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Portuguese Pages [301] Year 2002
ROBIN BLACKBURN "Uma obra ambiciosa e impressionante. New Statesman "O livro de Blackburn é audacioso e original." The Times Literary Supplement "Um dos melhores estudos sobre escravismo e abolição dos últimos anos." Eric Foner — Professor de História da Universidade de Columbia
Capa: Carolina Vaz
1776-1848
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ROBIN BLACKBURN
A queda do Escravismo Colonial: 1776-1848 Tradução de MARIA BEATRIZ DE MEDINA
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E D I T O R A R E C O R D RIO DE J A N E I R O • SÃO P A U L O 2002
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. B564q
Blackburn, Robin A queda do escravismo colonial: 1776-1848 / Robin Blackburn; tradução Maria Bratriz Medina. - Rio de Janeiro: Record, 2002. mapas; Tradução de: The overthrow of colonial slavery, 17761848 ISBN 85-01-05821-1 1. Movimentos antiescravagistas - História - América. 2. Escravos - Emancipação - História - América. I. Título.
02-1036
CDD - 326.097 CDU - 326.4(7/8)
Título Original em inglês: THE OVERTHROW OF COLONIAL SLAVERY 1776-1848
Copyright © 1988 by Robin Blackburn.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito. Proibida a venda desta ediação em Portugal e resto da Europa.
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S-A. Rua Argentina 171 -Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução Impresso no Brasil ISBN 85-01-05821-1 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ - 20922-970
EDITORA AFILIADA
Rara Gemma e Christopher
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Sumário
Lista de mapas 9 Agradecimentos 11 Introdução: Escravidão colonial no Novo Mundo por volta de 1770 13 I. II, III. IV. V VI. VII. VIII. DC. X. XI. XII. XIII. índice
As origens do antiescravismo 45 A Grã-Bretanha hanoveriana: escravidão e império 81 A escravidão e a Revolução Americana 125 O abolicionismo britânico e a reação conservadora da década de 1790 147 A Revolução Francesa e as Antilhas: 1789-93 179 O emancipacionismo revolucionário e o nascimento do Haiti 231 Abolição e império: os Estados Unidos 285 A abolição do comércio negreiro britânico: 1803-14 315 A América espanhola: independência e emancipação 353 Cuba e Brasil: o impasse abolicionista 405 A luta pela emancipação britânica dos escravos: 1823-38 445 A escravidão na Restauração francesa e 1848 505 Conclusão: resultados e perspectivas 553 591
Lista de mapas
O Caribe em 1770 14 Zonas de desenvolvimento baseado em escravos e de resistência escrava por volta de 1770 46 A colónia de São Domingos 180 São Domingos e Santo Domingo em abril de 1794 232 A América do Norte em 1804 286 A luta pela independência na América do Sul espanhola 354
Agradecimentos
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Gostaria de agradecer a Perry Anderson e Mike Davis pelos conselhos muito úteis sobre um rascunho deste livro. As seguintes pessoas comentaram gentilmente partes dos originais ou esboços anteriores do projeto do qual faz parte: Neil Belton, Hugh Brogan, Paul Buhle, Malcolm Deas, Caroline Fick, Enzabeth Fox Genovese, Fred Halliday, Winston James, Gareth Stedman Jones, Octavio Rodriguez, George Rude, Larry Siedentop, Ben Schoendorf, Mary Turner e Ellen Meiksins Wood. Sou grato a todos os citados por sua ajuda e, ao mesmo tempo, naturalmente, eximo-os de responsabilidade por quaisquer erros que o texto possa apresentar. Também gostaria de agradecer a Alejandro Galvez, Lynne Amidon, Gregor Benton, Elisabedl Burgos e à equipe da Biblioteca Canning House por sua ajuda na localização do material de pesquisa. Sem o apoio e a paciência extraordinários de meus colegas da New Left Review e da Verso, o livro jamais teria sido concluído. Também gostaria de agradecera Susan e Reg Hicklin, e a Barbara e lan Webber pela generosa hospitalidade quando eu estava escrevendo e pesquisando. Finalmente, devo agradecer a Margrit Fauland pelo encorajamento e pela tolerância com o comportamento anti-social que o trabalho de redação parece provocar. Robin Blackburn, janeiro de 1988
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Introdução:
Escravidão colonial no Novo Mundo por volta de 1770
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Behold the peacc thafs owned by him who fcels He does no wrong, or outrage when he deals In human flesh; or yet supplies the gold To stir the strifc, whose victiras you behold... Perhaps the Cuban merchant too, may think In guilfs great chain he's but the farthest link. Forsooth, he sees not ali the ills take placc, Nor goes in person to the human chase; He does not hunt the negro down himself; Of course he only furnishes the pelf. He does not watch the blazing huts beset, Nor slips the horde at rapÍne's yell, nor yet Selects the captives from the wretched baud Nor spears the aged with his right hand... He does not brand the captives for the mart, Nor stow the cargo — 'tis the captain's part... His agents simply snare the vicúms first, They make the war and he defrays the cost... Tb human suffering, sympathy and shamc, His heart is closed, and wealth is ali his aim.* O mercador de escravos (1840), R, R, Madden
capitão... /Seus / seus agentes aapenas capturam primeiro as v íitimas, :ie paga o ccusto.,. / Pari o tinias, / ties Eles razem fazem a guerr: guerra e ele sofrimento humano, simpatia e vergonha, /Seu coração se fecha, ele só visa a riqueza. (N. da T.}
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orvolta de 1770 havia quase dois milhões e meio de escravos labutando nos campos, engenhos, minas, oficinas e residências das colónias do Novo Mundo. A mãode-obra escrava produzia os artigos mais desejados e importantes do comércio atlântico e europeu; açúcar, café, algodão e cacau do Caribe; tabaco, arroz e anil na América do Norte; ouro e açúcar na América do Sul espanhola e portuguesa. Essas mercadorias representavam cerca de um terço do valor do comércio europeu, número inflado por regulamentos que obrigavam o transporte de produtos coloniais para a metrópole antes de sua reexportação para outros destinos. A navegação atlântica e a colonização europeia do Novo Mundo fizeram das Américas a fonte mais conveniente de produtos tropicais e subtropicais para a Europa. A taxa de crescimento do comércio atlântico no século XVIII sobrepujou todos os outros ramos do comércio europeu e criou fortunas fabulosas. Ainda assim, esta conexão impressionante entre império e escravidão esteva para entrar em crise terminal. O período entre 1776 e 1848 testemunhou sucessivas contestações dos regimes de escravidão colonial, levando à destruição quer da relação colonial, quer do sistema escravista ou de ambos em cada uma das principais colónias do Novo Mundo. A contestação do império e a contestação da escravidão eram, em princípio, projetos dessemelhantes e distintos. Todavia, neste período eles se entrelaçaram quando os colonos resistiram ao domínio imperial e os próprios escravos tentaram explorar qualquer enfraquecimento do aparato de controle social. Todas as potências coloniais permitiam a escravidão e todos os sistemas escravistas estavam integrados em um ou outro império transatlântico. A escravidão em grande escala nas plantatwns havia se desenvolvido no Caribe, no século XVII, como resultado do empreendimento privado e da iniciativa independente; depois de algumas décadas de autonomia virtual, os donos deplantaiions conquistaram a proteção interessada da Inglaterra ou da França, potências que tinham poder naval suficiente para manter acuados piratas, corsários e rivais coloniais. Os novos sistemas escravistas desenvolveram-se dentro do arcabouço colonial e geraram grandes lucros comerciais e receitas alfandegárias para a metrópole imperial. Mas para que asplantations prosperassem, as autoridades imperiais tiveram de resistirá tentação de regulamentar excessivamente e sobretaxar o comércio de seus produtos. As estruturas do império eram vulneráveis de forma mais imediata do que as de dominação e a exploração de escravos. O poder dos proprietários de escravos concentrava-se nas Américas; o poder imperial estendia-se pelas distâncias oceânicas e dependia da aliança mais ou menos voluntária das classes de proprietários das colónias. À medida a que população de colonos europeus foi se reproduzindo pelas gerações, desenvolveram-se instituições e recursos que reduziam a dependência à
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A QUEDA DO ESCRAVISMO COLONIAL: 1776-1848
metrópole. Na segunda metade do século XVIII as elites coloniais de toda a América ganharam mais autoconfiança, estivessem ou não envolvidas com a propriedade de escravos. A vitalidade do comércio atlântico era tal que os monopólios comerciais estavam a ponto de explodirem 1770. Depois da Guerra dos Sete Anos (1756-63), todas as potências imperiais aceitaram a pressão por maior autonomia colonial e promoveram projetos de reforma. A contestação colonial aos funcionários e mercadores metropolitanos representava uma aspiração ao autogoverno; foi ao mesmo tempo reivindicação de maior liberdade económica e afirmação da nova identidade e da civilização americana autónoma. A exigência americana de liberdade e autodeterminação fortaleceu os ataques à oligarquia e ao governo arbitrário no Velho Mundo. Mas a rejeição dos regimes políticos do Velho Mundo não pressupunha mudanças fundamentais nas instituições sociais. Um dos objetivos deste livro é descobrir por que a crise no modo de dominação política às vezes detonou uma crise do regime social, em especial da instituição da escravidão. Esta introdução busca fornecer um esboço dos sistemas escravistas coloniais de meados do século XVIII e estabelecer seus pontos fortes e fracos característicos, às vésperas daquela "Idade da Revolução" na qual teriam papel tão importante.
Tabela l Estimativa das populações escravas nas colónias americanas em 1770
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Os sistemas de controle mercantilista buscavam dirigir o comércio colonial, e para isso empregavam dezenas de milhares de funcionários. A Grã-Bretanha permitia uma espécie de livre comércio imperial e não respeitava o monopólio colonial de seus rivais. Mercadores franceses tinham permissão de reexportar sem impostos produtos dasplantations e recebiam um bónus pelos escravos que vendiam aos donos de plantations nas Antilhas. As burocracias reais de Espanha e Portugal exigiam o controle direto da prata e do ouro produzidos em suas possessões americanas. Em princípio, os monopólios coloniais permitiam aos mercadores metropolitanos recolher um excedente e impediam o comércio interamericano. Mas o próprio vigor do comércio atlântico tendia a fàzê-lo ultrapassar as fronteiras prescritas. O contrabando provavelmente respondia por pelo menos um décimo de todo comércio, apesar dos funcionários da alfândega e do tesouro e das patrulhas navais regulares. Apesar da fraqueza de Portugal e das concessões comerciais feitas à Grã-Bretanha, os mercadores de Lisboa e do Porto mantinham o controle do comércio brasileiro, mesmo que isso significasse vender tecidos britânicos em troca do ouro do Brasil. Na década de 1760 a principal raison d'être das ilhas holandesas era como centros do comércio não regulamentado. Os diferentes padrões de desenvolvimento colonial produziram a divisão por território da população escrava do Novo Mundo em 1770, mostrada na Tabela l, a seguir.
Exravos
América britânica (América do Norte britânica) (Caribe britânico) América portuguesa (Brasil) América francesa (Caribe)
América espanhola (Caribe espanhol) (Continente espanhol)
Caribe holandês Caribe dinamarquês
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População total
878.000
2.600.000
(450.000) (428.000)
(2.100.000) (500.000)
700.000 379.000 290.000 (50.000) (240.000) 75.000 18.000
2.000.000 430.000 12.144.000 (144.000)
(12.000.000) 90.000 25.000
O tamanho das populações escravas coloniais não reflete nem o tamanho geográfico dos diferentes impérios nem a primazia da colonização. A Espanha, a primeira e ainda maior potência colonial do Novo Mundo, estava em quarto lugar como proprietária de escravos. A Grã-Bretanha e a França, que não tinham colónias com escravos em 1640, agora possuíam ^^plantations escravistas mais florescentes do Novo Mundo. A população escrava total do Brasil pode ter sido maior do que a das colónias francesas, mas a estimativa é incerta e a escravidão estava um tanto menos concentrada no setor exportador. O Brasil era colónia de Portugal, mas Portugal era quase uma semicolônia britânica, e assim grande parte do ouro produzido pelos escravos no Brasil acabava indo para Londres. A Grã-Bretanha e a França tinham vigor comercial para criaras colónias escravistas mais produtivas, embora as potências ibéricas ainda mantivessem o domínio de imensos impérios continentais. E, em contraste com os Países Baixos, a Grã-Bretanha e a França foram capazes de mobilizara forÇa necessária para defender suas conquistas coloniais no Novo Mundo. Embora as relações sociais capitalistas estivessem mais desenvolvidas na Grã-Bretanha do que na França, o desenvolvimento vigoroso do comércio e da manufatura franceses no século XVIII equiparou-os aos britânicos. A exportação francesa de açúcar refinado ou de tecidos de algodão excedeu a britânica na década de 1760; materias-primas coloniais baratas, fornecidas com isenções e incentivos especiais, ajudaram a possibilitar um enclave de acumulação que utilizava mão-de-obra escrava. O uso de escravos africanos permitira à Grã-Bretanha alcançar a primeira posição como potência colonial americana e desenvolver suas possessões na América até que suas exportações ultrapassaram as da América espanhola. Na década de 1770, as
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colónias escravistas das Antilhas francesas lutavam para superaras índias Ocidentais britânicas. O valor anual da exportação colonial do início da década chegou a 5,6 milhões de libras nas colónias britânicas, 5,2 milhões nas colónias francesas, 1,8 milhão no Brasil e 4,9 milhões em toda a América espanhola. Mercadores e fabricantes britânicos mantinham com ampla margem a liderança do fornecimento dos mercados coloniais; sua exportação para toda a América era pelo menos duas vezes maior que a dos franceses. O comércio transatlântico exigia aproximadamente meio milhão de toneladas em meios de transporte marítimo e empregava mais de cem mil marinheiros e trabalhadores nas docas. O lucro britânico no comércio atlântico vinha principalmente da organização capitalista eficaz do transporte marítimo, do fornecimento de manuíãturas e das finanças comerciais; o lucro comercial francês, que no todo chegava à metade do comércio colonial de exportação, dependia mais do monopólio mercantilista. Em meados do século XVIII a Grã-Bretanha e a França eram, segundo o testemunho geral de contemporâneos, os Estados mais poderosos, esplêndidos e dinâmicos do mundo. Cada um a seu modo, Versalhes e Westminster eram os exemplos de governo da época. Depois de Portugal, Espanha e Países Baixos, haviam criado uma rede mundial de colónias e bases comerciais. Foram os primeiros impérios verdadeiramente globais e transoceânicos da história humana. O Novo Mundo era considerado área crucial de testes por estadistas importantes como Pitt, o Velho, e Choiseul. Até mesmo o abade Raynal, que apoiava a nova crítica filosófica da escravidão, acreditava que as piantations açucareiras haviam substituído as minas de ouro como esteios do império. Em sua Hisíoire dês Deux Indes (História das duas índias) (1770), Raynal insta as autoridades espanholas a promoverem a economia de plantation em Cuba para que rivalizassem com as conquistas dos proprietários da Virgínia, que forneciam tabaco à Europa, ou de São Domingos, que supriam de açúcar metade da Europa. O Atlântico e o Caribe agigantaram-se nas guerras do século XVIII. A Grã-Bretanha e a França protegiam seus impérios com marinhas que compreendiam, cada uma, de sessenta a oitenta "navios de linha" e um enxame de embarcações menores; a força naval da Espanha era apenas um pouco menor e incluía os eficientes guarda-costas do Caribe. Os Países Baixos, derrotados no Brasil no século XVII, eram apenas uma potência americana menor. As conquistas inglesas e francesas no Caribe só foram sustentadas devido ao uso maciço do poder naval e da disponibilidade de um fluxo constante de emigrantes. Depois do Tratado de Ryswick em 1697, houve poucas alterações territoriais no Caribe, mas a ameaça ainda existia. No entanto, em 1770 chegou-se a um importante ponto crítico. As vitórias da Grã-Bretanha na Guerra dos Sete Anos permitiram-lhe expulsar os franceses da América do Norte. Desta época em diante, os levantes internos sobrepujaram e deslocaram a rivalidade imperial do papel-chave na mudan-
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ça no hemisfério. Os proprietários de escravos teriam participação importante nestes levantes, quer nas 13 colónias inglesas da América do Norte na década de 1770, quer nas Antilhas francesas em 1788-93, quer na Venezuela, em Nova Granada, no Peru e no rio da Prata nas décadas de 1810 e 1820. Os proprietários de escravos do Brasil e do Caribe espanhol e britânico jogaram suas cartas de forma diferente e evitaram ao máximo os levantes, mas também marcaram sua presença. Os senhores de escravos americanos deste período eram visivelmente menos conservadores que os ricos e poderosos de outras regiões, fossem estes donos de minas no México ou proprietários de terras na Europa. Algumas observações sobre o caráter da escravidão encontrada nas Américas nesta época podem ajudar a explicar isso. O tipo de escravidão que predominava nas Américas no século XVIII não deveria ser considerado uma relíquia da Antiguidade ou do mundo medieval. Os sistemas coloniais eram de construção muito recente e de caráter altamente comercial. Cruzavam todo um oceano e estavam enredados em rivalidades. Os escravos eram trazidos exclusivamente da África, e a grande maioria deles sujeitava-se a regimes duríssimos de trabalho. Em contraste, as formas anteriores de escravidão eram menos extensas, menos comerciais e mais heterogéneas. Os escravos do Novo Mundo eram propriedade económica, e o principal motivo para possuir escravos era a exploração económica; com este fim, pelo menos nove décimos dos escravos americanos foram postos a trabalhar na produção de mercadorias.1 Em outras sociedades, a escravidão teve uma capacidade camaleônica de se adaptar à formação social circundante; como uma perna mecânica social, ampliou o poder dos proprietários de escravos de forma apropriada a cada sociedade — talvez pelo aumento de uma linhagem ou fornecendo um núcleo de administradores de confiança. Nas Américas do século XVIII o uso de escravos na agricultura e na mineração ajudou a ampliar o alcance do capital mercantil e manufàtureiro e forneceu a regiões em industrialização matérias-primas e mercados. Elizabeth Fox Genovese e Eugene Genovese identificaram o impulso para a acumulação mercantil como força propulsora por trás do surgimento dos novos sistemas escravistas. A parceria de mercadores e donos de piantations no Novo Mundo levou à criação de um empreendimento manufàtureiro e agrícola integrado. As própriàspíaníaítons escravistas incorporaram os avanços na técnica agrícola compatíveis com o trabalho em turmas coordenadas. Em geral, os empresários que as dirigiam dispunham-se a adotar métodos de processamento inovadores e tinham recursos para comprar os produtos da indústria capitalista e da agricultura comercial. O dono áàplantation do Novo Mundo, ao comprar implementos como parte da troca das mercadorias que fornecia, podia aumentar a produção, em
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resposta às pressões de mercado, de forma muito mais rápida que os senhores feudais da Europa oriental e com base numa complementaridade maior com o capital manufâtureiro. A própria plantation representava uma façanha da organização e da fiscalização da produção. As turmas de escravos nos campos e as equipes de escravos nos engenhos eram mobilizadas para um trabalho que era realizado sob coação, de forma intensa e contínua. Manuel Moreno Fraginals examinou as formas pelas quais o engenho de açúcar antecipou alguns métodos de um industrialismo capitalista emergente, com sua calibragem precisa da mão-de-obra e subordinação a um ritmo mecânico. O processo de trabalho altamente coordenado da "plantation" açucareira do final do século XVIII lembra em parte a "planta" ou instalação industrial do futuro.2 Todavia, esses autores marxistas distinguem corretamente a escravidão do Novo Mundo de um regime de produção generalizada de mercadorias. As empresas escravistas ainda tinham raízes na chamada "economia natural" -— o cultivo de subsistência e trabalho interno, "não-comercializado". Os escravos plantavam a maior parte de sua própria comida, construíam suas próprias cabanas e assim, diferentemente do trabalhador assalariado, não dependiam principalmente de bens comprados no mercado. Normalmente ^plantation escravista poderia sobreviver, se necessário, através de seu próprio cultivo e manufãtura de subsistência. O feto de que os donos das plantations dispunham desta "reserva" de economia natural, como a denominou Jacob Gorender, reforçava sua capacidade de sobreviver aos tempos de guerra, revolução ou depressão comercial.1 Assim como o camponês ou pequeno fazendeiro, e ao contrário do fabricante ou do mercador, o dono da plantation podia se retirar do mercado por longos períodos e manter seu empreendimento. Mas, em fases de expansão, ele não se limitava aos recursos da propriedade; com um mercado receptivo, suas perspectivas só eram limitadas pela capacidade de comprar mais escravos, implementos e equipamento, quando necessário. Os camponeses europeus ou senhores feudais, ao contrário, estavam limitados pela "economia natural" e restringidos pelo tamanho da família ou da mão-de-obra disponível na propriedade. Graças ao capital investido n&plantation, seu proprietário não tendia a cair na autarquia. A construção e a manutenção de umzplantaíion envolvia custos económicos permanentes, que agiam como um aguilhão para a produção renovada de mercadorias sempre que possível; e o valor económico dos escravos era tal que o produtor que não pudesse lucrar com eles era induzido a vendê-los a alguém que o fizesse. Mais uma vez, nem o camponês nem o senhor feudal estavam sujeitos a uma pressão económica comparável. Já que os escravos cobriam suas necessidades de subsistência em apenas dois dias de trabalho por semana, incluindo quase todo o seu pouco "tempo livre", a taxa de extração de excedente e lucro bruto era muito alta. Assim, o dono de uma plantation escravista era um empreendedor com capacidade e motivação para responder às pressões do mercado. A
expansão do fornecimento só dependia do custo de limpar a terra, adquirir escravos e equipamento e pagar supervisores assalariados. A demanda europeia de mercadorias exóticas era tal que esses custos podiam ser cobertos com folga.4 A caracterização aqui apresentada refere-se às formas predominantes de escravidão americana no século XVIII. Na América espanhola e no Brasil português, havia também resíduos de um padrão anterior e mais difuso. É necessário distinguir entre a escravidão acessória do início do colonialismo espanhol ou português e a escravidão sistémica, ligada z.s plantations e à produção de mercadorias, que se tornou dominante no século XVIII. A "escravidão acessória" dos espanhóis não envolvia colónias com maioria escrava, a exclusão dos escravos de todos os cargos de responsabilidade nem a negação de atributos humanos ao cativo. A introdução de escravos ajudou a consolidar uma superestrutura imperial de exploração que não se baseava principalmente em mão-de-obra escrava. A riqueza e o poder espanhóis derivavam da conquista e da exploração dos povos indígenas do continente; tentouse a escravização total dos ameríndios, que se mostrou impossível ou tão destrutiva a ponto de ser contraproducente. As comunidades indígenas do século XVI nas ilhas do Caribe e no litoral foram dilaceradas e desmoralizadas pela invasão e pelo excesso de trabalho; seus povos foram destruídos por terríveis epidemias ou absorvidos quando os conquistadores tomaram para si as mulheres indígenas. Alguns fugiram para pântanos inóspitos e afastados ou mantiveram-se em ilhas rochosas e na selva mais distante. Mas no continente os conquistadores espanhóis conseguiram substituir o estrato dominante anterior dos impérios inça e asteca e explorar as comunidades indígenas, que eram subjugadas, mas não escravizadas. Os cativos africanos foram introduzidos na América espanhola para compensar o despovoamento das áreas mais atacadas e para fortalecer a presença da potência colonizadora; para sustentar centros administrativos e Unhas de comunicação e para atenderas necessidades pessoais dos conquistadores. O uso de escravos na América espanhola no século XVIII reteve algo deste antigo padrão. Os escravos africanos trabalhavam como criados domésticos, porteiros, gerentes, estivadores, costureiras, barbeiros, jardineiros, artesãos; havia escravos trabalhando nas minas de ouro de Nova Granada, nas propriedades açucareiras de Cuba e nas lavouras de cacau da Venezuela, mas estes eram ainda enclaves bastante modestos na economia imperial espanhola de 1770. A prata era extraída por trabalhadores assalariados, cuja maioria era de origem indígena, mas com alguns negros ou mestiços, ou por trabalhadores enviados como tributo por aldeias índias. A administração imperial na América espanhola promovia e coordenava diretamente a atividade económica; administradores do rei supervisionavam o fornecimento de alimento e mão-de-obra às minas, distribuíam concessões de mine-
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ração, compravam tabaco e cuidavam do fluxo de prata de volta para a Europa. Havia falhas, naturalmente, mas este sistema extensivo de exploração imperial contrastava com o regime intensivo de microexploração das plantaíions escravistas no restante da América. Também ajudava a inibir a elite crioula, que sabia muito bem que o Estado imperial era um fãtor direto e crucial da extração de trabalho excedente dos produtores fundamentais. Pelo contrário, os donos deplantations dirigiam um processo independente de extração de excedentes, em que era papel do Estado colonial recolher impostos, criar regulamentos desastrados e fornecer proteção externa. Em 1770 as minas de prata da América espanhola exploravam veios fabulosos — daí o valor impressionante da exportação colonial espanhola —, mas, graças a isso, os proprietários de minas estavam muito menos interessados na autonomia colonial do que os donos de plantations. A escravidão brasileira na década de 1770, com propriedades açucareiras no Nordeste, minas de ouro no Sul e uso disseminado de escravos em oficinas, residências, fazendas e ranchos em todas as províncias, refletia a variedade da história da colónia. Os portugueses começaram a instalar engenhos de açúcar no Brasil no final do século XVI e, com a ajuda holandesa, desenvolveram as principais características da propriedade escravista comercial. No Brasil, assim como no Caribe, as comunidades indígenas foram dizimadas por doenças e expulsas pela conquista. Os mercadores portugueses foram os primeiros a desenvolver o comércio atlântico de escravos, fornecendo escravos mais baratos de seus próprios entrepostos comerciais na costa africana. Para os recém-chegados da África, a fuga era muito mais difícil e perigosa do que para os ameríndios. Além disso, os cativos africanos vinham de sociedades em que a agricultura, a mineração e as relações sociais da escravização eram muito mais desenvolvidas do que no caso dos ameríndios do Brasil, do Caribe ou do litoral norte-americano. O Brasil atraiu uma torrente de colonos portugueses, mas os proprietários de terras (fazendeiros) acharam mais fácil explorar os cativos africanos do que negar todos os direitos a.servos emigrados da Europa. A força de trabalho no engenho brasileiro do início do século XVII continuou a ser mista, e combinava fileiras de servos africanos e índios com uma dúzia ou mais de imigrantes portugueses; e o processamento não era integrado com o trabalho agrícola, já que a maior parte da cana era fornecida por agricultores independentes (lavradores de cana). O termoplantation não se aplicava à propriedade açucareira brasileira. Os primeiros colonos do Brasil demonstraram a lucratividade do cultivo do açúcar, e usavam uma força de trabalho mista com predominância crescente de escravos africanos. O avanço posterior rumo a uma escravidão sistémica completa foi bloqueado pela demanda irregular da Europa, pelas invasões e pela ocupação holandesa (1624-54) e por um sistema caro e complicado de frotas anuais, A descoberta de
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ouro no Brasil no final do século XVII deu à monarquia portuguesa um forte incentivo para manter os mecanismos de exploração imperial "extensiva". As frotas facilitavam o controle imperial e a cobrança de impostos, além de oferecerem proteção. Mas com a exportação de ouro transportada em segurança em comboios para a Europa, o comércio de açúcar foi estrangulado. Os escravos brasileiros continuaram a produzir açúcar, mas nesta economia quase fechada muitos também eram utilizados no fornecimento de alimentos e manufaturas ao mercado local. As potências ibéricas obrigaram os mercadores a viajar com a frota anual até a década de 1760; o crescimento espontâneo da agricultura comercial foi inibido, e assim abriuse mais espaço para holandeses, ingleses e franceses/ A largada para a produção em grande escala das plantations foi dada no Caribe pelos produtores britânicos e franceses, apoiados por mercadores holandeses independentes, por volta de 1640-50. A escravidão sistémica tinha de ter caráter colonial porque as plantations escravistas precisavam de garantias navais e militares que as protegessem de rivais e da ameaça de revolta escrava. Embora a escravidão acessória tenha ajudado a reproduzir o império, o império ajudou a reproduzir a escravidão sistémica. Ãplantation era administrada como uma empresa integrada com acesso privilegiado ao mercado europeu; em pouco tempo, todas as tarefas braçais passaram a ser realizadas por escravos. A instabilidade e a guerra retardaram o desenvolvimento das plantations na Jamaica e em São Domingos até que a Paz de Utrecht, em 1713, criou condições mais favoráveis tanto para este desenvolvimento quanto para a organização do tráfico negreiro em grande escala. As colónias britânicas e francesas, assim como o Brasil, mas diferentemente da América espanhola, tornaram-se regiões povoadas pelos colonizadores depois que os habitantes originais foram mortos, marginalizados ou expulsos. A própria agricultura de exportação ajudou a financiar a colonização, já que os mercadores concediam transporte a servos europeus dispostos a trabalhar nas plantations por três ou cinco anos. Mais da metade dos emigrantes brancos para a América do Norte colonial vieram como servos contratados; o Caribe francês e britânico também absorveu dezenas de milhares destes trabalhadores cativos, que podiam ser comprados a preço mais baixo que os escravos. No total, cerca de 350.000 servos foram embarcados para as colónias britânicas até a década de 1770. Os servos brancos ou engagés podiam ser violentamente explorados, mas não ofereciam ao proprietário da plantation a oportunidade de construir uma força estável de trabalho. Servos brancos ouengagés por fim seriam libertados; os africanos estavam condenados a uma vida inteira de cativeiro. Nas primeiras décadas do século XVIII os donos àzplantations de tabaco da Virgínia e de Maryland também passaram a preferir cada vez mais o trabalho
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escravo aos servos contratados da Inglaterra. Servos brancos tinham direitos legais definidos e alguma expectativa de encontrar apoio na comunidade de colonizadores, tanto por parte das autoridades quanto do povo. Africanos cativos tinham poucos direitos e, na prática, nenhuma capacidade de garanti-los. Podiam provocar piedade, mas não solidariedade de brancos que não possuíam escravos. Colonos brancos gozavam de um nível de liberdade desconhecido no Velho Mundo, enquanto os negros eram sujeitos ao sistema de escravização mais sistemático e feroz que já existira. A escravidão colonial do Novo Mundo desenvolveu-se no alvorecer do avanço capitalista na Europa do século XVII. Na década de 1760, cerca de 600.000 escravos eram levados para as Américas todo ano, quase dez vezes a quantidade anual da década de 1650 e cinquenta vezes o número introduzido por ano por Espanha e Portugal nas décadas de 1560 e 1570. Antes de 1580, é provável que os imigrantes europeus tenham sobrepujado em número os escravos levados para o Novo Mundo; entre 1580 e 1650 o número de cativos africanos que chegavam a cada ano era mais ou menos o mesmo que o de imigrantes europeus. Com o surgimento da escravidão "sistémica", a "importação" de escravos cresceu tanto em termos proporcionais quanto absolutos. A primeira colónia do Novo Mundo onde os escravos tornaram-se maioria da população foi a ilha britânica de Barbados, por volta de 1645, seguida de perto pelas outras ilhas controladas por britânicos e franceses nas Pequenas Antilhas, depois pela Jamaica, na década de 1660, e São Domingos, na de 1690. Os cativos africanos só começaram a ser embarcados em grande quantidade para a América do Norte nas primeiras décadas do século XVIII. A descoberta de ouro no Brasil no final do século XVII mais que duplicou a importação anual de escravos naquele território. Com o desenvolvimento do Caribe britânico e francês, o número de escravos africanos desembarcados no Novo Mundo excedeu o número de imigrantes europeus, no período entre 1650 e 1700. Mas foi apenas no século XVIII que apareceu uma imensa disparidade, com cerca de seis milhões de cativos africanos chegando ao Novo Mundo, cinco ou seis vezes o número de europeus. Pelo menos um milhão de escravos morreram só nesse século durante a famosa "rota do meio", ou travessia da África para o Novo Mundo, e um número incontável morreu antes sequer de chegar à costa africana. Este inchaço do comércio negreiro refletiu um vasto aumento da produção das plantations escravistas. A produção total de açúcar do Brasil em 1620 tora de apenas 15.000 toneladas por ano, número que provavelmente não foi excedido até a década de 1750; a minúscula ilha de Barbados produziu sozinha 15.000 toneladas durante a década de 1670. Em 1760 as colónias escravistas britânicas e francesas produziam 150.000 toneladas de açúcar porano, e chegaram a 290.000 toneladas entre 1787 e 1790. A produção de tabaco das plantations escravistas da Virgínia e de Maryland subiu de 20 milhões de libras-
