jaime. Maria Lacerda de Moura (18871945) e José Oiticica (1882-1957) se referiram às “elites” sem o caráter aristocrático comumente associado a este vocábulo. Florentino de Carvalho tratou de minorias ativas (CARVALHO, 2008, p. 50) entendidas como núcleos catalisadores das energias pessoais em coletividades. A inclinação das sociabilidades coletivas para expressões libertárias ou autoritárias acontecerá de acordo com a definição apontada por estes pequenos agrupamentos. Os sindicatos teriam tendências anarquistas a depender da criação de minorias ativas , integradas por unidades ativas , compostas por libertários. Atividade, ação direta, autogestão, como forma de banir o autoritarismo e a exploração. É preciso que cada um faça alguma cousa, que os passivos se tornem ativos, e todos a um tempo façamos com que os nossos princípios sejam o centro de gravidade da atenção geral, e o povo os tome como guia do porvir (CARVALHO, 1913). Os grupos anarquistas assim entendidos se caracterizam por não admitirem nem replicarem a dinâmica obediência-mando: seus integrantes não querem mandar nem querem obedecer. Mais além disso, para se ter uma postura expressamente anarquista as coletividades devem ser compostas por pessoalidades atentas a não deixarem sossegado os mandões e os obedecedores, estando permanentemente ativos e alertas para não permitirem prosperarem em suas coletividades despotismos nem servilismos, injustiças nem explorações, obscurantismos nem mistificações. O que caracteriza moralmente os verdadeiros autoritários é a hipocrisia de sua atitude. Nunca eles falam em seu nome, em nome dos seus próprios interesses. Cobrem-se sempre com a máscara dum princípio e não agem senão em nome dos interesses da Pátria ou da Revolução. Mas a Pátria ou a Revolução são eles . Não basta, pois, repelir o nome da Autoridade para estar quite com a consciência. Não basta também renunciar a exercê-la por si mesmo. É preciso também evitar constituí-la e não facilitar aos outros o seu exercício por excesso de credulidade, de docilidade, de servilidade.
Se é abuso que um milhão de homens espere para agir [sob] a ordem dum caudilho que os comande, não é menos absurdo que dez, um, cem mil revolucionários esperem para pensar a encíclica do ou dos chefes espirituais que os catequizam. Logicamente e naturalmente cada um deve agir e pensar por sua conta; o contrário será talvez muito militar, mas nada tem de revolucionário. Em toda a parte onde houver um grupo de indivíduos, a autoridade está latente em cada um deles sob duas formas elementares que consistem na atividade de uns e na passividade dos outros. A atividade é conforme com a natureza de todos os organismos vivos. A passividade é atributo das forças inorgânicas. Enquanto um indivíduo conservar a sua atividade própria sem a subordinar, a ajuntar, ou a assimilar à de um outro, a autoridade não é para temer. Basta, porém, que algumas naturezas, as passivas, se deixem atrair e absorver por uma atividade mais forte que as assimila e com elas se enriquece, para que o equilíbrio das forças seja rompido e que o fenômeno de agregação de onde nasce a autoridade se produza. Então a tendência gregária do rebanho se revela. O movimento de aglutinação moral delineia-se, acentua-se; todas as vontades se precipitam, se aglomeram e se imobilizam em torno dum centro ativo, homem ou doutrina. Acabou de fato o movimento da luta e da liberdade. Este fenômeno mantém-se virtualmente em potência em todos os grupos humanos e pode produzir-se em todos os graus. Em toda a parte onde os homens são numerosos, manifesta-se a tendência para uma formação autoritária mais ou menos ostensiva ou oculta, que é necessário combater. Porque é, sobretudo sob a forma coletiva que a Autoridade pode atingir, com o seu maximum de força , o seu maximum de malignidade (LASCHER, 1933, grifos do autor). Parece-me ser bem este o entendimento de Jaime quando indica o anarquismo como pressuposto, implicado e relacionado a uma prática cotidiana emancipatória, numa “atitude ética” (CUBERO, 2015, p. 48). Esta postura constante e de disponibilidade consciente, por quem pretenda se colocar na vida de maneira anarquista, deve significar a disposição para encetar atividade permanente e incansável de uma prática libertária intensa nos instantes do cotidiano. Para Jaime, as vantagens apresentadas por estes grupos são muitas, entre as quais destaca obstarem as infiltrações policiais. Este aspecto dos enfrentamentos é discutível, tendo havido aqui, no meu entendimento, uma superestimação dos alcances da organização específica . Quando olhamos para a história, os espiões policiais infligiram muitos danos às associações operárias. O tratamento rápido e ligeiro dado por Jaime ao tema da espionagem e da infiltração de agentes do Estado me surge como expressão do pouco caso dado a este tema nas publicações, coletivos e estudos anarquistas.
Este constitui tema de grande importância, devendo ser considerado tanto na história da repressão ao movimento anarquista no Brasil como no percurso dos diversos momentos da República brasileira e mesmo em relação à repressão aos setores populares e seus movimentos reivindicadores e de contestação como acontecido desde fins do século XX pelo mundo afora (SERGE, s/d; FIGUEIREDO, 2005; VOLKMAN, 2013). Em seu artigo sobre a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil, Jaime situa como a insurreição anarquista de 1918 no Rio de Janeiro foi frustrada pela ação de um espião do exército infiltrado no núcleo conspirador (CUBERO, 2015, p. 217-225). A luta antifascista, portanto, geralmente não se detém com mais cuidado e atenção quanto ao modus operandi dos infiltrados do Estado, dos partidos e das igrejas. Um dos resultados deste descaso favorece sobremaneira o estabelecimento do confusionismo em torno de se saber se o anarquismo é ou não é de esquerda, como já citado mais acima. Para os ingênuos entusiasmados com formalismos e conquistas protocolares, a agenda social dos partidos de esquerda em sendo as mesmas dos anarquistas os colocam no mesmo campo: esquerda. Mas a agenda não diz dos métodos, das concepções e de uma ética nas ações de seus aderentes, sendo insuficiente e conduzindo ao erro. Como Jaime coloca com muita propriedade, o socialismo anarquista é libertário em confronto visceral e inconciliável com o socialismo autoritário. O fascismo e o antifascismo voltaram novamente ao campo dos debates após as eleições de 2018. As redes sociais foram invadidas com filtros, posts e mensagens afirmativas da luta antifascista. Toda uma simbologia foi produzida, rememorada e evocada procurando mobilizar e sensibilizar as forças pessoais e coletivas numa convergência de esforços em franco combate ao fascismo. Notícias, documentários, filmes, reportagens tratavam este período como sendo o fim da democracia e o início do fascismo tupiniquim. Haveria muito a escrever sobre este nosso momento histórico, mas seria transbordar os limites deste artigo. Eu diria apenas que atualmente uma das ressignificações dos vocábulos “fascismo” e “fascista” é o de serem termos de desqualificação: fascista é sempre o outro. Dessa forma, vemos figuras tarimbadas da velha política institucional, partidos e até (pasmem!) polícia antifascismo nestas terras. Contra esta confusão, Jaime opõe a perspectiva libertária dos anarquistas. O anarquismo combate todas as formas de autoritarismo, combate todo o poder de coação, tudo o que restringe, limita, sufoca e asfixia o potencial criativo do ser humano. Todo ser humano tem necessidade de desenvolver seu físico e sua mente em graus e formas indeterminadas; todo o ser humano tem o direito de satisfazer livremente essa necessidade de desenvolvimento; todos os seres humanos podem satisfazer essas necessidades por meio da cooperação e da vida associativa voluntariamente aceita. Cada indivíduo nasce com determinadas condições de desenvolvimento. Pelo fato de nascer com aquelas condições tem necessidade – em termos políticos, tem o direito – de se desenvolver livremente. Sejam quais forem suas condições, ele terá a tendência de se expandir integralmente. Ele terá o desejo de conhecer, saber, exercitar-se, gozar, sentir, pensar e agir com inteira liberdade. Esta necessidade é inerente ao próprio ser. Se o crescimento físico fosse limitado
por qualquer meio artificial, tal fato seria qualificado de monstruoso. Também a limitação do desenvolvimento de sua sensibilidade, do seu desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, anulando o seu potencial criativo, seria lógico considerar-se uma monstruosidade. No capitalismo esse absurdo se dá em todas as instâncias da vida social e ninguém considera isso um absurdo, somente os anarquistas (CUBERO, 2015, p. 47). A luta contra o fascismo no Brasil teve na chamada Batalha da Sé sua expressão histórica mais contundente. Jaime faz o registro do início deste enfrentamento ter sido iniciado com Maria Lacerda de Moura. Ainda nos anos da década de 1920 esta gigante intelectual e incansável lutadora das causas sociais combateu com todas as suas forças contra o obscurantismo político e religioso e contra os preconceitos moraliteístas, para usar um de seus conceitos. O fascismo encontrou terreno acolhedor nos diferentes segmentos da elite dirigente, sendo propagado abertamente em jornais e manifestações públicas. Foi Maria Lacerda de Moura quem lançou o alerta antifascista através da publicação de artigos publicados no jornal de São Paulo O Combate . No ano de 1928, ela reuniu a série de artigos num livro intitulado De Amundesen a Del Prete (MOURA, 1928). O artigo de Jaime (CUBERO, 2015, p. 203-210) oferece mais detalhes tanto da ‘revoada das galinhas verdes’, ocorrida a 7 de outubro de 1934, quando os integralistas anunciaram antecipadamente a realização de uma marcha sobre São Paulo, como do papel decisivo de Maria Lacerda de Moura realizando, através de seus artigos, os primeiros ataques ao fascismo mussolinesco no Brasil. Jaime escreveu também sobre a Colônia Cecília (1890-1894), experimento libertário organizado e animado pelo italiano Giovani Rossi (1856-1943) acontecido no interior do estado do Paraná no sudeste brasileiro. Jaime apresenta Colônia Cecília como exemplo da exequibilidade das ideias anarquistas, com a prática das assembleias comunais como dinâmica igualitária e libertária característica. Enfatiza ter havido durante a existência da colônia uma preocupação em orientar as inter-relações numa postura ética libertária. Jaime evidenciou ter Rossi antecipado ao médico e psicanalista ucraniano William Reich (1897-1957), um dissidente de Sigmund Freud (1856-1939), austríaco criador da Psicanálise, a importância das relações sexuais e afetivas na vida humana. No entanto, Jaime se refere a um “fracasso dessa experiência” (CUBERO, 2015, p. 70), conclusão com a qual Rossi certamente discordaria com veemência (ROSSI, 2000). Do exposto, é fácil de se perceber a importância de Jaime para o anarquismo no Brasil. Sua existência está intimamente ligada ao Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP), associação livre criada no ano de 1933 por um grupo de anarquistas. Depois de ter ficado em várias ocasiões na clandestinidade, o CCS-SP retomou as atividades no ano de 1985. Jaime estava no centro desde os anos da década de 1940, sendo a ele confiado um papel decisivo para a manutenção deste agrupamento libertário. Sua ação permanece repercutindo tanto através de seus escritos e falas, inspirando leitores, estudiosos e interessados no anarquismo, como também na sua atuação importantíssima garantindo a existência do CCS-SP. Jaime foi um irredutível, foi um rebelde, um verdadeiro guerreiro ingovernável e incansável lutador pela justiça social, pela anarquia! E viva a gente insubmissa!
