A representação do milagre no cinema - Iconografia, idolatria e crença [1 ed.] 9786599601736


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Table of contents :
O milagre no cinema se apresenta como um problema de representação. É essa premissa que justifica o recorte do livro. Para cada milagre selecionado – Anunciação, Cura do cego, Ressurreição –, é eleito um dilema correspondente: (1) Como retrabalhar no cinema os motivos plásticos da iconografia cristã? (2) Como figurar o rosto de Cristo, sob o risco de provocar a idolatria? (3) Quais as estratégias adotadas para o problema da descrença na representação? As análises fílmicas mostram um amplo repertório de caminhos para essas perguntas.
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A representação do milagre no cinema - Iconografia, idolatria e crença [1 ed.]
 9786599601736

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4 A REPRESENTAÇÃO DO MILAGRE NO CINEMA: ICONOGRAFIA, IDOLATRIA E CRENÇA Pedro Faissol

Edição Alexandre Rafael Garcia e Wellington Sari Preparação Juliana Rodrigues Pereira Revisão Juliana Vaz e Livia Azevedo Lima Produção executiva Anderson Simão Projeto gráfico e diagramação Pedro Giongo Produção gráfica Iara Maica e Paula Azevedo Coordenação editorial Alexandre Rafael Garcia Capa e primeira página Fotograma do filme A palavra, de Carl Th. Dreyer (1955) © Palladium Film. primeira edição - 2022 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Faissol, Pedro A representação do milagre no cinema : Iconografia, idolatria e crença / Pedro Faissol. -- Curitiba, PR : A Quadro, 2022. -- (Coleção escrever o cinema ; 4) ISBN 978-65-996017-3-6 1. Crítica de filmes 2. Cineastas 3. Cinema 4. Cinema - Aspectos religiosos 5. Cinema - História e crítica 6. Estilo 7. Filmes 8. Filmes - Estética 9. Iconografia 10. Religião no cinema I. Título II. Série. 21-87454

CDD-791.4309

Índices para catálogo sistemático: 1. Cinema : História 791.4309 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Coleção Escrever o Cinema Conselho editorial

Álvaro Zeini Cruz - Senac-SP Ana Catarina Pereira - UBI - Portugal Ângela Prysthon - UFPE Bruno Leites - UFRGS Carolina Amaral de Aguiar - UEL Cristian Borges - USP Edson Costa - Unicamp Eduardo Dias Fonseca - Unila Fábio Uchôa - UAM Fernando Andacht - Universidade da República - Uruguai Fernão Pessoa Ramos - Unicamp Gilberto Alexandre Sobrinho - Unicamp Ignacio del Valle Dávila - Unila Luiz Carlos Oliveira Jr. - UFJF Manuela Penafria - UBI - Portugal Margarida Adamatti - UFSCar Mariarosaria Fabris - USP Pedro Plaza Pinto - UFPR/Unespar Rafael Tassi Teixeira - Unespar Rosane Kaminski - UFPR/Unespar Sandra Fischer - UTP/Unespar Tatiana Monassa - Université de Paris - França Vitor Zan - UFMS

Sumário

Prefácio, por Luiz Carlos Oliveira Jr. 13 Introdução 41 Iconografia cristã e intertextualidade 46 Sob o risco da idolatria 51 Jogo teatral e crença na representação 54 Parte I - Anunciação 1. Fronteiras 63 1.1. Montagem obrigatória 66 1.2. No Princípio 77 2. Janelas sem horizonte 91 2.1. Bloco de mármore 100 2.2. Angélica! 110 3. Anunciação sem fronteiras 123 3.1. Uma história de fantasmas 136 Parte II - Cura do cego 4. A verdadeira imagem 147 4.1. Do ponto de vista do cego 149 4.2. O ícone 158 4.3. A economia icônica 167 5. Jesus Cristo, um personagem de cinema 177 5.1. As sombras de Cristo 179 5.2. O ícone, o ídolo 185 5.3. Jesus Cristo em superclose-up 188 5.4. Um ídolo para olhos idólatras 196

Parte III - Ressurreição 6. A ressurreição de Inger 207 6.1. A hipótese de Bergala 208 6.2. O cinema que reafirma o teatro 212 6.3. A hipótese de Bordwell 230 6.4. A crença na representação 238 7. No tempo do milagre 247 7.1. O milagre como fenômeno natural 254 7.2. O milagre como fenômeno cinematográfico 263 Considerações finais 271 O raio verde 277

Prefácio Por Luiz Carlos Oliveira Jr.

Recordo com nitidez o momento em que Pedro Faissol me contou da guinada que seu doutorado estava prestes a dar. A pesquisa mudaria de direção depois de – para fazer jus ao assunto deste livro – ser infletida pela luz de uma epifania reveladora, responsável pela aparição da “verdadeira imagem” de que se ocuparia nos meses e anos subsequentes, ou seja, a da representação do milagre no cinema. Inicialmente, pelo que ainda guardo das conversas travadas à época, seu projeto de pesquisa consistia em investigar certas formas de materialismo cinematográfico, ou certas poéticas materialistas do cinema, que seriam prospectadas de um corpus analítico composto majoritariamente pelas obras de alguns de seus cineastas de predileção (Roberto Rossellini, Robert Bresson, Eugène Green, Jean-Claude Brisseau). Por caminhos inesperados, mas perfeitamente coerentes, as hipóteses drenadas do materialismo desaguaram na metafísica cristã. Recebi o anúncio com entusiasmo e, confesso, com a ponta de inveja que

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sempre me acomete quando alguém encontra um objeto de pesquisa tão fascinante e promissor, ao mesmo tempo muito simples (do tipo que você explica a um amigo em uma só frase) e profundamente complexo (a começar porque diz respeito, potencialmente, a toda a história da representação ocidental desde o advento da era cristã). A partir de então, Faissol estaria engajado numa empreitada duplamente desafiadora, na medida em que demandaria não somente uma imersão prolongada em fontes eruditas e em querelas conceituais inesgotáveis, como também um trabalho de análise fílmica rigoroso, atento, detido. Basta que se leia qualquer um dos sete capítulos que formam este livro para que se tenha a dimensão da densidade do tema, permeado por debates teológicos e filosóficos dos mais intrincados, que adquirem complexidade suplementar no âmbito do cinema – mídia moderna assentada na ontologia da imagem fotográfica e na racionalidade técnica da era industrial, sendo incompatível, a priori, com o vulto sagrado e o aspecto inefável do evento milagroso. Como nos diz o autor, o milagre coloca para o cinema um problema de representação, amiúde enfrentado por meio de dispositivos cênicos alambicados, de soluções audiovisuais incomuns, de operações estéticas com múltiplas camadas de significação. O assunto, portanto, impõe dificuldades teóricas incontornáveis, mas o leitor verá que, no decorrer das análises, elas serão habilmente contrabalançadas pela calma e pela clareza da exposição. Os caminhos escolhidos passam por estudos que inscrevem as imagens do cinema numa história das formas artísticas em arco amplo, permitindo abarcar em sua genealogia práticas imagísticas muito anteriores ao nascimento do cinematógrafo. O diálogo privilegiado, nesse sentido, é aquele estabelecido com autores

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que exploram as interseções do cinema com a pintura (Jacques Aumont, Alain Bergala, Luc Vancheri, Pascal Bonitzer), seja do ponto de vista das reapropriações de tradições formais e de repertórios iconográficos, seja pelo mapeamento das migrações – às vezes silenciosas, quase secretas – de energias figurativas e parâmetros representacionais que atravessam a fronteira não só entre o meio pictórico e o cinematográfico, mas entre períodos históricos, ambientes culturais e paradigmas de expressão/exibição/recepção totalmente diferentes. Tal visada teórica exige que se tragam à baila autores que contribuíram de modo decisivo para a revitalização do campo disciplinar da história da arte no último terço do século XX e no começo do atual. Eles comparecem ao livro basicamente por duas vias: em primeiro lugar, a de uma hermenêutica estética que, apesar de ciosa dos saberes fundadores da história da arte como disciplina acadêmica, já vai muito além das interpretações iconológicas tradicionais através de um olhar renovado e de uma acuidade analítica provocativa e original, tal como se verifica, de modos distintos, nos escritos de Louis Marin, Daniel Arasse e Georges Didi-Huberman; em segundo lugar, com os aportes da filosofia e da antropologia da imagem (Hans Belting, Marie-José Mondzain, Jean-Yves Leloup) que reconhecem o papel por ela desempenhado em territórios não restritos ao domínio artístico. Todas essas referências chegam ao livro devidamente acondicionadas por uma moldura epistemológica criteriosa, mas que nunca se transforma em armadura metodológica; a teoria, aqui, serve para ampliar, e não para estreitar as margens de análise das obras. Faissol se embrenha pelo bosque venturoso da crítica imanente, deixando que os desdobramentos teóricos caros à sua investigação despontem do próprio movimento interpretativo, que

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sempre se dá no tête-à-tête com os filmes analisados. É como se ele tivesse ouvido o conselho precioso de Jean Starobinski (destinado aos estudos literários, mas igualmente pertinente para os de cinema): uma análise crítica pode, de forma legítima, restringir-se à aplicação de um programa preestabelecido, mas é melhor que ela se assemelhe à viagem daqueles “que partem por partir”, sem saber onde a peregrinação os levará.1 Isso não enfraquece o método em nada, pelo contrário: é o que garante o desabrochar permanente de discussões conceituais que se renovam ad infinitum. Desse modo, após delimitado o escopo temático – a acertada escolha de três tipos / categorias de milagres diretamente relacionados com os limites do visível e do representável: a Anunciação, a cura do cego e a Ressurreição –, o livro sai à procura das suas manifestações nos filmes, descobrindo neles uma imensa variedade de procedimentos e formas. Os que podemos designar como “revelacionistas” (Cecil B. DeMille, Carl Theodor Dreyer, Eugène Green, Carlos Reygadas) investem na força de evidência do fato fílmico, fazendo o milagre se inscrever na duração, no desenvolvimento fluido e ininterrupto da cena (com ou sem plano-sequência, pouco importa – o critério aqui é a continuidade dramática do fenômeno representado), como se a única condição indispensável para a aparição do milagre no cinema repousasse na confiança em suas capacidades revelatórias (obsessão longeva, que impregnou as teorias fílmicas clássicas, de Jean Epstein a Siegfried Kracauer, passando por Béla Balázs e André Bazin).2 Outros, na direção contrária, optam por representar o milagre como uma elisão da montagem, ou como um evento que – em vez de ser temporalmente

1 Jean Starobinski, La Relation critique. Paris: Gallimard, 2001. 2 Malcolm Turvey, Doubting Vision: Film and the Revelationist Tradition. Nova York: Oxford University Press, 2008.

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gestado e valorizado pela mise en scène – é esmagado no intervalo entre um plano e outro, seja pelo golpe violento de um corte indisfarçado, que atropela o fluxo sintagmático do filme e escancara a costura semiótica arbitrária subjacente à lógica do raccord (como no final de O Evangelho segundo São Mateus [Il vangelo secondo Matteo, 1964], de Pier Paolo Pasolini), seja pelo pulso acelerado e pela mescla de espaços heterogêneos acavalados numa montagem de sons e imagens disjuntivos (Eu vos saúdo, Maria [Je vous salue, Marie, 1985], de Jean-Luc Godard), ou ainda pela inserção extravagante de um primeiríssimo plano que desregula a engrenagem da decupagem clássica e subverte sua estrutura de pirâmide (ir construindo da base ao topo, do plano de conjunto ao primeiro plano), já que o vértice – o close-up – confunde-se com a base – o grande plano geral (ver, no capítulo 5, a análise de O rei dos reis [King of Kings, 1961], de Nicholas Ray). Em todos os casos, o que constantemente se observa é a flagrante impossibilidade de aceitar como trivial a cena do milagre. Com frequência, a questão se põe para além da imagem em si: ela concerne ao próprio olhar (do cineasta, do espectador) e ao nexo de valores que sustenta seus regimes de crenças e expectativas, daí as análises presentes neste livro jamais se contentarem com as leituras de primeiro grau, sempre buscando um elemento a mais na representação, a “brecha figurativa” por onde o milagre se infiltra.

*** O livro se abre com uma constatação, no mínimo, intrigante: Rossellini, autor de um filme sobre Jesus Cristo e de outro sobre São Francisco de Assis, furtou-se (recusou-se!) a encenar qualquer milagre que fosse. Ora, para Rossellini, nada é mais sagrado que o

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tecido contínuo da realidade, esse “vestido sem costura” com que Bazin se deleitava, e o milagre – ruptura irreversível de tal continuum perceptivo – só poderia intervir à maneira de um “remendo” demasiado evidente, que (completemos sem abandonar o léxico baziniano) transformaria o diretor de Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954) num cineasta que acredita na imagem (ou seja, em tudo o que a representação acrescenta à coisa representada) e não na realidade (ou seja, no estofo – social, histórico, fenomênico – do mundo, desde que considerado sob o selo de sua “ambiguidade imanente”). Milagre proibido. A realidade, no cinema de Rossellini, deve falar por si mesma, ou melhor, deve falar sem abdicar de permanecer muda – paradoxo que, para seus admiradores, apenas reforça a grandeza desse cinema. Nenhum disparate, portanto, no fato de o “parti pris das coisas” rosselliniano ter encontrado seu par teórico ideal no realismo ontológico baziniano. Cumpre lembrar que dois outros nomes, os de Jean Renoir e Orson Welles, ainda se somariam ao de Rossellini para constituir, aos olhos de Bazin, a prova cabal de uma “evolução da linguagem cinematográfica”, que não podia significar outra coisa senão a profecia de um cinema que, escrevendo no início da década de 1950, o crítico francês já ousava chamar de moderno.3 Assim, mediante o abandono da decupagem analítica e a adoção da mise en scène em plano-sequência e profundidade de campo, Renoir e Welles se juntariam a Rossellini para formar o tripé da estética realista baziniana (que talvez seja um quinteto, com Bresson e William Wyler integrando o time).

3 André Bazin, “A evolução da linguagem cinematográfica”. In: O cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 66-81.

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O sistema de Bazin, como se nota, não tem a ver somente com as opções estilísticas dos cineastas por ele enaltecidos – haja vista que, diferentemente de Welles, o Rossellini da fase neorrealista (aquele sobre o qual Bazin escreve) não aderia ao estilo rebuscado exigido pela técnica de encenação em profundidade, preferindo, como bem destacou Jacques Rivette, uma arte do ensaio e do esboço, na qual a maestria artística era rechaçada em nome da rapidez e da simplicidade do traço.4 O fulcro da estética baziniana ultrapassa a discussão formalista, pedindo que o busquemos alhures, no que talvez caracterize uma ética do olhar compartilhada por realizadores de estilos diversos. Invariavelmente, os elogios de Bazin recaem sobre o tal “respeito à ambiguidade imanente do real”, ou sobre um trabalho formal que consiste, antes de tudo, em reproduzir a realidade, mas não no sentido de uma imitação fiel da natureza ou de uma simples representação da vida como ela é – isso equipararia a noção baziniana de realismo à exigência de verossimilhança e de interpretação naturalista do drama burguês convencional, enquanto o que está em jogo, nos escritos de Bazin, é assinalar a isometria entre a imagem cinematográfica e o mundo nela representado, ou o fato de o cinema alinhar, no espaço e no tempo, a realidade percebida e o sujeito que a percebe. Em outras palavras, o que o cinema imita, segundo Bazin, não é só uma determinada aparência do mundo visível, mas as próprias condições naturais de percepção que estruturam nosso campo fenomenal. Daí o cinema defendido por ele ser aquele que capta da realidade um sentido múltiplo e abundante, mas, ao mesmo tempo, lacunar e incompleto – como é nossa existência, pelo menos na forma

4 Jacques Rivette, “Carta sobre Rossellini”. In: Mateus Araújo; Luiz Carlos Oliveira Jr.; Francis Vogner (Orgs.), Jacques Rivette: Já não somos inocentes. São Paulo: CCBB, 2013, pp. 43-60.

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como a experienciamos cotidianamente, sem uma inteligência editorial a hierarquizar as percepções em cadeias significantes organizadas segundo prerrogativas de causalidade e inteligibilidade. O único “acréscimo” permitido por Bazin, como observa Jacques Aumont,5 é de ordem quantitativa: é o alargamento perceptivo, a ampliação do olhar e da escuta, a dilatação do drama tanto no eixo espacial (magnitude das locações repletas de Natureza e/ou História no cinema de Rossellini, uso sistemático da grande angular em Cidadão Kane [Citizen Kane, 1941]) quanto no temporal (a longa espera durante a pesca de atum em Stromboli [1950], os planos-sequência cumulativos de Welles). Trata-se de sublinhar o que, no campo de experiência instaurado pelo cinema, favorece as condições ótimas para o trabalho não exatamente da significação, mas do que Roland Barthes preferiria chamar de significância, isto é, a incessante cintilação de um sentido aberto, ambíguo, obtuso.6 Os acréscimos de ordem qualitativa – a estilização plástica da imagem, a montagem com fins retóricos, a criação de um sentido que os planos não contêm objetivamente e que procede unicamente de relações abstratas entre eles – ficam inapelavelmente proscritos. Para construir suas hipóteses, Bazin se afiançou no fato de a fotografia, e por conseguinte o cinema, registrar mecanicamente a realidade. Quando exposta à luz, a matéria fílmica grava automaticamente as irradiações luminosas dos objetos colocados em frente à câmera. A fotografia é simultaneamente ícone e índice, possuindo com o referente não apenas uma relação de semelhança, mas um vínculo existencial, físico. E o cinema ainda dá um

5 Jacques Aumont, “O ponto de vista”. In: Eduardo Geada (Org.), Estéticas do cinema. Lisboa: Dom Quixote, 1985, p. 145. 6 Roland Barthes, O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2018.

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passo além, pois inclui o movimento e, sobretudo, o tempo, apresentando a possibilidade de um desvelamento gradual das coisas e dos seres por uma direta exposição aos efeitos da duração. Se, na esteira de Bazin, aceitarmos que a potência do cinema reside na indicialidade de sua imagem e na dimensão cosmofânica da captação contínua e objetiva do real sensível, concluiremos que a representação do milagre através do registro fílmico só pode surgir como cisão ontológica irreconciliável. É mais ou menos o que Alain Bergala deduz no artigo que Faissol toma como um dos pontos de partida de seu raciocínio – antecipando, em seguida, a aposta que sustentará ao longo do livro, a saber, a de que, para representar um milagre em um filme, é preferível explicitar as operações cinematográficas necessárias e admitir o dilema representacional aí envolvido, em vez de escamoteá-los “em prol da transparência”. Mais vale expor os pontos de fratura e os modos de fatura, a natureza disruptiva do evento representado e o caráter anti-ilusionista dos artifícios empregados para representá-lo. Estamos diante, no fim das contas, de um argumento teórico eminentemente materialista (o círculo se fecha): dar a ver as marcas do trabalho, ao invés de apagá-las sob um verniz fetichista e reificante, característico de imagens que disfarçam seus meios de produção para atender a um pressuposto de invisibilidade da técnica há muito denunciado como pura mistificação ideológica.7

*** 7 Jean-Louis Comolli, “Technique et Idéologie. Caméra, perspective, profondeur de champ”. Cahiers du Cinéma, nº 229, maio 1971, pp. 4-21. Ver também Jean-Louis Baudry, “Cinema: Efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base”. In: Ismail Xavier (Org.), A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983, pp. 383-399.

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Outra lembrança me vem à mente: uma visita ao Museu do Louvre em companhia do autor deste livro, que, ao deparar-se com um conhecido quadro de Philippe de Champaigne, o Ex-voto de 1662, reagiu com grande entusiasmo e relatou que se tratava de uma obra muito admirada por Eugène Green. O quadro se reporta a um milagre envolvendo a filha do pintor, Catherine Suzanne de Champaigne, freira no convento de Port-Royal des Champs. Representadas na imagem estão ela e a Madre Catherine-Agnès Arnauld, ambas a rezar em um cenário simples, desprovido de ornamentos ou peças decorativas. O arranjo composicional e a rigidez postural reiteram austeridade, ascetismo e, claro, devoção. Um texto em latim, à esquerda das freiras, explica o mote da pintura: após sofrer por quatorze meses de uma febre que lhe havia paralisado a metade inferior do corpo, deixando sem esperanças os médicos que dela cuidavam, a irmã Catherine teve sua saúde repentina e inteiramente recuperada numa bela manhã de sol, graças às orações feitas por ela e a madre superiora. Endereçada a “Cristo, o único médico das almas e dos corpos”, a inscrição em latim atesta a convicção de Philippe de Champaigne na providência divina que curou sua filha. O texto gravado na parede – tal qual um intruso, uma ameaça ao reino visual da pintura – desloca o esquema realista do quadro e põe em xeque o próprio expediente figurativo por ele empregado. Segundo Louis Marin, a introdução desse elemento heterogêneo, derivado de outra substância semiótica (a palavra escrita), traz à tona a dificuldade enfrentada pelo pintor para narrar o acontecimento miraculoso por intermédio de uma linguagem puramente pictórica, restando-lhe aquiescer à utilização de um texto.8 Forças do sagrado, transcendência da fé religiosa, presença do 8 Louis Marin, “Les Mots et les choses dans la peinture”. In: Annales d’histoire de l’art et d’archéologie, vol. 6, 1984, pp. 69-86. 22

Philippe de Champaigne, Ex-voto de 1662, óleo sobre tela, 165 x 229 cm, Museu do Louvre, Paris.

irrepresentável: qualquer que seja a origem do que motivou essa intervenção da mensagem linguística no reduto da imagem, o certo é que ela não encontrou vazão, não se aclimatou na representação icônica. Além de levantar a questão da viabilidade da pintura como exercício de devoção, ou como instrumento espiritual de adoração, o Ex-voto de Champaigne sugere também a hipótese de a narrativa sagrada, impedida de se diluir na figuração mimética, ter-se visto compelida a se constituir como texto, como signo verbal e não icônico, “arbitrário” e não “natural”. Marin enxerga ainda outras discrepâncias, outras defasagens surpreendentes no quadro de Champaigne. Ele observa que o espaço da pintura se concebe por uma organização rigorosa, tectônica, “quase cubista”. No entanto, sobre essa geometria de ângulos retos foram minuciosamente inseridos detalhes “hiper-realistas”:

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as ranhuras do piso, as nervuras da madeira, o chapisco na parede, as rachaduras, os pregos da cruz e suas respectivas sombras, as dobras e as texturas dos tecidos, enfim, tudo isso que contrasta com a estrutura esquemática do quadro e provoca um efeito de realidade cuja intensidade é diretamente proporcional ao grau de insignificância desses pormenores. O hiper-realismo dos detalhes, como aponta Marin, entra em conflito direto com o irrealismo das palavras escritas na parede (ou, se quisermos, na própria superfície da tela). Assim como a concepção do espaço, a composição luminosa do quadro é relativamente simples: a luz tende a se distribuir pelo ambiente de maneira regular. Há, contudo, uma exceção, um elemento aberrante: a coluna de luz que pende do alto sem nenhuma função representativa discernível. Ao que parece, o dilema teológico vinculado à representação do irrepresentável – neste caso, o milagre que curou a freira – engendrou uma solução visual impossível, um acontecimento figural sem respaldo completo na economia icônica da mimesis pictórica. Essa luz arbitrária, matéria não inteiramente transmutada na forma, é aquilo que, da carne oleosa da pintura, resistiu à idealidade do signo, ou seja, à sua transparência, ao seu desejo de sumir sob o conteúdo representado. Essa luz salienta uma inquietação, traço visível da luta da fenomenalidade material da pintura para não se render integralmente ao seu dispositivo simbólico. Ela acusa o retorno de um resto, de um excesso não controlado, não absorvido pela significação. Em outras palavras, ela é o regresso ineludível da opacidade, pois o opaco, conforme diz Marin em outro texto,9 é precisamente aquilo que resiste à operação que transforma o real em representação.

9 Louis Marin, “L’Opaque”. In: L’Art, effacement et surgissement des figures: Hommage à Marc Le Bot. Paris: Publications de la Sorbonne, 1991, pp. 29-34.

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Apesar da simplicidade aparente, portanto, o que o Ex-voto de Champaigne nos faz visualizar é nada menos que o conflito inerente à pintura (qualquer pintura) com ambições representativas, eternamente condenada a dividir-se entre a tarefa discursiva e a designação mostrativa. Eis a gangorra em que o quadro de Champaigne nos faz bascular: entre a linguagem e a imagem, entre a dimensão discursiva e a dimensão plástica da pintura, entre a transparência mimética do signo icônico e a opacidade intransigente da matéria pictural. O que motiva tanto o texto quanto a sobra luminosa é uma só coisa: o milagre, ou seja, aquilo que a pintura não pôde dissolver num espaço racionalizado pela visão objetiva. Não seriam esses dois elementos – o enunciado textual e a matéria-luz excedente – um equivalente pictórico do que Faissol (via Bergala) postula sobre a representação do milagre no cinema, a saber, que ela implica um remendo, uma ruptura perceptiva e semiótica, um enxerto adicional no tecido da imagem?

*** Mas retomemos o início do raciocínio: apresentado sob o céu tumultuoso de uma problemática acarretada pela alusão ao credo baziniano e, mais amplamente, a toda uma tradição realista das teorias do cinema, o presente livro desencadeia, desde o princípio, uma série de indagações (os bons temas nos obrigam a começar com perguntas, e não com hipóteses pré-fabricadas). Como pode o cinema, máquina de restituição ontológica da realidade, representar o milagre, fenômeno atrelado à fé religiosa e, em tese, pouco afeito ao reduto da objetividade analógica e da reprodução automática das aparências? Como pode a imagem cinematográfica, com sua impassibilidade mecânica e sua morfogênese por

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impressão indicial, tornar-se disponível ao milagre, que impõe uma intervenção de forças outras, não dadas de antemão na realidade sensória? Seria a inscrição do milagre no cinema (esse emblema da modernidade técnico-científica) o encontro improvável entre os fundamentos espirituais da fé cristã e um método empírico de conhecimento objetivo das coisas? Dreyer, de acordo com “a hipótese de Alain Bergala” (discutida e parcialmente refutada no capítulo 6), expõe o dilema por meio de um falso raccord, de um abalo na lógica espacial e na fluidez visual da mise en scène durante a sequência-chave de A palavra (Ordet, 1955), a da ressurreição de Inger. A desorientação aí criada pela transgressão de uma regra básica do raccord de direção e movimento provoca um distúrbio no encadeamento sequencial dos planos. Bergala acredita tratar-se de um atentado voluntário contra a fluência espaço-temporal da decupagem clássica, prefigurando o milagre por vir, ele próprio uma perturbação na ordem natural do mundo. O exemplo de A palavra demonstra que o problema de representação instituído pelo milagre se torna patente, de fato, quando transposto para o cinema – principalmente se o encararmos do prisma da representação realista ou, mais precisamente, do realismo fenomenológico (que é o chão conceitual da argumentação de Bergala). Todavia, essa dificuldade de se encontrar o lugar do milagre nos limites de uma imagem pautada por critérios de credibilidade realística está longe de pertencer exclusivamente ao cinema. Na verdade, a aporia do milagre nas artes visuais possui uma história bem anterior ao cinema ou a qualquer outra imagem decalcada da realidade, como Faissol destaca no capítulo sobre a Anunciação. A invenção da perspectiva linear no século XV já havia colocado o problema de como trazer para um espaço mensurável, terreno,

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corpóreo (o espaço visual forjado pela pintura renascentista), a presença manifesta do que é sem medida, sem extensão, sem corpo (o sagrado, o divino). Problema que, recuando mais ainda, estivera no centro das contendas políticas e teológicas dos primeiros séculos de cristianismo (e depois voltaria à tona na época das reformas protestantes), opondo as autoridades clericais entre a proibição iconoclasta e o encorajamento iconófilo: deve-se ou não, afinal, permitir que a graça infinita da onipresença divina ganhe forma na espessura tangível da matéria icônica, com sua sensualidade e sua compleição mundanas? Nas pinturas do milagre da Anunciação, os artistas do Renascimento italiano responderam com dispositivos plásticos que continham, a um só tempo, a iconografia específica do episódio bíblico em questão e as leis gerais do sistema espacial da perspectiva geométrica, reunindo o sagrado e o profano num único locus representacional – mas não sem encetar as contradições aí implícitas, as falhas deliberadas, as incongruências ópticas propositais. Como escreveu Hans Belting, a invenção de imagens produzidas pela técnica da perspectiva centrada monocular foi uma verdadeira revolução na história da experiência perceptiva ocidental. “O artista que praticava a perspectiva entregava ao público imagens novas, que estimulavam sua visão”.10 A imagem perspectiva foi a primeira a representar o olhar de um espectador situado num ponto preciso, de onde observava o mundo. Essa técnica permitiu que se afirmasse uma analogia entre as novas imagens picturais e o mundo percebido pelo olho humano. Por haver introduzido na imagem os modos de funcionamento da percepção natural, a pintura do Quattrocento prometia, a fortiori, uma transparência da

10 Hans Belting, Florence et Bagdad: Une Histoire du regard entre Orient et Occident. Paris: Gallimard, 2012, p. 27.

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representação. A metáfora da janela, usada por Alberti para definir o quadro renascentista, já indica esse desejo de transparência: a pintura com perspectiva fornece algo como uma vista através de uma janela aberta para o mundo. O quadro é tomado como a seção perpendicular de uma pirâmide visual, cujo vértice é o olho do observador, ponto de origem (geométrica) do sistema perspectivo. Tudo não passa de um quadrângulo traçado numa superfície e preenchido com formas e cores dispostas segundo a intenção do artista, mas a imagem aí inscrita é dotada de uma ilusão de profundidade e de uma particularidade na imitação figurativa sem precedentes na história da pintura. A perspectiva, em suma, é o que distingue fundamentalmente a pintura do Renascimento da arte praticada anteriormente, sobretudo se pensarmos na representação esquemática e em fundo dourado – sem espaço “real”, sem profundidade – dos ícones medievais. Num dos mais conhecidos ensaios sobre o assunto, Erwin Panofsky afirma que, com a perspectiva linear e sua representação de um espaço opticamente realista, a cena sacra, incluindo o milagre, é trazida para o domínio do fenomenal. A perspectiva faculta à obra de arte sua entrada no reduto do “visionário” (ela antes pertencia ao “mágico”), “onde o miraculoso se torna uma experiência direta do observador, e onde os eventos sobrenaturais de certo modo irrompem em seu próprio espaço visual”.11 O espectador, portanto, passa a se relacionar com imagens em que os milagres, assim como outros temas sacros, estão figurados num espaço que se assemelha ao seu, ou que reflete, à maneira de um espelho, o próprio mundo em que ele se reconhece como sujeito.

11 Erwin Panofsky, Perspective as Symbolic Form. Nova York: Zone Books, 1991, p. 72.

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Panofsky e Belting, reitero, estão falando sobre a perspectiva renascentista, mas o corolário dessa clivagem epistemológica ressaltada por eles – que, dali em diante, modificaria profundamente a relação entre imagem e observador – continua válido para o cinema, não apenas porque seu aparelho de base (a câmera) já traz os códigos funcionais da perspectiva linear automaticamente embutidos no sistema de lentes, mas também porque ele conta ainda com muitos outros fatores que catalisam a chamada “impressão de realidade”. Do ponto de vista da representação do milagre, isso não é exatamente uma vantagem. Pelo contrário: filmar o milagre implicará sempre, em alguma medida, contornar certas características do dispositivo, driblar alguns de seus princípios operatórios. Basta conferir o tour de force fotográfico empreendido por Cecil B. DeMille em Rei dos reis (The King of Kings, 1927), todo o malabarismo necessário para transformar a imagem de Cristo – na cena em que é visto pela primeira vez pelos olhos de uma criança que, segundos antes, era cega – em uma pura presença luminosa, que vibra num espaço óptico que não é nem o cubo cenográfico ilusoriamente tridimensional da perspectiva clássica, nem a superfície plana assumidamente bidimensional da pintura modernista, mas, antes, o espaço n-dimensional do ícone religioso pré-renascentista. Milagre da técnica? Não, o inverso: milagre apesar da técnica. O esforço de DeMille parece ser justamente o de conceber uma imagem com valor de culto, banhada por uma luz aurática, quase um contrassenso no seio de uma arte fundada na imagem tecnicamente reprodutível e, consequentemente, inclinada à perda da aura.

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Os tópicos aqui levantados de forma sumária, e mais outros tantos, serão abordados em filigrana no desenrolar do livro, cuja densidade conceitual, conforme já mencionei, nunca se descola do prazer da análise. Embora não haja, por parte do autor, qualquer pretensão de exaurir o tema, o livro causa uma benfazeja sensação de plenitude, fruto de sua tenacidade analítica, que só permite descanso depois de esgotados os ângulos de interpretação abertos pelas obras. Não obstante, na conclusão, Faissol ainda encontrará fôlego para especular sobre uma instigante categoria de milagre não religioso, ou de milagre (talvez possamos dizer) estritamente cinematográfico, porquanto produzido pela fermentação de instantes mágicos em que a máquina-cinema interage de maneira fulgurante com as forças cósmicas da natureza. Os exemplos analisados provêm de Shara (Sharasôju, 2003), de Naomi Kawase (a extraordinária chuva torrencial que cai de forma brusca no clímax de um plano-sequência – calculado e artificial, por um lado, mas igualmente improvisado e espontâneo, por outro – rodado em meio às energias coletivas que transbordam das pessoas aglomeradas nas ruas durante uma celebração popular), e, sobretudo, da deslumbrante e antológica cena final de O raio verde (Le Rayon vert, 1987), de Éric Rohmer, em que uma pincelada de pós-produção (totalmente inusual na obra rohmeriana) se soma à luz natural (irregular, incontrolada, arredia às codificações) para gerar uma experiência cinematográfica única, inesquecível. Antes de apresentar esses “milagres cósmicos”, Faissol retoma de Bergala uma breve taxonomia dos tipos de representação do milagre no cinema: “milagres como prova ostentosa”, “milagres invisíveis, ou golpe de graça”, “milagres visíveis: figuração e crença”, “milagre indeterminado”. Desconfio que nesta quarta e última categoria devamos incluir uma cena de Nazarin (Nazarín, 1959), de Luis Buñuel.

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Na crítica publicada nos Cahiers du Cinéma à época do lançamento do filme na França, André S. Labarthe elogiou o “realismo fundamental” de Buñuel, a escritura sóbria, a gravidade e a lucidez do relato, que, como já ocorrera em O alucinado (Él, 1953), substituem-se às “gags surrealistas” das primeiras obras do diretor espanhol. A mise en scène e a narrativa de Nazarin se baseiam, segundo o crítico, na “apreensão exata das relações de força que constituem a trama de qualquer sociedade”.12 E a sociedade mostrada por Buñuel, digno representante de um “cinema da crueldade” (Bazin de novo), resume-se a uma aglutinação caótica de forças materiais e espirituais contraditórias. Trata-se de um universo economicamente precário e socialmente vulnerável, no qual prostitutas se esfaqueiam no pátio de um cortiço após um bate-boca qualquer, uma criança leva uma surra da mãe na frente dos vizinhos e um cego estapeia gratuitamente o menino que o ajudava a se locomover, um amante latino de quinta categoria oprime a noiva e a torna submissa, e um anão é amarrado no alto de uma árvore para o regozijo sádico de um grupo de marmanjos. É nesse mundo embrutecido que o padre Nazario tem sua vocação e até mesmo sua fé constantemente postas à prova. Vivendo do mínimo, alimentando-se mal, ele se dedica a praticar caridades, recebendo em troca, na maior parte do tempo, desconfiança e hostilidade. O jovem padre peregrina debalde por um mundo não apenas ausente de sinais visíveis da graça divina, mas marcado por privações materiais de toda ordem – e, por isso mesmo, pleno de uma espiritualidade bárbara, criadora de páthos exagerado. Em tal universo, compreensivelmente, os fantasmas do barroco espanhol se sentem à vontade para reencarnar nos corpos enxovalhados

12 André S. Labarthe, “Un Désespoir actif”. Cahiers du Cinéma, nº 115, jan.1961, p. 48.

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filmados por Buñuel, originando uma miríade de parentes profanas das virgens de Murillo, de versões encardidas e macilentas dos mártires de Ribera, de refugos teratológicos da galeria de truões, anões e mendigos da obra de Velázquez. A tentação barroca atinge seu ápice justamente na cena em que acontece o suposto milagre, ou melhor, o milagre “indeterminado” – um acontecimento extraordinário que alguns reputarão ser um milagre, ao passo que o texto fílmico em si manterá o significado em suspenso, sem eliminar a hipótese de uma simples coincidência do destino. Tudo começa quando Nazario, em meio a suas peregrinações, encontra ao acaso a jovem Beatriz, que conhecera no início do filme e a quem acolhera e reconfortara num momento de dificuldade. Eles se cruzam na travessa ao lado da igreja principal de um vilarejo rústico, numa região rural pobre. “É um milagre encontrar você!”, exclama Beatriz, com os sinos da igreja tocando ao fundo, como a ecoar e – quem sabe? – confirmar a pertinência da palavra “milagre” saída da boca da moça. Após breve interlocução, Nazario já se despede, mas Beatriz vai atrás dele e implora para que a acompanhe até sua casa. Ela explica que mora com uma irmã viúva, cuja filha está muito doente, e pede que Nazario visite a menina. Mas ele reage com impaciência à sugestão de que sua visita poderia curá-la. Acaba por aceitar vê-la, mas prometendo apenas umas orações e palavras de consolo – agora o som de fundo é o de um cavalo relinchando, urro bestial que se contrapõe aos sinos com certa ironia. A mãe da menina recebe o padre beijando-lhe a mão e dizendo que já sabe que ele é um santo. Nazario rechaça o comentário afirmando que “só Deus e a ciência” podem fazer algo pela menina (Deus e a ciência são avizinhados na frase com grande naturalidade, como se o padre falasse de um velho casal feliz e harmonioso).

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No dia em que começaram as terríveis febres da menina, relata a mãe, a coruja fez barulho a noite toda e três cães latiram quando ela saiu de casa: era o sinal de que algo ruim se aproximava. Todo o restante da sequência será uma congregação desordenada de superstições, beatitudes, histeria e êxtase. Nazario se vê, de repente, cercado por seis mulheres que praticamente lhe impõem a cura da enferma. Uma senhora sentencia que só um milagre pode salvá-la. Uma jovem aponta para Nazario – a câmera a isola num enquadramento que destaca o dedo indicador direcionado ao padre – e observa que ele chegou descalço como Jesus Cristo. Dentro da casa, o padre encontra a enferma deitada na cama e coberta de ramalhetes e folhas de louro. Ele toca na testa suada da menina e inicia suas orações. Uma a uma, as seis mulheres se ajoelham e erguem as mãos ao céu. Os rostos são tomados por uma dramaticidade patética, acompanhada por clamores eloquentes. A decupagem se acelera, os planos se sucedem com mais rapidez que em qualquer outra parte do filme – é a súbita alteração de tratamento formal que, como Faissol demonstra ao longo do livro, costuma intervir nas cenas de milagre. Em dado ponto, as preces desesperadas das mulheres se sobrepõem numa massa sonora indistinta, rasgada em seguida pelo grito agudo de uma delas, que se levanta, caminha alguns metros e se atira ao chão, onde continua a gritar enquanto esperneia. Outra – a mendiga que esfaqueara uma rival no início do filme, e que depois desta sequência se tornará, ao lado de Beatriz, uma fiel seguidora do padre – fecha os olhos e bate no peito enquanto repete: “Jesus, Jesus, Jesus, Jesus...”. A mais velha agora acaricia o corpo de Nazario, num misto de erotismo e devoção. A mãe da menina arrasta sobre o corpo do padre um ramo de folhas secas. Somente Beatriz permanece em silêncio beato, estatuificada com os braços abertos e as mãos espalmadas para o céu, olhos arregalados e

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sorriso maravilhado (em cena posterior, no entanto, ela grita e se contorce em crise histérica depois de ser psicologicamente desestabilizada por um comentário insidioso). Não estamos mais no mundo ascético de Philippe de Champaigne, mas no turbilhão visionário das pinturas de El Greco; não mais na ordem racionalista do barroco francês (mais classicista que propriamente barroca), mas no misticismo extasiado do barroco espanhol. O falatório prossegue, novos gritos se ouvem, mãos femininas continuam a percorrer voluptuosamente o corpo de Nazario. O padre fecha os olhos e abaixa o rosto – seu movimento final é em direção ao solo e não aos céus. Não pode haver milagre nessa terra doente e insana filmada por Buñuel. Ou pode? No dia seguinte, Beatriz se afoba na direção de Nazario para lhe informar que a menina está curada. Ela se ajoelha em frente ao padre, que recolhia lenha num terreno baldio, e pega na mão dele para beijá-la. Nazario rapidamente retira a mão, minimizando o tempo de contato entre sua pele e os lábios de Beatriz. O gesto retrativo do padre, tal como os demais elementos da cena, alude à passagem do Evangelho de João conhecida como Noli me tangere, que narra o momento em que Maria Madalena, após ouvir seu nome ser invocado por Jesus, percebe que a figura que havia tomado por um jardineiro desconhecido era na verdade a aparição do Cristo ressuscitado; ao reconhecê-lo, ela se projeta em sua direção, sendo afastada pelo imperativo “Não me toques”, proferido por Jesus à seguidora.13 Na cena de Nazarin que ressoa esse episódio bíblico, Buñuel claramente evoca a iconografia das

13 Não cabe aqui entrar nas nuances desse interessantíssimo episódio bíblico. Para uma especulação filosófica sobre o tema e uma análise acurada de algumas de suas representações pictóricas (Tiziano, Rembrandt, Correggio etc.), ver o ensaio de Jean-Luc Nancy, Noli me tangere: Essai sur la levée du corps Paris: Bayard, 2003.

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Tiziano, Noli me tangere, c. 1511, óleo sobre tela, 109 x 91 cm, National Gallery, Londres.

Nazarin (Nazarín, 1959), de Luis Buñuel

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representações pictóricas dedicadas ao tema, reapropriando-se de seus principais motivos espaciais e gestuais. Uma obra, em especial, parece ter sido a referência mor: o Noli me tangere de Tiziano, pintado em torno de 1511 e atualmente conservado na National Gallery, em Londres. Dentre as pinturas que se debruçaram sobre o tema, a de Tiziano é, de longe, a que mais acentuou um possível subtexto erótico, sugerindo a representação de um desejo libidinal reprimido: Maria Madalena se acha protendida rumo ao corpo esbelto e seminu de Cristo, que tem a cintura flexionada para o lado oposto, como a evitar que a mão dela encoste em seu órgão sexual, coberto tão somente por um pano leve e translúcido. As pregas do tecido se acumulam justamente na região pélvica, intensificando ali o efeito do drapejado. O olhar e a mão direita de Maria Madalena parecem magnetizados na direção desse nó do tecido, que toma a forma de um redemoinho. Já não se trata de mero virtuosismo artístico, mas de um investimento plástico quase maníaco: nas dobras proliferantes das vestes de Cristo, Tiziano recalca a tensão sexual da cena à mesma medida que a coloca em relevo. Note-se que o gesto mais característico das pinturas de Noli me tangere, o gesto que efetivamente denota o conteúdo da cena – a mão de Cristo indicando a Maria Madalena para não o tocar –, tal gesto, enfim, está ausente do quadro de Tiziano, que o substituiu por outro: o da mão direita de Cristo puxando para si, a fim de melhor resguardar as partes íntimas, o pano que lhe cobre o dorso. Tal mudança, sem dúvida, endossa o erotismo latente da cena: o que Cristo oblitera não é um contato físico puro e simples, mas uma relação de intimidade corporal. Buñuel, entretanto, resgata o gesto mais recorrente – suprimido por Tiziano – e o reintegra em sua versão enviesada do Noli me tangere: a mão de Nazario repete,

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Andrea del Sarto, Noli me tangere, c. 1510, óleo sobre tela, 176 x 155 cm, Galleria degli Uffizi, Florença.

Nazarin (Nazarín, 1959), de Luis Buñuel

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assim, o gesto que vemos na maioria das pinturas sobre esse tema, a exemplo da versão de Andrea del Sarto, que posiciona no centro do quadro o teatro de mãos representativo do episódio, como Buñuel também fará num dos planos de Nazarin. O intervalo entre as mãos, esse hiato aparentemente preenchido só por ar, apresenta-se, na verdade, como um espaço conflituoso, área tensa em que circulam e se entrechocam forças de aproximação e repelência, ensejando uma dramaturgia gestual sabiamente explorada pelo pintor e pelo cineasta. Além de interromper o contato físico com Beatriz, Nazario descredita a narrativa miraculosa, resistindo a aceitar que a menina tenha se curado por conta de sua visita. A situação é curiosa: as testemunhas asseveram o milagre, mas o suposto autor o renega. Ao espectador, resta a indeterminação. O aspecto caricato da cena em que teria se operado o milagre nos deixa propensos a não o aceitarmos como verdadeiro. Mas a ambivalência predominante no filme bloqueia conclusões peremptórias. Se a religiosidade arcaica das mulheres – crivada de crendices e superstições – não colabora para desfazer o ceticismo moderno, a renitente atitude de negação do padre tampouco esclarece o acontecimento. A menina se curou, dizem as mulheres. Não foi devido a nenhum milagre, garante o padre. Talvez estejamos diante de uma sexta categoria de milagre (levando em conta as quatro descritas por Bergala e mais o “milagre cósmico” acrescentado por Faissol): a do milagre denegado. O milagre que nem mesmo seu autor está em condição de assumir, pois ocorrido num mundo já desertado pela benevolência divina, ou ao qual ela sequer chegou algum dia. A miséria material responsável pela hipertrofia da fé, pela esperança depositada em forças supra-humanas, é a única coisa de que Buñuel nos dá certeza. Talvez Labarthe tenha razão: o filme apreende, da forma mais límpida possível, as relações de força que constituem a

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trama de uma sociedade. É o tal “realismo fundamental” que ele destacou – ou, se preferirmos, trata-se de um materialismo irrevogável, não sublimável, impossível de ser subsumido na hagiografia alegórica. Muitas outras interpretações poderiam ser arriscadas, mas paro por aqui. Embora nada acrescente de relevante ao conteúdo do livro, meu desvio pela obra-prima de Buñuel demonstra, no fundo, a potência contagiante da pesquisa de Faissol, que nos incita a querer prolongá-la por meio de outras análises. A leitura deste livro me deixa com a certeza de que ele não apenas preencherá uma lacuna – a da escassez de trabalhos sobre o assunto nos estudos de cinema desenvolvidos no Brasil –, mas nos colocará à espera de novos milagres a serem analisados pelo autor e por quem mais embarcar na aventura. Estímulo não faltará.

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Introdução

Roberto Rossellini fez um filme sobre a vida de Jesus Cristo sem mostrar nenhum milagre.1 Antes disso, já havia feito um filme sobre a vida de São Francisco de Assis, igualmente sem qualquer milagre.2 Qual teria sido o motivo dessa curiosa omissão? Se o cinema, desde muito cedo, já havia superado as dificuldades técnicas dessa operação (pelo menos desde que Georges Méliès filmara, em 1899, Jesus Cristo caminhando sobre as águas),3 então por que não mostrar o milagre, dando a ele uma forma sensível? Talvez porque, para Rossellini, a representação pontual do milagre fosse uma ruptura indesejada em relação a um todo contínuo. Nesse sentido, o problema colocado se apresenta de duas maneiras: como um corte entre dois planos, interrompendo a continuidade do tecido fílmico, ou como um efeito de trucagem, ferindo o

1 O messias de Rossellini (Il messia, 1975). 2 Francisco, arauto de Deus (Francesco, giullare di Dio, 1950). 3 Le Christ marchant sur les flots (1899).

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princípio da ligação indicial com a realidade. Em ambos os casos, sob uma perspectiva estritamente realista, a representação do milagre no cinema impede – nas palavras de Alain Bergala – a “epifania generalizada do real”.4 O crítico francês justifica o raciocínio: Se a realidade é inteiramente sagrada, se o seu tecido é encadeado e contínuo, então ela não poderia admitir um milagre, pois o milagre é, precisamente, uma interrupção nesse continuum da realidade.5

Em um texto intitulado Le Miracle comme événement cinématographique, Bergala desenvolve os fundamentos desse dilema representacional. Se o milagre é um fenômeno que provoca uma ruptura com a ordem natural dos eventos, então sua representação no cinema requer algum tipo de interferência. Para ilustrar essa ideia, cita a célebre formulação de André Bazin: “o vestido sem costura da realidade”.6 O milagre, nesse sentido, é um remendo no vestido. Como se vê, segundo essa tradição realista do cinema, a representação do milagre não é livre de problemas. Implica acrescentar à realidade filmada um sentido adicional, assumindo os riscos de uma operação intelectual distante dos princípios da impassibilidade do registro. Trata-se de uma ação impositiva do(a) cineasta. Uma intervenção cujas marcas de estilo serão impressas sobre esse “continuum da realidade”, conforme dizia Bergala. O(a) realizador(a) que estiver disposto(a) a enfrentar esse desafio poderá optar por assim fazê-lo de muitas maneiras diferentes, mas sempre irá se deparar com alguns problemas de representação.

4 Alain Bergala, “Le Miracle comme événement cinématographique”. CinémAction, n° 134, 2010, p. 33. 5 Ibid., p. 33. 6 André Bazin. “Renoir français”. Cahiers du Cinéma, n° 8, jan. 1952, p. 29.

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É justamente a esses problemas que este livro é dedicado. Adotaremos como princípio de análise um esforço simultâneo de crítica imanente com cotejo teórico, dinâmica que se manterá constante em todo o texto. Neste percurso, a investigação teórica se mostrará inseparável das análises fílmicas. Atravessaremos três problemas de representação, um para cada milagre selecionado: a Anunciação, a cura do cego e a Ressurreição. Na Parte I do livro, analisaremos a Anunciação à luz das operações intertextuais empregadas, verificando em cada filme como foram retrabalhados os dispositivos plásticos dessa vasta iconografia. Na Parte II, dedicada à cura do cego, privilegiaremos o problema da imagem religiosa. A figuração do rosto de Cristo, da perspectiva do cego recém-curado, será examinada em uma análise atenta aos riscos da idolatria. Por fim, para o milagre da Ressurreição, já na Parte III do livro, estudaremos as estratégias de encenação adotadas em função da crença na representação. Dito isso, convém neste momento apresentarmos a hipótese central deste livro. Trata-se de uma hipótese de natureza axiológica, ou seja, não inteiramente livre de juízo de valor. Há, portanto, um aspecto da representação em relação ao qual iremos nos posicionar favoravelmente. Dentre as inúmeras maneiras possíveis de dar a ver o milagre, apostamos naquelas que impliquem uma postura anti-ilusionista por parte do(a) realizador(a). Se o milagre é aqui entendido como um fenômeno rebelde às leis da natureza, acreditamos que os artifícios empregados devam ser mostrados sem disfarces. Levando-se em consideração o caráter descontínuo do milagre, uma vez que ele se manifesta sob o signo da ruptura, é preferível então que suas fraturas sejam explicitadas. Ao invés de esconder as marcas das operações cinematográficas, camuflando-as em prol da transparência, defendemos que as mantenha aparentes na superfície do filme.