peso em 1700 para 220 milhões em 1775. Em 1700 havia cerca de 100.000 escravos nas colónias britânicas e 30.000 nas francesas; nesta época não deveria havermais de 100.000 escravos em toda a América espanhola, ou mais de 150.000 no Brasil. Assim, apesar das taxas de mortalidade apavorantes, a população escrava das Américas multiplicou-se seis vezes, dos cerca de 400.000 indivíduos em 1700 para 2.400.000 em 1770, e as populações escravas das colónias britânicas e francesas expandiram-se com maior rapidez.6 Por que foram as Américas o lugar desta expansão fenomenal e por que envolveu a escravidão? O desenvolvimento capitalista na Europa gerou novas necessidades que não poderiam ser atendidas com recursos europeus. O Novo Mundo tinha o clima e o solo necessários para cultivares produtos exóticos desejados pelos europeus, e o transporte marítimo era barato. Mas as Américas não eram povoadas por agricultores dedicados à produção de mercadorias. Na verdade, as regiões costeiras subtropicais mais adequadas para o cultivo desses produtos foram severamente despovoadas depois do impacto desastroso da conquista europeia. O cultivo de produtos dtplantation envolvia o tipo de trabalho que espantava o migrante voluntário; especialmente porque a abundância de terras no Novo Mundo oferecia uma alternativa preferida ao trabalho K&plantation — mesmo que, como muitas vezes acontecia, isso significasse lutar com os habitantes indígenas pela posse da terra. Mercadores portugueses, holandeses, britânicos e franceses descobriram que era agradavelmente lucrativo patrocinar o desenvolvimento de plantations, mas só conseguiram suprilas de mão-de-obra por meio da garantia de fornecimento de escravos da costa da África. A competição no mercado atlântico afogou quaisquer escrúpulos que tivessem a respeito do comércio de africanos escravizados, de forçá-los a trabalhar nas plantations ou de ganhar dinheiro com o que os escravos produzissem. E espantoso que antes de 1760 tenha havido poucos protestos contra a escravização em massa de africanos apesar de, como veremos no próximo capítulo, a escravidão há muito já ter desaparecido do noroeste da Europa. A escravidão do Novo Mundo resolveu o problema colonial de mão-de-obra em uma época em que não havia outra solução à vista. Assim, ela provou ser muito coerente com a acumulação comercial e manuíàtureira nos centros do avanço capitalista na Europa ocidental; em primeiro lugar nos da Grã-Bretanha, dos Países Baixos e da costa atlântica francesa e seu interior. Como se mantinha a demanda pela produção dos escravos? Os produtos àasplantaítons eram prazeres populares, e frequentemente a demanda de açúcar e tabaco funcionava como isca que atraía círculos cada vez maiores da população para a economia de mercado; os impostos cobrados sobre estes produtos também representavam uma arrecadação útil para os principais Estados. O novo padrão de relações sociais fez com que a renda passasse dos géneros para o dinheiro; bebidas adoçadas e tabaco eram tanto um consolo
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quanto um aguilhão, enquanto tecidos leves, laváveis e brilhantes tornavam a vida mais amena e saudável. A sede da Europa por produtos âzs plantations, que parecia impossível de mitigar, fez com que, em uma década, o fornecimento de açúcar, café, tabaco e algodão duplicasse sem queda de preço. Comerciantes e donos àc, plantations eram enco-
seus próprios negócios e o funcionalismo colonial tinha a tarefa de ministrar a regulamentação mercantilista. Mas pelo menos as tropas coloniais davam-lhes alguma proteção. Os proprietários de escravos tendiam a um antagonismo mais acirrado com os mercadores metropolitanos e seus agentes locais, especialmente quando, como acontecia amiúde, tinham dívidas para com eles. Levar Mmzplantaíion escravista ao ponto em que se pudesse vender a colheita era um empreendimento demorado, caro e arriscado. Os proprietários de plantations muitas vezes precisavam recorrer ao crédito para comprar escravos, equipamento ou provisões. Com frequência caíam nas garras dos mercadores depois que uma guerra, um furacão ou uma revolta de escravos lhes destruía a colheita ou alguma epidemia levava metade ou mais do contingente de escravos. Em geral o mercador cobrava juros altos nos empréstimos aos donos de plantations e podia justificá-los com os riscos envolvidos. Mas com tudo isso, o dono de uma plantaíion escravista dava ao mercador-credor a primazia sobre os superlucros que ainda não tinham sido apurados. O próprio dinheiro gasto na compra de um escravo representava um desconto sobre o excedente futuro a ser apropriado quando se colocasse o escravo para trabalhar. Havia aqui um nexo antagónico entre dono Átplantation e mercador que, com frequência, intensificava a hostilidade para com os sistemas coloniais que privilegiavam monopólios mercantis nacionais. Em geral os mercadores locais despertavam menos suspeita ou ódio, já que podiam ser parceiros na fuga às restrições mercantilistas e aos credores metropolitanos. Mas a relação entre donos de plantations e mercadores nunca foi tranquila. Ela incluía o antagonismo com os comerciantes de escravos, sempre que os donos àt plantations sentiam que poderiam prosseguir sem novas compras de cativos. Poderia até provocar um sentimento de impaciência para com a própria escravidão, um tipo de desejo desesperado do proprietário de escravos e de plantations de se encantar com um senhor de terras agrícolas mais importante e com maior soberania. A relação entre donos de plantations e outras camadas da população livre das colónias, embora também ambivalente, admitia mais cordialidade. Os grandes proprietários compravam provisões de pequenos fazendeiros e alguns suprimentos de fabricantes locais. Empregavam o serviço de feitores, guarda-livros, advogados, médicos e outros. Na própria zona àe. plantations, o grande proprietário era reconhecido como líder da comunidade local e assumia cargos como magistrado ou co-
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rajados a buscar as perspectivas quase ilimitadas de expansão que levaram à construção dasplantations escravistas. A nova cultura do consumo comercializado não tinha consciência do custo humano acarretado por seus prazeres.7 Quais eram as tensões internas geradas pela escravidão colonial? Em 1770 as autoridades britânicas e francesas enfrentavam o risco de rebeliões de colonos. Os colonos britânicos e franceses e seus descendentes não acreditavam que, por serem colonos, pudessem ser privados de direitos; esta sensação era, naturalmente, mais forte nas colónias britânicas mais antigas da América do Norte, mas era encontrada também nas Antilhas francesas. A força específica da escravidão colonial britânica e francesa era o aparato descentralizado e controlado pelo dono aa.planta.tion para conter os escravos. A força da colonização ibérica estava concentrada em centros administrativos nas próprias colónias. A escravidão colonial criou seus próprios antagonismos sociais característicos. Mesmo o mais sábio dos ministros acharia difícil distribuir privilégios e penalidades de forma eficaz e coerente, dada a espontaneidade da economia atlântica e suas reações imprevisíveis à mudança de gosto e de métodos de produção. Os produtores de tabaco da Virgínia, os donos à& plantations açucareiras das Antilhas francesas e os concessionários de minas de ouro do Brasil tinham a desvantagem de que seus produtos haviam atingido alto grau de visibilidade. Expostos de qualquer maneira à atenção de mercadores e funcionários do Tesouro, estavam sujeitos a restrições mercantilistas que faziam com que se sentissem, como descreveu Washington, "tão miseravelmente oprimidos quanto nossos próprios negros". Os proprietários de plantations das índias Ocidentais britânicas aceitavam sua posição com mais facilidade, já que sabiam que o sistema colonial lhes abria um mercado metropolitano protegido, poupando-os da necessidade de competir em igualdade de condições com xs, plantations francesas, mais eficientes. Da mesma forma, os produtores de açúcar da América espanhola ou mesmo do Brasil ainda não eram dinâmicos o bastante para sentir uma frustração muito aguda; mas não foi este o caso dos produtores de cacau da Venezuela, que enfrentaram as pretensões monopolistas da Companhia de Caracas e delas escaparam de todo jeito conhecido até forçarem seu fechamento na década de 1780. Fora alguns grandes privilegiados, os proprietários de escravos do Novo Mundo sentiam viva inimizade pelos funcionários coloniais, já que desejavam cuidar de
ronel da milícia local. Apesar das tensões associadas ao patronato, em geral os donos de plantations conseguiam o apoio de outros colonos livres em confrontos com a metrópole. Este eixo dominado pelo grande proprietário era mais forte na zona de plantations da América, mas encontrava-se também onde quer que houvesse desenvolvimento átplantations. As potências metropolitanas foram obrigadas a permitir
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que as colónias desenvolvessem sua própria capacidade militar, quer como segurança contra revoltas de servos, quer como auxílio às forças metropolitanas durante as guerras de rivalidade imperial. Em toda a América os donos de plantations, proprietários de escravos e mercadores locais a eles ligados foram súditos impacientes e insubmissos. Isso foi tão verdadeiro na América do Sul e no Caribe quanto na América do Norte. Mas, naturalmente, o equilíbrio predominante das forças sociais e o vigor da economia baseada na escravidão encorajaram variações dos objetivos específicos e dos métodos adotados. A posse de escravos' conferia slaíus, e a administração àzplantation trazia o hábito do comando. Os donos de plantations do continente tendiam a ser mais ousados ao enfrentarem as autoridades imperiais; os do Caribe, empoleirados em grandes maiorias escravas, eram mais ferozes nas palavras do que nos atos e, muitas vezes, preferiam o jogo de influências para pressionar os centros imperiais. Mas, independentemente de sua localização, os donos de plantations tendiam a ver-se como agentes autónomos com um objetivo racional e esclarecido na vida. O tipo de racionalidade económica quase capitalista incorporada íp/aníatíon escravista estimulava este ponto de vista e muitas vezes o levava em uma direção antimercantilista. Na luta para conseguir um retorno competitivo com sua propriedade, o dono da plantatíon contrariava-se com as restrições comerciais que o impediam de comprar suprimentos mais baratos e vender a qualquer consumidor disponível. Os donos de plantations das índias Ocidentais britânicas sentiam essa contrariedade menos intensamente porque o livre comércio do império lhes permitia comprar suprimentos baratos norte-americanos, implementos de metal e tecidos ingleses de baixo preço e encontrar mercado para todo o açúcar que conseguissem produzir. Os donos de plantations da Virgínia e de Maryland tinham um ponto de vista diferente porque, se vendessem o fumo diretamente para a Europa, poderiam economizar a comissão do intermediário. Os grandes proprietários das Antilhas francesas e dos enclaves à&plantatian da América espanhola sabiam que os mercadores metropolitanos pagavam-lhes menos por causa de seus privilégios monopolistas e gostariam de ter acesso direto às manuraturas britânicas e aos suprimentos da América do Norte. Os proprietários de concessões de minas do Brasil sentiam tais contrariedades de forma menos intensa, em parte porque suas concessões dependiam de licença real e em parte porque na década de 1770 a economia mineira estava em declínio com a exaustão das jazidas. O império colonial da Grã-Bretanha nas Américas permitia uma boa medida de autogoverno colonial. O império mantmha-se unido por sua própria coerência comercial, pela força da Marinha Real e pelo medo de índios e franceses. Com exceção do tabaco da Virgínia, a Grã-Bretanha absorvia com folga a maior parte da produção das plantations de suas próprias colónias. Por razões de engrandecimento
dinástico e nacional, a França mantinha grande estrutura naval e colonial; setores da aristocracia e da burguesia encontraram para si um nicho no sistema colonial. Mas os conseils coloniais franceses eram tão ciosos de seus direitos quanto ospafiemtnís metropolitanos e, provavelmente, mais representativos das classes proprietárias locais. A Grã-Bretanha e a França extraíam um excedente comercial de suas colónias, mas não recebiam delas grande arrecadação direta. Os governos reais de Espanha e Portugal tinham uma base europeia muito mais fraca e passaram a confiar na arrecadação americana, gerada pela economia mineira e por algum comércio de produtos át plantations. Na verdade, o fluxo de receitas coloniais para Madri e Lisboa tanto exigia quanto financiava uma estrutura colonial cuja coluna vertebral era a casta militar aristocrática. Escravos africanos e pessoas de cor livres eram ainda usados como força auxiliar para reforçar fortificações imperiais, arsenais, estaleiros e comunicações. Em 1770 faltava quase inteiramente a Espanha e Portugal o vigor autónomo dos territórios ingleses e franceses; a elite nascida no local ("crioula") tinha importância no máximo secundária no governo e em geral, fora dos enclaves de planlalJons, estava mergulhada em torpor provinciano. Os proprietários de escravos mais independentes e vigorosos das Américas encontravam-se na América do Norte inglesa e no Caribe francês; perto do final do século XVIII alguns donos de plantations do Brasil português e do Caribe espanhol começaram a imitá-los. O arco da resistência dos proprietários de plantations ao controle imperial — que passou dos primeiros para estes últimos—é um dos temas deste livro. Começou com as colónias britânicas da América do Norte, em parte porque os proprietários de lá tinham uma posição mais forte, mas também porque o poder imperial há muito vinha tolerando a autonomia colonial interna. Os Estados atlânticos mais fortes, Grã-Bretanha e França, haviam concedido mais espaço para o autogoverno colonial do que Espanha e Portugal, mais fracos enquanto potências europeias, mas com formidáveis burocracias imperiais. No ano de 1770 a escravidão colonial era mais forte onde a autoridade imperial era mais fraca, nas colónias inglesas. De forma semelhante, a escravidão era mais fraca na América espanhola, onde a autoridade metropolitana era exercida de maneira mais dirigista. França e Portugal ocupavam posições intermediárias. Como a escravidão era inversamente proporcional ao exercício da autoridade metropolitana, não surpreende que o primeiro exercício de independência daria uma grande contribuição ao crescimento dos sistemas escravistas. O império britânico, embora menos rigoroso e restritivo, era também menos útil para os donos de plantations da América do Norte do que as metrópoles de outros impérios coloniais, A partida dos franceses, que levaram consigo a necessidade de proteção militar britânica, também revelou que há muito faltavam ao império os
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princípios produtivos intrínsecos que ainda se mantinham, em maior ou menor grau, nos outros grandes impérios. O absolutismo francês concedia privilégios aos mercadores de Bordéus e Nantes, mas também auxiliava os proprietários de plantations . das Antilhas. O comércio de escravos era subsidiado, proprietários com títulos de nobreza eram isentos de impostos e as guarnições coloniais ajudavam a manter as estradas, os portos e os sistemas de irrigação que tornavam São Domingos tão produtiva. Os donos de plantations do Nordeste brasileiro também poderiam compilar uma lista semelhante de favores imperiais na década de 1760, quando Pombal ten-' tou patrocinar a economia de plantations. Ao contrário, a infra-estrutura do império impunha-se aos donos de plantations da Virgínia mais como restrição do que como apoio. Isto não quer dizer que motivos estritamente económicos ditaram o padrão e a sequência da rebelião colonial; mas enquanto fossem eficazes, as estruturas aqui mencionadas teriam seu impacto na mentalidade e também no cálculo económico. Quanto aos proprietários de minas da América espanhola, estavam em débito maior para com as autoridades coloniais do que qualquer dono de plantation, já que dependiam delas, como observado anteriormente, para conseguir suprimentos, mãode-obra, licenças e transporte.1 No Velho Mundo, o desenvolvimento comercial e manufàtureiro "intensivo" dos Países Baixos levara a um choque momentoso com o império "extensivo" então mais poderoso, o dos Habsburgo espanhóis; impulso similar para a libertação nacional surgiu nas regiões do Novo Mundo onde havia intenso desenvolvimento do comércio, da agricultura e das plantations. A escravidão nas Américas estava pesadamente concentrada na zona tropical e subtropical do Caribe e na área circunvizinha ao litoral atlântico das Américas do Norte e do Sul. Embora ainda houvesse regiões imensas que não haviam efetivamente sido colonizadas nem controladas por nenhuma potência imperial, havia também setores das economias coloniais nos quais a escravidão tinha papel secundário ou insignificante. Os cerca de 25.000 escravos negros da Nova Inglaterra em 1775 não eram cruciais para a agricultura ou a construção de navios; a cooperação forçada da turma de escravos não tinha, na produtividade das pequenas fazendas mistas e da manufàtura, a mesma influência importante que apresentava no cultivo e no processamento dos produtos das plantations. No entanto, os mercadores, pequenos fazendeiros e capitães de navios da Nova Inglaterra descobriram que os donos de escravos e, plantations eram bons fregueses e repeliam tentativas de limitar seu comércio com as índias Ocidentais; até então era pouco o que podiam fornecer à Europa. Os criadores de gado da América do Sul muitas vezes utilizavam alguns escravos — vendiam carne-seca às plantations e queriam
mais liberdade para fornecer couros e peles a mercadores europeus. Os que tinham concessões de minas operadas por escravos em Nova Granada e os donos de planíations de cacau da Venezuela faziam muito contrabando, mas, ainda assim, ressentiam-se do controle metropolitano.
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A manutenção da escravidão colonial produziu padrões diferentes de privilégio racial, com diversos potenciais de conflito. Em todas as colónias, os brancos gozavam destatus e vantagens especiais. Em 1770 todos os escravos americanos eram negros, embora nem todos os negros fossem escravos. Os brancos de classe mais baixa e os americanos nativos deviam sua liberdade à resistência comunitária. Os donos de escravos apelavam para a solidariedade racial dos brancos e às vezes clamavam até aos índios para ajudá-los a manter a escravização dos negros; mas apenas nas colónias inglesas a população negra livre era tão pequena que quase todos os negros eram escravos. Na América portuguesa e espanhola, escravos ou seus descendentes tinham obtido alforria em quantidade suficiente para criar uma população apreciável de negros e mulatos livres. Às vezes os negros e mulatos livres eram considerados pelas autoridades um contrapeso, tanto em relação aos escravos quanto à elite crioula; ocupavam uma posição intermediária no sistema de castas e era-lhes permitida uma identidade separada, embora subordinada. No Brasil os portugueses formaram regimentos negros com oficiais negros em sua luta para expulsares holandeses; os espanhóis também formaram milícias negras no século XVIII. Cora frequência, as fileiras de Henriques brasileiros ou dos batalhões pardos ou negros da América espanhola eram formadas por escravos comprados pelo Estado, aos quais se oferecia a liberdade em troca de um tempo mais longo de engajamento. Por ser cara a compra de escravos para as forças armadas, eles eram, às vezes, capturados de inimigos da Coroa. No Caribe francês e holandês as pessoas de cor livres eram quase tão numerosas quanto os colonos brancos e recebiam algum reconhecimento oficial como contrafortes auxiliares do sistema escravista colonial. A complexa hierarquia social das colónias espanholas, portuguesas e francesas contrastava com o sistema bipolar, negro ou branco, das colónias inglesas, com sua população comparativamente grande de colonos brancos. Nas colónias àtplantation da América do Norte, a maioria branca mal tolerava a presença de negros livres; nas índias Ocidentais britânicas, com sua maciça maioria negra, os brancos acharam aconselhável aceitar um pouco melhor os negros e mulatos livres. Em todas as colónias, negros e mulatos livres podiam possuir seus próprios escravos, mas nas colónias inglesas isso era bastante raro. A escravidão do Novo Mundo codificou a pele "negra" como característica de escravos; pessoas de cor livres podiam ser levadas a negar sua cor — ou a negar a escra-
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vidão. Donos de escravos de ascendência parcialmente africana compartilhavam com os "brancos" a preocupação por seus direitos que os impelia a esta difícil opção.
cio negreiro de enormes proporções para manter ou aumentar o nível populacional. Não fosse por este afluxo, a população escrava das colónias do Caribe teria-se reduzido em dois, três ou quatro por cento ao ano em meados do século XVL1L Os donos àtplantations do Caribe compravam mais homens do que mulheres por não estarem dispostos a arcar com as despesas da reprodução natural. Entre 1700 e 1774, meio milhão de escravos foram levados para a Jamaica, mas, ainda assim, a população escrava só aumentou em 150.000 indivíduos entre essas duas datas. O fato de que o escravo recém-chegado ao Caribe tinha uma expectativa de vida de apenas sete ou dez anos e de que os contingentes àasplantatwns eram continuamente refeitos pela compra tornou mais difícil a construção e a transmissão de uma nova identidade coletiva. Por outro lado, a perspectiva tenebrosa da vida n^plantaíion encorajou fugas individuais e ocasionais revoltas em massa. As condições de vida dos escravos e a segurança da plantation variavam muito entre as colónias. Os 450.000 escravos da América do Norte inglesa estavam sujeitos à vigilância estrita e cuidadosa de seus proprietários, que em geral possuíam apenas algumas dezenas de escravos, se tanto. A chibata, o livro de orações e o controle dos alimentos pelo proprietário ajudavam a manter os escravos no trabalho árduo do nascer ao pôr-do-sol, sendo as noites muitas vezes dedicadas ao processamento ou à manufatura. No entanto, o clima mais ameno, a abundância de terra para o cultivo de alimentos frescos e as exigências menos intensas do cultivo de tabaco evitaram que a população escrava norte-americana tivesse as taxas de mortalidade extremamente altas características das plantations açucareiras; os negros da América do Norte multiplicaram-se quase tão depressa quanto os brancos. Os donos deplaníaltons norteamericanas pagavam preço mais alto pelos escravos, mas taxas de juros muito mais baixas, o que lhes dava incentivo para encorajar a reprodução natural da mão-deobra escrava. Os vínculos familiares tornaram os escravos da América do Norte menos propensos a fugir ou revoltar-se do que os do Caribe. A baixa taxa de sobrevivência dos africanos em boa parte do Novo Mundo refletia parcialmente o fato de que estavam concentrados nas planícies tropicais, onde as doenças cobram seu pesado preço de todos os imigrantes. Mas certamente o excesso de trabalho e o consequente descuido com a subsistência ajudaram a matar os escravos. Pelo menos dois terços dos africanos que chegaram ao Novo Mundo foram enviados ^^plantations açucareiras. No Caribe e no Brasil, as plantations açucareiras impunham regularmente aos escravos uma jornada de trabalho de 16 ou até de 18 horas por dia; havia trabalho noturno no engenho e, chovesse ou fizesse sol, trabalho no campo de dia durante o longo ciclo de plantio e colheita. Os escravos recebiam rações magras e esperava-se que se alimentassem com o fruto do trabalho de um dia ou um dia e meio por semana em roças a eles destinadas para
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Em 1770 os escravos das Américas eram explorados mais intensamente do que qualquer outro grupo do mesmo tamanho em toda a história. Todavia, a ameaça imediata ao império não vinha dos explorados, mas de uma aliança colonial que incluía muitos exploradores. Embora as guarnições e esquadras coloniais às vezes estivessem disponíveis para subjugar revoltas de escravos e para conter os maroons, * os donos de' plantations preferiam esmagar a resistência por meio de suas próprias patrulhas e milícias. As forças metropolitanas tinham como principal função proteger as colónias de ataques externos. É por essa razão que a vitória britânica na América do Norte em 1763 foi abrangente demais para seu próprio bem; libertou os colonos de seu medo dos franceses e espanhóis. Os que construíram, em cada colónia, os empreendimentos baseados em escravos estavam unidos pela língua, pela identidade cultural e pelo interesse económico; e tinham recursos para contratar empregados e garantir aliados junto à população livre sem escravos. Estes últimos, pelo contrário, haviam sido arrancados de partes diferentes de um continente imenso, falavam línguas diferentes e tinham diferentes tradições. A sequência de captura, venda e travessia era por si só traumática. Os cativos africanos que vinham das regiões mais desenvolvidas eram mais vulneráveis, por terem mais familiaridade com a escravidão e menos familiaridade com a vida na floresta do que os bosquímanos, que parecem ter formado uma parcela desproporcional dos maroons. Fez-se todo o possível para impedir que os escravos desenvolvessem um objetivo ou interesse em comum, semeando-se a divisão dentro das plantations e impedindo a comunicação entre elas. A população escrava era sempre fonte de apreensão para os senhores; mas este medo não paralisou os donos de escravos, que acreditavam estar mais bem informados do que os funcionários da metrópole a respeito das necessidades dos cativos. As colónias com grande maioria escrava não poderiam sobreviver por mais de um século caso não reproduzissem com eficácia a sujeição dos que eram utilizados em trabalhos forçados. O ímpeto destrutivo e a íucratividade extraordinária à&plantatkn recriavam continuamente uma força de trabalho que tinha pouca oportunidade de se descobrir. Os contingentes de escravos condenados a trabalhar n3£plant&tÍQns das zonas tropicais e subtropicais tinham mortalidade tão alta e fertilidade tão baixa que exigiam um comer*Com unidade s de negros fugidos da escravidão que se formaram em várias regiões do Caribe e viviam nas montanhas ou na selva, às vezes em associação com índios remanescentes. (N. da. T.)
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este propósito. As plantations do Caribe continham, em geral, centenas de escravos cada uma; os feitores e capatazes brutalizados aos quais eram confiados não tinham sequer a razão dúbia do proprietário para tratar com algum cuidado os seus escravos, ou seja, que eles perderiam valor caso não fossem bem tratados. Na América espanhola e portuguesa, em geral o destino do escravo d^ptantation não era melhor, e, na verdade, o dos escravos das minas de ouro era ainda pior—neste último caso, não havia sequer um ciclo de colheita para limitar o excesso de trabalho, e a exposição à água e às intempéries provocava alta mortalidade. O preço relativamente baixo pelo qual se compravam novos cativos dos mercadores e o alto valor da produção dos escravos — fosse açúcar ou ouro — conferiram uma lógica comercial terrível à prática de consumir a vida dos escravos em poucos anos de trabalho intenso. E enquanto o contingente de escravos fosse dizimado pela doença e pelo excesso de trabalho, seria difícil para eles resistir coletivamente à opressão. Em toda a zona deplaníations os escravos eram sujeitos a açoitamentos repetidos, e com eles ameaçados, além de outras formas de punição; as escravas eram estupradas pelos brancos; e a comunidade dzplantatton, se assim podemos chamá-la, era abandonada à subnutrição e à doença, ao desânimo e à lassidão, quando não galvanizada pela força bruta para atender ao ritmo implacável do trabalho. As condições materiais da existência do escravo eram, sem dúvida alguma, piores no Caribe e no Brasil do que na América do Norte, onde o clima e o tipo de cultura eram menos rigorosos. Por outro lado, o grande tamanho das plantations do Caribe diminuiu o impacto cultural dos proprietários de escravos; este íàtor favoreceu a sobrevivência de traços africanos e, afinal, a descoberta de novas fontes de identidade comunitária. Em todo o Caribe as línguas e dialetos crioulos, pesadamente influenciados pelo vocabulário e estrutura das línguas africanas, tornaram-se o principal meio de comunicação. As grandes plantations de arroz da Carolina do Sul tenderam a este último padrão, e os habitantes daquela região desenvolveram uma língua própria, chamada gullah, assim como os habitantes das ilhas em várias partes do Caribe. O padrão diversificado e tradicional da escravidão na América espanhola e, em menor grau, no Brasil encorajou os escravos mais privilegiados a desenvolver sua própria incorporação subordinada à sociedade colonial e a esperar o dia em que eles, ou seus filhos, seriam libertados. Irmandades religiosas especiais proporcionavam um meio cultural e uma forma de previdência social para a comparativamente grande população negra e mulata livre.9 Nas colónias espanholas e portuguesas havia um número considerável de escravos semi-autônomos que trabalhavam no comércio ou na terra sob sua própria supervisão. Com permissão de reter parte de seus ganhos, podiam comprar a liberdade, sua ou de um parente, em cerca de vinte anos
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e ao fazê-lo também davam a seu dono os recursos para comprar um novo escravo jovem e, assim, perpetuar seu papel de proprietário de escravos. Os proprietários de escravos americanos julgaram conveniente promover uma camada de escravos mais permanentes, talentosos ou responsáveis que haviam dominado as complexas exigências da agricultura deplantalion, e nela confiar Esses escravos recebiam pequenos privilégios e, em troca, esperava-se que ajudassem a vigiar ou dirigir seus colegas nas turmas de escravos. Os membros da elite escrava tinham rações extras, podiam escolhera parceira e gozavam pelo menos de uma margem de manobra para negociar o ritmo e o volume de trabalho n&plantation. Com frequência os donos de plantations do Caribe passavam para os "cabeças" escolhidos todas as roupas, alimentos e rum destinados ao contingente inteiro de escravos. Desta forma a elite escrava tinha interesse na manutenção da estrutura de autoridade da plantaíion. É importante reconhecer a força interna deste regime. Em princípio, cada plantation era um mundo em si mesmo, e normalmente só os escravos mais privilegiados tinham permissão de relacionar-se com outras planíalions. Até os escravos do campo tinham motivos para temer a vida nas áreas selvagens e sentir-se ligados à propriedade, onde podiam ter suas roças e suas relações pessoais. A resistência escrava ao regime da plantaíion era endémica e assumia tanto a forma reformista quanto a revolucionária. Os escravos negociariam, por meio dos capatazes e feitores, hortas maiores ou uma noite extra para trabalhar para si mesmos. O absolutismo da categoria jurídica da escravidão pode nos impedir de ver todas as características da verdadeira condição do escravo, importantes para os escravos propriamente ditos. Embora o regime az plantation fosse um choque para o recém-chegado, os habituados a ele vieram a distinguir boas e más condições, bons e maus capatazes ou feitores. Ainda desejariam a liberdade, mas outros objetivos podiam parecer mais imediatos e práticos — uma roça maior ou complicar a vida de um feitor odiado. Ao trabalharem de forma lenta ou "estúpida" ou aparentarem indiferença em relação a ameaças e punições, os escravos às vezes podiam barganhar condições melhores. Os donos dcplantatíons e as autoridades locais tinham poder de fogo superior e usariam de toda brutalidade para manter a subordinação servil, mas os proprietários e administradores às vezes descobriam que a negociação era a melhor forma de conseguir completar a colheita; as tristes alternativas disponíveis para os negros limitavam severamente as barganhas em que podiam ter sucesso. Nas ilhas açucareiras francesas e britânicas, onde os escravos representavam de 80a 90% da população, os proprietários estavam evidentemente muito mais atentos à garantia oferecida pelo Estado colonial do que no continente. Em último caso, sempre poderiam pedir ajuda às guarnições e aos "navios de linha" da metrópole,
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mesmo que preferissem contar apenas com suas próprias forças. Na prática, o tamanho pequeno das colónias do Caribe e a proximidade das tropas da milícia reduziam grandemente as oportunidades de revolta ou fuga de escravos. A preocupação com a segurança e as vantagens comerciais poderiam, no entanto, colocar os donos deplantations do Caribe contra sua metrópole nacional. Durante a Guerra dos Sete Anos, a Grã-Bretanha conseguiu ocupar setores do Caribe francês e espanhol com a colaboração ativa dos proprietários locais. Todo o processo colonial, através do qual certos Estados da Europa ocidental conquistaram impérios nas Américas e neles desenvolveram minas tplaníationst pode ser descrito como um crescimento prodigioso das forças sociais, algumas delas coordenadas por Estados, muitas outras propelidas por centros privados de riqueza e poder. Os cativos africanos foram introduzidos em uma formação social em que o dono de escravos não dispunha apenas do poder de fogo de seus capangas, mas também do apoio de seus vizinhos e clientes. Sem os alimentos adquiridos pelo proprietário ou seu administrador, poderia haver fome. Os proprietários dzplanlations e funcionários coloniais controlavam os sistemas locais de informações e faziam de negros desobedientes vítimas de violência exemplar. Até a população ameríndia era, com frequência, hostil aos negros rebeldes ou fujões. Em tempos normais o escravo estava preso a uma estrutura de opressão insidiosa e multiíacetada, na qual os proprietários dispunham de recursos económicos e ideológicos além de garantias políticas e militares; em contraste, os cativos estavam divididos por seu histórico e pela situação, afastados de suas origens mas isolados no novo ambiente e enredados em um sistema vasto e complexo de controle territorial, troca económica e mobilização social.
para o lado do progresso e pelo menos alguns deles ascenderam como os principais líderes revolucionários da época. Com a revolução industrial ainda em sua primeira infância em 1770, não havia nada no mundo atlântico que se comparasse ao espantoso crescimento da produção e do comércio dasplaníaíions no século e meio anteriores. Em termos socioeconômicos, os senhores de escravos do Novo Mundo criaram um novo tipo de escravidão e foram obrigados a inventar, praticamente do nada, as bases legais e ideológicas de um sistema escravista. Esta experiência histórica dotou-os de certa confiança em sua própria capacidade. No entanto, não haveria nenhuma Declaração dos Direitos dos Senhores de Escravos. Os revolucionários donos de escravos preferiram reforçar outras identidades e outros interesses comuns, em geral os que unissem todos os cidadãos livres. Alguns revolucionários donos de plantations repudiaram não só o comércio negreiro, como também a escravidão como incoerentes com as liberdades civis e a integridade nacional; descartaram aquele aspecto de sua dupla ou tripla identidade que achavam mais difícil justificar e preferiram ver-se como cidadãos e homens de empresa e cultura. Mesmo para um senhor de escravos, não era difícil compreender o feto de que a escravidão era o lado feio do progresso do Novo Mundo. A escravidão já era considerada degradante muito tempo antes de moralistas e economistas explicarem suas próprias objeções.