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Quero escrever minha história e também fazer um filme: eu sou puta! Puta com todo esse sistema, puta com toda essa coisa que está aí, mas também uma puta mulher, que teve coragem de enfrentar a sociedade . ¹ As narrativas autobiográficas expressam o trabalho de organização da memória, promovem uma prática reflexiva do vivido e podem, também, reverberar as práticas de liberdade cotidianas dos sujeitos históricos. Nesse caminho, discutiremos aspectos da trajetória de Lourdes Barreto: puta, militante, mãe, avó, bisavó (77 anos). As memórias narradas ultrapassam estigmas sobre a prostituição e suas possíveis vulnerabilidades. Nascida no sertão da Paraíba, Lourdes começou a exercer a prostituição na cidade de Campina Grande, percorrendo, em uma mobilidade intensa, diversas cidades do Norte e Nordeste do Brasil. Trabalhou em zonas de meretrício, boates, cais do porto, navios, estradas, barragens e zonas garimpeiras, revelandonos uma ampla possibilidade de exercícios do trabalho sexual e resistências libertárias. Por meio da metodologia da história oral, ² em uma pesquisa participativa de história do tempo presente, ³ apresentamos um processo relacional. Tratouse da construção de uma relação de confiança, no diálogo durante a gravação, nas negociações sobre a maneira de arquivar e disponibilizar o documento oral e escrito (audiovisual e transcrição) publicamente. Desafios éticos atravessaram o processo de pesquisa, desde a formação do acervo de história de vida até a sua análise e publicização. Observamos os sentidos que a narradora atribuiu a si ao selecionar seus marcos/episódios de vida, em um constante movimento de auto-percepção. As memórias das práticas de liberdade insurgiram como uma forma de resistência perante as vulnerabilidades na história de vida de Lourdes Barreto. Lourdes chegou a Belém (PA) no fim dos anos 1950, e, entre idas e vindas, instalou-se na cidade onde ainda vive. Foi precursora na luta por direitos civis, sexuais e trabalhistas das prostitutas no Brasil, cofundadora da Rede Brasileira de Prostitutas, 1987, fundadora e atual coordenadora do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (GEMPAC), com um histórico de atuação no combate e prevenção à HIV, Aids e IST no Brasil. Atualmente, ocupa o cargo de Conselheira de Notório Conhecimento das Questões de Gênero e Atuação na Luta pela Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Conselho Nacional de Direitos das Mulheres – CNDM). Lourdes não passa despercebida, seu bom humor e sua criticidade são marcantes. Verve e firmeza na oratória e no gesticular são características que compõem sua expressão incansável na luta social. Cabelo e batom vermelho, unhas sempre pintadas de cores extravagantes, vestidos estampados vibrantes e duas tatuagens no antebraço: “Eu sou Puta”, e a mais recente: “Vagina tem poder”. A forma de se vestir, de falar, o discurso e a sua autoidentificação feminista compõem o seu engajamento nos debates sobre as mulheres na sociedade – todas as mulheres mas, fundamentalmente, as prostitutas e as mulheres mães, pobres e racializadas.
Ao discutir normas e os jogos de verdade que permeiam as instâncias de poder, Michel Foucault buscou integrar a expressão e constituição dos sujeitos por meio do exercício de práticas de liberdade. Para o autor, as práticas de liberdade são definidas como necessárias para que uma sociedade ou um sujeito “possam definir para eles mesmos formas aceitáveis e satisfatórias da sua existência ou da sociedade política” (FOUCAULT, 2006, p. 266). As formas de constituição do sujeito através das práticas de si são dirigidas por uma noção ética da existência, ética não orientada pelo conjunto de normas políticas, sociais e morais da sociedade, mas por um certo êthos ; uma maneira de ser e de se conduzir que confere liberdade ao sujeito na forma de se relacionar consigo e, por conseguinte, com os outros. Algumas trajetórias de vida, quando narradas, podem dizer de memórias de práticas de liberdade por situarem suas experiências em tensão com os jogos de verdade da sociedade. A história de vida de Lourdes Barreto traz essa particularidade no modo pelo qual organiza suas memórias (CALABRIA, 2020). Em sua narrativa, o processo de constituir-se mulher, prostituta, mãe e militante (eixos fundamentais escolhidos por Lourdes) é orientado por uma semântica de liberdade diante das normas de gênero e sexualidade na sociedade, informando uma trajetória que catalisa as memórias de liberdade em um sentido ético, consigo e com a coletividade que a cerca. Desse modo, buscamos refletir sobre como Lourdes produz uma narrativa pública de si, enquanto mulher prostituta, enfatizando os sentidos de autonomia/escolha e liberdade, por meio de uma série de acontecimentos considerados emblemáticos na sua trajetória. E, ainda, como a elaboração narrativa é capaz de produzir um aprendizado autobiográfico para Lourdes. Atentas à metodologia da história oral, nosso objetivo não é o de atribuir um caráter veritativo às lembranças evocadas e organizadas, pois compreendemos que toda memória é seleção, esquecimento e organização, o que faz da narrativa de vida um ato subjetivo e permeado pelo desejo e escolha (Pollak, 1989). Ao considerar que a narrativa autobiográfica, inserida em um projeto de história oral, tem como lugar de partida o presente, o nosso intuito é discutir os sentidos atribuídos pela narradora às suas memórias, dados os debates políticos atuais e as representações simbólicas e discursivas que reconstroem os significados e as leituras do passado. O trabalho narrativo biográfico é também um aprendizado narrativo para aquele que narra, ao proporcionar um exercício de seleção e organização de memórias que atualiza e promove novos sentidos à história de vida. A história oral de vida, em sua dimensão coletiva e dialógica, promove a produção de conhecimento por meio das narrativas autobiográficas. Expressa o itinerário de uma história colaborativa, uma história feita com a comunidade ⁴ – com o seu pensar, sentir e agir; contemplando reivindicações, estratégias e debates públicos. Este movimento, para a coprodução do saber problematizado sobre o tempo histórico, estimulou o exercício colaborativo, compreendendo os usos do passado na elaboração da memória coletiva ⁵ sobre prostituição no Brasil. Foram realizadas quatro entrevistas com Lourdes Barreto, agendadas, transcritas e autorizadas para análise e arquivamento, sendo duas delas
entrevistas públicas. Centradas na história de vida da narradora, com estímulos para que ela se sentisse confortável, e não perdesse sua espontaneidade, foram utilizados dispositivos sensíveis para produção de memórias, como o uso de objetos biográficos – dos vídeos e fotografia da década de 1990 preservados pelo coletivo Davida (organização atuante na defesa dos direitos das prostitutas desde 1992), e posteriormente catalogados em arquivo. Tais objetos biográficos ancoraram memórias: o significado dado aos vídeos e fotografias foi efetivado na presença constante de elementos simbólicos da história de Lourdes. Lembranças são acionadas à simples menção de uma fotografia, pois colocam em discussão questões relativas à memória enquanto construção do presente. Em um trabalho de história pública ⁶ foi possível perceber as possibilidades e as tensões éticas que decorrem do trabalho com a história oral. As relações estabelecidas suscitam um processo de reflexão sobre as relações que se estabelecem no processo de construção das narrativas orais e suas implicações públicas (ALMEIDA, 2018). A relação entrevistadoraentrevistada abarca o contexto histórico e político que dimensiona os interesses e necessidades da ação coletiva das prostitutas no Brasil. Na interseção entre história oral e história pública foi possível desenvolver plataformas de debates e ações catalisadoras da dimensão pública da história de vida de Lourdes Barreto – a partir das narrativas produzidas dialogicamente, sem eliminar os dissensos, os sentidos contraditórios. O trabalho de história oral possibilitou a implementação de parcerias cotidianas com as prostitutas – a partir da conexão com Lourdes. Tais caminhos são possíveis ao entrecruzar experiência, memória e oralidade. Assim, a história oral se estabelece como local de participação, suporte para registros da vida cotidiana e como espaço de aprendizagem para entrevistados e entrevistadores (ALMEIDA; ANDRADE, 2019). As memórias de Lourdes, desde o ingresso no trabalho sexual à militância, reverberaram e conflitam os sentidos do “ser prostituta”, frequentemente depreciativos, marcados pelo estigma e vinculados à miséria, violência e vitimização. Por sua vez, Lourdes orientou sua narrativa para uma ênfase na positivação das memórias de vida, afetivas e laborais, assumindo a subversão, a resistência, a coragem, a liberdade e o prazer. As memórias de vulnerabilidade e precariedade, contudo, foram preteridas, como uma tática discursiva devido aos debates socialmente vivos sobre prostituição. Os sentidos narrativos produzidos por Lourdes percorrem as memórias do ser “mulher, puta, mãe e militante”. Propomos compreender essas lembranças enquanto práticas de liberdade, pelo seu caráter de coragem ante as práticas e discursos de poder e saber acerca da mulher prostituta na sociedade. Abordamos essas práticas de liberdade em seis episódios, tais como foram organizadas na trama de sentido da história de vida. O primeiro episódio compreende a saída da casa familiar biológica sertaneja. Lourdes foi uma das 11 filhas do pai gaúcho e da mãe nordestina. Conta que, no ambiente doméstico, vivenciou uma violência sexual e que o seu pai, em vez de apoiá-la, culpabilizou-a, dizendo que ela “era bonita, tinha as pernas grossas”. Dizia, ainda, que ela “cruzava a perna pros cara