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A hipótese da explicitação dos meios, contudo, não se encerra em uma ontologia da imagem. Não se trata de uma fenomenologia do milagre submetida aos princípios realistas do cinema. A nossa hipótese deve ser verificada filme a filme, no confronto com eles, por meio da análise das operações fílmicas empregadas em cada episódio bíblico. O desnudamento da representação, diferentemente do que se diz acerca de um espetáculo de magia, não ameaça frustrar o conteúdo emocional dos filmes examinados. Tal postura anti-ilusionista, ao contrário, ajuda no preparo de um terreno favorável para a apreciação do milagre como um fenômeno cinematográfico. Os filmes selecionados neste livro são uma pequena amostra da diversidade de obras que aceitaram esse desafio representacional. Com exceção de Luz silenciosa (Stellet Licht, 2007), de Carlos Reygadas, sugerido como contraprova de nossa hipótese, todos os demais optaram pela explicitação dos meios. Variando o grau de opacidade em cada caso analisado, o milagre jamais se realiza segundo um pacto de inocência com o espectador. Em alguns exemplos, conforme veremos ao longo das análises fílmicas, o artifício usado poderá até provocar deslizamentos de sentido, subvertendo o significado originário do milagre em relação ao contexto bíblico. Isso se verifica especialmente no caso da Anunciação. Os numerosos ecos desse motivo no cinema moderno, com personagens seculares assumindo o lugar de figuras bíblicas, sugerem uma revisita iconográfica com viés desteologizado. No entanto, mesmo em filmes não abertamente religiosos, verifica-se em alguns casos o desejo de preservar o significado espiritual do episódio evangélico. As análises fílmicas revelam, portanto, um amplo repertório de soluções para a representação do milagre, com respostas igualmente variadas no que diz respeito ao sentido teológico de cada filme.

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Dizíamos há pouco que as implicações do milagre no cinema se revelam no enfrentamento de três problemas de representação. Pois bem, a pesquisa deste livro é inteiramente orientada em função deles. Em vez de separar os milagres em categorias, como fizera Bergala no artigo supracitado,7 optamos por um desenho concebido em função de tais problemas de representação. Toda a estrutura do livro, da ordenação dos capítulos à escolha dos filmes, seguirá uma ordem regida pelos dilemas representacionais. Como cada milagre apresenta desafios próprios, atrelamos os episódios bíblicos a problemas representacionais específicos. Como se pode constatar, a estrutura deste livro faz uma aposta arriscada. Ao invés de concentrarmos a pesquisa em um único terreno epistemológico, o que nos traria uma unidade coesa e bem delineada, optamos por um caminho mais tortuoso, segmentando as análises fílmicas em três campos do conhecimento. Tentaremos investigar as implicações do milagre sob três perspectivas diferentes. Estamos cientes dos riscos de tal abordagem, que poderiam fazer com que a pesquisa se reduzisse a um sobrevoo superficial pelos problemas apontados. Contudo, levando-se em consideração que a representação do milagre provoca respingos em várias direções, optamos pela abordagem tripartite para aumentar o aproveitamento de nosso esforço hermenêutico, canalizando-o em três afluentes principais. A opção é também uma aposta em uma visada generalista, em cuja base se encontra a ambição pela compreensão mais ampla do problema. Esperamos que a amplitude da pesquisa possa atenuar o recorte diminuto das obras analisadas, uma pequena fração, afinal, de um universo de filmes possíveis. Nos

7 Em “Le Miracle comme événement cinématographique”, Alain Bergala propõe uma tipologia do milagre no cinema: 1) “milagres como prova ostentosa”; 2) “milagres invisíveis, ou golpe de graça”; 3) “milagres visíveis”; 4) “milagres indeterminados”. Retomaremos essa classificação na conclusão deste livro.

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três tópicos abaixo, iremos desenvolver os problemas de representação que serão abordados ao longo do livro.

Iconografia cristã e intertextualidade O episódio bíblico da Anunciação refere-se ao encontro do Anjo Gabriel com a Virgem Maria: o Anjo aparece diante dela, anuncia a vinda do Espírito Santo e afirma que ela conceberá o “Filho do Altíssimo”. Após ouvir e aceitar a mensagem do Anjo, respondendo-lhe que seja feito “segundo a tua Palavra”,8 a Virgem permite que o verbo divino se encarne. O episódio da Anunciação, portanto, está intimamente ligado à Encarnação; ao mesmo tempo, a Anunciação é apenas um diálogo, uma troca. “Responda uma palavra e receba o Verbo”.9 Episódio discreto no conjunto de textos que compõe o Evangelho de São Lucas, a Anunciação adquiriu, já nos primórdios do Cristianismo, posição de destaque na exegese bíblica: desde os primeiros séculos depois de Cristo, um grande esforço hermenêutico foi mobilizado para encontrar no Antigo Testamento as evocações ao Anúncio feito a Maria. No decorrer dos séculos, ao longo de toda a Idade Média, inúmeras orações e hinos marianos foram compostos para celebrar o tema da Anunciação. Mas foi talvez no Quattrocento italiano que o episódio fundador da fé Cristã esteve em mais alta conta. Nesse período, a Anunciação se tornou ponto de convergência de um intenso debate teológico, assim como objeto central de um grande problema representacional. 8 Lucas 1:38. 9 Tradução de trecho do hino mariano do século XI, Annonciation de la très-Sainte Vierge, do abade francês São Bernardo de Claraval, extraído de Homélies pour tous les dimanches et les principales fêtes de l'année (Avignon: Seguin Aîné, 1830, p. 87).

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O desafio se deve ao jogo de contrastes estabelecido, adquirindo nas artes plásticas a forma de um paradoxo. O primeiro, mais evidente, diz respeito às diferenças ontológicas entre o Anjo e a Virgem. Como fazer coabitar, em uma mesma imagem fixa, o sagrado e o profano?10 A esse problema a iconografia da Anunciação responde com um cuidadoso trabalho de delimitação espacial. Para separar os dois lados do quadro, privilegiou-se a composição partida ao meio por arcos e colunas (ou ainda janelas, vãos, corredores etc.). A divisória era realizada na própria arquitetura do desenho, de modo que essa diferença ontológica se materializasse nos signos plásticos da pintura. Trata-se, portanto, de uma configuração espacial concebida com esse propósito. A essa separação intransponível chamaremos de cesura espacial ou fronteira. O segundo paradoxo, de natureza mais interiorizada, diz respeito ao sentido espiritual do episódio evangélico: a Encarnação. Como figurar a chegada de Deus no mundo dos homens? Como representar o invisível, o eterno, o incomensurável? A mais célebre síntese para o problema da Encarnação, formulada na primeira metade do século XV, época em que os pintores renascentistas de fato enfrentavam esse dilema, fora atribuída ao pregador e místico franciscano São Bernardino de Sena. Feita a partir de uma longa sequência de oximoros, o mistério da Encarnação corresponderia ao momento em que “a eternidade é reduzida no tempo, a imensidão na medida, o Criador na criatura, o não figurável na figura, o inefável na palavra e a não circunscrição no lugar, o invisível na visão, o inaudível no som”.11

10 A Virgem, no momento do Anúncio, é tratada ainda como ser profano, portanto, de natureza distinta da do Anjo Gabriel. 11 Bernardin de Sienne, Pagine Scelte. Milão: Vita e Pensiero, 1950, p. 54.

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Mesmo se nos ativermos apenas à iconografia do Quattrocento toscano, período em que se consolidou o dispositivo em torno da técnica da perspectiva, veremos que as soluções plásticas para esse desafio são de grande variedade. As pinturas selecionadas ao longo de nossa pesquisa parecem ser fruto de um trabalho perfeitamente consciente de suas implicações teológicas: essa é a aposta de Daniel Arasse em L’Annonciation italienne – Une histoire de perspective, trabalho luminoso que baliza o eixo teórico central de nossa argumentação. Desde o início do livro, no qual Arasse investiga o que residia por trás da reconhecida afinidade entre a iconografia da Anunciação e a técnica da perspectiva, ele assume o intrigante paradoxo: se o advento da perspectiva consistia em, segundo o próprio vocabulário do Quattrocento, tornar o mundo representado “comensurável” ao homem, então como figurar, fazendo uso dessa mesma técnica, o mistério da Encarnação de Deus? Como representar a chegada do invisível e do incomensurável no mundo da visão e da medida? A perspectiva, em suma, estaria em conflito direto com o tema da Anunciação. Como, então, resolver esse impasse? É a esse desafio, de natureza representacional e teológica, que Daniel Arasse se dedica em seu livro. A abordagem histórica, com a qual se propõe a conduzir sua investigação, enseja um estudo atento e rigoroso. Em vez de formular uma síntese composicional para esse problema de representação, Arasse opta por uma análise obra a obra, buscando no brilho interior de cada pintura a brecha figurativa para a manifestação do divino. Em alguns casos, como veremos no capítulo 2, a figuração do sagrado se inscreve justamente nos indícios de desordem perspectiva do quadro. Feita essa sumária introdução acerca da configuração espacial da Anunciação renascentista, na qual enfatizamos os dois eixos dessa importante iconografia (o eixo transversal, marcado pelo

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hiato entre o Anjo e a Virgem, e o eixo central, pela incidência da perspectiva na profundidade do quadro), podemos formular agora os problemas de representação próprios do cinema. Como dar visibilidade, numa cena em movimento, à aparição do Anjo anunciando à Virgem a chegada de Cristo? Quais são os desafios da Anunciação inerentes à arte cinematográfica? Em pouco mais de um século de história, como os filmes responderam a esse dilema representacional? Ao longo da primeira parte deste livro, veremos que – na passagem para o cinema – os problemas enfrentados na representação desse episódio bíblico sofrem um deslocamento. As implicações religiosas de outrora se diluem e os desafios de natureza teológico-representacional da pintura renascentista se traduzem, na maior parte das vezes, em uma operação de transposição de meios: como encontrar uma forma eminentemente cinematográfica para recriar, a partir de um empréstimo da pintura, os dispositivos da Anunciação? É assim que o cuidadoso exame das Escrituras dá lugar à análise, igualmente meticulosa, da iconografia do Quattrocento. O problema da Parte I, portanto, é de natureza intertextual: como trabalhar esse legado iconográfico no cinema? A dificuldade da tarefa consiste em não apenas dar movimento ao que se apresentava em repouso, mas conseguir ressignificar os motivos plásticos através das especificidades do meio fílmico. Nos três capítulos que integram a Parte I, veremos que as obras selecionadas encontrarão – por meio do “instrumento cinema”,12 como diz Alain Bergala – soluções particulares para representar o milagre da Anunciação. No primeiro capítulo, observaremos que

12 Alain Bergala, “Montage obligatoire”. In: Alain Bergala (Org.), La Création cinéma. Crisnée: Yellow Now, 2015, p. 223.

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o motivo iconográfico da Anunciação assombrará o cinema moderno. Diferentes manifestações do arranjo composicional que marcou o tema irão transitar livremente, sobretudo entre filmes de temática não religiosa, provocando novos desafios para esse problema de representação: como recriar os dispositivos dessa iconografia, migrando as especificidades de um suporte ao outro? A análise comparativa guiará o nosso percurso à procura dos ecos da Anunciação no cinema moderno e no contemporâneo. O subcapítulo 1.1, muito devedor do artigo “Montage obligatoire”, de Alain Bergala, se apoia no uso expressivo da montagem. Conforme veremos, os filmes selecionados fizeram uso intencionado do corte “justamente onde não haveria qualquer dificuldade de fazer coabitar duas figuras no mesmo quadro”.13 Já no subcapítulo 1.2, analisaremos estratégias empregadas para encenar a Anunciação em três Paixões do primeiro cinema, todas da década de 1910. O destaque será dado ao longa-metragem Da manjedoura à cruz (From the Manger to the Cross, 1912), produção da Kalem Company dirigida por Sidney Olcott. Supõe-se que, com a solução técnica empregada para fazer o Anjo aparecer em cena, Olcott e sua equipe tenham encontrado um equivalente fílmico da cesura espacial. No capítulo 2, analisaremos dois filmes que estabelecem com a profundidade de campo uma relação conectada com a iconografia da Anunciação. Tanto em As sombras (Les Ombres, 1982), de Jean-Claude Brisseau, quanto em O estranho caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira, trata-se de um mesmo princípio: encerrar o mundo ficcional em um espaço fechado, sem horizonte possível. Os dois realizadores, a seu modo, fizeram uso de elementos visuais com a finalidade de dar acesso a uma

13 Alain Bergala, 2015, p. 222.

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profundidade de campo reduzida. Daniel Arasse, em sua pesquisa acerca da incidência da perspectiva na Anunciação renascentista, nos ajudará a decifrar o sentido desse intrigante diálogo. O capítulo 3, por fim, se propõe a analisar o filme Correspondências (Correspondances, 2007), de Eugène Green. Ao contrário dos demais exemplos citados, Green filma uma Anunciação sem qualquer indício de cesura espacial, abolindo toda e qualquer fronteira entre o Anjo e a Virgem, entre a vida e a morte. Toda grande obra cinematográfica, como diz o próprio realizador, é uma história de fantasmas.14

Sob o risco da idolatria De todos os milagres de Cristo, a cura do cego é o mais cinematográfico, ou melhor, aquele que estabelece relação mais estreita com o cinema e a natureza da máquina filmadora. Trata-se, afinal, de uma operação que consiste literalmente em dar a ver, qualidade compartilhada de uma forma geral com as artes visuais. No cinema, particularmente, essa comparação rende ainda uma intrigante analogia: se podemos dizer que a condição do cego equivale, momentaneamente, à do espectador na sala escura, então sua cura corresponderia, por analogia, ao início de toda sessão de cinema. O diálogo com a natureza do cinema e o seu aparato de exibição é aqui evocado para introduzirmos o tema central da Parte II: o problema da imagem religiosa e o dilema da idolatria. A representação

14 Eugène Green, Présences: Essai sur la nature du cinéma. Paris: Desclée de Brouwer, 2003, p. 35.

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da cura do cego no cinema colocará em evidência a natureza problemática da imagem de Cristo. Se a relação da imagem religiosa com as religiões teístas sempre foi muito delicada, provocando ondas iconoclastas em vários cantos do mundo, o que dizer dessa mesma relação no regime de imagens inaugurado pelo cinema? As reações iconoclastas aos filmes religiosos, se comparadas às artes mais antigas, se manifestaram em episódios mais pontuais e sofreram um decisivo deslocamento. Tal deslocamento se deve ao fato de que, no cinema, as polêmicas envolvendo a recepção das Paixões recaíram sobretudo na maneira pela qual as figuras bíblicas eram representadas. Desde o primeiro cinema, já não se tratava de discutir se Jesus, a Virgem ou algum Santo deviam ou não ser representados, e sim a forma de representá-los nos filmes; sob o risco de, por um lado, não corresponder ao ideal de beleza dos cânones e, por outro lado, de incitar a idolatria. Os milagres de Jesus, ponto delicado dessa equação, estariam no limiar desse impasse. É justamente a esse desafio, circunscrito à arte cinematográfica, que iremos nos lançar ao longo da segunda parte deste livro. A encenação da cura do cego no cinema, por um motivo não muito previsível, se mostrou uma ocasião privilegiada para explorar a imagem de Cristo. As razões para isso se encontram na própria configuração espacial solicitada pelo episódio evangélico: como os dois costumam estar de frente para o outro, o rosto de Cristo é mostrado pela perspectiva do cego recém-curado. Essa categoria de milagre, portanto, acompanha uma iniciação: a inauguração de um olhar. Por essa razão, a imagem da face de Jesus é muito valorizada nas cenas de cura do cego. A partir de então, se adota tal modelo crístico como referência para o restante do filme. Ao longo dos dois capítulos que integram a Parte II, analisaremos duas grandes produções hollywoodianas que seguiram

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caminhos opostos na representação da cura do cego: Rei dos reis (The King of Kings, 1927), de Cecil B. DeMille, e O rei dos reis (King of Kings, 1961), de Nicholas Ray.15 As operações empregadas determinam a forma como a imagem de Cristo é trabalhada em cada uma das Paixões. Dessa oposição será possível identificar, pela própria caracterização dos respectivos personagens de Cristo, o posicionamento dos realizadores em relação ao dilema da idolatria: no filme de DeMille, para evitar uma representação idólatra de Jesus, adota-se uma operação marcada por um excesso de mediações, caracterizando-o de acordo com um imaginário iconográfico prévio; já no filme de Ray, a representação idiossincrática de Cristo parece refletir, como um autêntico produto de seu tempo, a imagem de uma sociedade idólatra. Para tratarmos desse assunto, repleto de implicações teológicas espinhosas, entraremos no terreno da “querela das imagens”, dando especial atenção à segunda crise do iconoclasmo bizantino. A filósofa argelina Marie-José Mondzain, em sua reflexão acerca da doutrina do ícone, nos ajudará no percurso. Será pelo conceito operatório da economia (do grego, oikonomia), e amparado na oposição entre ícone (eikon) e ídolo (eidolon), que iremos estabelecer a distinção entre a imagem de Jesus nas duas Paixões supracitadas. No primeiro filme analisado, Rei dos reis, o procedimento adotado na cura do cego é o plano ponto de vista. Pelos olhos do cego, o espectador vê o lento e gradual aparecer de Cristo. Ao final da operação, vemos o seu rosto sob o aspecto imóvel e aplainado de um ícone. Ao longo do capítulo 4, analisaremos as inúmeras

15 O título quase idêntico dos dois filmes, assim como o status de principal PPaixão hollywoodiana em suas respectivas épocas, são as únicas semelhanças entre eles. A monumental Paixão de Ray, lançada 35 anos após a produção de DeMille, é concebida pela MGM para encher os olhos de um público que ainda retinha em suas mentes o rosto do ator demilliano como a principal referência de Jesus Cristo.

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implicações do dispositivo empregado por DeMille em seu filme. Já na monumental produção de Nicholas Ray, O rei dos reis, a cena da cura do cego se destacará pelo imediatismo. O rosto de Cristo é filmado com o objetivo de valorizar o conteúdo significante do plano: seus olhos azuis. São eles que, investidos de poder de significação, irão realizar esse milagre. Ao longo do capítulo 5, veremos que a imagem de Cristo adotada no milagre se mostrará coerente com a proposta de fazer de Jesus Cristo um personagem de cinema: sacrifica-se o sentido transcendente da mensagem cristã para fazer o gênero das Paixões caber no regime do espetáculo.

Jogo teatral e crença na representação Como filmar uma ressurreição? No cinema, a representação do despertar de um morto coloca um duplo desafio: em primeiro lugar, é preciso fazer o espectador acreditar na morte do personagem; como se não bastasse a dificuldade dessa operação, por si só bastante problemática, é preciso ainda fazê-lo acreditar em seu retorno à vida. É bem verdade que nem todas as ressurreições solicitam uma adesão do espectador no nível da crença – é o caso, justamente, do filme que analisaremos ao final da terceira parte, O Evangelho segundo São Mateus (Il Vangelo secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini. Nos demais filmes selecionados para a Parte III, é solicitado do espectador um engajamento emocional em favor da personagem ressuscitada. Para ajudá-lo nessa difícil tarefa, tanto Carl Th. Dreyer, em A palavra (Ordet, 1955), quanto Eugène Green, em O mundo vivente (Le Monde vivant, 2003), recorrerão aos benefícios da ilusão teatral. Auxiliados por esse poderoso recurso, será mais fácil resolver o duplo desafio colocado pelo tema da Ressurreição.

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Em A ideia do teatro, José Ortega y Gasset defende que o específico teatral, ou seja, aquilo que caracterizaria as artes cênicas em sua essência, reside no seu poder de substituir uma coisa por outra: uma concreta por outra abstrata, uma presente por outra ausente, e assim por diante. Em vez de apostar na centralidade da palavra, Ortega y Gasset elege como aspecto singular da arte teatral a metamorfose que se realiza nos palcos. A representação teatral nos permite aceitar que, na presença de um ator com uma coroa na cabeça, por exemplo, estamos diante do rei da Dinamarca; ilusão que pode comportar também, a partir de um simples cenário pintado, a extensão de todo o seu reinado. Essa aceitação, claro, está sujeita a constantes interrupções, num jogo intercambiável entre a crença e a descrença – o fascínio do teatro está justamente nessa oscilação. De todo modo, ainda que de forma intermitente, somos estimulados a efetuar essa substituição. Assim, graças ao poder de síntese dos signos, enxergamos um espetáculo cuja amplitude imaginativa corresponde aos próprios limites convencionados em cada montagem. Isto é formidável, senhores. Esse fato trivialíssimo que acontece cotidianamente em todos os teatros do mundo é talvez a mais estranha, a mais extraordinária aventura que acontece ao homem. Não é estranho, não é extraordinário, não é literalmente mágico que o homem e a mulher lisboeta possam estar hoje, em 1946, sentados em suas poltronas e camarotes do teatro de Dona Maria e ao mesmo tempo estejam seis ou sete séculos atrás, na brumosa Dinamarca, junto ao rio do parque que rodeia o palácio do rei, vendo caminhar sem peso essa fiammetta lívida que é Ófelia? Se isto não é extraordinário e mágico, eu não sei que outra coisa no mundo está mais próxima de sê-lo.16 16 José Ortega y Gasset, A ideia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010, pp. 37-38.

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Dreyer e Green, conforme dizíamos, parecem tirar proveito dos benefícios da ilusão teatral. Com um cinema que reafirma o teatro, conduzem o espectador a um estado mental favorável para acreditar na cena da ressurreição, episódio que se notabiliza, justamente, pela violação da verossimilhança. O efeito-cortina instaura um jogo psicológico no qual cada objeto em cena se mostra sob a forma reduzida de um signo. Essa condensação teatral atua no sentido de intensificar o efeito da chamada “suspensão da descrença”. Assim, beneficiado por esse efeito, o espectador poderá apreciar a cena livre de cobranças excessivas pela verossimilhança. Acreditamos, portanto, que tal efeito termina por prepará-lo para se tornar mais receptivo ao milagre. Nenhum dos dois filmes citados, porém, seguirá nesse caminho até o fim. Uma vez estabelecida a lógica teatral que subjaz à representação, os dois realizadores irão provocar em seus respectivos filmes, no instante em que a cena da ressurreição se aproxima, uma mudança no regime de encenação. Após essa mudança, as estratégias adotadas se mostrarão avessas às leis que regem a representação teatral. Em A palavra, conforme David Bordwell demonstra, os recursos de teatralização vão sendo desfeitos, dando lugar às articulações elementares da linguagem do cinema. É assim que, durante o velório de Inger, pouco a pouco veremos incorporarem-se à mise en scène de Dreyer o corte em movimento, o plano ponto de vista, o close-up e, por fim, a montagem analítica. Já em O mundo vivente, a mudança é de outra natureza. O sistema de signos previamente estabelecido dará lugar a um corpo cuja presença se mostrará avessa ao léxico semiológico. Assim, em alguns momentos especiais do filme (o milagre sem dúvida é um deles), Green dispensa os artifícios da ilusão teatral para nos colocar perante uma realidade que se descortina diante de nós. A cena da ressurreição se dá no exato instante em que o regime teatral termina.

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No sétimo capítulo deste livro, iremos comparar duas visões diferentes: de um lado, o milagre como fenômeno da natureza; de outro, como fenômeno cinematográfico. Em Luz silenciosa (2007), de Carlos Reygadas, veremos que a ressurreição de Esther, a personagem morta, não provoca qualquer impacto na superfície do filme. Em um plano límpido e cristalino, sem qualquer interferência no registro, acompanhamos o milagre como se fosse o simples despertar de um sono. Tudo se resolve com a atriz abrindo os olhos. Já em O Evangelho segundo São Mateus, de Pasolini, a Ressurreição de Cristo é repleta de operações de opacidade: câmera na mão, cortes secos, movimentos abruptos, sobreposição sonora etc. O estilo pessoal de Pasolini, contudo, não se coloca como um obstáculo para os propósitos devocionais do filme. Muito pelo contrário. É através de sua pincelada grossa, que ressalta as imperfeições do traçado (inerentes ao método adotado), que se dá a irrupção do sagrado. Eis o Mistério da Ressurreição em sua plenitude. Esse capítulo servirá de ocasião para colocarmos a nossa hipótese à prova. Formulemos, uma última vez, o impasse proposto: o milagre deve ser trabalhado de forma ilusionista, por meio de um truque diante da objetiva (um jogo de cena, no caso), ou como demonstração do artifício, fruto das fissuras do aparato cinematográfico? A comparação desses dois filmes traduz de forma eloquente posturas opostas no que diz respeito à representação do milagre no cinema.

*** Feita a síntese da trajetória deste livro, após já termos apresentado a hipótese da pesquisa e o método de análise, resta agora justificarmos a ordem do percurso. Embora a orientação seguida já se

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baseie na própria cronologia dos Evangelhos (Anunciação, cura do cego e Ressurreição), a ordenação de cada parte seguirá uma lógica regida pelos problemas de representação. Ao longo do itinerário proposto, podemos constatar uma gradação no que diz respeito aos referenciais teóricos adotados em cada parte. Na primeira, como vimos, iremos estudar as recriações dos dispositivos espaciais herdados da arte cristã. Levando-se em consideração que nossa atenção se voltará para o passado da imagem, parece-nos coerente iniciar a pesquisa por aqui. O que está em jogo, afinal de contas, é a relação estabelecida com os rastros iconográficos, ou seja, aquilo que o tema carrega de antemão. Na segunda parte do livro, analisaremos a imagem de Cristo no próprio instante em que ela se apresenta. Mesmo que a imagem seja concebida em função do espectador, sob o risco de provocar a idolatria, não é exatamente na questão da recepção que iremos nos deter, e sim no dado visível que se afigura no presente da imagem. Por fim, na terceira parte, analisaremos o milagre da Ressurreição a partir do impacto provocado no espectador. As cenas serão observadas em função de sua crença na representação, colocada em xeque pela violação da verossimilhança. Como se trata de um problema de representação centrado no receptor da imagem, optamos por reservá-lo para a parte final. Assim, já prevendo a conclusão da trajetória, iremos nos ater ao futuro da imagem: as operações empregadas serão analisadas do lugar do espectador, a quem as imagens se endereçam.

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Parte I Anunciação

“A fim de pôr em evidência a não homogeneidade do espaço, tal como é vivida pelo homem religioso, pode-se fazer apelo a qualquer religião. Escolhamos um exemplo ao alcance de todos: uma igreja, numa cidade moderna. Para um crente, essa igreja faz parte de um espaço diferente da rua onde ela se encontra. A porta que se abre para o interior da igreja significa, de fato, uma solução de continuidade. O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre os dois modos de ser, profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado.” Mircea Eliade, O sagrado e o profano

1. Fronteiras

Em Accattone (1961), de Pier Paolo Pasolini, vemos uma referência ao motivo da Anunciação no primeiro encontro entre os personagens Vittorio e Stella. A citação iconográfica não é gratuita. Tal como nos Evangelhos, Vittorio (figura da Virgem) terá a sua vida inteiramente retraçada após ouvir as palavras inspiradas de Stella (espécie de Anjo Anunciador). Esse encontro marcará o destino dos dois personagens, que a partir de então seguirão juntos numa vida em comum. Vittorio Accattone é um cafetão que atua no subúrbio de Roma e Stella é uma moça humilde que trabalha num depósito de garrafas. Enquanto Stella é retratada positivamente – de acordo, portanto, com a caracterização do Anjo Gabriel –, Vittorio é uma subversão da figura da Virgem. Após essa Anunciação desteologizada, digamos, Vittorio abandona a ocupação de explorador de mulheres para seguir a vida como trabalhador braçal e honesto – parte do projeto de família prometido a Stella. Embora ele fracasse em manter o plano em prática (conforme fica claro na sequência final, quando o vemos se entregar

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novamente à bandidagem – o que inclusive lhe custará a vida no desfecho do filme), é evidente que o Anúncio de Stella provoca uma significativa transformação. No momento em que se faz referência à Anunciação, os dois personagens, de perfil em relação à câmera e um de frente para o outro, ocupam as duas extremidades do quadro. Vittorio do lado direito, sentado, Stella do lado esquerdo, em pé. Entre os dois lados do quadro, no hiato entre as duas figuras, encontra-se um portão de madeira que faz eco às inúmeras portas, janelas e corredores da iconografia da Anunciação. No lado esquerdo, onde está Stella, podemos ver uma fumaça em alusão ao aspecto etéreo do Anjo (ligado às sensações mais abstratas, vaporosas); já na direita do quadro, encostado na parede de madeira de uma casa (um espaço mais doméstico, terreno), encontra-se Vittorio. Em um depósito de garrafas vazias, um cenário desolador e triste, um diálogo se desenrola entre os dois: “Stella, ó estrela, me indique o caminho”,

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clama Vittorio, “o caminho para um prato de feijão”. Pronto, a relação com a Anunciação está feita. Embora subvertida e desfigurada de seu contexto original, a referência ao episódio fundador da fé Cristã é assim estabelecida. Como se pode notar, não é difícil fazer referência à Anunciação: basta que dois personagens sejam filmados de uma determinada maneira – num arranjo composicional específico – e que entre eles se faça ouvir um diálogo vagamente alusivo a esse episódio bíblico. Não à toa, há uma grande recorrência do motivo da Anunciação no cinema moderno; e dada a importância desse episódio no imaginário cristão, essa breve referência dará ao filme um sentido profundo, um significado “pesado de consequências”, como diz Jacques Aumont.1 Algum personagem alheio ao universo retratado, assumindo o lugar do Anjo Gabriel, atuará como porta-voz de um importante anúncio e, daí em diante, um enredo cheio de tramas será incorporado ao texto fílmico. O personagem que receber o Anúncio, substituindo a Virgem, terá seu destino inteiramente retraçado a partir desse momento. Como diz Alain Bergala, referindo-se a filmes de realizadores impregnados pela cultura cristã, como é o caso de Pasolini, “todo encontro entre duas figuras pode, em certas condições e em certas circunstâncias, tornar-se uma Anunciação, ou um eco desta figura inicial da Anunciação”.2 Veremos ao longo desta primeira parte do livro que o motivo da Anunciação assombrará o cinema moderno, provocando desvios e releituras em relação ao episódio original. Diferentes manifestações do arranjo composicional que marcou o tema irão

1 Jacques Aumont, Matière d’images, redux. Paris: La Différence, 2009, p. 65. 2 Alain Bergala, “Montage obligatoire”. In: Alain Bergala (Org.), La Création cinéma. Crisnée: Yellow Now, 2015, p. 222.

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transitar livremente entre filmes de temática não religiosa, sobretudo no denominado cinema de autor. Como escreve Aumont, com certa dose de desconfiança, “no cinema nós podemos enxergar a Anunciação por todos os lados”.3 Após tantas e tantas recorrências, identificadas sobretudo pela crítica de língua francesa, pode-se dizer que a Anunciação se tornou um motivo-fetiche do cinema. Contudo, para além do diagnóstico, convém identificarmos o que reside por trás dessas operações intertextuais. Que dispositivos são usados? Como retrabalhar essa herança? Como migrar as especificidades de um suporte para o outro, da pintura para o cinema, da fixidez para o movimento?

1.1. Montagem obrigatória Na Anunciação renascentista, para o problema de representação provocado pela colocação lado a lado de duas figuras heterogêneas – o Anjo e a Virgem –, a iconografia respondeu com uma intrigante separação espacial: doravante chamada de fronteira ou cesura espacial. O Anjo, normalmente ajoelhado e de perfil em relação à Virgem, era representado no canto esquerdo do quadro, lado simbolicamente associado ao sagrado e à natureza. Já a Virgem, cercada por objetos domésticos (símbolos produzidos pela ação do homem, como um livro, um vaso de flor, uma cama, um banco etc.), costumava figurar no canto direito, confinada no espaço diminuto de um quarto, de uma varanda, de uma loggia4 – um espaço arquitetônico fechado, sem ponto de fuga.

3 Jacques Aumont, 2009, p. 81. 4 Segundo o Dicionário Houaiss, loggia é uma “galeria coberta e vazada para um exterior, geralmente por arcadas e/ou colunas”.

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Para marcar a separação entre os dois lados do quadro, e assim acentuar a diferença entre o Anjo e a Virgem, a iconografia cristã encontrou várias soluções diferentes: além do uso de dípticos, que provocavam forçosamente a cisão entre as duas figuras, privilegiou-se uma composição partida em dois pela inserção de símbolos no meio do quadro, no hiato que separa o lado celestial do terreno. Contudo, a forma mais frequente de cesura espacial era o uso de arcos e colunas pesadamente reiteradas pelo desenho arquitetônico do espaço representado. Tais elementos visuais, concebidos com o propósito de materializar essa fronteira, podiam também ser compostos por janelas, vãos e portas. Em alguns casos, quando o pintor desejava dar destaque para o material de que era feita a coluna, realçando a concretude do mármore, por exemplo, pelo uso expressivo da cor e do desenho, a cesura se tornava o motivo central do quadro. Como podemos conferir a seguir, no afresco de Arezzo, de Piero della Francesca, a brancura do mármore, em seu peso e em sua concretude, parece se situar no limiar do sagrado. Ao tentar precisar o sentido da coluna na iconografia da Anunciação, Daniel Arasse afirma que ela “é um dos símbolos mais conhecidos e tradicionais de Cristo: Columna est Christus”.5 Em L’Annonciation italienne: Une histoire de perspective, Arasse reafirma o paralelo com Cristo, situando-o no contexto da Anunciação renascentista. Suscetível de vários sentidos, a coluna é, sobretudo no contexto da Anunciação, uma figura de Cristo e/ou da Divindade abundantemente empregada tanto no século XIV quanto no século XV.6

5 Daniel Arasse, Histoire des peintures. Paris: Denoël, 2004, p. 82. 6 Id., L’Annonciation italienne: Une Histoire de perspective. Paris: Hazan, 2010, p. 42.

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Piero della Francesca, Annunciazione, 1455, afresco, 329 x 193 cm, Basílica de São Francisco, Arezzo.

Dito isso, voltemos à cena da Anunciação em Accattone. Logo após fazer referência ao episódio bíblico, podemos perceber que Vittorio e Stella são filmados em campo/contracampo. Segundo Alain Bergala, a cesura espacial entre o Anjo e a Virgem é retrabalhada neste filme pela montagem. Eis a sua hipótese em “Montage obligatoire”: o corte substitui, pelo “instrumento

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cinema”,7 a famosa coluna da iconografia cristã. Como construir uma barreira entre dois planos? Como trabalhar a montagem no sentido de estabelecer um hiato, marcando a separação necessária entre o Anjo e a Virgem? A operação sintática do campo/contracampo, normalmente empregada para amalgamar um personagem ao outro no contexto de uma conversa – e, assim, amenizar o corte, tornando-o invisível –, teria sido utilizada por Pasolini justamente para demarcar a ruptura, para enfatizar a cesura espacial existente entre eles. Nos fotogramas a seguir, extraídos da cena citada, Pasolini procura explorar as diferenças no fundo do quadro de cada uma das figuras individualizadas. O efeito alcançado é nítido. Ao invés de dar fluidez à cena, fundindo os personagens num espaço contíguo durante toda a conversa (por meio da montagem que faz uma sutura entre os dois planos), o corte enfatiza justamente a diferença entre eles, delimitando de maneira clara a fronteira que separa o lado celestial (onde se encontra Stella)8 do terreno (onde se encontra Vittorio, a “Virgem Anunciada”).

7 Alain Bergala, 2015, p. 223. 8 Ao longo de sua análise, Bergala observa que o pedaço de tecido que serve de lenço na cabeça de Stella seria uma forma encontrada por Pasolini de se fazer alusão à auréola do Anjo.

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Em “Montage obligatoire”, Bergala analisa cinco filmes,9 nenhum de temática propriamente bíblica, que citam a Anunciação fazendo emprego sistemático da montagem “justamente onde não haveria qualquer dificuldade de fazer coabitar duas figuras no mesmo quadro”.10 Tal afirmação, assim como o próprio título do texto, faz referência ao célebre artigo de André Bazin, “Montagem proibida”. O paralelo com a afirmação baziniana tem o propósito de estabelecer uma oposição no que diz respeito à “crença do espectador”. Após essa digressão sumária da teoria da montagem proibida, chego a um caso que é esse da Anunciação, onde a proposição baziniana poderia se inverter: no caso de uma Anunciação, a crença do espectador exige a montagem, daí o meu título: “Montagem obrigatória”.11

Esse é o único aspecto da argumentação de Alain Bergala do qual discordamos. Exceto pelo filme de Dreyer, A palavra, nas demais obras discutidas a crença do espectador independe desse procedimento na montagem. O próprio autor, após a análise dos filmes, em momento algum do artigo retomará essa afirmação para tentar confirmá-la. O texto é convincente em demonstrar a hipótese de uma equivalência cinematográfica (trata-se, afinal, de um reemprego dos motivos plásticos da Anunciação por meios fílmicos), mas a montagem não interfere no sistema de crenças do espectador.

9 Em ordem cronológica, estes são os filmes analisados por Bergala: A palavra (Ordet, 1955), de Carl Th. Dreyer, Accattone (1961), de Pier Paolo Pasolini, Os pássaros (The Birds, 1963), de Alfred Hitchcock, Eu vos saúdo, Maria (Je vous salue, Marie, 1985), de Jean-Luc Godard, e A cor do dinheiro (The Color of Money, 1986), de Martin Scorsese. 10 Alain Bergala, 2015, p. 222. 11 Ibid., p. 221.

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Segundo Bazin, para quem o cinema tem como vocação a apreensão realista da cena, a montagem estaria proibida quando “o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação”.12 No caso de uma Anunciação, segundo a lógica de Bazin, trata-se de uma situação em que, de fato, o essencial depende da coexistência simultânea de dois elementos: o Anjo e a Virgem. As implicações dessa coexistência, porém, não alcançam o espectador no nível da crença. Talvez Bergala tenha trazido o texto de Bazin pelo jogo de contrastes, atraído pela beleza da comparação, mas a relação estabelecida com a afirmação baziniana não procede. Não se trata, portanto, de se tentar convencer o espectador, mas tão somente de realizar uma operação intertextual de empréstimo de meios. Tal busca pelos ecos iconográficos da Anunciação no cinema, sempre atenta a uma correspondência dos dispositivos plásticos da pintura, se tornou uma obsessão do cinema moderno. Um sem-número de recorrências desse motivo irá aparecer e reaparecer em filmes de temática mundana, secular, ecoando a configuração espacial do tema para além dos limites do cinema religioso. Estudiosos do cinema identificarão reflexos dessa herança nos filmes. Além do texto de Bergala, podemos citar trabalhos importantes sobre o assunto de pelo menos quatro dos principais críticos e teóricos franceses13: O anúncio feito a Maria (L’Annonce faite à Marie, 1991), de Alain Cuny, analisado por Jacques Aumont; Nostalgia (Nostalghia, 1983), de Andrei Tarkovsky, por Luc

12 André Bazin, O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 92. 13 A concentração de trabalhos sobre esse assunto entre intelectuais franceses não nos parece arbitrária, uma vez que as principais pesquisas recentes sobre a Anunciação renascentista haviam sido feitas também por historiadores da arte franceses, como é o caso de Daniel Arasse, Louis Marin, Hubert Damisch, Georges Didi-Huberman, entre outros.

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Vancheri; As damas do bosque de Boulogne (Les Dames du Bois de Boulogne, 1945), de Robert Bresson, por Dominique Païni; e Viridiana (1961), de Luis Buñuel, por Charles Tesson. Aqui no Brasil, em um artigo intitulado “O olho da imagem: reflexões metaestéticas no cinema de Abbas Kiarostami”, o pesquisador Luiz Carlos Oliveira Jr. estabelece um diálogo com a iconografia da Anunciação para identificar uma dimensão metaestética no cinema de Kiarostami.14 Esses autores se ocuparam tanto dos meios empregados na transposição quanto dos efeitos dessa operação em cada um dos filmes em questão. Vejamos a seguir mais um caso, também analisado por Alain Bergala, de um filme que parece ter sido bem-sucedido nesta operação de reapropriação dos dispositivos plásticos da pintura. Na famosa cena da Anunciação de Eu vos saúdo, Maria (Je vous salue, Marie, 1985), de Jean-Luc Godard, também foram retrabalhados os dispositivos estabelecidos na pintura renascentista. Embora a cena como um todo seja um pouco apressada, mantendo certo ar de improviso, a análise fílmica revela um pensamento cênico bastante calculado, a começar pela própria escolha do cenário em que se passa essa intrigante Anunciação. Segundo Bergala, o posto de gasolina é o equivalente contemporâneo mais exato da loggia dos quadros renascentistas. Assim como o conjunto arquitetônico composto por arcos e colunas, o posto possui um teto, abertura pelos lados e presença ostensiva de colunas. Além disso, o posto de gasolina possui a particularidade de se situar sempre à beira de uma estrada, cuja profundidade serve de ocasião, à semelhança das vedutas renascentistas, para a incidência

14 Os textos citados se encontram listados nas referências bibliográficas.

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das linhas de fuga para o horizonte.15 À parte os motivos explicitamente irônicos dessa curiosa analogia, trata-se de uma escolha de locação de fato baseada na semelhança em relação à disposição espacial da iconografia da Anunciação. Em sua análise do filme de Godard, Bergala acrescenta ainda um segundo argumento para a escolha do cenário da Anunciação em Eu vos saúdo, Maria, dessa vez apoiado num jogo de palavras tipicamente godardiano. Lembrando que posto de gasolina se traduz em francês como poste à essence, a Anunciação seria então uma cena situada entre a aparência e a essência. Aos olhos de José, afinal, Maria não sofre qualquer mudança em sua aparência, ao passo que, no momento do Anúncio – segundo a doutrina cristã –, a Virgem é inteiramente transfigurada em sua essência. Decorre daí, segundo a leitura de Bergala, o sentido do trocadilho realizado por Godard. No encontro com o Anjo, ou melhor, com os Anjos, já que a criança e o “tio Gabriel” formam juntos o par que compõe essa figura angelical,16 Maria entra em quadro agitada, correndo, e não há um plano sequer que busque recriar diretamente a configuração espacial do episódio evangélico. A lógica composicional de Eu vos saúdo, Maria é bem diferente da do filme de Pasolini. Aqui não se trata de dispor os atores em cena à maneira do arranjo eternizado pela iconografia renascentista; Godard não faz uso de um plano-tableau que facilite o acesso do espectador ao universo da pintura. A cena da Anunciação propriamente dita se inicia apenas com a entrada de José no táxi, e sua presença no Anúncio, aliás, é um

15 Alain Bergala, Nul mieux que Godard. Paris: Éditions Cahiers du Cinéma, 1999, p. 158. 16 A fusão dos dois personagens numa só figura, a do Anjo, é explicitada na cena do aeroporto, quando os dois amarram o sapato juntos. Segundo Alain Bergala, o anjo duplo seria uma alusão ao filme A palavra (1955), já que na obra de Dreyer a ressurreição é operada pela crença conjunta de Johannes e da criança (a única que de fato acreditava no milagre).

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acréscimo inteiramente criado por Godard (de forma alguma presente no texto original). Enquanto se desenrola o diálogo, José, o taxista, permanece dentro do carro, bem no meio das duas figuras. Sua posição não é nada favorável: impossibilitado de ouvir e participar da conversa, José está claramente sobrando na cena. Embora excluído, a Anunciação o implica diretamente. A partir desse momento, sua namorada Maria será filmada sob o signo da interdição (indicando que seu corpo já não se encontra ao alcance de José). Para estabelecer o sentido almejado, do ponto de vista de José, Godard cria uma situação visual de clara significação. Primeiro, um céu negro com apenas dois elementos visíveis: o sinal de trânsito e a lua ao fundo. O semáforo, inicialmente amarelo, logo se torna vermelho; e o plano seguinte mostra José abaixando a cabeça em sinal de tristeza. Em um plano sintético e eloquente, composto por sugestões visuais plenas de significação,17 Godard encena com muita concisão a interdição de José. A Anunciação, afinal, marca o momento em que Maria, ainda humana, torna-se a eleita. A lua, mostrada no fundo do plano, representa a transformação final da Virgem: de terrena para celestial. Durante a cena do Anúncio, Maria nunca é filmada ao lado do Anjo-duplo. Eles jamais ocuparão o mesmo quadro. Mesmo quando não há qualquer razão aparente para provocar essa cisão (como no caso dos fotogramas ao lado), Godard cria uma operação que consiste em viabilizar um diálogo no qual as pessoas envolvidas

17 Antes mesmo da cena no posto de gasolina, Godard já havia antecipado algumas imagens que sugerem o motivo da Anunciação. Metáforas visuais foram trabalhadas como prenúncio da Anunciação, como se Maria estivesse sendo preparada para o evento que a elegeria predestinada. Numa dessas cenas do filme, Maria ouve o estrondo de um avião que rasga o céu logo acima de sua casa. No plano seguinte, vemos o avião atravessando um enorme sol alaranjado. O avião, minúsculo em relação às dimensões desse grande astro/óvulo, parece evocar, no momento da travessia, uma espécie de fertilização celestial.

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jamais são filmadas juntas. A polarização entre os dois lados do táxi (dentro do qual se encontra José, preso) torna-se uma necessidade de ordem representacional.

Bergala vai ainda mais longe e aponta para o fato de que, durante toda a conversa, os planos da Virgem obedecerão a uma lógica figurativa radicalmente diferente da dos Anjos. Enquanto eles serão filmados sempre do mesmo modo, ao nível do olho, Maria será filmada cada vez de uma forma diferente, “como se o espaço que a contém, de uma densidade distinta, autorizasse uma diversidade enunciativa”.18 Tal como no filme de Pasolini, trata-se do mesmo propósito: traduzir o êxito representacional da iconografia cristã em meios cinematográficos, encontrando uma forma própria de “erigir uma coluna invisível entre o espaço dos anjos e o de Maria”.19 A aposta de Bergala, com a qual concordamos, é a de que tudo isso se realiza por meio da montagem: no filme de Pasolini, pela separação e pela exclusão (o uso expressivo do campo/contracampo); no de Godard, pela separação e pela diferenciação (na multiplicidade enunciativa concedida somente à Virgem). Trata-se, portanto, de

18 Alain Bergala, 1999, p. 159. 19 Ibid., p. 160.

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Maria de três pontos de vista diferentes

filmes cujas operações de montagem revelam um intrincado pensamento teórico: no filme de Pasolini, assim como no de Godard, os dispositivos espaciais da pintura encontram um equivalente fílmico no uso expressivo do corte. A dificuldade da tarefa consiste em não apenas dar movimento ao que se apresentava em repouso, na fixidez da pintura, mas em conseguir ressignificar os motivos plásticos através das especificidades do meio fílmico.

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As análises efetuadas por Bergala podem se mostrar mais convincentes quando levamos em conta a erudição e a familiaridade dos realizadores mencionados com a tradição da pintura ocidental. Veremos a seguir, contudo, que esse dilema representacional ultrapassa o terreno do cinema de autor. É possível verificar, em um filme da década de 1910, uma Anunciação que se realiza graças a uma elaborada operação intertextual. Sidney Olcott e sua equipe, talvez guiados por um aguçado senso de intuição representacional, parecem ter chegado a um procedimento semelhante a esse identificado por Bergala. Mas antes de analisarmos o filme em questão, apresentando os indícios de nossas suspeitas, precisamos fazer um recuo ao primeiro cinema, época em que as soluções cênicas eram sempre irrefletidas e inocentes, certo? Errado.

1.2. No Princípio Os primeiros filmes sobre a vida de Cristo eram peças filmadas. A esse gênero de montagem teatral, muito popular em toda a Europa durante a segunda metade do século XIX, deu-se o nome de Paixão. Dessa forma também foram chamadas as primeiras filmagens das peças que tratavam da vida e da morte de Jesus Cristo. As Paixões cinematográficas remontam ao início do primeiro cinema. Já em 1897/1898, há registros de pelo menos quatro pequenos filmes sobre a vida de Jesus: a Paixão de Léar, a Paixão de Lumière, a Paixão de Horitz e a Paixão de Oberammergau20 – todos eram filmagens de peças teatrais. Esses filmes, embora chamados individualmente de Paixão, não se limitavam à crucificação de

20 Filmes dirigidos, respectivamente, por Albert Kirchner; Georges Hatot e Louis Lumière; Doc Freeman e Henry C. Vincent.

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Cristo. Além desse episódio decisivo, eles incluíam diversos outros momentos descritos nos Evangelhos, por exemplo, a Anunciação, o Nascimento, a Fuga para o Egito, o Batismo, os Milagres de Cristo, a Última Ceia, a Ressurreição, a Ascensão, entre outros. Após a virada do século, com a participação de estúdios maiores, como os da Pathé e da Gaumont, ou simplesmente com o desenvolvimento do gênero, os filmes de Cristo ganham um pouco mais de autonomia em relação às peças originais e passam a apresentar, a partir de então, operações formais próprias do cinema – irrealizáveis num palco de teatro. Além do uso mais eloquente da montagem, as Paixões da primeira década do século XX passam a explorar mais os efeitos de trucagem – usados para representar, por exemplo, a aparição de um anjo, a Ressurreição de Cristo ou a caminhada de Jesus sobre as águas.21 Todos esses efeitos podem ser conferidos, por exemplo, nas inúmeras versões do célebre filme da Pathé, La Vie et la Passion de Jésus Christ (1902-05),22 de Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet, ou ainda no filme produzido pela Gaumont em 1906, La Vie du Christ, de Alice Guy. Apesar de algumas mudanças perceptíveis entre as peças filmadas do final do século XIX e as produções de estúdios já estabelecidos no início do século XX, as Paixões costumam ser vistas

21 Na virada do século, contudo, antecipando em alguns anos a tendência do início do século XX (que consiste em “resolver” o milagre através de efeitos de trucagem), Georges Méliès já filmara Le Christ marchant sur les flots (1899), um pequeno filme de Jesus caminhando sobre as águas. 22 A inconsistência da data se justifica pelo fato de que os rolos, cada um contendo um episódio diferente da paixão, eram produzidos e comercializados separadamente. Além disso, devido ao sucesso comercial do filme, a Pathé posteriormente refilmou algumas cenas. É possível verificar, ainda hoje, versões híbridas desse filme com cenas provenientes de diferentes épocas.