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A rivalidade entre os vários impérios ajudou a armar o cenário para as tentativas dos colonos de assegurar uma esfera maior de autonomia e criou algumas oportunidades para a resistência dos escravos; apenas uma década entre 1660 e 1770 não foi marcada pela guerra entre um ou outro dos Estados atlânticos. O mercantilismo colonial protegera a infância dos sistemas escravistas e os comércios negreiros nacionais, mas a produção cresceu com mais vigor quando os monopólios oficiais foram desmantelados e suspensas as restrições mercantilistas. Alguns donos de plantaíions sentiram confiança suficiente em sua posição para exigir o autogoverno e a liberdade comercial para as colónias; outros preferiram patrocinar a mudança dentro da metrópole. Alguns poucos eram reacionários com posição contrária a mudanças, ocupando um nicho privilegiado na ordem predominante. Os donos de escravos não tinham objetivos ou situações uniformes, mas tendiam
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Em seu estudo clássico sobre A era da revolução, E. J. Hobsbawm examinou o impacto económico da revolução industrial da Grã-Bretanha e o im pacto político da Revolução Francesa. Há muita coisa no desenvolvimento europeu e americano subsequente e no mundo moderno que pode ser rastreada até as consequências monumentais desta "dupla revolução". No entanto, a história da escravidão do Novo Mundo exige atenção para outro conjunto de forças e impulsos: aqueles gerados pelo impacto e exemplo político do Estado hanoveriano, principal potência atlântica, e o impacto económico dos acontecimentos revolucionários na América do Norte, no Caribe e na América do Sul. Mesmo aqueles que combateram a Grã-Bretanha hanoveriana encontraram nela muito que admirar; suas instituições políticas, como veremos, seriam amplamente imitadas no mundo atlântico da época e vieram a ser associadas à coexistência desconfortável da escravidão dzplantation com um abolicionismo ainda imaturo. Da mesma forma, as revoluções de 1776, 1789 e posteriores tiveram consequências prodigiosas para o futuro económico da escravidão nas Américas. Elas romperam barreiras mercantilistas para a expansão dzs plantations e deram impulso à disseminação da escravidão no continente; ao mesmo tempo, criaram oportunidades para uma sucessão de graves sublevações contra a escravidão no Caribe. A literatura sobre a "Era da Revolução" tende a concentrar-se na Europa, embora R. R. Palmere
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J. Godechot tenham ressaltado o impulso democrático revolucionário das 13 colónias norte-americanas. Mas os acontecimentos na zona dsplantations depois de 1776 — o surgimento de novas propriedades baseadas na escravidão ou a disseminação da revolução e da emancipação do Haiti para a América espanhola — não receberam atenção compatível com sua importância. O presente estudo, por dedicar-se a um capítulo essencial da história da escravidão no Novo Mundo, vai explorar esta dimensão americana um tanto negligenciada.10 E claro que não há entendimento consensual sobre a "Era da Revolução" na Europa, mesmo entre os marxistas. A obra de Hobsbawm foi notável por abordar a complexidade internacional de um processo continental e influente de "revolução burguesa" no qual a política e a economia avançaram em contraponto e não em uníssono. As lutas de classes desta época não ficaram de forma alguma confinadas à luta de uma nascente classe capitalista contra o feudalismo obsoleto. Pequenos produtores, trabalhadores assalariados, artesãos, pequenos funcionários públicos, "burgueses" não capitalistas, todos tiveram seu papel. Às vezes fizeram alianças com os interesses capitalistas ou ajudaram a remover obstáculos ao avanço capitalista. Mas uma característica distintiva da "Era. da Revolução" é que as forças populares também intervieram para proteger seus próprios interesses o melhor que puderam. Esta época de progresso "burguês" acabou por produzir estruturas de Estado nacional mais adequadas à acumulação de capital do que os anciens rê$ime$\s também trouxe à luz os movimentos e instituições democráticos que agiram como freio ao poder do capital. O curso dos acontecimentos nas Américas apresentaria complexidade semelhante, marcada pek luta de classes popular e pela revolução burguesa. Este processo secular e contestado levou os senhores de escravos americanos aos píncaros da riqueza e do poder em determinado momento apenas para despedaçá-los no momento seguinte. O feto de que os senhores de escravos, do Chesapeake ao Rio de Janeiro, pudessem ser protagonistas da "revolução burguesa" e do desenvolvimento capitalista é, claro, totalmente paradoxal, já que eles mesmos não eram burgueses nem capitalistas, ainda que seus parceiros mercantis pudessem ser assim descritos. E há ainda o problema de que, embora o surgimento do capitalismo na Europa nos séculos XVII e XVIII tenha manifestamente promovido o desenvolvimento dos sistemas escravistas no Novo Mundo, ainda assim parece haver algum vínculo entre o capitalismo e o surgimento do antiescravismo. Em vários estudos notáveis, a abolição da escravatura ou do tráfico negreiro foi identificada com os objetivos ou os princípios de uma nova civilização capitalista e imperialista. Já se argumentou que a crítica da escravidão preparou o caminho para os regimes de mão-de-obra industrial assalariada ou para a imposição da hegemonia burguesa a todas as camadas da sociedade. De for-
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ma semelhante, falando o idioma não marxista, considera-se que o avanço da racionalização ou da sociedade industrial ou das relações de mercado expulsou a forma social primitiva da escravização. Se a escravidão desenvolveu-se na aurora do capitalismo, como insisti antes, como é que o avanço capitalista também despertou impulsos antiescravistas? No decorrer deste livro, tentar-se-á resolver o paradoxo de como o capitalismo, em primeiro lugar, precisou de regimes de trabalho forçado e, mesmo assim, libertou forças que ajudaram a combater a escravidão americana. Em Capitalismo e escravidão (1944), Eric Williams desenvolveu o argumento de que a escravidão pertencia ao velho mundo do mercantilismo colonial e que se tornou redundante com o surgimento do trabalho assalariado na metrópole e com a disseminação do domínio colonial europeu na Ásia e na África. Ao mesmo tempo em que contém muitos argumentos poderosos e exemplos maravilhosos, Capitalismo e escravidão propõe uma explicação do abolicionismo segundo a qual os capitalistas industriais desfizeram-se do comércio negreiro e da escravidão colonial por motivos essencialmente económicos. Faz-se referência a tensões sociais mais amplas e a revoltas de escravos, mas o peso principal da explicação recai sobre o interesse económico capitalista. A abolição britânica é abordada como se fosse um processo nacional bastante auto-suficiente, e o destino da escravidão na América independente não é investigado, nem como teste de sua tese nem como influência sobre a emancipação britânica. Williams não ignora o fato de que o desenvolvimento do capitalismo e da escravidão foram intimamente relacionados. Mas minimizou o problema da explicação ao sustentar que a escravidão produzira o capitalismo, e não o contrário. Em contraste com o entendimento marxista das origens do capitalismo, Williams não levou em conta a acumulação de capital agrário, manufàtureiro e mercantil na época pré-industrial. Para ele, os sistemas escravistas do Novo Mundo, longe de serem uma consequência do desenvolvimento capitalista, foram uma escada descartável pela qual ele subiu. No final, seu esquema "dialético" de um capitalismo que usou uma escravidão descartável é mecânico e insatisfatório. Em The Problem ofSlavery in the Age ofRevolution 1776-1823 (1975), David Brion Davis apresenta uma investigação mais comparativa e complexa dos abolicionistas, esclarecendo os caminhos pelos quais eles ajudaram a construir uma nova hegemonia burguesa, ainda que se movendo contra um modo de exploração mais primitivo na zona deplanlalions. Esta obra admirável focaliza principalmente a ideologia do abolicionismo, apresentando de forma apenas resumida algumas das lutas anteriores sobre a emancipação. Embora as controvérsias metropolitanas sejam muito bem esclarecidas, o padrão de resistência e acomodação dos próprios escravos não é integrado à análise. A experiência e as aspirações dos escravos desta época são mui-
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to mais difíceis de identificar e documentar do que o pensamento dos principais abolicionistas, mas isto não nos dispensa de tentar O ensaio notável de Eugene Genovese, From Rebellion to Rwolution (1979), explora o desenvolvimento do antiescravismo dos próprios escravos e argumenta que seu alcance e sua trajetória foram transformados durante a época da revolução democrática burguesa. Nestas substanciosas obras de interpretação, baseadas em amplas pesquisas, Davis e Genovese qualificam e matizam a tese que vincula o antiescravismo ao surgimento da sociedade burguesa. Davis mostra que os abolicionistas visavam com frequência mais do que uma revisão puramente capitalista das relações sociais, enquanto Genovese apresenta as formas pelas quais a resistência escrava veio a prevalecer sobre o egoísmo burguês e lembra-nos de que a revolução democrática burguesa na própria Europa assistiu várias vezes às forças populares impondo o progresso democrático a uma burguesia relutante, tímida ou traiçoeira. Davis e Genovese chamam a atenção para as tensões e contradições que isso provocou e colocam o surgimento dos movimentos abolicionistas e a legalização e o resultado final da emancipação em um contexto de luta de classes tanto na zona deplantations quanto na metrópole. Com base nessas abordagens, o presente livro busca construir uma narrativa marxista das verdadeiras lutas de libertação nas várias regiões das Américas e estabelecer até que ponto o antiescravismo, em intenção ou resultado, transcendeu a dinâmica democrática ou capitalista burguesa. A reconstrução narrativa oferecida também busca reconhecer a contribuição dos senhores de escravos ao processo revolucionário burguês mais amplo, ao desmantelamento da escravidão colonial e ao nascimento de novos sistemas escravistas. Isto envolveu reunir a política colonial e metropolitana em um relato do destino da escravidão em cada colónia durante a época revolucionária, país por país. Na década de 1980 há sinais de que o estudo do abolicionismo vem se tornando um ramo especializado e desligado da história da escravidão. O abolicionismo é visto como uma expressão importante da reforma da classe média em vez de uma resposta às lutas na própria zona de plantations. O feto de que o abolicionismo levou à emancipação dos escravos tende a ser aceito sem investigação. Assim, o abolicionismo é entendido como justificativa do avanço capitalista, da propagação de um modelo de sociedade de mercado e da confiança burguesa no progresso. Em um trabalho assim, o foco tende a cair sobre a evolução do pensamento e do sentimento social nas classes médias metropolitanas. Pouca atenção se dá à luta de classes metropolitana ou às disputas relativas ao objetivo e ao caráter do Estado; e concede-se ainda menos atenção aos acontecimentos na própria zona de plantations, à resistência escrava e ao papel dos ex-escravos na determinação do resultado do processo de emancipação. Embora a crítica teórica dessas abordagens seja necessária, uma narrativa que identifique os avanços
da escravidão e do antiescravismo nas Américas pode dar sua própria contribuição ao sugerir sua inadequação, como este livro tenta fazer' 1 Embora os historiadores do abolicionismo tendam a ignorar os acontecimentos na zona de plantations ^ há também uma escola florescente de "estudos da escravidão" que se abstrai do contexto fornecido pela política e pela economia da metrópole. A vida dos escravos e a resistência negra são estudadas isoladamente, sem referência a seu impacto sobre as decisões metropolitanas. A especialização académica e a divisão do trabalho têm suas justificativas, mas as razões da destruição da escravidão colonial não podem ser percebidas se a abolição metropolitana e as lutas da zona de plantations forem alceadas em departamentos diferentes do conhecimento. O modelo ainda não superado para a compreensão da luta contra a escravidão é The Black Jacobins: Toussaint TOuverture and tke San Domingo Revolution, de C. L. R. James (1938). Nesta obra, James determina o impacto da revolução no Caribe sobre os acontecimentos na metrópole e explora a fusão extraordinária de tradições e impulsos diferentes conseguida em São Domingos na década de 1790. A história de James esclarece o funcionamento essencial do capitalismo, do racialismo, do colonialismo e da escravidão — e as complexas lutas de classes que provocaram em São Domingos; transmite uma sensação maravilhosa de irrupção das massas na história. Com sensibilidade afinada com as forças cosmopolitas da época, ele segue o impulso revolucionário transatlântico a cruzar o oceano de São Domingos a Paris e de volta ao Caribe. Como explicação, é mais satisfatória e, como narrativa, muito mais atraente do que aqueles relatos de lutas ligadas à escravidão colonial que nunca olham para fora das plantations ou, pior ainda, nunca abandonam as salas de visita ou os salões de debate na metrópole. Em alguns círculos, supõe-se que a história narrativa tem pouco a oferecer e é incapaz de identificar as estruturas profundas da economia, da mentalidade ou da vida política.12 O presente livro foi escrito com a convicção de que, se são reais e efètivas, tais estruturas também serão visíveis no nível dos eventos. E com a crença adicional de que as forças socioeconômicas e os discursos ideológicos são tão inerentemente antagónicos e contraditórios que abrem espaço para a opção e a ação políticas, as quais também devem ser registradas caso se queira apreender a dinâmica do desenvolvimento histórico. Assim, a tentativa de construir uma narrativa põe à prova interpretações conflitantes. Pode ser útil estabelecer o peso e o significado respectivos das diferentes forças e fàtores em ação. Nos relatos a seguir, tentei colocar em contexto as lutas relativas à escravidão colonial e mostrar que o antiescravismo foi muitas vezes imposto por pressões externas aos agentes de decisão na metrópole. A pesquisa marxista, em obras de escritores como James, Genovese, Gorendere Fraginals, já deu uma contribuição notável à nossa compreensão da for-
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mação e da derrubada da escravidão nas Américas. Mas a relação deste conjunto de obras com a corrente dominante do desenvolvimento capitalista e da luta de classes ainda não foi suficientemente apreciada, o que fornece uma razão adicional para o presente estudo. As conclusões aqui oferecidas continuam a ser parciais e experimentais, em um campo no qual a pesquisa e o debate avançam a passos rápidos. O primeiro capítulo examina as fontes do antiescravismo no mundo atlântico de meados do século XVTII — no sentimento popular, na resistência dos escravos e na filosofia. Mas foi necessária a crise do império para que o antiescravismo se tornasse uma questão da política prática; capítulos subsequentes traçam a irrupção de temas antiescravistas nas crises imperiais e revolucionárias que se alternaram na história das potências atlânticas até meados do século XIX. Os sistemas de escravidão colonial se desfizeram quase na ordem inversa de sua formação, com a crise dos sistemas britânico e francês precedendo, e ajudando a precipitar, a das potências ibéricas. Já foi sugerido que a escravidão americana tinha um ímpeto expansionista geralmente frustrado pelo mercantilismo colonial, e portanto não surpreende que a crise dos sistemas coloniais tenha sido provocada pelo crescimento e não pela contração. Foi totalmente apropriado que a Grã-Bretanha hanoveriana, engrandecida pelo comércio ligado aos escravos, tenha sido o primeiro Estado a ser humilhado por seus próprios colonos, em 1776-83, e depois, na década de 1790, o primeiro a ser derrotado por escravos rebelados. Os donos de plantations da América do Norte inglesa não eram os mais ricos do Novo Mundo, mas incorporavam-se à formação social colonial mais dinâmica e estavam em melhor situação para desafiar o poderio metropolitano. Os Capítulos 2 a 4 examinam o antiescravismo na Grã-Bretanha e na América do Norte, colocando tanto a Revolução Americana quanto o surgimento da abolição no contexto da ordem política e da cultura da qual emergiram. Nos capítulos seguintes a derrubada da escravidão colonial francesa é, de forma similar, considerada em seu contexto, o da crise do ancien regime e da irrupção das forças revolucionárias na França e no Caribe. Com frequência os relatos da abolição e da escravidão no Novo Mundo passam depressa demais pelo impacto causado sobre elas pelas revoluções no Caribe francês e pelo aparecimento do Haiti, um Estado negro. É quase como se o Black Jacobins de James os dispensasse de levarem conta os importantes aspectos concomitantes e as consequências da única revolta de escravos bem-sucedida na história. Na verdade, a obra de James deveria ser uma inspiração para identificar o impacto da "primeira emancipação" sobre as lutas posteriores contra a escravidão colonial em outras partes das Américas. O relato detalhado, nos Capítulos 5 a 9, da desintegração do poder dos senhores de escravos em São Domingos, do nascimento do Haiti e do
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impacto deste último sobre os escravos e seus senhores, sobre os estrategistas do império e sobre o meio flutuante de aventureiros e revolucionários tenta remediar esta deficiência, com a ajuda da bem-vinda enxurrada de monografias de historiadores do Caribe sobre o assunto. Espero mostrar que é quase impossível exagerar o impacto da revolução haitiana sobre o destino da escravidão colonial. Esta e outras conclusões emergem de capítulos que delineiam o progresso da escravidão e do antiescravismo nos Estados Unidos, na América espanhola e portuguesa, nas índias Ocidentais britânicas e nas Antilhas francesas. Eles destacam o paradoxo de que, embora este período de revolução "democrática burguesa" e de avanço capitalista tenha fortalecido e ampliado a escravidão em algumas partes do Novo Mundo (sul dos Estados Unidos, Cuba e Brasil), também armou o cenário para as correntes antiescravistas que garantiram substanciais emancipações de escravos em quase todas as décadas de 1780 até 1840, e ainda depois. Não pode haver dúvida de que esta correlação paradoxal apresenta um grande desafio à explicação histórica. Recentemente alegou-se que o compromisso com o progresso histórico não podia mais ser mantido. Certamente a história da escravidão do Novo Mundo não permite uma concepção simples ou linear do avanço histórico. Mas quando se levam em conta todas as tendências e contradições, os movimentos americanos pela independência, pelas liberdades republicanas e pela emancipação dos escravos representam conquistas épicas da história humana e da formação do mundo moderno. Apesar dos resultados heterogéneos do antiescravismo da época, os sacrifícios de escravos rebeldes, abolicionistas radicais e democratas revolucionários não foram em vão. Eles mostram como foi possível enfrentar, e algumas vezes derrotar, a opressão que medrou como anverso horrível do crescimento da capacidade e do poder sociais humanos no mundo atlântico do início do período moderno. Em termos mais gerais, são de interesse por esclarecerem as maneiras como, embora de forma incompleta ou imperfeita, os interesses de emancipação podem prevalecer contra as leis e os costumes antigos e o espírito de impiedosa acumulação.
Notas 1. Sobre as muitas variedades de escravidão, ver Orlando Pattcrson, Sfauery and Social Death, Cambridge, Mass., 1982; tento definir esta instituição variável em uma contribuição em Lconie Archer, org., Slavery, Londres 1988. 2. Elizabeth Fox Genovese c Eugene Genovese, Fruifs ofMerchant Capilal; Slavery and Eourgeois Property in the Rise andExpansion of Capitalismt Oxford e Nova York, 1983;
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Manuel Moreno Fraginals, El Ingcnio, 3 vols., Havana, 1978; ver também Richard S. Duna,SugararuíSfavcs, Chapei HU1, 1972;MichaelCratoneJames Walvin, AJamaica Piantatian, Toronto, 1970; Gabriel Dcbien, Lês Escla-ves aux Aniilles Françaises: XVIIXVIII Sièck, Basse Terrc, Guadalupe, 1974. 3. Jacob Gorendcr, O exra-vismo colonial, São Rmlo, 1978 (p. 242 para a discussão citada). 4. Estas e outras características da formação da escravidão colonial no Novo Mundo até 1776 serão exploradas sistematicamente em uma sequência da presente obra intitulada The West andthe Rise ofSlavery. * 5. J. H. Rirry, The Spanish Sea-borne Empire, Londres, 1966; James Lockhart e Stuart Schwartz, Eariy Latin-America, Cambridge, 1983, pp. 98-101, 181-252; James Lang, Poríuguese Brazil: The Kings Plantation, Nova York, 1979, pp. 115-52, 205-18. Sobre o contexto mais amplo, ver Eric Wolf, Europe andthe People Wiíhouí ffisíory, Londres, 1984. 6. Os dados neste parágrafo c nos anteriores foram extraídos de Ralph Davis, The Rise of the Atlantic Economies, Londres, 1973, pp. 257, 264-5; Fraginals, El Ingenio, I, p. 41; Paul E. Lovcjoy, "The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis", Journal of África» History, voL 23,1983, pp. 473-501; David Eltis, "Free and Coerced Transatlantic Migrations", American Historical Revúrtc, vol. 88, n°. 2, abril de 1983, pp. 251-80. 7. Sobre, a dinâmica do consumo por trás do desenvolvimento da plantalion> ver Sidney Mintz, Sioeetness and Power, Londres, 1985. 8. Para um exame esclarecedor das formas pelas quais os impérios impuseram a coordenação produtiva, ver Michael Mann, The Sources of Social Power, Cambridge, 1986, pp. 145-55, 250-98. 9. A. J. R. Russcll Wood, The Black Man in Slavery and Freedom in Colonial Brazil, Londres, 1982,pp. 128-60; mas ver também Ronaldo Vtin&s, Ideologia e escravidão, Petrópolis, 1986, pp. 93-115. 10. Embora o próprio Hobsbawm certamente registre, de forma breve mas enfática, esta dimensão americana; ver The Age ofRevotuíio», Londres, 1964, pp. 69, 110. 11. Para um exemplo desta abordagem, ver Thomas Haskell, "Capitalism and the Origins ofthe Humanitarian Sensibility, Part l", American Hisloricall&view, vol. 90, n°. 2, abril de 1985, "ftrt 2", American HistoricalReview, vol. 90, n°. 3, junho de 1985; ver também o "Fórum" sobre estes artigos tmAmerican HistoricalReview, vol. 92, n°. 4, 1987, pp. 797-878, com críticas de David Brion Davis c John Ashworth e a resposta de Thomas HaskclL 12. François Furct, Interpreting the French fovo/utio», Cambridge, 1985, pp. 184-204.
•Obra que acabou por intitular-se The Maki»s efSUvery /«the Não Hér/úí e que *ri publicada pela Rccord, cm breve, com o título A cotulr*íâo da ucravamo no Novo M*nda: 1492-130Q
As origens do antiescravismo
Branco diz o preto furta Preto furta com razão Sinhô branco também furta Quando faz a escravidão Canção brasileira dos tempos da escrawdão
[...] the king and his othcr lord[...] found there [Milc End] threescore thousand men of divers villages and of sundry countrics in England. Só the king cntered in among them and said to them sweetly, 'Ah, yc good people, I am your king. What lack yc? What will yc say?' Then such as understood him said: 'We will that ye makc us free for ever oursetves, our heirs and our lands, and that we be called no more bond, nor só reputed1. 'Sirs', said the king. 'I am well agreed thercto. Wíthdraw ye home into your own kouses and into such villages as ye carne from[...] and I shall cause writings to be made aad seal them with my seal[...] containing everything that ye demand' [...] These words appeared well to the commom people, such as werc simple, good, plain men.* FrQÍs$ará"s Chronicle
[..,] o rei e seus outros lordes [,..] encontraram lá [era Milc End] sessenta mil homens de aldeias de mergulhadores e de diferentes regiões da Inglaterra. E então o rei foi para junto deles e disse-lhes docemente: "Ah, boa gente, sou vosso rei. O que vos falta? O que direis?" Então aqueles que o compreenderam disseram: "Desejamoí que nos torneis livres, a nós, nossos herdeiros c nossas terras, c que não sejamos mais chamados cativos, nem assim considerados." "Senhores", disse o rei, "estou bem de acordo com isso. Rclirai-vos para vossos tares, para vossas próprias casas e para as aldeias de onde viestes [...] c eu farei com que os textos sejam escritos e selá-losei com meu selo [...] contendo tudo o que pedis." [...] Tais palavras soaram bem para a geníe do povo, que eram homens comuns, bons, simples.
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MARYLAND VIRGÍNIA , CAROL1NA DO NORTE J CAROLINA DO SUL GEÓRGIAj'
Nova York
Escravos representam um décimo ou mais da população
AMÉRICA DO NORTE BRITÂNICA
Zona de desenvolvimento baseado em escravos Centro de resistência escrava ou de atividade de maroons
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ILHAS VIRGENS (Dinamarca) J- . .ILHAS DE SOTAVENTO (Grã-Bretanha) Vf^GUADALUPE (Franca)
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SÃO VICENTE «?~* MARTINICA (Franca) *** " - , fi 'BARBADOS (Grâ-Bretanhi ^I^Caracasí-^- GRANADA (Grã-Bretanha) ^HfcwíTw.
Rio de janeiro
RIO DA PRATA (Espanha)
Zonas de desenvolvimento baseado em escravos e de resistência escrava por volta de 1770
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ntes de meados do século XVIII, a opinião dominante na Europa e no Novo Mundo, quer religiosa quer secular, sempre aceitara a escravização. No primeiro livro do Velho Testamento afirmava-se que Noé havia condenado uma porção da humanidade, "os filhos de Cam", à servidão perpétua, porque Cam vira seu pai despido. A justificativa judaica da escravização fora adotada por muçulmanos e cristãos; pensava-se que a noção de uma mancha hereditária justificava a escravidão racial. No século VI o imperador Justmiano promulgou um código de escravos que admitia a propriedade de pessoas, a servidão hereditária e os poderes dos senhores de escravos, embora proibisse a violência gratuita e permitisse a possibilidade da manumissão; regulamentos inspirados neste código foram estendidos ao Novo Mundo pelas potências ibéricas, enquanto o renascimento da lei romana no final da época medieval também fortaleceu o respeito pela propriedade. Os filósofos da Antiguidade não haviam oferecido nenhuma crítica fundamental da escravidão; o mesmo pode ser dito dos primeiros padres cristãos, dos teólogos da Igreja medieval, dos líderes da Reforma e da Contra-re forma. A opinião cristã de que o servo ou escravo devia servir fielmente a seu senhor é encontrada tanto em São Paulo quanto em Lutero e em textos posteriores. A propriedade de escravos foi não só reconhecida pela Igreja católica, como tolerada em Roma até o século XVIII. Nem Lutero nem Calvino questionaram a escravidão; Lutero, tomando deliberadamente o caso extremo, argumentou que seria errado para um escravo cristão roubar-se a si mesmo de um proprietário turco infiel.1 Os tratados internacionais entre os Estados europeus reconheciam e regulamentavam o comércio de africanos; o Tratado de Utrecht, de 1713, o fez de forma bastante explícita no caso do asiento, o comércio de escravos com a América espanhola. Inglaterra, França, Portugal, Países Baixos e Dinamarca, todos tinham companhias oficiais de comércio envolvidas no trafico negreiro; e se em sua maioria os Estados também permitiram o livre empreendimento no comércio africano, foi porque este provou-se mais eficaz para aumentar o fornecimento de escravos às colónias. Grotius, defensor do maré liberum e da doutrina dos direitos naturais, aceitava a escravidão como instituição legítima. Enquanto a tradição santificava a escravidão, o mesmo fizeram as novas doutrinas do "individualismo possessivo", já que o escravo era realmente propriedade, um bem que o senhor normalmente adquiria através de uma transação legal e perfeita. Todos reconheciam que o destino do escravo não era invejável e que inspirava piedade; ainda assim, sustentava-se que esta era a melhor ou a única forma de trazer à civilização os pagãos e selvagens. Desde a publicação de History oftheAbolition ofthe British S!ave Trade, de Thomas Clarkson, em 1808, tem sido comum identificara origem do antiescravismo com a
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obra dos homens cultos que primeiro publicaram críticas à escravidão ou ao tráfico negreiro. Mas abordar o assunto desta maneira envolve uma séria distorção. É ver* dadeiro e notável que os ataques filosóficos à escravidão do Novo Mundo — quer dizer, à própria instituição em vez de aos excessos cruéis de determinados senhores ou comerciantes — foram extremamente raros antes de meados do século XVIII; Bodin fez uma aguda crítica em 1576, depois da qual houve um prolongado silêncio até a publicação de Esprit dês Lois (O espírito das leis'), de Montesquieu, em 1748, com sua passagem fundamental sobre a escravização de negros. Mas o surgimento do antiescravismo serviu de escoadouro para a repugnância popular à servidão e ao poder privado ilimitado que precedeu de muito as críticas à escravidão colonial. E, naturalmente, os próprios escravos, quando se apresentou a oportunidade, não esperaram a aprovação dos filósofos para se levantar era defesa da liberdade. Este capítulo vai examinar o surgimento e o significado do antiescravismo em suas várias formas. Buscará colocar o antiescravismo "filosófico" em seu contexto e indicar os caminhos pelos quais os filósofos e economistas políticos buscaram responder a um impulso antiescravista que não foi por eles criado.
controle da terra e não da mão-de-obra. Indivíduos escravos, quando disponíveis, eram comprados para trabalhar nas terras reservadas ao próprio senhor ou para operar o moinho; mas estes escravos ou seus filhos acabavam por adquirir o síatus de ho-^ mens livres. Nos séculos XIV e XV, o impacto devastador da Peste Negra, a disseminação das revoltas camponesas e o crescimento do comércio de bens de primeira necessidade e de luxo estimularam os senhores de servos de muitas áreas do noroeste da Europa a trocar pelo arrendamento a prestação de trabalho pelos servos. O fortalecimento das relações económicas de propriedade criou o contexto para a luta de classes contra todo tipo de servidão.2 A resistência popular à servidão refletiu não só a ansiedade de evitar se tornar escravo, mas também o medo do poder desmedido conferido aos senhores de escravos em suas relações com a gente livre. Este antiescravismo "egoísta" podia odiar tanto o escravo quanto seu dono como ameaças à independência dos livres. Os de origem escrava podiam ser usados como guardas ou capangas. Onde a servidão estava em declínio, a escravidão tornou-se ao mesmo tempo mais valiosa para os senhores e mais vulnerável. Não desapareceu nem da Europa oriental nem da ocidental, embora no final tenha trocado de nome. "Servus", antigo termo para escravo, subiu na escala de estima social e transformou-se em "servo". O termo "slave" (escravo) disseminou-se na Europa ocidental, refletindo a origem "eslava" de muitos escravos europeus dos séculos XIV e XV* A privatização da riqueza e do poder na sociedade do fim do período feudal e do início da era moderna ofereceu novo espaço à escravidão total, mas também estimulou a oposição do povo. Embora alguma escravidão tenha sobrevivido na Europa ocidental, especialmente na Itália e na Península Ibérica, era muito mais comum no leste, embora lá também tenha diminuído gradativamente quando a servidão consolidou-se. A insegurança física e económica relativamente maior da vida nas terras pantanosas orientais ajudou a criar condições propícias à escravidão e a encorajar a venda de si mesmo daqueles em situação particularmente vulnerável. No leste havia abundância de mão-de-obra, tornando vantajoso o controle desta; no ocidente a escassez relativa da terra permitia o domínio dos senhores quando podiam controlar o acesso à terra sem necessidade de servidão pessoal estrita.3 Nas lutas de classes do norte e do oeste da Europa, as cidades tornaram-se pontos de apoio para a resistência ou fuga às formas mais duras de servidão. As comunas medievais gostavam de proclamar que o aar livre" da cidade ou vila era incompatí-
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E paradoxal que o surgimento da escravidão colonial não tenha alterado o consenso popular, nos dois lados do Atlântico, de que a condição de escravo era odiosa e que a posse de escravos ameaçava a liberdade e a condição dos nascidos livres. O antiescravismo popular era mais que aversão a tornar-se escravo; envolvia a noção de que a posse e o comércio de escravos não deveriam ser permitidos em determinado território. Enquanto elemento da cultura popular da Europa do início da era moderna, deve ser considerado aqui, já que serviu de trampolim para os apelos abolicionistas posteriores. Embora as técnicas de agitação abolicionista fossem inovadoras, o sentimento antiescravista que canalizaram era tradicional e espontâneo. As raízes do abolicionismo primitivo remontavam sem dúvida à Idade Média. A escravidão era uma força marginal mas não insignificante na Europa feudal, e os senhores viam os escravos, quando conseguiam mante-los, quer como acessório quer como alternativa à servidão. O fornecimento de novos escravos minguou quando as fronteiras da cristandade se estabilizaram, já que a escravização fora promovida pelos choques entre culturas radicalmente diferentes. No sul e no leste da Europa, em especial na Península Ibérica, o padrão de guerra permaneceu propício à escravização e havia algum fôlego para o uso de escravos na agricultura. No norte e no oeste da Europa a consolidação da servidão associou-se à diminuição da escravidão total: as técnicas agrícolas mistas com uso extensivo do arado pesado não davam vantagens produtivas ao cultivo por turmas de escravos e encorajavam os senhores a concentrar-se no
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"Vários dicionários conferem também à palavra portuguesa "escravo" a mesma etimologia, por meio do latim idavn (eslavo). (N. da T.)