ver”. Lourdes não aceitou a responsabilização e deixou a família de origem e o meio no qual crescera. Caracterizou o ambiente familiar como “muito violento, com machismo imperando”. Segundo Lourdes, a sua mãe “era uma mulher completamente submissa; homem gritava e ela ficava calada” ⁷ – e, ao lembrar dessa submissão materna, afirmou em sua entrevista pública que nunca aceitaria essa situação. Na primeira recusa às normativas de gênero do contexto sertanejo paraibano, no qual a mulher ficava restrita ao lócus familiar, limitada ao papel de mãe e esposa, marcada pela submissão, Lourdes alega que passou a buscar uma outra forma de ser mulher, que não se reduzisse a uma posição análoga à mãe. Em oposição, foi construindo narrativamente a representação da prostituta como uma mulher livre e autônoma. Relembra a saída da casa familiar com uma expressão que condensa a escolha de vida: “eu resolvi ganhar o mundo. (…) Fui pra prostituição porque eu queria lidar com os dois lados da moeda da sociedade.” ⁸ Entramos, então, no segundo episódio, o ingresso na prostituição, nos anos 1950, em Campina Grande (PB), de onde seguiu, posteriormente, em trânsito para diversas cidades do Nordeste. Segundo Lourdes: E eu morei em Campina Grande e em João Pessoa, exercendo o trabalho sexual. Depois fui pra Recife. Trabalhei em Maria Boa e em Rita Lora, lá em Natal. Também, trabalhei em Maceió. Em Recife trabalhei na Imbiribeira. Fui pra Fortaleza… Trabalhei na Boate Guarani, dançarina de cartão, trabalhei na casa de Ana Maria. Trabalhei no Xirizal lá, Curral das Égua (…) Fui pra Salvador, na ‘Baixa dos Sapateiros’, que era uma zona de prostituição muito grande, onde tinha boates. Eu tive lá presente, na boate Monte Carlo. Eu corri todo o Nordeste. O Nordeste todo eu conheço bem, conheço várias estradas. ⁹ A escolha pelo trabalho sexual aparece como um significante fundamental para a compreensão de sua história de vida. “Resolvi ganhar o mundo” chama a atenção para a escolha deliberada na iniciativa de deixar a casa familiar e ingressar na prostituição, encontrar novas cidades, hábitos culturais e formas de se relacionar. É importante contextualizar que a expectativa para a jovem no sistema sexo/gênero sertanejo, nos anos 1950, impedida de estudar, estava vinculada ao casamento arranjado e/ou autorizado pela autoridade paterna e à consequente restrição ao trabalho reprodutivo. Na narrativa, Lourdes sugere que a entrada na prostituição seja vista muito além de uma mera necessidade econômica, que imediatamente relaciona prostituição à vulnerabilidade e sujeição, e atenta para essa decisão como uma alternativa de saída do sertão para a cidade grande, inserção em uma socialidade urbana, oferecendo novas oportunidades e gerando expectativa de melhoria de vida. As chegadas às metrópoles e suas zonas tradicionais são lembradas como aventura, descobertas e expectativas de melhoria de vida. O terceiro episódio refere-se às práticas de liberdade na tradicional zona de meretrício da cidade, denominada “Quadrilátero do Amor”, em Belém (PA): No final dos anos 50 eu vim pra Belém do Pará. Fortaleza eu passei quase uns 8 ou 9 meses. Depois eu vim pra Belém do Para. (…) Eu resolvi marcar
minha carta aqui, marcar minha história aqui. Ficar aqui. Porque eu vi que era uma cidade que tinha tudo a ver com os meus conceitos, com minha forma de ser.(…) A zona era muito linda, a zona do “Quadrilátero do Amor” era toda aquela área do Bairro da Campina, que é um bairro de Belém. Uma zona amorosa, muito brilho, muito glamour, muita penumbra, né… Eu era completamente apaixonada por essa coisa, essa fantasia linda de tá aqui, lidar com sexo, lidar com homem, com prazer, com a sensualidade, com a sexualidade, então isso pra mim preenchia meu ego. Eu digo, égua, eu tô bem e tal. ¹⁰ A decisão de Lourdes por construir a vida em Belém denota uma correlação entre as transformações social, cultural e econômica marcantes na cidade, ¹¹ nos anos 1950 e 1960, e a sua forma de ser e de se relacionar. No movimento narrativo de sua história de vida, descreve o processo de se constituir mulher e prostituta pelas dimensões de autonomia e prazer, evocadas, sobretudo, nas lembranças do “Quadrilátero do Amor”, onde morou boa parte da vida e onde, atualmente, localiza a associação GEMPAC, fundada por ela em 1990. As lembranças referem-se não somente ao trabalho sexual propriamente dito – suas negociações e expertises necessárias, mas às outras esferas da vida que a ele estavam intimamente relacionadas, ensinando-nos que a prostituição abarcava sociabilidade, afetividade, formação política, práticas de cuidado de si, produzindo um sentido mais amplo do que tomamos comumente como a vida da mulher prostituta na zona de meretrício. Prazer, erotismo e positivação da vida são sentidos presentes, distanciando-se diametralmente da posição que lhe era expectada enquanto jovem sertaneja, inaugurando, no percurso narrativo, a noção da prostituta autônoma com orgulho de assim se autoapresentar. O quarto episódio é narrado enquanto um marco que redefine a sua trajetória; a lembrança de se tornar mãe; “uma puta mulher que tem um prazer de gozar da maternidade, mãe de quatro filhos, vó de dez netos e bisavó de oito bisnetos” ¹² . Ao valorizar a maternidade, Lourdes não deixa de enfatizar a importância da livre decisão diante deste acontecimento na vida da mulher, promovendo uma discussão sobre direitos reprodutivos ao considerar que nem sempre a maternidade lhe fora um desejo, e que realizou alguns abortos durante a vida. As lembranças enquanto puta-mãe na zona de meretrício são contadas em suas particularidades e vicissitudes, borrando a representação, à época, da mulher decente e honesta, restrita ao lar no papel de mãe esposa (RAGO, 2008; ENGEL, 1989). Em uma defesa dos direitos reprodutivos e dos direitos sexuais, a decisão de ter ou não filhos, criados na zona de meretrício sob sua concepção de valores, nos coloca, mais uma vez, diante das práticas de liberdade. Quando a sociedade opunha a mulher decente e honesta à prostituta, mulher pública e antifamília, através de uma série de normativas morais, Lourdes decidiu, segundo conta, ser puta e ser mãe – o que para ela é apresentado nas obrigações morais como educar, prover economicamente alimentação, casa e lazer, e gerir a família, sem, entretanto, opor-se aos direitos sexuais da mulher prostituta, em seu labor, erotismo e desejo. O quinto episódio diz respeito às lembranças de resistências vividas durante a repressão à zona de meretrício, quando, nacionalmente, havia um ditadura civil-militar, e o governo do Pará adotou um conjunto de medidas também
coercitivas, moralizantes e conservadoras. O “Quadrilátero do Amor” foi fechado em 1970 pela Operação Meretrício; as casas foram lacradas, as prostitutas, perseguidas, não podiam transitar livremente nas ruas (DIAS JUNIOR, 2013). Na narrativa, Lourdes rememora o regime militar como produtor de violência ostensiva às prostitutas e narra uma série de lembranças de resistências, que não diluem as vulnerabilidades vividas, tampouco a conforma na mera imagem de vítima. Na época da zona fechada tu tinha que ir pra loja do comércio, pra poder entrar quando tava fechando… Quando tava fechando a loja o dono da loja botava… Quantas vezes fizemos relação sexual em cima de uma mesa assim, porque não tinha como ganhar dinheiro em outro lugar! Porque tinha fechado todos os motéis de Belém. Fechou primeiro o Castelinho, que era o primeiro de Belém, na Padre Eutíquio, depois saíram fechando tudo. Tu não tinha espaço pra transar. Foi assim uma coisa impressionante! Pegava os clientes na rua, aí quando fizeram esses motéis lá pra fora da cidade, lá pras banda de Ananindeua…., a gente andava muito pra trepar, ou então a pé, é da mangueira, nos casarão que tava desocupado, aonde tivesse forma de levantar a saia pra trepar (…) Era difícil… Algumas alugava suas casas, levava cliente, né, nos outros bairro. Aí quando foi depois com 1 ano e pouco reabriu, assim, como casas de cômodo, aí a gente continuou trabalhando. As chamadas casas de cômodo, que não tinha música nem bebida, né. Mas até que lá tinha uma rabiolazinha, uma cervejinha. ¹³ Essas e outras tantas táticas e estratégias foram mobilizadas por Lourdes no intento de forjar espaços alternativos laborais, manter sua família e recriar a vida. Narra que adaptou o programa às condições adversas, utilizou as redes de reciprocidade, acionou a corporalidade de “puta” – enquanto forma de captura dos clientes nas ruas (OLIVAR, 2013), deixou a região do centro de Belém e passou a circular em outros pontos de prostituição, chegando a se deslocar para outras cidades. Para fugir da repressão na região central, utilizou, mais uma vez, uma antiga estratégia laboral, a mobilidade, indo e vindo para não ser capturada, perseguida ou violentada. Nesse sentido, cabe trazermos, como estratégia de resistência, as idas às barragens e regiões garimpeiras, ainda no contexto da ditadura militar, e que, narrativamente, promovem um forte sentido de aventura, exaltando o drible tático da narradora perspicaz que subverte a opressão e a perseguição vividas em um ato de coragem e pioneirismo. Depois eu resolvi querer conhecer os garimpos. Eu viajei pelo Rio Madeira, Porto Velho, viajei para alguns garimpos… Eu trabalhei aqui em Rondônia em balsa, em garimpo de balsa. Trabalhei dentro dos garimpos aqui das cidade pepita de Itaituba. Nos anos 80 tinha uma grande abertura de barragens e garimpos em Serra Pelada surgindo, né. Aí tinha mais de 50 mil homens e eu fui uma das primeiras mulheres a entrar no garimpo para exercer o trabalho sexual, tomar uma cachaça. ¹⁴ O sexto episódio refere-se ao grande marco de sua narrativa; a fundação do movimento de prostitutas, pioneiro na luta da categoria. Nos anos 1970 e 1980, Lourdes conta que vinha participando dos encontros promovidos pela Pastoral da Mulher Marginalizada, um dos ramos da Igreja Católica, através