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pelos estudiosos do primeiro cinema como um gênero à parte, não pertencendo exatamente “a um cinema narrativo, nem ao cinema de atrações, mostrando aspectos de ambas as tendências”.23 Como veremos mais adiante, elas possuem características muito próprias, e a análise em conjunto das Paixões deve ser feita com a prudência de um historiador. Como sugere a pesquisadora Flávia Cesarino Costa, as primeiras Paixões não devem ser tomadas como “formas acabadas que se oferecem à análise, mas como rastros de um outro contexto”.24 Era costume naquela época, afinal, a realização e a comercialização de cada rolo separadamente, e isso às vezes gerava uma exibição misturada dos filmes, uma vez que, de certa forma, “era o projecionista quem fazia a edição, ordenando as cenas da história”.25 Ao analisar uma cópia de uma destas Paixões existentes no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, Tom Gunning observa que ela é, na verdade, uma colagem de várias Paixões e que, neste sentido, funciona como um palimpsesto do primeiro cinema: revela o nível de participação dos exibidores na forma final do filme, uma vez que cada um criava a sua própria versão, ao mesmo tempo em que nos mostra as “energias contraditórias deste primeiro período”.26

Além disso, um outro problema que se enfrenta ao analisar uma Paixão do início do primeiro cinema é que elas não eram

23 Flávia Cesarino Costa, O primeiro cinema: Espetáculo, narração, domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005, p. 171. 24 Ibid., p. 170. 25 Luiz Antonio Vadico, A imagem do ícone – Cristologia através do cinema: Um estudo sobre a adaptação cinematográfica da vida de Cristo. Tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas, 2005, p. 93. 26 Flávia Cesarino Costa, op. cit., p. 171.

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vistas apenas como obra de entretenimento. Conforme relata o pesquisador Ferdinando Gizzi, a natureza ambígua das Paixões, ao mesmo tempo “entretenimento de massa e meio para devoção religiosa”,27 deve-se às próprias peças que serviram de base para a adaptação cinematográfica. Após a segunda metade do século XIX, as peças de maior sucesso entre o público europeu, justamente as Paixões de Oberammergau e Horitz (ambas adaptadas para o cinema), mantinham uma relação indefinida “entre o teatro e o ritual religioso”.28 Isso explica a opção por atores amadores e por um modelo de encenação herdado dos chamados Mistérios da Idade Média, mantendo tão somente “frágeis relações com o naturalismo do teatro burguês”.29 As Paixões filmadas do início do primeiro cinema, além de terem incorporado esse rígido modelo teatral, teriam ainda permitido que os pequenos filmes fossem levados para o interior de igrejas, como objetos devocionais, colocados ao lado de pinturas religiosas, relíquias, esculturas e outros objetos de culto. Ou seja, após o advento do cinematógrafo (por sua mobilidade e sua capacidade de eternizar o registro), as Paixões se tornaram ainda mais comprometidas com os propósitos devocionais. E o controle da Igreja sobre os filmes era feito para atender aos propósitos da instituição. A censura era sem dúvida implacável, mas não se tratava apenas de um impedimento institucional. A própria elite cultural, já devidamente instruída pelo imaginário iconográfico cristão, muitas vezes exigia uma conformação ao ideal figurativo adotado

27 Ferdinando Gizzi, “The Depiction of the Passion of Christ in Early Cinema: Between Artistic Tradition and Modern Representational Issues”. Theatralia et Cinematographica: Czech and Slovak Journal of Humanities, jan. 2015, p. 46. 28 Ibid., p. 46. 29 Noël Burch apud Flávia Cesarino Costa, op. cit., p. 169.

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por essa longa tradição. Isso traduzia em uma série de restrições às representações de Jesus, da Virgem Maria, dos apóstolos etc. É possível verificar, ao longo de todo o primeiro cinema, que o ideal de beleza herdado da arte canônica influenciou bastante a recepção das Paixões junto ao público.30 A imagem dos personagens que integravam as narrativas evangélicas, de fato, povoava o imaginário do público muito antes do advento do cinema. Além de todo o universo iconográfico da arte cristã, como também dos cartões-postais religiosos do período vitoriano, muito populares no século XIX, não devemos nos esquecer também, como destaca o pesquisador Luiz Vadico, do importante papel desempenhado pelas Lanternas Mágicas. Apesar de lhes faltar o movimento, “esses slides já possuíam estrutura de mostração, que pode ser percebida como uma espécie de narrativa, eram compostos por blocos de imagens, como: O Nascimento de Jesus, A Fuga para o Egito, A Visita no Templo etc”.31 Diante desse excesso de imagens, muito rapidamente se percebeu que o horizonte iconográfico dos filmes estaria subordinado a uma tradição pouco disposta a renunciar à representação canônica.32

30 Um exemplo eloquente pode ser conferido na ocasião do lançamento do filme Redenzione (1919), de Carmine Gallone e Godofredo Mateldi, longa-metragem italiano sobre a vida de Maria Madalena. O filme foi rejeitado pela crítica da época justamente por causa da representação dos personagens bíblicos, tanto de Jesus Cristo quanto de Maria Madalena. Nas palavras de Ulrico Imperi, em texto publicado na revista La vita cinematografica (apud Ferdinando Gizzi, op. cit., p. 49), Jesus foi retratado “sem o brilho e a significação apropriados”, e a atriz que interpretava o papel principal “não parecia Maria Madalena porque ela tinha um perfil muito fino em desacordo com a beleza lendária dos Santos”. 31 Luiz Antonio Vadico, 2005, p. 84. 32 Para ilustrar essa resistência no final do século XIX, vejamos a seguir o relato de Jules Helbig publicado em 1896 nas páginas da revista católica Revue de l’art chrétien: “No domínio da arte, deve-se sem dúvidas evitar a rotina, mas na arte religiosa há uma tradição que deve ser respeitada. Todo cristão é formado por um ideal da figura divina de Cristo, da Virgem Maria [...]. Nossa mente vislumbra com certa clareza os seus traços durante a leitura dos

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É claro que as restrições impostas pela orientação clerical não se limitavam à questão da imagem dos personagens evangélicos. Flávia Cesarino Costa enfatiza em seu livro a incidência dessas restrições na própria linguagem das Paixões. Durante as duas primeiras décadas do cinema, os realizadores das Paixões filmadas queriam “tratar de um assunto de apelo popular, mas tinham que enfrentar também uma infinidade de restrições morais e religiosas”.33 Eles ficavam, portanto, “entre a cruz e a espada”, e não raro se viam “constrangidos a imaginar encenações que não criassem problemas”.34 Isso implicava, prossegue a autora, “evitar caracterizações psicológicas, fugir de atuações mundanas, manter a artificialidade da interpretação dos atores como um sinal de reverência ao assunto”. A pouca verossimilhança das Paixões filmadas, conclui, tinha “mais a ver com tais restrições do que com alguma concepção de montagem tomada isoladamente e fora do contexto do filme”.35 A censura da Igreja, a herança teatral, as referências iconográficas, em suma, uma série de fatores limitou a liberdade dos estúdios para adaptar no cinema as histórias evangélicas. Uma das consequências disso é que a linguagem das Paixões não se desenvolveu da mesma forma que outros filmes da época. Sem medo de fazer prevalecer uma visão teleológica do cinema, o pesquisador

Evangelhos [...]. E se você me perguntar do que é feito esse ideal, eu creio que é das obras de arte”. Esse relato (“La Vie du Christ par Tissot”. La Revue de l’art chrétien, jul. 1896, p. 256) foi escrito com um alvo em mente, as ilustrações bíblicas de James Tissot. Segundo Helbig, o realismo e a “sensibilidade moderna” das ilustrações de Tissot estariam em contradição com a tradição figurativa da arte religiosa. 33 Flávia Cesarino Costa, op. cit., p. 169. 34 Ibid., p. 169. 35 Ibid., p. 169.

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Charles Keil não hesita em afirmar que as convenções do gênero conduziram as paixões a um “retardamento estilístico”.36 Como conclui Luiz Vadico, a tendência dos diversos produtores em “não polemizar com vários segmentos religiosos manteve mais ou menos fixas as características destes filmes”.37 Feita essa sumária contextualização acerca do universo do filme religioso no primeiro cinema e indicadas as armadilhas desse pantanoso terreno, analisaremos a seguir três filmes realizados na chamada terceira fase das Paixões no primeiro cinema.38 Entre 1912 e 1916, os filmes de Cristo passaram a ganhar relativa autonomia em relação às subordinações da Igreja. O marco da nova fase seria uma ordem estabelecida pela Sacra Congregazione Conciliare, que passou a proibir a exibição de paixões em edifícios religiosos. Essa determinação, segundo Ferdinando Gizzi, marcou uma gradual, mas irreversível, entrada das Paixões no “sistema do espetáculo”, culminando posteriormente nas produções épicas.39 A partir desse momento, as fronteiras do gênero teriam se diluído um pouco, provocando uma sensível mudança tanto na linguagem das Paixões quanto na recepção delas pelo espectador. Analisaremos a seguir três Anunciações dessa fase, filmadas entre 1912 e 1916. Identificaremos, primeiramente, as fontes iconográficas dos três longas selecionados; em seguida, veremos como essas referências foram trabalhadas em cada caso. O primeiro filme, Da

36 Charles Keil apud Flávia Cesarino Costa, 2005, p. 170. 37 Luiz Antonio Vadico, 2005, p. 83. 38 Tal divisão do gênero das Paixões do primeiro cinema em três fases foi proposta pelo teórico francês Amédée Ayfre em Dieu au cinéma – Problèmes esthétiques du film religieux (Paris: Presses Universitaires de France, 1953). 39 Ferdinando Gizzi, op .cit., p. 47.

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manjedoura à cruz (From the Manger to the Cross, 1912), é uma produção americana da Kalen Company dirigida por Sidney Olcott. Os dois outros filmes são italianos e possuem, coincidentemente, o mesmo título: Christus. O primeiro, de 1914, é dirigido por Giuseppe de Liguoro; o segundo, de 1916, por Giulio Antamoro.

Da manjedoura à cruz (From the Manger to the Cross, 1912), de Sydney Olcott

Christus (1914), de Giuseppe de Liguoro

Christus (1916), de Giulio Antamoro

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Vejamos as imagens ao lado. Para cada um dos três filmes selecionados, constam os fotogramas extraídos da cena da Anunciação, imediatamente antes e depois do momento em que o Anjo Gabriel aparece para a Virgem. Deixemos o filme de Olcott, cronologicamente o primeiro, para o final da análise. No filme de Giuseppe de Liguoro,40 de 1914, a operação usada para representar a aparição do Anjo Gabriel é clara: a trucagem. A figuração do Anjo é carregada de todos os simbolismos que caracterizam uma representação idealista do mundo celestial (como se nota na vestimenta do Anjo, assim como em suas asas, em sua auréola etc.). A nuvem cenográfica, uma espécie de tablado para a aparição do Anjo, é uma derivação explícita das montagens teatrais das Paixões de Cristo. A nuvem é um signo. Ela significa o mundo celestial ao qual o Anjo é associado – artifício que explicita a origem cênica dessa forma de dramaturgia. O tecido preto, colocado no fundo do quadro no momento da aparição do Anjo, tem a função de minimizar as referências ao mundo cotidiano, doméstico. Tudo na cena evoca uma artificialidade construída, baseada em uma convenção teatral e voltada para a exploração da capacidade de síntese e de significação dos elementos empregados. Embora não tenhamos encontrado uma fotografia ou uma ilustração da cena da Anunciação de alguma peça da Paixão do século XIX, como a de Horitz ou a de Oberammergau, supõe-se que Liguoro e sua equipe tinham em mente um modelo de encenação muito devedor ao teatro. Vejamos o fotograma a seguir, extraído da famosa Paixão da Pathé, La Vie et la Passion de Jésus Christ (1902-05), de Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet. Tal como as primeiras Paixões do cinema, entre as quais o filme de Zecca e 40 O filme foi exibido originalmente em preto e branco. A versão que se vê ao lado, aparentemente a única que sobreviveu ao tempo, foi colorizada num convento francês muitos anos depois, em 1928.

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Nonguet é o caso mais notório e conhecido, o filme de Liguoro opta por manter visíveis os signos materiais de um modelo teatral herdado das peças da Paixão de Cristo. Essas montagens teatrais eram ainda muito presentes no imaginário iconográfico do início do século XX.

La Vie et la Passion de Jésus Christ (1902-1905), de Ferdinand Zecca e Lucien Nonguet

Dois anos depois, em 1916, Giulio Antamoro também fez uso da trucagem para operar a aparição do Anjo. Aqui, porém, a grande referência iconográfica, ou mesmo citação direta, é uma das mais célebres pinturas religiosas: Annunciazione (1440-50), de Fra Angelico. Após abrir o filme com uma homenagem ao afresco de

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Fra Angelico,41 Antamoro repete o procedimento citando ao longo do filme outros episódios bíblicos, como A última ceia e a Pietá, através dos quais dá uma piscadela ao afresco de Leonardo da Vinci e à escultura de Michelangelo.

Christus (1916), de Giulio Antamoro

Em ambos os episódios, Antamoro acrescentou as devidas referências por meio de cartelas. No episódio da Anunciação, também encontrou uma maneira de explicitar ao público a origem da citação. No final da cena, após o Anjo aparecer para Maria, vemos uma moldura etiquetada com a referência ao pintor toscano. Ao mencionar as obras mais conhecidas para cada um dos respectivos episódios evangélicos, a intenção do realizador de dialogar com o público torna-se clara. A cena da Anunciação, que corresponde à abertura do filme, ainda que solene e bonita, trata-se tão somente de citação a uma obra pré-existente, sem configurar qualquer esforço de apropriação da pintura pelo cinema.

41 Nesse momento, parece-nos oportuno ressaltar que se trata de uma referência intertextual completamente de acordo com o que se esperava de uma obra religiosa. Não à toa, o filme rendeu a Antamoro e sua equipe elogiosos comentários. Segundo Constant Larchet (apud Ferdinando Gizzi, op. cit, p. 49), alguns críticos da época idolatraram a atriz que interpretou a Virgem devido à sua “simplicidade, hierática modéstia de seus gestos que a transformaram em modelo vivo, digno da arte de Rafael”.

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Christus (1916), de Giulio Antamoro

Fra Angelico, Annunciazione, 1440-50, afresco, 312,5 x 230 cm, Florença, Convento de São Marco

Em Da manjedoura à cruz, por fim, a grande referência iconográfica é o conjunto de gravuras de James Tissot para a bíblia de King James. Em “From the Palette to the Screen: The Tissot Bible as Sourcebook for From the Manger to the Cross”, artigo inteiramente dedicado à utilização dessa referência na obra de Olcott, no qual compara inúmeras imagens do filme com as ilustrações bíblicas do final do século XIX, Herbert Reynolds consegue sem dúvida comprovar a sua hipótese: Sidney Olcott e sua equipe definitivamente adaptaram a história de Cristo com a bíblia de King James em mãos. E a cena do Anúncio não é diferente. Como podemos verificar na ilustração a seguir, as semelhanças são notáveis.

L’Annonciation (1896-97), de James Tissot

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Da manjedoura à cruz (1912), de Sidney Olcott

A fidelidade iconográfica de Olcott, contudo, não o impediu de realizar uma transposição inteligente da Anunciação cristã. Da manjedoura à cruz é o único entre os três filmes selecionados a responder às questões colocadas pelo dilema representacional da iconografia da Anunciação. A chamada cesura espacial ganha aqui uma equivalência de fato cinematográfica. Diferentemente dos outros dois realizadores, que escalaram um ator “de carne e osso” para interpretar o Anjo (recorrendo, portanto, ao efeito de trucagem para figurar a sua aparição), Olcott opta por uma solução um tanto quanto inusitada para representá-lo. Para diferenciá-lo da Virgem, e dessa forma estabelecer uma separação nítida entre eles, a aparição do Anjo se realiza por meio de uma projeção cinematográfica. Embora as cópias disponíveis do filme de Olcott não nos permitam apreciar claramente o efeito dessa operação, há registros que comprovam a solução empregada42. A imagem do Anjo é projetada no fundo do quadro, no canto esquerdo, para onde a personagem da Virgem dirige o olhar. Eis um anjo feito de luz. Sua aparição nas telas possui uma materialidade luminosa. Além disso, por se tratar de uma projeção da projeção, logo, uma aparição de segundo grau, o Anjo Gabriel se diferencia da Virgem Maria, digamos, no grau de redução em relação ao modelo original. Há, portanto, uma cisão entre os dois. Uma cisão de natureza ontológica: a Virgem é feita de carne, o Anjo é feito de luz. Não foi possível encontrar um documento que atestasse as intenções do diretor ou produtores do filme, uma pista qualquer que

42 Herbert Reynolds explica esse procedimento em “From the Palette to the Screen: The Tissot Bible as Sourcebook for From the Manger to the Cross”, artigo que integra a coletânea Une Invention du diable? Cinéma des premiers temps et religion, organizada por Roland Cosandey, André Gaudreault e Tom Gunning (Quebec: Les Presses de l’Université Laval, 1992).

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sugerisse uma proposição estética consciente dessa transposição de meios. Contudo, uma característica marcante do filme (a opção por filmá-lo integralmente nos lugares em que supostamente se passaram os episódios bíblicos) nos oferece indícios concretos de que Olcott tenha intencionalmente evitado os efeitos de trucagem. Da manjedoura à cruz é conhecido como a primeira Paixão do cinema a ser filmada em Jerusalém, Nazaré, Belém etc. Supõe-se que essa busca sistemática pelas locações verdadeiras denote um desejo de autenticidade. A composição dos quadros, concebida para privilegiar as paisagens ao fundo, parece convidar o espectador para olhar as locações, ver as cidades que testemunharam a vida de Cristo, como se elas ainda guardassem as marcas de sua presença. Embora não possamos afirmar qual era a intenção por trás dessa escolha, a imagem projetada do Anjo parece substituir o uso indesejável da trucagem. Supõe-se, portanto, que Olcott e sua equipe tenham realizado uma operação de transposição de meios.43 Em Da manjedoura à cruz, a cesura espacial está no suporte, na própria maneira escolhida para dar uma forma sensível à aparição do Anjo Gabriel; separando, assim, o sagrado do terreno. Nesse sentido, a virtualização da figura do Anjo, destacada em relação aos demais elementos da cena, equivaleria ao papel que as colunas desempenhavam nas pinturas renascentistas da Anunciação. Não daremos prosseguimento a essa suposição, sob o risco de torná-la excessiva ou anacrônica. Feita a sugestão e formulada a nossa suspeita, paremos por aqui.

43 Embora improvável, não podemos desconsiderar a hipótese de tudo não ter passado de uma tentativa de imitar a gravura de Tissot, que também dá ao Anjo um aspecto etéreo, luminoso. Diferentemente do padrão composicional mais célebre, formado no Quattrocento toscano, o Anjo da gravura vem de cima, ocupando uma posição enviesada e oblíqua em relação à Virgem.

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2. Janelas sem horizonte

No artigo intitulado “Annonciations ou les secrets du tiers”, Louis Marin identifica na iconografia da Anunciação renascentista a recorrência do cruzamento de dois eixos perpendiculares: o eixo transversal, que corresponde ao espaço de ligação entre o Anjo e a Virgem; e o eixo central, que coincide com as linhas de fuga da perspectiva monocular.44 O eixo transversal, marcado pela cesura do

espaço

cênico,

foi

analisado

no

capítulo

anterior.

Privilegiaremos agora o eixo da perspectiva na profundidade do quadro. Ao longo deste capítulo, vamos observar a recriação iconográfica no cinema de uma forma diferente, não mais pela montagem, mas por estratégias composicionais e narrativas que consistem em encerrar os personagens em espaços fechados. Para introduzirmos as questões a serem discutidas, será preciso expor as ideias gerais de historiados da arte que estudaram

44 Louis Marin, “Annonciations ou les secrets du tiers”. Trois. Quebec, vol. 3, n° 3, pp. 35-40, 1988.

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exaustivamente, a partir do livro fundamental de Erwin Panofsky, A perspectiva como forma simbólica, a reconhecida afinidade entre o tema da Anunciação e o advento da técnica da perspectiva. Em L’Annonciation italienne – Une histoire de perspective, Daniel Arasse é assertivo ao defender que tal afinidade se deu sob a chave do paradoxo, da contradição. A perspectiva, afinal, é uma técnica que confere unidade espacial45 a um mundo organizado pelo homem (a partir do ponto de vista do espectador, como enfatizará Pierre Francastel),46 enquanto o episódio da Anunciação corresponde ao mistério da Encarnação de Deus. Como figurar a chegada de Deus ao mundo dos homens por intermédio de uma técnica que consiste, justamente, em dar uma forma simbólica a um mundo marcado pela ausência de Deus? Tal interpretação acerca da perspectiva, como uma técnica que desteologiza o mundo representado, corresponde à visão de Panofsky.47 Arasse, contudo, prefere se ater a um termo já corrente no Quattrocento, e insistirá na “comensurabilidade” dessa técnica. Sendo assim, em suas palavras, a perspectiva instaurava um mundo comensurável ao homem. Antes de se chamar perspectiva, ela se chamava commensuratio, ou seja, a perspectiva é a construção de proporções harmoniosas no interior da representação em função da distância, tudo isso levando-se em conta a pessoa que observa, o espectador. O mundo

45 Assim como o relógio mecânico tratava de mensurar o tempo, diz Daniel Arasse em Histoire des peintures (2004, p. 68), a cartografia e a técnica da perspectiva tratavam de mensurar o espaço. 46 Pierre Francastel, Pintura e sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990. 47 Ao refletir sobre a obra de Panofsky, Daniel Arasse (2004, p. 65) conclui que a perspectiva, tal como entendida pelo historiador da arte alemão, seria a forma simbólica de um mundo em que Deus estaria ausente, posteriormente identificado com o mundo cartesiano da matéria infinita.

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tornava-se então comensurável ao homem. Não que o mundo fosse infinito, pois a questão do infinito ou do finito não era colocada na época, mas antes comensurável ao homem, e a partir de então o homem poderia construir uma representação verdadeira de seu ponto de vista.48

A contradição diagnosticada por Daniel Arasse pode ser formulada agora com mais precisão: como a técnica da perspectiva, forma simbólica de um mundo comensurável, poderia figurar a chegada do Incomensurável? Mesmo se nos ativermos apenas à iconografia do Quattrocento toscano, quando se consolidou a técnica da perspectiva monocular, a maioria das pinturas da Anunciação, segundo Arasse, ignorava esse paradoxo. Ainda assim, cientes desse problema de representação, muitos outros pintores buscaram soluções figurativas para resolver o impasse. As obras selecionadas ao longo do livro de Arasse, algumas delas mencionadas neste capítulo, são fruto de um trabalho perfeitamente consciente de suas implicações teológicas. Essa é a aposta do autor, com a qual compactuamos. Dando continuidade aos trabalhos de John Spencer e Hubert Damisch, Arasse desenvolve a questão sob um viés mais histórico do que antropológico. Tal abordagem, com a qual ele conduz sua investigação, não simplifica em nada a pesquisa. Em vez de buscar uma síntese composicional para esse problema de representação, Arasse opta por fazer uma análise obra a obra, buscando em cada caso – no brilho interior de cada pintura – uma brecha figurativa para a inscrição de Deus no mundo representado.

48 Daniel Arasse, 2004, p. 67.

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Alguns pintores encontrarão um meio de figurar a Encarnação por uma desordem da perspectiva. Algo que está em perspectiva, mas que escapa a ela, que é incomensurável à perspectiva, e é evidentemente Deus se encarnando.49

A “desordem da perspectiva”, portanto, teria sido a forma encontrada por alguns pintores renascentistas para representar o que escapava ao mundo comensurável: Deus. Após constatar essa brecha figurativa, Arasse vai ainda mais longe. Em suas análises de importantes Anunciações renascentistas,50 ele defende que a perspectiva regular era usada como “um instrumento figurativo” que permitia, justamente, “dar figura à chegada da Divindade no mundo humano”.51 Dito de outra forma: exatamente por ser uma técnica que consistia em inscrever os elementos em quadro numa ordem comensurável ao homem, a perspectiva foi trabalhada por alguns artistas com o propósito de figurar a chegada do invisível e do incomensurável no mundo da visão e da medida. Inicialmente apresentada como irreconciliável com o tema da Anunciação, a perspectiva torna-se aqui justamente a solução para essa questão. A razão é simples. Lembremos da célebre síntese para o problema da Encarnação, formulada na primeira metade do século XV pelo

49 Daniel Arasse, 2004, p. 78. 50 Ganha destaque em suas análises a Anunciação pré-renascentista de Ambrogio Lorenzetti, de 1344. Segundo o levantamento de Panofsky, trata-se talvez da primeira representação de uma Anunciação em perspectiva. Essa importante Anunciação, ainda sob a influência de Giotto, teria antecipado em cem anos algumas das soluções encontradas em pinturas de meados do século XV, como, por exemplo, as duas que analisaremos a seguir, de Domenico Veneziano (1445) e de Piero della Francesca (1470). 51 Daniel Arasse, 2010, p. 51.

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pregador franciscano São Bernardino de Sena: o mistério da Encarnação corresponderia ao momento em que “a eternidade é reduzida no tempo, a imensidão na medida, o Criador na criatura, o não figurável na figura, o inefável na palavra e a não circunscrição no lugar, o invisível na visão, o inaudível no som”.52 Sendo o próprio mistério da Encarnação uma longa sequência de oximoros, que forma melhor de figurar o não figurável senão por uma falha na perspectiva, por um erro intencional no desenho das linhas de fuga, provocando assim uma figura rebelde e alheia ao primado da razão e da medida? Essa é a aposta de Arasse em algumas de suas análises. Na Anunciação de pequenas dimensões de Domenico Veneziano, percebe-se um trabalho cuidadoso na construção da arquitetura palaciana onde se passa a cena do Anúncio. Fruto de uma composição simétrica e harmoniosa, a perfeição desse painel está “à imagem da perfeição da Virgem”.53 Tudo na cena parece meticulosamente organizado e controlado segundo uma lógica geométrica. Nota-se também a centralidade da porta localizada no final de um corredor bem no hiato entre as duas figuras. Arasse aponta para o fato de que o grande destaque dado à porta, pintada no fundo do quadro com muita solidez, possui a função que costuma ser atribuída à coluna de mármore. Além de provocar a cesura no eixo transversal do quadro, a porta esconde o ponto de fuga da pintura. Ela está no centro da composição, atravessada justamente pelo eixo central da perspectiva.

52 Bernardin de Sienne, Pagine Scelte. Milão: Vita e Pensiero, 1950, p. 54. 53 Daniel Arasse, 2004, p. 80.

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Domenico Veneziano, Annunciazione, 1445, painel, 27 x 54 cm, Museu de Fitzwilliam, Cambridge, Inglaterra

Em sua análise do painel, Arasse contextualiza o significado da porta no Quattrocento toscano. Primeiro, o autor associa a imagem da porta como figura da Virgem (o acesso por onde Jesus entrou no mundo); em seguida, relembra uma frase dita por Jesus no Evangelho de João (“Eu Sou a porta. Qualquer pessoa que entrar por Mim, será salva”)54 para concluir que a porta de Veneziano, ao condensar a figura de Cristo com a da Virgem, faz uma “alusão iconográfica ao mistério invisível da Encarnação”.55 A análise de Arasse enfatiza ainda um pequeno detalhe que determinará o sentido teológico do painel de Domenico Veneziano. Em comparação com o aspecto solene da arquitetura palaciana, o trinco da porta no fundo do quadro se revela inverossímil, frágil e muito pequeno. Além disso, as dimensões dessa porta se mostram desproporcionais em relação aos objetos situados em primeiro

54 João 10:9. 55 Daniel Arasse, 2004, p. 80.

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plano. O pintor teria voluntariamente cometido esses desvios e provocado uma incoerência na proporção do desenho para assim figurar o mistério da Encarnação.56 A forma encontrada por Veneziano de inscrever o incomensurável foi, portanto, pela brecha na perspectiva, pela desproporcionalidade da porta no fundo do quadro. A porta, figura da Encarnação, se mostrou insubmissa ao primado da razão e da medida; ela escapa à comensurabilidade da técnica da perspectiva. Por meio da deformação da perspectiva bem no coração de seu painel, justamente onde incide o ponto de fuga, Veneziano consegue figurar a Encarnação e restaurar o sentido da Anunciação cristã. Ao longo de L’Annonciation italienne: Une histoire de perspective, Arasse se apoia em alguns casos de “desordem” ou “desproporção” – entre os quais o painel de Domenico oferece apenas um dos exemplos possíveis – para concluir que o uso que se fazia da técnica da perspectiva determinava o sentido teológico da Anunciação. Arasse repete o aforismo de Hubert Damisch, segundo o qual “a perspectiva não apenas mostra, mas pensa”,57 e afirma, num outro momento do texto, que a perspectiva “permitia a alguns pintores, que eram também um pouco teóricos, propor pensamentos de pintura absolutamente admiráveis”.58 Vejamos um segundo exemplo analisado por Arasse. Na Anunciação a seguir, que corresponde à parte superior do políptico de Santo Antônio, podemos verificar a ênfase dada ao longo corredor de colunas, marcado por uma extensa profundidade do campo visual. No fundo desse corredor, grande destaque na com-

56 Daniel Arasse, 2004, pp. 35-38. 57 Hubert Damisch apud Daniel Arasse, 2004, p. 64. 58 Daniel Arasse, 2004, p. 80.

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posição, encontra-se um imponente bloco de mármore. A pintura é de Piero della Francesca, aluno de Domenico Veneziano. Esta Anunciação, feita cerca de 25 anos após o painel de Veneziano, parece retomar algumas das questões anteriormente analisadas. Tal como o primeiro havia feito com a porta, o segundo realiza um truque no desenho do bloco de mármore, que provoca o efeito de fazê-lo parecer mais próximo do que realmente está. Àquela distância, diz Arasse, seria impossível ver a pedra com tantos detalhes, com os sulcos do mármore tão nitidamente desenhados. Situado bem no hiato entre o Anjo e a Virgem, o bloco de pedra é também, tal como a porta de Veneziano, uma figura da Encarnação. O desvio intencional provocado por Della Francesca bem no meio da composição, justamente no ponto de incidência das linhas de fuga, corresponderia ao seu desejo de representar o mistério da Encarnação. Mais uma Anunciação, portanto, que teria obtido êxito em figurar o “incomensurável na medida”, justamente pela distorção da técnica da perspectiva. Há ainda um segundo truque no desenho de Piero della Francesca. Uma análise detida na edificação onde se passa a cena nos permite verificar que há uma massa de colunas bem na frente da Virgem. Daniel Arasse observa: se o Anjo levantasse a cabeça e tentasse olhar a Virgem, ele não teria acesso ao seu rosto. Invisível ao “olho sensível” do espectador, a coluna que se encontra bem no meio das duas figuras (escondida na longa fileira de colunas do lado direito) é apenas intuída pelo “olho do intelecto” do espectador. Não se trata de uma visão direta, imediata. É somente pela inteligência do espectador, disposto a restituir a configuração arquitetônica do edifício (assumindo, assim, o papel de “agente investigador”, como diz Arasse), que o segredo do pintor é revelado. E esse segredo, dirá mais uma vez o autor, corresponde justamente ao mistério da Encarnação de Deus no mundo dos homens. A

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Piero della Francesca, Políptico de Santo Antônio (detalhe), 1470, óleo sobre madeira, 338 x 238 cm, Galeria Nacional da Úmbria, Perugia

coluna, afinal, era um dos símbolos mais frequentes de Cristo59. Assim, escondida atrás de uma composição cuidadosamente arrumada, erigida sob o signo de uma coluna de mármore, a figura da Encarnação é enfim revelada. Feita essa digressão sobre alguns aspectos gerais da iconografia da Anunciação, na qual privilegiamos o eixo da perspectiva, veremos agora como alguns filmes retrabalharam esses motivos pelos meios expressivos do cinema. O uso da profundidade de campo ganhará destaque nas análises fílmicas. O principal ponto a se notar é que, diferentemente dos artistas renascentistas citados, os realizadores herdaram sem qualquer esforço o enquadramento em

59 Daniel Arasse, 2010, p. 42.

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perspectiva. Como lembra Alain Bergala, “a perspectiva não foi uma conquista, ela é dada de antemão pela câmera, pelas objetivas: a continuidade do espaço não é construída, já que o cineasta capta seus planos de um espaço do mundo, que lhe é contínuo”.60 Embora elementar, esse princípio fundamental determinará a forma como os cineatas se apropriarão dessa herança iconográfica. Enquanto os pintores optaram pelo uso voluntário de distorções no centro da composição (exatamente onde incidiam as linhas de fuga da perspectiva), os realizadores mantiveram mais ou menos intactos os códigos da perspectiva monocular. Embora seja possível provocar enormes distorções com a câmera de cinema (pela manipulação da distância focal da lente, por exemplo), não parece ter sido esse o caminho escolhido pelos realizadores selecionados para este capítulo. Analisaremos a seguir dois filmes que encontraram maneiras de encerrar seus personagens em um mundo fechado. As janelas se revelam um elemento de interdição, limitando a área de incidência da perspectiva. Não por acaso, aliás, esses dois filmes terminarão, respectivamente, com a imagem de uma vista sem horizonte e com a janela sendo fechada. Indesejada segundo os propósitos de cada realizador, a profundidade de campo será descartada por estratégias composicionais ou narrativas distintas.

2.1. Bloco de mármore As sombras (Les Ombres, 1982), assim como outros filmes do início da carreira de Jean-Claude Brisseau, se passa em um complexo

60 Alain Bergala, 2015, p. 224.

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habitacional no subúrbio de Paris. A região já havia despertado o interesse do realizador francês em um curta-metragem do mesmo ano, L’Échangeur (1982),61 e em seu longa de estreia, A vida como ela é (La Vie comme ça, 1978), que tematizava o absurdo e a violência extremada desses condomínios. Pela falta de um projeto urbanístico que promovesse um espaço de encontro entre os moradores, característica muito enfatizada por todos esses filmes (na arquitetura dos prédios, no esvaziamento das áreas comuns, no comportamento indiferente das pessoas), o índice de suicídio nos complexos habitacionais é altíssimo. Em A vida como ela é, Brisseau tematizava justamente esse problema, assim como a burocracia labiríntica do mundo corporativo, dando ao filme um tom tragicômico dissonante do restante de sua filmografia. O longa-metragem As sombras, realizado no contexto da série televisiva “Telévision de chambre” (1982-84), conta a história de uma família que reside num pequeno apartamento situado num enorme complexo habitacional. Exceto pela cena dos créditos iniciais, na qual uma adolescente (Nathalie) caminha pelo pátio esvaziado do condomínio, todo o restante do filme se passa no interior do apartamento. A única interação com a vizinhança se dá pela banda sonora do filme, na qual se ouvem com frequência os gritos de outros moradores. Entre os quartos do apartamento, o trânsito de ruídos é também constante – motivo de desespero da mãe de Nathalie, Christine, que não consegue trabalhar com o barulho. O seu sonho fantasioso de um dia se tornar estrela de cinema passa necessariamente pelo privilégio da privacidade. Nathalie, por sua vez, não tem esse privilégio. Seu quarto não possui portas e apenas uma cortina o separa da sala de estar, de onde

61 Curta-metragem que integra um longa coletivo, feito para a TV, intitulado Les Contes modernes: Au sujet de l'enfance (1982).

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se travam inúmeras brigas e disputas territoriais. Ela cresceu ali e já se acostumou com a confusão do apartamento. Sempre com um livro na mão, tentando conciliar o mundo imaginativo ao mundo prático, segue com suas reflexões literárias em meio ao caos doméstico. O privilégio do isolamento tampouco é concedido a Pierre, o pai de Nathalie. Além de trabalhar pesado em uma usina metalúrgica, ele ocupa o lado mais frágil de uma relação de poder que o obriga a dormir na sala sempre que a esposa está de mau humor. Enquanto a tirana Christine não está em casa, a TV da sala está liberada para Nathalie compartilhar com seu pai o gosto por filmes em volume alto. A relação entre os dois é bonita. Pierre e Nathalie estão sempre juntos. Ao contrário do irmão mais velho, omisso e sempre apressado, Nathalie se envolve com os problemas familiares e sempre protege o pai contra os abusos da esposa. O próprio tipo físico de Nathalie, em comparação com a magreza de sua mãe, já a aproxima do pai operário. Não bastasse a clausura do próprio espaço que serve de cenário ao filme, todas as cenas exteriores ao apartamento são elipsadas por uma mise en scène interessada em oferecer ao espectador a experiência do confinamento – razão pela qual não seria difícil imaginar As sombras sendo adaptado aos palcos teatrais. Após nos oferecer uma encenação forçosamente teatral, o mundo encerrado no interior de uma caixa cênica, com abundante predomínio do plano conjunto, toda a espessura desse mundo é finalmente liberada no final do filme, com a aparição do anjo Nathalie.62 O referido plano, ilustrado no terceiro fotograma da sequência a seguir, não nos parece de forma alguma arbitrário, trata-se de uma fratura

62 Tal como no poema Apparition, de Victor Hugo, lido por Nathalie no início do filme, o anjo de As sombras é também do gênero feminino. Nesse caso, uma adolescente com traços ainda infantis.

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intencional em relação ao restante do filme. Em primeiro lugar, pela angulação e pela iluminação: além de ter sido filmado num estranho e dissonante contra-plongée, o plano parece banhado por uma luz um pouco estourada. Em segundo lugar, pela escala. Filmado em close-up lateral (mais próximo do que o restante do filme), o referido plano anuncia a chegada do anjo que irá salvar Pierre do iminente suicídio.63

Voltemos ao início da cena. Após ter sido abandonado pela

63 O fascínio de Brisseau pela figura do anjo se revela na profusão de aparições em boa parte de sua obra, como, por exemplo, em O som e a fúria (De Bruit et de fureur, 1988), Coisas secretas (Choses secrètes, 2002), Os anjos exterminadores (Les Anges exterminateurs, 2006), e A garota de lugar nenhum (La Fille de nulle part, 2012) etc.

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Voltemos ao início da cena. Após ter sido abandonado pela esposa, Pierre se posiciona diante da janela do apartamento, despertando em Nathalie a suspeita da intenção de suicídio. A essa altura do filme, após algumas menções a vizinhos que se defenestraram, um simples plano da janela já possui, por si mesmo, a significação da Morte. A janela escancarada é um chamado, uma espécie de appel du vide. A simples mudança de escala, do plano conjunto para um plano mais próximo, conforme se vê nos dois fotogramas da página anterior, já sugere o seu estado mental. É nesse momento, na iminência do pulo, que subitamente aparece Nathalie em contra-plongée. “Se você pular, terá que me levar junto com você”, ela diz ao pai. Desconcertado pelo duro comentário da filha caçula, Pierre recua e se senta diante dela para conversar. Neste momento, conforme se pode verificar no fotograma a seguir, recria-se a célebre configuração espacial do motivo da Anunciação cristã.

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Há no filme de Brisseau quantidade suficiente de índices materiais que apontam para a intencionalidade da referência iconográfica. As semelhanças, afinal, não se esgotam no mero arranjo composicional da cena. Além da posição da câmera, de perfil em relação aos personagens, seus gestos confirmam a comparação: Nathalie, figura do Anjo Anunciador, encontra-se ajoelhada; enquanto Pierre, que recebe a palavra inspirada da filha, está em posição mais elevada, com a cabeça voltada para baixo.64 No fundo do quadro, a presença ostensiva da janela indica haver uma consciência dramatúrgica e uma intenção plástica de recriar a cena. O vaso de planta no canto direito do quadro, muito associado ao lado do Anjo Gabriel na iconografia da Anunciação, completa a simbologia do episódio. Trata-se do uso supostamente intencional de elementos tomados de empréstimo dessa importante iconografia. Mais que isso: supõe-se que o diálogo com a Anunciação cristã dê um novo sentido à cena final. Após a conversa com o pai, Nathalie segue até a varanda do apartamento e observa calmamente a vista da janela. A janela da casa, até então vista sob o signo da Morte, enfim se livra da conotação estabelecida. O filme termina de forma um tanto enigmática, com Nathalie de costas para a câmera observando a vista. Importante ressaltar que, além de corresponder ao último plano do filme, o fotograma a seguir ganha ainda mais destaque pela operação de congelamento da imagem, freeze frame, fazendo passar sobre ela os créditos finais.

64 A posição ocupada pelos dois personagens, Nathalie do lado direito e Pierre do lado esquerdo, está invertida em relação à iconografia clássica. Curioso também que as figuras da Virgem e do Anjo sejam atribuídas, respectivamente, ao pai e à filha. Embora não seja a nossa intenção entrar nesse aspecto, rico em implicações psicanalíticas, há aqui uma nítida subversão do episódio bíblico.

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O que vemos no fotograma acima? Para além do bem-estar provocado pelo contexto da cena, logo após o diálogo reconciliatório entre pai e filha, o que a imagem em si parece dizer? Vestida com um pijama cor de rosa e de costas para a câmera, Nathalie observa a vista da janela. Mas, afinal, o que ela vê? Qual é o horizonte da imagem? O que o futuro reserva de agora em diante para Nathalie e seu pai? A resposta a essas perguntas deve ser buscada na própria imagem. Ela se notabiliza, em primeiro lugar, pela falta de volume e pela economia de elementos. De fato, o que vemos no fundo do quadro, do ponto de vista de Nathalie, é um grande céu nublado. Um fundo cinza, homogêneo, chapado contra a silhueta da garota. No momento do Anúncio, enquanto se ajoelhava diante de seu pai, Nathalie conta um sonho que havia tido na noite anterior. Era um sonho sobre um vagabundo – uma espécie de profeta de rua

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com inclinações neoplatônicas – que tentava alertar os transeuntes, conformados em perseguir as sombras, para a beleza do mundo. “Tudo é amor, tudo é graça”, dizia o vagabundo. Ao fim do diálogo, antes de seguir para a janela, Nathalie diz: “Foi estranho esse sonho. O que isso significa ‘tudo é amor, tudo é graça’?” As últimas palavras de Nathalie decerto fazem referência ao final da novela de Georges Bernanos, Diário de um pároco de aldeia (1936), mas talvez se refiram também (e mais particularmente) à adaptação cinematográfica de Robert Bresson, cuja imagem final – em sua síntese e abstração – parece igualmente ser aqui evocada.

Diário de um pároco de aldeia (Journal d'un curé de campagne, 1951), de Robert Bresson

O que essas duas imagens têm em comum? Para além do fato de serem os planos finais dos respectivos filmes – que, aliás, também terminam com a mesma citação de Bernanos, “tudo é graça” –, as

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duas imagens têm em comum a sobreposição de um único elemento em um fundo sem qualquer volume ou definição: a sombra da cruz no filme de Bresson e a figura do Anjo no de Brisseau. Em Diário de um pároco de aldeia, a trajetória do padre de Ambricourt é uma linha reta: ele vai definhando cada vez mais até perder as forças e finalmente morrer. As práticas ascéticas do padre o conduzem ao “tudo é graça” na mesma proporção em que o enfraquecem até a morte. No final do filme, após uma linha ascendente rumo à santidade, a solução encontrada por Bresson para figurar sua morte é justamente a sombra projetada da cruz. Assim como a voz desencarnada que lê a carta ao final do filme, a imagem também não possui corpo. A cruz é um símbolo, já não possui materialidade alguma. É dessa forma, portanto, beirando a pura abstração, que Bresson decide representar o final do longo calvário do padre de Ambricourt. No filme de Brisseau, igualmente, a economia e a concisão da imagem parecem ser trabalhadas com o propósito de expressar a trajetória de Nathalie. Após passar o filme inteiro absorvida por preocupações de ordem prática, como a falta de dinheiro dos pais, o conserto da máquina de lavar, a lista de compras do mercado, a greve na fábrica do pai etc., em meio ao caos doméstico de uma família em processo de autodestruição, Nathalie finalmente encontra a paz. No momento do Anúncio, pela primeira vez Nathalie consegue dar vazão a seus pensamentos. As palavras dela, para a surpresa do seu pai, se revelam altamente reflexivas. Diante da mais absoluta falência de Pierre, a adolescente encarna o Anjo cujas palavras iluminadas anunciarão o destino dos personagens. Nathalie diz: “Nós nunca prestamos atenção ao sol. No entanto, ele está sempre lá. É bonito.” Embora enalteça a beleza do sol, o que Brisseau nos mostra, contraditoriamente, é o céu nublado. O filme trabalha em cima de uma tensão entre o mundo sensível e

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o mundo inteligível. A começar pelo título, As sombras, o filme tematiza a beleza encoberta pela aparência. Trata-se, portanto, de uma valorização do mundo espiritual, não deflagrado pela superfície das coisas. Após o Anúncio, Nathalie segue até a janela para olhar a vista da cidade. Mas, afinal, o que ela vê? A contar pela imagem final do filme, o estado de graça em que se encontra não se converte em um elogio à exterioridade. Decerto não é um mundo amplo e perspectivado que Nathalie observa de sua janela. Ela certamente não está diante de uma vista límpida, cartográfica, do lugar em que habita. Em um plano sem qualquer referência à cidade, chapado contra um céu que mais parece uma parede desfocada, a imagem expressa um fechamento. O céu acinzentado, sem qualquer horizonte, parece uma escolha intencional. A imagem que conclui o filme expressa algo com sua profundidade reduzida. A interdição da perspectiva provocada pelo clima nublado, limitando ao máximo a profundidade do quadro, seria fruto da intenção de encerrar os personagens em um espaço fechado. Tal como no bloco de mármore de Piero della Francesca, o céu acinzentado de Brisseau possui a opacidade de um fundo que encerra o mundo representado em sua própria superfície. Importante notar que, tanto na pintura de Domenico Veneziano quanto na de Piero della Francesca, o fundo do quadro fora trabalhado no sentido de representar um mundo igualmente cerrado. A porta de Veneziano estava fechada e o bloco de mármore de Della Francesca é tão opaco quanto qualquer outro bloco de pedra. Os longos corredores que davam acesso à porta e ao mármore abriam caminho para o eixo central (ou ponto de fuga) ser posteriormente interrompido por essas duas figuras de interdição. Assim como no filme de Brisseau, não se trata de dar vista a um

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pedaço da paisagem, uma veduta que emoldure a natureza pelas bordas da janela, mas sim de enfatizar o próprio material de que era feito esse objeto opaco. Lembremos: Columna est Christus. Ou ainda: “Eu Sou a porta”.65 Enquanto Nathalie observa a vista da janela, Brisseau insere a Grande missa em dó menor, de Mozart, talvez em referência a um outro filme de Robert Bresson, Um condenado à morte escapou (Um Condamné à mort s’est échappé, 1956). Mas, ao contrário do desfecho no filme de Bresson, a salvação aqui não se encontra na fuga, na evasão, e sim na reconciliação com o mundo interior. Embora As sombras termine com a vista de uma janela aberta, a imagem que conclui o filme não expressa um acerto de contas com o espaço ao redor (numa revalorização da noção de comunidade, por exemplo), mas o reencontro com certa dimensão espiritual de cada um. O sentido original do episódio cristão se mantém preservado. Como em toda Anunciação, trata-se de um renascimento: o recomeço de uma vida espiritual encantada pela ação do Espírito Santo.

2.2. Angélica! O estranho caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira, é inteiramente povoado por motivos que remetem à Anunciação. Inúmeros reflexos iconográficos ecoam e se multiplicam de forma reiterada ao longo do filme, ainda que todos pareçam subordinados ao Anúncio originário, que corresponde ao momento em que, ainda no início do filme, o fotógrafo Isaac é chamado para

65 João 10:9.

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fotografar o cadáver de uma jovem mulher chamada Angélica.66 No instante em que se prepara para fazer o retrato, após encontrar a luz e o enquadramento ideais,67 Isaac vê pelas lentes de sua câmera Angélica abrir os olhos e sorrir. O sorriso de Angélica, privilégio reservado ao artista, posteriormente irá assombrá-lo numa sequência interminável de ecos da Anunciação, tendo sempre a janela como mediação entre a figura do Anjo e a da Virgem. A janela, de fato, é um elemento muito recorrente ao longo do filme, sendo que esse Anúncio matricial também terá como mediação uma espécie de janela: a da câmera fotográfica, emoldurada pelo desenho das bordas do visor.68

66 Conforme a prática da fotografia mortuária, ainda em vigor no início do século XX. Embora se passe nos dias de hoje, o filme possui esses engraçados anacronismos; em parte, justificados pelo fato de o roteiro de O estranho caso de Angélica ter sido escrito mais de cinquenta anos antes das filmagens, mas decerto também por uma opção de Oliveira, mantendo deliberadamente essas incongruências temporais. 67 Há uma intenção de registro com propósitos artísticos. Como veremos mais adiante, é o senso estético de Isaac (marcado pelo desejo de fotografá-la sob o melhor ângulo, na distância focal ideal, com a melhor iluminação possível) que posteriormente deflagrará sua obsessão, conduzindo-o a uma longa espiral pela qual será tragado e absorvido. 68 A figura do Anjo Anunciador só se revelará plenamente para Isaac, abrindo os olhos e sorrindo para ele, por intermédio de um dispositivo óptico: a câmera fotográfica. É o olho de vidro da câmera que filtrará a realidade e tornará possível ver o sorriso de Angélica. Porém, em nossa leitura do filme, a ênfase é dada menos ao aparato fotográfico enquanto suporte do que enquanto janela. A principal mediação para as visões de Isaac será a janela e outros elementos visuais que dão profundidade ao fundo do quadro, como portas, corredores etc.

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Embora Oliveira mantenha o tom geral do filme numa chave cômica, bem-humorada, O estranho caso de Angélica é repleto de oposições graves. O corpo e a alma, a vida e a morte, a realidade e o sonho, o terreno e o celestial, o velho e o novo, o manual e o maquínico,69 o cristianismo e o judaísmo,70 a matéria e a antimatéria71 formam uma série interminável de dualidades que cria terreno fértil para as obsessões de Isaac. Aderindo a elas, o filme adotará o motivo da janela para dar visibilidade às oposições estabelecidas, como representação visual de uma zona limítrofe. Oliveira trabalhará a iconografia da Anunciação de forma decantada, essencializando-a em um simples cruzamento de vetores transversais. Para recriar e multiplicar o motivo do Anúncio, graças a seu uso contínuo e reincidente, bastará fazer coincidir dois eixos perpendiculares: o eixo da interação entre dois personagens, que pode ou não ser uma conversa; e o eixo da janela (podendo ser substituída por portas, estradas e corredores), que servirá de incidência para a perspectiva na profundidade de campo.