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vel com a servidão. Tbulouse, em 1226, e Pamiers, em 1228, adotaram estatutos que as transformaram em refúgios onde os escravos eram automaticamente libertados; os reis da França preferiram encorajar este princípio. O affranchisement toulousain buscava minar o poder dos senhores locais e aumentar a população e os recursos da cidade. Soberanos que exerciam o poder da emancipação transformavam os libertos em súditos perfeitos, livres de obrigações incomodas. Em algumas vilas e cidades a proteção da liberdade civil levou à exclusão em vez da alforria dos escravos. Os cantões da Suíça também estabeleceram proibições à entrada daqueles de condição servil. Os cidadãos do norte da Itália não impediram os ricos de comprar escravos domésticos, mas Veneza excluiu os escravos da frota municipal e da fabricação de tecidos finos. As guildas e arti da Europa do fim da Idade Média garantiam um princípio de autonomia e dignidade ocupacional que era inimigo da escravidão. As municipalidades e os monarcas podiam ambos ser persuadidos de que a posse de escravos era uma instituição que minava a integridade da ordem social ao remover uma categoria especial do alcance da lei. Quanto às autoridades soberanas, os poderes do proprietário de escravos eram, em potencial, um limite ao seu próprio poder. Na maior parte da Europa ocidental, tanto as leis municipais quanto os decretos reais vieram a estabelecer uma suposta liberdade e a oferecer a seus cidadãos e súditos o abrandamento da servidão pessoal. Mas também toleravam uma esfera privada de poder e riqueza na qual se mantinha a escravidão absoluta. Veneza possuía colónias agrícolas no Mediterrâneo e permitia a posse de escravos tanto nelas quanto em casa. Apesar da sobrevivência da escravidão doméstica, a Itália renascentista produziu um ideal de virtude cívica incompatível com a servidão generalizada. Maquiavel teve pouco a dizer sobre a escravidão, mas argumentou que uma república saudável precisava de uma quantidade considerável de cidadãos livres, e seria corrompida pela pretensão dos senhores ou pela nobreza ociosa. E ressaltou que, mesmo em um reino não fundamentado na extensa liberdade civil, ainda cabia ao monarca garantir a segurança pessoal de seus súditos, como fizera o rei da França. Por outro lado, pequenos bolsões de escravidão e servidão sob contrato de estrangeiros eram aceitáveis para Maquiavel e para o patriotismo civil italiano. As atividades de Veneza, Génova e Ragusa no comércio de escravos despertaram controvérsias, mas, ainda assim, vingaram. Em contraste, as municipalidades da França e do norte da Europa algumas vezes tiveram sucesso na eliminação completa dos extremos de servidão pessoal dentro de suas fronteiras. As lutas de hussitas, luteranos e anabatistas na Alemanha e na Europa central divulgaram uma doutrina de liberdade e igualdade cristãs com fortes tonalidades seculares; a hostilidade à escravidão provavelmente era mais intensa no campo do que nas cidades, já que lá era menos limitada em seus efeitos e
que a posse de escravos estava, de qualquer forma, vinculada ao luxo e à civilização. Não houve uma "abolição" no final da Idade Média ou no início da era moderna, mas sim a crença popular generalizada de que aos ricos e poderosos não deveria ser permitido dispor à vontade do corpo de pessoas do povo. O funcionamento cotidiano de uma formação social na qual o poder económico e o trabalho não livre assumiam novas formas renovava e realimentava continuamente a repulsa à servidão.4 As leis medievais não visavam ao sistema ou à coerência da legislação moderna nem eram amplamente obedecidas, e assim muitas vezes a escravidão sobreviveu nos interstícios da formação social. Mas na época em que Países Baixos, Inglaterra e França estabeleciam colónias escravistas no Novo Mundo, na prática a instituição já tinha desaparecido da metrópole. Até na Espanha e em Portugal, onde a escravidão persistiu, sua importância declinava, embora escravos africanos tenham sido introduzidos nas Ilhas Canárias e na Madeira. Os monarcas de Aragão e Castela haviam adotado um código de escravos, elaborado mas suave, como parte das comemoradas Siete Partidas de Alfonso X, o Sábio. Este código concedia muitos direitos aos escravos, inclusive o de comprar a alforria e, em caso de abuso, de exigir a venda a outro senhor; imitava o de Justmiano, mas também deve ser visto como uma resposta ibérica às emancipações municipais e reais de outras partes da Europa ocidental, embora buscasse regulamentar em vez de eliminar a servidão. Durante o primeiro meio século da colonização espanhola do Novo Mundo, esta tradição protetora sofreu nova mudança de rumo quando o declínio catastrófico da população indígena e a falta de confiança real nos conquistadores levou, na década de 1540, à promulgação de uma lei que proibia a escravidão de índios. Este abolicionismo real seletivo na verdade preparou o caminho para importações maiores de escravos africanos, considerados mais capazes de suportar os rigores do cativeiro. Enquanto Bartolomé de Ias Casas denunciava a escravização de índios, dois outros religiosos do século XVI na América espanhola, Tomás de Mercado e Alonso de Sandoval, atacavam os excessos do comércio negreiro. Mas mesmo estes críticos não atacavam o princípio e a instituição da própria escravidão; seus protestos ajudaram a fortalecer a causa da regulamentação. A Igreja, assim como o Estado, acreditava que o senhor de escravos precisava de tutelagem; proprietários de escravos da Nova Espanha podiam ser denunciados à Inquisição por maltratarem seus escravos, e houve alguns casos assim. Os códigos escravistas das potências católicas deram certa proteção a alguns escravos domésticos ou urbanos, mas os grandes empreendimentos operados por escravos no campo iriam se desenvolver fora do alcance da vigilância secular ou religiosa, e ali regulamentos benéficos para os escravos eram letra morta.*
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Na Inglaterra e na França a escravidão havia definhado sem sequer tornar-se ilegal, como Thomas Smith ressaltaria em seu De Rzpublka Anglorum (1565). Depois de esboçar a distinção entre escravos absolutos e servos vinculados à propriedade das terras, ele declara: "Nem de um tipo nem de outro temos nenhum na Inglaterra. E do primeiro nunca conheci nenhum no reino em minha vida; do segundo há tão poucos, que nem vale a pena falar. Mas nossa lei os reconhece em ambos os tipos." A explicação de Smith para esta evolução indica tanto a religião quanto os métodos alternativos de garantir a força de trabalho: "Penso que na França e na Inglaterra a mudança da religião para um tipo mais gentil, humano e igualitário [...] fez com que este velho tipo de servidão e escravidão fosse levado a esta moderação [...] e pouco a pouco se extinguiu ao encontrar meios mais civis e gentis e mais igualitários de fazer o que no tempo do gentio (paganismo) [isto é, na Antiguidade pagã] fez a servitude ou o cativeiro."6 E difícil acreditar que os poderosos fossem por natureza mais gentis e humanos na Inglaterra e na França do que em outras partes da cristandade; no caso da Inglaterra, o feroz Estatuto dos Trabalhadores de 1349-51 certamente sugere o contrário. Portanto, é a posse de outros "meios" para o mesmo fim (presumivelmente, o controle da mão-de-obra) que deve suportar o maior peso da explicação para o desaparecimento da servidão e da escravidão. A revolta popular, não mencionada por Smith, também ajudou a determinar a escolha dos meios, ainda que, como na revolta camponesa inglesa de 1381, ela fosse derrotada ou anulada. Alguma combinação de poder do mercado e poder do Estado poderia entregar trabalhadores sem terra nas mãos de senhores de terras ou seus arrendatários sem necessidade do estorvo da servidão direta. A servidão e os impostos fixos uniam os explorados; o mercado não poderia dividi-los. A pressão popular não provocou diretamente a abolição, mas encorajou as autoridades governantes a se apresentar como fiadoras da liberdade pessoal elementar. Semelhante a uma muralha entre a ordem feudal e a ameaça de revolta camponesa ou a oposição urbana, o aparato repressivo centralizado dos regimes absolutistas tornaram a servidão redundante. A construção do absolutismo não exigiu a intensificação da servidão pessoal nem extinguiu os privilégios particularistas. Os que propunham o poder monárquico frequentemente desconfiavam da privatização espontânea das relações sociais quando surgiram formas de acúmulo de capital mercantil e agrário nas formações sociais da Europa ocidental. Eles elaboraram um modelo de realeza que deixava pouco espaço para a escravidão na metrópole. Insistiam que o poder de custódia do soberano devia estender-se por igual sobre todos os súditos.
Jean Bodin, um dos primeiros expoentes da nova teoria de soberania, também produziu a que foi talvez a primeira discussão crítica da escravidão em Lês Stx Livres de Ia Republique (Os seis livros da república) (1576). Ele ressaltou que, embora todos os filósofos justificassem a escravidão, os advogados praticantes eram diferentes: "Os advogados, que medem a lei não pelos discursos ou decretos dos filósofos, mas segundo o bom senso e a capacidade do povo, sustentam que a servidão é diretamente contrária à natureza." As observações de Bodin sobre este tópico foram diretamente inspiradas pela tradição municipal francess do affranchisement. Ele assinalou a sabedoria dos reis franceses quando baniram as variedades mais duras de servidão e insistiu que, em vista das crueldades e perigos a que a escravidão poderia dar vida, seria "muito pernicioso e perigoso" permitir sequer que escravos entrassem no país. Em uma época em que a França não conseguira estabelecer colónias no Novo Mundo, Bodin atacou a escravidão praticada por Espanha e Portugal no Novo Mundo, mas não mencionou o uso de escravos nas galés francesas.7 A condição de escravo formalizara e acomodara anteriormente a presença de estrangeiros ou de pessoas que não tinham nenhum direito de berço e que eram inteiramente absorvidas pela casa de seu proprietário. A recusa de admitir esta condição assinalou o nascimento de uma nova consciência civil que não combinava com a escravidão. O Parlamento inglês foi convencido a aceitar a escravidão como uma punição por mendicância em 1547, mas abandonou a lei sob protesto popular. Um famoso julgamento inglês de 1567 impediu que um viajante trouxesse um servo da Rússia, com base em que "o ar da Inglaterra era livre demais para um escravo respirar". O culto francês da liberdade civil não era menos vigoroso. Em 1571 o Parlement de Guyenne descreveu a França como "mãe da liberdade" e declarou que a escravidão não poderia ser ali tolerada. Quando um capitão holandês trouxe uma carga de escravos africanos para Middleberg em 1596, a municipalidade obrigou-o a libertá-los. O Grande Conselho de Mechlin declarou, no início do século XVII, que todos os escravos levados a Flandres pelos espanhóis seriam libertados assim que chegassem.8 Os que primeiro propuseram a colonização americana, como Walter Raleigh ou o holandês Usselinx, insistiram que se baseasse na imigração livre. A revolta holandesa, a convocação do Estates General francês em 1618 e a Guerra Civil inglesa deram azo para a reafirmação das liberdades metropolitanas. Uma condenação da Câmara Estrelada inglesa em 1640 citou a decisão judicial contra a escravidão de 1567, e constitui seu único registro escrito a sobreviver até os nossos dias. Um membro do Parlamento inglês, ao atacar a venda de realistas cativos como servos
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contratados em 1659, declarou com indignação: "Somos o povo mais livre do mundo." Em semelhante estado de espírito, o bispo de Grenoble descreveu a França em 1641 como "a monarquia mais livre do mundo", enquanto Massilon declarava que os monarcas deviam lembrar-se: "Não governais sobre escravos, governais uma nação livre e inflamada, tão ciosa de sua liberdade quanto de sua lealdade." A celebração da liberdade inglesa e francesa tinha um elemento de mitificação, mas pelo menos tais mitos atendiam ao antiescravismo popular.9 A escravidão do Novo Mundo desenvolveu ferocidade, escala e focos novos. Como observamos na Introdução, era imensamente económica em seu caráter, e logo recaiu exclusivamente sobre os de ascendência africana. A escravidão dasplantations da América, embora mal constestada por outros que não fossem os próprios escravos, despencou sobre a vida de milhões de cativos com um implacável frenesi comercial. O Novo Mundo não reproduziu simplesmente as características anteriores da escravidão na Europa, no Mediterrâneo ou na África. Provocou o que poderia ser chamado de degradação da escravidão, ao violar em escala maciça até as noções tradicionais do que significava a escravidão. Na maioria das formações sociais escravistas anteriores à escravidão fora ao mesmo tempo uma instituição marginal e variada: os escravos não haviam sido concentrados totalmente nas ocupações mais árduas e desprezíveis. Mas quando os sistemas escravistas se estabeleceram no Novo Mundo, tornou-se impossível conceber uma escravidão "honrada"; não havia administradores nem soldados escravos, e muito poucos reconheciam as concubinas escravas. Sob o ímpeto da explosão atlântica, a escravização intensificou-se e acumulou-se. A escravidão tinha uma nova permanência. Em muitas formações sociais a escravidão fora um meio para que indivíduos estrangeiros se incorporassem à sociedade que os recebia, com a perspectiva de que eles ou seus filhos acabariam por sair da escravidão. A grande maioria dos escravos afro-americanos estava destinada a morrer na escravidão, assim como seus filhos; a perspectiva era especialmente ruim para os escravos no campo e os escravos nas colónias inglesas. Apesar de seu moralismo intenso e radical, os protagonistas da revolta holandesa e da Commonwealth inglesa aceitaram e promoveram a escravidão negra nas Américas. No período 1630-1750 o Império Britânico testemunhou uma repulsa "egoísta" cada vez mais clamorosa, e até mesmo obsessiva, à escravidão, ao lado de uma exploração quase incontestada do cativeiro de africanos. Assim, John Locke, que possuía ações da Real Companhia Africana, justificava a escravidão como um meio de salvar os africanos de um destino ainda pior. Mas quando escreveu sobre seu próprio país em Two Treatises of Government, ele declarou sem rodeios: "A escravidão é um Estado do Homem tão vil e miserável, e tão diretamente oposto ao Tem-
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peramento Generoso e ao Espírito de Nossa Nação, que mal se pode conceber que um Inglêsy muito menos um Cavalheiro, possa defendê-la."10 Locke aqui atacava a filosofia política patriarcal de Filmer, discípulo de Bodin e defensor da autoridade monárquica; não tinha a intenção de desafiar a adequação da escravidão de plebeus africanos. O próprio processo pelo qual se criaram as novas colónias escravistas refletia a repulsa popular pela escravidão e a facilidade com que podia ser mantida dentro de limites etnocêntricos. Trabalhadores contratados ingleses e irlandeses ouengagés franceses não poderiam ser maltratados como um escravo por causa da solidariedade que despertariam entre os colonos livres. Como os africanos cativos eram estrangeiros, pagãos e negros, os colonos livres estavam menos inclinados a identificar-se com eles. As identidades seculares e civis tendiam a ser mais exclusivas e locais do que as ideologias religiosas que substituíram. Mas eram também mais intolerantes às exigências do senhor de escravos, que poderia com facilidade dominar outros cidadãos. A maioria dos colonos ingleses e franceses na América tropical e subtropical lá chegaram como trabalhadores não-livres. Mas seus contratos de servos ouengagés lhes ofereciam alguma proteção; com frequência os senhores foram levados à justiça por seus servos ou por amigos de seus servos, algo que dificilmente aconteceria no caso dos escravos. O servo inglês ou francês tinha direitos, como súdito, que não poderiam ser reivindicados pelo africano cativo. Servos ou engagés também estavam em melhor posição para fugir; suas chances de não serem detectados em áreas de povoação colonial com certeza eram bem maiores que as dos negros. Os europeus dessa época não tinham os conceitos raciais de uma época colonial posterior, mas preferiam ver os negros no trabalho mortal dzsplanfaíions do que executá-lo eles mesmos.11 No final do século XVII alguns viajantes às novas colónias do Caribe recordaram seu choque frente ao tratamento desumano dos negros, tais como George Fox, o quacre, ou Aphra Behn, a escritora. Mas seus comentários não constituíram oposição consequente à própria ideia de escravidão. Fox instou os senhores a tratarem seus escravos com cuidado e consideração, caso se importassem com suas almas imortais; sugeriu que trinta anos de trabalho levassem à manumissão. A novela Oroonoko (1688), de Aphra Behn, condenava especificamente a escravização de um príncipe africano que, como Behn deixou bem claro, estava à parte de sua raça; ele instiga uma revolta cujo fracasso, sugere-se, derivou da natureza subserviente daqueles que ele tentava sublevar. Tanto Fox quanto Behn ficaram ultrajados com a desumanidade dasplantations sem ainda ver além da escravidão, mistura que ecoou em algumas cartas e diários particulares, em atos isolados de caridade e na precária tolerância às vezes concedida a um pequeno número de negros e negras libertos. Conforme de-
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senvolveu-se um núcleo de escravos responsáveis, de escravos crioulos e de convertidos ao cristianismo, a definição racial de escravidão tornou-se mais pronunciada; mas este amadurecimento das sociedades escravistas caminhou de mãos dadas com a consolidação dos interesses materiais dos senhores.12 Na Introdução, foi observado que a escravidão racial do Novo Mundo impôs um dilema especialmente agudo às pessoas livres de cor. Os primeiros desafios à escravidão e ao tráfico negreiro vindos daí foram oriundos do Império Português; eram ao mesmo tempo mais persistentes e mais eficazes do que o questiona mento anterior e isolado dos padres espanhóis. Nos anos 1684-6, o Santo Ofício recebeu várias petições que atacavam a brutalidade do comércio de escravos e protestavam contra a "escravização permanente" que caía sobre os descendentes dos africanos levados para o Novo Mundo, até mesmo daqueles que eram cristãos e "brancos". O mulato brasileiro Lourenço da Silva de Mendonça redigiu e apresentou vários destes protestos; ele era o procurador leigo de uma das irmandades religiosas permitidas a negros e mulatos, livres e escravizados, do Brasil e de Lisboa. Tais protestos receberam o apoio da Ordem dos Capuchinhos, ativos na busca de conversões no Congo, que demonstrou que poucos africanos vítimas do comércio negreiro podiam ser considerados como escravizados de forma justa. Em março de 1686 o Santo Ofício aprovou a condenação da forma pela qual era conduzido o comércio de escravos em uma resolução que parecia abrangente. Não só não havia sanção, tal como a excomunhão, prevista para os mercadores de escravos, como a própria resolução tornou-se letra morta e não foi novamente mencionada por mais de um século. O engavetamento da resolução é explicado em uma minuta de um secretário de Estado do Vaticano, que ressaltou que o comércio de escravos era uma fonte de receita e um interesse imperial vital para as Mui Católicas Majestades os Reis de Espanha e Portugal.I3 O apoio momentâneo do Vaticano aos protestos de Lourenço de Mendonça podem ter ajudado a inspirar a promulgação do Code Noir francês em 1688. A regulamentação era a solução preferida pelo absolutismo aos excessos do crescimento dos novos sistemas escravistas. Sob os termos do código de Luís XIV, as pessoas livres de cor tinham de partilhar os mesmos direitos dos outros colonos. Tanto esta cláusula como outras favoráveis aos negros seriam desrespeitadas com frequência, às vezes com a conivência ativa de administradores reais, à medida que se acelerou o ímpeto do desenvolvimento fasplantations. Se os horrores do comércio de escravos se multiplicavam no final do século XVLT e início do XVIII, o mesmo acontecia com o lucro dos que se envolviam com ele. Isto certamente ajuda a explicar por que os poucos e espaçados protestos iniciais
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foram desprezados e ignorados. Mas também é preciso terem mente que os protestos eram limitados pelos próprios termos em que foram expressos. Em vez de rejeitar a raiz e os ramos da escravidão, focalizavam preocupações pastorais — o tratamento dos escravos, em especial se convertidos reais ou potenciais ao cristianismo—ou os perigos morais de ser um dono de escravos. Até mesmo a crítica mais veemente da escravidão na época tendia a comprometer seus pontos de vista e a enredar-se no seguinte dilema: ou aceitavam a ordem estabelecida, e neste caso defendiam uma melhora pastoral das condições de vida do escravo em vez da derrubada da escravidão ou rejeitavam o rei e a Igreja em nome de uma esfera privada, e neste caso a moralidade da posse de escravos tornava-se um caso de consciência individual. O antiescravismo radical exigia a existência de um espaço público secular e o preparo para argumentar que até um senhor de escravos completamente piedoso e humano estaria cometendo uma injustiça. Na Pensilvânia, os quacres tinham responsabilidades seculares que obrigaram quatro Friends* de língua holandesa de Germantown a encaminhar uma censura severa a uma reunião na Pensilvânia em 1688. A petição de Germantown é, entre os antigos protestos, o que chega mais perto de um ataque radical à escravidão, embora mesmo aqui a questão seja vista, provavelmente, como caso de consciência pessoal de um pequeno grupo de correligionários: Diz o ditado que devemos fazer a todos os homens o que faríamos a nós mesmos, sem distinção de nascença, ascendência ou cor. E aqueles que roubam ou furtam homens, e aqueles que os compram ou adquirem, não são eles todos semelhantes? Aqui há liberdade de consciência, o que é certo e razoável; aqui deveria haver da mesma maneira liberdade de corpos, exceto dos malfeitores, o que é outro caso. Mas trazer homens para cá e roubá-los ou vendê-los contra sua vontade, somos contrários. Na Europa há muitos oprimidos por motivo de consciência; e aqui há oprimidos que são de cor preta [...] Isso depõe contra todos aqueles países da Europa, onde se ouve dizer que vós, quacres, aqui tratam os homens como lá se trata o gado [...] Caso esses escravos (que dizem ser homens tão perversos e estúpidos) pudessem se unir — lutar por sua liberdade -— e tratar seus senhores e senhoras como eles antes os trataram; tomariam nas mãos a espada esses senhores c senhoras para guerrear contra esses pobres escravos (...) não têm esses negros tanto direito de lutar por sua liberdade, como tendes de mante-los como escravos?14
•Membros da SSocicty of Friends, Sociedade de Amigos, doutrina cristã criada em 16ÍO por George Fox; o termo quaker (qua never shall be slavef ("Dominai, Britannia, dominai as ondas/ Bretões jamais, jamais, jamais serão escravos.") Em outro registro, os acordes emocionantes dos magníficos oratórios de
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Handel encorajaram um tipo de religiosidade secular que combinava autoconfiança com responsabilidade. O novo senso de um destino secular nacional recebeu sua expressão militante na ideologia do "patriotismo", que gabava as glórias da Grã-Bretanha, sua constituição e suas liberdades. A vocação marítima e imperial da Grã-Bretanha era o tema patriótico predileto; recebeu expressão notável na oratória parlamentar de Pitt, o Velho, nas décadas de 1730 e 1740, que levou à guerra com a Espanha e a França e denunciou a corrupção confortável da "robinocracia" de Walpole. O engrandecimento imperial podia serviste como causa popular porque prometia facilitar a emigração, encorajar o desenvolvimento colonial, promover a exportação de manufàturas e impulsionar o fornecimento de produtos dasplanlalians. O embaixador da França em Londres, no final da década de 1730, ficou impressionado com o feto de que artesãos e trabalhadores humildes, assim como pares do reino, uniram-se no grito pela guerra contra a Espanha para garantir e ampliar o império britânico na América. E ficou alarmado com a capacidade dos patriotas de criar discussões, distorcer questões complexas e manipular o preconceito popular. A * War ofjenkitf s Ear" foi o primeiro fruto deste novo tipo de agitação patriótica.7 O patriotismo, arraigado como estava nas pretensões e na identidade do "inglês nascido livre", era uma ideologia que apelava para a ala radical e expansiva da oligarquia, e ajudou a fornecer-lhe seguidores. Alegava representar interesses e aspirações populares. Mas a oposição dos tories e membros do "partido agrário" deram sua própria contribuição à invenção do patriotismo e da ideologia social do "inglês nascido livre". O líder tory Bolingbroke elaborara uma teoria de oposição patriótica que se tornou corrente nas décadas de 1730 e 1740. Para quem por algum tempo foi um legitimista, o patriotismo de Bolingbroke era um eco curioso do republicanismo renascentista de Maquíavel: atacava a corrupção dos governos hanoverianos, como uma ameaça à liberdade inglesa e à virtude cívica. Bolingbroke e os tories articularam a desconfiança âogentkman do campo para com Westmínster e o caro envolvimento nas guerras europeias. Mas os próprios tories representaram um papel na consolidação da orientação imperial e marítima da política britânica e do Estado britânico; patrocinaram a estratégia de "mar aberto" durante a Guerra da Sucessão Espanhola, vista como alternativa mais barata e lucrativa ao envolvimento militar na Europa, e também tiveram sua responsabilidade no Tratado de Utrecht A grande maioria dos tories não só aceitava os hanoverianos como desejava sublinhar sua dedicação à constituição e a uma liberdade responsável e ordeira. Assim, as virtudes peculiares da constituição equilibrada da Grã-Bretanha seriam resumidas nas seguintes palavras de um jornal de oposição de tendência íory, The Freeholder Journal^ em 1769:
A constituição de nosso governo inglês (o melhor do mundo) não é uma tirania arbitrária, como a do Grão-senhor da Turquia ou a do rei francês, cujas vontades (ou melhor, desejos) dispõem das vidas e fortunas de seus infelizes súditos; nem uma oligarquia onde o(s) grande(s) (como peixes no oceano) caça(m) e vive(m) devorando os menores à vontade; nem, ainda, uma democracia ou Estado popular, muito menos uma anarquia, onde todos são, confusamente, camaradas iguais. Mas, sim, uma excelente monarquia mista ou qualificada, onde o Rei detém grandes prerrogativas, suficientes para sustentar a Majestade; c limitado apenas pelo poder de causar mal a si mesmo ou a seu povo [(•--)] a nobreza adornada com privilégios para ser uma proteção para a Majestade e uma sombra refrescante para seus inferiores, e a gente comum também, em pessoa e em propriedade tão bem guardada pela cerca da lei, que os torna homens livres, e não escravos.'
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Assim, até a tendência mais conservadora da ideologia dominante inclinava-se, como a frase que aqui conclui, a adular a gente comum com o elogio da liberdade. Enquanto os ixhigs e radicais patriotas defendiam as pretensões do povo, os whigs e tories mais conservadores gostavam de ressaltar que a liberdade social era perfeitamente compatível com a subordinaçãopo//íàr? au X Siècles dês Lumtères, ftris, 1971, pp. 151-60. 16. Antoine-Nicolas de Condorcet, "Reflexions sur 1'esclavage dês nègres, 1781", em A. Condorcet O'Connor e M. F. Arago, Clewres de Condorcet, Paris, 1847, VII, pp. 61140 (com adendo de Condorcet, pp. 137-40). 17. Serge Daget, "A Model of the French Abolitionist Movement", em Bolte Drescher, Afíii-S/avery, Religion and Reform, pp. 64-79, especialmente pp. 66-7. 18. Eloise Ellery, Brissotde Waruille, Boston, 1915, pp. 182-215; a qualificação de Brissot da propriedade acumulada como roubo é estudada em Rtcherches Philosophiqttes sur lê DroitdePropriétéctsurle W(1780). Rira um esboço intelectual c biográfico, ver Norman Hampson, WillandCircumstance, Londres, 1983, pp. 94-106,171-92; o anticapitaíismo deste porta-voz burguês é observado nas pp. 186-7. 19. Davis, The Problem ofStavery in the Age ofRevolution, p. 97. Sobre o alcance limitado das atividades dos Amis dês Noirs depois deste entusiasmo inicial, ver Daniel P Resnick, "The Société dês Amis dês Noirs and the Abolition of Slavery", French Hisíorical Studies, vol. 7, n°. 4t outono de 1972, pp. 529-43. 20. Gabriel Debien, Lês Cólons de Saint-Dominguc et Ia Révoíutio», Essai sur lê Club Massiae, Paris, 1953, pp. 60-7. Gouy d'Arsy, às vezes escrito d'Arcy, era homem de riqueza considerável, com propriedades em São Domingos no valor de 3 milhões de livres segundo Chaussinand-Nogaret (French Nobility, pp. 56-7). No entanto, o duque d'Orléans tinha
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ROBIN BLACKBURN uma renda anual de 3 milhões de livres. Sua contribuição para a desestabilização do regime em 1787-90 foi enorme, e o Pilais Royal tornou-se o principal centro de agitação revolucionária em ftris. Embora seja difícil provar o papel dos maçons na promoção da agitação revolutionária nas colónias, este parece ter sido considerável. Sobre seu papel
em termos mais gerais, ver o clássico da contra-revolução e da "teoria conspiratória da História", irregular, mas não totalmente incorreto, John Robison, Proofs ofa Conspiracy againsí Ali the Religions and Governments ofEurope, Londres e Nova York, 1798. 21. Citado em C. L. R. James, The Black Jacobins: Toussaint LOuverture and the San Domingo Revolution, Londres, 1980 (ed. revista), p. 60. 22. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, pp. 67-78. 23. Garrett, The French Colonial Question, p. 35. Sobre cenas semelhantes em Guadalupe, ver Anne Pérotin-Dumon, Etre Patriotasousles Tropiques, Basse Terre, 1985, pp. 107-36. 24. Geggus, Slavery, WarandRtvolution, pp. 34-5; J. Santoyant, La Colonisation Française penãantla Révolution, 1789-1799, Paris 1930, 2 vols., II, p. 425; Urnery, LaRévolution Française â Ia Martinique, pp. 21-42. 25. Ottobah Cugoano, "Reflexions sur Ia traite et Fesclavage" (1789), reeditado em EDHIS (Editions d'Histoire Social), La Révolution Française et VAbolition de l'Esclavage, Paris, 1968, 12 vols., X. 26. Michael L. Kcnnedy, The Jacobin Clubs in the French Revolution: The First Years, Princeton, 1982, p. 202. 27. Garrett, The French Colonial Question, pp. 35-48; Debien, Lês Cólons de Saini-Domingue et Ia Révolution, pp. 187-9. 28. Esta afirmativa sarcástica saiu da pena do patriota Loustalot em Lês Révolutions de Paris e mostra que não eram só os reacionários coloniais que davam as cartas no Clube Massiac; cf Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, p. 84. Outro escritor que se envolveu com este tema, embora de maneira menos agressiva, foi Choderlos Laclos (p. 135). 29. Gairett, The French Colonial Question, p. 51. 30. Garrett, The French Colonial Question, p. 53. 31. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, pp. 80-1. 32. Georges Lefebvre, The French Revolution, Londres, 1962, p. 145. Adiante Lefebvre observa: "As afirmações uníversalistas da Declaração de Direitos indicavam que os homens de cor — mulatos e negros livres — iriam reivindicar seus benefícios" (p. 172). Como a necessidade de ter propriedades para conquistar o direito de voto, com exigências ainda mais duras para se apresentar como candidato a representante, já tinha sido aceita, seria mais fácil ignorar os direitos civis dos escravos. Na verdade, cerca de três milhões de homens franceses e todas as mulheres estavam privados do direito de voto (cf. Soboul, The French Revolution, 1787-1799, p. 180). Os partidários dos Amis dês Noirs tendiam a opor-se às exigências de propriedade, mas havia exceçoes (por exemplo, o abade Sièves, que inventou o conceito de "cidadania ativa"), assim como havia democratas que não simpatizavam com os Amis (por exemplo, Loustalot).
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33. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, pp. 67-86. 34. James, The Black Jacobins, pp. 73^4-. Algumas das lojas maçónicas de São Domingos, assim como na Filadélfia na década de 1780, tinham membros de várias raças; tanto brancos quanto gens de couleur participaram da revolta de Ogd Ogé opôs-se à sugestão de outro conspirador, Chavannes, de convidar escravos a ajudar. Ver Jean-Philippe GarrouCoulon, Rapporí sur lês troubles de Saint Domingue, Paris, 1797, vol. II, pp. 44-73. 35. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, pp. 210-34; Saintoyant, La Colonisation Française pendam Ia Révolution, II, pp. 22-32. 36. Kennedy, TheJacobin Clubs in the French Révolution, p. 82. 37. Citado em Garrett, The French Colonial Question, p. 82. 38. Debien, Lês Cólons de Saint-Domingue et Ia Révolution, pp. 262-90; Garrett, The French Colonial Question, pp. 77-97. 39. James, The Black Jacobins, p. 75. Kennedy observa: "A escravidão era um caso económico; o direito de voto dos mulatos, basicamente um caso humanitário. Os jacobinos das províncias podiam ceder a suas inclinações humanitárias e apoiar esta causa com pouco perigo aparente a seus bolsos ou aos bolsos de seus compatrícios" (The Jacobin Clubs, p. 205). A contraposição aqui de problemas económicos e humanitários é perfeita demais, já que, como aventado antes, a afirmação da autoridade metropolitana nas colónias também tinha vantagens económicas no tocante aos interesses marítimos. Não só o "humanitarismo" embelezava de forma útil a defesa do exclusif; também prometia garantir-lhe bons aliados, isto é, os próprios mulatos. 40. James, The Black Jacobins, p. 80. 41. James, The Black Jacobins, p. 81. Como o próprio James comenta: "A escravidão [...] corrompera então a burguesia francesa no primeiro surto de sua herança política." Debien dá o seguinte título a esta seção de sua monografia: w Le redressement — Avec Baraave vers lê Rói (16 mai — octobre 1791)" ["A reordenação — com Barnave pelo Rei (16 de maio — outubro de 1791)"]. Ver também Vovelle, La Chute de Ia Monarchie, pp. 163-7. O triunvirato, para aplacar sua consciência ou a de seus partidários, apoiou um decreto que suprimia o resto de escravidão na França poucos dias depois de voltar atrás no caso dos direitos dos mulatos. 42. O relato tradicional aparece cm Fouchard, The Haitian Maroons, pp. 340-41,358. Geggus cita indícios de uma reunião para planejar o levante e admite que uma cerimónia vodu é bem plausível. Especula que o levante pode ter-se beneficiado de uma manobra monarquista que não deu certo, embora curiosamente conclua que, se isto for verdade, "a autonomia da insurreição escrava fica consideravelmente reduzida" (Slavery, Warand Revolution, p. 40). Fouchard também aceita que as tramas monarquistas para estimular a inquietação escrava eram amplas nesta época (p. 98), embora no final os escravos tenham agido por si mesmos. 43. A carta ao governador datada de 4 de setembro é citada em Pierre Pluchon, Tòussaint Louverture, de resclavage aupouvoir, ftris, 1979, p. 26. O relato da morte de Boukman
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é longamente citado em Fouchard, The Haiíian Maroons, pp. 342-3. O relatório oficial francês sobre a revolta estimava que no final de agosto havia 12.000-15.000 envolvidos, Garran-Coulon, Rapportsurks Troubles de Samt-Domingue, H, p. 214. 44.