dos quais realizava os trabalhos de prevenção sexual diante da epidemia de Aids e HIV à época, na qual as prostitutas eram consideradas grupo de risco. Em uma das reuniões, Lourdes conheceu Gabriela Leite que, assim como ela, manifestava a afirmação da prostituição em sua positividade, alegando a importância de serem reconhecidas publicamente enquanto prostitutas, posição diferente da grande maioria das prostitutas atendidas pela Pastoral. Eu casualmente encontrei com a Gabriela Leite, no encontro da Pastoral em Salvador. Ah, encontro aquela mulher baixinha, empoderada… E eu lá… arrodeada de mais de 150 trabalhadora sexuais tudo vítima, coitadinha, pobrezinha, que a zona não prestava, porque tava falando perto das freira, né. Mas quando tava na zona virava cavalo de cão. Tinha Gabriela e eu dizendo que a gente gostava de ser puta, a gente gosta de tá na zona, que a zona também dá prazer, a gente também lida com pessoas, lida com a sensualidade, com a sexualidade e comecei a falar isso… Aí eu digo: “Olha, achei uma parecida comigo!” ¹⁵ Decidem, então, criar um encontro nacional de prostitutas para debater questões que lhe eram particulares, sobretudo a violência e ausência de direitos. E dessa vez, sem a mediação da Pastoral, de maneira que pudessem exercer o protagonismo na luta. Em 1987, realizaram o encontro “Fala Mulher, da Vida”, no Rio de Janeiro, fundando a Rede Brasileira de Prostitutas e produzindo a prostituta enquanto sujeito político na agenda política e cultural da sociedade (Leite, 2009). Essas lembranças são narradas em um enfoque do caráter de liderança e pioneirismo na agenda de lutas da sociedade, tidas aqui como expressões de práticas de liberdade face aos dispositivos de saber e poder, principalmente no que diz respeito ao gênero e à sexualidade. Da pecha de grupo de risco, buscaram se sobrepor, produzindo a noção de prostitutas pioneiras das ações de prevenção. Aí tem a história da Aids que surge nos anos 1980, em 83, com muita coisa no Brasil. Aí aquele alarde, aquela coisa toda… Aí vão atrás de nós. Da Gabriela e de mim. “Olha, tem duas prostitutas que pode fazer um trabalho”, mas eles não sabiam como. Porque nós era chamada grupo de risco e o governo não sabia como chegar próximo dessa comunidade. Nós começamos primeiro do que homossexuais: as prostituta brasileira “lideradas por Gabriela Leite e Lourdes Barreto”… Somos pioneiras… Pioneiras! O departamento de Aids sabe disso. (…) E nós já era fazendo luta, reagindo. Duas mulheres. Que quando a gente chegava, todo mundo parava… A gente abria a boca e todos queria escutar a gente, eu e Gabriela, sempre foi assim. Com esse marco fundador, a narrativa de Lourdes mobiliza, cada vez mais, a “puta” em uma semântica positiva, enfatizando os cuidados de si, em uma evidente subversão ao sentido historicamente depreciativo. Uma série de outras lembranças poderiam ser trazidas aqui como práticas de liberdade que marcaram sua trajetória. Em 1990, Lourdes funda o GEMPAC, mobilizando a categoria no estado do Pará e, posteriormente, ajudando a formar outras associações na região Norte e Nordeste. Em 2000, concorre a vereadora de Belém pelo Partido dos Trabalhadores com o slogan: “Vote nas putas porque nos filhos não deu certo” e, embora não tenha sido vitoriosa, foi considerada uma referência política em sua região. Desde então vem participando de eventos nacionais e internacionais sobre prostituição,
prevenção sexual e mobilização da categoria. Em 2017, recebe o prêmio de “Puta Política” no VI Encontro Nacional de Prostitutas no Maranhão, como reconhecimento do trabalho militante. Em 2018, foi coroada na tradicional festa religiosa do “Auto do Círio de Nossa Senhora de Nazaré”, na cidade de Belém, como representante da prostituta na sociedade, ao lado de representantes indígena e negra. Percorremos a história de Lourdes em um panorama geral, observando seis episódios marcantes em suas lembranças de práticas de liberdade, porque exercidas perante as tensões dos jogos de verdade, que capturam, conformam e estigmatizam. Os projetos de história oral, em seus compromissos de escuta e validação da narrativa e diálogo com o colaborador possibilitam a produção de uma história de vida, não tal qual a que se viveu, mas a que se deseja contar, em seu encontro com o presente. Para Lourdes, essa foi uma oportunidade de ampliar sua história, considerando as batalhas de narrativa do presente, não reduzindo suas lembranças à imagem inócua da prostituta, vítima e despossuída de valores, desejos e escolhas. O ato de narrar a si possibilitou Lourdes atualizar suas lembranças, atribuindo a essas um sentido lógico, ratificou alguns significados já sabidos e imprimiu novos olhares a outros. Ao enfatizar as dimensões de escolhas diante de opressões e vulnerabilidades e contextualizar suas recusas diante das normativas de gênero e sexualidade, Lourdes está elaborando sua própria história como mulher e prostituta, enfatizando as formas particulares, de resistência, forjadas criativamente para recriar a vida ao longo do tempo – e não ser tolhida, maltratada, aniquilada. Em uma aprendizagem narrativa, Lourdes pode selecionar as lembranças, refletir sobre seus significados atuais e fortalecer aspectos da sua imagem de luta e coragem – no curso da narrativa sobre a sua história de vida. Por outro lado, aprendemos sobre as muitas formas de resistências, os modos de vida de mulheres e prostitutas, seus exercícios de liberdade, e pudemos atentar para as amplas maneiras de exercício do trabalho sexual, em distintos contextos – o que contribui para uma história das mulheres, das prostitutas e para o amplo espectro das culturas libertárias. Referências bibliográficas ALBERTI, Verena. História oral : a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: CPDOC/ FGV, 1989 ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. O que a história oral ensina à história pública? In: MAUAD, A.; SANTHIAGO, R.; BORGES, V. (Orgs.). Que história pública queremos? São Paulo: Letra e Voz, 2018. ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs.). Introdução à história pública . São Paulo: Letra e Voz, 2011. ALMEIDA, Juniele Rabêlo; ANDRADE, Everardo Paiva (Orgs.). História Oral e Educação . São Paulo: Letra e Voz, 2019. (Coleção História Oral e Dimensões do público)
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2 Sobre a transformação do relacionamento entre história oral e história pública, ver: Shopes, 2016. Sobre a produção nacional sobre história oral: Bosi, 1987; Alberti, 1989; Ferreira, 1994; Meihy, 1996; Neves, 2006; Santhiago, 2013. 3 Os sentidos da história do tempo presente perpassam, neste texto, as discussões de Bédarida, 1996; Ferreira, 2012; Ferreira, 2000; Rousso, 2016. 4 Uma comunidade de sentido se expressa por memórias plurais, produzidas historicamente, a partir da experiência social de uma coletividade. O trabalho de memória do grupo, enquanto comunidade de sentido, ressignifica o tempo por meio da construção de representações do passado, ver: Baczko, 1985; Pollak, 1989. 5 Sobre a elaboração da memória coletiva a partir de usos do passado, ver: Ferreira, 2012; Almeida, 2016. 6 Ao construir pontes entre os diferentes saberes, a história pública ultrapassa a ideia de acesso e publicização de projetos acadêmicos e busca a produção e a difusão compartilhada do conhecimento. No Brasil, os debates sobre história pública se relacionam com discussões sobre os públicos da história, formas narrativas e processos de construção/difusão compartilhada do conhecimento produzido entre a universidade, a academia e as comunidades de sentido – em projetos que envolvem, necessariamente, os públicos aos quais se destinam. Cabe indicar a importância dos diversos dossiês, em revistas acadêmicas brasileiras, sobre o tema a partir do ano de 2012; bem como as seguintes obras organizadas a partir dos encontros internacionais da Rede Brasileira de História Pública: Almeida; Rovai, 2011; Mauad; Almeida; Santhiago, 2016; Almeida; Meneses, 2018; Mauad; Santhiago; Borges, 2018. 7 I Entrevista com Lourdes Barreto concedida no dia 207/2018. Local: Casa de Lourdes Barreto, Águas Lindas, Belém (PA). Duração: 1h34m50s. Entrevistador/Transcrição: Amanda Calabria (História oral de vida – 34 páginas). 8 Idem. 9 I Entrevista com Lourdes Barreto concedida no dia 2/7/2018. Local: Casa de Lourdes Barreto, Águas Lindas, Belém (PA). Duração: 1h34m50s. Entrevistador/Transcrição: Amanda Calabria (História oral de vida – 34 páginas). 10 Idem. 11 Dias Junior (2013) compreende a vida urbana que se apresentava na cidade de Belém no período como marcada por profundas transformações sociais, econômicas e culturais, que alteraram concepções morais, práticas culturais, hábitos de consumo e formas de comportamento. 12 III Entrevista com Lourdes Barreto, concedida no dia 1/8/2019. Local: Bar do Parque, Belém (PA). Duração: 34min82s. Entrevistador/Transcrição: Amanda Calabria (História de vida – 9 páginas).