69 Essa dualidade, como veremos a seguir, é expressa num dos temas que fascina Isaac: a fotografia de camponeses no cultivo da uva. Em uma conversa com a dona da pensão onde mora, Isaac defende que seu interesse por essa atividade manual se deve à sua iminente substituição pelas máquinas. 70 Enquanto a família de Angélica é católica, Isaac é um judeu sefardita. Essa diferença é tematizada assim que Isaac chega na residência de Angélica para lhe tirar a foto mortuária. Percebe-se um evidente mal-estar quando lhe perguntam seu nome. 71 Essa dualidade é evocada no café da manhã da pensão em que Isaac mora. Durante uma divertida conversa entre três intelectuais, é citado um compêndio científico (Os sete mosquitos do Apocalipse), claramente fictício, segundo o qual a matéria e sua equivalente antimatéria, ao se encontrarem, “fundem-se num abraço que se transforma na mais pura essência: energia”. A intelectual brasileira completa: “a matéria não é mais que uma forma de espírito”, no que Isaac, fascinado pelo que ouve, retruca em voz baixa: “Energia... espírito... Angélica!”.

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O fotograma da esquerda corresponde a uma cena em que Isaac dialoga com a dona da pensão onde ele vive. Em referência clara ao episódio evangélico, ela lhe entrega uma tulipa branca.72 No fundo do quadro, vemos uma porta aberta. Tal como a janela, ela possui a função de provocar uma abertura no eixo da perspectiva, trazendo profundidade ao fundo do quadro. Na parte de cima do fotograma selecionado, penduradas no varal de Isaac, vemos alguns retratos de Angélica nitidamente separados de algumas fotografias em preto e branco. Mais adiante, numa cena estranhamente perturbadora, vemos um travelling do varal com as fotos da defunta embaralhadas sem distinção com as fotos de camponeses trabalhando no cultivo manual da uva (outro tema que desperta o fascínio de Isaac). O fotograma da direita mostra um momento desse travelling em que as duas obsessões de Isaac convergem no mesmo quadro. Como explica reiteradamente para a senhoria, seu interesse pelos camponeses deve-se justamente ao fato de que aquela atividade manual estava à beira da extinção, prestes a ser superada pelas máquinas.73 O que interessa a Isaac são as zonas limítrofes entre duas ideias antagônicas: nesse caso, aquilo que separa o trabalho manual do

72 O lírio, um dos símbolos mais recorrentes na iconografia do Quattrocento, é citado na epígrafe do filme, um poema de Antero de Quental. 73 Posteriormente, numa cena em que os efeitos sonoros são trabalhados de uma maneira intensificada, vemos a brutalidade de um trator fazendo o trabalho que outrora era feito pelos camponeses. A bonita canção entoada pelos trabalhadores, que posteriormente será recuperada nos créditos finais, cede seu lugar ao som incômodo de máquinas.

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maquínico, o velho do novo etc. A obsessão de Isaac, como veremos a seguir, relaciona-se justamente com as representações visuais dessa fronteira, com os motivos formais que ilustram a ideia. Nas fotografias dos camponeses, por exemplo, observa-se sempre o cabo da enxada demarcando claramente esse limite (como se pode ver no fotograma da página anterior, trata-se de uma figuração dessa fronteira que tanto obseda Isaac). Após a visão deflagradora do sorriso de Angélica, o Anúncio originário, Isaac é condenado a ver o mundo sob o signo da dualidade e do formalismo. No centro disso tudo está a cisão que o afasta de Angélica, que é exatamente o que o separa da morte e o mantém vivo.

O fotograma acima corresponde a um sonho de Isaac. A imagem em preto e branco é usada para diferenciar o sonho da realidade, e o aspecto translúcido atribuído à Angélica – apenas a ela – se deve à necessidade de distinguir o fantasma do mundo concreto. Na imagem onírica acima, Angélica e Isaac estendem os braços um em direção ao outro. Eles almejam se tocar. Mas, como é de se esperar, a distância que os separa se revelará intransponível. Esse fotograma ilustra bem a forma concisa com que Oliveira parece

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retrabalhar a iconografia da Anunciação. A essa altura do filme, para evocar esse motivo, basta que dois personagens estejam alinhados no mesmo eixo e que, perpendicularmente a ele, se faça incidir a profundidade de campo (marcada aqui pela janela ao fundo). Com uma grande economia de meios, Oliveira consegue retomar em seu cinema, de forma bastante peculiar, o encontro do Anjo com a Virgem. Nesse caso particular, por se tratar de um sonho que instiga a imaginação de Isaac, o Anúncio tem o sentido de um chamamento – um convite à morte. Como veremos mais adiante, a fascinação do fotógrafo pela imagem de Angélica o obsedará até o fim de sua vida.

Os dois fotogramas acima compartilham de um mesmo princípio: fazer pequenas referências leves e bem-humoradas ao motivo da Anunciação. Na imagem à esquerda, vemos uma Anunciação entre um gato e um pintassilgo. Após o término da conversa entre Isaac e a dona da pensão, os dois saem de quadro e Oliveira mantém o plano esvaziado com o gato a olhar fixamente para a gaiola em que se encontra o pássaro. Os dois animais, pela disposição espacial e pela presença da janela ao fundo, remetem à Anunciação. Mais adiante veremos que, na cabeça de Isaac, o pintassilgo é um equivalente cômico da pomba que simboliza a ação do Espírito Santo.74 Assim como o ramo de flor branca (outro elemento 74 A cena do sonho de Isaac deixa essa analogia clara. Tal como Angélica, o pássaro entra em seu quarto pela janela.

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constante ao longo de todo o filme), o pássaro também ganha um simbolismo associado à Anunciação. Já no fotograma da direita, num gesto banal e desimportante, o motivo é retomado no contato entre Isaac e o mendigo da igreja. Trata-se de uma Anunciação muda, em que a troca não é feita pela palavra, mas pela transação financeira. Presença constante ao longo do filme, o mendigo está sempre diante da igreja, estendendo as mãos para receber algum trocado. O personagem não tem nenhuma profundidade, apesar de ser retratado com humor. Nesse momento, assim como em tantos outros em que não se leva muito a sério, Oliveira permite esse tipo de referência bem-humorada. Importante notar que a onipresença de janelas, portas e corredores se deve à afinidade desses elementos com a iconografia da Anunciação. Embora Daniel Arasse dê destaque em suas análises aos casos de interdições no eixo da perspectiva, é evidente que a coincidência de janelas nessa importante iconografia tinha um papel diferente em muitas outras pinturas. Como foi dito no início deste capítulo, mesmo se limitarmos a análise das Anunciações ao Quattrocento toscano, a maioria das pinturas ignorou o paradoxo constatado por Daniel Arasse. Em artigo sobre as simbologias da iconografia da Anunciação, Luís Alberto Esteves Casimiro dedica parte de sua reflexão às particularidades das janelas e das vedutas. Segundo ele, a janela aberta simbolizaria a “receptividade” e o “consentimento” da Virgem à mensagem divina transmitida pelo Anjo. [...] a janela, em si mesma, enquanto constitui um vão aberto, simboliza receptividade, aspecto inerente ao anúncio efectuado pelo Anjo. Efectivamente, a atitude receptiva de Maria é um aspecto a

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destacar dado que tem como resultado o acolhimento da mensagem divina transmitida pelo Anjo e culmina com a proclamação do seu consentimento: Fiat mihi secundum verbum tuum, de enormes consequências para a Humanidade.75

Como veremos a seguir, contudo, não é esse o caminho adotado por Manoel de Oliveira. Em O estranho caso de Angélica, as janelas não permanecerão abertas. Uma vez evocado e multiplicado o motivo da Anunciação, cujos elementos propulsores serão as janelas e as portas, Oliveira tratará de erigir uma barreira que impeça o trânsito livre entre os lados de dentro e de fora. As janelas revelam-se, assim, opacas e intransponíveis. Veremos a seguir alguns truques e estratégias narrativas adotadas por Oliveira para resolver o paradoxo entre o tema da Anunciação e essa abertura por onde se teria acesso ao mundo de lá. Mostrada a reincidência da Anunciação, ecoada de forma fragmentada ao longo do filme, analisaremos mais cuidadosamente a última sequência, que corresponde ao momento em que, tomado pelo delírio, Isaac tenta atravessar a fronteira que o separa de Angélica. Após a morte do pintassilgo, Isaac sai desesperado da pensão atrás de Angélica, correndo de um lado ao outro do quadro. Ao chegar à igreja, contudo, encontra um portão gradeado que o impede de entrar. Ele grita em desespero: Angélica! Como se pode ver nos fotogramas a seguir, uma cena idêntica a essa já havia se passado antes, no portão do cemitério em que Angélica fora enterrada. O estranho caso de Angélica é um filme cíclico, cheio de repetições, e a imagem de Isaac gritando por Angélica é um desses motivos recorrentes. A grade do portão é mais uma figura da

75 Luís Alberto Esteves Casimiro, “Iconografia da Anunciação: símbolos e atributos”. Revista da Faculdade de Letras, Porto, vol. VII-VIII, 2008-09, p. 163.

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interdição. Tal como as tantas janelas e as portas no filme, a grade é o que o separa do Anjo Anunciador, é mais uma materialização da fronteira que o impede de avançar ao encontro de Angélica.

Diante da grade que o impede de atravessar o portão, Isaac dá meia-volta e segue para trás, percorrendo uma estradinha com um ligeiro declive para cima. Essa ladeira encontrada de improviso, mais do que um percurso que o levaria a algum lugar, a uma dada destinação, lhe permitirá acesso a uma profundidade de campo qualquer. Isaac corre para lugar nenhum, com o propósito cego de atravessar a fronteira que o separa de Angélica. Trata-se de um momento no filme em que o personagem parece encerrado no interior do mundo da representação. Tal como nos inúmeros corredores e vedutas da iconografia da Anunciação renascentista, Manoel de Oliveira inclui essa corrida – bem no eixo da perspectiva, vale dizer – apenas para fazê-lo se dirigir para o fundo do quadro. Isaac parece simplesmente tentar superar a cesura espacial pela profundidade de campo. Como era de se esperar, a tentativa não dá certo. Os fotogramas ao lado correspondem à primeira cena da travessia frustrada de Isaac. Após tanto sonhar com Angélica, encontrando-a em seus delírios para além dos limites da janela, Isaac será confrontado com a impossibilidade de realizar essa travessia na vida real. Depois de uma caminhada trôpega por um gramado,

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Isaac desmorona e cai no chão inconsciente. É o prenúncio da cena que se desenrola logo em seguida.

Após ser resgatado por um grupo de crianças, Isaac é levado de volta para a pensão onde mora. Um médico cuida dele. Atrás do médico, do outro lado da janela, Angélica aparece novamente. Assim como nos sonhos e delírios de Isaac, ela é representada em preto e branco, com uma textura brilhosa e translúcida que lhe confere um aspecto incorpóreo. Quando Isaac a vê na janela, ele subitamente recobra a saúde e se levanta em sua direção. Antes de chegar até Angélica, Oliveira realiza uma operação que consiste em separar sua alma de seu corpo. Fazendo uso de um truque à la Meliès, Oliveira resolve o impasse: o corpo desmorona no chão e morre; a alma atravessa a janela e se une ao espírito de Angélica.

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Importante notar que os sonhos de Isaac, assim como os fantasmas de Angélica, não são filmados da mesma forma que os demais elementos – ao longo do filme, há uma distinção nítida entre a realidade concreta e a pura abstração. Além do uso de elementos visuais que figuram essa diferença, de motivos que ilustram o limite entre as dualidades estabelecidas, Oliveira utiliza um efeito que confere um ar etéreo e evanescente a toda e qualquer forma de fantasmagoria. Essa distinção entre corpo e espírito dá visibilidade à fronteira entre a vida e a morte, a matéria e a abstração. Essa operação consiste, em suma, em realçar a barreira intransponível entre esses dois mundos. Como dissemos antes, o filme adere às obsessões do personagem. Isaac é um artista contaminado pelo vírus da diagramação, uma doença que o faz enxergar o mundo de forma enviesada, trocando a imprevisibilidade da realidade vivida pela busca desenfreada de padrões e estruturas. Não é por Angélica que Isaac se apaixona, mas pelos motivos iconográficos que o separam dela. O que o atormenta é o fantasma da forma. Na fábula contada por Oliveira, Isaac é um homem que perdeu o interesse pelo mundo ao alimentar o fascínio cego pela forma das coisas – não pelas coisas em si, mas pela ideia que tem delas. A travessia para o outro lado da janela, obsessão do esteta, terá um preço: a sua morte. Embora a alma de Isaac de fato se encontre com a de Angélica, a travessia para o outro lado da janela – obsessão de Isaac – não se realiza em vida. Após sua morte, com a ajuda de uma enfermeira, seu corpo é recolocado na cama. A dona da pensão o cobre com um lençol branco e coloca uma cruz sobre seu peito. “Que o Santo Deus o tenha em Sua companhia”, diz ela. Em seguida, numa intervenção sonora bem-humorada, Oliveira retoma o canto dos agricultores de vinha. É a trilha sonora de uma atividade já

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superada, extinta. Para concluir o filme, deixando claro que o encontro com Angélica é uma utopia reservada aos delírios da mente, a senhoria segue até a varandinha do quarto e fecha as portas da janela.

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3. Anunciação sem fronteiras

Correspondências (Correspondances, 2007), de Eugène Green, é um dos três curtas-metragens que integram o filme coletivo Memories. Os outros dois são The Rabbit Hunters, de Pedro Costa, e Respite, de Harun Farocki. Trataremos aqui somente do curta de Green, pois os filmes desse projeto coletivo, intitulado Jeonju Digital Project, possuem plena autonomia, sendo o único ponto de contato entre eles, além do suporte digital obrigatório, a relação um pouco vaga com o tema da memória. O projeto fora inicialmente recebido com ceticismo por Eugène Green, que nunca havia filmado em digital. Green sempre fora, desde quando começou a fazer filmes, um grande crítico desse suporte. Em um de seus livros dedicados ao cinema, Présences: Essai sur la nature du cinéma, defende de forma contundente o uso da película. Segundo Green, apenas o cinema analógico consegue apreender a energia vital dos seres e das coisas, já que a tecnologia digital é “desprovida de

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matéria, e não capta energia nenhuma”.76 Supõe-se que essa crença no cinema analógico (crença que acompanha uma intensa dedicação em captar a energia liberada pelas coisas) explique, ao menos em parte, o caráter quase aurático que consegue imprimir aos objetos filmados, o que dá a seus filmes uma qualidade litúrgica equivalente à de um cerimonial religioso. Diante da impossibilidade de filmar em película, já que a proposta desse projeto era justamente a difusão do suporte digital, a solução encontrada por Green foi gravar o curta-metragem inteiramente em interiores. O projeto todo, desde o argumento, fora concebido por um diretor que, além de jamais ter usado uma câmera digital, se esforçara ao máximo para minimizar os efeitos supostamente negativos desse suporte. O fotograma ao lado, que corresponde ao primeiro plano do filme, parece sintetizar a oposição entre seu programa estético e a proposta do Jeonju Digital Project. É evidente a estranheza provocada pela presença simultânea da luz emitida pela chama da vela e o brilho azulado de um monitor de notebook. São qualidades luminosas distintas. Green parece confessar, através desse choque visual, plena consciência do anacronismo e até das contradições que envolvem a realização deste filme. A proposta do filme é simples: registrar um diálogo por e-mail entre dois adolescentes, Virgile e Blanche. O que se vê, ao longo do filme, são imagens inteiramente filmadas nos quartos dos dois; e o que se ouve é o conteúdo dos e-mails, reproduzidos integralmente em voz over – cada personagem empresta a sua voz ao texto que escreve. Quem inicia o contato virtual é Virgile. Após conseguir o endereço de e-mail de Blanche por “uma pessoa que prefere não ser identificada”, Virgile escreve que não para de pensar nela

76 Eugène Green, 2003, p. 241.

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desde que se encontraram alguns dias antes. Os dois supostamente dançaram uma música juntos em uma festa, só que esse contato prévio jamais é mostrado, e Blanche tampouco consegue se lembrar da situação relatada. Virgile tenta, sem sucesso, evocar a imagem do gorro de lã usado por ele no dia, para tentar fazê-la se lembrar de seu rosto. Blanche, contudo, diz que não se recorda de nada. Dessa curiosa situação, Virgile inicia um longo diálogo no qual tenta convencer Blanche a se encontrar com ele pessoalmente. De início resistente à ideia de combinar algo com um estranho, Blanche é gradualmente convencida do contrário, e por fim acaba aceitando vê-lo numa praça pública. O filme termina antes desse encontro, com a câmera apontada para a janela do quarto de Blanche, dando vista para o exterior. Um lento travelling para frente ressalta esse movimento percorrido pelos personagens, de dentro para fora do apartamento. O filme, portanto, trata desse contato virtual entre dois jovens, o amor de um pelo outro ganhando reciprocidade e, por fim, após muito hesitar, a decisão de Blanche de se encontrar com ele presencialmente.

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Enquanto esse longo diálogo em voz over se desenrola, o principal trabalho de encenação consiste em filmá-los em seus respectivos quartos interagindo com objetos pessoais. Esses objetos espalhados ultrapassam a função da decoração ou da ambiência, eles estabelecem com o texto um diálogo constante. O trabalho de Eugène Green faz uma costura orgânica entre o que se vê e o que se ouve, criando um sentido adequado aos propósitos do filme. Assim, enquanto ouvimos as vozes dos personagens conversando, vemos alguns objetos que pertencem a seus respectivos quartos: fotografias, livros, alguns móveis, seus computadores, uma vela, uma rosa, um CD player, um gatinho preto, dois gorros de lã, um cachecol, um manto azul-claro etc. Às vezes esses objetos são filmados isoladamente, em planos detalhes, outras vezes em conjunto com os personagens. Importante ressaltar que, independentemente da escala de cada plano, esses objetos de cena estão plenamente integrados aos respectivos quartos, estabelecendo com o espaço circundante uma relação de pertencimento. Vejamos um simples exemplo de como as imagens do filme são trabalhadas com o texto. Num dado momento do filme, ainda na primeira metade, Virgile diz que pensa tanto em Blanche que ela parece estar ao seu lado como “um fantasma que pode ser visto, mas não possui um corpo”. Nesse momento, em uma suave panorâmica, Green filma de perto o corpo de Blanche. Ela, por sua vez, responde que Virgile é como um fantasma que não pode ser visto, apenas ouvido, pois ela não sabe como é o seu rosto. Nesse exato instante, Green filma pela primeira vez o rosto de Virgile. Nesses dois casos, a relação que as imagens estabelecem com o texto é de complementariedade. A montagem do filme atua no sentido de preencher as lacunas na memória de cada um (o corpo de Blanche, no primeiro caso; o rosto de Virgile, no segundo). Logo

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em seguida, ouvimos Virgile dizer em voz over: “Se você procurar bem, poderá encontrar o meu rosto em sua memória”. A imagem que se segue, o gorro de lã vermelho, estabelece com o texto uma relação mais alusiva. Trata-se, afinal, da peça de roupa que, desde o início do filme, estava associada a ele por sugestão. Virgile ainda reforça: “Esse rosto que você se esqueceu está vendo o seu. Você poderá encontrá-lo se pensar em meu gorro de lã. Você deve tê-lo notado, todo mundo nota”. O filme evolui dessa maneira, seguindo sempre uma lógica relacional entre o texto declamado e a imagem mostrada. Nem sempre, contudo, as imagens que ganham destaque na cena são objetos materiais ou fragmentos dos corpos dos personagens. Num dado momento, Virgile diz que ama Blanche. Ela, porém, diz que não compreende, pois – afinal – eles mal se conhecem. Os dois, então, conversam sobre o assunto. No final, Virgile diz: “Quando sentimos que estamos nos tornando uma ligação entre dois pedaços do mundo, isso faz ressoar algo de visível”. Logo em seguida, Virgile vai até seu CD player e coloca para tocar uma música de Monteverdi. Nos próximos três minutos, os dois personagens serão flagrados em seus quartos como se ouvissem a música e sentissem, na solidão de seus quartos, a presença um do outro. No final dessa sequência musical, uma lenta panorâmica revela, no chão do quarto de Blanche, dois focos de luz solar projetados lado a lado. Logo em seguida, tendo visto a mesma imagem que nós vimos, Blanche dirá que finalmente compreendeu o amor de Virgile. Parece haver ali, nas marcas luminosas, uma confirmação do que Virgile havia dito para ela: os dois focos de luz, ao menos para Blanche, foram decifrados como aquele “algo de visível” que ligaria “dois pedaços do mundo”. O espectador que já conhece alguns filmes de Eugène Green talvez não se surpreenda com a lógica que subjaz a essa maneira de encenar.

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A imagem ilustrada no fotograma acima é trabalhada por Green numa chave cujo sistema – um sistema de signos – foi detalhado em um trabalho anterior.77 O cinema de Green estabelece com o espectador um pacto que consiste em dar aos objetos filmados um forte poder de evocação, sugerindo um sentido que extrapola a significação pura e simples do referente na cena. Para acessar esse sentido outro – não imediato, em todo caso –, é preciso praticar uma decifração sobre as imagens. Tanto em Todas as noites (Toutes les nuits, 2001), seu primeiro longa-metragem, como em Correspondências, Green convida o espectador a habitar um universo ficcional no qual cada objeto visível parece esconder um sentido oculto. Dentre as imagens evocativas reiteradas ao longo do filme, há um cartaz de uma conhecida Anunciação de Antonello da Messina, L'Annunciata (1476). Não se trata de uma representação típica do episódio evangélico: vê-se apenas a Virgem, razão pela qual a obra se intitula, na tradução literal, “A Anunciada”. A ausência do Anjo

77 O livro Eugène Green e a hipótese do cinema descortinado é fruto de minha dissertação de mestrado defendida na ECA-USP em 2013. O trabalho foi publicado em 2021 pela A Quadro.

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Anunciador foi motivo de muitas especulações entre os historiadores da arte: por que omitir o outro lado da representação? Por que representar o efeito sem a causa?78 Ao longo de Correspondências, Eugène Green dará sua própria resposta para essas interrogações. O cartaz com a pintura da Virgem está pendurado na parede do quarto de Blanche – perfeitamente integrado, portanto, a seu universo íntimo. Ela já havia dito a Virgile que possuía uma imagem religiosa cujo sentido lhe escapava. No exato momento em que nos é mostrada a Virgem Anunciada, Virgile diz a Blanche: “Todas as imagens anunciam uma palavra”. A frase de Virgile inclui a pintura de Messina no sistema de signos do filme. Se toda imagem anuncia uma palavra, a imagem da Virgem – ela também – será incorporada ao jogo de decifração estabelecido.

Após a cena dos dois focos de luz solar projetados no chão do quarto, Blanche diz que enfim compreendeu o amor de Virgile. Completa logo, contudo, que não poderá aceitá-lo, pois não se sente livre para amar e ser amada. Um evento traumático do 78 Uma das hipóteses é a de que este quadro teria sido concebido como um díptico. A outra parte da composição, que corresponderia à imagem do Anjo, teria sido perdida.

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passado a impede de estabelecer com Virgile uma relação amorosa. Trata-se da história com Eustache, um jovem cujo suicídio vem atormentando Blanche. Antes de se enforcar em seu quarto, Eustache enviara a Blanche um pacote com um gorro de lã – idêntico ao de Virgile, só que de cor azul – e um pequeno bilhete com seu nome escrito. Desde então, apesar de nunca o ter conhecido pessoalmente, Blanche se sente responsável por sua morte, o que a impede de exercer plenamente sua liberdade amorosa. Virgile sugere então que Blanche liberte Eustache. “Mas como?”, ela pergunta. Virgile responde que através do amor, tornando-o real no encontro presencial entre os dois. “Isso o excluiria”, diz Blanche. “Não”, responde Virgile, “ele fará parte de nosso amor”. Após esse diálogo, Virgile e Blanche, em seus quartos, receberão a visita de Eustache – a figura do Anjo Anunciador. Os dois Anúncios, como veremos, definirão o destino amoroso do casal. O fantasma de Eustache aparecerá primeiro para Virgile. Assim como nos Evangelhos, em que o “Anjo do Senhor” aparece tanto para a Virgem quanto para José (o Anúncio à Maria, contudo, precede a aparição do Anjo “em sonhos” para José),79 aqui não será diferente: embora na ordem invertida, esse Anjo fantasmagórico aparecerá para ambos os personagens. Nas duas aparições, veremos Green empregar operações diferentes para enfatizar um mesmo aspecto crucial: Eustache se encontra, nos dois casos, em perfeita continuidade com os dois adolescentes. Tanto no Anúncio a Virgile quanto no Anúncio a Blanche, não há “colunas” que os separem do Anjo. A aparição no quarto de Virgile é filmada de forma excessivamente fragmentada: vemos apenas seus pés e seus rostos. A operação consiste em uma lentíssima panorâmica para a esquerda. De

79 Momento em que o Anjo do Senhor diz à José que a concepção de Maria fora obra do Espírito Santo (doutrina da Conceição Virginal).

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início, vemos apenas um pedaço do chão. A câmera segue seu percurso até enquadrar os pés de Virgile. Após uma breve pausa, é retomado o movimento para a esquerda até enquadrar os pés de outra pessoa. Àquela altura, já não há mais dúvidas: são os pés de Eustache.80 Todo esse movimento panorâmico, importante ressaltar, é feito em um longo plano-sequência. A câmera varre lentamente o espaço até deflagrar Eustache e Virgile em um mesmo plano. A ausência de cortes é concebida com o propósito claro de enfatizar que aqueles dois seres, um vivo e o outro morto, fazem parte da mesma unidade espaço-temporal. A panorâmica de Green realça a continuidade do plano, dentro do qual se encontram, sem fronteiras entre eles, Virgile e Eustache. No final da cena, após a deflagração dos pés de Eustache, temos acesso a seu rosto em close. Nos dois casos, trata-se de uma imagem fragmentada. Tanto a imagem de seus pés quanto a de seu rosto se notabilizam pela escala aproximada. O plano detalhe é fruto de uma estratégica composicional coerente com a concepção cinematográfica de Green (voltaremos a esse ponto mais adiante). Após mostrar o rosto de Eustache, vemos no contracampo o rosto de Virgile. Em um momento assustador do filme,81 os dois se encaram em uma troca de olhares silenciosa. 80 O sapato de Eustache é idêntico ao de Virgile. Há um claro espelhamento entre os dois personagens. Além de usarem o mesmo sapato, usam também o mesmo gorro: um azul, o outro vermelho. 81 A epígrafe do filme, de Rainer Maria Rilke, já nos havia antecipado que “todos os anjos são assustadores”.

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Após ver Eustache em seu quarto, Virgile adverte Blanche: “Não feche os olhos, Blanche, não feche os olhos. Você verá o sinal de nosso amor”. A voz over de Virgile serve como elo de transição de um Anúncio para o outro: do quarto de Virgile para o de Blanche. Após o alerta, Blanche olha para o lado e vê o gorro azul em cima da mesa. Logo em seguida, em um momento-chave do filme, a mão de Eustache entra em quadro e pega o gorro azul. Conforme dissemos, esse gorro é uma peça de roupa totalmente integrada ao espaço circundante. Embora seja justamente o item que provocara em Blanche um mal-estar (por estar associado ao suicídio de Eustache), o gorro já havia sido mostrado diversas vezes no filme, assim como outras peças de roupa espalhadas pelo quarto. Ao filmar Eustache colocando as mãos no gorro azul e em seguida vestindo-o na cabeça, Green reafirma a equivalência entre o plano espiritual (Eustache) e o plano material (o gorro azul). Blanche e Eustache estão em perfeita continuidade no espaço. A aposta de Green consiste em recriar uma Anunciação na qual o Anjo e a Virgem façam parte de uma mesma unidade espaço-temporal. Ao invés de usar um dispositivo de cisão espacial entre as duas figuras, reforçando a diferença ontológica entre o mundo celestial e o terrestre, Eugène Green dá

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expressividade à cena sugerindo a equivalência entre os vivos e os mortos. Ao contrário do que ocorre em O estranho caso de Angélica, a própria figuração do Anjo, sem nenhum efeito que caracterize a sua imaterialidade, já reforça o desejo de igualá-los no espaço: o Anjo e a Virgem fazem parte da mesma realidade fenomênica. Trata-se de uma Anunciação sem fronteiras.

Após pegar de volta seu gorro azul, libertando Blanche do fardo que a peça de roupa representava para a vida dela, Eustache caminha em direção à porta do quarto. Antes de sair, ele se vira para Blanche e olha para ela diretamente. Ela, por sua vez, repete o gesto da Virgem Anunciada, tal como ilustrado no cartaz pendurado na parede de seu quarto: a mão esquerda fechada junto aos seios e a mão direita espalmada para fora. Blanche mimetiza em seu corpo o gesto de Maria, trazendo para a realidade concreta o gesto emoldurado e encerrado na totalidade da pintura de Messina. O destaque aos gestos de Blanche e da Virgem Anunciada, conforme se vê nos fotogramas abaixo, é dado pela própria montagem do filme, sugerindo o espelhamento com a Virgem. É a moldura escolhida por Eugène Green, em um enquadramento fragmentado, que estabelece a analogia entre elas.

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A aparição de Eustache funciona, dentro da lógica do filme, como uma inversão do sentido sacrificial da Anunciação cristã. Essa inversão é figurada pelo gorro azul. Em comparação ao episódio original, a Anunciação de Eugène Green é recriada por exclusão (o Anjo Eustache não diz nada, apenas retira o gorro azul do quarto de Blanche – e assim a liberta do laço sacrificial que a prendia a ele). A ação do Espírito Santo, e consequentemente a própria Conceição Virginal, dá lugar aqui à mera exclusão de um objeto cujo peso simbólico equivalia ao sacrifício de Blanche. Embora adaptado de forma enviesada, num tom leve e descompromissado, o sentido teológico do episódio bíblico se mantém de pé. Ao se livrar do símbolo que a prendia ao passado, Blanche se sente livre para encontrar Virgile e dar à luz um novo amor. No fim do filme, para materializar a transformação de Blanche, Green faz ainda uma última referência à Virgem Anunciada de Antonello da Messina. Após ter aceitado encontrar Virgile pessoalmente, Blanche abre a janela do quarto e se encaminha para a porta. Antes de sair, para se proteger do frio que enfrentará fora de casa, veste um manto azul idêntico ao usado pela Virgem Maria no quadro. Pronto, o Anúncio está completo. Tudo foi dito,

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e agora Blanche é a própria Virgem Anunciada. Com um ar contente, fruto da visão positiva de Green acerca do episódio bíblico, Blanche finalmente sai de casa. O filme termina apontando para fora, em um lento travelling em direção à janela do quarto. Diferentemente dos outros filmes analisados que também terminam com uma cena na janela (As sombras e O estranho caso de Angélica), aqui ela parece estar ligada à receptividade e ao consentimento da Virgem (Blanche) em relação à mensagem divina transmitida pelo Anjo (Eustache). Uma vez identificada a referência à Anunciação cristã, e sobretudo constatada a ausência de cesura espacial na recriação do motivo iconográfico, convém fazermo-nos a seguinte pergunta: se não há fronteiras entre o Anjo e a Virgem, e se o fantasma de Eustache aparece em plena continuidade com a unidade espacial onde se encontram Virgile e Blanche, então todos eles fazem parte da mesma realidade diegética? Sim. Segundo a lógica que subjaz ao filme, a resposta a essa pergunta é afirmativa. O elemento sobrenatural, na diegese do filme, se situa no mesmo quarto dos dois adolescentes. A decisão de fazer Eustache aparecer de forma integrada ao espaço circundante é coerente com a crença pessoal de Green. Conforme descreve longamente em seus livros e entrevistas, a realidade material comporta realidades espirituais invisíveis. Eugène Green não acredita no divórcio entre a vida e a morte, entre o plano terrestre e o plano celestial. É por essa razão, aliás, que escolheu citar a Anunciação sem colunas de Messina. A famosa cesura entre o Anjo e a Virgem é uma estratégia composicional que expressa, nos signos plásticos da pintura, algo em que Eugène Green não acredita: a cisão entre o sagrado e o profano. Assim, em Correspondências, não há uma fronteira intransponível entre a Virgem e o Anjo. Conforme vimos na análise das cenas, Green enfatiza bastante o aspecto contínuo da aparição de Eustache.

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Dito isso, cabe agora fazermo-nos uma segunda pergunta: se o Anjo se encontra na mesma realidade diegética da Virgem, então devemos supor, segundo a lógica do filme, que o milagre é um fenômeno natural? A essa pergunta, a resposta é não. Nos filmes de Green, e Correspondências não é exceção, o elemento sobrenatural é isolado por meio de procedimentos que se destacam pela exacerbação do olhar. A câmera sempre dá um grande destaque aos elementos que parecem vir do além. Nesses momentos especiais, as operações cinematográficas empregadas chamam a atenção para elas mesmas. Em Correspondências, as soluções usadas para destacar o Anjo equivalem, retomando a metáfora baziniana citada na introdução, ao tal remendo no vestido sem costura da realidade. O fenômeno miraculoso, assim, é explicitado pelos recursos de estilo. Antes de avançarmos um pouco mais, façamos uma breve digressão acerca das ideias elaboradas por Green em sua poética cinematográfica.

3.1. Uma história de fantasmas O conjunto de proposições que compõe o livro Poétique du cinématographe (2009), de Eugène Green, é redigido em parágrafos curtos e sentenças breves, conferindo-lhe uma objetividade próxima à do aforismo. Trata-se de um pequeno manifesto em defesa da vocação metafísica do cinema. Green resgata a tradição da poética, um guia de composição que define as características gerais de uma determinada obra, gênero ou categoria literária, criando conceitos que podem ser generalizados para a criação de outras obras. Eugène Green retoma o tom assertivo das poéticas do passado, juntando-se – no gesto e na erudição – aos cineastas Robert Bresson (Notas sobre o cinematógrafo) e Raúl Ruiz (Poétique du

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cinéma) para dar vazão ao que considera ser a gênese e a natureza do cinema. O livro é dividido em duas partes. Na primeira, “A ideia”, Green se dedica à teoria do cinematógrafo, termo usado para definir uma vertente particular do cinema (em um diálogo assumido com a poética bressoniana). Na segunda parte, “A prática”, expõe as soluções encontradas, enquanto realizador, para problemas concretos relacionados a roteiro, fotografia, som e trabalho com o ator. A reflexão de Green se manifesta de forma bastante coerente em todas as áreas da práxis cinematográfica. O livro começa com uma digressão que remonta ao Antigo Testamento, refutando a oposição entre a palavra e a imagem. Segundo Green, essa dicotomia iconoclasta – manifestação do puritanismo vigente – ignora a tradição das Escrituras, já que a aparição de Deus para Moisés se deu tanto pela visão quanto pela escuta.82 Sua reflexão está filiada a uma tradição mística que não distingue a imagem da palavra falada. De acordo com o Evangelho de João, Jesus Cristo é a encarnação do verbo divino e sua matéria é feita de luz. Há, portanto, uma sugestão de equivalência entre a Luz e o Verbo. Ao longo do livro, Green atravessa a história da filosofia cristã estabelecendo um diálogo com São Paulo, Mestre Eckhart, Giordano Bruno, Blaise Pascal, Padre Antônio Vieira, entre outros. Tanto o apogeu como o declínio dessa tradição teriam se dado durante o período barroco, época em que o homem era ainda dominado, segundo Green, pelo desejo contraditório de revelar o “Deus Escondido” (Deus absconditus).83 Tal aspiração, orientada pela noção pascaliana de graça, se dava simultaneamente à criação de um modelo cosmológico que excluía a participação de

82 Eugène Green, Poétique du cinématographe. Arles: Actes Sud, 2009, p. 14. 83 Referimo-nos ao termo bíblico, muito caro a Pascal, presente no livro de Isaías (45:15).

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Deus, reduzindo-a, a partir de Descartes, a um mero “peteleco”84 – conforme escreve Green em referência ao ato da Criação. No que tange sua concepção de cinema, Eugène Green sempre retoma esse ideal barroco, em uma tentativa de reconciliar o presente da criação artística com o elo divino perdido no passado. Seus filmes, nesse sentido, teriam como missão restaurar essa ligação perdida, dando visibilidade ao Verbo. Como costuma afirmar, o cinema é o “Verbo feito imagem”.85 Supõe-se que a concepção artística de Green, particularmente no que diz respeito ao cinema, nos ajude a entender alguns aspectos identificados em sua obra. Conforme pudemos constatar na análise de Correspondências, a aparição do elemento sobrenatural se dá de forma integrada ao espaço circundante, sugerindo uma ligação de continuidade com o mundo natural. Contudo, a forma excessivamente fragmentada de filmar o Anjo revela uma diferença em relação aos demais elementos do filme. O olhar acentuado de Green emoldura partes do corpo de Eustache, isolando-o em relação ao espaço que o contempla. Como diz Tatiana Monassa, o projeto artístico de Green “seria algo como o encontro entre um pseudoplatonismo e a fenomenologia na própria imanência da experiência”.86 Daí advém a pergunta: o sagrado se manifesta como expressão de uma ordem imanente ou transcendente ao homem? Segundo a mística particular de Eugène Green, o Deus

84 Trata-se de uma referência a um comentário de Pascal, citado por Eugène Green em La Parole baroque (Paris: Desclée de Brouwer, 2001, p.19), segundo o qual, a partir de Descartes, o papel atribuído a Deus seria o de um mero “peteleco para colocar o mundo em movimento”. 85 Eugène Green, 2009, p. 15. 86 Tatiana Monassa. “Na presença do mistério”. Contracampo, ed. 95, 2010. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2021.

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Escondido é revelado direta ou indiretamente? A resposta a essas perguntas passa pela crença na vocação metafísica do cinema. Eugène Green acredita que a realidade espiritual permeia a material. Não há fronteira entre elas. Contudo, não podemos acessar diretamente as manifestações da realidade espiritual através dos nossos sentidos. A única maneira de dar uma forma sensível ao elemento sobrenatural, fazendo-o se manifestar para nós, é por meio de mediações. É nesse sentido mediúnico que a concepção artística de Green encontra sua verdadeira vocação. A obra de arte deve ser capaz de ir além da superfície das coisas, desnudando tudo aquilo que acoberta a realidade espiritual. Em seu primeiro livro dedicado ao cinema, Présences: Essai sur la nature du cinéma (2003), Green encontra um tom ensaístico, conferindo à sua prosa uma expressão íntima e confessional, para localizar a gênese da tradição cinematográfica à qual se filia. Essa tradição seria a continuação de um projeto que se realizou plenamente no século XIX por nomes como Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé, Maurice Maeterlinck, entre outros. A obra desses escritores tinha como princípio que a palavra seria capaz de dar forma sensível para realidades espirituais invisíveis; ou seja, de revelar uma parte da realidade inacessível a olho nu. O fotógrafo Félix Nadar, no âmbito da imagem indicial, seria uma espécie de patrono dessa tradição. A invenção do cinematógrafo no final do século XIX daria continuidade a esse programa estético. Para superar os imperativos da Razão que acobertam o mundo espiritual, como escreve abaixo, é preciso que o cinematógrafo dê visibilidade às realidades escondidas, espectrais, tornando-as sensíveis por meio de sua lente objetiva.

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O mundo apreensível pelos sentidos em seu estado ordinário, ou melhor, submetidos à Razão, esconde uma parte da realidade, e a representação cinematográfica, longe de se contentar em ser uma “apresentação” pleonástica do mundo, pode e deve nos permitir captar o mundo em sua totalidade, e apreender as presenças reais, mas escondidas, que nos cercam. Deste ponto de vista, toda grande obra cinematográfica é uma história de fantasmas.87

A opção por representar uma Anunciação sem a habitual cesura espacial, assim como a própria referência à L'Annunciata, de Antonello da Messina, se deve à sua crença nas “presenças reais, mas escondidas, que nos cercam”, conforme escreve no trecho citado logo acima. Eugène Green não acredita em fronteiras entre realidade material e imaterial, entre os vivos e os mortos. Os fantasmas não habitam um mundo separado, mas sim em nosso próprio mundo. São duas realidades que se tocam e se imbricam permanentemente, tendo como ligação a obra de arte. O elemento sobrenatural não se oferece diretamente aos homens pelos sentidos, é preciso que a vocação metafísica do registro seja convocada e investida em um propósito de revelação. Assim, a câmera de cinema é entendida como uma espécie de sensor construído com o propósito de captar frequências espectrais invisíveis a olho nu. É o aparato técnico, amparado pelo olho de vidro da lente objetiva, que permite a deflagração do elemento sobrenatural. Trata-se de uma aparição como um fenômeno essencialmente fílmico. A mudança de escala, emoldurando o elemento sobrenatural em plano detalhe, como se fosse uma lupa, corresponde à fratura do milagre sobre a superfície lisa da realidade. As operações

87 Eugène Green, 2003, p. 35.

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cinematográficas usadas para dar destaque ao fenômeno miraculoso se revelam como uma ação descontínua. Não são, necessariamente, rupturas explicitadas na montagem, pelo corte e/ou pela quebra na unidade espacial do filme (conforme vimos, por exemplo, em Accattone, de Pasolini), mas uma protuberância provocada pela câmera aguda de Green. As duas operações empregadas para isolar a aparição de Eustache (primeiro para Virgile, depois para Blanche) se notabilizam pelos recursos de ênfase: notadamente a fragmentação do corpo. Se verificarmos novamente os fotogramas usados para ilustrar as aparições de Eustache, veremos que as operações dependem demasiado do excessivo enquadramento. A moldura do quadro é usada para excluir o entorno e limitar o olhar do espectador a uma porção reduzida do espaço, caracterizando, assim, um direcionamento incisivo do olhar. Em Correspondências, em suma, o elemento espiritual, parte integrante da diegese fílmica, se apresenta de forma transparente, mas tal transparência se deve aos efeitos garantidos pelas potencialidades do meio fílmico.

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Parte II Cura do cego

“Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.” Êxodo 20:4

4. A verdadeira imagem

Uma multidão se aglutina em torno de uma casa. O motivo é explicado na cartela do filme: Jesus, sobre o qual dizem ser capaz de curar doenças, encontra-se lá dentro. Paralíticos, leprosos, cegos, endemoniados. Todos à espera de um milagre. No meio da multidão, uma criança se destaca. Ela tateia o espaço com as mãos. É um garoto cego, que também está à procura de Jesus. “Leve-me até Ele. Não consigo encontrá-Lo”, diz. Ele é continuamente ignorado, mas persiste em sua busca. O garoto puxa o cabresto de um burro, pensando se tratar da roupa de alguma pessoa: “Por favor, senhor, diga-me onde Ele está. Não consigo encontrá-Lo”. Uma outra criança, recém-curada de paralisia, ouve os apelos ao vento do menino e se dispõe a ajudá-lo. Essa breve descrição corresponde a uma cena inicial do filme Rei dos reis (The King of Kings, 1927), de Cecil B. DeMille. O garoto que ajuda a criança cega, conduzindo-a até Jesus, é o evangelista Marcos (trata-se, claro, de uma licença tomada pela roteirista do

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filme, um sentido adicional em relação aos Evangelhos).1 Os dois seguem juntos até a casa. A caminhada é dispersiva, há muitas pessoas pelo caminho. Em meio à multidão, somos apresentados aos discípulos de Jesus. O primeiro é Judas. Vê-se desde já que se trata de um homem vaidoso. O olhar altivo, sempre voltado para o horizonte, reflete sua ambição de poder. Uma cartela explica suas intenções: se Jesus é mesmo o Rei dos Judeus, como dizem, supõe-se então que seus apóstolos ocuparão um alto posto em seu reinado.2 Após a apresentação de Judas, somos introduzidos aos demais discípulos. As cartelas do filme identificam cada um pelo nome: Pedro, João, Tiago, Tomé, André, Simão etc. Judas é o mais belo entre os apóstolos. Ao lado de Pedro, o pescador de bom coração e dono de um rosto rude, a falha de caráter de Judas é caracterizada por um rosto mais delicado. Como se pode ver, trata-se de um filme que, desde o início, trabalha de forma bastante explícita as oposições de caráter: a feiura é associada à virtude; a beleza, à corrupção. Voltemos às duas crianças. Elas seguem juntas em busca de um atalho para entrar na casa. A entrada principal está apinhada de gente. Decidem, então, ir pelos fundos, onde há uma janela. Chegando lá, encontram Virgem Maria cercada de pombas

1 O sentido do acréscimo é claro. Trata-se de uma alusão ao papel dos evangelistas enquanto transmissores da mensagem cristã. Assim como a criança recém-curada conduz o garoto cego para dentro da casa, colocando-o na presença de Jesus, os relatos dos Evangelhos transmitem a fé cristã aos seus leitores. 2 Cada Paixão, de acordo com a dominância do Evangelho escolhido na adaptação, expressará as diferentes motivações para a traição de Judas. No caso de Rei dos reis, como a cena já indica, trata-se de uma “motivação política”, conforme afirma Jean-Loup Bourget, em Cecil B. DeMille: Le Gladiateur de Dieu (Paris: Presses Universitaires de France, 2013, p. 37). Não há dúvida de que Judas está interessado aqui sobretudo no poder de Cristo: num dado momento do filme, ele chega mesmo a dizer, numa cartela sem referência explícita a nenhum dos Evangelhos, que almeja ser “o braço direito de Jesus”.

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brancas.3 Os dois pulam a janela e a Virgem os ajuda a entrar. Ela olha para dentro da casa e diz: “Meu filho, esta criança precisa de Ti”. DeMille filma a conversa omitindo o rosto do interlocutor da Virgem, seu filho Jesus. Assim como a criança cega, ainda não tivemos acesso à imagem de Cristo (veremos mais tarde que essa omissão é proposital). A suspensão do rosto de Cristo, contudo, não compromete em nada a compreensão do que ocorre naquele momento. O espectador do filme, devidamente instruído dos principais episódios da vida de Cristo, entende muito bem o que se passa na cena. Apesar de algumas lacunas, sabemos que estamos prestes a testemunhar um milagre – ao fim da jornada, Jesus enfim curará a cegueira da criança. DeMille e sua equipe realizam uma operação, cujos detalhes veremos a seguir, que consiste em nos oferecer o ponto de vista da criança cega. Após acompanharmos a longa jornada do garoto para dentro da casa (a sequência inteira leva nada menos que dez minutos), finalmente veremos a cena que corresponde à cura de sua cegueira.

4.1. Do ponto de vista do cego Sob os cuidados da Virgem, que o conduz até Jesus, o garoto cego levanta a cabeça e faz um pedido: “Senhor, eu nunca vi as flores ou a luz. Você poderia, por favor, abrir os meus olhos?” Ao seu rosto é sobreposta uma tela preta. Trata-se de um plano subjetivo da criança cega. Um raio de luz atravessa diagonalmente o fundo

3 A Virgem na janela diante de pombas brancas é sem dúvida uma referência à Anunciação. Como o filme de DeMille se limita à vida pública de Jesus, propondo-se a mostrar apenas o final de sua vida, a cena da janela se afigura como uma síntese do episódio fundador da fé Cristã. As pombas simbolizam a ação do Espírito Santo.

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negro e começa a se fazer mais e mais presente na imagem. O olhar da criança recém-curada é tomado de empréstimo pelo espectador. Enxergamos por procuração os primeiros raios de luz perfurarem suas retinas virgens. Como podemos verificar nos fotogramas ao lado, o texto fílmico parece sugerir uma analogia entre o espectador na sala escura e a própria condição da cegueira recém-curada. O feixe luminoso que incide sobre a visão da criança se torna cada vez mais espesso até que vemos surgir sobre o plano uma cartela com as palavras de Cristo. Trata-se de uma operação que consiste em sobrepor à visão da criança um trecho do Evangelho de João: “Eu vim como luz ao mundo – aquele que acredita em mim não permanecerá na escuridão”4. No mesmo plano, fundidos numa só imagem, a luz divina e as palavras de Cristo; a Luz e o Verbo. No plano seguinte, voltamos ao rosto da criança, dessa vez banhado por uma iluminação pontual bastante destacada. A mesma luz que incidira em suas retinas, perfurando a opacidade de sua cegueira, é agora usada para significar a ação divina que subjaz ao milagre de Jesus. A luz é uma metáfora da ação de Deus, que age por intermédio de Jesus Cristo. No Evangelho de João – o de maior influência e dominância no filme de DeMille –, há outra passagem que reforça a metáfora supracitada. Após absolver a mulher adúltera no Monte das Oliveiras, Jesus diz: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas, pelo contrário, terá a luz da vida”.5 Essas referências parecem bastante coerentes com a caracterização de Cristo: como veremos no decorrer desta análise, o Jesus de DeMille é marcado pelo seu aspecto luminoso.

4 João 12:46. 5 João 8:12.

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Após o plano da criança, vemos novamente – pelo seu ponto de vista – a incidência de um facho de luz gradualmente se formando em sua retina. A formação da imagem é lenta e contínua. Enquanto o diafragma da câmera aos poucos se abre, o rosto de Jesus vai ganhando forma e nitidez. O que se vê no início do processo, contudo, é um grande borrão cinza. Trata-se de um efeito, marcado por uma mancha redonda e sem foco, que objetiva ilustrar a lenta aparição de Cristo. A abertura gradual do diafragma, na imagem que corresponde ao olhar da criança, parece evocar o seu próprio despertar. O efeito empregado na cena permite ainda que se estabeleçam outras significações com o texto bíblico. Amparados pela reconhecida correspondência textual do episódio da cura do cego com o livro de Gênesis, poderíamos identificar na cena analisada uma analogia com o renascimento da criança. Em O evangelho de São João: Análise linguística e comentário exegético, a partir de uma leitura cruzada do Evangelho de João (“Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou com o lodo os olhos do cego”)6 com o livro de Gênesis (“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”)7, Juan Mateos e Juan Barreto afirmam que o barro usado por Cristo na cura do cego “alude à criação do homem”.8 No filme de DeMille, embora não haja qualquer referência ao barro (elemento formado pela mistura da terra com a saliva de Jesus), a alusão se estabeleceria no efeito luminoso de formato circular que antecede a aparição de Cristo. O grande clarão redondo, como um portal luminoso, parece se referir ao acesso por meio do qual a criança cega renascerá. 6 João 9:6 7 Gênesis 2:7 8 Juan Mateos e Juan Barreto, O evangelho de São João: Análise linguística e comentário exegético. São Paulo: Paulus, 1999, p. 426.