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ajudara
a promover um "pacto" entre proprietários brancos e mulatos e depois viria a ter papel importante no planejamento da invasão britânica. Nesta época suas opiniões não eram compartilhadas pela maioria dos proprietários àtplantations. 45. James, The Black Jacobins, p. 106. Biassou e Jean François, mas não Toussaint, envolveram-se mais tarde como participantes em um tráfico de escravos bastante ativo, e assim mereceram abundantemente o desprezo de James. Ver David Geggus, "From His Most Catholic Majesty to the Godless Republique: The Volte Fact of Toussaint Louverture and the Ending of Slavery in Saint-Domingue". Reviu Française d'Histoire a"0uíre Mer, n°. 241, 1978, pp. 481-99, 490. 46. Carolyn Fick, "Black Peasants and Soldiers in the Saint-Domingue Revolution", em Fredrick Krantz, HisforyFrom Below, pp. 243-61, nas pp. 245-6. Esta autora conta que a área mantida pelos rebeldes era conhecida pelos negros como Reino de Platons. 47. Kennedy, The Jacobtn Clubs in the French fovolution, p, 208. 48. Sobre São Domingos neste período, ver Robert Stein, Lêger Felicite Sonthonax: Tke Lost «/ ofthe Repuèlic, Madison, 1985, pp. 39-62; Di Telia, La Rebeliân de Esclavos de Haiti, p. 83; e Geggus, Slavery, War and Revolution, pp. 46-67. 49. Citado em Lémery, La Revolution Française à Ia Martinique, pp. 186-7. 50. Pérotin-Dumon, Être Patriote sons lês Trafiques, pp. 161-76. 51. Lémery, La Révolution Française à Ia Martinique, p. 225. À hiz da evidente simpatia do autor pelos proprietários átplantations franceses que colaboraram com os britânicos para salvar a escravidão, é interessante notar que ele se tornou o primciro-ministro das Colónias do governo de Vichy. Sobre o acordo que foi fechado, ver Lémery La Revolution Française à Ia Martinique, p. 226, and Geggus, Slavery, War and Revolution, pp. 395-99. 52. Geggus, Slavery, War and Revolution, p. 100.
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O emancipacionismo revolucionário e o nascimento do Haiti
Que vcut cette hordes d'esclaves De traitres, de Róis conjures? R>ur qui cês ígcobles entraves, Cês fers dês longtemps prepares Français! pournous, ah! queloutragc! Quels transports U doit exciter? Cest nous qu'on ose mediter De rendre à 1'antique csclavage Aux Armes citoyens! formez vos bataillons; marchons, marchons, Qu'un sang impur, abreuve nos síllons.* LaMarseillaise (1792) DessaEnes sorti lan Nord, Vini compté ca U porte, Ca li porte. Li porte fusils, li porte boulets Ouaaga nouvcau!** Canção haitiana (1803-4?)
53. Saintoyaut, La Colonisaiion Française pendam Ia Révoluíion, pp. 121-8. 54. José L. Franco, Historia de Ia Revo/uctón de Haiti, Havana, 1966, pp. 229, 283-4.
*Que desejam estas bordai de escravos/De traidores, de rei» conspiradores f/P»ra quem esses obstáculo» ignóbeis./Esses ferros há muito preparados/Francês! para nós, ah! que ultrajei/Que arrebatamento deve provocar?/ Somos nós que ousamos pensar/Em reduzir à antiga escravidão/As armas, cidadãos! Formai vossos batalhões; marchemos, marchcmos,/Que um sangue impuro inunda nossas senda». **Dessalines vem do Norte/Vinde ver o que ele traz./Elc traz mosquetes, ele traz balas,/São estes os novo» talismãs.
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urante os anos de 1793 e 1794 as Antilhas francesas passaram pela fornalha da guerra e da revolução para emergir com uma ordem social radicalmente nova. O bloqueio britânico logo tornou difíceis e perigosos o comércio e as comunicações normais entre a França e suas possessões caribenhas, mas isto não impediu a conclusão de uma aliança precária, embora essencial, entre a libertação negra no Novo Mundo e a república jacobina no Velho Mundo.
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A situação dos republicanos em São Domingos em meados de 1793 era pengosa. Apenas cerca de 3.500 soldados enviados pela metrópole ainda estavam vivos, e destes muitos estavam doentes e outros prontos a desertar. Os comissários republicanos mantinham domínio precário dos principais centros graças a esta tropa e à sua maior aliada, a recém-batizada Ugan d'Égalité, tropas compostas de «cidadãos de 4 de abril", ou seja, negros e mulatos livres, muitas vezes veteranos da Légion de Saint-Domingue. Mas os espanhóis, com seus comandantes negros, estavam a postos para avançar sobre a fronteira, enquanto bolsôes de forças monarquistas se encontravam em muitas áreas. As autoridades republicanas sofriam ainda a escassez de recursos. Assignatt^ metropolitanos tinham pouca circulação nas Antilhas, com a tradicional preferência colonial por ouro e prata. Os comissários decretaram um imposto sobre a propriedade urbana e rural. Esta medida, muitas vezes implementada pelos recém-nomeados funcionários mulatos ou negros, provocou feroz hostilidade dos proprietários brancos ainda dentro da zona republicana. As ofensivas realizadas contra os rebeld negros mostraram-se pouco decisivas, pois estes últimos cediam territórios mas se reagrupavam em áreas mais remotas. Os comissários haviam tido sucesso ao se livrarem de Desparbès, mas cerca de seis meses depois, com forças reduzidas e a comunicação com a França interrompida, enfrentariam nova crise interna.1 Em maio de 1793 um novo governador, o general Galbaud, chegou a Lê Cap com uma esquadra que escapara dos britânicos, Sonthonax estava ausente da capital do norte na época e Galbaud, que herdara propriedades na colónia, foi intrigado contra ele por colonos brancos que se opunham a seus impostos e à promoção ds&ns de couleur, Galbaud insistiu publicamente que não estava subordinado aos comissários e que eles tinham excedido sua autoridade. Reuniu uma grande partida de produtos de plantation que propôs vender a mercadores norte-americanos para obter suprimentos militares. Sonthonax e Polverel correram para Lê Cap e fizeram uma proclamação que o destituía de seu posto e ordenava-lhe que partis; para a França, acusado de conspirar contra a República. O general Laveaux, que comandava as forças republicanas em Port de Paix, apoiou os comissários, mas Galbaud recusou-se a obedecer à ordem de deportação a ele enviada. No desafio
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aos comissários, recebeu apoio da maior parte da esquadra francesa no porto de Lê Cap, juntamente com a maioria dos milicianos brancos da cidade. Nesta época, Lê Cap tinha um grande número de brancos dissidentes, monarquistas e autonomistas, alguns ali refugiados vindos de áreas em poder de mulatos no oeste, outros esperando transporte para os Estados Unidos e alguns condenados à deportação para a França. Depois de choques com os partidários de Galbaud, os comissários retiraram-se de Lê Cap com unidades da Légion d'Egalité. Os enclaves republicanos no sul estavam muito desgastados pela luta para poder ajudar. No entanto, nos montes próximos de Lê Cap havia bandos rebeldes liderados por homens como Macaya e Pierrot, que haviam permanecido nas proximidades das plantations enquanto resistiam à autoridade de proprietários e administradores. Os comissários decidiram apelar a estes guerrilheiros negros para ajudá-los a retomar o controle de Lê Cap. Os que respondessem ao seu apelo receberiam armas e liberdade: "Declaramos que a vontade da República Francesa, e a de seus delegados, é dará liberdade a todos os guerreiros negros que lutarem pela República sob as ordens do Comissário Civil."2 Vários milhares de combatentes negros responderam a este apelo e caíram sobre Lê Cap em 22 e 23 de junho, expulsando os rebeldes brancos; Galbaud foi convencido a partir, levando consigo para Baítimore muitos milhares de colonos brancos. Boa parte de Lê Cap foi destruída durante a luta; depois, as colunas de Macaya e Pierrot voltaram para o interior, deixando atrás de si as ruínas fumegantes da antes esplêndida capital da província. As forças republicanas recuperaram Lê Cap, mas sua posição em todo o norte foi enfraquecida de maneira crítica pela divisão que surgira em suas fileiras. Os rebeldes negros se propuseram a atacar seus ex-proprietários ou administradores em Lê Cap, como medida de segurança contra sua volta, como forma de adquirir mosquetes e talvez também com a perspectiva do saque; mas depois, nada dispostos a aceitar ordens republicanas, dispersaram-se, levando consigo seus mosquetes. Em julho as forças espanholas avançaram em uma ampla frente no norte, e suas colunas comandadas por negros penetraram profundamente em território francês. O avanço espanhol isolou as guarnições republicanas em Lê Cap e Port de Paix. Pululavam boatos de uma iminente invasão britânica e uma conspiração de municipalidades autonomistas. Polverel voltou a Port au Prince, agora Port Republicam, mas no sul e no oeste o selo da República contava apenas com as forças do mulato general Rigaud. No norte, Laveaux e Sonthonax estavam encurralados em seus enclaves costeiros e tentavam alistar o máximo possível de soldados negros. Apelaram aos generais negros que lutavam ao lado da Espanha para que se unissem a eles, mas sem sucesso.
Com as forças republicanas divididas, Sonthonax era a autoridade suprema no norte. No início de agosto, mandou uma carta à Convenção Nacional afirmando que chegara a hora de proclamar o grande princípio da emancipação. A municipalidade de Lê Cap apresentou ao comissário uma petição em 25 de agosto "em nome dos cultivâteurs de São Domingos", dizendo que a escravidão devia terminar. Em 29 de agosto de 1793 Sonthonax deu o passo fatídico e emitiu um decreto que libertava todos os escravos de sua jurisdição. O decreto foi publicado em idioma crioulo, para que não deixasse de chegar à massa de negros.3 No norte, a ordem escrava já estava muito enfraquecida, mas no noroeste, no sul e no oeste ainda havia centenas de milhares de escravos, talvez mesmo um quarto de milhão. As forças espanholas de ocupação tinham instruções estritas de manter o regime escravocrata. Quando os britânicos ocuparam grandes regiões do centro e do sul nos meses subsequentes, descobriram que as milícias dos proprietários de plantations haviam assegurado a sobrevivência do regime escravista e da produção àzsplantatiôns. Os comandantes espanhóis usavam colunas de soldados negros, mas davam garantia à propriedade escravista. O decreto de Sonthonax, em seguimento ao apelo mais limitado de junho, baseava-se em uma avaliação do alcance de construir um exército republicano com a massa de escravos negros. Revoltas escravas esporádicas foram relatadas em várias regiões no verão de 1793 e isto pode ter encorajado Sonthonax. Mas ele também correu o risco de aíãstar com seu ato os proprietários mulatos, como realmente aconteceu com muitos deles. Polverel, estacionado no sul, estendera no final de julho a promessa de liberdade aos que lutassem com quatro determinados comandantes maroons—Annand, Martial, Formon e Bénnech. Embora os chefes rebeldes tivessem recebido postos republicanos e seus seguidores obtivessem mosquetes e pólvora, esperava-se que ajudassem a manter a disciplina nas plantations^ Rigaud atacou Formon por não cumprir esta ordem. Embora proprietários e administradores continuassem no controle em várias áreas, enfrentavam pressão generalizada de seus trabalhadores em íàvor da semana de cinco dias ou de melhorias mais extensas das condições de vida ou de trabalho. De início Polverel tentou limitar a oferta de emancipação aos possíveis soldados e aos escravos que pertencessem a emigres. Apesar das críticas ao decreto de 29 de agosto de Sonthonax, que em sua opinião não tomara providências adequadas para um regime de trabalho alternativo, decidiu endossá-lo em 21 de setembro. Sua disposição de ceder aos proprietários mulatos provavelmente foi reduzida pelo conhecimento de que muitos deles estavam agora tramando com os inimigos da República. O decreto de emancipação geral permitiu às autoridades republicanas alistar alguns soldados negros e apresentar-se como defensores de um novo regime deplantation que atendesse a várias das exigências mais comuns dos contingentes escravos. A política an-
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tenor de só oferecer a liberdade individualmente a determinados negros forçaria recrutas em potencial a abandonar familiares e camaradas, coisa que muitos não se dispunham a fazer E enquanto a escravidão continuasse legal, os negros recém-libertados ainda se sentiriam inseguros. Sob a pressão da invasão espanhola, Sonthonax vira que era essencial ir além e fazer um apelo coletivo aos negros escravizados. O decreto de Sonthonax, logo após a medida mais limitada de junho, aumentou o alcance do recrutamento de negros, permitiu aos republicanos apelar à boa vontade das massas negras e conferiu uma vantagem moral à causa republicana.4 Os comissários e comandantes republicanos incitaram os generais negros que lutavam pela Espanha a unir-se à República, agora que ela oferecia emancipação generalizada e igualdade civil. Toussaint Bréda, agora comandante em Marmelade, no oeste, respondeu a esta intenção dizendo que os republicanos, depois de traírem seu rei, não estavam em condições de oferecer liberdade a seus súditos. Embora Toussaint rejeitasse o apelo francês, começou a diferenciar-se dos outros comandantes espanhóis ao encontrar formas de identificar-se com a resistência negra à escravização. Em algum ponto dos primeiros meses de 1793, Toussaint abandonou o nome Bréda, da plantation onde nascera, e adotou "Louverture", ou mais raramente "EOuverture", aquele que abre. Depois da invasão espanhola em julho, as forças de Toussaint aumentaram em tamanho e ocuparam boa parte de Artibonite, importante estrategicamente por dominar a passagem entre o norte e o oeste. Por operar a esta distancia de seus comandantes, Toussaint gozava de autonomia considerável. De forma bastante significativa, ele fez um apelo à população oprimida da colónia, no mesmo dia do decreto de Sonthonax:
anos que trabalhara como cocheiro e veterinário. Aprendera a ler e escrever, adquirira uma propriedade pelo casamento e recebera muitas funções de responsabilidade do administrador da. píantation Bréda, que já o tinha alforriado. Diz-se que Toussaint leu a História de Raynal, com sua denúncia vigorosa da escravidão, na biblioteca de Bréda. Gozava de boas relações com Bayou de Libertas, administrador d&planlation, e conseguiu garantir a segurança de sua família depois de agosto de 1791. Entre seus ajudantes-de-ordens, estavam Moyse, ex-escravo de Bréda, e Dessalines, que fora escravo doméstico de um liberto. Era característico do exército de Toussaint o íàto de que muitos nouveaux libres ocupassem postos de comando. Como ex-escravo, Toussaint podia compreender as aspirações da massa de negros melhor do que os comandantes mulatos; como affranchi} tinha mais experiência de administração e negócios do que os outros generais negros. Na época da Revolução ele já estava em situação bastante confortável e sua propriedade era cultivada por uma dezena ou mais de escravos alugados. Ao unir-se à insurreição, ele arriscou mais do que os outros, e talvez por isso esperasse mais dela. Trabalhou como secretário e ajudante-de-ordens de Biassou antes de conseguir um comando independente, e nas funções anteriores participou das negociações dúbias com as autoridades francesas nos últimos meses de 1791. Só depois de instalar-se na região distante e montanhosa de Artibonite é que ele revelou sua visão mais ampla. Tanto Toussaint Louverture quanto Sonthonax compreendiam que os escravos eram a chave para o futuro da colónia e que a vitória pertenceria a quem fosse aceito por eles como portador de seu desejo de liberdade. Mas os dois estavam excedendo a autoridade recebida e desobedecendo diretamente suas instruções. Sonthonax podia alegar que os poderes a ele conferidos lhe permitiam pôr de lado as instruções que recebera do Ministério da Marinha, mas percebeu que seu caso era de defesa precária. Em setembro, organizou eleições para preencher a quota de delegados de São Domingos na Convenção Nacional e certificou-se de que os eleitos fossem defensores firmes de sua política emancipacionista. Por causa do bloqueio, os delegados partiram para a Filadélfia para dali seguir para Paris. De seu lado, Toussaint esperava persuadir os espanhóis que só poderiam assumir o controle de São Domingos caso se dispusessem a repetir o decreto de liberdade geral dos comissários republicanos. Embora o marquês de Hermonas, como militar, estivesse pronto a considerar esta proposta de um de seus generais negros mais capazes, as autoridades políticas espanholas logo deixaram claro que não tolerariam, em nenhuma circunstância, ataques à escravidão. As autoridades espanholas esperavam que São Domingos e Santo Domingo se unissem sob a Coroa espanhola como uma colónia escravista em florescimento, independente do que acontecesse na Europa.
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Irmãos e amigos. Sou Toussaint LOuverture, talvez conheçais meu nome. Eu dei início à vingança. Quero que a liberdade e a igualdade reinem em São Domingos. Trabalho para que isso aconteça. Uni-vos a nós, irmãos, e lutai conosco pela mesma causa etc. Vosso mui humilde e obediente servo. TOUSSAINT EOUVERTURE, General dos Exércitos do Rei, pelo Bem Público.* Toussaint Louverture tinha motivos para tratar com reservas as tentativas de contato dos republicanos franceses: não estava nada claro se os decretos dos comissários civis seriam aceitos pelo governo da metrópole. No entanto, Toussaint admitiu em sua base desertores e soldados extraviados das tropas francesas e usou-os para treinar seus homens e para fazer parte do estado-maior; párocos franceses eram usados como secretários. Desde o início as tropas de Toussaint se destacaram por sua disciplina e mobilidade. O próprio Toussaint era um ex-escravo de cinquenta
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Nos últimos dias de setembro uma pequena expedição britânica — somente 801 soldados da primeira vez — ocupou Jeremie no extremo sudoeste e Mole St Nicolas no extremo noroeste. St Marc e outros portos ocidentais foram ocupados no final do ano, em geral a convite da municipalidade: os prefeitos mulatos de Arcahaie (Lapointe) e Léogane (Labissonnière) deram boas-vindas aos britânicos. De fornia pragmática, os britânicos dispunham-se a trabalhar com proprietários mulatos poderosos, embora outras pessoas livres de cor não recebessem garantias da manutenção de seus direitos e, naturalmente, a escravidão fosse mantida. Os principais comandantes mulatos no sul e no oeste — Rigaud, Pínchinat e Beauvais — permaneceram fiéis à República. No entanto, os republicanos pareciam presos numa tenaz, com os espanhóis livres para cruzar a fronteira oriental enquanto os britânicos podiam usar seu poderio naval para desembarcar onde quisessem na costa oeste. Com esta cobertura, os monarquistas franceses agiram com ousadia cada vez maior, aplicando a justiça sumária a qualquer republicano que capturassem e deixando claro a todos sua determinação de sustentar o regime escravocrata. Substanciais reforços britânicos e monarquistas foram enviados nos primeiros meses de 1794. Enquanto a principal expedição britânica velejava para as ilhas de Barlavento, a força britânica de ocupação em São Domingos cresceu para 3.600 homens em abril de 1794; cabeças-de-ponte em meia dúzia de lugares gozavam da proteção da Marinha Real. Em contraste, a parte republicana de São Domingos estava quase completamente isolada de sua metrópole.6 A principal expedição britânica, 7.000 homens a bordo de oito navios de linha e uma dúzia de embarcações menores, chegou às ilhas de Barlavento em dezembro de 1793. Primeiro os britânicos capturaram Trinidad e Santa Lúcia enquanto bloqueavam Martinica e Guadalupe. Martinica foi capturada em fevereiro, seguida pelas pequenas ilhas próximas a Guadalupe e, finalmente, a própria Guadalupe foi tomada em 20 de março. Rochambeau e Lacrasse ofereceram alguma resistência, mas, em face das forças superiores, entregaram a colónia aos britânicos. Nas últimas semanas anteriores ao ataque final britânico, os republicanos de Guadalupe resolveram recrutar, para um regimento ckasseur especial, negros entre os escravos da colónia; foram alistados 300 dos 500 planejados antes da invasão final. Aparentemente, ambos os lados estavam dispostos a deixar o grosso dos 170.000 escravos das lies du Vent como espectadores do conflito. A ocupação britânica foi acompanhada da volta de muitos proprietários, que encontraram suas plantations em condições regulares de funcionamento. Depois que os britânicos garantiram a posse das ilhas de Barlavento, puderam enviar mais forças para São Domingos, onde planejavam capturar Port au Prince.7
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Aconteceu uma virada importantíssima no destino da parte republicana de São Domingos entre o final de abril e o final de maio de 1794. Em 29 de abril o comandante britânico de St Marc soube que Toussaint, comandante em Gonaives, a quarenta milhas da costa, rompera com a Espanha e seus aliados monarquistas. Em 4 de abril os proprietários de Gonaives enviaram uma petição ao superior espanhol de Toussaint exigindo sua retirada. Queixavam-se de que Toussaint não obedecia às ordens de Biassou e que os postos militares controlados por suas forças se haviam tornado locais de refúgio de todo tipo de malfeitores e fugitivos negros, incluindo escravos que tinham roubado ou mesmo assassinado seus senhores. No início do conflito, Toussaint decidira claramente que sua posição como oficial espanhol era insustentável. Abandonou a Espanha e seus aliados locais e ordenou à sua tropa, que agora contava com 4.000 combatentes experimentados, que se recusasse a colaborar com as autoridades espanholas e se preparasse para atacar fortificações espanholas vizinhas. As tropas de Toussaint aparentemente não tiveram dificuldade para aceitar sua mudança de posição. Por algum tempo não ficou claro se Toussaint pretendia unir-se aos republicanos ou manter-se independente, como vários comandantes negros haviam feito em outras regiões da colónia. Em 24 de maio de 1794 Laveaux enviou a Polverel uma mensagem dizendo: "Toussaint Louverrure, um dos três chefes dos monarquistas africanos, em coalizão com o governo espanhol, finalmente descobriu seu verdadeiro interesse e o de seus irmãos; percebeu que reis nunca poderão ser amigos da liberdade; hoje ele luta pela República à frente de uma força armada."8 Laveaux ainda não se encontrara com Toussaint para avaliar a verdadeira extensão da melhora de sua situação. No conflito entre republicanos franceses e forças invasoras, o tema da escravidão surgira de forma irresistível. Jean François e Biassou mostraram-se dispostos a manter o regime escravocrata, mas Toussaint recusou-se. Choques militares e os apelos rivais de Toussaint e Sonthonax ajudaram a montar o cenário de nova onda de resistência escrava. Os primeiros meses de 1794 haviam testemunhado um rastilho de revoltas escravas no norte, que se espalharam para sul e oeste. Toussaint tinha ordens de sufocar estas insurreições, mas em vez disso deu abrigo aos rebeldes. Foi isso que provocou os protestos dos proprietários.9 Antes de maio de 1794, a República tinha alguns oficiais negros competentes — entre eles, o coronel Pierre Michel e o capitão Henry Christophe, este último agora no estado-maior de Toussaint —, mas não a corrente principal daquelas forças geradas pela revolta. Se Toussaint não tivesse colocado suas forças, agora bem treinadas e cada vez mais eficientes, a favor da República, a onda de resistência escrava, sozinha, não teria impedido que britânicos e espanhóis completassem a
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ocupação da colónia. A virada de Toussaínt logo foi seguida de uma campanharelâmpago durante a qual ele recuperou a maior parte da planície do norte das mãos dos ocupantes espanhóis. Entre o abandono da Espanha por Toussaint e sua adesão definitiva aos republicanos houve um breve hiato, durante o qual nenhum dos lados sabia o que ele estava fazendo. O momento exato da declaração inequívoca de Toussaint em prol da República pode ter sido influenciado por notícias vindas da Europa: em 4 de fevereiro, a Convenção Francesa decretou a emancipação em todas as colónias francesas. Quer Tbussaint soubesse ou não deste decreto quando abandonou a Espanha, certamente sedimentou a base de uma aliança decisiva e uma nova ordem republicana em São Domingos.I0 i A situação da metrópole em 1793-4 era quase tão complicada quanto a das colónias francesas. Os brissotinos haviam-se mostrado muito mais decididos na política externa e colonial do que no manuseio da situação criada pela desintegração do ancien regime e pela continuidade da inquietação popular. O ano de 1792 assistira a uma novzjacgufrx no campo.* A desorganização do comércio colonial alimentara a revolta muito mais séria da Vandéia.** Os brissotinos haviam levado a França para o caminho da guerra na esperança de cortar pela raiz a contra-revolução armada, devolver a iniciativa ao executivo e lançar a base de nova ordem europeia. Mas mostraram-se incapazes de conter as forças liberadas pela guerra ou de construir um centro político com autoridade. Os generais que escolheram foram derrotados, enquanto o desastre militar provocava mobilizações populares sem precedentes; a grande levée de 1793 pôs era armas meio milhão de homens. Por fim, os jacobinos mais radicais da Montanha*** conseguiram predominar nas seções, junto aos soldados e na Convenção. O Comité de Salvação Pública foi criado em abril de 1793. Os jacobinos conseguiram a exclusão dos principais girondinos da Convenção em junho de 1793 e consolidaram ainda mais seu domínio ao aderirem à revolta federalista que se seguiu. Sob pressão do movimento popular e das necessidades causadas pela guerra, os jacobinos começaram a construir uma administração revolucionária e a elaborar uma
nova Declaração dos Direitos que abria mão da garantia absoluta à propriedade privada existente na Declaração de 1789. Os jacobinos radicais dispunham-se a limitar os direitos dos proprietários, conter as forças do mercado e sancionar novos direitos sociais; mas não a tolerar associações de trabalhadores ou a apoiar as doutrinas igualitárias que agora surgiam entre os sans-culottes mais extremados. Foi nesta época que se varreram as formas não capitalistas de propriedade ainda existentes. Em 17 de julho, mais ou menos na época em que Sonthonax preparava-se para decretar a extinção da propriedade de escravos, a Convenção finalmente aboliu, sem indenização, todos os direitos feudais remanescentes. Em agosto, o abade Grégoire, como presidente da Convenção, garantiu a extinção do subsídio ao tráfico de escravos. Em outubro de 1793 o calendário revolucionário foi adotado, como símbolo da aspiração de reno-
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*A Jacquerie foi uma revolta camponesa ocorrida contra os nobres em 1358, em fieauvais, durante a Guerra dos Cem Anos. A rebelião foi totalmente esmagada por Carlos II de Navarra, conhecido como Ca/loa, o Mau. (N. tia T.) **A Vandéía, do francês Vendée, era um antigo departamento da costa oeste da França onde uma rebelião de camponeses, incitada por ictores clerical» e monárquico! contrários à Revolução, transformou-se em guerra civil ao estender-se aos departamentos vizinhos. (N. da 7!) ""A Montanha era a parte superior da Câmara. Era chamada assim em oposição à Planície, parte baixa da Câmara, onde ficava a maioria moderada, que não tinha posição definida mas ae opunha aos girondinos, que ocupavam a ala esquerda da Câmara. Os jacobinos e cordeliers da Montanha eram conhecidos como mQnta$ndrdi. (N. da T.}
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var o mundo. A turbulência da revolução trouxe à superfície uma corrente subterrânea de igualitarismo popular grosseiro e hostilidade à riqueza e ao comércio. Esta tradição oculta, que refletia o aspecto comunal da visão de mundo de camponeses, trabalhadores braçais e artesãos, fora mais bem expressa pelos curas comunistas e "abades contumazes" comunistas do que pela tendência dominante do pensamento iluminista, com seus ensaios e declarações antiescravistas. O Tèslamenlo, de Jean Meslier, e as Observações, do abade Mably, com seus ataques à grande propriedade, à falsa prosperidade dos centros comerciais e à arrogância dos ricos, davam articulação a preconceitos populares que minavam um apoio importantíssimo do sistema escravista colonial, isto é, o respeito aos direitos de propriedade dos senhores de escravos. Em 1793 Pierre Dolivier e outros curas vermelhos (cures rouges} atacaram a propriedade em nome dnjusficeprimitive^ tema que mais tarde viria a inspirar a Conspiração dos Iguais.* Chaumette, promotor hébertista da Comuna de Paris, declarou que era necessário esmagar os ricos antes que matassem o povo de fome. No tocante ao regime social da metrópole, Babeuf estava mais próximo de dar expressão política a esta subtendência revolucionária do que os jacobinos, ou mesmo os cordeliers. No entanto, os legisladores jacobinos tinham de levá-la em conta; no caso da escravidão colonial, podiam fàzê-lo sem muita inibição.11 Os jacobinos dispunham-se a conceder mais ao movimento popular do que os bríssotinos, mas ainda estavam longe de satisfazê-lo ou de resolver a crise da economia. A abolição da escravatura pela Convenção aconteceu era um ponto em que a República jacobina precisava superar divisões internas e concentrar todas as ener"A Conspiração dos Iguais, quatro anos mais tarde, foi iniciada por François Nõcl Babeuf, que defendia a distribuição igualitária de terras e lucrot. A insurreição não se desenvolveu: Babeuf foi traído e executado «m 28 de maio de 1797. (ff. da T.)
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gias na luta da revolução pela sobrevivência. Veio em um momento peculiar de presságio e exaltação no desdobramento do drama revolucionário, assinalando o ponto culminante de suas aspirações sociais e de sua disposição de subordinar a propriedade a um objetivo mais elevado. Os problemas nas colónias continuaram a contribuir para a desintegração da ordem social da metrópole. A política brissotina de defesa dos direitos dos mulatos ajudara momentaneamente a conter o autonomismo e o monarquismo dos proprietários dcp/aníaííons, mas não a restauraras condições adequadas de funcionamento do sistema colonial. A partir de junho de 1793 as raras partidas de produtos das plantations que os mercadores franceses podiam adquirir no Caribe tiveram de romper o bloqueio britânico. O açucare o café ficaram ainda mais difíceis de encontrar — embora nesta época fosse a carestia de alimentos básicos, e não de açúcar, que provocava revoltas. A influência política da burguesia marítima foi destruída pelo fiasco da revolta federalista no verão e pelo colapso da infra-estrutura tradicional do comércio com as colónias e outros países. O furor quanto à "Conspiração Estrangeira", que permeava o conflito entre facções desde novembro de 1793, foi alimentado por relatos de traição nas colónias; os donos de plantations e escravos ficaram He fora do grupo nacional.12 Em Paris, havia poucos grupos de interesse ligados ao comércio colonial, mas uma tentativa questionável de ressuscitar a Compagnie dês Indes, divulgada em janeiro de 1794, manchou a reputação dos envolvidos com especulações coloniais e enfraqueceu a posição dos amigos de Danton, os indulgents. Nesta época, a tendência dos sans-culottes era suspeitar das atividades imorais e antipatrióticas de todos os mercadores. Soboul, escrevendo sobre fevereiro de 1794 — Pluviôse, ano II —, a mesma época em que se apresentou à Convenção a questão da escravatura colonial, observa: KA hostilidade contra os mercadores, hostilidade tão característica da mentalidade popular, continuava tão forte como sempre, apesar da imposição de vários tipos de controle sobre a vida económica da nação."13 A situação internacional, com o papel predominante dos britânicos na coalizão contra-revolucioná-
Sonthonax, um de seus partidários, foi fundamental para levar a questão da escravatura à Convenção. Os três delegados emancipacionistas enviados à Convenção por iniciativa de Sonthonax chegaram a Paris no final de janeiro de 1794. Esses novos deputados — um negro liberto, um mulato e um colono branco — foram presos ao chegar, por instigação dos jacobinos da colónia, adversários de Sonthonax, mas logo foram soltos e apresentaram-se à Convenção. O deputado negro, JeanBaptiste Belley-Mars, ex-comandante militar de Lê Cap, foi longamente aplaudido. Dufay, o deputado branco, fez ura discurso apaixonado em 4 de fevereiro (16 Pluviôse, Ano II) em defesa da liberdade geral que fora decretada em São Domingos e instando que, como ato de justiça e necessidade militar, fosse estendida às outras colónias francesas. Ele ressaltou a oportunidade de uma contra-ofensiva revolucionária no Caribe. Era do conhecimento comum que uma grande frota britânica partira para as índias Ocidentais. As declarações de Dufãy foram recebidas com aplausos frenéticos. Levasseur, de Sarthe, propôs que a Convenção agisse imediatamente para abolir a escravidão nas colónias: "Cidadão Presidente, não force a Convenção a rebaíxar-se com uma discussão." A moção foi assim aprovada por aclamação e incorporada a um decreto proposto por Lacroix, de Eure e Loire, nos seguintes termos: "A Convenção Nacional declara a escravidão abolida em todas as colónias. Em consequência, declara que todos os homens, sem distinção de cor, domiciliados nas colónias, são cidadãos franceses e gozam de todos os direitos garantidos pela Constituição."14 O decreto foi apresentado à Convenção para ser ratificado sem nenhum relatório ou recomendação do Comité de Salvação Pública; nesta ocasião, Danton falou. Com toda probabilidade os delegados de São Domingos provocaram uma reação bastante espontânea e inesperada. Danton declarou:
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ria, continuava ameaçadora; mas as primeiras vitórias e o sucesso da grande levée inspiraram uma positiva autoconfiança revolucionária. A Convenção Nacional veio a tomar a decisão sobre a escravidão colonial pouco antes do expurgo dos hebertistas e dantonistas, mas muito depois da fuga, da prisão ou da execução dos membros mais importantes dos Âmis dês Noirs. Os Amis nunca corresponderam às campanhas públicas da Sociedade Abolicionista britânica; no final de 1793, a entidade estava efetivamente morta. Mas os Amis ajudaram a radicalizar a revolução através de sua batalha pelos direitos dos mulatos;
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Representantes do povo francês, até agora decretamos como egoístas a liberdade para nós próprios. Mas hoje proclamamos a Uberdade universal. [...] Hoje o inglês está morto! [Aplausos] Pitt e suas tramas acabaram! A França, até agora roubada em sua glória, recupera-a ante os olhos de uma Europa surpresa c assume a preponderância que lhe é devida por seus princípios, sua energia, seu território c sua população! Atividade, energia, generosidade, mas generosidade guiada pela chama da razão e regulada pela bússola dos princípios, e assim para sempre merecedora do reconhecimento da posteridade." A retórica bombástica do messianismo nacional de Danton mal fez justiça ao decreto da Convenção, que na verdade merece, embora raramente tenha recebido, o "reconhecimento da posteridade". Geralmente é relegado a pouco mais que uma nota de pé de página, quer na história da Revolução Francesa, quer na da escravi-
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dão do Novo Mundo. E verdade que a Convenção estava confirmando e generalizando um decreto que já fora promulgado localmente por seu comissário. A confirmação da Convenção deu maior força e substância legais à política que Sonthonax já adotara e exigiu que fosse estendida às outras colónias francesas. Em São Domingos, ajudou a convencer um setor importantíssimo das forças negras revoltosas de que a República era sua aliada. Na época em que a Convenção decretou a abolição da escravatura, uma força expedicionária britânica mal completava a ocupaÇão das ilhas de Barlavento francesas, embora a Convenção ainda não soubesse disso. Em princípio, o decreto de Pluviôse derrubara, sem compensação alguma, a forma mais importante de propriedade colonial. O decreto também teve grandes consequências na política externa. Se a execução de Luís XVI já ofendera as monarquias da Europa, o decreto de Pluviôse colocou a nova República não só contra todas as potências coloniais europeias, mas também contra seu único possível aliado remanescente, os Estados Unidos. A consciência deste feto induzira uma certa cautela do Comité de Salvação Pública, que só foi sobrepujada pela intervenção direta dos deputados de São Domingos e pelo espírito geral de audácia revolucionária que tomara conta da Convenção. A Comuna de Paris comemorou o decreto de Píuviôse em um evento especial realizado no Templo da Razão, como Notre Dame era então chamada, com a participação de muitos cidadãos de cor.lfi Chaumette fez a apologia do decreto da Convenção; juntamente com outros hebertisías e patrocinadores do Culto da Razão, adotara a causa da emancipação com fervor especial. Quaisquer que fossem as reservas mantidas pelo Comité de Salvação Pública no tocante à medida da Convenção, elas não impediram que o comité enviasse imediatamente uma expedição ao Novo Mundo, com instruções de travar uma guerra revolucionária para a libertação dos escravos. Com o decreto de Pluviôse, o antiescravismo deixara de ser motivo de gestos filantrópicos e declamação sentimental; unido aos escravos rebelados do Caribe, tornou-se protagonista ativo de conflitos momentosos na Europa e no Novo Mundo. Durante um período breve, porém vital, o programa do abolicionismo radical foi alimentado pela rebelião escrava e patrocinado por uma grande potência.