13 III Entrevista com Lourdes Barreto, concedida no dia 1/8/2019. Local: Bar do Parque, Belém (PA). Duração: 34min82s. Entrevistador/Transcrição: Amanda Calabria (História de vida – 9 páginas). 14 I Entrevista com Lourdes Barreto concedida no dia 2/7/2018. Local: Casa de Lourdes Barreto, Águas Lindas, Belém (PA). Duração: 1h34m50s. Entrevistador/Transcrição: Amanda Calabria (História oral de vida – 34 páginas). 15 III Entrevista com Lourdes Barreto, concedida no dia 1/8/2019. Local: Bar do Parque, Belém (PA). Duração: 34min82s. Entrevistador/Transcrição: Amanda Calabria (História de vida – 9 páginas). 21 EXPERIMENTAÇÕES DE VIDA UNIVERSITÁRIA E MULHERES LIBERTÁRIAS Lúcia Soares da Silva A sociedade tal como está organizada é mentira convencional, precisa ruir. A satisfação das necessidades do indivíduo deve ir até onde não possa lesar os outros indivíduos; quanto ao mais, que seja livre . Maria Lacerda de Moura O curso de Ciências Sociais na PUC-SP foi um espaço de inquietações e experimentações. Foi nele que tomei contato com os anarquismos de Pierre Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin nas aulas de Edson Passetti. Na PUC-SP da década de 1990, época da organização do encontro internacional “Outros 500”, em 1992, a pulsação do pensamento libertário esteve presente nas existências de José Maria Carvalho Ferreira, Jaime Cubero, Maurício Tragtenberg, Marianne Enckell, Luce Fabbri, Margareth Rago, Roberto Freire, entre outros. As práticas anarquistas efervesciam nos corredores, na produção acadêmica, no Centro Acadêmico de Ciências Sociais (CACS), nos escândalos e pelos poros. Foi nesse contexto que me deparei com as mulheres libertárias, sobretudo, Maria Lacerda de Moura, no final da graduação e início do mestrado. Entrei no curso de Ciências Sociais da PUC-SP em 1991. Naquele momento, estudantes anarquistas ainda estavam à frente do CACS. Por quase uma década (1983-1992), neste centro acadêmico, as discussões políticas e acadêmicas estavam atravessadas pelos anarquismos. Com humor e escárnio, os estudantes contagiaram professores, funcionários e demais pessoas, com atitudes irreverentes. Provocaram questões até então intocadas, desafiaram o borralho moral do final da ditadura civil militar, com afrontas à sombra da repressão que pairava no ar. Em outras palavras, convulsionaram a instituição. No CACS autogestionário, as discussões não eram atravessadas por hierarquias partidárias e autoritárias, princípios tão comuns na política
burocrática dos partidos políticos à direita e à esquerda. De um lado, naquele momento, os partidos de esquerda governavam as condutas dos seus militantes e reproduziam a mesma conduta nos sindicatos e movimento estudantil. Estes lugares, sindicatos e centro acadêmicos, não eram livres, estavam impregnados pelos ditames de autoritarismo, disciplina, obediências e relações verticalizadas. De outro lado, como situou Wander Chaves, a experiência autogestionária do Centro Acadêmico de Ciências Sociais operou uma ética e uma estética que atravessaram a sua organização, suas relações com os saberes, a universidade e as diversas autoridades. Foram happenings, performances, intervenções, poesias, escritos e outras tantas ações. Estes elementos integraram suas relações constituindo parte interior de uma cultura própria que se abriu para além dos limites do CACS. (CHAVES JR., 2011, p. 3) O impacto das experimentações anarquistas na PUC-SP foi imenso, alterando radicalmente parte do ensino e a pesquisa científica no interior da universidade. Com o fim do Ciclo Básico, a grade curricular do curso de Ciências Sociais mudou, ao introduzir os estudos dos pensadores anarquistas do século XIX, como Proudhon e Bakunin. Como salientou Edson Passetti (2007), desde o final dos anos 1970, com a eclosão de O Inimigo do Rei , inventado por estudantes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), passando na década seguinte pelas pesquisas de Margareth Rago (Unicamp) e de Raquel Azevedo do Núcleo de Alfabetização Técnica (NAT) e do Nu-Sol (PUC-SP), o anarquismo revirou e abalou dogmas no interior das universidades e do próprio movimento anarquista. Antes dessa irrupção anarquista nas universidades, segundo Passetti, “se anarquistas universitários falavam de uma história contada por eles mesmos – e não mais tomavam por referência os laudatórios reconhecimentos elaborados por seus adversários sobre os anarquistas restritos à primeira república brasileira –, eles eram tidos como poucos confiáveis” (2007, p. 101), conclui. Contudo, a chegada dos estudantes anarquistas, suas associações, desacatos e incômodos, “propiciaram a coexistência com os professores libertários e os integrantes de centros de cultura. Era o final dos anos 1970 e início de 1980” (ibidem, p. 102).