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Há ainda outras leituras possíveis para a cena da cura do cego. Como podemos verificar no primeiro fotograma acima, antes de qualquer vestígio de figuração humana, identificamos também uma referência à própria projeção cinematográfica. Tendo como elemento de ligação a proeminência da visão recém-concedida, estabelece-se uma analogia entre a criança e o espectador na sala de cinema. Nesse sentido, DeMille teria usado o clarão redondo que penetra as pupilas da criança para evocar os raios de luz projetados na tela branca do cinema. Já no fotograma do lado direito, quando a imagem de Cristo começa a se delinear, evoca-se o processo de revelação fotoquímica da película. Enquanto o rosto de Cristo vai adquirindo forma, descolando-se do fundo negro, temos a impressão de assistir à própria ação do material fotoquímico revelando a imagem positivada. A gênese figurativa da imagem, do borrão ininteligível aos primeiros sinais de figuração humana, culmina na aparição completa do rosto de Jesus. Antes de seguirmos adiante com a análise da cena, faremos um breve recuo ao conhecido episódio da revelação do Santo Sudário (não entraremos na discussão acerca de sua autenticidade; o que nos interessa é o efeito provocado pela sua reprodução fotográfica).

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O fotógrafo italiano Secondo Pia, encarregado de revelar o negativo fotográfico da relíquia, descrevera em um detalhado relatório9 a sua reação ao ver um rosto lentamente delinear-se no banho de revelação. Nas palavras de Hans Belting: “o primeiro homem, desde o tempo da vida de Jesus, a encontrar-se perante o verdadeiro rosto”.10 O episódio, ocorrido em março de 1898, marcou de forma decisiva a história da fotografia. Se o Sudário de Turim, devido ao contato direto com a face e o corpo ensanguentado de Cristo, conseguiu reter as suas marcas, seria preciso que, muito posteriormente, a técnica fotográfica convertesse os traços deixados no tecido em uma imagem positivada. Graças à fotografia, foi possível positivar a impressão retida na relíquia, traduzindo meras “manchas disformes”11 – como descrevera uma de suas testemunhas oculares - em uma imagem de Cristo. Antes de ter sido fotografado, o Santo Sudário, assim como outras achiropitas,12 devia sua fama ao fato de ser um véu não feito por mãos humanas. Dito de outro modo: o caráter devocional do pedaço de tecido se devia ao que ele supostamente retinha em sua superfície: a impressão do corpo de Jesus. Não era pela nitidez da figura, em suma, que a relíquia se tornara um objeto de culto. Quanto à sua falta de definição, os relatos decepcionantes de quem estivera diante do Sudário

9 No Relatório sobre a reprodução fotográfica do Santo Sudário, divulgado em 1907, o fotógrafo diletante descreve com detalhes todo o processo de revelação do negativo fotográfico do Santo Sudário. 10 Hans Belting, A verdadeira imagem. Lisboa: Dante, 2011, p. 75. 11 O termo foi extraído do relato do padre Vignon, em 1902, após travar contato com a relíquia. “Por mais que se perscrute, por mais que se arregalem os olhos, por mais que tentemos nos aproximar (sempre a uma distância respeitosa), não há nada a ver, ou quase nada. No máximo, algumas manchas disformes, pouco perceptíveis. Nenhuma imagem”. Ver Philippe Dubois, O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2012, p. 224. 12 Achiropita, em tradução literal, refere-se às relíquias “não feitas por mãos”, o que sugere que elas tenham sido criadas por uma divindade, não por mãos humanas.

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deixam evidente: non se vede niente! (“não se vê nada!”), disse, em 1902, o padre Vignon.13 Hans Belting, em A verdadeira imagem, livro que se inscreve no quadro geral de sua antropologia da imagem (cujo título inspirou o nome deste capítulo), faz a distinção entre imagem e impressão. Sintetiza a diferença em uma única frase: “As imagens são miméticas, ao passo que uma impressão é mecânica”.14 O véu do Santo Sudário, na medida em que é uma “relíquia de contato”, guarda em sua superfície a impressão da “força miraculosa dos ossos”.15 Trata-se, portanto, de um véu que tem o seu valor não pelo que mostra (a sua imagem), mas pelo que retém em potencial na sua superfície (a sua impressão). Após a revelação do negativo fotográfico do Sudário, conclui Belting, relíquia e imagem se separam uma da outra. Poucos dias depois [da revelação], o estúdio fotográfico do advogado turinense tornou-se um lugar de culto geral, porque ali se podia ver a “verdadeira imagem” de Cristo, a saber, uma fotografia, ao passo que na igreja se podia apenas venerar a relíquia, por assim dizer, sem poder olhá-la. Relíquia e imagem tinham se separado uma da outra.16

O trecho acima mostra que a técnica fotográfica, justamente por sua capacidade de positivar uma imagem, é a principal vitoriosa de todo o episódio. A fotografia sai favorecida pelo que, a despeito da

13 Ver Philippe Dubois, op. cit., p. 224. 14 Hans Belting, 2011, p. 60. 15 Ibid., p. 57. 16 Ibid., p. 75.

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opacidade da relíquia, conseguiu revelar aos fiéis. Aos seus olhos, graças à revelação fotográfica do véu manchado, a imagem de Cristo é como que trazida de volta ao mundo. Em um texto dedicado às Paixões do primeiro cinema, André Gaudreault relembra uma analogia feita por Jean-Luc Godard entre a tela de cinema e o véu de Verônica.17 Tomado por um desses momentos de brilhantismo aforístico, Godard diz: “O cinema é bastante evangélico... a tela branca: é um véu... é o tecido de Verônica, isso guarda um traço, alguns traços do mundo”.18 Com essa afirmação, na qual estabelece uma analogia do cinema com as relíquias de contato, Godard se refere ao cinema enquanto meio de expressão mimética que possui uma ligação indicial com a realidade. Em um momento igualmente inspirado, Cecil B. DeMille parece tirar proveito dessa analogia na cena analisada da cura do cego. O rosto de Cristo, na primeira vez em que o vemos – não custa reiterar –, se mostra ao espectador por meio de uma lenta operação de sobreposição de imagem. Na esteira do poder revelatório da fotografia, Rei dos reis teria incorporado à cena analisada um efeito que se assemelha ao processo de revelação fotoquímica. Se nos permitirmos fazer uma leitura um pouco mais ambiciosa, poderíamos ir além e encontrar na operação supracitada uma alusão à imagem positivada do Santo Sudário: o Cristo de DeMille surge do borrão luminoso da mesma forma que, no banho

17 O véu de Verônica é uma referência à história, de natureza lendária, que narra o encontro de Jesus com Santa Verônica a caminho do Calvário. Segundo a lenda, Jesus teria limpado o seu rosto com um pedaço de pano oferecido por Verônica. Diferentemente do Sudário de Turim, relíquia que de fato despertou muitas discussões em torno de sua autenticidade, as inúmeras cópias do véu de Verônica não têm credibilidade. Além disso, existe a suspeita de que a palavra “Verônica”, supostamente formada pela união das palavras de origem latina “Vera” e “Icon” (respectivamente, “verdadeira” e “imagem”), seja um falso anagrama. 18 Jean-Luc Godard apud André Gaudreault, “La Passion du Christ: Une forme, un genre, un discours”. In: Roland Cosandey; André Gaudreault; Tom Gunning (Orgs.), Une Invention du diable? Cinéma des premiers temps et religion. Québec: Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 93.

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de revelação do negativo fotográfico, se delineava aos poucos a “verdadeira imagem”.

Detalhe do rosto do negativo fotográfico do Sudário de Turim (Secondo Pia, 1898)

Como conciliar o virtuosismo da cena, marcada por um excesso de metáforas visuais, com a busca pela representação supostamente autêntica de Jesus? O uso da trucagem associado ao plano ponto de vista – assim como todo o dispositivo empregado na cena – indica o desejo de provocar no espectador dos anos 1920, nas palavras de Jean-Loup Bourget, o “sentimento da teofania”. Em

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um livro dedicado à filmografia integral de Cecil B. DeMille, Bourget descreve a cena da cura do cego nos seguintes termos: Por um lado, o espectador tem a impressão de “viver” o milagre, mais do que simplesmente testemunhá-lo; por outro lado, a materialização ou encarnação de um Cristo originário da luz e revestido, por uma espécie de contaminação metonímica, de um caráter miraculoso que acentua o sentimento da teofania.19

Para que possamos compreender melhor o que reside por trás desse experimento cinematográfico, atrelando as operações adotadas aos propósitos do filme, será preciso voltar à análise da cena.

4.2. O ícone Quando a mancha luminosa e sem foco finalmente adquire nitidez, mostrando-nos os traços figurativos de um rosto humano, DeMille realiza mais um efeito estilístico pleno de significação. Ao final da fusão de imagens, o que chama a atenção não são os traços indiciais do rosto do ator escalado para interpretar Jesus, e sim a sua semelhança com os ícones crísticos. O referido borrão de luz no formato redondo é usado por DeMille para provocar, ao final do processo de sobreposição de imagens, um efeito que corresponde a uma auréola em torno de sua cabeça. A referência aos ícones de Cristo, porém, não se encerra na reprodução de sua auréola. O anel de luz que circunda o rosto de Cristo soma-se a

19 Jean-Loup Bourget, op. cit., p. 20.

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outros aspectos de sua caracterização para aproximá-lo do modelo iconográfico característico da arte bizantina. Além do rosto alongado e da expressão vaga, o figurino bicolor (frequente no Cristo Pantocrator – um dos mais recorrentes temas na tipologia dos ícones de Cristo) contribui também para a referência estabelecida. Jesus está imóvel e, para reforçar a fixidez do plano, DeMille dedica nada menos que 25 segundos à aparição de Cristo, entre o borrão de luz e a definição da figura. Durante o lento aparecer, não há sequer um piscar de olhos. Além de a fixidez do plano causar contraste em relação ao ritmo do restante do filme, uma vez que a gestualidade pantomímica dos demais personagens está sempre num tom acima, observa-se também a intenção de apartar Jesus do cenário em que é filmado, alienando-o da unidade espacial da cena. A sua aparição, afinal, é sobreposta a um fundo negro ausente de qualquer referência ao espaço doméstico em que a cena da cura se desenrola. Por fim, nota-se que a simetria e a frontalidade da composição, características de um modo geral compartilhadas com os ícones, são usadas para atingir o espectador que recebe as palavras inspiradas de Jesus. O ator escolhido para interpretar Jesus Cristo é Harry Byron Warner. Durante as filmagens, ele tinha 50 anos de idade (ao menos entre as Paixões mais conhecidas, trata-se do mais velho ator a ser escalado para o papel). H. B. Warner, como era conhecido, também se notabilizava pela altura, pela magreza e, sobretudo, pela austeridade física.20 A testa alongada e o olhar vago parecem de acordo com as características gerais atribuídas aos ícones

20 Em um texto sobre Rei dos reis em Os filmes da minha vida (Lisboa: Assírio e Alvim, 1990, p. 104), João Bénard da Costa descreve o ator da seguinte forma: “Nessa altura tinha 50 anos, era grave, austero, longos cabelos e longa barba. Era Deus. Para quem não distinguia muito bem entre as Pessoas da Santíssima Trindade, vê-lo era vê-Lo”.

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bizantinos – a boca sempre fechada, por sua vez, atenua os sinais de erotização e sensualidade. Ademais, o trabalho gestual empreendido por H. B. Warner chama a atenção por sua contenção e inexpressividade, destacando-o dos demais personagens, sempre muito expressivos e agitados. Dito isso, convém fazermos uma pequena ressalva: a escolha das palavras usadas para descrever H. B. Warner não deve ser mal interpretada. A caracterização por meio de adjetivos como “inexpressivo” não implica indiferença ou neutralidade, tampouco se trata de um Cristo sulpiciano.21 Sua austeridade é trabalhada com a intenção de intensificar um tipo de emoção de natureza religiosa. O rigoroso trabalho de contenção tenciona provocar, como veremos

21 O termo sulpicien é empregado em língua francesa para descrever o estilo sem personalidade – sem o gênio do autor – de obras de arte religiosa, sobretudo nas representações de Cristo.

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mais adiante, um apelo ao espírito. Quanto à explícita citação ao ícone bizantino, importante dizer que ela tem o propósito de caracterizar Jesus Cristo em um imaginário iconográfico marcado pela clareza e pela frontalidade da mensagem divina.

*** O ícone religioso – a imagem cultual de Cristo, da Virgem ou dos Santos, podendo compreender também episódios de suas vidas – é uma criação da arte bizantina. Pintados sobre suportes de madeira, pedra ou tecido, os ícones bizantinos se espalharam por todos os lugares onde a religião ortodoxa foi adotada. A marca dessa disseminação, segundo certo consenso entre historiadores da arte, é a austeridade. A qualidade ascética dos ícones, reforçada por uma rigorosa disciplina monástica, é atribuída a uma suposta ausência de estilo. Concordando ou não com essa leitura, os iconógrafos seguiam orientações tão severas, tão estritas, que o anonimato das obras acabou sendo preservado. As marcas pessoais dos chamados “escritores”22 de ícone eram inevitavelmente apagadas. Assim, longe de servirem como veículo para expressar os sentimentos individuais do autor, os ícones seriam a concretização, pela imagem, de “um ensinamento teológico comum a todos. [...] a realização plástica dos dogmas ortodoxos”.23

22 As orientações eram tão impositivas que os pintores de ícone eram chamados de escritores. As regras dessas orientações clericais foram definidas no Segundo Concílio de Niceia (na atual Turquia), no ano de 787. Nele, foram estabelecidas as normas (que incluíam restrições alimentares e confinamento) às quais os iconógrafos deviam ser submetidos antes de executar uma pintura. As escolhas relativas à composição dos ícones (por exemplo, o uso das cores), assim como o próprio conteúdo temático da obra, seriam determinadas por instâncias superiores. Aos iconógrafos, restaria a mera execução técnica das pinturas. 23 Henri Stern, L’Art byzantin. Paris: Presses Universitaires de France, 1966, p. 176.

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Ao longo dos séculos, com a disseminação dos ícones pelo Leste da Europa, as figuras representadas perderam ainda mais a concretude e a corporeidade: “o espaço torna-se abstrato e o estilo linear substitui o pictórico”.24 Mesmo em Constantinopla, os iconógrafos seguiam uma orientação bastante severa, adotando “formas de execução sob estrito controle dogmático”.25 Para corresponder ao conteúdo dogmático que alimentava cada vez mais a religião nascente, ainda fortemente impregnada pelo neoplatonismo, a pintura bizantina se mostrou submissa aos imperativos da orientação clerical: “a figura humana, que sempre fora o centro do interesse, torna-se um meio de atingir os objetivos sublimes de ordem puramente espiritual”.26 Em O ícone: Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup caracteriza o ícone por sua abertura a um sentido oculto: “[o ícone] não se encerra no visível, mas pretende ser saturado de invisível”.27 A oposição estabelecida é com o ídolo, que se encerra na totalidade do que é dado a ver. O ícone, ao contrário, se oferece como porta ou janela em direção a esse “alhures” que as formas e os olhares indicam Trata-se, portanto, de enaltecer o acesso por meio do qual o olhar é lançado para fora.

24 Sharon Gallagher, Medieval Art. Nova York: Tudor Publishing Company, 1969, p. 9. 25 Ibid., p. 9. 26 Manolis Chatzidakis e André Grabar, La Peinture byzantine et du Haut Moyen Âge. Paris: Pont Royal, 1965, p. 10. 27 Jean-Yves Leloup, O ícone: Uma escola do olhar. São Paulo: Unesp, 2006, p. 14.

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Cristo Pantocrator do Sinai (autoria desconhecida, século VI ou VII d.C.)28

No filme de DeMille, o plano que corresponde à aparição de Cristo é trabalhado com semelhante propósito. Destituído de relevo e volume (ou seja, fotografado com o propósito de enfatizar seu aspecto aplainado), o Cristo demilliano é concebido para provocar no espectador um apelo ao espírito – e assim evocar uma abertura a esse “alhures” de que fala Leloup acerca do ícone. A ausência de relevo, ao suprimir a profundidade de campo, ativa uma dimensão espiritual poucas vezes vista no gênero das. A imagem

28 Preservado no monastério de Santa Catarina, no deserto do Sinai, é conhecido pelos especialistas como o mais antigo Cristo Pantocrator a ter sobrevivido à onda de destruição de imagens durante as crises do iconoclasmo bizantino (726-87 e 814-42).

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aplainada do ícone crístico atinge o espectador com intensidade. A emoção, contudo, não vem de imediato. Requer tempo. Não à toa, uma longa sequência de preparação antecede a cena do milagre. Para acessar a imagem final de Cristo, é preciso se dedicar ao seu lento surgimento. O impacto provocado pela sua aparição é consequência de uma cena cuidadosamente concebida: a composição achatada do plano é articulada em conjunto com o desenvolvimento cadenciado da cena para provocar uma emoção de natureza religiosa no espectador. Embora Rei dos reis tenha sido menosprezado pelos principais teóricos católicos da França (não apenas André Bazin, mas também Henri Agel e Amédée Ayfre),29 o filme parece ter antecipado alguns dos êxitos estilísticos que seriam posteriormente desenvolvidos por outros filmes de apelo religioso. Robert Bresson, por exemplo, conhecido no início de sua carreira como dono de um “estilo transcendental”,30 ou ainda de um “estilo espiritual”,31 escrevera em Notas sobre o cinematógrafo que era preciso “achatar as

29 Andrew Quicke diz que, na visão de Henri Agel, as produções bíblicas de Cecil B. DeMille pretendiam expressar o sagrado, contudo, “não passavam de reconstituições de grandes eventos históricos sem qualquer sacralidade” (Andrew Quicke, “Phenomenology and Film: An Examination of a Religious Approach to Film Theory by Henri Agel and Amédée Ayfre”. Journal of Media and Religion, 2005, p. 241). Na visão de Ayfre, o cinema religioso, ao contrário da escultura ou da pintura religiosas, reduz o sobrenatural “ao nível do maravilhoso e da féerie” (Amédée Ayfre, Une Conversion aux images? Paris: Éditions du Cerf, 1964, p. 53). Podese dizer, em suma, que eles, incluindo o próprio Bazin, raramente teciam elogios aos filmes de temática religiosa, buscando sempre separar a temática da experiência estética (é o caso, por exemplo, de uma parte considerável do cinema de Robert Bresson, Roberto Rossellini, Carl Th. Dreyer, entre outros). 30 Paul Schrader, Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer. Berkeley: University of California, 1972. 31 Susan Sontag, “Spiritual Style in the Films of Robert Bresson”. In: Against Interpretation and Other Essays. Nova York: Anchor Books/Doubleday, 1990, pp.124-136.

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imagens (como com um ferro de passar), sem atenuá-las”.32 Carl Th. Dreyer (conforme lembra Jean Narboni em uma entrevista para os Cahiers du Cinéma) disse algumas vezes em seus Écrits que era “preciso suprimir a terceira dimensão, a profundidade, e fazer imagens planas, para colocá-las diretamente em relação com uma quarta ou quinta dimensão, do Tempo e do Espírito”.33 Esses comentários poderiam perfeitamente ser empregados para descrever a operação realizada por DeMille na cena da cura do cego. A bidimensionalidade da imagem, associada à caracterização icônica de Cristo, é usada para evocar, igualmente, uma dimensão temporal e espiritual. É preciso, contudo, ser justo na comparação. Em relação aos grandes mestres acima citados, há diferenças que situariam DeMille como seus antípodas. O uso acentuado de efeitos de luz, provocando sentidos novos e metáforas pesadas, não seria empregado por Bresson. Ele, aliás, jamais faria uso de referências pictóricas para significar algo que o cinema, pela simples captação da realidade, não pudesse denotar. André Bazin, em seu texto sobre o Diário de um pároco de aldeia (Journal d'un curé de campagne, 1951), enfatizará o paralelo estabelecido entre o pároco do filme e Jesus Cristo. A comparação não é evidente. Bresson, assim como Bernanos, evitou a alusão simbólica, e assim nenhuma das situações, cuja referência evangélica é entretanto óbvia, está ali por sua semelhança; cada uma delas possui sua significação própria, biográfica e contingente; a similitude com

32 Robert Bresson, Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 23. 33 Pascal Bonitzer e Jean Narboni, “Sur l’image-mouvement (entretien avec Gilles Deleuze)”. Cahiers du Cinéma, n° 352, out., p. 39.

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Cristo é apenas secundária por projeção sobre o plano superior da analogia. A vida do padre de Ambricourt não imita de modo algum a de seu modelo.34

Diferentemente de DeMille, Bresson jamais explicitaria a analogia crística por meio de uma metáfora visual. A similitude, em Bresson, é apenas secundária – não ganha uma alusão simbólica na imagem. Embora o padre de Ambricourt percorra, ao longo do filme, seu próprio calvário, seguindo uma trajetória repleta de dor e privação, ele não se adequa a nenhum padrão iconográfico associado diretamente a Jesus. Já a operação de DeMille, ao longo da qual faz uma citação à arte dos ícones crísticos, se diferencia bastante dos demais realizadores citados. A transposição da pintura para o cinema, de fato, não é uma operação simples. No caso da referência aos ícones usada em Rei dos reis, podemos identificar pelo menos um grande problema: o que outrora era compreendido como uma ausência de estilo, uma marca de anonimato, passa a se destacar no cinema, justamente, por sua estilização. Quando se almeja reproduzir, pelos meios próprios do cinema, as especificidades de um gênero conhecido pelo estilo linear, acaba-se inevitavelmente cometendo uma série de deformações. Para conseguir dar ao Cristo o aspecto aplainado de um ícone, DeMille emprega um dispositivo que inclui, além de uma lente deformante, inúmeros efeitos de luz. A operação da cura do cego, composta por uma pesada carga semântica, estabelece com a imagem de Cristo novos sentidos. Além da aproximação com o ícone bizantino, caracterizando Cristo em um imaginário iconográfico marcado pela clareza e pela frontalidade da mensagem divina, DeMille engendra ainda quatro outras analogias. Conforme vimos anteriormente, o

34 André Bazin, O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 146.

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efeito luminoso é iconograficamente trabalhado como: 1) oposição às trevas (na medida em que é usado como sinal sensível da cura do cego); 2) metáfora do renascimento no ato da Criação; 3) referência à projeção cinematográfica e, por fim, 4) analogia com o processo fotoquímico da fotografia (evocando a revelação de uma relíquia de Cristo). Pode-se dizer, em suma, que a operação empregada ao longo de toda a cena é marcada pela estilização. O que vemos ao final do processo que culmina na aparição de Cristo é uma imagem excessivamente mediada. Além de vermos tudo pelo olhar da criança, há também a mediação da própria referência feita à arte bizantina e de todos os efeitos. Existe ainda a nítida intenção de provocar, pela força dos efeitos empregados, uma série de metáforas visuais. Dito isso, uma pergunta permanece no ar: se o objetivo da cena, conforme sugerimos, era provocar no espectador uma experiência de natureza devocional, então qual o propósito do acréscimo de tantas mediações? Dito de outro modo: se a cura do cego se mostra uma ocasião para a busca de uma “verdadeira imagem”, uma imagem supostamente autêntica de Jesus, então por que explicitar esses elementos relacionais? Para respondermos a essas perguntas, precisaremos de um novo recuo, dessa vez um pouco mais longo.

4.3. A economia icônica A partir do quarto século após a morte de Cristo, quando a Igreja Católica ainda estava se estabelecendo como um poder de Estado, os problemas gerados pela imagem religiosa se acirraram (antes disso, no período das perseguições, não havia ainda

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possibilidade de edificar templos para serem ornamentados). A decoração das basílicas recém-construídas, antes mesmo dos grandes ciclos do iconoclasmo bizantino, suscitaram violentas disputas. Vista com desconfiança desde os primeiros tempos,35 a imagem religiosa não poderia se mostrar por materiais muito concretos, sob o risco de se assemelhar aos ídolos pagãos da Grécia Antiga. Num ponto todos os primeiros cristãos pareciam estar de acordo: a Casa do Senhor não deveria abrigar qualquer tipo de imagem esculpida. O próprio livro do Êxodo, no célebre episódio do Bezerro de Ouro, já condenava explicitamente estátuas ou esculturas, associando-as à idolatria: “Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra”.36 Se vissem tais imagens esculpidas nos templos cristãos, pergunta-se Ernst Gombrich, como os pagãos recém-convertidos ao cristianismo distinguiriam a nova fé de suas antigas crenças? Fosse o caso, responde ele, “poderiam facilmente pensar que uma estátua realmente representava Deus, tal como antes pensavam que uma estátua de Fídias representava Zeus”.37 Já no século VI, contudo, com o argumento de que a pintura religiosa poderia ajudar a congregação a fixar os ensinamentos cristãos, e assim manter viva a memória dos episódios sagrados, o papa Gregório Magno chega a afirmar, segundo Gombrich, que a imagem fazia pelos analfabetos o mesmo que a escrita fazia pelos

35 Segundo Marie-José Mondzain, em Imagem, ícone, economia: As fontes bizantinas do imaginário contemporâneo (Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 107), essa “tradição anicônica do protocristianismo” forneceria argumentos importantes aos iconoclastas do século VIII. 36 Êxodo 20:4. 37 Ernst Gombrich, A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2009, p. 135.

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que sabiam ler.38 O argumento pedagógico em favor da imagem, alçada temporariamente ao patamar da palavra, não iria durar muito tempo. Ao longo de várias décadas, num vai e vem constante, muitas dessas imagens didáticas, defendidas pelo papa latino, seriam posteriormente substituídas pelo símbolo da cruz. Na primeira crise do iconoclasmo bizantino, os iconoclastas vencem a disputa sobre os iconófilos e proíbem toda e qualquer imagem religiosa: os ícones (eikon). O imperador Constantino V (741-75), porta-voz do iconoclasmo de Estado, condenava os ícones baseado nos seguintes argumentos. Em primeiro lugar, segundo a filósofa argelina Marie-José Mondzain, por sua materialidade: “Se o ícone é semelhante ao modelo, deve ser da mesma essência e da mesma natureza que ele. Ora, o ícone é material e o modelo é espiritual; logo, ele é impossível”.39 Em segundo lugar, por sua divisibilidade, ao separar a forma sensível do modelo de sua forma invisível. Em terceiro, pela finitude do ícone: ao almejar encerrar o modelo (infinito) em seu traçado, ele revelaria sua falsidade. Por fim, o ícone é condenado por sua suposta condução à idolatria: se o ícone é venerado naquilo que mostra, sua superfície material, então todo iconófilo é um idólatra. Dessa forma, conclui Mondzain, as únicas mimesis possíveis na vigência de Constantino V seriam “a cruz, a eucaristia, a vida virtuosa e o bom governo”.40 Para que os iconófilos saíssem vencedores dessa batalha, seria necessário que, após longos anos de proibição e destruição de imagens, Nicéforo formulasse em Constantinopla os Antirréticos

38 Gombrich, 2009, p. 135. 39 Marie-José Mondzain, 2013, p. 105. 40 Ibid., p. 106.

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(820 d.C.) A pedra fundamental de sua argumentação baseava-se no conceito de “economia” (oikonomia). Essa palavra de origem grega, tomada de empréstimo de Aristóteles,41 já havia sido anteriormente empregada para resolver o impasse da Unicidade de Deus na doutrina da Santa Trindade. No início da era cristã, a designação da Trindade Pai/Filho/Espírito Santo gerou inúmeras controvérsias no interior da Igreja. Tal tríplice nominação do poder divino poderia permitir a interpretação de que o cristianismo seria politeísta, acarretando assim um retorno ao paganismo. Para resolver essa questão, repleta de implicações perigosas, os teólogos cristãos retomaram o termo grego, incorporando a oikonomia na doutrina da Santa Trindade. Dessa forma, amparados no argumento econômico, puderam afirmar que, embora seja uno em sua substância, a maneira de Deus administrar seu poder é tríplice. Deus, quanto ao seu ser e à sua substância, é, certamente, uno; mas quanto à sua oikonomia, isto é, ao modo em que administra a sua casa, a sua vida e o mundo que criou, é, ao contrário, tríplice. Como um bom pai pode confiar ao filho o desenvolvimento de certas funções e de certas tarefas, sem por isso perder o seu poder e a sua unidade, assim Deus confia a Cristo a “economia”, a administração e o governo da história dos homens.42

Muitos anos depois, entre 818 e 820, no tratado de Nicéforo, o conceito grego de oikonomia é retomado – dessa vez para garantir a vitória sobre os iconoclastas. O argumento se baseava no acréscimo

41 O sentido original da palavra oikonomia esteve associado, como diz Giorgio Agamben, em O que é o contemporâneo? E outros ensaios (Chapecó: Argos, 2009, p. 35), à administração do oikos, da casa, podendo ser empregada também como “gestão”. 42 Ibid., p. 36.

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de um elemento relacional entre a representação e o modelo; ou seja, entre as imagens e as figuras bíblicas que as inspiravam. A doutrina do ícone, inaugurada para identificar na imagem a definição do Ser pela relação com o invisível, adaptava-se perfeitamente bem às intenções dos que eram favoráveis à imagem: a partir de então os ícones não seriam mais vistos como uma duplicação da divindade. Embora tenham partido da mesma argumentação dos iconoclastas, criticando a consubstancialidade entre essência e matéria, os iconófilos acrescentam o conceito operatório da oikonomia e assim conseguem momentaneamente responder às inquietações provocadas pela imagem religiosa. O ícone relaciona o visível e o invisível sem fazer concessão ao realismo, mas sem desprezar a matéria. Com isso se abriu, graças à relação, uma reflexão sobre o sentido de sua abstração, e a economia pôde tornar-se a principal operadora dessa relação “abstrata” que caracteriza a semelhança formal e intencional do ícone com seu modelo.43

Para que possamos entender de que forma o ícone relaciona o visível e o invisível, tal como diz Mondzain, convém voltarmos à época em que a oikonomia grega fora traduzida para o latim. No artigo “O que é um dispositivo”, ao longo do qual expõe sua “genealogia teológica da economia”, Giorgio Agamben explica que os padres latinos traduziram o conceito grego por meio do termo dispositio. Dessa herança, o dispositivo “vem assumir em si toda a complexa esfera semântica da oikonomia teológica”.44 Marie-José Mondzain nos ajuda a ligar melhor os pontos. O mesmo dispositio,

43 Marie-José Mondzain, 2013, p. 120. 44 Giorgio Agamben, op. cit, p. 38.

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segundo a autora, equivale à palavra grega systema – adquirindo, assim, o sentido de “organização”.45 Dessa forma, limitando-se ao espectro teológico do termo latino (e, portanto, ligado ao oikonomos divino), o dispositivo seria aquilo que organizaria e daria ordem ao mundo. Ao contrário de Mondzain, o interesse de Agamben pela derivação do dispositio latino se deve à sua conceituação moderna. Após identificar que a oikonomia grega estaria na origem dos dispositivos de poder de que fala Michel Foucault, Agamben propõe um alargamento do sentido foucaultiano, buscando, assim, uma aplicação mais geral da palavra. Agamben sugere que a linguagem teria sido o mais antigo dos dispositivos inventados pelo primata. A linguagem se inscreve, afinal, em um sistema triangular formado por: “seres viventes”, “dispositivos” e “sujeitos”. Os sujeitos, segundo a lógica de Agamben, seriam tudo o que resultaria do corpo a corpo entre os outros dois vértices desse triângulo: o homem e o dispositivo. Assim, já direcionando o emprego do conceito em que queremos chegar, poderíamos definir o dispositivo como sendo tudo aquilo que organiza e ordena qualquer processo de subjetivação do ser humano. Voltemos à doutrina do ícone. Salvaguardado pelo acréscimo do elemento relacional encontrado no argumento econômico (ou seja, inscrito nesse sistema triangular que o impedia de se equivaler ao modelo divino), o ícone não correria mais o risco de provocar a idolatria. A autonomia adquirida pela imagem religiosa, outrora vista como inseparável do seu referente, foi o golpe de misericórdia desferido contra os iconoclastas. Em A imagem proibida:

45 Marie-José Mondzain, “Image, sujet, pouvoir (entretien)”. Sens Public, jan. 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2021.

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Uma história intelectual da iconoclastia, para deixar claro que a materialidade do ícone não designa a materialidade de Deus, ou seja, que a pintura não circunscreve a divindade (contentando-se em simplesmente referenciá-la), Alain Besançon dirá que, na verdade, os ícones circunscrevem somente “o que é compreendido pela inteligência, pelo conhecimento e pelo sentido sob o modo apenas da semelhança”.46 Assim, o verdadeiro objeto de circunscrição seria não o objeto representado, mas a figura arquetípica almejada – ou seja, a hipóstase. Ao contrário de um ídolo, portanto, o essencial de um ícone não era o que se oferecia integralmente a ser contemplado, mas aquilo que estaria sob a substância (em tradução do grego, hypostasis).

***

Feita essa digressão à crise do iconoclasmo bizantino (e, por conseguinte, às raízes do problema trazido pela imagem religiosa), creio que começa a ficar mais claro aonde desejamos chegar. O recuo foi feito para traçarmos um paralelo entre o argumento econômico da doutrina do ícone e o que reside por trás da operação empregada por DeMille. Ciente da natureza problemática da imagem religiosa no cinema, podendo incitar a idolatria, DeMille e sua equipe teriam optado por uma operação que consistiu em acrescentar um elemento relacional no momento da aparição de Cristo. O acréscimo se mostra como um espelhamento, sem dúvida inconsciente, do argumento vencedor utilizado na segunda

46 Alain Besançon, A imagem proibida: Uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 210.

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crise do iconoclasmo bizantino. A relação econômica do ícone com aquilo que ele evoca é marcada por uma mediação; e foi justamente essa mediação que garantiu o alargamento da distância entre a imagem e o seu referente (os modelos bíblicos). Aqui, igualmente, o dispositivo empregado por DeMille inscreve a aparição de Cristo num sistema triangular. Assegurado pela incorporação desse terceiro elemento (o dispositivo) ao sistema binário de uma simples representação (ator = personagem), o filme se livra das armadilhas da imagem religiosa. Ao não caracterizar Jesus de forma acabada e verossímil, preferindo apenas evocar sua presença, DeMille evita os riscos de uma representação idólatra de Cristo. Caso não tivesse tomado as devidas precauções, recorrendo a uma caracterização singularizante de Jesus, a sua aparição poderia ser mal recebida pelo público dos anos 1920. Ao tomar cuidado para jamais encerrá-lo por completo na imagem, condicionando a aparição de Cristo a um complexo dispositivo mediador, o espectador é convidado a completar as lacunas de tudo aquilo que é apenas sugerido na cena. Façamos um último esforço analítico, retomando a cena selecionada. Ao final da cura do cego, o que vimos não foi a simples representação mimética do ator que representa Jesus Cristo, mas a imagem finalizada e reconhecível de um ícone crístico. Além da referência estabelecida com os ícones, herdando o seu sistema mediador, a própria imagem vista não parecia muito verossímil. Desprovido de movimento e carnalidade, chapado contra um fundo escuro e sem qualquer apelo aos sentidos, o Cristo do filme era pura abstração. DeMille recria a imagem de um rosto que não parece feito de carne e osso, mas de uma matéria luminosa concebida com o propósito de se fixar em nossas mentes. A partir de uma mancha redonda e opaca, vemos se delinear os traços essenciais de seu rosto. Após um longo processo de formação do ícone, o que se

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vê no final é a imagem residual de Cristo. A condensação da imagem de Jesus, favorecida pela síntese que se encerra em sua superfície, se apresenta como traço, como vestígio de uma remota presença. Nesse sentido, a escolha da referência iconográfica empregada parece muito acertada. Segundo os historiadores da arte bizantina Manolis Chatzidakis e André Grabar, a relação dos ícones com o real, sempre diferente de acordo com a época ou com a escola, nunca ultrapassa certos limites, nas duas direções, da semelhança e da dessemelhança. Enquanto a semelhança salvava a pintura bizantina dos excessos de estilização, a dessemelhança impedia que se criasse uma ilusão de duplicação do modelo representado. Na justa medida de um mundo ao mesmo tempo parecido e diferente do nosso, os ícones se revelavam “uma espécie de intercessor místico entre o mundo inteligível e o mundo sensível”.47 Em Rei dos reis, igualmente, a referência pictórica empregada na cena denota esse mesmo cuidado de situar Cristo entre a semelhança e a dessemelhança. Antes depositada em nosso imaginário iconográfico, a imagem icônica de Jesus se revela estranhamente familiar e ao mesmo tempo distante. É como se, há muito tempo, já tivéssemos visto aquela imagem. O Cristo demilliano é uma lembrança antiga. No meio do caminho entre a familiaridade e o distanciamento, somos convidados a efetuar um trabalho de resgate, um apelo ao passado. Tal como em uma fotografia antiga, um retrato de família encontrado num velho baú, o reconhecimento da face de Jesus é feito por um processo de reativação da memória. A imagem que se apresenta ao espectador, como dissemos anteriormente, não se oferece de forma finalizada, mas como um

47 Manolis Chatzidakis e André Grabar, op. cit., p. 11.

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veículo por meio do qual devemos reconstituir uma imagem virtual. O dispositivo empregado por DeMille nos convida a acessar a imagem de Cristo de forma indireta. Esse percurso circular, cuja extensão segue um caminho para dentro (da imagem apresentada aos confins da memória), nos dá a sensação de uma imagem reencontrada. A referência aos ícones bizantinos é usada para provocar no espectador da época, por um reflexo da memória, a sensação de reconhecimento. Esse trabalho de resgate se deve exclusivamente ao poder de evocação do ícone. Importante destacar, portanto, a relevância da instância mediadora. Foi justamente o acréscimo do dispositivo econômico empregado (o terceiro vértice de um sistema epistemológico triangular) que permitiu o processo de subjetivação responsável pela formação dessa imagem mental reencontrada. DeMille dispensa a representação figurativa do rosto de Cristo, sacrificando o impulso da verossimilhança, para oferecer ao espectador uma imagem mental que subjaz à representação icônica. A imagem de Cristo não se apresenta em sua totalidade, ela se revela um intercessor entre o que é dado a ver e o que é apenas evocado. Ao explicitar a mediação, convidando o espectador a percorrer uma via indireta, nos sentimos acolhidos diretamente pela presença de Cristo. Cecil B. DeMille consegue, a um só tempo, resolver o impasse da imagem religiosa (evitando os riscos de uma representação idólatra) e permitir que o espectador reconstrua mentalmente a imagem “autêntica” de Jesus. Eis a aposta de DeMille: uma imagem chama outra imagem. A verdadeira imagem.

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5. Jesus Cristo, um personagem de cinema

Em O rei dos reis (King of Kings, 1961), de Nicholas Ray, o ator escolhido para o papel de Jesus se chama Jeffrey Hunter. Após ganhar projeção em Rastros de ódio (The Searchers, 1956), de John Ford, no qual interpretava o sobrinho mestiço Martin Pawley, Hunter passa a ser escalado em papéis cada vez mais importantes. Alguns anos antes de O rei dos reis, já havia trabalhado em outro filme de Ray, Quem foi Jesse James (The True Story of Jesse James, 1957), no qual interpretava o irmão do lendário ladrão de bancos. Embora não fizesse parte do primeiro escalão de Hollywood, Hunter foi ganhando prestígio entre os adolescentes. Em pouco tempo, tornou-se um ator desejado pela indústria, sobretudo por seu potencial de atrair uma fatia importante do mercado cinematográfico: a do público jovem. Conhecido por sua beleza clássica e seus olhos azuis, Hunter foi muito atacado pelos críticos do filme, que o acusaram de ter dado a Jesus um aspecto pueril e superficial. Uma piada que surgiu na época do lançamento do filme – usando

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como referência o filme de Gene Fowler Jr., I was a Teenage Werewolf (1957) – se referia parodicamente ao filme de Ray como “I was a teenage Jesus”.48 A Paixão de Ray, estigmatizada pela escolha de um ídolo dos adolescentes para o papel de Jesus, teve sua carreira muito prejudicada. Mas as críticas negativas não se restringiram apenas à atuação de Hunter, atingiram também o já consagrado diretor Nicholas Ray. Na época do lançamento do filme, por exemplo, em uma crítica publicada no Jornal do Brasil, Claudio M. e Souza escreve que, “além de cansar, além de exaurir, este filme O rei dos reis é uma blasfêmia”.49 Continua logo em seguida: “Em seu delírio de espetáculo, possuídos de uma inequívoca vocação para fatos epopeicos, os superprodutores de Hollywood passaram a ver a história dos homens com lentes deformantes”. Mesmo os críticos que pareciam ter bastante intimidade com a obra de Ray, e que, portanto, procuraram fazer a leitura dessa Paixão amparada pela extensão de sua filmografia, acusaram o simplismo da mensagem evangélica. Em um livro redigido muitos anos após a estreia do filme, Pierre Prigent faz referência a Johnny Guitar (1954) como “expressão de uma espécie de nostalgia do paraíso perdido”, para em seguida reafirmar, em sintonia com a massa crítica da época, que O rei dos reis reduzia “o Evangelho a uma mensagem idealista, sem verdadeira dimensão transcendente”.50 A impressão geral deixada pelo filme, na época do lançamento, em síntese, foi essa:

48 Luiz Antonio Vadico, A imagem do ícone – Cristologia através do cinema: Um estudo sobre a adaptação cinematográfica da vida de Cristo. Tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas, 2005, p. 67. 49 Claudio M. e Souza, “O rei dos reis”. In: Thiago Brito e Eduardo Cantarino (Orgs.), O cinema é Nicholas Ray, CCBB (catálogo), 2011, p. 88. 50 Pierre Prigent, Jésus au cinéma. Genebra: Labor et Fides, 1997, p. 31.

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uma Paixão cuja mensagem cristã havia sido esvaziada pela dimensão do espetáculo. Para que possamos confrontar a má recepção do filme, e colocar à prova a referida espetacularização, iniciaremos a análise pela forma como foi trabalhado um dos elementos estilísticos mais recorrentes em O rei dos reis: as sombras de Cristo. Para melhor compreendermos o propósito delas, adotaremos a análise comparativa desse mesmo elemento no filme de William Wyler, Ben-Hur (1959), realizado apenas dois anos antes da Paixão de Nicholas Ray. Veremos também alguns procedimentos similares aos de Wyler adotados por Fred Niblo em Ben-Hur: A Tale of the Christ (1925).

5.1. As sombras de Cristo A série Ben-Hur no cinema é composta por vários filmes feitos após o enorme sucesso de público da montagem teatral do fim do século XIX. A história, adaptada do famoso livro de Lew Wallace, Ben-Hur: A Tale of the Christ (1880), ganhou destaque ao situar a trama principal, com personagens fictícios, no contexto dos Evangelhos. Assim, ao entrelaçar as aventuras do herói Judas Ben-Hur com algumas passagens da vida de Jesus, misturando elementos do épico com instantes de expiação religiosa, o livro se beneficia da conversão do protagonista à nova fé para ganhar uma inesperada dimensão espiritual. As duas adaptações cinematográficas mencionadas anteriormente foram, em suas respectivas épocas, grandes êxitos comerciais. Tanto no filme de Niblo quanto no de Wyler, nota-se uma desconfiança com a imagem religiosa, o que se reflete em reservas

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quanto à representação de Jesus. Além do uso de sombras, recorria-se abundantemente a enquadramentos que privilegiassem a fragmentação do corpo. Ao minimizar a frontalidade da composição, optando por um posicionamento enviesado de Cristo, era possível preservar seu rosto. No episódio da Última Ceia da versão de Niblo, por exemplo, muito se falou da disposição espacial de um dos apóstolos, posicionado fixamente no meio do quadro para bloquear o rosto de Jesus. Os únicos traços visíveis de Cristo são os raios luminosos de sua auréola entrevista por trás da cabeça do discípulo. Em outro momento, enquanto Jesus caminha rumo ao calvário, veem-se apenas suas pegadas. Na impossibilidade de mostrar sua face, Niblo recorre aos vestígios deixados por seus pés ensanguentados antes da crucificação.

Ben-Hur: A Tale of the Christ (1925), de Fred Niblo

Em um texto escrito para a revista Études Cinématographiques, o crítico Pierre Leprohon afirma que o filme de Niblo é mais bem-sucedido que o seu contemporâneo Rei dos reis (1927), de Cecil B. DeMille (analisado no capítulo anterior). Em um comentário de base anicônica, Leprohon elogia a operação adotada por Niblo com

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o argumento de ter conseguido superar as “dificuldades de materializar a imagem da divindade”.51 Em seguida, completa: Do personagem de Jesus que atravessa a trama romanesca, ele [Niblo] só mostra sombras, pedaços da roupa, uma das mãos... jamais um rosto, nem uma silhueta inteira. E essa sugestão, é preciso dizer, funcionava muito mais do que uma visão direta.52

Já na produção de William Wyler, Ben-Hur (1959), o procedimento mais empregado para evitar a representação de Cristo é o uso de sombras. Nas vezes em que o personagem de Jesus aparece de frente, como na cena do julgamento romano, é empregado um efeito que consiste em sombrear o seu rosto, tornando-o inacessível ao espectador. Todos os personagens do filme conseguem vê-lo, só o espectador é privado dessa imagem. Na cena do calvário de Cristo, igualmente, a multidão se aglutina em torno dele, mas ao espectador são concedidas apenas as sombras da cruz projetadas nas paredes. O uso intencional dos efeitos de sombra denota o pudor de Wyler em mostrar o rosto de Jesus, gesto que revela uma relação problemática com a imagem religiosa. Em Le Cinéma est-il iconoclaste?, Marion Poirson-Dechonne se pergunta as razões pelas quais Wyler teria optado pelo emprego de tais recursos para esconder a face de Jesus. Teria sido mero jogo estilístico ou eco de algo mais profundo?53 A resposta a essa

51 Pierre Leprohon, “Les Évocations directes de la passion”. In: Michel Estève (Org.), Études Cinématographiques: La Passion du Christ comme thème cinématographique. Paris: Minardi, 1961, p. 146. 52 Ibid., p. 146. 53 Marion Poirson-Dechonne, Le Cinéma est-il iconoclaste? Paris/Condé-sur-Noireau: Cerf/ Corlet, 2011, p. 128.

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Ben-Hur (1959), de William Wyler

pergunta se dá sob a forma de um paradoxo: guiado por uma tradição que evita representar a divindade e, ao mesmo tempo, enquanto realizador, tomado pelo impulso contraditório de tentar filmar o “infilmável”, Wyler acaba explicitando o próprio tabu da imagem – padrão de representação que a autora chama de aniconismo. Mais adiante, Poirson-Dechonne identifica que, nos materiais de distribuição dos dois filmes citados, não são mencionados os atores que interpretaram o papel de Jesus. Essa curiosa omissão revela algo importante sobre as duas produções. Embora Jesus exerça papel de destaque no romance original (destaque mantido nas duas adaptações), optou-se por esconder a identidade do homem responsável pelo gesto quase blasfematório de interpretá-lo. Para que possamos dar início ao paralelo com o filme de Nicholas Ray (1961), contemporâneo ao de Wyler (1959),

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precisamos nos fazer a seguinte pergunta: as abundantes sombras em O rei dos reis teriam sido usadas com o mesmo propósito que as de Ben-Hur – ou seja, para esconder a imagem de Jesus? A resposta é não. Embora ainda mais recorrentes do que na obra de Wyler, as sombras de Cristo são usadas por Ray com propósitos semânticos e estilísticos. Na época da realização do filme, o experiente cineasta Nicholas Ray não parecia ter qualquer pudor quanto à representação da divindade. As sombras são empregadas, assim, como recursos de linguagem para demarcar, por meio de uma operação de realce ou de significação, alguns gestos de Cristo. Daí decorre que, em um dos milagres do filme, na cura do paralítico, as sombras das mãos de Cristo são usadas para ilustrar o que a voz off dizia imediatamente antes: “Era o tempo dos milagres, e Jesus ergueu suas mãos e limpou aqueles que estavam tomados por espíritos impuros. Porque Dele saía virtude, e assim curou a todos”. A sombra de Jesus é usada para dar visibilidade à “virtude” que “Dele saía”. Logo em seguida, na cena da cura do cego (cuja análise detalhada veremos mais adiante), também se usa esse mesmo recurso. Enquanto o cego tateia o espaço com um cajado, antes mesmo do milagre que lhe restituirá a visão, ele pressente a aproximação divina. A sombra de Jesus é um recurso estilístico usado para expressar aquilo que escapa aos sentidos do cego. Além de não terem o propósito de esconder a face de Cristo, as sombras acabam agindo no sentido de realçar o contorno de sua presença. Excessivamente demarcadas, elas são trabalhadas por Ray para acentuar um gesto, pronunciar um movimento, enfatizar uma ideia, enfim, as sombras se revelam uma figura de estilo. Na cena final, após a Ressurreição de Cristo, sua sombra aparece novamente, dessa vez com propósitos semânticos. Após ouvirem as palavras finais de Jesus, os discípulos, reunidos em torno de

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uma rede de pesca na praia, vão aos poucos deixando a areia. O último a sair de quadro, ganhando destaque na cena, é o ex-pescador Pedro – o apóstolo nomeado para conduzir a Igreja. Em seguida, no último plano do filme, a sombra de Jesus é projetada na areia para formar, junto com a rede de pesca estendida na horizontal, a imagem da cruz. O sentido da cena é claro: na ausência física de Jesus, a mensagem cristã sobreviverá pelo testemunho de suas palavras. Conclui-se, assim, que a sombra de Jesus é usada para dar significação ao episódio conhecido como Primado de Pedro: sob a influência de Jesus, Pedro perpetuará os seus ensinamentos.

O rei dos reis (King of Kings, 1961), de Nicholas Ray

As constatações acima se tornam ainda mais claras quando verificamos que, ao longo do filme, Nicholas Ray filma o rosto de Jesus sem qualquer pudor, em diferentes escalas e angulações, explorando recursos estilísticos que realçam sua força e sua beleza. Ray expressa uma atitude despreocupada em relação à tradição

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anicônica da representação de Jesus. Em O rei dos reis não há qualquer tabu concernindo à representação imagética de nenhum dos personagens. O afastamento da tendência de desconfiança da imagem religiosa – que ignora prescrições de como filmar o divino – talvez explique, ao menos em parte, a má recepção do filme na época de seu lançamento. Embora seu fracasso ultrapasse o argumento religioso, a imagem de Cristo decerto provocou incômodo. Teria razão o crítico supracitado do Jornal do Brasil ao acusar o filme de Ray de blasfêmia? Dissemos anteriormente que o ator Jeffrey Hunter era um ídolo jovem da época. Façamos então a seguinte pergunta: será que Ray teria filmado seu ator como quem filma um ídolo pagão? Para que possamos avaliar a hipótese da idolatria, antes mesmo de voltarmos à análise fílmica, precisamos fazer um breve recuo. Analisaremos a seguir aquilo que essencialmente caracterizaria um olhar idólatra. Para melhor defini-lo, avançando por comparação, iremos nos amparar na famosa dualidade eikon/eidolon. Quais seriam, afinal, as diferenças entre aquilo que chamamos hoje pelos nomes de ícone e ídolo?