estavam inteiramente em mãos britânicas, que as tinham ocupado com a cumplicidade ativa dos monarquistas. Hugues desembarcou em Guadalupe e em 23 de abril libertara parte da ilha e derrotara um destacamento monarquista de 700 combatentes. Desta cabeça-de-praia, o comissário deflagrou uma guerra revolucionária contra os donos de escravos e seus aliados britânicos, libertando os escravos e formando com eles unidades da Légion d'E$ulité e do recém-criado Bataillon dês Antilles. Entre abril e dezembro os republicanos expulsaram a força britânica de ocupação, que contava de 3.000 a 4.000 homens, e capturaram 2.000 rifles e 38 canhões. Os comissários republicanos levaram consigo uma guilhotina e uma impressora, e ambas as máquinas foram postas a trabalhar. Victor Hugues, ex-promotor em Rochefort durante o Terror e com experiência anterior nas Antilhas, logo se estabeleceu como chefe efetivo das forças republicanas. Os monarquistas capturados foram sumariamente executados. Cópias do decreto de Pluviôse, dos Direitos do Homem e de outros documentos e declarações republicanos foram traduzidas para o espanhol, português, holandês e inglês e levadas clandestinamente para todo o Caribe. As principais forças britânicas na Martinica eram muito grandes e bem entrincheiradas para ser enfrentadas de frente, mas expedições vindas de Guadalupe libertaram dos britânicos as ilhas de Santa Lúcia e La Désirade.17 Nos dois anos seguintes Hugues organizou uma flotilha de corsários extremamente bem-sucedida que se pôs a atacar embarcações britânicas, espanholas e norte-americanas. Estes corsários — seus navios tinham nomes como UIncorruptiblet La Tyrannicide, LAmi du Peuple, Lê Terroriste e La Eande Joyeuse — continuaram a exibir uma espécie de jacobinismo bucaneiro mesmo depois da derrubada de Robespierre em Paris. As colónias holandesas de St Eustatius e St Martin, que haviam estado em poderdes britânicos, foram recapturadas pelos republicanos franceses em nome da recém-declarada República Batava. Surgiram conspirações escravas e rebeliões maroons em várias colónias, direta ou indiretamente inspiradas pelos acontecimentos nas ilhas francesas: Venezuela, Brasil, Jamaica e Cuba foram afetados, como será descrito nos próximos capítulos. As lutas mais demoradas e impressionantes irromperam em duas ilhas, Granada e São Vicente, que a Grã-Bretanha adquirira da França na década de 1760. A propaganda republicana ajudou a criar nestas ilhas uma aliança extraordinária entre um punhado de proprietários mulatos de idioma crioulo e a massa de escravos, muitos dos quais também falavam o patoá colonial francês. Em São Vicente as forças republicanas foram ainda mais fortalecidas pela adesão dos "caribes negros", que resistiram aos britânicos na década de 1770. A revolta de Granada foi liderada por Julien Fédon, proprietário mulato que libertou seus próprios escravos antes
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A expedição enviada ao Caribe rompeu com sucesso o bloqueio britânico e chegou aos arredores das ilhas de Barlavento em abril, pouco mais de dois meses depois da data do decreto. A expedição era formada por 1.200 homens a bordo de duas fragatas, cinco navios de transporte e um bergantim. Estava sob o comando de dois comissários nomeados pela Convenção: Victor Hugues e Pierre Chrétien, ambos partidários da Montanha. Descobriram ao chegar que as ilhas francesas
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de levantar o estandarte republicano francês, onde se liam as palavras Liberte, Egalité ou Ia Mort, em 1° de março de 1795. Um reforço de quinhentos soldados republicanos desembarcou em São Vicente em setembro de 1795; com esta ajuda de Guadalupe, em fevereiro de 1796 Fédon conseguiu confinar a guarnição britânica em um minúsculo enclave em torno da cidade de St George, depois de uma série de duras batalhas e escaramuças. No mesmo período os britânicos também foram expulsos da maior parte de São Vicente pela força combinada de republicanos revolucionários e caribes negros, estes últimos liderados por seu chefe Joseph Chatoyer. Os regimes republicanos não só libertavam os escravos como davam-lhes armas, criando assim, uma barreira formidável à previsível tentativa britânica de reconquista.1S Em Guadalupe as forças republicanas francesas eram racialmente mistas, com alguns negros libertos, como o famoso capitão Vulcain, ocupando postos de comando. No entanto, a camada experiente de ancten libres mulatos predominava nos postos-chave. A maioria dos cerca de 90.000 ex-escravos da própria Guadalupe ficou nas plantations, onde foram mantidos no trabalho por regulamentos contra a vagabundagem e regras que restringiam o acesso às roças de subsistência daqueles que trabalhavam nas plantações. Em princípio, os trabalhadores da plantation não podiam ser surrados e deviam receber parte do que fosse apurado com a venda da colheita — no entanto, muitas vezes foram enganados por mercadores, funcionários e QX-commandeurS) a quem se confiara a administração àasplantations. O trabalho noturno nos engenhos de açúcar foi suspenso e os rigores do novo sistema foram de certa forma aliviados pela dependência republicana aos negros armados. Em uma comunicação ao Diretório, VictorHugues relata tranquilamente: "Esses novos cidadãos gozam calmamente de sua nova condição; embora não sejam pagos, trabalham; na verdade, de maneira um pouco lenta, mas trabalham." O comissário também ficou satisfeito em observar: "em São Vicente renovamos a antiga amizade que nos liga aos caribes; seu chefe está fortemente ligado a nós."19 As forças republicanas mais desgastadas em Granada e São Vicente tinham pouca possibilidade de manter a produção dasptanlations, mas encorajaram a expansão do cultivo de subsistência. Em São Domingos as principais vitórias dos republicanos em 1794-5 ocorreram à custa dos espanhóis. A Marinha britânica, que gozava de supremacia naval apesar dos corsários, podia bombardear fortificações costeiras e concentrar forças no ponto que escolhesse. Em São Domingos, com seu litoral extenso e muito recortado, esta era uma vantagem considerável. Em junho de 1794 os bri-
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tânicos conquistaram Port au Prince, capital do sul, juntamente com parte de sua hinterlândia e uma faixa litorânea, mas depois disso seu avanço se deteve. Os republicanos de São Domingos, fortalecidos pela adesão de Toussaint e armados com o decreto de Pluviôse, resistiram firmemente às forças conjuntas de britânicos, monarquistas e espanhóis. Os comandantes mulatos Beauvais e Rigaud permaneceram fiéis à República e impediram o avanço britânico no sul e no oeste. A tropa de Rigaud era composta de 5.000 soldados de infantaria e 1.500 de cavalaria. Toussaint consolidou o controle de Artibonite e boa parte do norte: sua tropa crescera de 4.000 para 10.000 soldados de infantaria, com dois regimentos de cavalaria. Toussaint também conseguiu atrair para a causa republicana alguns milhares de maroons, liderados por Dieudonné. Laveaux, no norte, também conquistou novas forças, os rebeldes negros independentes do Gros Morne. A partir desta época, Rerrot, que ajudara a derrotar Galbaud em 1793, aliou suas forças à República. O mulato general Villatte, sediado em Lê Cap, enfrentou os espanhóis no nordeste.20 Sonthonax, que tanto fizera para recuperar o destino republicano, foi chamado em junho de 1794 a responder a críticas feitas à sua conduta e administração. Se os jacobinos tivessem sobrevivido, ele poderia ter-se tornado vítima de um divisionismo mortal, já que podia ser acusado de ser joguete de Brissot, Danton ou dos hebertistas. Jeanbon Saint-André, membro do Comité de Salvação Pública ligado ao meio patriota colonial, dera apoio às acusações a Sonthonax, enquanto Fouché defenderia o comissário. Com o advento do Diretório, o passado brissotino de Sonthonax não contava mais contra ele, e no decorrer de uma investigação arrastada ele esclareceu todo o seu trabalho em São Domingos; o último ato da Convenção revolucionária de 1792-5 foi absolver seu comissário de São Domingos de todas as acusações e congratulá-lo pelo sucesso de sua missão. A presença de Sonthonax em Paris deu à parcela revolucionária de São Domingos um defensor bem informado e influente; em pouco tempo o novo ministro colonial, almirante Truguet, o nomearia para outra missão na colónia.21 No verão de 1794 uma invasão espanhola na França foi rechaçada nos Pireneus. Na esperança de impedir o ataque dos formidáveis exércitos da República, a Espanha fez a paz com a França em julho de 1795 e, pelos termos do Tratado da Basileia, cedeu à França a espanhola Santo Domingo, embora durante algum tempo nenhuma administração francesa efetiva pudesse lá se estabelecer. Biassou e Jean François ainda comandavam vários milhares de soldados quando chegou a notícia do tratado; retiraram-se para Santo Domingo e de lá partiram para Cuba, deixando para trás a maioria de seus seguidores. Assim a diplomacia do Diretório
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e as vitórias na Europa reduziram a pressão sobre suas forças ainda sitiadas em São Domingos. A resistência republicana em São Domingos e o sucesso da contra-ofensiva revolucionária nas ilhas de Barlavento, contra todas as probabilidades, deve ter causado boa impressão em Paris. O almirante Tuguet, ministro da Marinha do Diretório durante a maior parte de seu período, era um profissional de firmes convicções republicanas; estivera em Lê Cap como capitão da marinha em junho de 1793 e apoiara Sonthonax. Os republicanos franceses no Caribe estavam causando muita destruição aos inimigos e forçaram-nos a reunir uma nova e grande expedição às índias Ocidentais. No tocante ao próprio Diretório, as atividades dos revolucionários antilhanos tinham, além do mais, a vantagem de não ser financeiramente pesadas. As atividades dos corsários permitiram a Hugues enviar de volta à França um fluxo constante de mercadorias apresadas, tesouros capturados e produtos das plantâtions. Hugues amealhou fortuna considerável para si e não se furtaria a manter a popularidade na metrópole por meio de propinas discretas às pessoas certas. Mas além e acima do cálculo estratégico ou financeiro, a dedicação do Diretório ao antiescravismo revolucionário era demasiado coerente com suas declarações de legitimidade republicana. Jean François Reubel, um dos homens fortes do Diretório, fora grande partidário dos Amis dês Noirs e autor do decreto de maio de 1791 sobre os direitos dos mulatos. Condorcet fora declarado patrono do Diretório e suas obras publicadas em edição oficial; nelas se incluíam o ensaio sobre a escravidão, cujas recomendações práticas encontraram algum eco no novo regime das plantâtions, e seu clássico Esboço de um quâdw histórico do processo à) espírito humano, escrito na prisão em 1793, que conferia papel importante à emancipação dos escravos e à redenção da África na marcha da humanidade para o futuro. Historiadores têm preferido tratar do lado sórdido e caótico do governo do Diretório. Mas, embora não totalmente livre de tais falhas, sua política colonial extraiu força da virtude e da coerência revolucionárias. Pelo menos nesta área Termidor estabilizou em vez de reprimir o impulso jacobino e inspirou-lhe um internacionalismo que faltara aos jacobinos na época da paranóia a respeito de conspirações estrangeiras. Se é possível dar ao Diretório o crédito de apoiar o emancipacionismo republicano, é provável que sem o interlúdio jacobino radical jamais se efetivasse uma medida de expropriação tão devastadora quanto o decreto de Pluviôse. Foi neste ponto que a agitação elementar da colónia coincidiu com a da metrópole. Os membros da1 Convenção que ficaram tão entusiasmados com o discurso de Dufay permitiram que o cálculo político se subordinasse ao reflexo antiescravista espon-
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tâneo encontrado em expressões tão características da mentalidade popular quanto a Marseillaiset com sua denúncia de "1'esclavage antique", e os slogans comuns "Viver livre ou morrer", "Antes a morte que a escravidão".22 A vitória dos direitos de negros e mulatos livres em 1792 solapara a justificativa racista da escravidão, e só restou a mística da propriedade privada. Depois do expurgo da burguesia girondir.a, este último obstáculo para a emancipação dos escravos tornou-se leve o bastante para ser varrido pela chegada da delegação de São Domingos. A invenção da escravidão negra nas Américas em época anterior fora chamada de "decisão impensada", e a descrição também pode se aplicar à aprovação do decreto de emancipação. Embora patrocinado pelos apóstolos da Razão, este decreto fora uma declaração existencial do projeto revolucionário. Talvez só aqueles cuja concepção da natureza humana fora transformada pela experiência revolucionária pudessem considerar um decreto de emancipação geral como elemento racional de estratégia política; em todos os eventos anteriores, as tentativas puramente práticas de recrutar escravos jamais supuseram a necessidade de emancipação geral. A nova ordem revolucionária nas Antilhas enfrentou um grande massacre britânico em 1796. A política britânica de agressão colonial saíra pela culatra e a ordem escravista de toda a região enfrentava ameaça seriíssima. A perda de Guadalupe, São Vicente, Santa Lúcia e da maior parte de Granada, acompanhada da instigação geral à revolta dos servos, fez soar o alarme; alarme ampliado pela atividade de agentes revolucionários e rumores de conspirações de escravos e maroons em todo o Caribe. Dundas discursou contra tto sistema extraordinário e sem precedentes agora adotado pelo Inimigo para derrubar todo Governo regular e toda subordinação".23 Com ajuda de seu colega lorde Hawkesbury, proprietário nas índias Ocidentais, Dundas convenceu o gabinete britânico a enviar uma verdadeira armada para o teatro de operações das índias Ocidentais; quase 100 navios e 30.000 homens foram reunidos com este fim, quantidade de soldados que só se igualava à expedição de Flandres e uma das maiores a cruzar o Atlântico. O objetivo era recuperar as ilhas tomadas pelos franceses e completar a ocupação de São Domingos, A prioridade era recapturar as ilhas britânicas que haviam sido perdidas — São Vicente e Granada — e retomar Santa Lúcia. Um ataque maciço a Santa Lúcia em abril de 1796 restabeleceu a presença britânica na ilha, mas a resistência não cessou, apesar da imensa superioridade dos invasores: Hos negros", observou um oficial britânico, "são nossos inimigos até o último homem". O comandante britânico, general-de-brigada Moore, que mais tarde viria a se tornar famoso na Guerra da Península, observou que "homens a quem se disse que estavam livres e que já portaram armas não voltam facilmente à escravidão".24
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Embora Moore imputasse muita culpa à "gente branca ligada à República" pelo envenenamento da situação, também admitia que os republicanos eram "reforçados por grande número de negros das plantações; todos os daquela cor são ligados a eles". Concluiu, tristemente: "Era meu desejo governar a colónia com brandura, mas fui forçado a adotar as medidas mais violentas pela perversidade e pela má composição daqueles com que tenho de tratar."25 A imprensa britânica apelidou o conflito nas Pequenas Antilhas de "Brigands* War" (Guerra dos Bandoleiros) e relatou com detalhes dramáticos as atrocidades republicanas contra os não-combatentes. Em Granada e São Vicente os britânicos também enfrentaram resistência vigorosa e generalizada. Uma tropa de 5.000 homens desembarcou em Granada em março de 1796 e forçou Fédon à resistência guerrilheira nas florestas e montanhas ao sul do Grand Etang. Provavelmente o próprio Fédon foi morto em julho, mas a guerra irregular continuou. Houve mais relatórios de atrocidades cometidas por ex-escravos e seus instigadores republicanos; contou-se um caso em que os escravos haviam matado um proprietário por esmagamento, passando-o pelos cilindros de seu próprio engenho. Conscientes de que as forças republicanas nas várias ilhas estavam organizando seus esforços, os britânicos caíram sobre São Vicente com 4.000 homens em junho de 1796. Chatoyer, veterano líder dos caribes negros, foi morto em um choque em março de 1795, mas os caribes negros agora lutavam com seus aliados franceses sob um novo chefe, Duvallé. Enquanto alguns escravos uniram-se à força caribe/republicana, outros permaneceram nas propriedades e até ajudaram os britânicos. Em face das numerosas baixas, muitas causadas por doenças, e com grande necessidade de tropas para patrulhar o território recapturado dos bandoleiros, os comandantes britânicos pediram reforços. Apesar da desconfiança dos donos de plantations, decidiu-se convocar batalhões de patrulheiros negros formados de escravos especialmente comprados, aos quais se prometeram pagamento e liberdade. Estes regimentos das índias Ocidentais deveriam totalizar 7.000 homens, alguns baseados na Jamaica, outros nas ilhas menores. As forças patrulheiras negras foram enviadas em pequenas unidades para encontrar as guerrilhas nas montanhas. Ansiosos para acabar com um conflito desgastante, os britânicos fizeram concessões à maioria das tropas "bandoleiras", tratando algumas como soldados franceses que se rendiam com honras de guerra e convencendo outros a romper com seus aliados franceses. Assim, em Santa Lúcia os membros da Armée française dans lês bois ("Exército francês da floresta"), que não eram nativos da ilha, seriam repatriados para território francês sob a bandeira branca; nativos livres das ilhas teriam permissão de ficar sem qualquer sanção; ex-escravos seriam integrados a um batalhão de negros livres e enviados para servir em Serra Leoa. No final de 1797 as
forças britânicas recuperaram, com essas concessões, o controle de Santa Lúcia. Termos semelhantes foram oferecidos aos "bandoleiros" das outras ilhas. Em situação difícil, os caribes negros de São Vicente acabaram concordando em aceitar a remoção para a ilha de Rattan, na costa de Honduras. Embora o regime àtplantation tenha sobrevivido em São Vicente, em sua maioria os senhores de escravos de Granada abandonaram o cultivo do açúcar e dedicaram suas terras e seus escravos à plantação menos árdua e em menor escala de cravo e outras especiarias, Pelo menos 40.000 soldados e marinheiros britânicos perderam a vida na campanha das Pequenas Antilhas entre 1796 e 1800, alguns mortos em ação, muitos vitimados por doenças e outros dispensados por incapacidade para o serviço. Guadalupe e suas ilhas menores não foram recuperadas. Os eventos de São Domingos tenderam a apagar a lembrança da guerra nas Pequenas Antilhas; mas sem dúvida esta última deu uma grande contribuição às decisões britânicas quanto a São Domingos e ajudou a afastar volumosas forças britânicas que, se não fosse isso, poderiam ter sido usadas ali.26
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A República francesa não podia igualar a expedição britânica enviada ao Caribe, entretanto, despachou tropas consideráveis. Durante 1796, cerca de 6.000 soldados foram mandados para as Pequenas Antilhas e 3.000 para São Domingos. Em São Domingos a política de emancipação fez com que as forças republicanas precisassem de suprimentos em vez de soldados; receberam 30.000 mosquetes e 180 toneladas de pólvora em 1796." Depois da partida de Sonthonax, Laveaux prosseguiu com a política do comissário de promover o crescimento do poderio militar negro, considerando os ex-escravos como base da força republicana. Uma camada de mulatos, que anteriormente fornecera a maioria dos oficiais de comando da Légion d'Egalité e muitos postos elevados nas municipalidades, sentiu-se preterida pela promoção de comandantes negros. Em março de 1796 Villatte e a municipalidade de Lê Cap prenderam Laveaux. No entanto, este golpe foi frustrado pela lealdade de alguns comandantes — notadamente o negro Rerre Michel e o mulato B. Léveillé — e pelo envio de tropas de Tbussaint Louverture para esmagar a rebelião dos mulatos. Este incidente apressou e formalizou "o crescimento do próprio poder revolucionário negro que os rebeldes queriam eliminar. Laveaux, como delegado mais graduado da República, nomeou Tòussaint para o cargo de governador da colónia e promoveu a general vários oficiais negros. Na cerimónia de posse do novo governador em abril, Laveaux saudou Tbussaint como um salvador da República e como o redentor dos escravos previsto por Raynal. A nova administração na zona republicana foi confirmada em maio com a chegada
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de nova Comissão Civil, mais uma vez encabeçada por Sonthonax. Os outros membros da comissão eram Raimond, que defendera os direitos dos mulatos na Assembleia Nacional, e Roume, que em mandato anterior como comissário ajudara a montar o "pacto" sulino entre brancos e mulatos em 1791-2. Ao chegar a Lê Cap, Sonthonax foi aclamado pela população negra e saudado por Toussaint como "fondateur de Ia liberte" ("fundador da liberdade"). Embora a nova comissão gozasse de poderes semelhantes aos de seus antecessores, as forças locais agora predominavam bastante sobre as enviadas pela metrópole. A presença britânica em Port au Prince e no centro ainda dividiam a São Domingos republicana em duas partes unidas precariamente por um disputado corredor. Na área do sul, sob o comando de Rigaud, os mulatos mantinham posição de influência. No norte, os negros e nouveaux libres eram o principal poder. Os reforços franceses que chegaram com os comissários a Lê Cap eram comandados por Rochambeau, que se alarmou com a virada que acontecera na estrutura de poder e propriedade da colónia. Sonthonax logo enviou-o de volta à França, onde mais tarde ele declarou que "a guerra em São Domingos é dos que nada têm contra os proprietários legítimos".28 Embora negada pelos comissários, esta acusação tinha alguma substância. Formalmente, a comissão desejava recuperar a economia de plantation com a ajuda dos proprietários patriotas e dos libertos leais; na pratica, pelo menos no norte, precisava dos ex-escravos armados para conter a traição e o contrabando de proprietários e administradores antipatriotas. Muitos "proprietários legítimos" haviam partido para regiões de ocupação britânica, quando não para Kingston, Filadélfia ou Londres. Rochambeau provavelmente falava de forma mais direta aos proprietários coloniais na metrópole e aos grupos de interesse mercantil ligados às propriedades coloniais, que acreditavam que chegara a hora de exigir publicamente o retomo à ordem. No entanto, nas áreas republicanas ainda havia proprietários residentes, principalmente muiatos, e uma camada de administradores que buscavam recuperar a posse das propriedades. Mas, na opinião de Sonthonax, muitos desses não eram verdadeiros amigos da República; não só comerciavam alegremente com os inimigos, como também sonhavam com a volta da escravidão. Como explicou em uma carta a Truguet: "Aqui a Revolução teve as mesmas fases que na França e na Europa. Os burgueses combateram os nobres para oprimir o povo; os homens de cor queriam a humilhação e mesmo a expulsão dos brancos, mas rejeitavam a liberdade."29 A presença britânica deu sustentação à escravatura nas zonas ocupadas, e assim o futuro da emancipação em São Domingos ainda parecia estar em aberto.