Em 1992, os estudantes estavam apreensivos para fazer o curso de Política III, apresentado pelo professor Edson Passetti sobre o anarquismo do século XIX. Passetti, junto com o professor Paulo Resende, haviam organizado o livro Proudhon . ¹⁶ Foi ali que iniciei minhas primeiras leituras anarquistas. O impacto foi enorme, por um outro olhar abordava-se a “Autoridade versus Liberdade” e as palavras de Proudhon ecoavam como um grito: “a propriedade é um roubo!” Nunca havia lido nada daquele jeito, sequer sabia o que eram os anarquismos . A anarquia agora nos era apresentada não como sinônimo de baderna ou desordem, mas como uma maneira de consolidar a liberdade e a igualdade a partir da ruptura com os governos e o próprio Estado. Em seguida, em nossos estudos, partimos para Bakunin, o anarquista russo revoltado. Interessada no pensamento de Bakunin, realizei minha primeira pesquisa na universidade, com o Projeto de Iniciação Científica “Igualdade e Liberdade em Bakunin”, sob orientação de Passetti. Entre 24 e 29 de agosto de 1992, foi realizado no Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA), ¹⁷ o evento “Outros 500 – Pensamento Libertário Internacional”. Segundo Passetti: “anarquistas de todos os cantos do Brasil, da América do Sul e da Europa vieram para o encontro e com eles seu mais recente fluxo composto pelos anarco-punks (…)” (2013, p. 58-59). Numa das mesas, o tema foi “Mulheres Anarquistas”, apresentado por Margareth Rago e Marianne Enckell. Além da presença marcante de Luce Fabbri, Pietro Ferrua, José Maria Carvalho Ferreira, Roberto Freire, Jaime Cubero e Maurício Tragtenberg. Quero enfatizar que não há um só anarquismo, uma única maneira de experimentar e inventar a anarquia, mas que existem anarquismos . Depois do “Outros 500”, as parcerias, vínculos e associações livres também se desdobraram em relações com o Centro de Cultura Social de São Paulo (CCS-SP) e com o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), assim como com outros professores libertários e outros anarquistas. ¹⁸ É nesse contexto, que surgiu para mim as “mulheres anarquistas”, incluindo Maria Lacerda de Moura. Foi no curso optativo de Política, em 1994, nas aulas de Maurício Tragtenberg, que recebi a orientação de contatar Jaime Cubero – anarquista decisivo para a reabertura, em 1985, do Centro de Cultura Social depois do ocaso da ditadura civil militar –, para consultar a biblioteca do CCS e procurar pelas obras da anarquista. Nessa época, o CCS ficava na zona leste de São Paulo. Fui até lá e saí com a cópia do livro Han Ryner e o Amor Plural , obra em que Maria Lacerda exalta o estoicismo de Ryner e conclama a mulher a “despertar” na esfera econômica, social e cultural, a livrar-se das amarras dos homens, que ainda tentavam “entravar”, “cercear” o pensamento e o comportamento feminino, assim como discorre sobre o amor livre. ¹⁹ Anos depois, o pensamento dessas mulheres contundentes me acompanharam quando iniciei meu mestrado. Com uma pesquisa sobre Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), procurei investigar, no campo histórico-político, de que maneira o movimento feminista no início do século XX se estruturou, quais foram suas reivindicações – como o direito ao voto, lutas e vínculos governamentais. Uma das queixas prementes ao Estado, na década de 1970, dizia respeito às providências das autoridades em relação à
violência contra mulher, respondida com políticas públicas na década de 1980, com a instituição do Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF) e com a implementação da primeira DDM. Se, de um lado, parte do movimento feminista trilhou o caminho do assistencialismo, buscando direitos sociais e garantias, de outro houve o papel incisivo das mulheres libertárias, que desde as primeiras décadas do século XX atuaram no movimento operário, paralisaram fábricas, se manifestaram politicamente nas ruas questionando de forma contundente a opressão vivida por elas. As mulheres anarquistas resistiram de modo radical. Vale lembrar a ação decisiva das mulheres para a realização da Greve de 1917, considerada por muitos como o maior acontecimento social do século passado na cidade. Entretanto, mesmo no interior do movimento anarquista deparavam-se com preconceitos, estigmas e machismo. Haviam sindicalistas que não acreditavam na capacidade de mobilização e combate das mulheres, pressupunham que suas resistências eram ínfimas e dispersas. Nesse cenário, destaco o papel intrínseco da imprensa anarquista, que produziu um outro olhar a respeito da emancipação feminina. As libertárias escreviam em seus jornais e procuravam discutir a liberdade, o amor livre e a emancipação de todas as mulheres, recusavam ser moldadas, e tampouco queriam ter um dono que as governasse. Escreviam artigos contestadores nos jornais anarquistas sobre a situação social da mulher, apontando para a instrução como um instrumento para a libertação feminina. A educação seria primordial para ampliar o debate contra as classes privilegiadas, porque uma mulher instruída poderia passar isso aos seus filhos, sempre mostrando que há uma possibilidade de insurgência contra a sociedade vigente. “A obra da educação científica, racional para ambos os sexos, é o mais perfeito instrumento de liberdade. É a extinção da miséria universal, é o acumulo de riquezas, é a contribuição para a solidariedade” (MOURA, 1932, p. 72). É importante destacar o papel de libertárias combativas como Matilde Magrassi, italiana radicada no Brasil, que viveu nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, participou de grupos libertários e escreveu em diversos jornais, entre os quais: Novos Rumos e O Libertário ; Isabel Cerruti, que participou de centros de cultura, educadora, lutadora incansável pela emancipação feminina e contra o fascismo, defensora de Sacco e Vanzetti ao escrever no periódico A Plebe . E mais: Maria Antônia Soares, irmã de Florentino de Carvalho, atriz em grupos de teatro anarquistas, combateu a exploração do trabalho infantil nas fábricas e foi presa e perseguida; Maria Angelina Soares, também irmã de Florentino de Carvalho e Maria Antônia Soares, presente no Centro Feminino de Jovens Idealistas, parceira do seu irmão na elaboração do jornal La Barricata – Germinal (também foi presa e perseguida); Maria de Oliveira, colaboradora no jornal O Amigo do Povo , atenta ao tema da emancipação feminina; Tibi, que participou de centros de cultura, escreveu artigos que problematizaram a questão da mulher, colaborou no periódico O Amigo do Povo . ²⁰
Essas libertárias, com Maria Lacerda de Moura, fundaram, em 1921, a Federação Internacional Feminina. Um dos intuitos da federação era que as escolas femininas criassem um curso específico chamado “História da Mulher”. “A Federação colocava como meta, em seu programa: ‘canalizar todas as energias femininas dispersas, no sentido da cultura filosófica, sociológica, psicológica, ética, estética — para o advento da sociedade melhor’” (RAGO, 2007, p. 22). Na década de 1930, a educação era tida como um meio para mulheres e homens conquistarem sua emancipação. Em 1933, o feminismo anarquista aparecia neste mesmo ano no “Centro Feminino de Jovens Idealistas”, criado por iniciativa das irmãs Penné e Maria Suares, em 6 de abril, convocando as mulheres para a luta de Emancipação Social. No artigo 6° do Estatuto, constava: “a sua obra de educação não se limitará a desenvolver-se apenas entre o elemento feminino. Ela se estenderá aos trabalhadores em geral, sempre que lhe for possível.” E dessa maneira o feminismo anarquista diferenciava-se dos demais (PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 68). Maria Lacerda de Moura, com seus escritos para jornais anarquistas ou em seus livros, denunciou a opressão sofrida pelas mulheres em geral, operárias e burguesas. Para ela, a mulher precisaria lutar pela sua emancipação e sempre estar atenta à condição feminina. Contundente, nunca se curvou. Criticou o casamento, o divórcio, o amor casto e o clericalismo. Não se abateu, mesmo quando foi insultada e perseguida. Defendeu a igualdade entre homens e mulheres, o amor livre e não a tragicomédia do casamento. A reflexão combativa de Lacerda de Moura, nas décadas de 1920 e 1930, incidiu sobre a educação moral da mulher. Esperava-se da mulher – solteira ou casada – um comportamento e conduta passivos, pautado na retidão, zelo, cuidado com a família e fidelidade. Nesse contexto, a emancipação feminina era sufocada, inclusive, por meio das violências marcadas em seus corpos ou quando eram assassinadas, por homens que a enxergavam como sua propriedade. Os homens batem o record nos assassínios de cada dia, nos dramas conjugais de todos os instantes, nos quais se julgam cheios de direitos, proprietários e senhores da esposa, da amante e até da prostituta de ocasião. Matam-nas a cada passo, e vão entregar-se gloriosamente à polícia, certos de que defendem a honra sagrada (…). (MOURA, 1933, p. 49). Maria Lacerda de Moura manteve-se preocupada com a condição da mulher. Lutou por uma educação anarquista, pois não acreditava nas possibilidades salvadoras da educação estatal e religiosa, muitas vezes sustentada na caridade que, segundo ela, não podia ser confundida com solidariedade. “Solidariedade e não caridade. A caridade sufoca, engana, mata a iniciativa: faz resignados: é o remorso da injustiça social” (MOURA, 1932, p. 189).
O anticlericalismo e o combate inabalável às leis, ou a qualquer tipo de proteção e tutela por parte do Estado, foram as marcas diferenciais de Maria Lacerda de Moura, em relação às lutas pela igualdade e emancipação da mulher. A anarquista lutou pela igualdade entre homens e mulheres, o que a colocava em concordância com as feministas, mas ao criticar a “comédia do casamento legal”, os papéis de “marido e esposa” e a moral religiosa, afastou-se terminantemente de grande parte do movimento feminista progressista, que pregava a vida em família, a partir da defesa insofismável do casamento. Para elas, Lacerda de Moura era uma degenerada que não respeitava a pátria, nem a Igreja Católica, e era combatente de uma igualdade desnecessária. Até o fim da sua vida Maria Lacerda foi acossada e perseguida em várias tentativas de calá-la. Suas atitudes incomodaram e devido à sua coragem foi esquecida por uma sociedade que resguardou à mulher apenas o papel sacrossanto de guardiã da moral e continência familiares. Entretanto, seus livros e escritos permanecem vivos. Atualmente, jovens pesquisadoras e pesquisadores são atiçados, se debruçam atrás de fragmentos, artigos e livros, que, por sinal, ganham novas edições impressas ou eletrônicas. Sobre a existência de Maria Lacerda, irrompem dissertações e teses instigantes. Seu pensamento livre circula, acontece no presente, nos desafiando, não com a máxima “uma mulher à frente do seu tempo!”, mas sim com o exemplo subversivo de uma mulher indomesticável que não se reduziu a um pensamento restringido à busca de direitos e migalhas do Estado. Como ela mesma concluiu: “Só a mulher consciente compreenderá porque se afirma: as liberdades não se pedem – conquistam-se .” Referências bibliográficas CHAVES JR., Wander Wilson. Autogestionário & o Cacete : política e invenção no centro acadêmico de sociais da PUC-SP. São Paulo: PUC-SP, 2011. Disponível em: < http://www4.pucsp.br/ic/21encontro/artigospremiados-20ed/WANDERWILSONCHAVES_JUNIOR.pdf >. MIRANDA, Jussara Valéria de. “Recuso-me”! Ditos e Escritos de Maria Lacerda de Moura . 2006. Dissertação (Mestrado) – Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia. MOURA, Maria Lacerda de. Han Ryner e o Amor Plural . São Paulo: Unitas, 1933. __. A Mulher é uma Degenerada . 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932. PASSETTI, Edson. Anarquistas na Universidade. In: Anarquismos Urgente . Rio de Janeiro: Achiamé, 2007, p. 101-104. __. Da vida dos arquivos anarquistas contemporâneos no Brasil. Ecopolítica . São Paulo: Nu-Sol, v. 6, maio-ago., 2013.