5.2. O ícone, o ídolo Segundo o historiador da arte Jean-Yves Leloup, o ícone se notabiliza por sua capacidade de evocar outras imagens: “o ícone nunca é uma descrição, mas uma evocação [...] ele pode nos ensinar a ler o Invisível no visível, a Presença na aparência”.54 Já o ídolo, limitado à sua aparência visível, simplesmente “detém o

54 Jean-Yves Leloup, op. cit., p. 15.

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olhar que não pode ir além da imagem dada”.55 Dito de outra forma, enquanto o ícone exprime a Presença que subjaz à representação, o ídolo encerra o olhar do sujeito na totalidade da representação. Marie-José Mondzain descreve a oposição entre eikon/eidolon a partir do acréscimo do elemento operatório da oikonomia. Enquanto o primeiro designa uma “relação”, o segundo aponta um “objeto”. Os iconoclastas dizem que todo eikon não se deixa conhecer senão como eidolon, portanto, haveria idolatria. A resposta dos iconófilos, triunfante – e que penso ser extremamente interessante –, é que o único meio de salvar o regime da imagem é dizer que entre eikon e eidolon há incompatibilidade, uma distinção definitiva; há mesmo uma contradição. Eikon designa uma relação, eidolon designa um objeto. E, portanto, os iconófilos puderam dizer aos iconoclastas: vocês é que, ao destruírem os ícones, são idólatras, uma vez que diante da fragilidade e aparência do ícone vocês veem apenas o objeto.56

Tanto Mondzain quanto Leloup enfatizam o papel de quem empresta ao ícone o seu olhar. Obra de uma imaginação criadora, o ícone se revela por completo apenas com a participação do sujeito da visão. Assim, a dualidade entre ícone e ídolo se faz também no olhar de quem vê as imagens. Há uma maneira de olhar, segundo Leloup, que “reifica, que ‘coisifica’ tudo que existe”.57

55 Jean-Yves Leloup, op. cit., p. 14. 56 Marie-José Mondzain, 2008. 57 Jean-Yves Leloup, op. cit., p. 14.

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Se considerarmos a imagem a partir de quem a vê, transferindo essa oposição para o olhar da pessoa que a contempla, poderíamos pensar essa dualidade em outros termos, a partir da visão do idólatra e do iconógrafo. O idólatra tem o olhar capturado por aquilo que vê, ele tem os olhos “cheios disso”. O conhecimento idólatra tem a inteligência capturada por aquilo que sabe. A afetividade idólatra tem o coração capturado por aquilo que ama. A religiosidade idólatra tem a fé capturada por aquilo que crê. Em cada um desses campos, os objetos do conhecimento ou do desejo são vistos como se fossem o Real. Quanto ao iconógrafo (que definimos aqui não apenas como aquele que sabe “escrever” o ícone, mas também como aquele que sabe “lê-lo”), o visível abre seus olhos para o invisível, ele tem a inteligência e o coração não capturados por aquilo que sabe ou aquilo que ama; exatamente o contrário, o que ele sabe e o que ele ama abrem o caminho para o Real que lhe escapa e que o transborda sem cessar, no qual, no entanto, participa como sujeito.58

Em A imagem pode matar?, Mondzain recorre a esse mesmo vocabulário derivado da literatura cristã para refletir sobre a produção e a difusão da imagem contemporânea. Como o espectador moderno deve se colocar diante de uma imagem? Qualquer uma delas, segundo a autora, pode estabelecer uma relação econômica com aquilo que por ela é sugerido. Mesmo entre as imagens não religiosas, sempre pode haver uma negociação do olhar entre o visível e o invisível; e quem rege essa economia, qualificando a imagem de acordo com as categorias supracitadas (eikon/eidolon), é

58 Jean-Yves Leloup, op. cit., p. 15.

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justamente o espectador. Poderíamos, portanto, sintetizar essa dualidade da seguinte maneira: as imagens icônicas produzidas ainda hoje instituem uma relação (sugerindo, portanto, um imaginário), enquanto as imagens idólatras se mantêm fixadas ao próprio objeto. Esses conceitos operatórios, segundo a filósofa argelina, seriam ainda hoje válidos para analisar uma obra artística ou, por exemplo, uma peça publicitária. Assim, tomado por esse espírito derivativo, sem perder de vista o rigor conceitual, pretendemos examinar a hipótese levantada acerca do filme de Nicholas Ray: a imagem de Cristo em O rei dos reis é, afinal, uma incitação à idolatria? Uma vez diagnosticadas as diferenças fundamentais entre esses dois regimes de imagem, voltemos à análise do filme.

5.3. Jesus Cristo em superclose-up A fim de confrontar a má recepção de O rei dos reis e colocar à prova a dimensão do espetáculo, vejamos a seguir, em apenas três fotogramas, como Nicholas Ray encena a cura do cego. Para darmos início à análise da cena, façamos de imediato a seguinte pergunta: onde está o milagre? Ou melhor, em que instante ele é encenado? Objetivamente falando, a cura do cego reside em qual dos três fotogramas ao lado? Levando em consideração que o primeiro mostra os olhos do cego revestidos por uma película amarelada (que indica a cegueira) e que no terceiro vemos seus olhos sem ela (e, portanto, já devidamente curados), somos levados a crer que a cura se dá no plano de Cristo. O close no rosto de Jeffrey Hunter, porém, não possui qualquer ação ou diálogo. Entre os dois planos do cego, não há nada mais que a imagem

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imóvel e muda do rosto de Cristo. Como poderia um plano, ausente de qualquer palavra ou gestualidade, permitir semelhante leitura? Como Nicholas Ray teria conseguido dar significação ao milagre ao simplesmente filmar o rosto de Cristo?

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Em oposição à cura do cego no filme de DeMille, fruto de um processo lento e gradual, a cura no filme de Ray se encerra numa ação pontual e rápida. Tudo se resolve no súbito desaparecimento da película amarelada que impedia a luz de penetrar as pupilas do cego. A simplicidade da operação, a forma imediata com que o milagre foi realizado e o aspecto automático da cena sugerem que o milagre se apoiou em uma operação semântica. Mas onde se encontra tal operação? Vejamos novamente a imagem ilustrada no segundo fotograma. O que vemos na imagem senão os grandes olhos azuis de Hunter? Seus olhos, de fato, ganham muito destaque na cena. Supõe-se que, para representar o milagre, Nicholas Ray tenha se apropriado do potencial de significação da imagem: os olhos de Cristo. Em se tratando de um milagre visual, um milagre centrado justamente na restituição da visão, não é improvável que Ray tenha feito uso do conteúdo significante do plano para operar a cura do cego. Assim, no nível da linguagem, são os olhos de Cristo que parecem mover e dar sentido à cena. Até aqui, a ênfase da análise foi dada a um único aspecto, o conteúdo significante do plano, manifesto nos olhos de Jesus. Sem qualquer ação, diálogo ou gestualidade, a presença muda de Cristo, pela simples força do olhar, parece ter sido suficiente para operar o milagre. O que ainda não exploramos foi a forma como o seu rosto foi filmado. A significação do plano não se resume a seu próprio conteúdo dramático. Para atingir o sentido almejado na cena, foi preciso que Nicholas Ray empregasse um recurso ainda pouco explorado na época, o superclose-up. Nos parágrafos seguintes, tentaremos esmiuçar os efeitos dessa operação na Paixão de Nicholas Ray.

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Antes de Sergio Leone adotar sistematicamente o supercloseup em seus filmes e transformá-lo em uma de suas marcas registradas, Nicholas Ray recorta o rosto de Cristo na altura de seus olhos. Além de ocupar todos os cantos da imagem, o plano enquadra nada mais que os olhos, as sobrancelhas e um pedaço de seu nariz. A moldura excessivamente fragmentada, que explora ao máximo a lateralidade da janela 2:35 (formato Technirama), é usada para dar expressividade adicional ao rosto do ator. A intensidade cromática do filme, potencializada pelo uso do Technicolor (em suporte de película 70 mm), por sua vez, é explorada para destacar seus olhos azuis. Para não banalizar a expressividade do superclose, recurso muito pouco empregado antes de 1961, sobretudo no cinema comercial,59 Ray decide usá-lo em apenas dois momentos: no batismo de Jesus, quando o vemos pela primeira vez no filme, e na cura do cego. Na leitura que aqui fazemos do filme, esse recurso de aproximação corresponde à fratura exposta da representação. Tal como vimos nas demais análises fílmicas, o desafio imposto pelo milagre teria provocado, devido ao seu caráter descontínuo, uma perturbação no tecido fílmico. O emprego do superclose-up, além de valorizar o conteúdo significante do plano, termina por revelar a presença do aparato cinematográfico. Para que possamos descrever os efeitos provocados pelo emprego do superclose-up no filme de Ray, faremos um paralelo com o cinema de Sergio Leone. Aparentemente gratuita, a comparação com o cineasta italiano nos ajudará a caracterizar, por contraste, o que se depreende do plano próximo no rosto de Jesus. O chamado

59 Importante lembrar que, em 1961, quando Ray filma sua Paixão, o close na altura dos olhos era bastante incomum no cinema comercial, ainda que eventualmente encontrado no cinema de Samuel Fuller.

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western spaghetti, idealizado algumas décadas após o apogeu do western americano (autoconsciente, portanto, dos rastros deixados pelo gênero original), revisitava o universo do faroeste com paixão e saudosismo. Esse distanciamento nostálgico, transfigurado pelo olhar maneirista de Leone, oferecia condições ideais para a sistematização do superclose-up. A recorrente alternância do plano próximo do ator com planos gerais do deserto (num uso combinado de dois grandes gêneros pictóricos: o retrato e a paisagem) é uma marca do cinema de Leone, e o jogo de contrastes estabelecido pela montagem valorizava ainda mais o rosto de seus atores. Estes, por sua vez, eram filmados para evocar as grandes figuras do Velho Oeste americano: não as figuras históricas, mas os personagens que integraram o imaginário dos filmes de faroeste. Em Três homens em conflito (The Good, the Bad and the Ugly, 1966), por exemplo, os superclose-ups do duelo final – a cena que corresponde ao acerto de contas dos três personagens citados no título – são usados com o propósito de cristalizar o papel de cada um deles. Os planos próximos de seus rostos são trabalhados como uma espécie de redução máxima de tudo aquilo que os caracterizaria essencialmente. Algumas das figuras arquetípicas do faroeste encontram sua expressão definitiva no rosto dos três atores. Assim, por exemplo, a quintessência do herói ganha uma figuração no rosto acidentado de Clint Eastwood. Suas marcas de expressão servem de palco para deflagrar as narrativas mitológicas que povoavam o imaginário cinéfilo de Leone e de seu público. Na filmografia do realizador italiano, entre um filme e outro, há algumas variações no uso e no efeito do referido close-up. Algo, porém, se mantém constante em todos eles: o rosto do ator parece evocar um fora de campo. Há sempre algo que escapa à totalidade da imagem. Em Era uma vez no Oeste (Once upon a Time in the West, 1968), por exemplo, ao escalar o consagrado ator de western Henry

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Fonda para o papel do vilão, Leone intencionalmente trazia para seu filme a lembrança dos faroestes estrelados pelo jovem Fonda. Muitas décadas após se consolidar como um dos principais mocinhos nos filmes de John Ford, Henry Fonda é resgatado por Leone para interpretar um personagem que encarna a própria maldade. Seu rosto, evidentemente mais envelhecido, é trabalhado por Leone para evocar, por contraste, o seu glorioso passado. Cada ruga, cada cicatriz, cada sulco facial do ator, enfim, todas as marcas de expressão do velho Fonda revelam, na concretude de seu rosto, os vestígios do jovem Fonda.

Três homens em conflito (The Good, the Bad and the Ugly, 1966)

O superclose-up, em suma, é usado por Leone para dar qualidade escultural ao rosto dos atores. A proximidade da composição dá a ver as ranhuras de um rosto monumental. O monumento, contudo, não pertence ao ator – mas ao herói que lhe toma a face. Ao flagrar de perto os detalhes dessa máscara facial, com todas as minúcias dessa grande pedra tumular, as figuras mitológicas do passado são convocadas para dentro do filme, trazidas ao presente pela força do enquadramento em primeiríssimo plano. Resta ao espectador, saciado por um gozo nostálgico, se deleitar com a prazerosa experiência provocada pelo filme.

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Essa digressão ao que parece ser o cerne do gesto maneirista de Leone foi feita com o objetivo de caracterizar, por contraste, o emprego do superclose-up de Jesus Cristo no filme de Nicholas Ray. Enquanto a proximidade da composição era usada por Leone para servir de acesso a um imaginário que preexistia ao filme, tudo o que vemos em O rei dos reis se encerra em sua própria visibilidade. Não há passado nem futuro, a imagem de Cristo traz à superfície somente o que é dado a ver. Sem espaço para a imaginação, resta-nos apenas contemplar a totalidade do que nos é apresentado. Trata-se de uma operação que consiste em nos colocar como que na presença do rosto de Cristo: não do personagem Jesus, nem tampouco do Jesus Cristo histórico, mas do próprio ator que o encarna, Jeffrey Hunter. Autorreferenciado no presente da imagem, Hunter é filmado com o objetivo de não evocar nada senão o próprio conteúdo significante do plano. Seus grandes olhos azuis, motivo central da imagem, ganham bem mais destaque do que sua própria pele. A maquiagem, concebida para desviar a atenção da pele para os olhos, acaba produzindo um efeito colateral interessante. Ao esconder as imperfeições faciais do ator, termina por eliminar a ancoragem por meio da qual o espectador se conecta ao personagem. Jesus Cristo não está lá: resta-nos apenas a presença do ator que o interpreta. O superclose-up de Jeffrey Hunter não nos permite enxergar vestígio algum. Nenhuma marca de sol, nenhum sinal de idade, nenhuma cicatriz, nada em seu rosto nos permite acessar um passado ou um fora de campo qualquer. Dizíamos há pouco que o superclose-up nos filmes de Leone dava aos atores uma qualidade escultural. No filme de Ray, esse mesmo recurso provoca um efeito inteiramente diferente. A maquiagem usada em Hunter é como uma fina camada de tinta a

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óleo, deflagrando um rosto cuja pele parece ter sido colorida com o esmero de um pintor. Se o rosto acidentado de Clint Eastwood se afigurava como uma escultura mal-acabada, o melhor bloco de mármore que existe não seria de qualidade suficiente para servir de matéria-prima ao rosto de Hunter. Além da limpidez da imagem, as próprias margens do quadro – trabalhadas no contexto da cena como uma moldura – reforçam a discreta analogia com a pintura. Na esteira do que havia dito André Bazin em sua célebre síntese sobre cinema e pintura, a suposta qualidade pictórica do plano de Cristo absorve o olhar do espectador para dentro da composição. Uma inevitável força centrípeta nos transporta para uma imagem que parece se encerrar nos limites da moldura. Lembremos: “a moldura é centrípeta, a tela é centrífuga”.60 O fora de campo é aniquilado pelo emprego de um enquadramento que, além de encerrar o espectador nos limites da moldura, o encerra também, ao contrário do cinema de Leone, no presente do que é dado a ver. Trata-se, em suma, de uma operação que consiste em restringir a representação de Cristo à totalidade do visível, esmagando o passado e o futuro num eterno presente. Sendo assim, resta-nos apenas a contemplação, sem fora de campo, de um ator cuja beleza nos enche os olhos. Nicholas Ray filma seus grandes olhos azuis, fazendo-os ocupar a integralidade do quadro, e assim convocando o espectador a olhá-los com olhos idólatras. De todo o paralelo estabelecido com o western spaghetti, importante retermos sobretudo que a escala gigantesca do plano é incorporada ao filme com um importante propósito em mente: apresentar o rosto de Cristo como quem apresenta a imagem de um ídolo pagão.

60 André Bazin, op. cit., p. 207.

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Uma vez sugerida a hipótese da idolatria, resta-nos agora voltar à análise para verificar o sentido da caracterização de Cristo no conjunto do filme. Por que Ray teria optado por exacerbar a imagem de Jesus Cristo? Haveria alguma intenção por trás disso?

5.4. Um ídolo para olhos idólatras A recepção negativa de O rei dos reis, tanto por parte do público quanto da crítica, provocou posteriormente certa dificuldade aos especialistas de cinema religioso que tentaram defender o filme de Ray. Restou aos entusiastas, usando mais ou menos os mesmos argumentos que justificaram os severos ataques, enaltecer a tentativa – talvez a primeira grande tentativa – de fazer de Jesus Cristo um personagem de cinema. Nesse sentido, o mérito de Nicholas Ray estaria no movimento de ingresso de narrativas evangélicas no regime do espetáculo. De fato, a partir de O rei dos reis, as expressões Paixão de Cristo e star system deixariam de ser vistas como uma estranha combinação. Para que esse movimento fique mais claro e possamos identificar os recursos de espetacularização empregados, analisaremos a seguir como Jesus Cristo foi caracterizado de uma forma mais ampla ao longo do filme. Na esteira da polêmica provocada pela imagem de Cristo em O rei dos reis, muito se discutiu sobre a aparência física do Cristo histórico. Como se sabe, não consta nos Evangelhos qualquer descrição física de Jesus. Nos livros canônicos da Bíblia, nada foi escrito sobre sua suposta beleza ou feiura. Além das descrições contraditórias de Jesus nos inúmeros escritos apócrifos, o que se tem como referência são as inúmeras representações de sua imagem ao longo da vasta tradição iconográfica cristã.

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Jaroslav Pelikan, em A imagem de Jesus ao longo dos séculos, traça um panorama da representação de Cristo ao longo de quase dois milênios, descrevendo as principais transformações por que passou a sua imagem, dos primeiros ícones crísticos às referências publicitárias no atual regime de imagens da contemporaneidade. Chama atenção no livro a grande variedade de tipos crísticos identificados. Baseando-se em um padrão observado (cuja arbitrariedade ultrapassa as descrições evangélicas) e se orientando por uma proposta despretensiosa, Pelikan propõe uma história da tipologia de Cristo ao longo dos séculos. Dessa proposta, surgem títulos como: O Cristo Cósmico, O Filho do Homem, O Monge que Governa o Mundo, O Homem Universal, O Noivo da Alma, O Mestre do Bom Senso, O Libertador, O Homem que Pertence ao Mundo, e por aí vai.61 Essa suposta variedade tipológica, contudo, não é unanimidade. No livro dedicado à representação de Jesus Cristo no cinema, Jésus au cinéma, Pierre Prigent identifica a consolidação de um padrão iconográfico estável a partir do século IV ou V. Após um curto período de hesitação, durante o qual Jesus é frequentemente representado como um filósofo grego de traços rudes, um tipo iconográfico vai se estabelecer (entre os séculos IV e V) e posteriormente se perpetuar: Jesus é rejuvenescido ao extremo, e seus traços e penteados serão determinados de acordo com o cânone estético mais bem estabelecido.62

A favor do argumento expresso pela citação acima está sem dúvida o fácil reconhecimento da representação de Jesus Cristo em 61 Jaroslav Pelikan, A imagem de Jesus ao longo dos séculos. São Paulo: Cosac Naify, 2000. 62 Pierre Prigent, op. cit. p. 32.

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praticamente qualquer obra de temática religiosa. Seja pelo usual destaque dado na composição, seja pela identificação do padrão iconográfico, um hipotético espectador desavisado, tão logo bata os olhos na figura de Jesus, saberá perfeitamente bem para quem está olhando. Embora a discussão em torno da imagem de Cristo não seja conclusiva, Nicholas Ray e sua equipe pareciam ter plena consciência de que a caracterização singularizante, marcada pelos ofuscantes olhos azuis, não passaria desapercebida pelo público. A imagem de Cristo adotada, de fato, foge bastante do padrão iconográfico dos demais filmes religiosos. Apoiado na imprecisão acerca da aparência do Jesus histórico e se beneficiando da liberdade que ela traria ao filme, Ray seguiu a direção que lhe convinha: caracterizou Jesus de acordo com o ideal de beleza vigente no momento. Ele, afinal, não queria falar da época em que se passava o filme, mas sim de seu próprio presente. O casting, segundo essa proposta, devia ser concebido em função dos “ídolos” da época. É assim que Jeffrey Hunter, ator em ascensão entre os jovens, é escalado para o papel: além da cor de seus olhos, também os cabelos dourados, a pele bronzeada e os traços faciais delicados pareciam de acordo com o padrão de beleza da época. O modelo gestual, igualmente, devia seguir esse mesmo ideal vigente. É assim que James Dean (falecido precocemente, mas ainda de acordo com esse ideal) é convocado para o filme. Segundo Jonathan Rosenbaum, Dean foi a grande referência para a caracterização do Cristo de Ray. Em artigo escrito em 1973 para a revista Sight and Sound, Rosenbaum diz que “a postura rebelde de Jesus remete diretamente a James Dean e à sua jaqueta de zíper”.63

63 Jonathan Rosenbaum, “Círculo de dor: O cinema de Nicholas Ray”. In: Thiago Brito e Eduardo Cantarino (Orgs.), O cinema é Nicholas Ray, CCBB (catálogo), 2011, p. 151.

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Seguindo essa mesma lógica, a direção de arte devia igualmente se integrar à fotografia do filme para oferecer os signos da modernidade desejada. Assim, como bem observou o pesquisador Luiz Vadico, as cores na cena mais lembrada do filme, o Sermão da Montanha, foram intencionalmente trabalhadas para remeter diretamente à bandeira dos Estados Unidos. Foi preciso que Nicholas Ray colocasse várias vezes Jeffrey Hunter sobre um fundo de céu azul, limpo, sem nuvens. Um céu no estilo barroco: esmagador, ocupando a vastidão da tela. Para que se pudesse vislumbrar o branco, o vermelho e o azul, as cores da bandeira americana.64

A hipótese levantada se mostra especialmente plausível quando se leva em consideração a filmografia de Nicholas Ray. O procedimento, inclusive, já havia sido adotado em Juventude transviada (Rebel without a Cause, 1955). Tanto a jaqueta vermelha, associada ao universo do automobilismo, quanto a calça jeans azul, um signo da juventude, foram supostamente combinadas com a camisa branca para evocar a bandeira dos Estados Unidos – e assim situar Dean no país que inventou a geração dos “rebeldes sem causa”. Assim, tal como havia feito com James Dean, grande emblema de sua geração, Jeffrey Hunter também foi filmado por Ray com as lentes da época. Seus olhos azuis, luminosos como um farol, indicam igualmente a intenção de deslocar o judaísmo de Jesus da cidade de Belém, onde nasceu, para a Califórnia. Trata-se de um Jesus Cristo assumidamente caucasiano. Esse curioso desvio pode ser conferido

64 Luiz Antonio Vadico, 2005, p. 110.

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O rei dos reis (1961), de Nicholas Ray

Juventude transviada (Rebel without a Cause, 1955), de Nicholas Ray

também em outros personagens do filme. A atriz Siobhan McKenna, escolhida para interpretar a Virgem, também fugia do padrão de caracterização de sua personagem. Em vez da habitual fragilidade, a Virgem de O rei dos reis, como observa Vadico, lembrava “em tudo a típica mãe americana da época, aquela que cuida do lar e que, aconteça o que acontecer, parece sempre ter um semblante de força inabalável”.65 Além dos elementos já citados (o casting, a direção de atores e o figurino), é notável também o esforço para adaptar os diálogos do filme a uma forma mais coloquial 65 Luiz Antonio Vadico, 2005, p. 74.

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– gesto que revela uma estratégia de simplificação das Escrituras e, sobretudo, uma desejada aproximação com a linguagem corrente. O uso simultâneo de imagens do cristianismo com signos da cultura pop dos Estados Unidos ganha uma justificativa no reconhecimento da distância existente entre a realização do filme e a antiga Jerusalém. A suposição acima, podendo ou não ser um gesto intencional, recai na inevitável espetacularização de O rei dos reis. Importante destacar que, na época de sua realização, o filme foi a Paixão que contou com o maior número de figurantes. Entre as principais Paixões do cinema, trata-se da primeira a ser fotografada em cores e a escalar, para o papel de Jesus Cristo, uma estrela em ascensão do chamado star system.66 Mesmo que essa exaustiva imbricação de signos não seja racionalizada pelo espectador, o efeito sentido ao longo da projeção é nítido. De uma forma geral, o filme parece todo imantado ao presente. O resultado, como dizia Pierre Prigent, é uma mensagem “sem verdadeira dimensão transcendente”.67 Conclui-se, assim, que os recursos empregados ao longo do filme se revelam coerentes com a ideia de fazer de Jesus Cristo um personagem de cinema. A incitação a um olhar idólatra, gesto verificado na análise da cura do cego, e confirmado no exame global do filme, parece estar de acordo com o propósito de seu realizador: o filme sacrifica a profundidade da mensagem evangélica para se tornar um autêntico produto de seu tempo. Ao se referir

66 Sabe-se que, desde o primeiro cinema, a escolha do ator para o papel de Cristo se baseava, entre outros aspectos, em sua reputação pessoal. Descartando os candidatos com manchas em suas biografias (como, por exemplo, o abuso de álcool ou drogas), restava para o papel atores mais discretos e um pouco alheios à cultura do espetáculo. Jeffrey Hunter, nesse sentido, parece destoar desse padrão. 67 Pierre Prigent, op. cit., p. 31.

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justamente à precisão com que Ray consegue captar as contingências do presente, Jonathan Rosenbaum afirma, num comentário bastante certeiro, que O Rei dos reis é uma versão antecipada da famosa Paixão paródica dos anos 1970, Jesus Cristo Superstar (Jesus Christ Superstar, 1973), de Norman Jewison.68

68 Jonathan Rosenbaum, op. cit., p. 151.

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Parte III Ressurreição

“Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá. Crês nisso?”

João 11:25-26.

6. A ressurreição de Inger

A fortuna crítica acerca de A palavra (Ordet, 1955), de Carl Th. Dreyer, é extensa. Trata-se, afinal, de uma das mais reconhecidas obras da história do cinema. Embora muito já se tenha escrito sobre o filme, não há um consenso estabelecido. A maioria dos textos reconhecem sua grandeza, mas os argumentos de cada autor(a) variam de um texto ao outro. Neste capítulo, selecionamos dois autores com visões bastante distintas. Em seus respectivos textos sobre A palavra, David Bordwell e Alain Bergala fizeram leituras quase antagônicas. Enquanto Bergala aposta na homogeneidade e na limpidez, destacando o plano-sequência como recurso de transparência, Bordwell enfatiza aquilo que chama de “teatralização”, apontando também seus efeitos de estilo. Ambos, porém, estão de acordo quanto à ruptura provocada na sequência final do filme. Segundo os dois autores, na cena do velório de Inger, que corresponde ao último ato da peça original, Dreyer passa a filmar de outra maneira. A ressurreição de Inger, esse evento

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extraordinário, parece provocar uma perturbação na forma fílmica, motivando uma mudança no regime de encenação previamente estabelecido. Nas próximas páginas, detalharemos em que consiste essa ruptura segundo os autores citados – com destaque para o texto de Bordwell, com o qual concordamos parcialmente. Em seguida, já nos instantes finais do capítulo, analisaremos o que se supõe ser o essencial do filme: a crença do espectador na representação do milagre.

6.1. A hipótese de Bergala Alain Bergala escreve sobre A palavra em dois textos diferentes – nenhum deles exclusivamente dedicado ao filme, ao contrário de Bordwell. O primeiro é um artigo de 1994, já mencionado na primeira parte deste livro, chamado “Montage obligatoire”; o segundo texto, de 2010, também já mencionado, se chama “Le Miracle comme événement cinématographique”. Embora escritos com intenções diferentes, ambos chamam a atenção para a montagem na sequência final. O texto que nos interessa é o segundo, o mais recente, no qual o crítico francês defende que a montagem teria sido usada por Dreyer para demarcar uma ruptura na continuidade do filme. A sua hipótese é que, a fim de representar a ressurreição de Inger, Dreyer decide “mudar o regime de filmagem”,1 indo da transparência para a opacidade, explicitando assim as operações de montagem. Para sustentar sua ideia, Bergala destaca, já no final do filme, um falso raccord, até então inédito em A palavra. Esse furo no conjunto de regras que compõe a linguagem

1 Alain Bergala, “Le Miracle comme événement cinématographique”. CinémAction, n° 134, 2010, p. 38.

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cinematográfica teria sido, segundo a leitura de Bergala, a solução de Dreyer para isolar o milagre encenado logo em seguida. A cena em questão ocorre no velório de Inger. Após passar o dia inteiro longe de casa, despertando preocupação nos membros de sua família, Johannes finalmente retorna. Quando ele abre a porta do quarto, todos se surpreendem com sua chegada. O velho Morten Borgen, patriarca da família, vai ao seu encontro (conforme vemos no fotograma abaixo). Enquanto caminha lentamente na direção do filho, uma leve panorâmica corrige o movimento para a esquerda. Quando Morten já se aproxima de Johannes, Dreyer faz um corte em movimento para flagrá-lo de frente para o filho. O plano seguinte (no fotograma à direita), contudo, não é filmado de onde se esperava: no encontro entre pai e filho, em vez de entrar pelo lado direito do quadro, preservando a lógica espacial

da

cena,

Morten

aparece

pelo

lado

esquerdo.

O deslocamento da câmera em relação aos atores, caracterizando o chamado falso raccord, provoca no espectador uma leve desorientação espacial.

A palavra (Ordet, 1955), de Carl Th. Dreyer

Baseando-se nessa desorientação provocada pelo falso raccord, Alain Bergala defende que a montagem teria sido concebida com o

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propósito de demarcar uma ruptura em relação ao restante do filme. Até aquele momento, segundo Bergala, Dreyer havia respeitado a integralidade do real: o uso de longos planos-sequência teria a função de, justamente, garantir essa continuidade. Para defender sua opinião, Bergala afirma que Dreyer, assim como Maurice Pialat, outro realizador a adotar semelhante procedimento em Sob o sol de satã (Sous le Soleil de Satan, 1987),2 é um diretor baziniano, e que o emprego do plano-sequência teria a função de respeitar a realidade. Nesse caso, o falso raccord supracitado estaria em desacordo com essa forma de encenar. Ao invés de servir aos propósitos da transparência, como havia sido feito até então, esse corte teria a função de dar visibilidade a si próprio – e provocar, dessa forma, uma sujeira intencional na fluidez da cena. Com o intuito de explicitar sua ideia, Bergala recupera a metáfora baziniana do “vestido sem costura”: o falso raccord seria um “remendo” nesse vestido, chamando a atenção para a descontinuidade do mundo representado. Essa ruptura se dá justamente na chegada do personagem que irá operar o milagre, gerando em Bergala a suspeita de que ela anunciaria a ressurreição de Inger. Assim como esse ruído, o remendo no “vestido sem costura”, o milagre representaria, igualmente, uma descontinuidade nas regras que regem o mundo natural. Um erro na gramática cinematográfica teria sido a solução de Dreyer para antecipar um fenômeno que se notabiliza, justamente, pelo desvio às leis que regem a natureza.

2 Segundo a leitura de Bergala, o filme Sob o sol de satã (1987), de Pialat, teria igualmente recorrido, na cena da ressurreição da criança, a um falso raccord incongruente com o registro mais contínuo até então trabalhado no filme. Trata-se, portanto, de mais um procedimento de mudança no regime de filmagem.

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Alain Bergala enfatiza também, na cena em que se dá o milagre, a própria montagem de Dreyer – uma montagem justa, encadeada. Nenhuma outra cena do filme, segundo o autor, é filmada como a da ressurreição de Inger. Através de uma montagem destacada, repentinamente acelerada pelos múltiplos pontos de vista das testemunhas, é como se Dreyer dissesse para o espectador: “Olhe a garotinha, olhe o seu tio, olhe os dois religiosos discutindo. Dessa forma, ele [Dreyer] substitui o vestido sem costura da realidade pelos remendos que a montagem impõe à realidade”.3 Embora interessante, essa leitura se apoia na suposta limpidez da mise en scène. Bergala compreende que, exceto pela sequência do milagre (iniciada a partir do retorno de Johannes), a história era contada com homogeneidade e transparência. Não estamos de acordo com essa leitura. O problema dessa análise reside no sentido atribuído aos planos-sequência do filme. Supomos que eles não tenham sido usados com propósitos realistas (no sentido baziniano), nem tampouco como “grau zero” da encenação clássica (no sentido dado, por exemplo, por Noël Burch), mas como efeitos de estilo: os longos planos do filme são articulados com o movimento retardado dos personagens para restituir a centralidade do ator nos palcos teatrais. Veremos que, em sua base, a mise en scène de A palavra é conduzida com o propósito de reafirmar o teatro que subjaz ao texto original. Para que possamos identificar os recursos de teatralização empregados por Dreyer, expondo como eles se traduzem ao longo do filme, precisamos fazer uma breve análise da cena inicial.

3 Alain Bergala, 2010, p. 38.

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6.2. O cinema que reafirma o teatro A palavra, adaptação da peça homônima de Kaj Munk,4 se passa em um pequeno vilarejo no interior da Dinamarca. Ali se situa a fazenda dos Borgen, uma família composta pelo patriarca viúvo, Morten Borgen, e seus três filhos homens: Mikkel, Johannes e Anders. Na mesma casa vive também a família do primogênito Mikkel: sua esposa Inger e duas filhas pequenas. O filho do meio de Morten, Johannes, é motivo de preocupação de todos. Após passar alguns anos fora de casa, dedicando-se aos estudos de teologia, Johannes retorna sob o signo da loucura, dizendo ser o Cristo ressuscitado. Enquanto Morten, desolado com o estado mental do filho, questiona sua própria fé, Inger carrega em seu ventre a renovação da família e a esperança de um primeiro neto do sexo masculino. Os problemas se acirram quando Anders, o filho caçula, expressa o desejo de se casar com Anne, a filha de uma família rival dos Borgen. Caberá a Inger, figura da reconciliação familiar, tentar convencer o velho Morten a deixar as diferenças religiosas de lado em prol do amor nascente de Anders por Anne. No entanto, o plano de Inger não sai conforme o esperado e os problemas permanecem sem solução. O parto malsucedido provoca a sua morte, e sua posterior ressurreição se revela a ocasião para a resolução de todos os conflitos estabelecidos ao longo da trama. O filme começa em uma manhã na fazenda dos Borgen. Anders acorda e olha para uma cama vazia. Após constatar que Johannes,

4 Munk foi um padre luterano conhecido por seu engajamento na resistência da Dinamarca (1940-45), tendo sido assassinado pelas tropas de Hitler durante a ocupação nazista em seu país. Como dramaturgo, sua principal obra é Ordet (A palavra), de 1925.

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com quem divide o quarto, já não se encontra lá, Anders abre a janela e o vê saindo de casa. Seu olhar é oferecido ao espectador. Vemos, pelo ponto de vista de Anders, Johannes subindo uma escadinha de terra. No fundo do quadro, penduradas no varal, algumas roupas tremulam sob a ação do vento. Até aqui, estamos no cinema. Ao que tudo indica, trata-se de uma adaptação concebida com o propósito de apagar os traços teatrais da peça de Munk.

Voltamos em seguida para dentro da casa. Preocupado com a escapada do irmão, o filho caçula acorda o pai para ajudá-lo no resgate: “Pai, o Johannes foi para as dunas novamente. Vou atrás dele”. O velho Morten, também apreensivo, se arruma para se juntar a Anders na busca por Johannes. Nesse meio-tempo, ao ouvir as movimentações na casa, Inger abre a janela de seu quarto e observa Anders saindo de casa. A imagem da saída de Anders é idêntica5 à da saída de Johannes: vemos, dessa vez pelo ponto de vista de Inger, Anders subindo a mesma estradinha de terra com o varal ao fundo. Mikkel pergunta o que houve, ao que sua esposa responde que viu Anders saindo de casa. Mikkel logo conclui que Johannes fugira novamente. A fuga matinal do irmão delirante

5 Ainda que as janelas dos quartos de Anders e Inger se situem distantes uma da outra, os planos que supostamente corresponderiam aos seus respectivos pontos de vista são idênticos, mantendo inclusive a mesma perspectiva ocular.

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parece ser recorrente. O irmão mais velho, então, começa a se arrumar para se juntar aos demais na busca por Johannes. Inger permanece na janela. Vemos em seguida, novamente pelo seu ponto de vista, Morten subindo a mesma escadinha de terra. Inger diz para Mikkel que seu pai também está indo procurá-lo. Ele então se apressa e sai. Logo em seguida Inger também sai, avisando que irá preparar um café para quando retornarem com Johannes. No plano seguinte, pela quarta vez consecutiva (agora sem a necessidade do ponto de vista subjetivo de alguém), vemos a mesma imagem da escada de terra com o varal ao fundo – agora é Mikkel quem atravessa o quadro para se juntar aos demais.

Para cada um dos homens da família, Dreyer reserva o mesmo plano da subida pela escadinha de terra. As quatro imagens são idênticas, captadas exatamente da mesma posição. Ainda que

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correspondam aos olhares de diferentes personagens, vistos de janelas situadas em quartos distantes, a imagem possui a mesma perspectiva. Nesse momento, começamos a desconfiar: estamos mesmo no cinema? Trata-se de uma imagem com o ponto de vista fixado de um único lugar, característica do espetáculo teatral. Dreyer não parece interessado em empregar as variações de ponto de vista permitidas pelo cinema. A janela do filme, ao contrário do que parecia no início, não é um dispositivo que dá acesso a uma vista em contiguidade com o espaço interior. Trata-se, ao contrário, de uma abertura que nos permite enxergar sempre a mesma imagem icônica do lado de fora. O plano da escadinha de terra com o varal ao fundo se esvazia como expressão do real, estabelecendo-se aos poucos, à força da repetição e da fixidez perspectiva, como significação de uma ideia. A imagem dos falsos pontos de vista, sempre a mesma, se esgota no imediatismo de sua superfície, afigurando-se como um signo: ela significa o lado de fora da casa. Como veremos adiante, essa imagem não corresponde ao chamado fora de quadro, mas sim ao fora do palco – um equivalente cinematográfico possível do espaço não diegético dos bastidores teatrais. Após se encontrarem do lado de fora da casa, os três homens seguem juntos pelas dunas à busca de Johannes. Não demoram muito para encontrá-lo pregando do alto de um pequeno monte, autoproclamando-se o próprio Cristo ressuscitado. Enquanto recita vagarosamente um texto profético, dizendo ter sido enviado por Deus para disseminar a fé cristã, o corpo de Johannes permanece imóvel, submetido exclusivamente ao ato da fala. O seu olhar distante encara o vazio, como se estivesse diante da quarta parede. Do interior de uma caixa cênica, Johannes prega para um público inexistente. Uma panorâmica para a direita revela em seguida seus familiares. De lado em relação a Johannes, os três veem e ouvem passivamente o seu discurso. São os espectadores clandestinos de

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um teatro sem público. O pequeno monte de onde Johannes faz a sua pregação, espécie de palco natural de um teatro religioso, se revela o lugar ideal para acolher suas palavras: eis o seu Sermão da Montanha. O papel que interpreta, contudo, não é o de Jesus Cristo, mas o do Louco. Exceto pela cena da ressurreição, trata-se do único momento no filme em que Johaness consegue falar sem ser interrompido pelos demais personagens, sem que tentem apartar o Louco do ator que o interpreta. O Johannes “de antes”, como seus familiares costumam dizer, não era assim. O que teria provocado essa mudança? Dreyer responde a esse questionamento com um “cinema que reafirma o teatro”. A defasagem entre o louco e o são é a mesma da que separa o ator do personagem. Conforme veremos adiante, Johannes é uma espécie de personificação do próprio teatro que reside no filme de Dreyer.

Em seu célebre artigo “Teatro e cinema”, André Bazin defende a adaptação cinematográfica que mantém aparentes os códigos teatrais: em vez de tentar ocultá-los, arejando o texto com um cenário realista, deve-se reafirmar o teatro por meio do cinema. Bazin identifica na produção daquele momento três caminhos diferentes para adaptação de peças teatrais. O primeiro seria o chamado “teatro filmado”, que manteria ao longo do filme o ponto de vista único do espectador teatral, preservando, assim, o proscênio da configuração arquitetônica da sala de teatro. Embora tentador,

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uma vez que diante das câmeras já se encontra um espetáculo pronto, o registro impassível de uma peça mostrou desde cedo suas limitações. O segundo tipo de adaptação consistiria em eliminar os traços da convenção teatral, expondo o texto a uma mise en scène interessada em arejar o jogo cênico: “ocultem esse teatro que eu não suportaria ver!”,6 escreve Bazin em tom jocoso. Ao falar do filme Médico à força (Le Médecin malgré lui, 1934), adaptação da peça homônima de Molière dirigida por Pierre Weil, Bazin descreve o trabalho de transposição para as telas como uma operação que consiste apenas em “injetar à força o cinema no teatro”. Em seguida, enfatiza que o tempo da ação teatral nunca é, evidentemente, o mesmo do da ação cinematográfica – e que a origem do texto deve ser respeitada, sob o risco de a primazia dramática do verbo ficar “defasada pela dramatização adicional que a câmera dá ao cenário”.7 Por fim, para reforçar sua posição crítica em relação ao filme supracitado, Bazin caracteriza a cena inicial do filme como um tiro no pé: em vez de o travelling na floresta servir de gatilho para nos transportar para a realidade, conforme parecia ser a intenção do realizador do filme, ele apenas salientava a irrealidade dos personagens e do texto. Ele tentava pôr um pouco de realidade em torno dela e nos arranjar uma escada para nos fazer subir ao palco. Seus ardis desajeitados tinham infelizmente o efeito contrário: salientar, definitivamente, a irrealidade dos personagens e do texto.8

O terceiro tipo de adaptação, por fim, seria aquele que, ao invés de esconder os códigos teatrais, usa o cinema para reafirmá-los. 6 André Bazin, “Teatro e cinema”. In: O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 163. 7 Ibid., p. 164. 8 Ibid., p. 165.

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Já não se trata de “adaptar” um tema, como diz Bazin, mas de “encenar uma peça por intermédio do cinema”.9 Na defesa que faz desse terceiro tipo, ele cita alguns exemplos, como as adaptações de Laurence Olivier, Henrique V (Henry V, 1944), e de Jean Cocteau, O pecado original (Les Parents terribles, 1948). Na adaptação do drama shakespeariano, Olivier também começa com um travelling ao ar livre. Mas aqui, ao contrário do exemplo anterior, o movimento de câmera é usado para nos conduzir “do mundo real” para o “mundo da representação”: um palco de teatro. Não é à obra de Shakespeare que o filme se vincula diretamente, mas à representação dela no palco de um teatro elisabetano. Trata-se, assim, de uma espécie de documentário sobre a montagem da peça. Contudo, Bazin defenderá que o prazer do espectador com o filme de Olivier não tem nada em comum com o do documentário histórico e sim, paradoxalmente, com o prazer da própria representação de Shakespeare. Ao se submeter às condições de origem do texto (as convenções teatrais), e a um só tempo se mantendo fiel à vocação realista do cinema, o filme de Laurence Olivier teria conseguido reproduzir o fascínio da peça original. Ao fazer o cinema do teatro, ao denunciar de antemão pelo cinema a interpretação e as convenções teatrais, em vez de tentar camuflá-las, ele suprimiu os obstáculos do realismo que se opunham à ilusão teatral. Uma vez assegurados esses fundamentos psicológicos na cumplicidade do espectador, Laurence Olivier podia se permitir tanto a deformação pictórica do cenário quanto o realismo da batalha de Azincourt; Shakespeare o convidava a isso com seu apelo explícito à imaginação do auditório.10

9 André Bazin, 2014, p. 172. 10 Ibid., p. 166.

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Acreditamos que, embora por razões bastante diversas das de Henrique V, A palavra se insira também nessa terceira categoria de adaptação teatral. Para comprovarmos a hipótese levantada, detalharemos a seguir em que consiste a suposta teatralidade do filme de Dreyer. Embora sejam perceptíveis algumas características normalmente associadas ao teatro, não se trata de uma simples repetição dos códigos teatrais, mas de uma intensificação por intermédio do cinema. Analisaremos três aspectos do filme que o fariam se adequar a essa categoria de adaptação. O cinema-teatro de Dreyer se caracteriza pela: 1) unidade espacial dos palcos teatrais; 2) concisão cênica e enxugamento textual; 3) centralidade do ator e da palavra. 1) Unidade espacial. Em A palavra, Dreyer faz da casa dos Borgen (assim como da casa dos Peterson – onde, somadas, se passa quase todo o filme) um palco de teatro bastante coeso. Tamanha coesão é antigida não apenas ao manter os personagens ali confinados (reproduzindo, assim, a lógica espacial da peça de Munk), mas por uma mise en scène que abole o fora de campo. Esse espaço situado para além das bordas do quadro, ou da própria cena que se desenrola no presente – espaço esse tão próprio do cinema, fonte de múltiplas tensões visuais – é reduzido a uma zona neutra pouco explorada pelo filme, quase se igualando ao espaço dos bastidores teatrais. Esse procedimento, conforme adiantamos na análise da sequência inicial, envolve a subversão de um dos recursos mais elementares da linguagem do cinema: o plano ponto de vista. O procedimento de Dreyer não é tão diferente daquele descrito por Bazin acerca de O pecado original. Cocteau explora a espacialidade do apartamento em que se passa a trama da mesma forma que, nas montagens de sua peça, fazia em um único ambiente. A unidade espacial é ampliada, do cômodo para o apartamento,

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mas Cocteau usa a câmera de cinema para manter, ou até mesmo intensificar, o microcosmo da representação teatral. Assim, segundo Bazin, o fascínio da ilusão teatral se mantém intacto. “Se o quarto se transforma em apartamento, este será sentido, graças à tela e à técnica da câmera, como ainda mais exíguo que o quarto do palco”.11 Para deixar claro que o Cocteau cineasta não se limitou a reproduzir o confinamento do palco (simplesmente prendendo seus atores em um espaço reduzido), mas a aumentar a eficácia da peça por meio daquilo que caracteriza o cinema, Bazin completa em seguida: A verdadeira unidade de tempo e lugar é introduzida, graças à sua mobilidade, pela câmera. O projeto teatral precisava do cinema para enfim se expressar livremente e para que O pecado original se tornasse, evidentemente, uma tragédia de apartamento, no qual a fresta de uma porta pode ganhar mais sentido do que um monólogo na cama. [...]. O cinema age somente como um revelador que acaba de fazer aparecer certos detalhes que o palco deixava em branco.12

Cada cena de A palavra, igualmente, se afigura como um bloco espacial sólido. Quando um personagem sai do cômodo em que se passa a cena (sempre filmada em uma escala que preserva a integralidade do corpo dos atores, normalmente em plano conjunto) é como se ele deixasse de existir. Assim como em uma peça de teatro não existe vida fora do palco, também no filme de Dreyer não há vida fora de quadro. Só existe o que é dado a ver ou ouvir. Tudo o que não se encontra em cena é assimilado pelo espectador como um signo. Isso pode ser notado na forma como os sons que vêm de

11 André Bazin, 2014, p. 169. 12 Ibid., p. 169.

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outros cômodos são trabalhados. Na cena do parto de Inger, por exemplo, seus gritos de dor entreouvidos da sala significam que algo não vai bem. Da mesma forma, igualmente, quando se ouvem as vozes de Johannes de um outro cômodo, elas são assimiladas simplesmente como sinais de sua loucura. Por fim, quando o médico chega à casa dos Borgen, o barulho de seu automóvel – cujo som artificial parece vir dos bastidores – possui a função unívoca de servir como indício de sua chegada. O melhor exemplo de manutenção da unidade espacial da peça de Munk pode ser conferido na forma inverossímil (e até incoerente, do ponto de vista espacial) como as janelas são trabalhadas por Dreyer. Conforme antecipamos na análise da primeira sequência do filme, as janelas dão acesso a uma imagem mental, descontínua em relação à diegese. Em vez de usar as janelas como um dispositivo pelo qual vemos um espaço exterior em contiguidade com o interior, Dreyer as emprega como um recurso de ligação, associando-as à imagem reincidente do lado de fora da casa. Essa imagem, um falso plano ponto de vista, é um signo da exterioridade. A estradinha de terra com o varal ao fundo reforça ainda mais o aspecto convencional do filme. A liberdade do ponto de vista permitida pela câmera não é explorada da forma como o cinema nos ensinara. A manutenção da perspectiva única, à força da repetição, faz da janela um elemento de ligação entre o interior da casa e um espaço virtual da representação – o equivalente possível (no cinema) ao espaço não diegético dos bastidores teatrais. 2) Concisão cênica. Além de intensificar a unidade espacial da cena, Dreyer planifica o mundo representado para melhor servir aos propósitos de leitura do filme. É assim que as manifestações sonoras, e até luminosas, oriundas de algum cômodo adjacente à

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sala, quando percebidas por algum personagem em cena, são apreendidas sob a forma reduzida de um signo. Essa condensação cênica, porém, não se limita ao fora do palco. A mise en scène do filme, excessivamente esvaziada, produz o efeito de reduzir os objetos cenográficos àquilo que eles encerram em suas superfícies. Tamanha condensação, que substitui a presença sensível das coisas pelo sentido inteligível dos signos, aumenta a rapidez com que o espectador lê o filme. A concisão de Dreyer intensifica os efeitos de sentido, fazendo com que a narrativa possa assim avançar. Em A palavra, não há objetos de decoração ou ambiência. Todos os elementos visuais e sonoros se oferecem como signos de um teatro que se desenrola com clareza e precisão. O que está contido na cena é trabalhado com propósitos significantes. Tudo aquilo que o espectador vê ou ouve é imediatamente oferecido à sua leitura – razão pela qual sempre que ouvimos o tiquetaquear de um relógio de parede, por exemplo, logo pensamos na passagem do tempo.13 A concisão de Dreyer se dá também na adaptação do texto original. Em análise dedicada aos últimos três filmes do cineasta dinamarquês, todos adaptados de peças de teatro, Linda Ellen Podheiser compara A palavra com o texto homônimo de Munk.14 A autora enfatiza, entre outros aspectos, o enxugamento textual feito por Dreyer – o filme apresenta uma versão muito reduzida em relação ao texto original. Essa condensação, reduzindo a

13 O silêncio provocado pela interrupção do relógio é inclusive aproveitado para dar sentido ao luto de Mikkel. Após a morte de Inger, seu marido segue até o relógio de parede da sala e o faz parar com as mãos. Como veremos adiante, essa mesma ideia, em referência ao filme de Dreyer, será retomada em Luz Silenciosa (Stellet Licht, 2007), de Carlos Reygadas. 14 Linda Ellen Podheiser, Filmed Theatre and Tragic Form in the Late Work of Carl Th. Dreyer. Nova York: New York University, 1981.