Muitos proprietários e administradores remanescentes, inclusive alguns gens àe couleur, abrigaram-se atrás das linhas britânicas, onde asplantations continuavam a funcionar. Cerca de 60.000 escravos ainda trabalhavam nas plantations da zona britânica. Os britânicos haviam recebido reforços de 4.000 homens em 1795 e mais de 10.000 em 1796. Como auxiliares, havia grandes unidades de "monarquistas"; estes compreendiam oficiais monarquistas que lideravam um sortimento de brancos que lutavam por soldo e saques, mulatos e ex-membros da maréchaussée com motivação semelhante e negros a quem se oferecera a liberdade. O dinheiro, as fardas, a comida e os suprimentos que os britânicos podiam oferecer funcionavam como um imã para os recrutas em uma terra cada vez mais devastada pela guerra. Com o poderio naval, a artilharia e os reforços, os britânicos e seus aliados monarquistas estavam em ótima posição. A doença cobrou seu preço das fileiras britânicas, mas, mesmo antes disso, a esperança do regime britânico de ampliar a área de ocupação tornou-se vã por causa da defesa da escravidão. Sem dúvida, apenas uma minoria dos negros na zona republicana realmente gozava de todos os seus direitos civis, mas a abolição da escravatura ali formalizou e garantiu o fim do controle dos donos das plantations sobre a vida dos produtores diretos. O esforço republicano oficial de recuperar a produção das plantations com o uso de regulamentação semelhante à que estava em vigor em Guadalupe teve resultados pouco importantes. Segundo o decreto original de emancipação sancionado por Sonthonax, os ex-escravos não alistados no exército deviam ficar nas plantations por um período de pelo menos um ano; o valor da colheita seria dividido entre os proprietários e os cultivadores na proporção de uma parte para duas ou três. As propriedades de emigres e monarquistas foram confiscadas e arrendadas a administradores sob um sistema defermage (arrendamento) criado pela Comissão Civil. A mào-de-obra rural foi instada a permanecer pronta a trabalhar e suas tentativas de reivindicar roças maiores não foram atendidas. Mas, na verdade, em muitas áreas houve um afastamento entre o regime republicano e os ex-escravos, em que estes últimos começaram a construir uma existência autónoma e só trabalhavam t&spfanlatsons de forma intermitente. Nas propriedades sob o sistema àt/ermage, a colheita seria dividida entre os agricultores, os administradores e o Estado. Um regulamento de 1796 criou uma gendarmerie rural cuja tarefe era impor a disciplina do trabalho e acabar com a vagabundagem. Os que não tivessem contratos de trabalho que os ligassem a uma propriedade rural teriam, em teoria, negado o acesso às roças de alimentos. Foi muito difícil encontrar administradores para as propriedades, já que havia poucos com a competência técnica necessária e a maioria dos que a possuíam eram ex-feitores ou commandeurs que não inspiravam confiança à
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massa de trabalhadores. O ano de 1796 assistiu a vários conflitos sobre as tentativas de impor o novo regulamento de trabalho. Dois anos antes Sonthonax encorajara os ex-escravos do norte a desafiara autoridade de proprietários e administradores com o uso de armas. Agora era impossível simplesmente arrastar os trabalhadores de volta às plantalions. Em uma versão sulina dos regulamentos do norte, foi dito aos trabalhadores que teriam de trabalhar seis dias por semana se quisessem receber todo o seu quinhão da venda da colheita. Mas muitos preferiam trabalhar cinco dias por meio quinhão, ou mesmo não receber nao^ e trabalhar quatro dias; neste último caso, seu acesso a um pedaço de terra seria o único "pagamento" pelos quatro dias de trabalho. Funcionários do governo ou oficiais do exército podiam assumir a responsabilidade por uma propriedade, mas até eles tinham dificuldade para conter a resistência dos trabalhadores. A produção de açúcar caiu vertiginosamente, e a destruição do equipamento àa&pf&ntatíons e das obras de irrigação explicam parte desta queda. A produção de café sofreu menos. Este produto podia ser plantado em pequena escala e as autoridades republicanas ou seus representantes podiam reivindicar parte da colheita. Em várias áreas as trabalhadoras recusaram-se a participar da colheita de açúcar ou café a menos que recebessem o mesmo pagamento dos homens; os decretos originais de emancipação lhes tinham oferecido apenas dois terços do quinhão de um trabalhador.30 Entre 1796 e 1798 a capacidade militar das forças republicanas foi consideravelmente aumentada. Embora ainda houvesse muitas tropas irregulares de negros sem aliança determinada, os regimentos comandados porToussaint não eram mais uma tropa de guerrilha, mas sim um contingente altamente disciplinado, capaz de deslocar-se estrategicamente para qualquer parte da colónia. Os oficiais britânicos reconheceram a capacidade militar e a tática das demi-brigades de Toussaint.31 A ordem social da São Domingos republicana refletia o caráter semicamponês e semiproletário dos ex-escravos, sem cujo apoio, mesmo que de má vontade, não poderia sobreviver. Sidney Mintz escreveu sobre as aspirações ttpro tocam ponesas" dos escravos do Caribe e há pouca dúvida de que muitos ex-escravos de São Domingos viam a emancipação principalmente como uma oportunidade para cultivar um pedaço de terra e ter uma família, sem serem molestados por seus ex-íêitores.32 Por outro lado, o regime d& piantation escravista desenvolvera uma força de trabalho disciplinada e desenraizada; alguns dos próprios ex-escravos haviam sido organizadores e mesmo mestres de tarefas; muitos ainda não tinham desenvolvido vínculos locais fortes. A resistência localizada e "protocamponesa" frustrou amplamente a tentativa de recriar o regime dep/anfalion. Paradoxalmente, entretanto,
os que se haviam formado na plantation tiveram papel importante na sustentação da nova ordem política republicana. Em última instância, foram a disciplina e a. coesão do exército, que reproduziam as dasplantetioiu, que derrotaram os partidários da reescravização.33 A resistência negra aos britânicos e à escravidão vinha de várias fontes. A maioria dos negros adultos havia nascido na África; uma síntese de religiões africanas e ideias políticas encorajaram-nos a repelir a escravização. Alguns dos que lideravam bandos de maroons e realizavam cerimónias de vodu, como Hyacinth, d is puseram-se a colaborar com os britânicos. Mas por mais egoístas que pudessem ser determinados líderes, eles descobriram que a aliança com os defensores da escravidão poderia afastar a massa de negros. Por trás das linhas britânicas, o destino de cada uma dzsplantations dependia muitíssimo da atitude da elite escrava; se decidissem partir, o resto dos trabalhadores também o fariam. Com o prolongamento do conflito, não se pôde garantir a segurança vasplantations "leais". Ao intervir em defesa da escravidão, na verdade a ocupação britânica provocou uma resistência mais sistemática e com raízes mais profundas. Os republicanos prosperaram até o ponto em que se aliaram a esta força social elementar c a ela deram coesão. Os últimos estágios da guerra contra os britânicos assistiram à afirmação do poder independente de Toussaint e a um certo rapprochement entre o general negro e Rigaud, seu colega mulato no sul. No sul e no oeste os escravos libertados também formavam as fileiras das forças republicanas, mas nestas regiões os oficiais, em sua maioria, eram mulatos ouancten /teres. Os generais republicanos conseguiram confinar os britânicos em enclaves cada vez mais sitiados. Era problema urgente dos dois comandantes encontrar recursos para manter suas tropas. Nesta situação, tanto Tbussaint quanto Rigaud redescobriram as vantagens da autonomia comercial que os proprietários deplantations das Antilhas tanto buscaram. Seu controle do campo dava-lhes acesso a pelo menos algum cafe} açúcar e algodão. Os mercadores norte-americanos dispunham-se a pagar por estas mercadorias com suprimentos militares ou moedas de ouro; os agentes mercantis da metrópole ainda remanescentes, estorvados pelo bloqueio britânico, pouco tinham a oferecer. Sonthonax e Laveaux preferiam uma solução diferente para o problema dos suprimentos e da receita; como Hughes em Guadalupe, começaram a organizar uma guerre de corse revolucionária; havia agora uma "quase guerra" entre a França e os Estados Unidos, já que o presidente Adams aliara seu país aos britânicos. Mas nem comissários nem generais estavam em condições de determinar políticas. Em março de 1797 houve eleições para uma nova Assembleia francesa; provavelmente por instigação de Toussaint, Laveaux e Sonthonax foram escolhidos
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como deputados de São Domingos. Laveaux aceitou bem sua nova missão; transferiu o comando geral para Toussaint e, ao voltar a Paris, continuou a defender a nova ordem de São Domingos. Sonthonax recusou-se a partir. A tensão cresceu entre o comissário civil e o comandante-em-chefe negro até que, em setembro, Toussaint obrigou Sonthonax a obedecer a uma ordem de retomo vinda de Paris. Tòussaint alegou que Sonthonax tramava para tornar São Domingos independente e massacrar os brancos. Na verdade, era Toussaint que estava dando um passo rumo à independência, enquanto disfarçava seus rastros distorcendo os fetos. A partida de Laveaux e Sonthonax aconteceu em um período em que Toussaint e Rigaud estavam posicionados para recuperar dos britânicos o controle dos territórios ocupados. Mas dada a força do poderio naval britânico e a fortificação dos enclaves ocupados, esta operação prometia ser difícil. Através de intermediários, o comandante britânico sugeriu que estava disposto a negociara retirada com Toussaint e Rigaud. Os britânicos começavam a perceber que não havia como vencer em São Domingos; a ocupação era cara e ineficaz. O governo de Londres enviou novo comandante com ordens secretas de estudar termos para uma retirada parcial ou completa; esperava-se convencer os comandantes de cor a retirar o apoio à política de'ofensiva revolucionária fora de São Domingos. Seria oferecida a Toussaint e Rigaud uma evacuação ordeira, que lhes permitiria tomar posse das plantations, dos portos e das instalações militares da zona ocupada britânica. Em troca disso os britânicos insistiam que as atividades dos corsários republicanos e agentes revolucionários chegassem ao fim, que os comerciantes tivessem liberdade para visitar os portos de São Domingos e que os proprietários franceses que desejassem ficar tivessem permissão de fàzê-lo. Toussaint dispôs-se a aceitar e honrar esses termos; Rigaud concordou com certa hesitação. Nem a Laveaux nem a Sonthonax seriam apresentados estes termos, nem eles se disporiam a examinar um acordo como este com os britânicos.34 Uma ameaçadora mudança de rumo na França agravou o conflito entre Toussaint e Sonthonax. As eleições de março de 1797 trouxeram de volta à cena da vida política francesa muitos monarquistas disfarçados e ex-membros do establishment colonial. Barbe Marbois, o ex-intendente de São Domingos, tornou-se presidente dos Quinhentos. Nas sessões de abertura deste organismo, houve apelos à restauração da ordem nas colónias e ao repúdio ao extremismo de Sonthonax. As reflexões de Rochambeau sobre o tema da anarquia colonial foram muito citadas por Viennot Vaublanc, que surgiu como principal porta-voz dos interesses dos donos de plantations. Também parecia haver uma perspectiva de paz entre as potências rivais na Europa. Os monarquistas franceses que haviam promovido a ocupação
britânica de São Domingos, Malouet e de Charmilly, acreditavam que a restauração da monarquia e o fim da guerra estavam próximos. Sonthonax e Toussaint ficaram muito alarmados por relatos e rumores sobre os acontecimentos na Europa. Sonthonax era totalmente dedicado à República e à nova ordem revolucionária nas colónias. Tòussaint preocupava-se mais estritamente com a defesa da nova ordem em São Domingos. Se Sonthonax realmente planejara a independência de São Domingos, como fora alegado, foi no caso de uma restauração da monarquia na França; e seu suposto plano de massacrar os brancos provavelmente se referia à punição dos proprietários que haviam colaborado com os britânicos. Toussaint era menos ligado a algum regime específico na metrópole, via algumas vantagens em potencial na volta de proprietários e administradores ao,plantations e desejava manter viva a possibilidade de negociar com os britânicos. Conseqúentemente, Toussaint rompeu com Sonthonax e, nas palavras de James, tflançou-o aos lobos".35 (Mais uma vez a boa sorte do comissário jacobino predominou; quando ele chegou de volta à França, as intrigas de monarquistas e proprietários coloniais haviam sido frustradas pelo golpe de Fructidor.) Tbussaint estava pronto a desembaraçar-se de Sonthonax, que comparava a outros extremistas como Robespierre e Marat, mas ao mesmo tempo enviou a Paris uma réplica eloquente e vigorosa a Vaublanc e Rochambeau. Avisou que os ex-escravos saberiam como lutar, "caso o general Rochambeau (...) ressurja à frente de um exército para devolver os negros à escravidão".36 A posição britânica começou a entrar em colapso nos primeiros meses de 1798. Cerca de 20.000 soldados britânicos haviam morrido, desertado ou sido dispensados por incapacidade até então; o total de baixas britânicas no teatro do Caribe logo chegaria a 60.000 homens. A doença cobrara alto preço e as operações militares em São Domingos lograram pouco resultado. Em nenhum momento os ocupantes conseguiram realizar grandes ofensivas contra os republicanos, nem estenderam a ocupação além dos limites alcançados nos primeiros meses, graças às milícias dos proprietários franceses. As baixas das forças britânicas em combate nas Pequenas Antilhas foram duas vezes maiores que as de São Domingos; caso os britânicos não tivessem enfrentado esta distração e tamanha perda, poderiam mesmo ter sufocado a revolta na colónia maior. O resultado ruim e as pesadas baixas das operações da Grã-Bretanha nas índias Ocidentais estimularam o sentimento antibélico e deram espaço à oposição de Fox no Parlamento.37 Depois da partida de Sonthonax, Toussaint e Rigaud mantiveram a pressão sobre as forças britânicas. Por algum tempo os britânicos tiveram esperanças de manter o controle da base naval de Mole St Nicolas ou de algum outro enclave. Só em julho-agosto de 1798 chegou-se a um acordo com Toussaint e Rigaud para a retirada completa dos bri-
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tânicos. Concordou-se que São Domingos não seria mais usada como base de ataques a embarcações ou colónias escravistas britânicas. Os proprietários franceses que desejassem poderiam ficar. Os próprios britânicos haviam recrutado tropas auxiliares negras para a defesa da zona ocupada; algumas dessas tropas foram agora integradas ao exército de Toussaint Toussaint e Rigaud realizaram estas negociações sem a apropriada sanção do Diretório e vários dos acordos mais delicados foram mantidos como cláusulas se* cretas quando o tratado foi assinado. Os britânicos receberam Toussaint com todas as honras no Mole St Nicolas antes de partirem e convidaram-no a criar um reino independente — embora grato pela atenção, ele recusou o convite. Relatos na imprensa britânica insinuaram a conclusão do acordo — na verdade, estimularam de forma malévola a ideia de que Toussaint estava a ponto de abandonar a França. Nesta época as autoridades metropolitanas já não tinham mais confiança em seu governador em São Domingos. Raimond e Roume permaneceram como comissários titulares, mas só tinham poder de conselheiros. Em abril de 1798 Paris enviou outro comissário, Hédouville, mas ele chegou sem tropas. O novo comissário teve pouca alternativa além de aprovar uma versão resumida do tratado com os britânicos. Hédouville suspeitou que Toussaint comprometera a República com uma série de concessões — aos britânicos, a ex-émigrés a quem permitira retornar e à massa de negros do norte, que não davam muita atenção às culturas comerciais. O comissário anunciou que daí para a frente os trabalhadores teriam de assinar contratos de trabalho de três anos em vez de um. Isso provocou revolta no norte e convenceu Hédouville de que era melhor partir para a França. Antes de ir, ele prometeu a Rigaud todo o apoio caso desafiasse o poder de Toussaint Este tiro de misericórdia aproveitava o antagonismo e a rivalidade já existentes entre os dois generais e, em termos mais gerais, entre negros e mulâtres. Depois de um período de tensão, deflagrou-se abertamente a guerra civil em março de 1799. O general negro levou pouco mais de um ano para obter o controle total e expulsar da ilha Rigaud e outros mulatos importantes. Enquanto Rigaud buscava refugio na França, o avanço de Toussaint foi facilitado pela cobertura naval dos Estados Unidos; a administração de Adams acompanhou o governo britânico e considerou Toussaint menos ameaçador ao comércio e à ordem no Caribe do que os que eram mais fiéis à República francesa. No entanto, Toussaint tentou dar a seu regime alguns fiapos de legitimidade republicana com a atribuição do título de comissário sucessivamente a Raimond e Roume. Em dezembro de 1800 suas forças invadiram a metade da ilha ainda sob administração espanhola e decretaram a emancipação dos 15.000 escravos da colónia. Esta ação não teve sanção da metrópole e foi realizada para
impedir que Santo Domingo fosse usada como escala de alguma expedição francesa. Toussaint acompanhara atentamente a ascensão de Napoleão Bonaparte ao poder e via alguns paralelos entre ele e o primeiro cônsul. De vez em quando ele ainda enviava cartas a Paris justificando sua conduta; uma delas, que ficaria sem resposta, começava assim: *Do Primeiro dentre os Negros ao Primeiro dentre os Brancos."38
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Toussaint governou São Domingos até a chegada de uma grande força expedicionária francesa em fevereiro de 1802. Ele dirigira uma certa recuperação da economia e a criação de uma nova Constituição. Segundo os números reunidos pelo tesouro de São Domingos, em 1800 as exportações ficaram em apenas um quinto do volume alcançado em 1789; por causa dos preços e impostos mais altos, a arrecadação alfandegária foi quase a mesma. O volume de exportações pode ter sido subestimado para esconder a extensão do comércio com os Estados Unidos ou a GrãBretanha. No entanto, não há dúvida de que a revolução e a guerra haviam produzido um colapso da produção da.$planla£fons. Tabela 2. Exportações de São Domingos, 1789 e 1800-1801 Peso (em LOQOlibras) Açúcar branco Açúcar bruto Café Algodão Anil
1789
1800-1801
47.516 93.573
17 18.519
76.835 7.004
43.220 2.480
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Fonte: Pluchon, Toussaint Lonverture, p. 275.
Os sistemas de irrigação que tornaram São Domingos famosa haviam sido muito danificados e muito equipamento fora destruído. A população da parte francesa caíra para menos de 400.000 indivíduos, cerca de dois terços do nível anterior. O declínio populacional resultara do fim da importação de escravos e da proporção historicamente pequena de crianças na população escrava, assim como da devastação da guerra. A nova classe camponesa estava mais interessada na agricultura de subsistência do que no cultivo de produtos comerciais. Isso trazia a esperança de recuperação demográfica no futuro, mas solapava a economia d&plantation. No ditado camponês "Motn pás esc/ave, moin pás iravaye" (Não sou escravo, não tenho de trabalhar), o trabalho a que se referia era em essência aquele realizado para outrem.
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Cerca de doís terços dasplantalions sobreviventes estavam nas mãos do Estado, que confiscara as propriedades de emigres e contra-revolucionários; mas Toussaint permitiu a volta dos que quisessem retomar para reclamar sua terra. Os domaines nationaux foram arrendados a indivíduos ou a oficiais do exército. Os comissários Raimond e Roume compraram ou arrendaram uma série de propriedades; o general Dessalines controlava 33 propriedades açucareiras e dizia-se que o general Christophe possuía mais de $250.000 em 1799.39 Sob o sistema àtfermage, esperava-se que os arrendatários dos domaines nationaux pagassem um quarto do valor da colheita aos trabalhadores e entregassem ao Estado metade de toda a produção. Eíaborou-se um orçamento estatal de 33 milhões de livres para 1801. Era comum que as autoridades fiscais cobrassem os impostos em produtos em vez de dinheiro; comerciantes britânicos ou norte-americanos então trocariam armas, munição, tecidos e equipamento por café ou açúcar. Segundo o balanço financeiro oficial, a venda ou troca de produtos dos domaines nationaux gerou maior receita que a alfândega.40 Funcionários e oficiais do exército administravam propriedades porque era mais provável que eles tivessem acesso à mão-de-obra disciplinada. Os produtores diretos só recebiam permissão de cultivar suas roças caso contribuíssem para o trabalho nas propriedades. Um decreto de outubro de 1800 sujeitou todos os trabalhadores agrícolas — lavradores, feitores, administradores e proprietários — à disciplina militar. Todos os adultos tinham de comprovar "emprego útil", enquanto administradores e proprietários deviam apresentar suas contas ao comandante militar do distrito. Uma guarda rural especial, organizada em unidades de 55 homens, foi criada para obrigar o cumprimento do decreto. Juridicamente, o novo regime de trabalho assemelhava-se a um tipo de servidão em que os lavradores estavam supostamente ligados às propriedades e eram obrigados a trabalhar e em troca tinham acesso a meios de subsistência, a uma vida familiar autónoma e a uma parte teórica dos rendimentos faplantation. Na prática, os produtores diretos alguma vez devem ter estado em uma posição de questionar ou desafiar a severidade dos decretos sobre o trabalho. Ainda existiam bandos de maroons em várias regiões de São Domingos, que não estavam aliados ao Estado e, em vez disso, ligavam-se a determinadas localidades. Os maroons ainda tendiam a ser, principalmente, homens mais jovens. As mulheres deram uma grande contribuição económica nas áreas pacificadas, com seu trabalho no campo e a organização de mercados locais. Para conservar sua mão-de-obra, cada propriedade tinha de oferecer alguns incentivos e direitos ao produtor, além da proibição formal do chicote. Muitas vezes os trabalhadores das propriedades tinham de andar armados, enquanto em boa medida o próprio exército recrutava seus soldados nas filei-
rãs da classe camponesa. As verdadeiras relações de força no campo, onde muitos ex-escravos receberam armas, tornaram impraticável a reinstituição total da escravidão. Por outro lado, muitas vezes a soldadesca calculava e cobrava tributos de forma rude e grosseira, sem respeito pelos direitos formais dos produtores. O estilo de governo de Toussaint reproduzia o de um governador colonial autocrático e independente — com a diferença de que ele não tinha intendente ou ministro metropolitano com quem disputar a autoridade. O antigo Palácio do Governador em Port au Prince, agora Port Républicain, servia-lhe de residência oficial e quartel-general, do qual saía em repetidas viagens de inspeção. A equipe pessoal de Toussaint incluía quatro ou cinco secretários (geralmente brancos) que redigiam uma torrente de ordens, decretos, cartas e proclamações. Sua entourage incluía vários conselheiros ou administradores permanentes, brancos e mulatos. Entre estes havia cinco padres "constitucionais", cures radicais que parecem ter-se identificado desde o início com a revolta escrava. Outros membros importantes da equipe de Toussaint eram os mulatos Raimond e Pascal; Nathan, o juif interprete (juizintérprete); Brunel, ex-administrador colonial; e Vincent, coronel-engenheiro francês. Muitos desses homens, apesar da nacionalidade francesa, serviram lealmente a Toussaint em suas negociações com britânicos ou americanos. Em sua maioria, os oficiais do exército eram negros e ex-escravos; homens como Dessalines, Christophe e Moyse. Entre os poucos oficiais brancos ou mulatos estava Age, o chefe branco do estado-maior, e Clairveaux, o comandante mulato do leste. Durante a guerra com Rigaud, o número de oficiais mulatos caiu consideravelmente. Suzanne Simon, esposa de Toussaint, e Claire Heureuse, esposa de Dessalines, também participavam dos assuntos públicos, pedindo clemência nas sangrentas guerras de castas que dilaceravam São Domingos. Havia grandes recepções no Palácio do Governador, frequentadas por oficiais da nova ordem, comerciantes estrangeiros e proprietários que haviam voltado para suasplanlafwns. Toussaint vestia-se com simplicidade, mas costumava andar acompanhado de uma esplêndida guarda de honra. Toussaint impunha-se a seus colaboradores pela força de sua personalidade e pelo controle do exército. Falava um francês vigoroso, mas sem curvar-se à gramática, e lera muito. No Palácio do Governador e em outros prédios públicos encontravam-se bustos e retratos de Raynal que, mais que Rousseau e Condorcet, fora adotado como profeta da nova ordem. Assim como a obra de Raynal refletia as aspirações de proprietários esclarecidos e ao mesmo tempo defendia a emancipação dos escravos, havia também uma característica dúplice no novo regime de Toussaint Baseava-se nas forças liberadas pela revolta e pela emancipação dos escravos; ao mesmo tempo, refletia ou reproduzia os ideais dos
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proprietários autonomistas e administradores esclarecidos. Toussaint era um exescravo; era também um ex-senhorde escravos.41 Em julho de 1801 uma nova constituição foi esboçada por uma Assembleia Central cujos dez membros foram nomeados por Toussaint. Ela o proclamou governador vitalício. A Assembleia era formada por três brancos, três mulatos e quatro habitantes da ex-colônia espanhola. O texto da Constituição foi redigido, com aprovação de Toussaint, por Raimond, secretário da Assembleia, e Bertrand Borghella, seu presidente. Borghella era um grande proprietário e exmembro do Conseil Supêrieur de Port au Prince, órgão sabidamente autonomista. A constituição declarava que São Domingos era uma colónia autogovernada da França e gozava de liberdade comercial. Toussaint tinha o direito de nomear seu sucessor entre os generais do exército. Liberdade e nacionalidade francesa eram prerrogativas de todos os habitantes. O catolicismo era a religião oficial. O próprio Toussaint sempre demonstrara grande respeito pela religião na qual fora criado; celebravam-se Te Deums por suas vitórias e o próprio general subia ao púlpito para fazer sermões para a congregação. A Constituição só permitia um vínculo nominal entre metrópole e colónia; não se previa um representante residente'Ha metrópole, apenas correspondência entre o governador e o chefe de Estado francês. No entanto, a Constituição louverturiana não chegou a declarar a independência completa e, como gesto conciliatório, uma cópia foi enviada para a aprovação do primeiro cônsul.42 A nova ordem presidida por Toussaint tomou providências maciças e prudentes para a defesa. O inimigo em potencial não era mais a Grã-Bretanha, e sim a própria metrópole. Enquanto prosseguisse a guerra entre a Grã-Bretanha e a França, a metrópole não teria condições de enviar uma expedição às Antilhas. Mas em 1799 ficou claro que a paz logo seria concluída. A substituição do presidente Adams por Jefferson nas eleições de 1799 foi mais um sinal de mau agouro para São Domingos, já que provavelmente resultaria no fim da chamada "quase guerra" entre a França e os Estados Unidos. Adams incentivara o comércio com São Domingos e seu representante ali desempenhara papel importante nas negociações com os britânicos. Jefferson não só era pró-França, como também proprietário de escravos da Virgínia e, como tal, propenso a ser especialmente hostil a um poder negro vizinho nas Américas. Toussaint se dispusera a dar fim à atividade antiescravista dirigida a outros territórios americanos, o que agradara a Adams; acreditava-se que, para seu sucessor, a simples existência de um Estado negro emancipacionista seria um anátema. O primeiro cônsul, calculando que a notícia seria bem-vinda, enviou uma mensagem ao novo presidente para dizer que a insubordinação em São
Domingos não seria tolerada. Por uma mescla de motivos que será examinada no próximo capítulo, JefFerson nada fez para desencorajar os franceses. A militarização da ordem louverturiana em São Domingos é ressaltada por Pierre Pluchon, que afirma que foi ao mesmo tempo tirânica e opressora. O exércirode Tbussaintmanteve-se com um contingente regular de 20.000 soldados, com um número semelhante de homens organizados na milícia e na gendarmerie. Certamente forças armadas equivalentes a mais de um décimo do total da população constituíam uma carga pesada sobre os recursos disponíveis. A herança de desordem deixada por uma década de guerra civil, revolução e intervenção estrangeira puseram severamente à prova o novo poder e o impeliram para o caminho da centralização e da militarização. Muitas vezes Toussaint achou mais fácil incorporar os grupos militares independentes ou inimigos derrotados do que tentar desmantelálos, o que levou ao crescimento ainda maior da estrutura militar. O perigo declarado de novas intervenções ajudou a justificar esta política.43 A expedição francesa temida por Tbussaint aconteceu, como previsto, no início de fevereiro de 1802. Inicialmente compreendia cerca de 16.000 homens comandados por Leclerc, famoso general republicano e cunhado de Bonaparte. Leclerc levava consigo a nomeação de governador-geral e uma proclamação afirmando que a França sempre respeitaria a liberdade de seus novos cidadãos. O tamanho da força expedicionária e sua chegada simultânea aos principais portos da ilha deixou claro que a intenção de Bonaparte era reduzir a força do exército de Toussaint e reintegrar a colónia. O segundo no comando de Leclerc era Rochambeau; acompanhavam-no também os comandantes mulatos Rigaud e Pétion. Bonaparte estava decidido a criar um novo império francês nas Américas. Chegou-se a um acordo preliminar do tratado de paz com a Grã-Bretanha em setembro de 1801. Sob seus termos, Martinica e outras colónias ocupadas pela Grã-Bretanha seriam devolvidas à França e seus aliados — só Trinidad foi mantida pela GrãBretanha, embora o primeiro cônsul o lamentasse. Mais ou menos na mesma época a França adquiriu da Espanha a Louisiana, em uma cláusula secreta do Tratado de San Ildefonso. A reconquista de São Domingos seria o ponto central desta estratégia. Com algum sucesso, Bonaparte tentou convencer os governos britânico e americano de que a aniquilação do "governo negro" em São Domingos era de seu interesse; insistiu na "necessidade de sufocar em qualquer parte do mundo todo tipo de inquietação e problemas". Na própria França havia um influente grupo de pressão de proprietários ou mercadores coloniais que desejavam recuperar sua antiga prosperidade. A esposa do primeiro cônsul, José p hine Beauharnais, possuía propriedades em São Domingos e Martinica. Barbe Marbois era agora membro do
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Conselho de Estado, assim como Moreau de Saint Méry, ex-representante da Martinica e membro do Clube Massiac. Parece que Talleyrand sentiu que a aventura no Caribe era uma boa válvula de escape para as ambições do primeiro cônsul.. Mais tarde Napoleão culparia "o Conselho de Estado e seus ministros" pela promoção da expedição a São Domingos; segundo ele, foram "empurrados pelos clamores dos colonos, que formavam um grupo considerável em Paris, e, além disso, eram [...] quase todos monarquistas, ou a soldo do partido dos ingleses".44 A tentativa de Napoleão de livrar-se da responsabilidade não deve ser aceita sem reservas; no entanto, o grupo colonial de pressão e os mercadores ansiosos para atingir um grande mercado continental possuidor de produtos tropicais foram, em geral, favoráveis à expedição, assim como os que almejavam boas relações com a GrãBretanha e os Estados Unidos. A destruição do "governo negro" em São Domingos garantiria a Napoleão a gratidão de senhores de escravos de todo o Novo Mundo. Toussaint consolidara a revolução em São Domingos jogando as principais potências atlânticas umas contra as outras. Agora isto não era mais possível. Na época da chegada da expedição de Leclerc, Toussaint também estava vulnerável internamente. Cerca de quatro meses antes da chegada de Leclerc, Toussaint realizara um grande expurgo no exército, que envolveu a execução de Moyse, comandante do norte. As razões exatas deste expurgo são difíceis de determinar, mas tinham relação com a inquietação dos lavradores causada pela implementação dos decretos de trabalho. Moyse não conseguira reprimir esta inquietação nem apoiá-la abertamente, enquanto seus seguidores acusavam Toussaint de pretender reduzir os trabalhadores do campo a pouco mais que escravos ou servos de seus antigos senhores ou, ainda pior, àtpetits-blancs ou oficiais do exército emergentes. Segundo um relatório do cônsul norte-americano em Lê Cap, Moyse revelara disposição de derrubar Toussaint e estabelecer melhores relações com a França. A execução sumária de Moyse e de cerca de 2.000 partidários, verdadeiros ou supostos, foi seguida pela adoção de um decreto draconiano de segurança interna. Exigiu-se que todos os cidadãos possuíssem um cartão oficial de identidade e criou-se uma série complexa de controles sobre os movimentos de trabalhadores e soldados. A ociosidade seria punida com trabalhos forçados, a sedição com a morte e estrangeiros suspeitos seriam deportados. Este decreto não só endureceu o regime das planiations; ele buscava desesperadamente evitar a desintegração política.41 O desembarque de Leclerc na ilha foi realizado com sucesso surpreendente em seus primeiros estágios. Em vários lugares a autoridade de Leclerc foi aceita por comandantes do exército, inclusive Paul Louverture e Clairveaux, aos quais pareciam faltar instruções claras de seu comandante-em-chefe. Primeiro Toussaint
desmoralizou seus partidários com um expurgo e depois deixou seus generais despreparados para uma invasão que todo mundo sabia que ia acontecer. Talvez Toussaint esperasse que Bonaparte lhe oferecesse um acordo. Havia também a dificuldade, ignorada por alguns, de que a lealdade à República ainda era uma força poderosa, tanto para pessoas de cor quanto para a maioria dos brancos. A única resistência eficaz a Leclerc veio das forças comandadas por Toussaint e Christophe, no norte, e Dessalines no oeste. Toussaint agora redescobriu sua vocação de revolucionário. Apelou diretamente aos lavradores do norte, armou-os e propôs uma estratégia de guerrilha. No entanto, os principais ajudantes de Toussaint insistiram em lutar em uma campanha mais convencional e sofreram vários reveses. Nos últimos dias de abril, Christophe e Dessalines ofereceram um acordo a Leclerc com a condição de que mantivessem seus postos e comandos. Leclerc aceitou a oferta. No início de maio, Toussaint também insinuou a disposição de concluir a paz com o novo governador-geral com a condição de que pudesse retirar-se para suas terras com sua guarda pessoal e que suas tropas fossem integradas às forças republicanas. Mais uma vez Leclerc concordou de bom grado, embora desconfiasse das intenções de Tòussaint Apesar destas capitulações, a guerra irregular prosseguiu, liderada pelos chefes de bandos maroons e de unidades da milícia ou do exército que não tinham fé no comandante francês ou perspectiva de chegar a um acordo com ele. O objetivo de Leclerc era desarmar e desmantelar o máximo possível de tropas negras e não deixar no exército nenhum oficial negro com patente superior à de capitão. A continuação da resistência tornou impossível implementar este plano. Provavelmente com boas razões, ele suspeitava que lòussaint e outros generais negros tramavam a insurreição. Em 6 de junho Toussaint foi preso e levado para a França. Em 1° de julho Napoleão escreveu a Leclerc ordenando-lhe que prendesse todos os generais negros e os deportasse para a França antes do final de setembro: "sem isso, nada teremos feito, e uma colónia imensa e bela estará pousada sobre um vulcão, e não inspirará confiança alguma a investidores, colonos ou ao comércio."46 Leclerc explicou que por enquanto ainda estava enfraquecido demais para tomar uma medida dessas e que a colónia só seria mantida com a ajuda dos generais negros fiéis. Embora Leclerc recebesse alguns reforços, suas tropas tinham sofrido pesadas baixas: somente o cerco e a tomada do forte de Crête à Pierrot, mantido por tropas de Dessalines, custaram a vida de mais de 1.500 soldados franceses. Com a chegada do verão, a febre amarela começou a cobrar seu preço. Enquanto isso, a resistência negra continuava e Leclerc queixava-se que de nada servira a prisão de Toussaint, já que havia 2.000 chefes negros cuja detenção seria necessária. O próprio Leclerc sucumbiu à febre em outubro e morreu em 2 de novem-
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bro. Em suas últimas cartas a Napoleão, queixava-se de que sua posição vinha sendo solapada mortalmente. Os colonos brancos que voltaram com ele, muitos com a intenção de recuperar sua antiga propriedade, sonhavam com o dia em que todo o rigor do antigo regime, incluindo a escravidão e o sistema de castas, voltaria a vigorar. O comportamento provocador desses cólons brancos e dos membros da Guarda Nacional recrutados dentre eles causou problemas intermináveis com os soldados negros e mulatos. As tropas francesas, oriundas principalmente do Exército do Reno, demonstravam geralmente pouca simpatia pelos brancos da colónia e aliaram-se aos comandantes de cor. Nas memórias de um general republicano, íàla-se do silêncio preocupado que se fez em suas tropas quando ouviram os defensores de Crête à Pierrot entoar canções patrióticas e revolucionárias francesas: "Apesar da indignação que as atrocidades dos negros inspiram, em geral essas árias causaram um sentimento doloroso. Nossos soldados se entreolharam inquisitivamente; pareciam dizer: 'Estão em seu direito nossos bárbaros inimigos? Será que somos mesmo os únicos soldados da República? Tornamo-nos servis instrumentos políticos?'"47 Leclerc insistiu repetidamente que a República francesa teria escrupuloso cuidado com a liberdade dos ex-escravos de São Domingos, e de início acreditaram nele. No verão de 1802 a prisão de Toussaint e a chegada de notícias da França e das ilhas de Barlavento começaram a destruir a credibilidade de Leclerc nesta importante questão. A reincorporação da Martinica, onde as plantations escravistas estavam intactas, obrigou o regime consular a esclarecer a situação da escravidão nas colónias francesas. O resultado foi o decreto de Floreai, Ano X (19 de maio de 1802), apresentado ao Tribunato com um preâmbulo que dizia ser necessário "garantir a boa segurança de nossos vizinhos". O decreto restaurava a legalidade da escravidão e do comércio de escravos nas colónias francesas; embora não fizesse referência específica a São Domingos e Guadalupe, explicava que as autoridades coloniais competentes tomariam medidas quanto aos que haviam sido libertados pelas leis revolucionárias. O decreto de Floreai foi aprovado por 54 votos contra 27 no Tribunato e por 211 votos contra 63 no Senado. A Legião de Honra foi criada no mesmo dia pelo Tribunato; na semana anterior, fora restaurada a marcação a ferro dos criminosos. O mês de Floreai trouxe na prática o fim da primeira República francesa: o plano de um plebiscito para tornar Napoleão cônsul vitalício também foi engendrado nesta época.4' A primeira tentativa francesa de reinstituir a escravidão aconteceu em Guadalupe. Victor Hugues havia sido substituído no cargo de governador em fevereiro de 1798 e forçado a deixar a colónia em 1799. O regime que criara foi preservado
em sua essência por seus sucessores imediatos, entre os quais estava Laveaux; este último foi preso em março de 1800. Dizia-se que havia mais de 1.000 propriedades operadas por lavradores negros; depois da demissão de Hugues, tentou-se criar um sistema um pouco menos regulamentado de divisão da colheita (colonatpartiare). A massa de trabalhadores negros de Guadalupe não adquiriu a sólida independência dos ex-escravos de São Domingos; isso aconteceu tanto porque predominara a emancipação "vinda de cima" quanto porque o tamanho relativamente pequeno da ilha dava menos alcance ao cultivo de subsistência e à maronnage, sustentáculos essenciais da liberdade negra na colónia maior. A estrutura militar republicana em Guadalupe incorporava gens de coukur nas posições mais elevadas, sendo notáveis entre eles o general mulato Magloire Pélage e o general negro Louis Delgrès. Em 1801 Bonaparte enviou Lacrosse, que salvara as lies du Vent para a República em 1792, para preparar Guadalupe para o regime colonial especial do consulado. Magloire Pélage logo adivinhou a ameaça e prendeu Lacrosse em 24 de outubro. Bonaparte então despachou uma grande força para a colónia, comandada pelo general Richepanse. Magloire Pélage chegou a um acordo com Richepanse em maio, mas Louis Delgrès optou pela resistência armada. Depois de um último cerco desesperado na cratera do vulcão Matouba, Delgrès foi morto e a maioria de seus seguidores foi subjugada. Assim que Richepanse recebeu o decreto de Floreai, decidiu reinstituir a escravidão. Não se fez nenhuma tentativa de reescravizar os soldados negros ou os anciens libres, mas em geral os trabalhadores que estavam nas propriedades foram restituídos à sua antiga condição.49 Para consternação de Leclerc, a notícia da restauração da escravidão em Guadalupe chegou em julho a São Domingos, e demoliu a ideia de que o decreto de Floreai só era aplicável à Martinica e a outros territórios onde a escravidão nunca fora abolida. Leclerc queixou-se a Paris de que o medo da restauração da escravidão tinha um efeito desastroso, ao incitar a revolta negra e minar a lealdade de seus comandantes negros e mulatos. Dessalines e Christophe reprimiram impiedosamente os rebeldes nas áreas a eles confiadas pelo capitão-geral francês. Em agosto e setembro começaram a cercar suas apostas, ajudando secretamente alguns grupos rebeldes enquanto eliminavam vigorosamente rivais em potencial. Em um esforço para manter a lealdade de seus generais negros, Leclerc mandou Rigaud de volta à França. Mas o racismo da estrutura colonial branca recriara a aliança entre negros e mulatos, que desaparecera na guerra civil de 1799. Os comandantes negros, desdenhados pelos franceses, também tinham profunda consciência da gravidade da resistência popular à escravidão e ao sistema de castas. Uma década de lutas fundira na mentalidade popular as dimensões pragmática e ideológica do
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antiescravismo. Assim, o conhecimento da restauração da escravidão deflagrou a defesa de direitos e posses bastante específicos; quanto aos anciens libres, eles sentiram que sua própria situação civil seria igualmente degradada caso se restaurasse a escravidão negra. Em 13-14 de outubro de 1802, os mais notáveis generais negros e mulatos — Dessalines, Christophe, Clerveau e Pétion — voltaram-se ao mesmo tempo contra os franceses, com regimentos que somavam cerca de 6.000 soldados disciplinados e bem armados. Leclerc mal escapou à prisão e à perda de Lê Cap, onde jazia em seu leito de morte. Em novembro Rochambeau assumiu o comando das forças francesas, enquanto uma reunião dos generais rebeldes nomeava Dessalines seu comandante-em-chefe. Rochambeau agora enfrentava não só a revolta popular como também formações militares experientes e capazes. Embora os bandos rebeldes tornassem impossível o domínio da colónia, graças à sua nova aliança com as demi~ brigades negras os franceses poderiam ser derrotados. As relações entre a França e a Grã-Bretanha deterioraram-se rapidamente quando Napoleão ameaçou posições britânicas na índia e no Oriente Próximo, enquanto os britânicos recusavam-se a abandonar suas bases no Mediterrâneo, como havia sido acordado em Amíens. A aquisição da Louisiana pela França levantara suspeitas norte-americanas. Os rebeldes negros de São Domingos acharam um pouco mais fácil conseguir suprimentos com comerciantes britânicos ou norte-americanos. Em maio de 1803 rompeu novamente a guerra entre a Grã-Bretanha e a França; as boas relações entre a França e os Estados Unidos se recompuseram quando Napoleão entregou a Louisiana à república americana. No entanto, Napoleão não tinha intenção de abandonar São Domingos e conseguiu enviar um reforço de 15.000 soldados a Rochambeau antes do bloqueio britânico à ilha. A desesperada tentativa francesa de recuperar São Domingos envolveu o massacre em grande escala de não-combatentes e atingiu níveis de extermínio que anteciparam as guerras coloniais de época posterior. As guerras que devastaram São Domingos foram com frequência marcadas pelo mais atroz derramamento de sangue. Os vários conflitos que lançaram monarquistas contra republicanos, senhores contra escravos, brancos contra não-brancos, mulatos contra negros, invasores contra invadidos raramente admitiram a obediência de quaisquer "normas de guerra". Toussaint, animado por um ideal mais construtivo, fora um dos poucos generais a dar quartel aos inimigos, embora permitisse atrocidades ocasionais contra opositores mulatos. Em uma de suas últimas cartas a Napoleão, Leclerc avisou: "Eis aqui minha opinião. Tereis de exterminar todos os negros das montanhas, tanto mulheres quanto homens, com exceção das crianças de menos de 12 anos. Aniquilai metade da população das planícies e não deixeis
na colónia um único negro que tenha usado dragonas.Wi° Se Rochambeau, apesar dos reforços, descobriu que a execução deste sinistro testamento estava além de suas possibilidades, não foi por falta de tentativa. A necessidade de evitar a todo custo a fuga de Toussaint, "o homem que fànatizou esta ilha", era outro refrão das últimas cartas de Leclerc. Em 17 de abril de 1803 Toussaint Louverture morreu nas masmorras geladas da Fortaleza de Joux, nas montanhas do Jura, após meses de tratamento brutal e humilhante. Em uma conferência dos generais rebeldes mais ou menos desta época, decidiu-se não mais lutar sob o estandarte tricolor Segundo a lenda, Dessalines pegou a bandeira da República e rasgou a faixa branca; daí para a frente os rebeldes lutaram sob um estandarte vermelho e azul, no qual as letras R. F foram substituídas pelo lema "Liberdade ou Morte". A expedição e seu ávido séquito de colonos brancos conseguiu manter-se ainda por alguns meses e chegou mesmo a contar com a colaboração de alguns soldados negros e mulatos. Mas a ameaça que representavam, de restauração total do ancien regime colonial, recompôs a aliança entre o exército e os lavradores negros, entre nouveaux libres e anciens libres^ entre negros e mulatos. O duplo projeto de restaurar a escravidão e destruir o "governo negro" soçobrou. Em 29 de novembro os britânicos aceitaram retirar Rochambeau e suas tropas como prisioneiros de guerra; cerca de 4.000 soldados e outro tanto de civis embarcaram em Lê Cap para a Jamaica. A presença francesa manteve-se na antiga metade espanhola, mas agora São Domingos estava inteiramente em mãos rebeldes. Só em 1° de janeiro de 1804, no final de outra conferência de comandantes rebeldes, foi proclamada a República do Haiti. O nome escolhido para a nova república era ameríndio, em vez de africano ou europeu. Dessalines foi nomeado agovernadorgeral", título talvez escolhido por seu eco louverturiano. A derrota da França em São Domingos teve violento impacto na opinião pública da época — especialmente na Grã-Bretanha, que enfrentava outra vez a possibilidade de invasão francesa. Napoleão enviara cerca de 35.000 soldados franceses a São Domingos; uns 20.000 haviam morrido de várias doenças e 8.000 pereceram no campo de batalha. Entre os mortos estavam Leclerc e 18 outros generais brancos. As perdas de auxiliares entre brancos e não-brancos foi pelo menos duas vezes maior que a perda total do kdo francês, embora a doença não fosse uma causa tão importante de morte para as forças locais.51 O impacto da derrota francesa foi ainda maior porque Napoleão estivera livre de outras distraçôes militares nos primeiros 18 meses da tentativa de reconquista. A cara lição aprendida, primeiro pelos britânicos e depois pelos franceses, foi notada por todas as potências coloniais e escravistas. Os britânicos haviam tentado garantir e ampliar a propriedade de es-
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cravos nas índias Ocidentais; em vez disso, perderam 60.000 homens, gastaram recursos muito necessários e consolidaram o poder dos escravos emancipados que tentavam esmagar. A guerra de Napoleão contra o governo negro e a tentativa ignominiosa de restabelecer a escravidão provocaram uma luta de libertação sem precedentes e deram origem ao novo Estado do Haiti. A derrota dos franceses tornou mais fácil para os britânicos compreender o significado de sua própria débâcle em São Domingos. O exemplo e o martírio de Toussaint tornar-se-iam fonte de inspiração para abolicionistas radicais, primeiro na Grã-Bretanha e depois na França e nos Estados Unidos. A imprensa britânica, que em 1796 comemoraria com alegria sua execução, divulgou relatos angustiantes de sua prisão e morte. Em 3 de fevereiro de 1803, o Morning Post publicou o soneto de Wordsworth para Toussaint, com os seguintes versos finais:
Os britânicos mostraram-se menos dispostos a permitir que as índias Ocidentais se tornassem zona de hostilidades e adiaram por muíto tempo qualquer ataque às ilhas francesas restantes. O regimento das índias Ocidentais, formado de africanos especialmente comprados, teve papel importante na defesa do Caribe britânico. Nem as forças antifrancesas de São Domingos, nem a nova República do Haiti tiveram reconhecimento oficial, mas ambos receberam alguns suprimentos militares e alguma cobertura naval dos britânicos. Sem necessidade de um tratado formal de aliança, nsdemi-brigades de Dessalines eram uma barreira formidável a qualquer tentativa de reconstruir as Antilhas Francesas.53 A curto prazo, a derrota em São Domingos teve pouco impacto na própria França, onde Napoleão subjugara seus oponentes e logo planejava aventuras maiores. Os Amis dês Noirs haviam voltado à vida rapidamente em 1797-8, para logo expirar de novo. A ascensão do abade Grégoire ao Senado em 1801 fora um dos últimos atos de independência da Legislatura; ele votaria contra o decreto de Floreai e contra a criação do Império, mas com pouco resultado. Laveaux e Sonthonax passaram para a oposição a Bonaparte como primeiro cônsul, mas ambos eram suspeitos de jacobinismo; Laveaux fora preso por algum tempo em dezembro de 1801 depois da explosão da "máquina infernal". O coronel Vincent fora preso depois de entregar a Constituição de Toussaint ao primeiro cônsul; alertou para o perigo de invadir São Domingos e foi depois exilado em Elba, onde pôde receber o imperador em 1814. Victor Hugues manteve o cargo de governador da Guiana Francesa, onde pôs em prática o decreto que restaurava a escravidão. Muitos franceses que permaneceram no Haiti foram mortos em um massacre depois da declaração de independência. O único republicano francês importante a encontrar refugio no Haiti foi o terrorista jacobino Billaud-Varenne, que apadrinhara Hugues em 1794 e que lá terminou seus dias em 1815-18. Maouet, o veterano monarchien que ajudara a organizar a ocupação britânica das Antilhas francesas, tornou-se primeiro-ministro colonial de Luís XVIII. Du Buc também se tornou um ornamento da Restauração.