PASSETTI, Edson; AUGUSTO, Acácio. Anarquismo & Educação . Belo Horizonte: Autêntica, 2008. RAGO, Margareth. Feminismo e Anarquismo no Brasil. A Audácia de Sonhar . 2. ed. revista e aumentada. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007. RESENDE, Paulo-Edgar A.; PASSETTI, Edson. Pierre-Joseph Proudhon . Coordenador: Florestan Fernandes. São Paulo: Ática, 1986. (Coleção Grandes Cientistas Sociais.) 16 Resende, Paulo-Edgar A.; Passetti, Edson (Orgs.). Pierre-Joseph Proudhon. Coordenador: Florestan Fernandes. São Paulo, Ática, 1986. (Coleção Grandes Cientistas Sociais.) 17 No teatro que foi inaugurado, em 1965, por um anarquista, o Roberto Freire, o Bigode. 18 Ver a reflexão de Edson Passetti em “Da vida dos arquivos anarquistas contemporâneos no Brasil”. Ecopolítica . São Paulo, Nu-Sol, v. 6, maio-ago., 2013, 19 Moura, Maria Lacerda de. Han Ryner e o Amor Plural . São Paulo: Unitas, 1933. 20 Jussara, Valéria de Miranda. “Recuso-me”! Ditos e Escritos de Maria Lacerda de Moura . 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia. POSFÁCIO José Maria Carvalho Ferreira No campo semântico do entendimento do que possa depreender por anarquia e anarquismo nas sociedades contemporâneas, os 21 capítulos que integram este livro são suficientemente sugestivos nos múltiplos aspectos do seu conteúdo e diversidade reflexiva e analítica. Como expressão avassaladora deste propósito justificativo importa sobremaneira pensar como cada autor assume a sua singularidade reflexiva, colocando-se como leitor e escriba de autores que considera os mais proeminentes no léxico dos modelos contrastantes dos revolucionários anarquistas, como foram e são os casos emblemáticos de Kropotkin, Bakunin, Proudhon, Malatesta, entre outros. Nessa perspectiva, o pressuposto determinante incide na construção de uma identidade social, econômica, ideológica, cultural e política. O modelo de sociedade alternativo ou a erradicação revolucionária do capitalismo e do Estado emergem sempre como hipóteses para solucionarem os problemas da exploração do homem pelo homem e da emancipação social. No cômputo geral, a relação de entendimento e de aprendizagem entre o que se define por anarquia e anarquismo sempre foi conflitual, contraditória, pouco interdependente e complementar nos seus processos comunicacionais. Ao longo da história, a plasticidade do que acabo de referir
não só foi consumada na proliferação de grupos anarcossindicalistas, anarcoindividualistas, anarcopacifistas, anarcoinsurrecionalistas, anarconaturistas, como na adesão e participação em movimentos sociais e revoluções sociais. Em paralelo, criaram-se escolas, teatros, ateneus, cooperativas, mutualidades, jornais, revistas de diferentes matizes anarquistas. A sua efemeridade foi intensa e extensa, com a exceção dos sindicatos e os porta-vozes anarcossindicalistas da CNT (Espanha), COB (Brasil), CGT (Portugal), FORA (Argentina) CGIT (Itália), CGT (França), IWW (EUA). Essas organizações que acreditavam piamente no valor heurístico da força revolucionária da classe operária seja pela força reformadora e integradora do capitalismo e do Estado, seja por força concorrencial do sindicalismo de tipo comunista, socialista, social-democrata e fascista, o que não restam dúvidas é de que esta leitura da anarquia foi-se desmoronando, progressivamente, ao ponto de essas estarem na sua grande maioria quase moribundas. Não querendo tirar partido abusivo de uma leitura apressada dos anarquistas que integraram, historicamente, outros grupos, é sintomático que os anarcofeminismos, anarcoindividualistas, anarconaturistas, anarcopunks e anarcopacifistas fizeram uma leitura da anarquia pertinente, razão pela qual se mantenha atual como potência de libertação e emancipação de todas as espécies animais e vegetais. Hoje, com as contingências das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) em toda a vida da espécie humana, a expansão do acesso à informação, conhecimento e energia atingiu limites inimagináveis. Na acepção estrita do termo é que a leitura e a vivência da anarquia como um caos singular de liberdade e criatividade auto-organizado no sentido da emancipação social generalizada estão na ordem do dia. Entre esses anarquismos contemporâneos que estão em articulação funcional com as TICs destacam-se o anarquismo cibernético, anarco-hacktivismo, criptoanarquismo e, em última instância, todas as potencialidades que o anarcovirtualismo encerra. Em defesa da verdade, diga-se de passagem que nas sociedades atuais o anarcovirtualismo é o que, genericamente, permite um diálogo intenso e extenso de cada indivíduo singular com propósitos anarquistas com a anarquia, na estrita medida em que cada indivíduo per si é um ator de liberdade e de criatividade, não obstante o condicionalismo e o controle que qualquer Estado possa exercer. Na repetição histórica mimética que alguns anarquismos pretendem ou pretenderam realizar subsiste sempre o exemplo emblemático das grandes realizações revolucionárias. O que é indesmentível diz respeito à sua natureza pragmática e inquestionável força de enfrentar, radicalmente, as estruturas e instituições, e, em última instância, o capitalismo e o Estado. Já nos finais do século XIX, a ação libertária assumiu-se como elemento de luta contra as forças do exército francês na Comuna de Paris. Foi uma experiência revolucionária única de leitura violenta da anarquia que soçobrou no campo do anonimato, sobretudo para os milhares de pessoas que sucumbiram ao exército de Thiers, em 1871. Outros exemplos históricos significativos desta leitura insurrecionalista do que denominaremos como anarquia são bem patentes numa pluralidade de acontecimentos ao longo dos tempos, que se seguiram à Comuna de Paris.
Entre as várias situações desta resposta histórica, temos o maknovitchina , que evoluiu entre 1918-1921, e a rebelião dos marinheiros russos de Kronstadt, em março de 1921. Esses dois exemplos do anarquismo em relação à leitura da anarquia demonstram o equívoco em que algumas correntes incorreram por acreditarem ser a personificação da emancipação social das classe sociais oprimidas e exploradas. Desse modo, não admira que os porta-vozes dos sindicatos anarcossindicalistas da época, em uníssono com os partidos comunistas criados em 1919 sob a batuta da Internacional Comunista sediada em Moscou, tenham enaltecido a ação do exército vermelho comandado por Trotsky em detrimento da informação, do grito de revolta e solidariedade solicitados pelos marinheiros de Kronstadt. A esses só lhe restou fuzilamento sumário. Quanto ao exército dos camponeses liderado por Makhno na Ukrania, após vários anos de luta contra o exército dos brancos em associação estreita com o exército vermelho, após a vitória desses sobre os inimigos principais, limitaram-se a destruir e, sobretudo, a fuzilar o que restava da maknovitchina . Quer num caso quer noutro, a cegueira ideológica e dogmática desses tipos de anarquismos entre o que podemos denominar de teoria e de prática nem sempre coincide e por vezes, neste campo, por mais que nos custe admitir, as diferenças entre anarquismos, comunismos, socialismos, fascismos, capitalismos, social-democracias etc. não é assim tão grande. Como exemplos históricos mais próximos de nós e que podemos considerar como modelos de anarquismo que evoluíram no sentido da prossecução de uma real transformação social, temos a Revolução Espanhola de 1936-1939 e o Maio de 1968, em França. Nesses dois momentos, observou-se uma expressão genuína no que podemos considerar um pragmatismo anarquista consentâneo com as exigências de modalidades de ação coletiva no sentido da extinção do Estado e do capitalismo. A Revolução Social Espanhola de 1936-1939 não foi uma mera reação da ação CNT e da FAI ao poderio militar fascista do exército de Francisco Franco. Sem dúvida alguma, as realizações econômicas, sociais, culturais e políticas que foram conseguidas demonstraram que era possível ir mais longe que a normalidade histórica que o capitalismo e o Estado tinham ensinado. No campo da autogestão, do mutualismo e do cooperativismo em diferentes domínios, fica para a história o legado possível das transformações revolucionárias que foram levadas a cabo com especial incidência na região da Catalunha. O acontecimento de Maio de 1968 em França permite-nos catapultar-nos para feitos relacionais únicos nas práticas de liberdade, onde a vivência do amor livre, da criatividade cultural e da luta contra a burocracia sobrepôs-se durante cerca de um mês a uma normalidade doentia de um capitalismo e de um Estado fossilizado. Em qualquer circunstância que nos possamos situar esse movimento social que irrompeu nas ruas de Paris não obedecia nem a qualquer tipo de ideologias, nem as respeitava, embora o situacionismo e o anarquismo fossem preponderantes. Mais uma vez a leitura que se pode fazer entre a anarquia e os anarquismos como modelos não encontra espaços de identidade, o que nos leva a pensar a anarquia sempre como uma probabilidade não linear aberta em qualquer espaço-tempo da historicidade da espécie humana no planeta Terra.