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quantidade de diálogos da peça em apenas 1/3 do total,15 se reflete na forma como os conflitos são absorvidos pelo espectador. Podheiser dá vários exemplos de como isso ocorre. Um deles diz respeito ao passado de Johannes. Enquanto a peça de Munk apresenta muitos detalhes sobre a morte de sua esposa, enfatizando o trauma da perda e a origem de sua loucura, Dreyer omite integralmente essa parte do texto para privilegiar a eficiência narrativa. No filme, a loucura de Johannes não possui uma explicação definida.16 Em vez de conduzir uma investigação psicológica do personagem, Dreyer preferiu eliminar os excessos do texto, reduzindo-o ao seu mais absoluto essencial. A simplificação do texto original é trabalhada em conjunto com a própria condensação dos objetos de cena. O texto se articula ao cenário para melhor servir aos propósitos da leitura. Há um momento no filme, durante uma discussão entre Morten e o médico, que oferece um exemplo eloquente de como essa articulação é trabalhada. “O que você acha que foi mais importante esta noite, as suas preces ou o meu tratamento?”, pergunta o médico após o parto (aparentemente) bem-sucedido de Inger. Essa cena parece não ter outra função além de acirrar a dicotomia entre ciência e religião, razão empírica e fé religiosa. O que se depreende desse diálogo, razão de existir da cena, é apenas a divergência entre os dois personagens (o que faz a narrativa convergir rumo ao milagre). Trata-se, em suma, de uma forma condensada de se apresentar um embate. A opção de fazer do diálogo um jogo de ideias,

15 Linda Ellen Podheiser, op. cit., p. 47. 16 Os personagens atribuem a loucura de Johannes aos estudos aprofundados de teologia, notadamente a partir do contato com o filósofo e teólogo dinamarquês Kierkegaard. Porém, no discurso do filme essas opiniões estão diluídas e não se apresentam como a causa definitiva para a transformação de Johannes.

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ignorando certos códigos realistas do cinema, expressa sem camuflagens o desejo de explicitar a origem teatral do filme. Nesse sentido, cada personagem se oferece como o signo de uma ideia prévia.17 Exceto pela sequência final do velório de Inger (quando tudo no filme, conforme dissemos, irá se reconfigurar), a narrativa avança como em uma partida de xadrez – cujo tabuleiro, aliás, se encontra visível na sala de estar. Os personagens se apresentam como peças de um jogo. Veremos a seguir, quando expusermos o texto de Bordwell, essa planificação dos personagens (que faz a narrativa avançar com bastante objetividade, levando o espectador a efetuar a leitura do filme) é estrategicamente empregada por Dreyer para servir aos propósitos da cena final. 3) Centralidade do ator e da palavra. O movimento de câmera e a longa duração do plano são articulados para dar destaque aos atores em cena. Quanto a essa afirmação, Bordwell oferece uma pista importante: “Dreyer raramente move a câmera para um espaço vazio, normalmente segue um personagem ou outro”.18 Isso de fato se confirma ao longo do filme. Os movimentos dos atores são a todo momento acompanhados pela câmera, normalmente em plano-sequência (preservando os blocos temporais acumulados no interior do plano) e em plano-conjunto (garantindo, assim, a integralidade do corpo dos atores). Quando há a transição de um ator a outro, é como se quem está fora de quadro saísse de cena. O emprego sistemático desse recurso, colando o olhar da câmera ao movimento do personagem em destaque, atua no sentido de

17 Assim como o médico encarna os valores científicos da razão, o personagem do pároco é uma caricatura da classe eclesiástica da Igreja. Esse esquema funciona sobretudo para os personagens secundários do filme. 18 David Bordwell, The Films of Carl Theodor Dreyer. Berkeley: University of California Press, 1981, p. 151.

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restituir a centralidade do ator nos palcos teatrais. O que é, afinal, um palco sem atores? Exceto na hipótese do uso significante do palco vazio, seria difícil conceber um teatro sem a presença destacada do ator. No filme de Dreyer, o ator é igualmente onipresente. A câmera segue seus passos como se reproduzisse o olhar de um espectador atento durante uma peça. Importante destacar, contudo, que essa operação em si não basta como indício de teatralidade. O realizador Robert Bresson, mestre da prática de seguir o movimento dos atores, dá um efeito inteiramente diferente a essa forma de conduzir a câmera – afastando-se, decididamente, de qualquer noção teatral. Veremos a seguir que, para revelar o teatro que subjaz ao filme, será indispensável uma orientação gestual bastante precisa. A centralidade do ator, assim como o destaque dado às suas palavras, dependem igualmente, no caso de A palavra, de um retardamento estilístico generalizado. Dessa vez, é o próprio Dreyer quem nos oferece a pista. Vejamos o que diz acerca das diferenças entre a oralidade no teatro e no cinema: Quando se está diante da tela de cinema, tem-se a tendência de seguir a trama à medida que ela se desenvolve, enquanto na sala de teatro, diferentemente, as palavras atravessam o espaço e aí permanecem, suspensas no ar. No cinema, as palavras morrem assim que saem da tela. Foi por isso, portanto, que eu tentei fazer pequenas pausas no filme, para dar ao espectador a possibilidade de assimilar as palavras, de refletir sobre elas. É isso que dá ao diálogo um certo ritmo, um certo estilo.19

O depoimento destacado acima é uma convicção de Dreyer. Ele repetia essa ideia com frequência em seus escritos. No cinema,

19 Carl Theodor Dreyer, Réflexions sur mon métier. Paris: Cahiers du Cinéma, 1997, p. 126.

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a palavra não tem o mesmo peso que no teatro. O diagnóstico parece inegável. A solução de Dreyer para o problema apresentado, porém, vai muito além do que ele sugere no trecho acima. Não se trata apenas de incluir “pequenas pausas” na fala de seus atores e atrizes, mas de fazê-los falar e gesticular de uma forma muito particular. Quanto a isso, um hipotético espectador da época, após uma sessão de A palavra, poderia confirmar: o que provavelmente mais chama a atenção no filme, do ponto de vista formal, é a interpretação dos atores. Essa maneira peculiar de dirigir os atores, retardando ao máximo seus movimentos, será posteriormente intensificada em Gertrud (1964) – nas palavras de seu protagonista masculino, Bendt Rothe, a direção de atores do filme parecia uma “sessão de hipnose”.20 A partir de Dia de ira (Vredens Dag, 1943), ou seja, em seus últimos três filmes, Dreyer adotou o retardamento estilístico como método de trabalho. Supõe-se que esse recurso seja empregado no sentido de restituir a centralidade do ator em cena, prolongando também o alcance de suas palavras. O ator que interpreta Johannes, nesse sentido, tem bastante destaque.21 Além de quase nunca olhar diretamente para ninguém, mirando com frequência o vazio, seus gestos são tão lentos quanto sua fala. O que, afinal, caracterizaria a loucura de Johannes senão seu retardamento generalizado? Na análise da cena inicial do filme, quando Johannes pregava para um público imaginário do alto de um monte, fizemos uma comparação entre seu sermão e a performance de um ator arbitrário num teatro vazio. Enquanto declamava o texto profético, dizendo ser o próprio Cristo ressuscitado,

20 Essa descrição é feita em “Cinéastes de notre temps: Carl Th. Dreyer” (1965), dirigido por Éric Rohmer. 21 Johannes, em dinamarquês, é o equivalente a João – referência clara ao Evangelho de João: “No princípio era o Verbo” (João 1:1).

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sua voz ganhava muito destaque na cena, ilustrando aquilo que, segundo Dreyer, particulariza a palavra no teatro: a amplitude vocal. Na cena selecionada, de fato, sua fala ganha efeito de lastro, permanecendo por um tempo como que “suspensa no ar” – tal como dizia Dreyer. A voz de Johannes, em suma, ganha um alcance para além da duração de sua fala. Com seu método de direção de atores, Dreyer parece ter compreendido que, para restituir à palavra sua profundidade teatral, não bastava declamá-la à maneira do teatro (com uma entonação “para fora”),22 era preciso encontrar um ritmo particular (caracterizando, sem dúvida, um efeito de estilo) que melhor a acolhesse no meio fílmico. No filme de Dreyer, a glória é da palavra. Não à toa, o título faz referência direta a ela. Além de ser o agente do milagre na sequência final (adiantando que, no momento da ressurreição de Inger, Johannes não realiza nenhum gesto com as mãos – o despertar de Inger se deve ao comando expresso pelo verbo),23 a palavra dos atores é alçada ao protagonismo. Tamanha ênfase à oralidade se deve, no que diz respeito à forma como a palavra é declamada, à lentidão e ao tom sussurrante da voz (sobretudo no caso do ator que interpreta Johannes); no que concerne ao trabalho gestual, o destaque dado à palavra se deve ao estado de absoluto repouso do ator durante a fala. É assim que, como dizíamos, o método de direção de atores se articula ao movimento de câmera para destacar a presença do ator em cena. Em A palavra, em suma, Dreyer faz dessa articulação triangular (câmera-ator-movimento) uma das bases de seu cinema-teatro.

22 Razão pela qual, em A palavra, a voz sussurrante de Johannes não a impede de adquirir força. 23 A imobilidade de Johannes se revela coerente com o que diz no momento do milagre: “Jesus Cristo, por favor, se for possível permita que ela volte à vida. Dê-me a palavra, a palavra que faz os mortos voltarem à vida. Inger, em nome de Jesus Cristo, eu lhe digo: levante-se!”. É a palavra de Johannes, enfim, que a faz despertar das trevas.

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Importante ressaltar que essa operação estilística possui um efeito inteiramente diferente em relação àquela descrita no item anterior. Enquanto o texto, como os objetos de cena, era reduzido ao máximo para facilitar a leitura do espectador (ajudando, assim, no avanço da narrativa), a direção de atores é concebida para, ao contrário, atrasar sua leitura (nesse sentido, o uso do planosequência contribui também para eliminar os efeitos de causalidade do filme, dando visibilidade aos blocos temporais que se acumulam no interior do plano). Não se trata de destacar o conteúdo do texto, dando à trama uma forma inteligível, mas de enfatizar a sua própria oralidade. Os dois elementos aqui destacados, concisão cênica e gestualidade retardada, atuam com propósitos opostos: o primeiro como recurso de clareza, ajudando na transmissão da Ideia; o segundo como recurso de estilo, que destaca a palavra em sua própria materialidade – a palavra como corpo sonoro, não mais enquanto signo textual. Voltaremos a essa oposição mais adiante. Há um momento que ilustra com exatidão essas duas características antagônicas, colocando em choque a eficiência dos signos com o retardamento estilístico dos atores. Logo após a saída do médico que conduzira o parto de Inger, Johannes entra em cena dizendo que consegue enxergar o “homem da ampulheta”. Essa visão sobrenatural, uma figura clara da Morte, teria chegado na casa – segundo Johannes – para levar a alma de Inger (que, por sua vez, ainda não tinha morrido). Nesse mesmo momento do filme, vemos projetadas na parede da sala as luzes do farol do carro do médico. Johannes aponta para o reflexo das luzes e diz: “Vejam, é a Morte atravessando a parede”. A confusão de Johannes, logo identificada por Anders, se repete também no nível do som. Enquanto ouvimos o ruído do motor do automóvel, Johannes acha que se trata do barulho da foice da Morte. Após ser novamente corrigido

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pelo irmão caçula, sai de cena, desacreditado.24 A desorientação perceptiva de Johannes, incapaz de distinguir as visões sobrenaturais dos signos teatrais, ilustra perfeitamente o erro de leitura provocado pelo retardamento estilístico. A clareza dos objetos de cena, tratados no filme como signos perfeitamente legíveis, é contrastada com a opacidade dos gestos e das falas dos atores.

*** Voltemos por um instante à cena anteriormente mencionada na exposição da análise de Bergala. Logo depois do falso raccord identificado pelo crítico francês, há um momento crucial que irá determinar o restante do filme. Quando Johannes volta para casa, despertando a atenção de Morten, algo inédito acontece: os dois, pai e filho, se olham diretamente. É a primeira vez em todo o filme que os dois se encaram olho a olho. Johannes já não está com o olhar perdido que, desde o início, caracteriza sua loucura. O velho Morten percebe a mudança no filho: “Seus olhos estão como eram antigamente. Você recobrou seu juízo novamente, Johannes”. Johannes está mesmo diferente. Além da mudança em seu olhar, sua postura corporal também já não é a mesma. Trata-se de uma transformação generalizada do personagem. Após um dia inteiro sumido, elipsado pelo “buraco negro”25 da representação, como diz Bergala, Johannes volta para casa sem os gestos que caracterizavam a sua loucura. A gestualidade retardada dá lugar a uma normalidade inédita em todo o filme. A sua condição mental 24 Pouco depois da saída desmoralizante de Johannes, surge em cena Mikkel dizendo que Inger acabara de morrer. O anúncio mantém a relação ambígua entre a premonição de Johannes e a sua loucura. As antecipações de Johannes eram fruto de seus desvarios ou de sua lucidez? 25 Alain Bergala, 2010, p. 38.

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parece ter retomado o estado anterior – como se Johannes tivesse finalmente se livrado de um longo feitiço. Mas, afinal, que feitiço seria esse? A essa pergunta já se pode responder com convicção: o teatro! A loucura de Johannes, conforme dizíamos antes, é indissociável da teatralização do filme. Mas o que causou essa ruptura? Por que o cinema-teatro de Dreyer começa a fraquejar, dando sinais de esgotamento? Para respondermos a essas perguntas, precisamos apresentar as ideias de Bordwell acerca de A palavra.

6.3. A hipótese de Bordwell A cena da ressurreição de Inger corresponde, do ponto de vista narrativo, à reconciliação dos conflitos entre os personagens. De todos os dilemas que o filme constrói, nenhum permanecerá sem resolução após o milagre final. Enumeremos de início os três

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principais conflitos de A palavra: a divergência religiosa entre Inger e Mikkel (cristã e ateu, respectivamente); a rivalidade entre as famílias Borgen e Petersen, também baseada em desavenças religiosas, que impede Anders de se casar com Anne; a decepção dos Borgen com a loucura de Johannes (que desperta na família a esperança de que um dia – “por um milagre”, como dizem – ele possa recobrar o juízo). Vejamos como esses conflitos são resolvidos. Morten Borgen enfrenta uma crise religiosa. Desde o início do filme, ele sente que “perdera a capacidade de acreditar em milagres”, como diz a Inger. Não bastasse alimentar suas próprias dúvidas, nutre o sentimento de que falhara na educação religiosa de seus três filhos. Comecemos pelo irmão mais velho, Mikkel. Embora possuísse “um bom coração”, como Inger lhe diz, seu ateísmo é um problema. Crescido em meio a uma comunidade muito religiosa, Mikkel é o único membro da família a negar a existência de Deus – e sua falta de fé é motivo de desânimo em seu pai. Nos últimos instantes do filme, após testemunhar a ressurreição de sua esposa, Mikkel diz a ela que enfim recobrou a fé em Deus. No caso do filho caçula, Anders, a frustração de Morten se dá com a mulher escolhida para ser sua esposa. Após expressar que gostaria de se casar com Anne, a filha de Peter Petersen, Anders recorrerá à Inger para tentar convencer seu pai a relevar as diferenças religiosas com o patriarca da família rival (as duas famílias pertencem a correntes luteranas diferentes; a de Peter mais severa que a dos Borgen).26 Após o acordo entre Peter e

26 Enquanto Borgen é adepto de uma corrente cristã devedora dos pensamentos do pastor dinamarquês Nikolaj Grundtvig, proferindo um cristianismo voltado para a ação e para a vida coletiva, Peter é adepto de um luteranismo mais severo, no qual se prescreve uma rígida conduta com fins salvíficos. Em uma frase, Morten sintetiza a diferença que separa a sua religião da de Peter: “Você pensa que o cristianismo é obstinação e autoflagelo, eu acho que o cristianismo é a plenitude da vida [...]. Minha fé é o calor da vida, a sua é o frio da morte”.

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Morten falhar, é preciso que uma situação externa coloque à prova a fé dos dois patriarcas. A ocasião para a trégua familiar se dá, inicialmente, com a morte de Inger. Tomado de arrependimento por não ter “oferecido a outra face”, conforme prescrevem os ensinamentos cristãos, Peter enfim permite que sua filha Anne – em um gesto claro de substituição pela ausência de Inger – se case com Anders. Mas isso não é tudo. Para que a reconciliação entre as famílias se complete, será preciso ainda que Inger ressuscite diante de Morten e Peter. Após presenciarem juntos o seu despertar, os dois finalmente concordarão que o milagre fora “obra do velho Deus Elias”. Por fim, Johannes. Trata-se do único filho escolhido para ter acesso a uma formação religiosa na universidade (escolha que denota a confiança do pai em seu talento para ser “a faísca que poderia incendiar a cristandade nesta fazenda novamente”). Contudo, quando retorna sob o signo da loucura, Johannes torna-se motivo de grande frustração. A decepção generalizada só cessa quando, diante dos olhares perplexos de todos,27 ele cumpre sua promessa de ressuscitar Inger – figura da reconciliação familiar. Em suma: os principais conflitos do filme parecem depender do milagre realizado na sequência final. Outro dado que reforça a hipótese da ressurreição como elemento de convergência narrativa é que, ao longo do filme, ela é frequentemente antecipada pelos personagens. Acreditando ser o próprio Jesus Cristo, Johannes diz: “As pessoas acreditam nos meus milagres de 2 mil anos atrás, mas não nos meus de agora”.

27 Exceto aos olhos de Maren, a sobrinha que acredita piamente que Johannes seria capaz de ressuscitar sua mãe.

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Há inúmeras outras menções ao milagre – por vezes mencionado com descrença e humor por Inger ou Morten; por outras, com gravidade e fé por Maren ou Peter. Há até mesmo uma citação à Ressurreição de Lázaro em uma gravura na cozinha de Petersen. A todo momento pressente-se a iminência do milagre.28 A ressurreição de Inger não é um elemento surpresa, mas o epicentro da convergência narrativa: todos os aspectos textuais do filme parecem ter sido concebidos para preparar o espectador para o milagre final. Por isso, quando se percebe que Inger enfrenta as complicações de um parto considerado difícil, o espectador é encorajado a aguardar sua morte – assim como o milagre que a trará de volta à vida. Quando Inger finalmente morre, e todos os elementos narrativos solicitam uma resolução final, Johannes está lá para ressuscitá-la. Após dizer algumas palavras desconexas diante do corpo morto, Johannes (ainda no papel do Louco) desmorona e cai desacordado sobre a cama. A sua primeira tentativa de ressuscitá-la foi fracassada. Por quê? Porque o filme ainda não aderiu, no nível da linguagem, à lógica da narrativa – diria David Bordwell. Vejamos os principais argumentos de seu texto sobre A palavra. Enquanto a trama do filme segue uma orientação convergente, fazendo a narrativa confluir em direção ao milagre final, a mise en scène de Dreyer não é orientada segundo essa mesma lógica. Muito pelo contrário. De acordo com Bordwell, Dreyer opta por um regime de encenação que explicita dois elementos disjuntivos:

28 Ouvem-se a todo momento expressões como: “Milagres não existem mais”, “Vivemos em tempos de milagre”, “E há quem diga que não existem mais milagres...”, “Só acredito nos milagres que a ciência me ensinou”, e por aí vai. Há, espalhadas ao longo do filme, nada menos que 17 menções ao milagre – a maioria delas antecipada pelo próprio Johannes.

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a “teatralização”29 e a “escassez”.30 Todo o trabalho formal seria concebido para anular os efeitos de causalidade da trama, “separando o texto da representação do texto”,31 como diz Bordwell. Ao espectador, resta permanecer em um estado intermediário. No meio do caminho entre a fruição convergente da narrativa e a fruição divergente da forma fílmica, somos mantidos em suspensão numa posição indefinida. Nesse momento, começa a ficar mais clara a escolha de Dreyer por explicitar os códigos teatrais desde o início. Qual é o sentido de dar visibilidade ao teatro de Kaj Munk? A necessidade de provocar, na cena do milagre, um realinhamento. Da mesma forma que, no interior da trama, a reconciliação dos personagens depende dos conflitos previamente estabelecidos, também no nível formal o realinhamento com o eixo narrativo necessita de um desalinhamento prévio. Para que o milagre possa ser operado, é preciso realizar uma ruptura com relação ao regime teatral. É aí que se dá, já no final do filme, aquilo que Bordwell chama de “forma cinemática”; ou seja, a forma fílmica concebida para estabelecer uma “articulação estável com o eixo narrativo”.32 Antes da cena final, a teatralização tornara o sistema espaço-temporal relativamente independente da lógica narrativa, enquanto a escassez “desfamiliarizava” os procedimentos estilísticos tradicionais do cinema. Agora, subitamente, o sistema espaço-temporal se fusiona com a lógica narrativa; assim, os procedimentos clássicos de

29 Embora Bordwell não defenda que A palavra seja uma adaptação que se encaixe no modelo baziniano acima destacado, identifica no filme a “teatralização” como um de seus principais recursos estilísticos. 30 O que Bordwell chama de “escassez” (no original, em inglês, “sparseness”) consiste em uma série de procedimentos cujo objetivo é provocar redução cênica e dar destaque ao tempo. 31 David Bordwell, op. cit., p. 150. 32 Ibid., p. 167.

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montagem e câmera vão sendo retomados para reforçar o clímax do filme. O que poderia ser uma operação de “desfamiliarização” completa, envolvendo toda a decupagem do filme (essa será a tarefa de Gertrud), torna-se aqui um retorno ao familiar.33

De início, toda a mise en scène de A palavra explicitava a falta de sintonia entre o eixo formal e o narrativo. Em seguida, conforme Bordwell aponta, a ressurreição de Inger se revela uma ocasião para provocar o realinhamento entre esses dois eixos. Quando a resolução dos conflitos começa a se aproximar, Dreyer faz uma operação de convergência, trazendo o espectador de volta ao regime da transparência, da contiguidade. Para que os blocos sejam quebrados, e a fluidez enfim retomada, é preciso instaurar um novo regime de encenação. A aposta de Bordwell é que, para se representar devidamente o milagre, é preciso que “a unidade narrativa reestabeleça o seu controle” através do que chama de um “retorno ao familiar”.34 Com essa expressão, entende-se simplesmente um retorno ao cinema. É por isso que, na última sequência do filme – a partir do velório de Inger –, os recursos de teatralização empregados são desfeitos aos poucos, dando lugar às articulações elementares da montagem clássica. Veremos a seguir, enumerados em quatro partes, alguns dos principais procedimentos cinematográficos identificados por Bordwell nessa sequência final. 1) Corte em movimento. Pouco antes da chegada de Johannes, quando o pároco da cidade se preparava para fazer uma oração, Dreyer faz algo inédito até o momento. A fim de unir os dois planos ilustrados a seguir, filmados de perspectivas diametralmente opostas, ele acrescenta um elemento de ligação bastante

33 David Bordwell, op. cit., p. 169. 34 Ibid., p. 168.

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frequente no cinema: o corte em movimento. Essa ferramenta é aqui empregada para juntar duas pontas separadas, defasadas entre si em 180 graus. Pela primeira vez em todo o filme, a caixa cênica estabelecida pela unidade espaço-temporal dos palcos é quebrada pela montagem – restituindo, assim, a espacialidade da cena. O tablado teatral de outrora dá lugar a uma sala na qual todos os elementos se encontram em perfeita contiguidade.

2) Plano ponto de vista. O plano ponto de vista analisado por Bordwell se dá na mesma cena destacada anteriormente por Bergala. Quando Johannes chega em casa, Morten ouve um barulho e olha para o extracampo – espaço fílmico reestabelecido nesta sequência final. No plano seguinte, vemos, através de seu olhar, Johannes abrir a porta e entrar em casa. Levando-se em conta que os pontos de vista da janela, citados na análise inicial do filme, se revelaram falsos (ou melhor, ausentes de um raccord de olhar em contiguidade espacial com o interior da casa), trata-se do primeiro plano ponto de vista contíguo de todo o filme.35 Tal como o corte em movimento, trata-se de mais um procedimento elementar da gramática cinematográfica. A imagem vista pelo ponto de vista de

35 Bordwell esquece de mencionar esses falsos pontos de vista do início do filme (talvez por também reconhecer neles uma teatralidade incompatível com essa operação cinematográfica).

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Morten, na qual Johannes parece devidamente curado, é uma espécie de anúncio do milagre subsequente.

3) Close-up. Nos últimos planos do filme, logo depois do milagre, Mikkel e Inger se abraçam. Dreyer os filma em plano médio. Em seguida, após Mikkel expressar sua conversão religiosa, e no exato instante em que Inger lhe dá um beijo (um beijo febril, discrepante com o tom do filme e com o contexto fúnebre da cena) há um breve movimento para frente, corrigindo a escala do plano e enquadrando-os em primeiro plano. Segundo Bordwell, trata-se do único close-up de todo o filme.36 A intenção da aproximação é clara: intensificar a carga dramática da cena. “Agora a vida começa para a gente”, diz Mikkel. Nos últimos instantes do filme, Inger lhe responde: “Vida... sim!”

36 David Bordwell, op. cit., p. 168.

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4) Aceleração da montagem. Com seu habitual rigor analítico, David Bordwell faz uma contagem de todos os planos do filme para diagnosticar a aceleração da montagem na sequência final. Segundo o teórico estadunidense, A palavra possui apenas 114 planos. Levando-se em conta que ele possui 129 minutos de duração, a média de cada plano é de 65 segundos. Bordwell ressalta, contudo, que a maioria dos cortes se encontra no final do filme – precisamente a partir do velório de Inger. Prova disso é que, segundo a contagem de Bordwell, a média de cada plano na parte intermediária do filme (correspondendo, em relação ao texto original de Munk, ao segundo e terceiro atos da peça) dura mais de um minuto e meio, chegando a haver planos de sete minutos de duração.37 Levando-se em conta o filme em sua integralidade, o ritmo da montagem parece de fato sofrer uma considerável aceleração na sequência final.

6.4. A crença na representação Como se pode constatar, A palavra é orientado para estabelecer, a partir da sequência final, uma operação de convergência. O desalinhamento do filme se devia ao emprego simultâneo do esvaziamento cênico com o que chamamos de uma “gestualidade retardada”. Esses elementos destacados atuavam em sentidos opostos: o primeiro como recurso de clareza, o segundo como recurso de estilo. Esse descompasso, como dizíamos, deixava o espectador em suspenso, no meio do caminho entre a fruição convergente da narrativa e a fruição divergente da forma. A

37 David Bordwell, op. cit., p. 151.

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montagem, subitamente acelerada, é convocada para realinhar os eixos. A partir de então, como bem pontua Bordwell, “o espaço se dobra obedientemente às necessidades narrativas do filme”.38 Feita esta breve recapitulação, convém agora nos perguntarmos: esse realinhamento é realizado a serviço de quê? Formulando a pergunta de outro modo: se a ressurreição de Inger, do ponto de vista narrativo, foi solicitada pela própria trama do filme (uma vez que o milagre resolveria os conflitos entre os personagens), qual teria sido a sua motivação no nível da linguagem? A essa pergunta, enfrentada apenas nos instantes finais do texto, Bordwell responde por meio da busca por uma equivalência formal. A motivação narrativa do milagre estaria interligada com a forma escolhida para representá-lo. Em suas palavras: “o milagre é justificado tanto pelo estilo empregado por Dreyer quanto pelos fatores puramente causais”.39 Isso porque, segundo Bordwell, a ressurreição de Inger não apenas resolve as dificuldades da trama, conduzindo os conflitos em direção ao milagre, como também ela é representada sob a forma de uma convergência – realinhando os eixos narrativos e formais, outrora independentes. Em suas palavras: “O milagre deve ser motivado ‘composicionalmente’ – funcionando em um sistema de motivos”.40 O que ele chama de um “retorno ao familiar” teria sido a solução de Dreyer para representar aquilo que caracteriza o próprio milagre – ou seja, o retorno à vida. Sendo assim, a fratura sentida na mudança do regime de encenação seria uma espécie de equivalente formal daquilo que caracteriza o milagre da ressurreição: a violação da verossimilhança.

38 David Bordwell, op. cit., p. 168. 39 Ibid., p. 169. 40 Ibid., p. 147.

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Não é apenas que o milagre resolva a última das dificuldades da trama, retornando à estabilidade narrativa. O milagre é representado como um retorno à inteligibilidade cinemática. [...] Na ressurreição de Inger, a verossimilhança é violada em nome da ordem narrativa, e a noção de ordem é justificada pelo retorno à compreensão fílmica convencional.41

Embora concordemos com a análise de Bordwell no que diz respeito à encenação teatral de Dreyer, assim como à subsequente fusão espaço-temporal com a lógica narrativa na sequência final, discordamos dos propósitos em relação aos quais essa operação estaria subordinada. Dito de outra forma: embora concordemos com os sintomas identificados, discordamos do diagnóstico proposto. Conforme verificaremos a seguir, o procedimento empregado para representar o milagre parece ter sido concebido com outro objetivo em mente: fazer o espectador acreditar na cena. A fratura provocada na transição do regime teatral para o cinematográfico, como dissemos, não parece ter sido calcada na duplicação do conteúdo dramático da cena, pois, nesse caso, o milagre se encerraria em si mesmo, justificando-se na busca por uma equivalência. Supomos que não se trata disso. O desalinhamento inicial do filme – provocado, como dissemos, pelo descompasso entre os recursos de clareza e os de estilo – atua no sentido de dilatar o tempo do luto e de toda a dissolução familiar. Com a ajuda adicional da gestualidade retardada dos atores, e favorecido por um estado mental menos cético (benefícios da ilusão teatral), o espectador é estimulado a desejar o milagre de Inger. À medida que a ressurreição se aproxima, o cinema é convocado para trazer

41 David Bordwell, op. cit., p. 170.

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o espectador para dentro da cena. Isso significa que, nesse caso, as operações identificadas por Bordwell teriam sido adotadas como recursos de absorção. Ao longo da sequência final, a montagem do filme é empregada para, ao articular os pontos de vista das testemunhas, fazer o espectador se identificar com os personagens que presenciaram o milagre. É assim que, de repente, os longos planos de outrora são substituídos por uma montagem bastante eloquente. Para melhor fazer o espectador acreditar na ressurreição, portanto, o teatro pede socorro ao cinema (não sem antes, é claro, o teatro já ter socorrido o cinema – em uma simbiose concebida para servir ao sistema de crenças estabelecido em favor da ressurreição de Inger). Assim, além da montagem analítica empregada na cena da ressurreição (cuja análise será feita a seguir), mobiliza-se ao longo de todo o velório de Inger vários procedimentos cinematográficos para: 1) restituir o “espaço fora de campo”; 2) reestabelecer a contiguidade espacial da cena; 3) intensificar o tom reconciliatório da cena com o close-up. Para que possamos prosseguir com a análise, e assim apresentarmos alguns indícios importantes para a hipótese aqui levantada, vejamos abaixo o que diz Dreyer acerca da cena da ressurreição: Para torná-los receptivos ao milagre, eles [os espectadores] devem ser guiados àquele estado de luto e melancolia que as pessoas experimentam em um funeral. Uma vez trazidos a esse estado de solenidade e introspecção, eles podem mais facilmente se permitir ser persuadidos a acreditar no milagre – simplesmente porque, ao pensarem na morte, são levados a pensar em suas próprias mortes – e assim, inconscientemente, eles passam a desejar o milagre, abandonando então as suas atitudes normais de ceticismo.42

42 Carl Theodor Dreyer apud Linda Ellen Podheiser, op. cit., p. 199.

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O depoimento de Dreyer revela o desejo de fazer seus espectadores acreditarem no milagre por meio de uma operação que faça com que eles se identifiquem com a experiência da morte. Dreyer teria provocado essa sensação de desamparo no espectador, expandindo o tempo do luto (pelo retardamento estilístico, conforme dissemos) para, no final, resolver todos os conflitos com a ressurreição. Ora, existem recursos de identificação mais eficientes que aqueles convencionados pela própria gramática do cinema? O chamado “retorno ao familiar” (como Bordwell se refere às rearticulações da linguagem cinematográfica) faria parte da intenção de fazer o espectador ser tragado para dentro da cena – ajudando-o, assim, a acreditar no milagre. Foi preciso, então, migrar do registro teatral para o cinematográfico. As articulações “transparentes” da linguagem do cinema, até então inexistentes no filme, ajudarão o espectador a melhor aceitar a violação de verossimilhança do fenômeno sobrenatural. Para tentarmos demonstrar a hipótese levantada, analisaremos a cena da ressurreição de Inger. Na cena do milagre propriamente dito, Dreyer filma todas as testemunhas por meio de uma operação suturante muito eficiente: a montagem analítica. Embora Bordwell não tenha feito uma análise detalhada dessa cena, é ele mesmo quem identifica o emprego dessa categoria de montagem. Qual é o objetivo da chamada montagem analítica? Ela articula, simultaneamente, o plano ponto de vista e o campo/contracampo com o objetivo de restituir a coerência espacial da cena. Trata-se de uma operação de montagem concebida com o objetivo de estabelecer um discurso eloquente entre os personagens e aquilo que eles veem. Para que possamos compreender como ela funciona ao longo da cena, vejamos os fotogramas ao lado.

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Eis o discurso estabelecido pela montagem na cena do milagre:43 enquanto Johannes, ao lado de Maren, inicia o processo que culminará no milagre (fotograma 1), o padre e o médico os observam com atenção (2); o padre chega a se levantar para impedir que Johannes realize tamanha heresia (tentar repetir o gesto de Cristo), mas o médico o puxa de volta para baixo; Mikkel também tenta interromper a fala de Johannes (3), mas depois acaba fraquejando e é conduzido de volta para a sua cadeira; enquanto isso, Maren (a única pessoa a acreditar no milagre) observa o corpo de sua mãe (4); após o comando de Johannes (“levante-se!”), o corpo de Inger dá os primeiros sinais de vida (5), tendo como testemunhas oculares Peter e Morten (6) e a sorridente Maren (7); em seguida, na última peça desse mosaico semântico, uma servente entra em quadro para salvaguardar a criança (8). Antes de pegar Maren em seus braços, a mulher olha com admiração para Johannes. Ele, por sua vez, troca olhares com a criança, em sinal de reconhecimento. No plano final, a troca triangular de olhares destoa bastante do restante do filme. Como os personagens raramente se olham em A palavra, encarando com frequência um grande vazio, esse plano parece consolidar a quebra definitiva da unidade espacial dos palcos teatrais. Quanto à montagem analítica, ela é usada para articular o jogo de olhares, oferecendo à cena um adicional de inteligibilidade. A multiplicidade dos pontos de vista, por meio dos quais se pode reconstruir a configuração espacial do velório, encoraja o espectador a ordenar os planos em um discurso eloquente. Ao espectador familiarizado com a gramática do cinema, não é difícil realizar essa leitura.

43 Cada operação semântica será destacada em negrito, e os planos serão numerados de acordo com a ordem dos fotogramas.

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A ressurreição de Inger é narrada por um olhar desencarnado que parece tudo ver (oferecendo-nos, de forma concatenada e sequencial, uma diversidade perspectiva). A esse poder que tem o olho enunciador de “penetrar nas coisas como um observador invisível”,44 como diz Arlindo Machado, dá-se o nome de ubiquidade. Vendo tudo dessa posição privilegiada, e motivado por um forte impulso de introjeção, o espectador é convidado a se identificar com os personagens que testemunharam a cena. Ao chamado lugar do príncipe, melhor assento do edifício teatral (localizado no centro da plateia), o cinema oferece o “olhar sem corpo”45 de uma instância narradora onisciente. O cinema, como dizíamos, é convocado para socorrer o espectador do grande problema instaurado pelo milagre da ressurreição: a violação da verossimilhança.

44 Arlindo Machado, O sujeito na tela. São Paulo: Paulus, 2007, p. 28. 45 A expressão é usada por Ismail Xavier em O olhar e a cena (São Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 44).

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7. No tempo do milagre

Como filmar uma ressurreição? As operações empregadas na representação do milagre, conforme temos verificado nas análises fílmicas, trazem implicações diferentes. No caso específico da ressurreição, o peso das escolhas tomadas, sejam elas bem ou malsucedidas, parece se reportar à questão da crença na representação. Embora nem todos os filmes solicitem a adesão do espectador no nível da crença, ainda assim há uma emoção própria do despertar do morto que passa pela prévia aceitação de sua morte. Eugène Green, em Présences: Essai sur la nature du cinema, faz uma reflexão sobre esse dilema representacional. Ao analisar A palavra, de Dreyer, Green considera que, na cena da ressurreição, haveria um equívoco quanto à confiança excessiva na reação dos familiares que cercavam o caixão. No momento do milagre, o primeiro indício do despertar de Inger é uma sutil movimentação de suas mãos. Em seguida, talvez para evitar o risco da descrença, Dreyer filma os rostos de todos os personagens que testemunharam o momento. O caráter “didático” da operação de Dreyer, como defende Green,

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acaba por “afastar a presença real do sagrado”.46 Em sua análise, Eugène Green sugere que se Dreyer tivesse, ao contrário, filmado a totalidade do corpo de Inger se reerguendo do caixão, teria igualmente cometido um equívoco, pois a imagem do corpo ressuscitado, já aceito como morto, entraria em contradição com o acordo estabelecido previamente com o espectador. Ora, como então representar o despertar de um morto sem cair em contradições desse tipo? De acordo com o raciocínio de Green, qual seria a forma mais satisfatória de se representar o milagre? Como contraponto à solução de Dreyer, Green tece um elogio às escolhas feitas por Robert Bresson em O processo de Joana D’Arc (Procès de Jeanne d'Arc, 1962). Ao dispensar a interpretação naturalista dos personagens, técnica baseada na psicologização dos atores, Bresson nos convida a nos relacionarmos com o filme de outra forma. Em vez de enfatizar a reação das pessoas que testemunharam a morte da heroína, Bresson prefere nos colocar diante da imagem da estaca de madeira esvaziada. Assim, no final do filme, após o corpo de Joana D’Arc já ter sido inteiramente consumido pelas chamas da fogueira, apreendemos não a sua presença simbólica, mas “a presença real na ausência do corpo”.47 Como bem coloca a pesquisadora Tatiana Monassa, podemos depreender que, para Eugène Green: a única forma de representar o milagre, ou de representar o invisível, é não transformá-lo numa imagem “completa”, que dê um “rosto” que abarque a totalidade do mistério, mas mantê-lo em grande parte fora da imagem, preservando sua dimensão secreta. Donde a

46 Eugène Green, Présences: Essai sur la nature du cinéma. Paris: Desclée de Brouwer, 2003, p. 153. 47 Ibid., p. 185.

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importância da palavra em seu cinema, da verdade feita corpo sonoro, mas não visual. O som seria, então, a manifestação mais apropriada da visão, por não se traduzir no âmbito da visibilidade.48

Em seu segundo longa-metragem, O mundo vivente (Le Monde vivant, 2003), Eugène Green filma uma ressurreição que parece responder a algumas lacunas deixadas em sua reflexão. Green opta por representar o milagre de forma bastante econômica, enquadrando apenas uma pequena fração do corpo do personagem ressuscitado. Essa questão da limitação da visibilidade é fundamental para estabelecer um pacto de confiança na representação. Não iremos nos estender muito nesta análise,49 mas condensaremos seu resultado para nos ajudar a refletir sobre os filmes que ainda serão abordados. A cena do milagre em O mundo vivente corresponde ao momento em que Pénélope vai até o lugar onde jazia o corpo de um personagem morto, o Cavaleiro do Leão. Chegando lá, contudo, encontra apenas seus pertences. Ao ver os vestígios do corpo sumido, Pénélope se assusta. Logo em seguida, em uma longa tomada, vemos apenas a sua mão em plano detalhe. A voz do Cavaleiro logo se faz ouvir na banda sonora, sobrepondo-se à imagem fragmentada da mão de Pénélope: “Não se vire. Não se vire”. Ela logo diz: “Você está morto!”, no que o Cavaleiro a corrige, respondendo que “estava” morto. O diálogo prossegue e se encerra com a sugestão

48 Tatiana Monassa, “Na presença do mistério”. Contracampo, ed. 95, 2010. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2021. 49 A análise da cena da ressurreição de O mundo vivente se encontra em Eugène Green e a hipótese do cinema descortinado (Curitiba: A Quadro, 2021), livro de minha autoria já citado anteriormente.

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de Pénélope de que o Cavaleiro morto não é “nada além de palavras”. O Cavaleiro se cala. A resposta é dada pela entrada de sua mão no canto direito do quadro, que segue lentamente em direção à de Pénélope. As duas mãos se tocam e se apertam com firmeza. Pénélope chora emocionada. Está feito, o milagre foi assim realizado. Foi dessa maneira, com muita simplicidade, que Green enfrentou o problema de representação. Há alguns pontos a destacar nessa operação. Iremos nos ater aqui aos elementos estritamente visuais da cena. Eugène Green filma a ressurreição do Cavaleiro do Leão por meio da fragmentação do corpo, enquadrando uma pequena parte do todo e excluindo o entorno. Trata-se de uma operação que denota uma confiança muito grande no recorte da imagem pela escala do enquadramento. O plano próximo oferece uma verdade particular; e o êxito da escolha de Green depende de nossa capacidade de isolar a imagem emoldurada. A verdade do milagre reside na autonomia do fragmento em relação ao extracampo. A operação empregada, na força de sua simplicidade, requer que enxerguemos a mão do Cavaleiro de forma desvinculada de seu corpo. Não devemos reconstituir o corpo do ator recortado pelo enquadramento. Caso contrário, tudo se igualaria a um teatro de fantoches. Nessa modalidade de espetáculo, se explicitam sem pudores os traços materiais que ligam o boneco a quem comanda seu movimento. Não é o que acontece aqui. O que os diferencia é o lugar do espectador. O milagre terá sido bem-sucedido se a posição do espectador em relação aos limites do quadro lhe for favorável. Vejamos: se a nossa atenção se voltar para dentro da imagem, o milagre poderá ser apreciado com um índice razoável de verossimilhança; caso contrário, se a operação empregada sugerir o espaço fora de campo, a crença na ressurreição será reduzida ao mero faz de contas. O sistema de crenças do espectador, portanto, está vinculado à sua capacidade de se

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ater ao interior da composição. É uma aposta arriscada. Afinal, quando a mão do Cavaleiro entra em quadro, o movimento acaba por enfatizar justamente as suas bordas. Tal ênfase, contudo, não se converte em um exercício de imaginação. Embora faça uso expressivo da moldura da composição, tensionando o seu quadro-limite (Jacques Aumont),50 em momento algum a atenção do espectador é levada para o extracampo. O encontro das mãos desvia o olhar do espectador para dentro, fazendo-o ignorar a ligação do corpo do ator com a sua mão. De onde ela veio, afinal? Pouco importa. A qualidade centrípeta da composição, atribuída por André Bazin à pintura, foi a solução de Eugène Green para fazer o espectador acreditar na ressurreição do Cavaleiro. Contrariando a máxima baziniana, segundo a qual tudo o que vemos no cinema “se prolonga indefinidamente no universo”,51 Green encontra resposta para esse problema de representação no uso de um dispositivo de polarização da imagem. E assim o faz para nos colocar na presença do que verdadeiramente importa na cena: o encontro das mãos.

50 Jacques Aumont. O olho interminável: Cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 113. 51 André Bazin, 2014, p. 207.

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Para que possamos concluir a análise da cena, façamos uma breve síntese da estratégia de encenação de Eugène Green. O mundo vivente começa pela assunção do jogo teatral, expondo com franqueza o sistema de signos estabelecido. Nesse sistema, o nome possui primazia sobre as coisas. Exemplo: embora o animal que acompanha o Cavaleiro do Leão seja um cachorro, o filme trabalha com a ideia de que ele é, na realidade, um leão (ouvimos inclusive o seu rugido). Eis a graça de O mundo vivente: a despeito das evidências sensíveis, tomamos o partido dos signos (privilégio do espectador teatral). Uma vez assimiladas as regras desse teatro ao ar livre, Green procederá de outra forma, embaralhando as peças do jogo semântico estabelecido. Assim, em alguns momentos especiais do filme (o milagre sem dúvida é um deles), o espectador é posto em contato com um corpo rebelde a qualquer tentativa de condensação cênica. A superfície da imagem é perfurada, de um só golpe, por um corpo cujo relevo se mostra impenetrável ao léxico semiológico. Assim como em A palavra, a ressurreição provoca uma mudança no regime de representação. O desafio de se filmar o milagre produz uma descontinuidade no registro, revelando-se uma espécie de fratura, uma ruptura em relação ao restante do filme. A crença do espectador na ressurreição do Cavaleiro é de uma natureza diferente daquela que nos havia feito aceitar, por suspensão da descrença, que o cachorro era na verdade um leão. Aqui já não se trata de um jogo promovido pelo efeito-cortina. Green dispensa os artifícios da ilusão teatral para nos colocar diante de uma realidade que se descortina diante de nós. O que se percebe é o desejo de substituir o aspecto convencional da representação, inerente a qualquer linguagem, pela exacerbação da presença. Em vez de representar o milagre, opta-se por simplesmente nos apresentar a ele. Assim, à luz da evidência, o espectador é convidado a acreditar no milagre. É uma crença baseada no convencimento tátil:

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vemos a mão, sentimos o seu toque, acreditamos na sua realidade. Em O mundo vivente, a ressurreição do Cavaleiro se dá no exato instante em que o regime teatral termina. Trata-se, assim, de um milagre como retorno ao real.52 O espectador acredita na verdade particular oferecida pela moldura. Crê, portanto, não porque vê a imagem do Cavaleiro, cuja mão entra pela borda do quadro, mas porque sente sua presença. O milagre é operado pelo toque de sua mão na de Pénélope. A primazia da visão, marca distintiva do Evangelho de João, segundo o qual Jesus Cristo é a “Luz do Mundo”,53 dá lugar a uma operação que valoriza o aspecto carnal da ressurreição. Ao inverter o primado da visão pelo do toque, evitando o diálogo com a tradição iconográfica da pintura religiosa, temos como resultado uma representação do milagre bastante apartada da tradição canônica. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o cinema de Green conjuga o sagrado ao profano em uma mística particular. Embora profundamente comprometido com a expressão da graça, Green confia demasiado em sua intuição, o que lhe confere uma atitude subversiva – e até herética, alguns diriam – em relação aos códigos mais prescritivos da tradição religiosa. Eugène Green é um homem místico cuja fé se assenta em princípios distantes do cânone, o que se traduz em uma postura essencialmente livre e anticlerical.

52 Vale ressaltar uma curiosa semelhança em relação ao último filme de Éric Rohmer, O amor de Astrée e Céladon (Les Amours d'Astrée et de Céladon, 2007). Nesses dois filmes, o milagre é uma operação que se realiza no instante em que o jogo teatral termina. No caso do filme de Rohmer, o fechamento das cortinas que cercavam a cama de Léonide, assim como o desnudamento de Céladon (através do qual ele se livra do figurino que o prendia ao jogo de travestismo, ensejando a queda da máscara teatral), criam as condições necessárias para que se dê, aos olhos de Astrée, a ressurreição de Céladon. 53 João 8:12.

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Feita essa breve síntese acerca do programa estético de Green em O mundo vivente, método de encenação cujas bases teatrais servirão como parâmetro comparativo na análise fílmica seguinte, passemos agora para a verificação de duas propostas antagônicas entre si. Em Luz silenciosa (Stellet Licht, 2007), de Carlos Reygadas, veremos que a ressurreição da personagem morta se dará sem provocar qualquer impacto na forma fílmica. Em um plano-sequência límpido e imperturbável, sem nenhuma interferência do registro, veremos o sereno despertar da personagem, como se estivesse acordando de um sono profundo. Já em O Evangelho segundo São Mateus (Il Vangelo secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini, a Ressurreição ocorre de forma diferente, assumindo a presença do aparato cinematográfico como participante de seu mistério. O desenrolar deste capítulo servirá de ocasião para colocarmos à prova a hipótese deste livro. A questão está lançada: o milagre se realiza diante da câmera, perante a transparência do aparato, ou como consequência das fissuras do registro, realizando-se graças às potencialidades do meio fílmico? A comparação desses dois filmes, colocados lado a lado, traduz de forma sintética duas posturas opostas em relação à representação do milagre no cinema.