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Though fallen thyself, never to rise again, Live and take comfort. Thou hast left behind Powers that will work for thee; air, earth, skies; There*s not a breath of the common wind . That will forget thee; thou hast great allies; Thy friends are exultations, agonies, And Love, and man's unconquerable mind.* Se a homenagem de Wordsworth se refere à resistência das massas negras anónimas, que continuaram lutando mesmo depois de desertadas por seus líderes, esta invocação de sua força básica e essencial era muito adequada. Por volta da mesma época James Stephen, cunhado de Wilberforce, publicou um folheto intitulado The Opportunity or Reasonsfor an Immediate Alliance with St Domingo, no qual destacava as vantagens de ajudar os rebeldes. Stephen seria uma luz à frente da segunda onda de abolicionismo britânico, que data desta época; a abolição do comércio de escravos reconquistou a maioria da Câmara dos Comuns em maio de 1804, que, em circunstâncias que serão examinadas no Capítulo 8, levou à Lei de 1807. Mas muito antes disso o governo de Londres redescobrira as vantagens de uma conciliação discreta com a revolução de São Domingos/Haiti.52 Durante os primeiros estágios da guerra entre a França e a Grã-Bretanha, não houve combates na Europa e uma grande frota francesa foi enviada para a Martinica. •Embora caído, para não mais levantar,/VÍvei c confortai-vos. Deixastes para trás/Poderes que trabalharão por vós; ar, terra, céus;/Nem um único sopro do vento trivial/Esqucccr-vos-á; tendes grandes aliados;/ Vossos amigos são exaltação e agonia/E amor, e a invencível mente humana.
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A República do Haiti, criada em 1804, preservou um elemento vital de continuidade com a São Domingos de Tòussaint Louverture. Ambas tornaram ilegal a escravidão por disposição expressa da Constituição, ambas eram governadas por uma classe dominante insegura que reunia funções económicas e militares e ambas exprimiam aspiração à verdadeira independência. A morte da escravidão fora confirmada pela derrota dos franceses, assim como a nova condição da massa de haitianos que tornaram possível aquela derrota. Todos os regimes posteriores buscaram formas de obrigar os moradores do campo a
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trabalhar. Muitos foram tentados a igualar os códigos rurais impostos por Toussaint, Dessalines e Henry Christophe à condição escrava do antigo regime. Mas quando apresentados à alternativa de voltar à escravidão absoluta, os trabalhadores sempre preferiram aliar-se aos novos senhores em vez dos antigos. Sob o novo regime de trabalho, o chicote do feitor foi proibido; embora outras formas de coerção possam ter tomado seu lugar, esta proibição parece ter sido em geral obedecida e bem recebida. O feto de que os novos senhores eram negros ou mulatos, enquanto a maior parte dos antigos era de brancos, não explica adequadamente a aparente preferência da massa de nouveaux libres. No ancien regime, a condição de vida do escravo de um negro livre jamais fora considerada invejável. Em muitos aspectos importantes a nova condição da massa de trabalhadores era mais livre do que a do escravo. Em primeiro lugar, a autoridade constituída do governo e dos donos de terras era desde o princípio muito menos eficaz e completa, mal chegando aos distritos das montanhas e muitos vezes ignorada até nas planícies. A escala das rebeliões e "repúblicas" camponesas no Haiti, no século XIX, seria qualitativamente maior que a de seus precursores do século XVIII, os maroons. Assim, de 1807 a 1819 grandes regiões do sudoeste constituíram uma República independente de fazendeiros liderados pelo ex-escravo africano e maroon JeanBaptiste Duperrier, mais conhecido como Goman. Mesmo nas regiões de administração mais consolidada, as novas autoridades consideraram prudente limitar a exploração dos produtores diretos: demasiada pressão sobre eles solaparia as bases do poder político. O exército e a polícia recrutavam seus componentes basicamente na massa de camponeses e trabalhadores, cuja rejeição incitaria revoltas militares, conspirações e golpes. Grupos independentes de camponeses e trabalhadores armados, conhecidos comopicquets ou cacost viriam a ter papel importante na história do Haiti.54 O próprio militarismo sem dúvida seria a maldição da sociedade haitiana, com forças armadas que totalizavam 40.000 homens. Os camponeses haitianos preferiam o cultivo de subsistência para atender às suas próprias necessidades do que a cultura de produtos comerciais, já que o resultado desta última podia ser apropriado de forma mais fácil por proprietários de terra ou administradores militares gananciosos. Nos dias da escravidão, os produtores haviam sido superexplorados para produzir um vasto excedente de exportação; sob o fardo do militarismo e da propriedade da terra, o camponês haitiano produzia um excedente muito menor, mas gozava de existência mais autónoma. Enquanto o comércio exportador definhava, o mercado local, no qual as mulheres tinham papel importante, era bastante vigoroso."
Um importante indicador das novas condições de vida da massa da população foi a forte recuperação do nível populacional nas primeiras décadas da independência. Segundo uma estimativa da época, a população cresceu de 375.000 habitantes em 1800 para 935.000 em 1822,56 Embora os números cxatos possam ser questionados, sem dúvida alguma houve um aumento considerável da população nessas décadas. Os governos haitianos afirmavam promover a vida familiar. Embora houvesse muita diversidade de formas de família, sendo muito comum a poligamia, qualitativamente isto proporcionou mais oportunidade para a criação de filhos do que a antiga ordem escravista. Apesar do papel ambivalente que tiveram na luta contra a França, os generais de Toussaint tornaram-se os líderes do novo Estado, em colaboração instável com os líderes mulatos do sul e do oeste. Dessalines declarou-se imperador em 1804, mas sua imitação de Napoleão era acompanhada de forte tendência antifrancesa. Os franceses, mas não os britânicos, eram atacados por promover a escravidão no Caribe, O massacre dos franceses restantes foi seguido em 1805 pela malsucedida invasão da metade leste da ilha, ainda controlada pela França. As autoridades britânicas não aprovaram oficialmente a vendetta sanguinária de Dessalines contra os franceses, mas esta, além da vingança, pode ter visado a impressioná-los. Muitos mulatos e anciens libres não eram tão hostis aos franceses quanto Dessalines e suspeitavam mais dos britânicos. Dessalines confiscou propriedades francesas como domaines nationaux e anunciou o plano de distribuir pequenas extensões de terra a veteranos. Os proprietários mulatos alarmaram-se com os planos de confiscar propriedades que, segundo eles, lhes tinham sido deixadas por parentes brancos. Apesar de decretos que impunham quotas de trabalho aos lavradores, a economia do novo Estado, enfraquecida pela guerra, pela negligência oficial e pela matança de administradores, gerou poucos produtos comerciais. Uma corte imperial pródiga e desorganizada absorvia toda arrecadação disponível, e o exército não recebia seu soldo. Depois de uma rebelião sulina em 1806, o imperador foi assassinado. Após a morte de Dessalines o Haiti foi grosseiramente dividido em dois, com Henry Christophe a governar o norte e Alexandre Pétion, o sul. Christophe, que nascera em Granada, seguia uma política pró-britânica. A aliança com a GrãBretanha foi feita como segurança contra a volta dos franceses e na esperança de concessões económicas. Em 1808-9 Christophe apoiou uma bem-sucedida revolta espanhola contra os franceses que ainda ocupavam a metade oriental da ilha. Enquanto o norte confiava principalmente em comerciantes britânicos, o sul tinha seus próprios mercadores e esperava manter boas relações com os Estados Unidos. Em 1811 Christophe se fez coroar rei Henrique I do Haiti, com protocolo,
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regalias e insígnias baseadas na corte de Saint James; além de satisfazer sua própria vaidade, a opção monárquica pretendia demonstrar proximidade com os britânicos. No sul, Pétion permaneceu ostensivamente fiel à forma republicana, mas também foi forçado a curvar-se à Grã-Bretanha. Ambos os Estados, em respeito à pressão britânica, reduziram os impostos sobre importações da Grã-Bretanha. Sob os termos do Tratado de Paris, em 1814a França teve permissão de recuperar suas colónias no Novo Mundo. Martinica e Guadalupe seriam devolvidas, com suas plantattons em franco desenvolvimento, depois de anos de ocupação britânica. Já que nenhum dos governos do Haiti foi reconhecido por potência alguma, havia a possibilidade de que a França pudesse reclamar "São Domingos". Os negociadores foram convencidos por Talleyrand de que as concessões coloniais à França tornariam a monarquia restaurada mais aceitável para a opinião francesa e, ao mesmo tempo direcionariam as energias francesas a uma distância segura da Europa. Os planos elaborados para subornar e ameaçar os novos líderes do Haiti, como prelúdio de uma nova expedição, deram em nada. As tentativas francesas foram rejeitadas com indignação; o rei Henrique prendeu o enviado que o procurou, publicou as instruções secretas que levava e ofereceu a Pétion um pacto de resistência conjunta. Embora o governo francês mantivesse a pretensão formal a São Domingos, em 1815 reconheceu que a tentativa de recuperar a colónia manu militari enfrentaria oposição implacável e unida dos líderes haitianos e exporia a França à opinião pública hostil. Nenhum dos estados haitianos foi reconhecido por governo estrangeiro algum. Sem reconhecimento diplomático, tanto o reino quanto a República passaram a cultivar relações com os líderes do antiescravismo na Europa. Em parte a ameaça francesa de 1814-15 fora frustrada pelo ressurgimento do sentimento abolicionista na Europa; na própria França os "Cem Dias" haviam assistido a um decreto contra o comércio de escravos, enquanto na Grã-Bretanha, como veremos no Capítulo 8, este episódio causou um monumental protesto abolicionista. Posteriormente o rei Henrique entabulou prolongada correspondência com Wilberforce e Clarkson, pedindo seu conselho e ajuda na política diplomática, económica e educacional. O presidente Pétion e seu sucessor Boyer procuraram os conselhos e o apoio do abade Grégoire." Tanto o reino quanto a República renunciaram publicamente a interferir com a ordem escrava em outras regiões da América. No entanto, ambos encontraram maneiras de prestar alguma ajuda pratica à luta contra a escravidão colonial. Christophe seguiu Dessalines ao receber libertos da América do Norte, especialmente quando tinham habilidades que pudessem auxiliar a reconstrução do país. A mari-
nhã de Christophe, construída como arma contra a República do sul, também foi usada contra comerciantes de escravos, rompendo vários tratados bilaterais firmados depois do Congresso de Viena, Pétion, no sul, encorajaria Bolívar a adotar uma política emancipacionista (mais sobre isso no Capítulo 9). No norte, o rei Henrique manteve alguns enclaves de plantations produtivas, com o uso do sistema defermage e a imposição de duros regulamentos de trabalho. A rotina diária dos trabalhadores nas grandes propriedades era, em princípio, regulamentada minuciosamente: depois de acordar às 3 da madrugada, havia orações e o desjejum, seguido de uma jornada matutina no campo das 4h30min às 8h, uma segunda jornada das 9h às 12h, pausa para o almoço até as 14h e um turno vespertino até o pôr-do-sol, por volta das 18 horas, quando voltavam a seus cailles. No sábado, cuidariam de suas roças e hortas; os domingos eram dias de descanso e, supostamente, de oração. (Como Toussaint antes dele, Christophe era cristão devoto e desaprovava o vodu.) A boa disciplina do exército de Christophe e o alto preço dos produtos das plantations permitiram que esta política tivesse algum sucesso e ajudasse a financiar a construção de uma série notável de fortificações e palácios. Os comandantes de Christophe foram equipados com telescópios, supostamente para ser usados na vigilância de frotas invasoras e para garantir que o trabalho prosseguisse nos campos. O sucesso económico do Estado monárquico provavelmente deveu tanto à coordenação estatal da economia quanto à exploração intensiva nas plantations. Fundaram-se várias escolas e deu-se alguma atenção ao aperfeiçoamento agrícola. O dinheiro estrangeiro conseguido com a venda de açúcar e café também foi usado para comprar do Daomé escravos em idade militar; em um total de 4.000, os dahomets ajudaram a manter o regime de trabalho e o governo do rei Henrique. Henrique acabou por ser derrubado por uma revolta interna em 1820. Estava mal de saúde e seu regime enfraquecera-se pela propaganda republicana e pela queda do preço do açúcar e do café; mas a severidade do regime que criara para as plantations deve ter contribuído para seu isolamento.58 A República do sul e do oeste era menos integrada e disciplinada que o reino do norte. Em épocas diferentes, tanto Rigaud quanto Jérome Borghella, filho mulato do mercador francês que colaborara com Toussaint, criaram estadetes separatistas. Pétion, como presidente, mostrou grande habilidade para conter tais ameaças, geralmente sem recorrer às forças armadas. No sul e no oeste havia uma classe maior de proprietários independentes, muitos deles anciens libres. Em 1809 Pétion tentou fortalecer o regime republicano através da divisão das propriedades confiscadas e outras terras públicas entre soldados e funcionários públicos. Desta forma criou-se uma classe camponesa de pequenos e médios proprietários. Soldados
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aposentados receberam 5 carreaux de terra (cerca de 6,5 hectares); coronéis, 25 earreaux. Durante a presidência de Pétion (1807-18), mais de 150.000 hectares de terra foram concedidos ou vendidos a mais de 10.000 pessoas. No entanto, sobreviveram grandes propriedades, operadas por fazendeiros arrendatários. Depois da derrubada do rei Henrique, o norte foi invadido pelo sul, agora sob a liderança do presidente Boyer; descobriu-se que o tesouro real continha 13 milhões de livres, cerca de 500.000 libras. A produção de açúcar entrou em colapso, mas a exportação de café continuou significativa, em torno de 20.000 toneladas por ano; o bastante para transformar o Haiti em um grande produtor. O sistema deplantations no norte não sobreviveu à derrubada do rei Henrique, e assim o sistema agrícola da República como ura todo baseava-se agora em uma combinação de minifúndios de camponeses e latifúndios operados por arrendatários.59 A precária sobrevivência da independência do Haiti era um espinho na carne da ordem escravista de todo o hemisfério ocidental. A guinada em São Domingos e a consolidação do poder negro no Haiti constituíam uma mensagem terrível para a ordem escravista em toda a América. Os rebeldes negros em Cuba em 1812, nos Estidos Unidos em 1820, na Jamaica e no Brasil na década de 1820 inspiraram-se no Haiti. Abolicionistas britânicos, franceses e norte-americanos escreveram livros sobre Toussaint Louverture e o drama da revolução haitiana. O exemplo de São Domingos sobreviveu nos temores de proprietários de plantations e autoridades coloniais. Como veremos, a emancipação britânica, as opções dos donos de plantations cubanos e brasileiros, o declínio dos sistemas escravistas nas ilhas menores do Caribe e o crescimento de sistemas mais seguros no continente e em Cuba, tudo isso refletiu o impacto da primeira libertação em São Domingos.
nia, que facilitavam a sobrevivência e a disseminação da resistência e da revolta escravas; a tenacidade da massa de negros na redução do poder dos donos àsplantations e na defesa da liberdade recém-conquistada; a decisão dos comissários jacobinos de aliar-se à resistência escrava e construir um poder emancipacionista; a ajuda diplomática e militar do Diretório na resistência aos proprietários monarquistas e à ocupação britânica; o jogo das rivalidades imperiais e comerciais que abriu espaço para um Estado negro emancipacionista; duas expedições, montadas pelas principais potências da época, que radicalizaram a Revolução que pretendiam esmagar. Em 1794 a mensagem da emancipação revolucionária dos escravos de São Domingos foi levada à França e da França foi trazida de volta pelo Atlântico até as Pequenas Antilhas. Faltavam às lies du Vent algumas circunstâncias importantíssimas que favoreceram a revolução de São Domingos. Naquelas ilhas, nem mesmo as lutas mais intensas entre facções de patriotas e monarquistas envolveram os escravos. As pessoas de cor livres eram menos numerosas. A hegemonia dos proprietários deplantations mostrara-se flexível, ajudada pelo tamanho mais controlável das ilhas, a tática habilidosa de Du Buc, a intervenção dos britânicos e a fraca iniciativa revolucionária dos representantes franceses ali presentes. Antes da chegada de Hugues em abril de 1794, nem a intensa celebração republicana da liberdade e da igualdade, nem a ameaça da ocupação britânica chegaram a representar forte ameaça à escravidão. A expedição jacobina derrubou a escravidão e expulsou os britânicos de Guadalupe e o tamanho da colónia tornou esta conquista mais vulnerável que em São Domingos. Assim como a luta nas Pequenas Antilhas distraíra os britânicos em meados da década de 1790, para vantagem da revolução de São Domingos, em 1802 a resistência de Delgrès ajudou a alertar os oficiais negros e mulatos da colónia maior para as verdadeiras intenções de Napoleão. Alguns historiadores escreveram como se o colapso do regime colonial tivesse por si só impelido os escravos à liberdade, ou sugeriram que os representantes revolucionários no Caribe não tinham escolha senão decretar a emancipação. A conduta de Rochambeau e Lacrasse nas Pequenas Antilhas em fevereiro de 1794 mostrou coisa bem diferente. A derrubada da escravidão exigiu protagonistas conscientes e dedicados, assim como condições favoráveis. Sem o surgimento dos "jacobinos negros" em 1793-4 e sua aliança com a França revolucionária, não se teria consolidado a emancipação generalizada em São Domingos. A aspiração de autonomia e espaço vital das massas negras exigiu política e programa gerais, ou o que na época Napoleão chamou de "ideologia". O emancipacionismo e o igualitarismo revolucionários da década de 1790 foram adctados por esta razão e prova-
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Rompera-se o elo que, era 1789, era o mais forte da corrente da escravidão colonial nas Américas. A revolução foi um sucesso em São Domingos/Haiti por uma combinação de motivos: a preponderância numérica maciça dos escravos, alguns deles "africanos brutos" desacostumados à escravidão americana, outros crioulos com novos talentos formados pelo próprio regime da.pl&tfafion; o surgimento de uma elite escrava, com alguma liberdade de movimento; a presença de uma grande comunidade de cor e livre, com propriedades e experiência militar; a desintegração dos mecanismos de controle dos escravos quando a Revolução da metrópole respingou nas colónias e diferentes facções da população livre lutaram entre si e deram armas aos escravos para atingir seus próprios objetivos; a disposição da metrópole de defender o colonialismo descartando a discriminação de castas; a espantosa explosão da revolta escrava em agosto de 1791; o tamanho e as condições da colo-
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ram ser uma ideologia duradoura. Um dos erros de cálculo mais graves de Napoleão, quando decidiu reconquistar São Domingos e reescravizar os negros, foi subestimar a extensão em que a liberdade e a igualdade se haviam tornado a religião dos. ex-escravizados e mesmo da maioria dos anciens libres. Parte da grandeza da extraordinária Revolução Francesa consiste em ter vindo a patrocinar a emancipação dos escravos nas Américas; e parte da grandeza da extraordinária Revolução de São Domingos/Haiti é que teve sucesso ao preservar as conquistas da Revolução Francesa contra a própria França.60 Mas afirmar isso não é defender algum reino auto-suficiente do discurso, revolucionário ou não, no qual se desdobrou o drama da libertação. A mensagem da autonomia negra podia ser transmitida em vários idiomas — francês, crioulo ou alguma língua africana — e com muitas variantes políticas ou religiosas — monarquista, republicana, católica, vodu —, contanto que se quebrasse o poder do proprietário de escravos. Em muitas conjunturas importantes o significado da ação dos combatentes negros não consistia no que tinham a dizer, mas sim em seu impacto físico sobre as estruturas de opressão e exploração, que permitiu à massa de escravos descobrir e afirmar uma nova identidade coletiva diante de seus opressores e exploradores. Desde o início a mensagem essencial da autonomia negra foi sustentada por uma miríade de partidários locais, de credo e formação diferentes, que resistiram a qualquer retorno à antiga ordem, ainda que justificada em termos do republicanismo ou da monarquia, do patriotismo ou de vantagens pessoais. Em 1802 todos os líderes famosos haviam colaborado com Leclerc, e, no entanto, ele ainda encontrava oposição. Pode-se pensar que a resistência haitiana a Napoleão foi mantida pelo nacionalismo, assim como o nacionalismo espanhol ou nisso ajudaram a inspirar a resistência à ocupação francesa. Mas só se pensou no próprio nome do Haiti depois que os franceses já tinham sido derrotados — e, mal se criou o novo Estado, ele se dividiu. Assim, parece razoável postular alguma identidade anterior e mais básica a emergir da resistência à condição de escravo e por ela definida, e articulada por uma profusão de conexões locais e lembranças populares. Afinal de contas, a Revolução do Haiti envolvera levantes e mobilizações mais profundos do que até mesmo a própria Revolução Francesa. O emancipacionismo negro foi um produto de toda a experiência extraordinária da década e meia após a revolta de 1791. No caso de São Domingos, o rompimento com a escravidão forneceu a base indispensável para o rompimento com o colonialismo. O emancipacionismo negro era algo mais profundo e constante do que o febril patriotismo tropical. Antecipou em muito a declaração de independência e garantiu que a independência tivesse conteúdo emancipacionista. O Haiti não foi o primeiro Esta-
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do americano independente, mas foi o primeiro a afirmar a liberdade civil de todos os habitantes.
Notas 1. Sobre a situação dos republicanos em meados de 1793, ver Geggus, Slavery, Warand Revolution, pp. 64, 100-101. 2. Stein, Léger Felicite Sonthonaxt pp. 75, 95. As instruções originais de Sonthonax, embora lhe concedessem amplos poderes, afirmavam expressamente: "É desnecessário lembrar-vos de que a igualdade de direitos concedida aos homens de core negros não deve sofrer nenhuma expansão." Monge, ministro das Colónias, 2 5 de agosto de 1792, citado em Saintoyant, La Colonisation Françaisependant Ia Révolution, II, p. 118. O relato de Stein deixa claro que Sonthonax vinha escrevendo a Paris solicitando a emancipação geral desde fevereiro de 1793. A partir desta data, ele concedeu muitas alforrias graduais; em maio ordenou que as cláusulas protetoras dos regulamentos de 1784 fossem lidas todo domingo nas igrejas. Depois do decreto de junho, ele estendeu a liberdade às mulheres dos guerreiros negros, contanto que se dispusessem a passar por uma cerimónia republicana de casamento. O ministro da Marinha e a Convenção ampliaram os poderes concedidos à Comissão em março de 1793 e provavelmente sabiam que uso seria feito deles. 3. Stem, Léger Felicite Sonl/tonax, pp. 76-106; ThomasOtt, The Haitian Revolution, 17891803, Knoxville, 1973, p. 71. 4. Pluchon, Toussaint Loaveríure, pp. 17-19. Embora o curso dos acontecimentos no norte viesse a mostrar-se decisivo, tanto Toussaint quanto Sonthonax estavam a par de rebeliões latentes em outros locais e de focos de resistência próximos da revolta aberta: ver Carolyn Fick, "Black Fbasants and Soldiers in the Saint Domingue Revolution: Initial Reactions to Freedom in the South Province (1793-4)", em Frederick Krantz, org., Historyjrom Below, Montreal, 1985, pp. 243-60. 5. Citado em James, The Black Jacobins, p. 12 5. Toussaint reagia à ação de Sonthonax de libertar os escravos, já que emitira uma proclamação aos escravos, datada de 2 5 de agosto, que declarava: "R)r ter sido o primem) a defender vossa causa, é meu dever continuar a trabalhar por ela. Não posso permitir que outro me roube a iniciativa. Como fui eu quem começou, hei de saber como concluir. Uni-vos a mim e gozareis dos direitos de homens livres mais cedo do que nunca." Citado em Toussaint lX)uverture> org. George Tyson, Jr., Englewood ClifFs, NJ, 1973, p. 27. Como oficial espanhol, Toussaint poderia no máximo oferecera liberdade aos que se alistassem em sua tropa, embora evidentemente ele forçasse até o o limite máximo sua autoridade. 6. Geggus, Slavery, War and fovotuiion, pp. 105-14.
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7. Pérotin-Dumon, Être Patriote sous lês Tropiques, pp. 216-20. 8. O resumo de R>lverel é citado em Pluchon, 7òussainíLouverlure}p.44, 9. Geggus, Slavery, WarandReiJolution,^. 116,304. 10. David Geggus, "From His Most Catholic Majesty to the Godless Republique: The Volte
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14. Augustin Cochin, HAbolition de 1'Esctavage, Paris, 1861,2 vols, I, pp. 13-15; Stein, Léger Felicite Sonthonax,^. 110-1 \\ver tombem Decretai Ia ConventionNationate, cm La Révotution Française et 1'Abolition de l'Esdavage, Paris, 1968, XVII. Cochin, com os reflexos de abolicionista moderado do século XLX, comenta: "A Assembleia nada ousou, o Legislativo
Face oflòussaint Louverture and the Ending of Slavery in Saint Dorningue", Revue Française d'Histoire d'0utre Mer, 241,1978, pp. 481-99. A possibilidade de que Toussaint tivesse conhecimento prévio do decreto de emancipação da Convenção Nacional é ampliada pelo fato de que estava na vizinhança do porto de Gonaives em abril e maio.
nada pôde fazer, a Convenção arriscou tudo" (p. 7). 15. Lê Moniteur Universel, 17, 18 Pluviôse, Anil, n°s. 137, 138, fevereiro de 1794. O papel de Danton no encorajamento à emancipação acabou levantando contra ele acusações de irresponsabilidade e traição. O objetivo político dessas acusações revelou-se quando, ainda
11. Sobre as pressões sociais sobre os jacobinos, ver D. M. G. Sutherland,/TíJWí:í 1789-1815: Reijolution and Counter-Reijolution, Londres, 1985, pp. 129-44; George Rudé,Rffvotulionary Europe, J 7&3-7