Outra dimensão não menos importante para perceber o que se entende por anarquia e anarquismo reporta-se à existência de determinados autores anarquistas que se tornaram ícones de interpretação, explicação e compreensão das sociedades contemporâneas. A força estruturante desses autores é de tal forma importante na ação individual e coletiva que deixam marcas indeléveis. Digamos que o dogmatismo das teorias e práticas dos autores que se tornam militantes desses tipos de anarquismos seja quase sempre o corolário lógico de traições e dissensões e, por outro lado, como a consecução da famigerada revolução social tarda ou nunca ocorre, qualquer indivíduo quando integrado em qualquer grupo anarquista tende a abandonar esse grupo ou então esse, em geral, extingue-se naturalmente. Evidentemente que a criação e o desaparecimento prematuro de qualquer grupo anarquista tanto pode ocorrer em relação a um jornal, um teatro, uma cooperativa, ou um sindicato. Quando qualquer grupo anarquista pretende desenvolver militância junto do povo, classe operária, pobres, desempregados, excluídos sociais, presos etc., transporta com ele ideologias de aprendizagem e aculturação política de ícones anarquistas que não são fáceis de assimilar. Esta relação não é profícua não só pela força estruturante e alienante da sociedade de consumo na vida cotidiana dos indivíduos, mas também porque aqueles que se dizem anarquistas têm extrema dificuldade em perceber o desfasamento histórico das reflexões da grande maioria dos autores anarquistas emblemáticas datadas nos finais do século XIX e princípios do século XX. Entrementes, na atualidade é difícil, se não impossível, discernir da identidade teórica e prática entre esses anarquismos a anarquia ontológica sem ser um “ismo”. No diálogo e ilações que procuramos extrair entre a anarquia e o anarquismos para aprofundarmos certos elementos cruciais, temos também que recorrer a militantes que fizeram da sua vida um ato de paixão e amor pela anarquia, se bem que muitas vezes veiculado pela adesão a um determinado modelo de anarquismo. Nesse aspeto, se bem que tenhamos feito alusão a um número restrito de leituras biográficas do Brasil e de Portugal, por si só elas elucidam-nos da natureza genuína de pessoas que foram objeto de análise. Com diferentes biografias e posturas comportamentais traduzidas em publicações de diferente tipo, para além disso, pronunciam a existência de milhares de ativistas anônimos no seio do anarquismo que nunca puderam chegar sequer a escrever a sua própria biografia. Ainda em termos de biografias no campo dos anarquismos, sempre foi importante a existência de revistas especializadas. Essas sempre tiveram e têm intenção de servir como essência reflexiva e analítica do anarquismo em geral, mas também de perceção e crítica radical da contemporaneidade do Estado e do capitalismo. Com as mudanças dos processos tecnológicos, os meios de socialização da comunicação e da informação que eram apanágio das revistas impressas em papel, toda a razão de ser dos custos e de distribuição, sofrem um impacto enorme. Em funçao dessas transformações econômicas, políticas, sociais e culturais da crise do capitalismo e do Estado, virtualizam-se progressivamente. Os atores de emancipação que deveriam, em princípio, revelar-se os coveiros do Estado e do capitalismo são, cada vez mais, cúmplices da sua perpetuação. Em função desta crise de identidade dos anarquismos clássicos em relação à anarquia, não admira que tenham tendência a definhar.
Haveria ainda que extrair outras ilações reflexivas que fazem parte das interdependências e complementaridades entre anarquia e anarquismos. Nos países em que a sua visibilidade social foi mais expressiva, para além dos exemplos emblemáticos de mulheres e homens que foram expoentes máximos de vidas singulares vivificados por caracteres de amor, liberdade, amizade e criatividade, nunca poderemos omitir ou esquecer a foça pujante de todos aqueles e aquelas que foram atores anônimos da luta pela emancipação social. Entre esses e essas, que embora sejam considerados desviantes e transgressores da ordem social vigente, na verdade são também a expressão genuína de movimentos sociais autônomos, que apesar de não se definirem como anarquistas, estão identificados com o processo histórico de extinção da exploração e escravatura no interior e no exterior da espécie humana. Na impossibilidade histórica de consumar a revolução social, muitos daqueles que se afirmaram como anarquistas transformaram as suas vidas cotidianas em espaços-tempos de experiências de criatividade e liberdade. O que é tido até hoje como impotência dos diferentes modelos anarquistas no sentido da consecução da grande revolução social, mas muitos deles, principalmente os que preconizam a adoção do anarconaturismo e do anarcoindividualismo, estão sobretudo interessados em realizar a anarquia aqui e agora no plano intrínseco e identitário da sua vida. Por esta via, a fuga solitária e coletiva das contradições e dos conflitos gerados pelo Estado e pelo capitalismo permite, em certa medida, vivificar o que podemos inferir de alguns anarquismos em relação aos pressupostos que mantêm com a anarquia. Na confluência reflexiva e interrogativa que pretendemos realizar em relação às trajetórias dos anarquistas e dos anarquismos no Brasil e Portugal, se bem que não tenhamos atingido a verdade absoluta, tentamos, pelo menos, procurar saber o caminho histórico que alguns militantes e revistas percorreram, sempre em sintonia com que cada um viveu em relação à anarquia como conceito ontológico. Se estivermos cientes das mudanças em curso, deixaremos de pensar e agir através dos lugares comuns que atravessam qualquer ortodoxia ou dogma, mesmo aqueles que têm a pretensão imaculada da “revolucionarite” aguda que não explica nada e não nos leva a lado nenhum. O caminho da anarquia é para todos segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses e anos das nossas vidas. Ela é atemporal, daí que os anarquismos tenham extrema dificuldade em compreendê-la, interpretá-la, explicá-la e, sobretudo, vivê-la. SOBRE OS AUTORES Acácio Augusto Professor no Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da UNIFESP. Amanda Calabria Pesquisadora no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Ana Paula Massadar Morel Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. André Bocchetti Professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. António Cândido Franco Professor na Universidade de Évora desde 1989. Camila Jourdan Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Carlos Addor Professor no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Gustavo Ferreira Simões Pesquisador no Nu-Sol; doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP. Isabel Castro Doutora em Sociologia Econômica das Organizações pelo SOCIUS/ISEG da Universidade de Lisboa e Professora do Politécnico de Setúbal. Isabel Rufino Pesquisadora no Instituto Universitário de Lisboa (CIES-ISCTE-IUL), professora, diretora do Centro Qualifica Barafunda. João da Mata Pesquisador e somaterapeuta. Doutor em Psicologia (UFF); doutor em Sociologia Econômica e das Organizações (Universidade de Lisboa); pósdoutorado em História (UFF). João Freire Sociólogo, antigo professor do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. José Maria Carvalho Ferreira Professor catedrático aposentado da Universidade de Lisboa, antigo presidente do SOCIUS-ISEG/UTL. Jorge Leandro Rosa
Ensaísta e tradutor, investigador integrado ao Instituto de Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Juniele Rabêlo de Almeida Professora no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense. Lucas Pereira Professor de História no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG). Lúcia Soares da Silva Doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, pesquisadora no Nu-Sol/PUC-SP, mãe e professora universitária. Manuela Parreira da Silva Professora no Departamento de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa. Paulo Eduardo Guimarães Historiador. Membro integrado do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP). Rodrigo de Almeida Ferreira Professor na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Rogério Humberto Zeferino Nascimento Professor de Antropologia na Universidade Federal de Campina Grande. Sílvio Gallo Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas e Pesquisador do CNPq. Thiago Rodrigues Professor no Departamento de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense. © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP: 21042-235 - Rio de Janeiro (RJ) Tel.: (21) 3546-2838 www.naueditora.com.br [email protected]
Coordenação editorial: Simone Rodrigues Revisão de textos: Miro Figueiredo Ana Paula Meirelles Projeto gráfico e editoração: Jean Carlos Barbaro Estúdio Arteônica Capa sogno Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte (UFRRJ) Claudia Saldanha (Paço Imperial) Eduardo Ponte Brandão (UCAM) Francisco Portugal (UFRJ) Ivana Stolze Lima (Casa de Rui Barbosa) Maria Cristina Louro Berbara (UERJ) Pedro Hussak (UFRRJ) Rita Marisa Ribes Pereira (UERJ) Roberta Barros (UCAM) Vladimir Menezes Vieira (UFF) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo, SP) F383a Ferreira, José Maria Carvalho (org.) Anarquia e anarquismos: Prática de liberdade entre histórias de vida ( Brasil/Portugal) / Organizadores: José Maria Carvalho Ferreira, João da Mata e Juniele Rabêlo de Almeida. - 1. ed. - Rio de Janeiro : NAU Editora, 2021. 432 p.; E-Book: 3.5 Mb; ePub.
Inclui bibliografia. ISBN 978-65-87079-21-9 1. Anarquia. 2. Anarquismos. 3. Autogestão. 4. Autonomia. 5. Liberdade. 6. Práticas Libertárias. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores. CDD 320.57 CDU 329.285 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8 8846 Apoio à publicação:
Sumário Capa Folha de rosto Sumário Apresentação Cultura Libertária 1- Dos equívocos existentes entre Anarquia e os Anarquismos 2- As lutas anarquistas no presente como experiências: contra as utopias 3- Anarquismo da vida cotidiana e subjetividades libertárias 4- Anarquismo e Falência da Representação 5- Anarquismo, Educação e Autoformação 6- Educação libertária: desafios e caminhos de esperança 7- Zonas libertárias: corpo e espaço sob a aura da resistência 8- Sob o signo da guerra: Proudhon e as relações internacionais 9- Decrescimento e Anarquia: Articulações do decrescimento abrupto e da reinvenção do anarquismo 10- Para a história de uma revista anarquista em Portugal (1974-2020) 11- A liberdade de ser livre: poesia e anarquia
Narrativas Biográficas e Anarquia 12- A prática da liberdade em discurso direto: a voz de anarquistas e libertários de todo o mundo na revista Utopia 13- António Pinto Quartin (1887-1970): ideário e vida 14- Preâmbulo de e entrevista a João Freire: pensador e organizador do anarquismo em Portugal 15- Roberto Freire, um amante anarquista 16- Edgar Rodrigues, memorialista do Anarquismo 17- Há ordem oculta – contextos empoderadores 18- Sobre heterotopias: reflexão sobre os espaços libertários em Belo Horizonte (uma homenagem a Brian) 19- Trajetória intelectual do anarquista Jaime Cubero (1927-1998) 20- História de vida e memórias das práticas de liberdade: uma puta mulher 21- Experimentações de vida universitária e mulheres libertárias Posfácio Sobre os Autores Créditos