7.1. O milagre como fenômeno natural Luz silenciosa, de Carlos Reygadas, começa com o nascer do sol. Um movimento de câmera circular flagra cada instante, em uma temporalidade acelerada, da passagem da noite para o dia. A escuridão inicial permite enxergar os primeiros raios solares. Num plano contínuo, sem cortes, vemos um espetáculo composto por uma rica gama de cores: do sol nascente de cor laranja ao céu

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azulado da manhã, passando ainda por um intenso cor-de-rosa. Sons de animais, noturnos e diurnos, são mixados cuidadosamente para compor uma ambiência detalhada da região. A massa sonora dos animais se destaca sobre qualquer ruído individual: no lugar do latido como signo do cão, ou do mugido como signo do boi, Reygadas e sua equipe constroem uma malha de sons que expressa, coletivamente, uma rica fauna animal. A diversidade das frequências auditivas é articulada com a rica paleta de cores para reproduzir, em conjunto, um espetáculo de grande beleza: reflexo da natureza em sua forma mais perfeita. O céu, de início bastante estrelado, indica o afastamento das grandes cidades. Estamos no norte do México, em uma comunidade rural de imigrantes menonitas. Após o bonito prólogo do filme, passamos a acompanhar a vida do fazendeiro Johan. Ele vive um conflito amoroso. Desde que iniciara um caso extraconjugal com Marianne, não consegue se decidir entre manter a vida em família, com a esposa Esther e os filhos, ou recomeçar uma nova vida ao lado da amante. “Se não se decidir logo”, diz seu pai, “vai acabar sem nenhuma das duas”. Embora sofram em silêncio, as duas mulheres sabem de tudo. No filme de Reygadas, não há espaço para a dissimulação. A dor e a alegria são sentidas individualmente, sempre com muita intensidade, mas sem os efeitos subterrâneos que uma traição em segredo pode trazer. Johan compartilha suas dúvidas com um amigo, o pai e a esposa. “Eu a encontrei novamente. Tentei evitar com toda a minha força, mas acabei falhando”, confessa Johan para Esther enquanto dirigem em uma estrada. A franqueza de Johan não a impede de sofrer. “Como eu desejei que isso tudo fosse apenas um pesadelo”, responde Esther. Logo em seguida, diz que está se sentindo mal e pede para Johan encostar o carro. No meio da estrada, em pleno temporal, Esther sai do automóvel e segue em direção ao matagal. Senta-se ao pé de uma

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árvore e começa a chorar. Suas lágrimas parecem duplicar a chuva torrencial que cai sobre sua cabeça. Quando Johan chega para acudir a esposa, Esther já não está mais com vida. Qual teria sido, afinal, a causa de sua morte? Embora o diagnóstico médico indique um ataque cardíaco, a morte de Esther se afigura como uma entrega sem resistências, um simples abandono. Ela parece ter morrido por desistência. Seu coração simplesmente deixou de bater. Uma morte sem trauma. A morte de Esther reúne os membros de sua comunidade para o velório. A família, os vizinhos, todos comparecem à cerimônia. Johan está devastado, sente muito a morte da companheira. Ao compartilhar com Marianne o seu arrependimento, desejando que tivesse agido de forma diferente, a amante responde compreensivamente que o retorno ao passado é a única impossibilidade na vida. Em seguida, pede para ver Esther. Enquanto todos aguardam na sala, Marianne permanece por um instante a sós diante de seu corpo morto. A composição do quadro, perfeitamente simétrica, remete diretamente à cena do milagre em A palavra. A referência ao filme de Dreyer já havia sido estabelecida desde o início, quando Johan decide interromper o funcionamento de um relógio de parede em sua casa. Logo após o despertar de Esther, o pai de Johan irá dar corda nele novamente – fazendo do tiquetaquear do relógio de parede, tal como Dreyer fizera em A palavra, uma duplicação da batida do coração do corpo ressuscitado. Como podemos observar nos fotogramas ao lado, as semelhanças entre os dois filmes são notáveis. A angulação da câmera, frontal em relação ao caixão, é a mesma. Os objetos cênicos também são iguais: o tapete no centro da composição e as velas nas laterais se notabilizam pela forma cuidadosa com que foram arranjados no quadro. Há, contudo, um elemento nos dois filmes, a janela,

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A palavra (1955), de Carl Th. Dreyer

Luz silenciosa (Stellet Licht, 2007), de Carlos Reygadas

que acaba se revelando o sintoma de tudo aquilo que os diferencia diametralmente. Enquanto a janela no filme de Dreyer é praticamente um objeto cenográfico (parece até iluminado por refletores), no de Reygadas a janela é empregada para enquadrar a paisagem (uma pequena fração da natureza entrevista pela

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moldura retangular), assumindo, assim, uma função escópica. Após a ressurreição de Esther, essa mesma janela permitirá que uma borboleta saia do quarto. O filme segue o seu movimento para o exterior. Antes mesmo que Johan presencie o despertar da esposa, Reygadas nos lança em direção à natureza. O último plano do filme, tal como o primeiro, é uma celebração do ciclo solar: neste caso, o pôr do sol. O filme é uma exacerbação da beleza natural, perfeita e milagrosa. Na sequência da ressurreição de Esther, o primeiro plano possui uma composição de quadro ainda mais esvaziada que em A palavra. Parece inteiramente concebida para evocar o filme de Dreyer, uma piscadela em reverência ao mestre dinamarquês. Em relação ao filme de Dreyer, a cena da ressurreição em Luz silenciosa possui outra diferença fundamental: o agente do milagre. O que era creditado à palavra é aqui atribuído a um gesto. Enquanto Johannes, em A palavra, mantém seu corpo em absoluto repouso – atribuindo o poder de ressuscitar os mortos à fala –, Marianne desperta Esther com um beijo em seus lábios. No lugar da palavra, um gesto. O beijo não possui nada de extraordinário, é apenas um gesto que denota a continuidade dos corpos no espaço. Quando Marianne levanta o rosto, vemos uma lágrima derramada sobre a face de Esther (assim como o beijo, a lágrima expressa o aspecto orgânico da ressurreição). Para flagrar o milagre, captá-lo ante a câmera, Reygadas faz uso do plano-sequência. Entre o gesto de Marianne e o despertar de Esther, não há qualquer interrupção. O

milagre

não

é

ruptura,

mas

continuidade.

Ele

se

realiza diante da câmera, na própria instância dramática. Nenhuma operação épica é usada para reforçar o drama. Em um único plano, ao longo do qual somos convidados a depositar o nosso olhar sobre seu rosto, os pulmões de Esther simplesmente

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recobram a sua funcionalidade – inflando-se aos poucos em uma respiração lenta e suave. Nenhuma ruptura, nenhum efeito, nenhum artifício. Eis aqui um milagre natural. Podemos ver a vida que se reanima na superfície visível de sua face. Se compararmos os fotogramas a seguir, que correspondem, respectivamente, ao início e ao final do longo plano que contém o milagre, veremos que há uma diferença de iluminação. Além do gesto de Marianne, uma sutil incidência luminosa parece ter sido o agente deste milagre. Na duração do plano, percebemos que essa intervenção é bastante discreta, quase imperceptível.54 De todo modo, podemos dizer que essa mudança de iluminação é um elemento importante na representação do milagre. Essa operação, destacamos, não deve ser compreendida como um recurso de ênfase do meio fílmico. Não se trata de uma intervenção cinematográfica para sinalizar ou isolar o elemento sobrenatural. Muito pelo contrário. A incidência luminosa é aqui compreendida como mais um indício de que se trata de um milagre da natureza. A luz que incide sobre o rosto de Esther vem do lado direito do quadro. É possível inclusive localizar a fonte desse raio luminoso, uma vez que há uma janela aberta na mesma direção de onde vem a luz. A iluminação que incide sobre o seu rosto vem da janela, é uma luz solar. A ressurreição no cinema, do ponto de vista do jogo psicológico com o espectador, oferece um duplo desafio. Em primeiro lugar, é preciso acreditar na morte do personagem. Não bastasse a dificuldade dessa operação, por si só já bastante problemática

54 Embora muito discreta, talvez tenha motivado o diretor a dar ao filme o título de Luz silenciosa, daí a sua importância na leitura aqui.

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(sobretudo quando se explora a imagem do ator, modelo vivo que se finge de morto), é preciso ainda fazê-lo acreditar em seu retorno à vida. Em Luz silenciosa, embora solicite do espectador um envolvimento emocional em favor da ressurreição de Esther, Reygadas não lhe oferece nenhum suporte para auxiliar nessa difícil tarefa. Nesse sentido, podemos colocá-lo nos antípodas de todo o projeto estético de Eugène Green. O mundo vivente estabelece desde o início suas bases teatrais para, no momento adequado, negá-las com contundência. A realidade do milagre, descortinada pelo toque das mãos, se deve ao fim do regime teatral previamente estabelecido. A operação de contraste ajuda no preparo de um terreno favorável para a apreciação do milagre, levando em conta a questão da crença na representação.

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Já em Luz silenciosa, no lugar dos benefícios da ilusão teatral, Reygadas faz questão de se manter bem próximo ao rosto da atriz e preservar a continuidade do registro, minimizando qualquer intervenção ao longo do plano em que se desenrola o despertar de Esther. Tal opção, contudo, acaba ilustrando exatamente aquilo que Bordwell adverte em relação a uma representação transparente do milagre. Vejamos o que diz acerca de A palavra: “O milagre viola as leis naturais ou científicas; logo, não pode ser motivado realisticamente, com verossimilhança”.55 Será que isso é um problema? Ao longo deste livro, analisamos filmes que pareciam julgar necessário incluir algum tipo de fratura, alguma operação de opacidade, para demarcar com clareza o extraordinário do evento miraculoso. Fizemos na introdução do livro uma defesa aos filmes que seguiram esse caminho. O milagre parece pedir, como coloca Bordwell, algum tipo de intervenção na forma fílmica. A encenação deve ser pontuada por uma marca, uma fissura, algo que indique a chegada de um fenômeno que comporta, por si só, uma ruptura com a ordem natural dos eventos. Em defesa de Reygadas, contudo, devemos ressalvar que a aposta na transparência do registro parece coerente com a ênfase dada ao caráter natural do fenômeno miraculoso. Tal ideia está presente em toda a duração do filme. Diferentemente dos demais filmes aqui analisados, o milagre em Luz silenciosa não é um fenômeno sobrenatural. O texto fílmico não indica qualquer intervenção divina. O mistério da ressurreição se inicia e se conclui na própria manifestação da natureza, sem qualquer indício de ruptura. Não foi o sopro divino que fez reerguer o corpo de Esther.

55 David Bordwell, op. cit., p. 147.

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Sua morte se mostra tão resignada e serena quanto seu despertar. Não à toa, o crítico de cinema Inácio Araujo, em texto sobre o filme à época do lançamento, apontou que a ressurreição de Esther mais parece um despertar de um estado de catalepsia que propriamente um milagre.56 O seu despertar é, antes, uma comprovação do ciclo da natureza. Tudo parece fazer parte de um mesmo devir universal que, após o pôr do sol, trata de fazê-lo nascer novamente no dia seguinte. A ressalva feita acima, porém, não equaciona todas as questões. No que diz respeito à crença na representação, a ausência de cortes e a escala aproximada do plano, que nos convidam a observar os mínimos sinais do lento despertar de Esther, não são livres de problemas. Além de depositar uma confiança excessiva na imagem, como se ela fosse capaz de, naturalmente, reter tudo aquilo que caracteriza o mistério da ressurreição, há uma sobrecarga na atriz que interpreta a personagem ressuscitada. Se o espectador não se engajar nesse acordo que pressupõe a crença em sua morte, tudo o que acontece a seguir não passa de mero jogo de cena. Nesse caso, tendo em vista o propósito emocional do filme, a encenação do milagre não terá sido bem-sucedida. Em Luz silenciosa, o uso do plano-sequência parece ser reflexo do desejo de superar o aspecto convencional da operação empregada por Dreyer. Em A palavra, afinal, substituem-se as convenções teatrais pelas operações, igualmente convencionais, da montagem cinematográfica. A opção de Reygadas pelo plano-sequência se explica por sua aposta na imagem. Com imagem, estamos nos referindo aqui ao aspecto mais confiável do termo, fruto da ligação

56 Inácio Araujo, “Mexicano questiona fé e apropriação de ideias alheias”. Folha de São Paulo, 22 maio 2008. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2021.

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indicial com a realidade. Não se trata de uma concepção de cinema que encara a imagem como fonte de enganos. Dos tantos desvios e deturpações que a imagem pode comportar no cinema, Reygadas parece desinteressado de todos eles. O plano-sequência do despertar de Esther requer uma relação inocente com a imagem cinematográfica. Em comparação com o filme de Dreyer, trata-se de substituir as articulações da montagem pela evidência da imagem. Em vez de um milagre que resida nos meandros da linguagem, como vimos na torção provocada em A palavra, Reygadas nos oferece uma imagem que se encerra em sua própria frontalidade.

7.2. O milagre como fenômeno cinematográfico O túmulo vazio é o que sobrou da cena. Jesus Cristo já não está mais lá. Vemos apenas vestígios de seu sumiço: a pedra deslocada, um pano branco, as faixas de linho enroladas no chão. Para quem chegou atrasado ao local, como os discípulos de Jesus no Evangelho de João, resta apenas intuir o que teria acontecido: “Viu e acreditou”.57 Com essa frase, se estabelece a relação de confiança nos elementos visíveis que restaram após a Ressurreição de Cristo. São, afinal, os traços naturais que ligam o túmulo vazio ao corpo ressuscitado. Em O que vemos, o que nos olha, Georges Didi-Huberman reforça o papel atribuído à visão no relato do evangelista: “Acreditou porque viu”,58 parafraseia Didi-Huberman. Os olhos de detetive, convocados para desvendar o sumiço do corpo, se concentram nos indícios encontrados. Trata-se, portanto,

57 João 20:8 58 Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 42.

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de um mistério marcado por um grande vazio, pela ausência de testemunhas oculares e por alguns vestígios deixados. Dos quatro Evangelhos canônicos, o de Mateus é o único que desloca a Ressurreição de Cristo para o presente do fenômeno miraculoso. Depois do sábado, ao raiar o primeiro dia da semana, Maria Madalena e a outra Maria foram ver o sepulcro. De repente, houve um grande terremoto: o anjo do Senhor desceu do céu e, aproximando-se, removeu a pedra e sentou-se nela. Sua aparência era como um relâmpago, e suas vestes, brancas como a neve. Os guardas ficaram com tanto medo do anjo que tremeram e ficaram como mortos. Então o anjo falou às mulheres: “Vós não precisais ter medo! Sei que procurais Jesus, que foi crucificado. Ele já não está aqui! Ressuscitou, como havia dito! Vinde ver o lugar em que ele estava”.59

Enquanto filmes sobre a vida de Cristo têm como padrão juntar trechos de cada Evangelho, harmonizando-os em uma única história linear, Pasolini se detém exclusivamente no relato de Mateus para O Evangelho segundo São Mateus (1964). A escolha não é casual, e dentre seus motivos encontra-se, sem dúvida, o desejo de representar a cena da Ressurreição de Cristo enquanto ela se concretiza. No presente. Aos que chegam tarde demais à cena, como vimos acima, resta apenas a aquiescência da relíquia. Porém, Pasolini não se contenta com a relíquia, pois entende que o sagrado só se realiza no presente. O que se vê no desfecho do filme, afinal, senão uma irrupção do sagrado? Ou ainda, dito de outro modo, uma erupção do sagrado. O jogo de palavras não é em vão: muito já se falou, em relação ao diretor italiano, do chamado estilo magmático. Em vez de nos mostrar as lavas

59 Mateus 28:1-6.

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solidificadas de um vulcão desativado, Pasolini nos transporta para o presente da experiência. Como filmar um vulcão senão em seu estado de erupção? Na Ressurreição de Cristo, episódio marcado por um grande vazio – e que, por isso mesmo, parece solicitar uma encenação respeitosa, solene, distanciada –, Pasolini contraria todas as prescrições, representando esse milagre de forma absolutamente impura, repleta de manipulações: cortes secos, ruídos, câmera na mão, sobreposições de músicas, subjetiva indireta livre, zoom-in, movimentos abruptos etc. O Evangelho segundo São Mateus é uma obra inteiramente borrada pela mão do homem. A cada momento do filme percebemos a mão pesada de quem o realizou, de quem o esculpiu. Às impressões digitais supostamente deixadas no túmulo de Cristo, Pasolini sobrepõe as suas próprias marcas. As marcas do autor. O Evangelho segundo São Mateus é muitas vezes citado como um ponto de virada na filmografia de Pasolini. Em relação ao que tinha feito nos longas anteriores, o realizador segue por outro caminho: abandona as lentes de 50 mm, trocando-as por teleobjetivas, e renuncia aos enquadramentos elegantes em prol de uma mise en scène voltada para a expressão do subjetivo. É daí, paradoxalmente, que advém o sentimento religioso. O estilo pessoal de Pasolini, portanto, não se coloca como um obstáculo diante da grandeza do que caracteriza o episódio tumular da fé cristã. Muito pelo contrário. É ao ressaltar as imperfeições, inerentes ao método adotado, que o mistério da Ressurreição se realiza aos nossos olhos. O estilo pasoliniano expressa o sagrado por meio de uma composição concebida com propósitos devocionais.

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Diante desses propósitos, a questão da crença na representação se torna supérflua e acessória. Em O Evangelho segundo São Mateus, já não se trata de fazer o espectador acreditar ou não nas soluções propostas para a cena do milagre. Esse aspecto da recepção do espectador parece não estar em jogo aqui. O problema da crença na representação, tão importante nos demais filmes analisados na Parte III, pouco importa na Paixão de Pasolini. Ela permanece em suspenso, uma vez que o filme não almeja dar aos

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milagres um tom verossímil ou mesmo questionar a existência deles. Pasolini simplesmente apresenta bruscamente o milagre ao espectador, sem se preocupar em manter o filme dentro dos limites do plausível. Na cena da Ressurreição, particularmente, o único sistema de crenças em jogo é a fé do espectador na cristandade. Fé do espectador, portanto, mas de forma alguma investida na verossimilhança da representação. Vejamos o que diz a esse respeito o pesquisador Luiz Carlos Oliveira Jr: Há que se destacar a maneira singela e econômica com que são filmadas [em O Evangelho segundo São Mateus] as clássicas ações milagrosas de Cristo, que na maioria dos filmes bíblicos costumam aparecer revestidas de todo um tom épico e mistificador. Pasolini parte do princípio de que milagre é milagre, não precisa ser justificado, crê-se nele ou não – e seu filme é integralmente direto com relação a esse ponto, uma vez que já parte da crença na escritura como dado sólido, que não discutirá no plano formal ou textual.60

Como bem coloca Oliveira Jr., “crê-se nele ou não”, ou seja, não cabe ao filme tentar convencer ou dissuadir ninguém. Há, de fato, um tratamento factual envolvido nos milagres de Cristo. Não se trata de criar um efeito ilusionista para fazer o espectador acreditar na cena. Essa atitude anti-ilusionista de Pasolini se mostra particularmente intensificada na cena final, na Ressurreição de Cristo. O fenômeno miraculoso parece estar contido em sua própria forma fílmica. Tudo é construído, tudo é artifício.

60 Luiz Carlos Oliveira Jr. “O Evangelho segundo São Mateus”. Contracampo, ed. 58, 2003. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2021.

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A cena se constrói a partir de uma composição rítmica muito bem trabalhada. A montagem se notabiliza por suas relações antitéticas: a imobilidade e o movimento, o silêncio e o estrondo, o nada e o Todo. O que é um zoom-in para dentro de um túmulo vazio senão o desejo de operar contrastes? O movimento vem da imobilidade, a plenitude do vazio, a presença da ausência, e assim por diante. Em Théorie du montage: Énergie, forces et fluides, a pesquisadora Térésa Faucon enfatiza, a partir da análise da montagem do filme de Pasolini, um jogo expressivo com as “virtualidades do Vazio: atualizar, fazer aparecer”.61 Trabalhados em contraste, intensificados pelo uso expressivo da montagem, esses elementos antitéticos evocam o Todo, o Pleno, o próprio mistério da Ressurreição. O mérito do filme, e particularmente da sequência final, consiste em fazer o espectador completar o que não lhe é dado a ver. Pasolini subtrai do cinema a sua gramática, a sua linguagem, restringindo-se ao analfabetismo do operador. A tremedeira da câmera não é trabalhada com propósitos de significação. O zoom não significa nada, os ruídos tampouco denotam alguma coisa. A câmera é míope, não enxerga nada senão o que subjaz à camada semântica (que, por sua vez, tenta sem sucesso acobertar o Mistério). O trabalho consiste em tão somente convocar a força subterrânea das coisas. Eis o celebrado “estilo magmático” de Pasolini, orientado com o propósito de trazer à superfície o magma primordial do mundo. A expressão do sagrado advém da crueza da terra: do sul da Itália para a Cidade Santa. É assim que, na italianidade do filme, Jerusalém nunca esteve tão presente.62

61 Térésa Faucon, Théorie du montage: Énergie, forces et fluides. Paris: Armand Colin, 2013, p. 128. 62 Trata-se de uma referência ao filme ter sido rodado na Itália. No início do projeto, Pasolini intencionava filmar em Jerusalém. Chegando lá, porém, se decepciona com as marcas de modernização da cidade e desiste. Em seguida, encontra no sul da Itália uma região mais adequada para servir de locação para o filme.

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O Evangelho segundo São Mateus, filme selecionado para concluir o itinerário deste livro, se mostra um caso exemplar para as questões colocadas na introdução. Ao longo de todo o percurso, atravessado por análises fílmicas, tentamos indicar, a partir das especificidades de cada episódio bíblico, a hipótese apresentada: ao desafio de se recriar o milagre no cinema, evento que se caracteriza pela violação da verossimilhança, propomos uma postura anti-ilusionista que consiste em mostrá-lo como um fenômeno fílmico. A exacerbação da forma, que revela as fraturas inerentes

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ao milagre, nos parece a melhor maneira de representá-lo. Em vez de esconder a mão do homem, mantê-la aparente na superfície visível do tecido fílmico. Feita essa análise pontual da cena da Ressurreição, propomos neste momento uma última indagação acerca do filme de Pasolini: qual é o tempo do milagre? Falávamos, no início da análise, que Pasolini desejava nos transportar para o presente da experiência, mas qual seria a temporalidade da Ressurreição? A Ressurreição de Cristo se dá ao longo de qual duração? A essa pergunta, Pasolini responde com uma lógica alheia à cronologia dos acontecimentos. Como mensurar a duração de uma cena marcada por tantos ruídos e interferências? O corte seco desnorteia, o zoom é uma abstração, a mudança súbita de uma música para outra impede qualquer noção de linearidade. Em O Evangelho segundo São Mateus, o milagre não se inscreve em uma duração medida em minutos ou segundos. Ao contrário do que vimos na ressurreição de Esther em Luz silenciosa, milagre cuja duração equivale à da própria diegese (podendo ser medida com exatidão, já que está contida no interior de um único plano), a Ressurreição no filme de Pasolini se dá no ato do corte, no ato do susto, na própria opacidade do registro. A descontinuidade espaço-temporal da cena se traduz em uma experiência fílmica. É assim que Pasolini realiza a mais potente Ressurreição do cinema: o milagre como fenômeno cinematográfico.

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Considerações finais

Em Le Miracle comme événement cinématographique, Alain Bergala propõe uma intrigante tipologia do milagre no cinema. O que determina a categoria em que cada filme se encaixa é a forma como esse fenômeno extraordinário se revela ao espectador. O primeiro tipo, denominado “milagres como prova ostentosa”, se realiza por meio de um truque ilusionista. A imagem é manipulada livremente, sem que a realidade material ofereça qualquer resistência aos efeitos empregados. É o caso, por exemplo, de Os dez mandamentos (The Ten Commandments, 1956), de Cecil B. DeMille, na cena em que o bastão de Moisés vira uma serpente. O uso da animação não deixa dúvidas: vemos, com nossos próprios olhos, um objeto inanimado se transformar num animal vivo. O milagre se mostra ao espectador sem pudores, estabelecendo com ele um pacto de inocência próprio dos contos de fada. O segundo tipo, composto por “milagres invisíveis, ou golpe de graça”, é como Bergala se refere às epifanias. Nesta categoria proposta, não há necessidade de fazer qualquer intervenção na imagem ou no som. Deus se manifesta exclusivamente para o

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personagem. Caberá ao espectador se engajar emocionalmente na experiência vivida por ele. Um exemplo eloquente pode ser verificado na cena final de Stromboli (1950), de Roberto Rossellini, quando Karin (Ingrid Bergman) rasteja sob os pés do vulcão. Algo se passou ali, uma espécie de lucidez repentina parece tê-la atingido, fazendo-a expiar todos os seus pecados. A terceira categoria, chamada de “milagres visíveis: figuração e crença”, independe de qualquer solução virtuosa ou ostensiva. Embora os indícios do milagre se mostrem na própria superfície do filme, não há necessidade de trucagens ou qualquer outra forma de manipular a imagem. Tudo se passa na face dos atores, em sua interpretação. O despertar do morto, nesse sentido, é um acontecimento bastante oportuno, uma vez que se realiza com um simples abrir dos olhos. O problema aqui se desloca para a questão da crença. Como fazer o espectador acreditar na ressurreição de um personagem que julgava estar morto? Tratamos longamente dessa questão na Parte III do livro. Por fim, o quarto tipo de milagre é chamado por Bergala de “indeterminado”: são aqueles acontecimentos extraordinários que apenas se insinuam, sem dar ao espectador a garantia de que se trata de uma ruptura com a ordem natural dos eventos. É o caso, por exemplo, da improvável e súbita recuperação de Jan em Ondas do destino (Breaking the Waves, 1996), de Lars von Trier. Embora tudo leve a crer que houve um milagre, uma vez que seu estado de saúde era terminal, o texto fílmico não chega a descartar a hipótese do acaso. Nenhum dos filmes acima citados foi estudado nem sequer mencionado anteriormente nesta pesquisa. Isso se deve ao recorte adotado. Ao longo dos sete capítulos deste livro, seguimos um

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método de aproximação sem qualquer compromisso com o panorama das produções cinematográficas. Além de termos deixado muitos filmes de fora (algo antevisto desde o início, mas logo encarado como inevitável), a proposta da pesquisa não satisfaz a ânsia pela sistematização dos milagres a partir de uma visada em conjunto. Não era a nossa intenção, afinal, oferecer uma amostragem significativa das operações fílmicas mais largamente empregadas. O objetivo era tão somente subsidiar a nossa hipótese por meio do exame dos três problemas de representação selecionados. Como tais problemas se revelaram indissociáveis dos milagres correspondentes (a Anunciação, por exemplo, requer soluções cênicas diferentes da cura do cego, e por aí vai), decidimos fazer um estudo minucioso de cada episódio bíblico, atrelando os milagres à própria estrutura do livro: três partes, três milagres, três problemas de representação. Logo vimos que alguns milagres de Cristo, como a multiplicação de pães e peixes, ou a transformação de água em vinho, não estimularam soluções de mise en scène interessantes dos(as) realizadores(as). Estes, então, foram logo descartados. A escolha final pelos episódios da Anunciação, da cura do cego e da Ressurreição se deve à riqueza dos dilemas representacionais daí decorrentes, servindo como um infindável disparador de questões para as análises fílmicas. De todo modo, no balanço geral dos métodos adotados, fica patente que o recorte da pesquisa, circunscrito aos milagres dos Evangelhos, terminou por limitar um pouco o universo do estudo. Chegamos ao fim desta trajetória, portanto, cientes de que ainda existem lacunas, férteis e promissoras, a serem pesquisadas em investidas futuras. Na classificação acima proposta por Bergala, por exemplo, negligenciamos a categoria dos “golpes de graça”. Com isso, a contragosto, acabamos deixando de fora grandes obras

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do neorrealismo italiano, período profícuo de revelações e epifanias, notadamente com Roberto Rossellini. Os filmes da fase Ingrid Bergman, como Stromboli e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954), assim como o média-metragem O milagre, segundo segmento de O amor (L'amore, 1948), dedicado a Anna Magnani, nos apresentam personagens em estado de graça, como se tivessem sido tocados pela mão de Deus. Para descrever esses momentos especiais, a fortuna crítica não poupou adjetivos hiperbólicos, fazendo uso de um vocabulário herdado diretamente da literatura religiosa.1 Nos desfechos desses três filmes, o maravilhamento em que se encontram os personagens parece se manifestar na própria experiência fílmica, proporcionando aos espectadores uma intensa catarse emocional. A busca pela expressão da graça, claro, ultrapassa o cinema do pós-guerra, mas a marca dessa tradição se mostra em obras realizadas muitas décadas depois. Não à toa, um realizador como Éric Rohmer, muito influenciado por Rossellini, busca promover em seus filmes experiências análogas. Podemos puxar pela memória, sobretudo em seus filmes dos anos 1980 e 90, alguns momentos de clareza repentina, como se os personagens tivessem sido iluminados pela providência divina. Em Rohmer, a epifania se dá em

1 Para citar apenas um exemplo, vejamos o que escreveu o crítico Maurice Schérer (pseudônimo de Éric Rohmer) acerca de Viagem à Itália na época do lançamento do filme: “Viagem à Itália é a história da separação de um casal e sua subsequente reconciliação. Um tema dramático dentro dos padrões, e também o tema de Aurora. Rossellini e Murnau são os únicos cineastas que fizeram da Natureza o elemento ativo, o elemento principal da história. [...] Ambos os filmes são dramas com três personagens, de fato; o terceiro é Deus. Mas Deus não tem a mesma face em ambos. No primeiro uma ‘harmonia pré-ordenada’ governa de uma vez e ao mesmo tempo os movimentos da alma e as vicissitudes do cosmo: a natureza e o coração do homem batem com a mesma pulsação. O segundo vai além desta ordem – e sua magnificência pode revelar-se igualmente – descobrindo aquela suprema desordem que é conhecida como milagre”. Em “La Terre du Miracle”. Cahiers du Cinéma, n° 47, maio 1955.

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uma chave mais comedida, prosaica, manifestando-se como um instante de clarividência. É quando os personagens adquirem temporariamente o controle de suas vidas, passando a enxergar algumas escolhas com mais clareza. Muito já se falou, por exemplo, da cena na igreja em Conto de inverno (Conte d’hiver, 1992), quando Félicie é tomada pela súbita intuição de que deveria voltar para Paris. Logo após ter se mudado com a filha para Nevers, onde se estabeleceria com seu amante para virar uma página de sua vida, percebe de repente que não pertence àquela cidade. Já de volta a Paris, às vésperas do Natal, encontra o amor de sua vida, Charles, de quem se desencontrara após um terrível mal-entendido. Depois do improvável reencontro, a epifania que teve na igreja revela-se acertada e o casal enfim se recompõe. No entanto, o espectador, tanto aqui quanto nos filmes citados de Rossellini, é privado de qualquer prova ou manifestação visível de uma intervenção divina. Embora não se saiba a fronteira que separa um milagre de uma feliz coincidência, a narrativa opera em cima dessa dúvida. A suposta predestinação de Félicie, hipótese jamais confirmada, intensifica os efeitos emocionais do filme. Poderíamos propor também, em paralelo à categoria acima, um tipo de milagre que parece conjugar a epifania dos personagens a uma manifestação física generalizada, provocando uma transferência para o mundo objetivo. Nesses momentos privilegiados, podemos constatar uma correlação entre o estado anímico dos personagens e alguns fenômenos da natureza. Embora perfeitamente integrados ao espaço circundante, tais fenômenos se mostram profundamente transfigurados pela força das circunstâncias. Diante dessa situação visual, caberá ao espectador enxergar na relação de coisas díspares uma secreta e profunda correspondência. Avançando um pouco nesse exercício hipotético de categorização,

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poderíamos chamar esses instantes de milagres cósmicos. O filme Shara (Sharasôju, 2003), da realizadora japonesa Naomi Kawase, pode ser pensado nesses termos, particularmente na cena da dança sob a chuva. A comunhão com a natureza neste momento do filme parece ser algo que ultrapassa o ordinário. A chuva é uma manifestação do sagrado no profano. Trata-se, portanto, de uma hierofania,2 mas em momento algum tal expressão do sagrado chega a romper com a cadeia natural dos eventos. Feita essa sugestão de categoria analítica, resta agora nos perguntarmos: como filmar esse tipo de milagre? Como representar um fenômeno extraordinário que, contrariamente aos milagres dos Evangelhos, não provoca uma ruptura aparente com os princípios que regem a natureza? A hipótese defendida ao longo deste livro partia de uma premissa de ruptura. Nesse sentido, seria impossível representar um milagre sem algum tipo de truque, corte, jogo ou efeito. Esse era o princípio fundamental de nossa argumentação em favor de uma postura anti-ilusionista na representação do milagre. Contudo, se um(a) determinado(a) realizador(a) se propõe a filmar um aspecto da natureza como expressão mesma do sagrado, a nossa premissa cai por terra. Eis um terreno fértil a ser eventualmente explorado em pesquisas futuras. Nessa categoria proposta, aqui denominada de “milagres cósmicos”, as

2 Trata-se de um termo cunhado pelo historiador das religiões romeno Mircea Eliade em O sagrado e o profano: A essência das religiões (São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 18). Vejamos abaixo como ele descreve o paradoxo que reside em toda hierofania: “Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediatamente transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania”.

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marcas do meio fílmico devem ou não se mostrar ao espectador? Nos parágrafos a seguir, iremos apenas vislumbrar um caminho para responder essa pergunta. Em Shara, curiosamente, o elemento deflagrador do milagre é produzido de modo artificial. Podemos perceber, pela abundância do fluxo d’água, a ação de alguma traquitana na fabricação da chuva. Kawase teria deliberadamente optado por revelar o artifício empregado? Acreditamos que não, mas a alta potência do equipamento, gerando uma súbita chuva torrencial, nos leva a crer que ela tampouco se preocupou em trabalhar esse efeito com sutileza. A análise da obra permite que identifiquemos a ação da máquina, mas não confirma a hipótese de uma operação de opacidade. Nem sempre é fácil distinguir um efeito ilusionista de um artifício anti-ilusionista.

O raio verde Acreditamos que O raio verde (Le Rayon vert, 1986), de Éric Rohmer, nos ajude a encontrar uma formulação mais satisfatória para o problema colocado. A trajetória proposta neste livro será concluída, assim como o filme de Rohmer, com a imagem do raio verde no horizonte. Como esquecer a sequência final do filme? Vemos um simples pôr do sol, aflitos e esperançosos, na expectativa de que haja ali, em sua manifestação visível, a confirmação de um amor nascente. Na lógica proposta pela narrativa, um raro fenômeno de refração luminosa, que consiste na mudança de cor dos últimos raios solares, é o sinal de que Delphine encontrou a pessoa

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certa para ela. Um inquietante desvario parece tomá-la de assalto no desfecho do filme, fazendo-a depositar sua esperança amorosa na linguagem secreta da natureza. Eis um milagre cósmico em sua expressão mais bem acabada. Após o súbito clarão luminoso de cor verde, Delphine solta um grito. É a alegria de poder acessar com clareza seus próprios sentimentos (e, assim, ter a confirmação acerca do rapaz que conhecera algumas horas antes na estação de trem em Biarritz). Voltaremos a esse grito mais adiante. Depois de tamanho engajamento emocional em favor da heroína, como não se sentir enganado – mesmo que por um breve instante – quando percebemos que o raio verde é postiço, fruto de um retoque artificial? Diante das dificuldades para captar esse raro fenômeno, Rohmer e sua equipe recorrem a um efeito de trucagem, usado com a finalidade de dar ao espectador a ilusão de ter presenciado o verdadeiro raio verde. Ilusão, será? A trucagem é mesmo uma operação de transparência? Dito de outro modo: o pincel usado na maquiagem é fino o bastante para provocar um efeito ilusionista? Corta. Dez anos depois, ao término das filmagens de Conto de verão (Conte d'été, 1996), o veterano realizador francês, agora com 76 anos de idade, tem uma segunda oportunidade de filmar o fenômeno que lhe escapara em 1986. Diante das condições climáticas favoráveis, e tirando proveito da locação litorânea, Rohmer tira uma tarde inteira para isso. Posiciona a equipe, escolhe a lente e o negativo adequados, reserva um chassi de dez minutos para enfim captar o raio verde. Segundo Melvil Poupaud, protagonista de Conto de verão, Rohmer estava muito excitado nesse dia, obstinado na tarefa como “Ahab à procura de Moby Dick”.3 Na hora H, nada.

3 Melvil Poupaud, “Le dernier rayon” (editorial). Cahiers du Cinéma, n° 653, fev. 2010.

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Frustração total. O pôr do sol, nas palavras de Poupaud, não permitia ver nada além de um “minibrilho”. Mais uma vez não foi possível registrar o raro fenômeno luminoso. No dia seguinte à malograda tentativa, o velho Rohmer canalizaria suas frustrações em uma pista de dança. Como se pode ver em um vídeo que viralizou na internet, Éric Rohmer on the Dancefloor, dançou naquele dia como se não houvesse amanhã. Não foi possível filmar o raio verde em 1986, muito menos em 1996. O uso da trucagem, efeito indesejado, é uma marca distintiva de O raio verde. Uma mancha, um defeito, uma mácula. Será? A princípio, sim, tanto que o lançamento do filme sofreu um ano de atraso. Foi o tempo que Rohmer levou para encontrar, junto à sua equipe, uma solução menos problemática para o desfecho (ainda assim, não pôde dispensar o uso do efeito especial). Nesse período, ao que podemos supor, Rohmer teria contado com suas astúcias. Acreditamos que, para justificar o uso indesejado da trucagem, ele tenha optado por realçar o aspecto artificial e descontínuo da cena final. Para isso, isola o raio verde através de uma operação de contraste, fazendo o desfecho destoar bastante da estética realista de quase todo o filme (improviso, planos longos, enquadramentos abertos, cortes secos etc.). Até o final do filme, acompanhávamos as perambulações de Delphine em um mundo povoado de gente, barulho, conversas, encontros e desencontros, enfim, um filme aberto às manifestações espontâneas da realidade. As situações retratadas se desenrolavam de forma casual, mais ou menos arbitrária, sem um encadeamento sólido entre as cenas. O arco dramático do filme escondia seu desenho, parecia orientado para lugar nenhum. Estávamos no mundo. Um mundo construído, evidentemente, mas composto por uma matéria disforme, sem compromisso com os

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princípios de unidade. Exceto por alguns momentos pontuais, quando Delphine se deparava com elementos alusivos, sugestivos de uma regência esotérica do mundo,4 o filme se mostrava como um retrato dispersivo de suas férias frustradas de verão. Até os primeiros sinais do raio verde, já no final do filme, nada de extraordinário parecia aguardá-la no horizonte. Pobre Delphine. Quanto a nós, espectadores, não podíamos nos queixar. O raio verde, desde o início, mostrava a sua potência reveladora. As cenas eram repletas de verdade. Verdade nas ações, nos gestos, nos diálogos. A força do filme se intensificava nos momentos de vulnerabilidade da heroína, quando a víamos exposta, em toda sua fragilidade, diante de um mundo ao mesmo tempo hostil e muito familiar. Como se esquecer, por exemplo, da longa cena em que Delphine tenta justificar a opção pelo vegetarianismo? Uma estética quase documental é usada para mostrá-la interagindo socialmente: os planos de longa duração, o conteúdo dos diálogos, o enquadramento em plano conjunto, enfim, toda a mise en scène parecia orientada para dar centralidade a Delphine e seus interlocutores. Fomos convidados a observar seus gestos, seu modo próprio de se articular e de se fazer entender diante dos outros. O trabalho com os atores e atrizes se baseava em um pacto de espontaneidade. Há depoimentos, inclusive, que indicam que o improviso, técnica de atuação não muito habitual no cinema de Rohmer, foi adotado em O raio verde. A abertura ao real é enfim quebrada no final do filme, quando Delphine avista o letreiro de uma lojinha em Saint-Jean-de-Luz. É um sinal. Lê-se: raio verde. Delphine sugere que o rapaz a acompanhe até um mirante, no final da praia, para verem juntos o pôr

4 Trata-se de algumas cenas no filme em que a vemos se confrontar com cartas de baralho, cartazes, letreiros etc. No contexto em que aparecem, tais elementos ganham uma conotação mística.

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do sol. Chegando lá, o filme se encapsula dentro de si próprio. Torna-se um drama huis clos. O mirante é um não lugar, espaço reservado para o nascimento de algo. Os burburinhos, constantes no filme, não existem mais. Ouvimos apenas o diálogo do casal. Delphine insinua, sem se explicar direito, o significado do raio verde. Nada é dito, tudo é compreendido. O casal acompanha o crepúsculo solar como se suas vidas dependessem disso. Estamos em um filme de suspense? Num dado momento (como se pode ver no sétimo fotograma da sequência a seguir), o rapaz abraça Delphine, segurando-a em volta do pescoço, como se estivesse prestes a enforcá-la. O efeito de suspensão se realiza também na montagem, através do uso intensificado do campo/contracampo, composto por nada menos que vinte planos. O casal assiste ao pôr do sol como se fosse um filme projetado no cinema. A ênfase no exercício da visão, estimulada pelo prazer escópico do olhar, evoca uma experiência cinematográfica distante do restante do filme. É possivelmente o momento mais hitchcockiano de toda a filmografia de Rohmer. Além da mudança generalizada de tom e de comportamento do olhar na sequência final do filme, que passa a ser ditado por um regime de encenação diferente, podemos localizar indícios de uma interferência física operando no nível da estrutura. Existem marcas visíveis e audíveis, na própria materialidade de O raio verde, que correspondem – recuperando a metáfora baziniana – aos remendos no vestido sem costura da realidade. Selecionamos três operações de opacidade que confirmam essa hipótese. A primeira é breve e pontual, mas bastante significativa. Trata-se da inserção de uma tela preta, a única de todo o filme, acompanhada de efeitos de fade-out e fade-in, também únicos no filme. Essa curiosa interrupção, sem explicação aparente (uma vez que a conversa entre

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os personagens continua), se dá no instante em que Delphine indaga o rapaz sobre o raio verde. Até então, apenas o corte seco era usado na montagem. O que teria feito Rohmer acrescentar esse buraco no meio da conversa? Acreditamos que ele foi usado para antecipar o raro fenômeno que estava prestes a acontecer. O segundo indício é a falta de continuidade na iluminação da cena. Enquanto o diálogo se desenrola de forma contínua, sem saltos ou elipses, a luz que ilumina os planos parece mudar a cada corte.5 No transcorrer do tempo, a decalagem entre a imagem e o som se interpõe como um obstáculo à fruição límpida da cena. A descontinuidade sugere o artifício e ajuda a desmontar nosso impulso por verossimilhança. Teria havido a intenção de romper deliberadamente com a unidade visual da cena? Por fim, o terceiro sintoma que aponta para uma hipótese de ruptura, aplicada aqui na banda sonora, é o uso pontual da música não diegética. Muito raramente, em sua extensa filmografia, Rohmer havia feito uso de tal artifício.6 Segundo o realizador, a música não diegética é um recurso indesejado. Em suas palavras, “uma saída fácil”.7 Qual teria sido o motivo dessa exceção concedida a O raio verde?8 Talvez

5 Há um plano, inclusive, em que se percebe claramente que o negativo usado é de uma sensibilidade diferente dos demais planos da cena (podemos ver o efeito disso no terceiro fotograma da sequência). 6 Segundo o pesquisador Alexandre Rafael Garcia, “[no cinema de Rohmer], o uso de trilha sonora que não seja inserida e justificada dentro do próprio filme é evitado, privilegiando, portanto, a trilha diegética” (Alexandre Rafael Garcia, Contos morais e o cinema de Éric Rohmer. Curitiba: A Quadro, 2021, p. 99). Antes de O raio verde, Rohmer já havia quebrado essa regra de ouro em momentos específicos de pelo menos dois outros filmes: Amor à tarde (L'Amour, l'après-midi, 1972) e Noites de lua cheia (Les Nuits de la pleine lune, 1984). 7 Éric Rohmer apud Alexandre Rafael Garcia, op. cit., p. 99. 8 Antes da cena final do filme, a música não diegética já havia se mostrado em alguns planos pontuais, em geral quando víamos Delphine se deparar com objetos que assumiam no contexto do filme uma conotação mística.

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porque a inserção da música ajude a pontuar uma interferência sonora operando no nível da estrutura fílmica. Além disso, enquanto aguarda o raio verde, é graças à trilha não diegética que o espectador é mantido em estado de suspensão. Os acordes que ouvimos na sequência final, concebidos pelo próprio realizador, favorecem um tipo de emoção própria do cinema. Após o término da última nota do violino, no instante mesmo do raio verde, sobreposto à imagem do último raio solar, ouvimos o som extradiegético de um grito. É Delphine. Um grito de alegria, sem dúvida, mas o que chama a atenção é sua textura particular. É um som marcante, evocativo. Reconhecemos aquela frequência sonora. A lembrança de outro filme vem à mente: India Song (1975), de Marguerite Duras. No primeiro plano desse filme, também de um pôr do sol, podemos ouvir o som de um grito idêntico a esse. É a mesma voz?! Não é, evidentemente, mas vem de uma mesma fonte, de um mesmo imaginário sonoro. O efeito evocativo não poderia ter sido previsto. É um acidente. Tudo não passa de um delírio do hermeneuta? Sem querer, de forma não calculada, Rohmer acessa uma tecla secreta do meu repertório cinematográfico. Seria eu o único espectador de O raio verde a ter sido transportado para o filme de Duras? Talvez sim, talvez não. A liberdade que aqui tomamos, estabelecendo conexões entre coisas vagamente semelhantes, é fruto de uma compreensão da história do cinema como um grande “Museu Imaginário”.9 Não nos censuremos. Acreditamos que o final de O raio verde nos convide a acessar um estado mental específico, uma paisagem emocional particular,

9 Referência ao título da obra de André Malraux. A citação se deve à licença dada ao espectador, a partir de um dado momento na história da arte, permitindo-lhe se relacionar com a obra de arte de uma forma mais livre e deslocada de seu contexto de produção e recepção.

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uma experiência muito própria do cinema. Não estamos mais em um registro realista, vulnerável às circunstâncias do acaso, mas num mundo protegido e cercado pelas imagens de nossa infância cinematográfica. Esse mundo paralelo do cinema, como dizia o crítico Michel Mourlet, é “um olhar que se substitui ao nosso para nos dar um mundo em acordo com nossos desejos”.10 Voltemos por um instante à pergunta feita anteriormente: como representar uma hierofania quando o sagrado se revela sem romper com a ordem natural dos eventos? A essa pergunta Rohmer responde pela ruptura, explicitando a fratura que divide o filme em duas partes. Podemos visualizar na superfície fílmica as marcas que antecedem o milagre. Ela se dá na própria mise en scène. Acreditamos que a decisão de violar algumas regras de ouro de seu cinema, ao usar uma música não diegética e mudar o comportamento do filme, se devia à necessidade de antecipar o raio verde e justificar o uso indesejado da trucagem. Sem levarmos em conta as circunstâncias que poderiam ter contribuído para tais escolhas, ou seja, nos guiando exclusivamente pela análise imanente do texto fílmico, concluímos que Rohmer encarou o desafio de filmar o raio verde como se fosse um milagre. A representação desse raro fenômeno natural se mostrou análoga, como vimos ao longo deste livro, à dos milagres dos Evangelhos. A epifania de Delphine é equivalente à ressurreição de Inger. Em ambos os casos, há uma ruptura com o regime de encenação previamente adotado. Existem muitas maneiras diferentes de se representar um milagre no cinema: operações de trucagem, efeitos luminosos ou sonoros, jogos de enquadramento, animações, filtros óticos, lentes

10 Michel Mourlet, “Sur un Art ignore”. Cahiers du Cinéma, nº 98, ago. 1959. Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr. Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2021.

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deformantes, operações de montagem (corte seco, corte elíptico, fusões, falso raccord), interpretação dos/as atores/atrizes (do simples abrir dos olhos, por exemplo, ao diálogo), além de outros efeitos combinados. Dependendo do critério usado para avaliar seu êxito, todas podem ser válidas. O único aspecto que tentamos defender neste livro é a postura anti-ilusionista. Ela, importante dizer, está desatrelada de qualquer operação cinematográfica, pois independe da técnica empregada para dar a ver o milagre. O filme de Rohmer nos permite entender justamente isso, uma vez que o efeito de trucagem, normalmente mobilizado em favor da ilusão de transparência, adquire aqui – em conjunto com as demais operações de opacidade empregadas – um efeito anti-ilusionista. Por essa razão, entre outras, achamos oportuno trazer O raio verde para concluirmos o itinerário proposto neste livro. Nenhuma operação é, a priori, condenável ou elogiável. Qualquer solução técnica empregada, a depender do sentido adquirido no filme, parte de uma base comum. Não se trata de simplesmente rechaçar os efeitos de trucagem. Eles, por si só, não deveriam carregar qualquer estigma ou conotação pejorativa. Da mesma forma, não se deve rejeitar de antemão o uso da animação ou da sobreposição de imagens. Importante apenas que a solução se mostre, no fim das contas, coerente com o propósito maior do filme. O juízo de uma cena ou de uma operação isolada deve ser feita em relação ao conjunto. A parte deve se reportar ao todo. A coerência é uma exigência do filme em sua totalidade. No caso da representação do milagre, trata-se apenas de encontrar uma solução para reafirmar a ruptura que o fenômeno do milagre, por si só, já indica em sua premissa fundamental.

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Filmografia

DA MANJEDOURA À CRUZ. From the Manger to the Cross. Direção de Sidney Olcott. Estados Unidos, 1912. 71 minutos. CHRISTUS. Direção de Giuseppe de Liguoro. Itália, 1914. 69 minutos. CHRISTUS. Direção de Giulio Antamoro. Itália, 1916. 88 minutos. REI DOS REIS. The King of Kings. Direção de Cecil B. DeMille. Estados Unidos, 1927. 160 minutos. A PALAVRA. Ordet. Direção de Carl Th. Dreyer. Dinamarca, 1955. 126 minutos. O REI DOS REIS. King of Kings. Direção de Nicholas Ray. Estados Unidos, 1961. 168 minutos. ACCATTONE. Direção de Pier Paolo Pasolini. Itália, 1961. 117 minutos. O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS. Il Vangelo secondo Matteo. Pier Paolo Pasolini. Itália, 1964. 137 minutos. AS SOMBRAS. Les Ombres. Direção de Jean-Claude Brisseau. França, 1982. 63 minutos.

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EU VOS SAÚDO, MARIA. Je vous salue, Marie. Direção de Jean-Luc Godard. França, 1985. 72 minutos. O RAIO VERDE. Le Rayon vert. Direção de Éric Rohmer. França, 1986. 99 minutos. O MUNDO VIVENTE. Le Monde vivant. Direção de Eugène Green. França, 2003. 70 minutos. CORRESPONDÊNCIAS. Correspondances. Direção de Eugène Green. Franca, 2006. 39 minutos. LUZ SILENCIOSA. Stellet Licht. Direção de Carlos Reygadas. México, 2007. 145 minutos. O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA. Direção de Manoel de Oliveira. Portugal, 2007. 97 minutos.

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Filmes não cabem só na tela. A Coleção Escrever o Cinema expande para a página dos livros o ato de se fazer cinema, trocando a lente pela letra, substituindo o roteiro pela reflexão. Nos volumes da coleção, pesquisadoras e pesquisadores ligados à universidade lançam luz sobre aspectos teóricos, históricos e críticos de diferentes obras da cinematografia mundial, em diálogo com outros campos do conhecimento, mas sempre retornando para os filmes em si.

1 . A aventura: Notas sobre o estilo de Michelangelo Antonioni Juliana Rodrigues Pereira 2. Eugène Green e a hipótese do cinema descortinado Pedro Faissol 3. Contos morais e o cinema de Éric Rohmer Alexandre Rafael Garcia 4. A representação do milagre no cinema: Iconografia, idolatria e crença Pedro Faissol 5. Documentário: Filmes para salas de cinema com janelas Eduardo Tulio Baggio

fontes Milo e Minion papel Pólen Soft 80 g/m² cidade de Curitiba Dezembro de 2021